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Assilvestrar

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Índice

Prefácio.............................................................................................. 9
O Liberalismo do presente é o Socialismo do futuro ............... 14
O Meio é a Mensagem................................................................... 20
Uma sociedade sem classe............................................................ 27
O colapso de quê? .......................................................................... 34
Teocracia e Escravatura ................................................................ 44
Uma mera formalidade................................................................. 53
O Supositório Arco-Íris ................................................................. 58
Em Busca de uma Identidade Impossível .................................. 69
Apatia Mortal ................................................................................. 81
A Apologia da Ignorância ............................................................ 97
Sorriso de Raposa ........................................................................ 104
Maio de 68 .................................................................................... 112
Progresso tecnológico e Globalismo ......................................... 118
O Problema da Fundação ........................................................... 129
O Nacionalismo não é necessário, nem suficiente .................. 146
O Papel das Mulheres ................................................................. 156

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O Elefante Tecnológico ............................................................... 169
Informar o Público ....................................................................... 182
A Caverna ..................................................................................... 185
A supremacia da excepção ......................................................... 192
Feira ............................................................................................... 195
Ser Humano .................................................................................. 197
Paradoxos ..................................................................................... 201
Protestar ........................................................................................ 207
José Mário ..................................................................................... 219
Contar a história certa ................................................................. 225
Comunismo e capitalismo .......................................................... 233
Uma derrota concedida .............................................................. 247
O Trigo e o Joio ............................................................................ 251
Uma Fábula .................................................................................. 257
O Novo Sagrado .......................................................................... 260
Prisioneiros de Guerra ................................................................ 264
Religiões Seculares ...................................................................... 271
Existe sistema ‘pós-industrial’? ................................................. 277
Progressistas somos nós todos, desde pequenos* ................... 283
Bolas e Doces ................................................................................ 297
O Espírito Lusitano...................................................................... 304
O Culto do Microscópio.............................................................. 309

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A Política à luz da Técnica ......................................................... 320
A Abordagem Conspiratória ..................................................... 336
A Cidade nas Escrituras ............................................................. 343
A Civilização e as suas consequências ..................................... 359

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Prefácio

Assilvestrar é o processo de tornar selvagem aquilo que


antes foi domesticado. Uma semente de um híbrido (por
mais antigo que seja e desde que não seja geneticamente
modificado em laboratório), se for plantada, deixada flo-
rar e gerar a sua própria semente, reproduzindo-se sem
intervenção, retornará em poucas gerações ao seu estado
natural, como Deus a criou. O mesmo se aplica aos ani-
mais e aos seres humanos. Esse processo de retorno a
uma forma ancestral de vida e ser é o que o autor destes
textos considera ser o rumo adequado para todos os seres
humanos, dependendo de cada um decidir tomá-lo ou
não.

***

Os textos nesta colecção foram escritos e publicados num


blog entre 2017 e 2020, ordenados cronologicamente por
ordem de composição. As ideias neles expressas foram
ruminadas ao longo de muitos mais anos e são o produto
de leituras e reflexões. A razão para a ordem cronológica
é considerar que todas estas investigações e especulações,
tendo começado num ponto, foram desaguar numa con-
clusão final – a que dá nome a esta colecção. Entre o
início e o fim haverá contradições na mundividência

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apresentada, pois tal é inevitável quando se inicia e even-
tualmente conclui uma investigação.

Alguns textos continham links ou referencias a outros


blogs que, em papel, não servem para muito. Os links
foram omitidos e as menções limitadas, sem prejuízo pa-
ra o sentido dos textos.

Os seguintes autores merecem menção especial por terem


enformado em larga medida o pensamento que deu ori-
gem a estes textos: Jaques Ellul, Neil Postman, G. K.
Chesterton, C. S. Lewis, Theodore Kaczynski, Mashall
McLuhan, Kirkpatrick Sale, Fr. Seraphim Rose, Arcebispo
Fulton Sheen e Masanobu Fukuoka.

A autoria permanece anónima, pois não é o autor, mas as


ideias expressas que importam.

