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A questão do autoritarismo na teoria política de Nicos

Poulantzas: crítica e atualidade1

Theófilo Codeço Machado Rodrigues (UERJ)

Introdução

O declínio da democracia liberal parece ser o grande tema da agenda da ciência política
nesse início do século XXI. Nos últimos anos, livros e mais livros foram publicados pela
literatura especializada com um mesmo objetivo: tentar explicar as razões que levaram
países até então considerados como democracias estáveis a transitarem para governos
tidos como autoritários. Sob esse registro, as eleições de Recep Erdogan na Turquia,
Rodrigo Duterte nas Filipinas, Viktor Orbán na Hungria, Donald Trump nos Estados
Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil parecem ser exemplares. Mas não há como entender
esse fenômeno atual sem um retorno aos clássicos e um dos autores que certamente se
encaixa nessa categoria é Nicos Poulantzas. Na teoria política contemporânea, sua obra
constitui importante contribuição para a compreensão do fenômeno autoritário. Com
efeito, praticamente toda a sua produção realizada entre 1968 e 1979, ano de sua trágica
morte, perpassa de algum modo temas como o autoritarismo, o totalitarismo, o fascismo
etc.

O presente artigo analisa a obra de Poulantzas em busca de suas interpretações do


autoritarismo num sentido amplo. Para tanto, são analisados os principais textos em que
o autor, de algum modo, ofereceu tratamento conceitual para o tema. Isso é o que ocorre
em Poder político e classes sociais, de 1968, em Fascismo e ditadura, de 1970, em Notas
sobre o totalitarismo, de 1973, em A crise das ditaduras, de 1975 e, finalmente, em sua
obra de maturidade, O Estado, o poder, o socialismo, de 1978. Nesses textos, Poulantzas
debate temáticas como o fascismo na Alemanha e na Itália, o totalitarismo na obra de
Hannah Arendt e as ditaduras da década de 70 em Portugal, Grécia e Espanha, além de
formular o seu original conceito de “estatismo autoritário”, que não se confunde com os
termos anteriores. Intérpretes de Poulantzas como Bob Jessop e Ernesto Laclau também
foram recolhidos para uma melhor avaliação de sua obra.

1
44º Encontro Anual da ANPOCS

1
O artigo está estruturado em cinco seções. A primeira apresenta as diferenças entre
o “Estado democrático-parlamentar” e o “Estado de exceção” na obra de Poulantzas. As
quatro seções seguintes indicam definições de totalitarismo, fascismo, ditadura e
estatismo autoritário ao longo da obra do autor.

“Estado democrático-parlamentar” versus “Estado de exceção”

Longe de uma interpretação esquerdista vulgar que poderia considerar de forma


homogênea qualquer tipo de Estado burguês, Poulantzas diferencia o “Estado
democrático-parlamentar” do “Estado de exceção”. Ainda que sejam todas formas de um
Estado capitalista, há diferenças entre essas formas. Por um lado, o “Estado democrático-
parlamentar” se caracteriza pelo “sufrágio universal, pluralidade dos partidos e
organizações políticas, relações particulares entre o Executivo e o Parlamento,
regulamentação jurídica das respectivas esferas de competência entre os diversos setores
e os aparelhos de Estado” (1976, p. 72). Já os “Estados de exceção” possuem
características opostas:

Supressão dos representantes políticos tradicionais (partidos políticos)


das próprias frações do bloco no poder, eliminação do sufrágio,
deslocamento do papel dominante, entre os aparelhos de Estado, para o
aparelho repressivo (exército em primeiro plano), reforço acentuado do
centralismo “burocrático” do Estado, hierarquização e recuperação dos
centros de poder real do Estado e das cadeias de transmissão (1976, p.
72-73).

Como o próprio nome faz entender, os Estados de exceção não constituem a forma
normal do Estado capitalista. Essa forma normal é constituída por instituições
democráticas e a liderança hegemônica da classe burguesa é estável e segura. Já os
Estados de exceção são respostas a crises de hegemonia da classe burguesa no interior do
Estado capitalista (JESSOP, 2009, p. 136). Como bem observa Jessop (2009, p. 136),
“enquanto o consentimento predomina sobre a violência constitucionalizada em estados
normais, os estados de exceção intensificam a repressão física e conduz a uma “guerra
aberta” contra as classes dominadas”.