***

Antigamente acusava-se quem se dizia não ser nem de


direita nem de esquerda de ser certamente de direita. A
obsessão com a política pedestre e a insistência na sacra-
lidade destes termos tão historicamente voláteis sempre
foi uma característica da esquerda. Hoje as obsessões são
outras (o ‘género’, a raça, etc), mas por trás delas está a
mesma onda de conformidade e as mesmas acusações

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(quem não quer castrar os seus filhos é transfóbico e
quem quer manter a sua terra ancestral é certamente ra-
cista!). E mais uma vez vem da esquerda. Talvez fosse
interessante investigar isto, mas por entre estes textos, e
nas análises que se encontram sobre o mundo moderno e
contemporâneo, pode-se já adivinhar porquê. Mesmo
sem o explicar explicitamente, continua a ser verdade.

Embora possamos dizer que houve, em tempos e em es-


paços, uma certa esquerda ou pessoas de esquerda preo-
cupadas com a dignidade humana, com a exploração es-
tatal e plutocrática do povo, com a destruição da nature-
za e com a destruição da individualidade, ela parece ter
desaparecido nos nossos dias. E embora exista uma direi-
ta oficial, partidária, que é e sempre foi uma mera justifi-
cação política para os planos dos plutocratas e oligarcas,
a verdade é que, no plano social e até económico, é a es-
querda, nos nossos dias, que lhes oferece todo o poder, e
é a direita, embora uma direita escondida e perseguida,
que os opõe. É à esquerda que todos os planos de des-
truição social e económica coincidem com os objectivos
das grandes corporações e das organizações multinacio-
nais e com acrescida rapidez e ferocidade – desde a des-
truição da família, da promoção de disfunções sexuais, à
atomização do indivíduo e até na atitude que têm peran-
te o mundo natural (mesmo quando se dizem seus defen-

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sores). Por necessidade, portanto, as críticas aqui encon-
tradas serão provavelmente rotuladas como de direita e
serão mais hostis ao que, hoje, se considera de esquerda.

No entanto, nestas páginas, encontrarão igualmente críti-


cas à direita, tanto à moderada, partidária, como a ver-
tentes mais extremas como o nacionalismo, fascismo e
nacional-socialismo.

Em última instância não importa como estes textos são


rotulados politicamente, pois como dissemos direita e
esquerda são termos extremamente voláteis. É imprová-
vel que as pessoas que se importam muito com tais rótu-
los venham a lê-las, muito menos a entendê-las. Mas o
preâmbulo é importante para leitores mais velhos que o
seu autor, que viveram noutras eras, e que viram os rótu-
los de esquerda e direita com outros olhos.

Se há uma mundividência que subjaz a todos os textos é


um entendimento Cristão do mundo. Pela ordem, e
contra o caos; pela paz e contra a violência; pela estabili-
dade e contra o progresso; pela tradição e contra a revo-
lução; pelo natural contra o artificial e pelo espírito con-
tra a carne.

***

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«No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Ver-
bo era Deus.»

João 1:1

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O Liberalismo do presente é o Socialismo do futuro

Antes de começar a expor os problemas da ideologia Li-


beral e evidenciar o porquê de ser necessário rejeitá-la,
quero admitir (como um alcoólico em recuperação) que
costumava ser um ideólogo do Liberalismo e que a crítica
abaixo se aplicaria em grande parte à minha visão do
mundo ainda há uns anos atrás. Mas mais pertinente-
mente vou começar por salientar um facto que ilustra a
minha tese central de forma caricata.

O facto é o seguinte. Nas sociedades em que o Liberalis-


mo foi implementado conscientemente (as anglo-
saxónicas, e em especial, nos Estados Unidos da Améri-
ca), o significado do Liberalismo mudou radicalmente até
passar a significar o seu contrário. Enquanto que na Eu-
ropa continental o Liberalismo mantém, pelo menos em
teoria, a liberdade individual e subsequente defesa do
mercado livre como seu valor central, nas sociedades an-
glo-saxónicas o Liberalismo significa algo completamente
diferente e quase totalmente oposto – que nas nossas so-
ciedades continentais, que nunca tiveram Liberalismo
propriamente dito, se designa como Social-Democracia.
Resumindo: o Liberalismo é no mundo anglo-saxónico a
ala moderada do Socialismo.

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Por isso os liberais no mundo anglo-saxónico tiveram de
encontrar uma nova forma de se designar. A designação
escolhida foi Libertarianismo – curiosamente um termo
que era originalmente usado para a vertente pacifista do
Socialismo, talvez numa tentativa de vingança ou justiça
poética pelo facto da Esquerda lhes ter roubado a palavra
Liberalismo. Outras designações não tiveram uma
aderência significativa, e apesar de manterem o seu nicho
militante (como outras designações de Comunismo), os
liberais passaram maioritariamente a designar-se a eles
mesmos como Libertários.

Não surpreendentemente, e sem ser necessário terem


chegado ao poder (algo impossível, dado que uma socie-
dade de origem liberal passadas várias décadas não volta
às suas origens – veremos já porquê), os libertários já co-
meçaram a ter a sua nova designação infiltrada e, em
breve, redefinida. O processo está em marcha para tornar
o Libertarianismo no novo Liberalismo, ou seja, noutra
ideologia inteiramente de Esquerda que representa algo
diferente daquilo que era suposto representar.

Esta redefinição não é uma coincidência, mas um resul-


tado inevitável do ethos do Estado Liberal. Alguns libe-
rais poderão argumentar, como muitos comunistas ar-
gumentam desavergonhadamente, que o ‘Verdadeiro
Liberalismo’ (com letras maiúsculas) nunca foi tentado –
e só lhes dou razão se esses liberais estiverem a falar de
anarco-capitalismo, mas geralmente não estão. Pelo que

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é, em ambos os casos (e como os liberais identificam no
caso dos comunistas) apenas retórica para evitarem a
realidade.

O Liberalismo é a verdadeira via do meio: nem de Direi-


ta, nem de Esquerda. Nem carne, nem peixe, o Liberalis-
mo é a lula política por excelência, e tal como o molusco
o Liberalismo distingue-se também pelo seu corpo mole e
flexível. Da Direita o Liberalismo retira o respeito pela
propriedade privada – e daí extrai uma concepção secu-
lar de Livre Arbítrio; da Esquerda retira o igualitarismo
(resultado da tal interpretação secular).

O problema do Liberalismo é precisamente ser uma ideo-


logia igualitária, e portanto indiscriminadamente toleran-
te. O ethos Liberal não diz nada sobre valores fundamen-
tais, mas sim sobre liberdades fundamentais. É um ethos
negativo, não positivo. Por ser igualitário, o Liberalismo
é inapelavelmente Democrata. E por esta razão, degenera
com a passagem do tempo e progressivamente na sua
face de Esquerda, perdendo totalmente a sua parte de
Direita.

O Liberalismo é uma óptima ideia para a elite, mas um


desastre para a plebe. Antes de explicar porquê, uma pa-
lavra sobre as classes.

As diferenças naturais entre classes, que existem e persis-


tem em sistemas não-corruptos (como o nosso não é) po-

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dem essencialmente ser explicadas pela alta ou baixa pre-
ferência temporal – a plebe tem uma alta preferência
temporal, vive obcecada com o presente e com a satis-
facção dos seus desejos imediatos em detrimento da sua
existência futura, enquanto que a elite tem uma baixa
preferência temporal e é capaz de controlar os seus dese-
jos presentes em prole da sua existência futura. Algures
no meio, está a classe média. Um homem nascido na ple-
be com uma preferência temporal baixa, e se o nível de
socialismo na sua sociedade for tolerável, não fará para
sempre parte dessa classe. Um homem nascido na elite
mas com uma preferência temporal alta, tenderá a esban-
jar a herança que lhe deixaram e a abandonar a elite.

A razão porque o Liberalismo é destrutivo para a plebe é


porque assume que todos os seres humanos devem ter a
possibilidade de escolher os seus próprios valores (o Se-
cularismo é outra parte do igualitarismo que os Liberais
fundamentalmente aprovam). Na prática, o Liberalismo
não tem problemas com qualquer tipo de imoralidade,
nem com a destruição pessoal através da mesma. Afinal,
somos todos indivíduos e todos devemos ter a liberdade
de nos auto-destruirmos. O problema é que a permissão
da imoralidade e da auto-destruição não tem o mesmo
resultado entre a elite que tem entre a plebe. Homens da
elite saberão na maioria dos casos manter a sua imorali-
dade e auto-destruição a um nível moderado, não pondo
em causa a sua existência futura, e por isso contendo-as
essencialmente a si. Homens da plebe, pelo contrário,

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destruirão a sua vida, a dos filhos e a da comunidade. E,
através da Democracia, destruirão também o país.