Essa diferenciação conceitual, contudo, não se dá apenas entre o “Estado


democrático-parlamentar” e o “Estado de exceção”. Por “regimes capitalistas de
exceção”, o autor categoriza três regimes distintos: fascismos, ditaduras militares e

2
bonapartismos (1976, p. 7). As próximas seções tratam dessas categorias e de outras mais
como o estatismo autoritário e o totalitarismo2.

Uma definição de totalitarismo

Poder político e classes sociais, livro de 1968, é considerado o marco de entrada


de Poulantzas na teoria política contemporânea, sua primeira grande obra teórica
(MOTTA, 2009). Sob forte inspiração althusseriana, esse livro foi também a primeira
aplicação da leitura estruturalista em uma investigação do Estado (CARNOY, 1988).
Como se fosse um verdadeiro manual de ciência política marxista, o jovem Poulantzas,
com apenas 32 anos de idade, construiu nesse denso texto as bases teóricas e as principais
definições conceituais que passaria a utilizar pelo resto de sua vida, ainda que com
algumas variações. Ali encontramos suas formulações sobre noções como bloco no poder,
cena política ou formação social, entre tantas outras. Mas é a definição de totalitarismo,
que já aparecia ali, que nos interessa no momento.

Em geral, o conceito de totalitarismo é confundido com o de fascismo. Para


Poulantzas, no entanto, não são dois conceitos sinônimos. Totalitarismo, diz Poulantzas
(1986, p. 290), “conota simplesmente um caráter particularmente ‘forte’ do poder de
estado, ainda que se tenha tentado distingui-lo do ‘autoritarismo’”. Isso significa que o
totalitarismo não deve ser reduzido à um fenômeno político preciso. Aliás, o totalitarismo
pode estar presente até mesmo em regimes liberais. Segundo Poulantzas (1986, p. 290),
as características do totalitarismo “não se encontram de modo algum em oposição com a
forma de Estado liberal propriamente dita: os fenômenos reais mascarados por esta
ideologia política encontram-se presentes na forma do Estado liberal, precisamente na
medida em que se relacionam ao tipo capitalista de Estado”. O fascismo, portanto, não
deve ser confundido com autoritarismo ou com totalitarismo, pois, do contrário, qualquer
forma concreta de Estado seria mais ou menos fascista. Como se vê, trata-se ainda de uma
formulação muito incipiente. Por isso podemos concordar com Bob Jessop (2009, p. 135)
quando diz que Poder político e classes sociais “ofereceu comentários limitados sobre o
absolutismo, o bonapartismo, o bismarckismo, o fascismo e o totalitarismo”.

2
Embora mencione o bonapartismo como um exemplo de regime de exceção, não há na obra de
Poulantzas uma sistematização mais complexa sobre esse conceito. Por essa razão, as ditaduras
bonapartistas não serão abordadas neste artigo.

3
Em 1973, Poulantzas avançou no tema ao publicar na revista francesa Tel Quel
suas Notas sobre o totalitarismo em que faz uma resenha crítica do livro Linguagens
Totalitárias de Jean-Pierre Faye. Em verdade, interessa-nos menos a leitura que
Poulantzas faz de Faye e mais a crítica que desfere contra Hannah Arendt na conclusão
do texto. Como sabemos, Arendt havia publicado em 1951 seu clássico Origens do
totalitarismo. Poulantzas é irônico ao resumir o livro de Arendt:

Les Origines du Totalitarisme (1951) de H. Arendt (que fez escola), foi


uma das bíblias dos democratas anglo-saxões-alemães durante os anos
da “’guerra-fria’. É bastante conhecida a linha político-ideológica
principal deste livro: comunismo = fascismo, Stalin = Hitler, os
“anormais” (comunistas-fascistas) assemelham-se, e viva a democracia
ocidental (POULANTZAS, 1974, p. 112).