A plebe não tem a capacidade de se auto-moderar para


salvar a própria vida. E o Estado Liberal, mantendo o seu
ethos negativo, não tem meios, nem vontade, de evitar
este desastre. Dito de outra forma, o Liberalismo é inca-
paz de formar cidadãos Liberais, acabando por formar
cidadãos libertinos que, através da democracia, acabarão
por destruir não só o Liberalismo mas também todas as
liberdades.

Isto porque o Estado Liberal não é apenas incapaz de evi-


tar o naufrágio moral da plebe, mas igualmente incapaz
de eliminar ideias e movimentos políticos que pretendam
usar a plebe para destruir o seu ethos negativo – isto é,
ideias e movimentos que propõem a violação dos seus
princípios básicos, ou até que proponham abertamente a
insurreição, o caos e o totalitarismo. Tanto o hedonismo e
o niilismo como os vários tipos de socialismo, incluindo
os revolucionários, são vistos pelo Estado Liberal, apesar
das suas óbvias consequências de barbárie e miséria para
a sociedade, como legítimos – pelo menos de um ponto
de vista teórico. Se o Estado Liberal trata a incitação indi-
vidual à violência com a força da Lei, trata a incitação
colectiva a uma forma massiva de violência e subversão
com diálogo e posições nas universidades e nos meios de
comunicação.

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Pelo que a plebe, vergada pela sua incapacidade de auto-
moderação, votará em respostas iatrogénicas (socialismo)
para tratar os resultados da ausência de valores funda-
mentais a que foi entregue. E com o tempo, o Estado Li-
beral transforma-se, pela rotatividade das eleições de su-
frágio universal, numa sistemática e virulenta rejeição da
ideia de propriedade privada. De Direita, nada restará.

Eis a história do Liberalismo realizado na prática: uma


transição, mais lenta ou mais acelerada, para o socialismo
e o relativismo moral. O resultado é observável na políti-
ca, na economia e na cultura. E por isso é necessário que
a Direita, se não quiser acabar transformada em Esquer-
da, rejeite o Liberalismo.

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O Meio é a Mensagem

“As notícias e o açúcar confundem o nosso Sistema da mesma forma”


Nassim Nicholas Taleb

A citação acima aparece no livro Antifragile e vem na se-


quência de uma explicação do fenómeno de iatrogenia
quando aplicado ao consumo regular de notícias. Em re-
sumo, o que Taleb argumenta é que os jornalistas preci-
sam de encher chouriços para vender jornais (e mais im-
portante, anúncios), todos os dias. A atitude adequada
seria ter jornais de várias páginas quando há notícias re-
levantes que o justifiquem, e jornais com poucas ou ne-
nhumas quando não as há. Visto que isto não acontece,
ler jornais é essencialmente consumir fast food – o pouco
de nutritivo encontrado na refeição, é soterrado em, e
anulado pela, enorme quantidade de porcaria.

Não é por isso de admirar que o consumo de notícias no


mundo moderno, das notícias ao minuto, seja essencial-
mente um exercício plebeu. Uma forma perversa de en-
tretenimento, a institucionalização do mexerico, a veia
respeitável da intriga – ou a simples e completa irrele-
vância. Comentar notícias é portanto uma actividade di-
reccionada à plebe. Se Marshall Mcluhan estava certo,
então os comentadores de notícias são a diabetes resul-
tante do consumo do McDonalds dos media. Por vezes é

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difícil dizer se os blogs têm alguma mensagem indepen-
dente do que aconteceu no próprio dia.