O centro da crítica de Poulantzas reside na ausência completa da ideia de luta de classes


na obra de Arendt. O autor vai além ao demonstrar para Arendt que, ao contrário do que
ela sugere, “o fascismo e as outras formas do Estado burguês são, todas, formas do Estado
capitalista” (POULANTZAS, 1974, p. 113).

Em 1978, com O Estado, o poder, o socialismo fica mais claro que para Poulantzas
o totalitarismo nunca foi um regime específico, mas sim uma forma geral do Estado
capitalista, em particular do Estado de exceção. Por essa razão, formas totalitárias podem
ser encontradas no fascismo, nas ditaduras militares ou no bonapartismo
(POULANTZAS, 1980, p. 83 e 240). Contudo, isso não significa dizer que em regimes
democráticos não haja também elementos totalitários. Isso fica mais claro nos regimes
democráticos contemporâneos, que possuem a marca do estatismo autoritário, como
veremos adiante. Mas antes precisamos passar por melhores definições do fascismo e das
ditaduras.

O fascismo: Alemanha e Itália

Poder político e classes sociais sofreu rigorosas críticas por ser considerado uma
obra demasiadamente formalista, abstrata, ou, de um abstracionismo estruturalista
(LACLAU, 1978; MILIBAND, 2008)3. Esse problema foi corrigido em Fascismo e

3
Uma resposta de Poulantzas contra Laclau e Miliband foi publicada na New Left Review, em 1976. Ver
POULANTZAS, 2008.

4
ditadura, texto de 1970, em que analisa situações concretas de formações sociais como a
alemã e a italiana, ambas no período fascista (MOTTA, 2010).

Para Poulantzas (1972a), o fascismo faz parte da etapa imperialista do capitalismo


e ocorre, em particular, naquelas formações sociais que são consideradas elos fracos da
cadeia imperialista, no caso a Alemanha e a Itália, países que passaram por processos
distintos de desenvolvimento do capitalismo. Mas dizer que o fascismo está localizado na
etapa imperialista do capitalismo ainda significa pouco. Afinal, outros regimes políticos
também estão historicamente localizados no mesmo lugar. Nesse mesmo momento
histórico coexistem regimes democrático parlamentares e regimes de exceção. O
fascismo é um caso típico de regime de exceção.

A pergunta que se segue é: o que diferencia a forma dos Estados democrático


parlamentares dos Estados de exceção? A resposta liberal é bem diferente da resposta de
Poulantzas. Teóricos do totalitarismo como a já mencionada Hannah Arendt entendem
que a principal diferença entre esses dois tipos de Estado está na autonomia das
instituições da sociedade civil em relação ao Estado. Segundo Poulantzas, esses autores
entendem tais diferenças do seguinte modo:

O Estado “totalitário” – o fascismo, por exemplo – seria


“essencialmente”, pela sua natureza, distinto do Estado “pluralista-
institucionalista”. Neste último, existiriam instituições ou organizações
autônomas entre o Estado, por um lado, e os indivíduos da sociedade
civil, por outro. Estes “corpos intermediários” entre o estado e o
indivíduo seriam as garantias da liberdade, mensurável, bem entendido,
como autonomia do indivíduo em relação ao estado. Estas instituições
“autônomas” e “livres” seriam os partidos, os sindicatos, as instituições
culturais, as escolas, a igreja, até (e inclusive) as diversas associações
locais, desportivas, etc. [...] Quanto ao Estado totalitário, caracterizar-
se-ia, precisamente, pela pertença de todas as instituições ao estado, por
uma estatização do conjunto da vida social, e, portanto, pela ausência
de instituições “autônomas” entre o indivíduo e o Estado
(POULANTZAS, 1972b, p. 102-103).

Como sabemos, na tradição althusseriana, mas também gramsciana, em que


Poulantzas está inserido, esses “corpos intermediários” entre indivíduos e Estado são, na
verdade, “aparelhos ideológicos do Estado” que estão presentes em todas as formações

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sociais complexas. Isso significa dizer que, tanto nos Estados democrático parlamentares
quanto nos Estados de exceção, esses corpos intermediários pertencem ao Estado de
alguma forma. Há uma diferença, portanto, entre a interpretação liberal e a marxista.

Com efeito, o que diferencia os dois tipos de Estado é a relação desenvolvida entre
esses “aparelhos ideológicos de Estado” e os chamados “aparelhos repressivos de
Estado”. No Estado fascista, os “aparelhos ideológicos de Estado” legitimam os
“aparelhos repressivos de Estado”, ou, dito de outro modo, o “papel da repressão física é
necessariamente acompanhado por uma intervenção particular da ideologia, que legitima
essa repressão” (POULANTZAS, 1972b, p. 105).

As ditaduras: Portugal, Grécia e Espanha

Com a queda das ditaduras militares em Portugal e na Grécia, em 1974, e os sinais


de que o mesmo ocorreria em breve com o regime franquista na Espanha, a preocupação
de Poulantzas girou para o que definiu como a crise das ditaduras. A crise das ditaduras,
é, aliás, o título do livro publicado em 1975 em que analisa as condições políticas que
permitiram a transição democrática nesses três países. Para cumprir com esse objetivo,
Poulantzas segue uma metodologia bem clara em que observa a estrutura política dessas
ditaduras a partir de cinco dimensões: o contexto imperialista mundial; a relação das
ditaduras com os Estados Unidos e a Europa; as classes dominantes; as classes populares;
e os aparelhos de Estado. Em cada uma dessas dimensões, o autor estabelece as diferenças
entre regimes democráticos-parlamentares, ditatoriais e fascistas.

Nessa obra, Poulantzas faz questão de distinguir os casos espanhol, português e


grego dos já mencionados alemão e italiano, ou seja, diferenciar fascismo e ditaduras
militares. Podemos listar três características principais que estão interconectadas que
destoam os dois regimes: a capacidade de mobilização de massas; o lugar da dominação
ideológica e da coerção; e a fragilidade do regime. Em primeiro lugar, a capacidade de
mobilização das massas é um importante elemento de diferenciação entre os regimes
ditatoriais e os fascistas. Ditaduras militares “se diferenciam, de fato, dos regimes
fascistas clássicos (de tipo nazismo alemão ou fascismo italiano) pela incapacidade de
virem a ser verdadeiros movimentos estruturados de massa” (1976, p. 46). Esse
isolamento das ditaduras em relação às massas deve-se ao fato de não terem forjado
“organizações próprias de enquadramento e de mobilização – partido fascista, sindicatos
relativamente “representativos” – das massas” (1976, p. 63). Por óbvio, isso não significa

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dizer que não haja elementos “fascistas” nas sociedades de regime ditatorial; o ponto é
que esses elementos não são o suficiente para superar a “forma dominante da ditadura
militar” (1976, p. 63).

Em segundo lugar, ditaduras militares e regimes fascistas se diferenciam no lugar


ocupado pela dominação por repressão e pela dominação ideológica. Regimes
democráticos-parlamentares e regimes fascistas se apropriam de forma mais clara de
“aparelhos especialmente destinados à dominação político-ideológica da classe operária
e das massas populares” (1976, p. 65). O mesmo não ocorre com as ditaduras militares
que, por essa razão, são obrigadas a manterem a dominação pela via da repressão
permanente. No fascismo, os escalões intermediários do Estado estão unificados e
mobilizados pela estrutura político-ideológica fascista; nas ditaduras militares, não há
essa unificação ideológica nas camadas intermediárias do Estado, o que a torna
impregnada pela luta de classes (1976, p. 67).

A terceira dimensão que difere regimes ditatoriais dos fascistas diz respeito à
fragilidade dos primeiros. As ditaduras são mais vulneráveis que os regimes fascistas,
pois nas ditaduras há contradições nos aparelhos ideológicos de Estado: contradições
entre o exército e as universidades; entre o exército e a imprensa; entre o exército e a
magistratura; entre a administração e a imprensa; entre a administração e as universidades
etc. Por óbvio, contradições também existem nos regimes fascistas. Mas esses regimes
“constituem um aparelho (o partido fascista), que além de um papel junto às massas
populares funciona, também, e sempre paralelamente ao controle policial, como um
aparelho que de certa forma reúne os outros sob sua autoridade e os mantém coesos”
(1976, p. 96). Isso não existe nas ditaduras militares. Por essa razão, Poulantzas aponta a
existência de militantes de esquerda nas universidades espanholas e o investimento dos
militantes comunistas no aparelho sindical corporativista português.

Sobre esse último aspecto, uma observação merece ser feita. Poulantzas tem razão
em apontar que as ditaduras enfrentam maiores contradições internas derivadas da falta
de uma coesão ideológica quando comparadas aos regimes fascistas. Contudo, pela
experiência dos casos históricos por ele selecionados é difícil concordar com a afirmação
de que isso signifique uma maior instabilidade dos regimes, ou, como ele prefere, uma
maior vulnerabilidade. Ora, os dois regimes fascistas duraram 12 anos na Alemanha e 20
na Itália, ao passo que as ditaduras permaneceram no poder por aproximadamente
quarenta anos na Espanha e em Portugal. Ou seja, os casos concretos selecionados por
7
Poulantzas apontam na direção contrária de sua tese. Por um lado, alguém poderia
argumentar que o fim dos regimes fascistas foi derivado da guerra e não de contradições
internas. De fato, isso parece ter ocorrido. Por outro lado, alguém poderia contra
argumentar que a não participação direta na guerra seja justamente um elemento
constitutivo da estabilidade das ditaduras e que as diferencia dos fascismos. Enfim, esse
é um debate em aberto, mas que mostra uma fragilidade pontual do argumento de
Poulantzas sem, no entanto, desqualificar a sua tese geral.

O conceito de estatismo autoritário

Na conclusão de A crise das ditaduras, Poulantzas já havia começado a perceber


que elementos autoritários também estariam presentes nos próprios regimes
democráticos-parlamentares dos países capitalistas daquela fase do imperialismo na
década de 1970. Na sua avaliação, esses países passam por uma série de “transformações
estruturais (econômicas, políticas, ideológicas) que a crise do capitalismo só faz acentuar
e que tem efeitos consideráveis sobre todo Estado capitalista” (1976, p. 101). Essas
transformações permitem a institucionalização de uma aparelhagem “tecnocrática-
autoritária” que acentua a consolidação do Executivo em relação ao Parlamento o que
leva ao fim uma certa forma de “democracia política” (1976, p. 101). Esse advento da
aparelhagem “tecnocrática-autoritária” percebida pelo autor o faz concluir que “o caráter
‘democrático’ destes regimes [...] não deve ser medido conforme um ideal de regimes
parlamentares já pertencentes ao passado” (POULANTZAS, 1976, p. 101).

O que aparecia apenas como um insight da conclusão do livro de 1975 foi melhor
desenvolvido três anos depois em O Estado, o poder, o socialismo, livro de 1978, por
meio do conceito de estatismo autoritário. Estado, o poder, o socialismo é certamente a
obra mais importante de Poulantzas, fruto de sua produção mais madura e publicado
apenas um ano antes de sua trágica morte. Não cabe aqui recuperar tudo o que é exposto
na obra, mas sim o tema desenvolvido na quarta parte do livro intitulada O declínio da
democracia: o estatismo autoritário. Com esse conceito de estatismo autoritário
Poulantzas observou de forma pioneira a nova forma que os regimes democráticos
assumiriam a partir da década de 1970. Num linguajar claramente marxista, esse
estatismo autoritário corresponde, diz o autor, “à fase do imperialismo e do capitalismo
monopolista nos países dominantes” (POULANTZAS, 1980, p. 235). Há aqui um
elemento importante. Seria o estatismo autoritário um tipo particular de regime de
exceção como o fascismo ou a ditadura? Poulantzas é taxativo na negação. “Este Estado
8
não é nem a forma nova de um verdadeiro Estado de exceção, nem, propriamente a forma
transitória para um tal Estado: ele representa a nova forma “democrática” da república
burguesa na fase atual” (POULANTZAS, 1980, p. 240). Com efeito, Poulantzas foi
perspicaz ao perceber a gênese dessa nova forma do regime democrático que é ainda mais
nítida nesse início de século XXI.

Por estatismo autoritário Poulantzas (1980, p. 234) entende “a monopolização


acentuada, pelo Estado, do conjunto de domínios da vida econômico-social articulado ao
declínio decisivo das instituições da democracia política”. Mais do que isso, “o estatismo
autoritário caracteriza-se por uma dominação das cúpulas do executivo sobre a alta
administração e pelo crescente controle político desta por aquele” (POULANTZAS,
1980, p. 259). Além disso, os próprios interesses econômicos estão presentes no interior
da administração do Estado:

A burocracia de Estado, sob a autoridade das cúpulas do Executivo,


torna-se não só o lugar, mas o principal agente da elaboração da política
estatal. Não se trata de um estabelecimento de compromissos políticos
no meio parlamentar, ou seja de uma elaboração pública dos interesses
hegemônicos sob a forma de interesse nacional. Os diversos interesses
econômicos estão diretamente presentes doravante, transcritos na
íntegra, no seio da administração (POULANTZAS, 1980, p. 260).

O estatismo autoritário, como dissemos, é uma nova forma do regime democrático


no período pós-década de 1970. Mas, ainda que seja uma modalidade de regime
democrático, isso não significa supor a não existência de elementos de um regime de
exceção em seu interior. Nas palavras de Poulantzas (1980, p. 242), “esse Estado, pela
primeira vez provavelmente na existência e na história dos Estados democráticos, não
apenas contém elementos esparsos e difusos de totalitarismo, mas cristaliza seu
agenciamento orgânico como dispositivo permanente e paralelo ao Estado oficial”. Não
se trata de uma contradição ou de um paradoxo pois, como sustenta o próprio autor, “toda
a forma democrática de Estado capitalista comporta tendências totalitárias”
(POULANTZAS, 1980, p. 241).

Esse momento histórico da década de 1970 não é trivial. É exatamente o momento


do declínio do Estado de bem-estar social pós-crise do petróleo de 1973, ou seja, o fim
dos chamados “anos dourados” do capitalismo, na simbólica expressão de Hobsbawm
(1995). Por essa razão, Poulantzas (1980, p. 246) argumentará que “o estatismo

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autoritário é também a verdade que surge dos escombros do mito do Estado-providência
ou do Estado bem-estar”. Essa crise econômica determina a própria crise política que
transforma o regime democrático. Com a incapacidade de investimento do Estado em
políticas sociais em decorrência da crise do petróleo, aumenta a distância entre a
democracia política e a democracia social. Essa é uma das transformações que caracteriza
o estatismo autoritário.

A transformação do sistema partidário é também uma característica desse período


de gênese do estatismo autoritário. Na medida em que a administração tende a
monopolizar o papel de organizador político das classes sociais e da hegemonia, os
partidos perdem essa função. Ao mesmo tempo, há uma “‘desideologização’ desses
partidos, o desaparecimento de seus traços ideológicos marcantes e sua transformação em
partidos despersonalizados” (POULANTZAS, 1980, p. 267). Para Poulantzas, a
manutenção da democracia representativa e das liberdades pressupõe não apenas a
pluralidade de partidos, mas também um funcionamento orgânico relativamente distante
do aparelho administrativo central do Estado. Isso se perdeu com o advento do estatismo
autoritário. Sobre esse processo, o autor nos diz:

Esses partidos, mais que lugares de formulação política e de elaboração


de compromissos e alianças com base em programas mais ou menos
precisos, mais que organismos que mantém laços efetivos de
representação com as classes sociais, constituem desde então
verdadeiras correias de transmissão das decisões do executivo
(POULANTZAS, 1980, p. 266).

De certo modo, ao elaborar o conceito de estatismo autoritário Poulantzas


antecipou muitos dos debates que a teoria política travaria a partir da década de 1990
como as críticas da terceira via, da pós-política (MOUFFE, 2015) e da cartelização do
sistema partidário (KATZ e MAIR, 1995).

Um dos principais intérpretes de Poulantzas, Bob Jessop percebe essa antecipação


feita por Poulantzas, embora não desenvolva o tema4. Ao analisar a política ocidental da
década de 1990 e dos primeiros anos do século XXI, o sociólogo britânico observa que
“o Novo Trabalhismo é uma ilustração particularmente constrangedora dessas tendências,

4
Jessop (2009) também apresenta críticas ao desenvolvimento do conceito de estatismo autoritário,
mas esse é um tema a ser trabalhado em outro momento.

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mas os mesmos traços também são completamente evidentes nos Estados Unidos, na
Itália, na Espanha, na França, na Alemanha e em várias outras sociedades metropolitanas”
(JESSOP, 2009, p. 141). Ao mencionar o Novo Trabalhismo, Jessop está indicando,
precisamente, a política da chamada “terceira via” como um exemplo do estatismo
autoritário. Ao avaliar o estatismo autoritário nos tempos mais recentes, Jessop (2009, p.
141) aponta ainda que “uma grande ênfase em temas de segurança nacional e
policiamento preventivo associada à assim chamada guerra contra o terror em casa e no
exterior também reforçam o ataque aos direitos humanos e às liberdades civis”.

Considerações finais

A recente ascensão de movimentos de extrema-direita e de governos autoritários


no período pós-crise econômica de 2008 exige da teoria política um retorno aos clássicos
para uma melhor compreensão do fenômeno. Entre esses autores está Poulantzas, um
“clássico moderno” na expressão de Bob Jessop (2009).

Como vimos no presente artigo, ao longo de toda sua obra Poulantzas esteve
preocupado com o tema do autoritarismo e dos regimes de exceção – fascismo, ditaduras
militares e bonapartismos. A partir de estudos concretos do fascismo na Itália e na
Alemanha, e das ditaduras militares na Grécia, na Espanha e em Portugal, o autor pôde
sistematizar as principais características de cada regime. No entanto, a leitura de
Poulantzas nos sugere que o conceito de “estatismo autoritário” talvez seja o mais
promissor para a análise da conjuntura política do início do século XXI, ao mesmo tempo
em que o próprio conceito precisa ser atualizado ou ressignificado. Em primeiro lugar,
faz-se necessário dizer que o “estatismo autoritário” não deve ser confundido com
fascismo ou ditadura, pois “ele representa a nova forma ‘democrática’ da república
burguesa na fase atual” (POULANTZAS, 1980, p. 240). De acordo com o autor, essa
nova fase do capitalismo é marcada por um declínio dos partidos como canais de
representação política, pela exclusão de instituições participativas de nossa vida política
e por surgir dos escombros do Estado de bem-estar social. De certo modo, poderíamos
sugerir que, até o fim do século XX, o ápice desse “estatismo autoritário” teria sido aquilo
que a literatura especializada definiu como “terceira via” (GIDDENS, 2001) ou como
“neoliberalismo progressista” (FRASER e JAEGGI, 2020). Mas a ascensão de
movimentos de extrema-direita no início do século XXI mostra que esse “estatismo
autoritário” pode estar chegando em um grau ainda mais elevado.

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A questão que precisa ser respondida em outro momento é: essas novas
experiências políticas da extrema-direita no início do século XXI são expressões
qualitativamente mais densas do “estatismo autoritário” ou precisaríamos de um novo
conceito para defini-las?

Não obstante algumas atualizações necessárias, seu conceito de “estatismo


autoritário” parece descrever bem o cenário de avanço do autoritarismo do início do
século XXI. Por outro lado, poderíamos ressaltar, com Jessop, que há problemas nos
conceitos poulantzianos que precisam ser reelaborados. De qualquer modo, tudo isso nos
atesta a vitalidade de sua teoria política para os atuais estudos do autoritarismo.

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12
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