Os jornais são portanto, e no melhor dos casos, irrelevan-


tes. Os blogs, no entanto, podem ter utilidade. Só que a
maior parte deles está focada em reagir aos jornais – co-
mo se estes ainda fossem relevantes. Não é, pois, surpre-
endente, tendo em conta que o público alvo é a plebe,
que os comentadores de notícias não se distingam em
geral pela sua perspicácia, pertinência ou inteligência.
Nos blogs o público alvo não é a plebe – a plebe, em ge-
ral, não lê – mas sim a classe média. Essa fraquíssima
classe média que é essencialmente uma plebe com mais
algum dinheiro para consumir a cultura plebeia. O resul-
tado dos blogs cuja principal função é comentar notícias é
a perpetuação da plebeização da classe média.

Não temos um equivalente decente, na língua portugue-


sa, da expressão anglo-saxónica knee-jerk, mas assumo
que os meus leitores, não fazendo parte da plebe, conhe-
çam a expressão e saibam o que significa. Muitos blogs
políticos, incluindo infelizmente os que se situam à direi-
ta, existem para este exercício de knee-jerk. O governo
faz ou diz qualquer coisa, um evento internacional ocor-
re, e lá vão eles comentar. Na grande maioria dos casos, é
irrelevante. É apenas a saciação do instinto primitivo e
plebeu para o mexerico. A maioria dos eventos ou das

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acções do governo encaixam em meia dúzia de categori-
as, pelo que o teor dos comentários é sempre o mesmo.

Quando a maioria do produto dos blogs é determinado


pela reacção imediata a eventos recentes, o produto não
pode distinguir-se pela clareza da reflexão. Muitas vezes
não sabemos porque tomámos certa decisão, nem os seus
efeitos a longo prazo, até muito tempo depois da decisão
em si mesma. Se isto acontece a um nível pessoal, quanto
mais acontecerá se estivermos a reagir a estímulos exteri-
ores. Pelo que, tal como nos jornais, quando há de facto
notícias relevantes, como vamos saber se o comentário é
relevante?

Não é difícil entender que este meio, esta fórmula, é sim-


plesmente um facilitismo. É mais fácil reagir às notícias
diariamente do que encontrar algo diferente para dizer.
Até porque já tudo foi dito uma e outra vez. Duvido que
este texto tenha alguma coisa de original. Mas ao menos
reajam à haute cuisine do pensamento político, não à fast
food dos jornais. Ou tentem. Tentar já é meio caminho
andado.

Quantas vezes é preciso dizer que o Presidente da Repú-


blica é inepto e movido pelo apelo popular e que o Pri-
meiro Ministro é um arrivista, que muda o discurso con-
forme a plateia? Quantas vezes é necessário informar que
as acções do governo são contraproducentes (como se em

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geral houvessem acções governamentais que sejam pro-
dutivas, e ainda por cima publicitadas nos jornais)?
Quantas vezes é preciso apontar que a Esquerda em geral
é um cancro para a sociedade e a exemplificação da do-
ença mental em forma política? Quantas vezes é preciso
apontar a impotência da Direita, ou a sua capitulação
perante as ideias sociais da Esquerda, que são afinal as
mesmas que as da plutocracia? Quantos posts são neces-
sários para condenar a barbárie do Islão?

O ataque de Manchester, o mais recente exemplo, gerou


inúmeros posts. E não era de esperar menos. O público
assim o exige. No entanto, a Direita devia perguntar-se se
a sua estratégia devia ser a mesma da Esquerda, isto é,
apelar ao público. O apelo ao público, à plebe e à classe
média plebeizada, que tem como resultado, e em alguns
casos como objectivo, plebeizar ainda mais essa mesma
classe média, é talvez o exemplo mais óbvio de que a Es-
querda domina o discurso.

Isto sublinha a necessidade de novas elites de Direita,


que em vez de apelarem ao público, o instruam. Que não
se deixem arrastar para o mínimo denominador comum,
mas pelo contrário tentem elevar a discussão. Que não
corram em direcção ao vazio numa tentativa de reformar
um sistema perverso por dentro, mas sim retornem a um
modo de sanidade do discurso e se dediquem a discutir
como sair do paradigma presente.

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Agora, para ilustrar o meu argumento, vou ter de efectu-
ar um comentário sobre o atentado de Manchester. O que
salta à vista sobre o atentado em primeiro lugar é o seu
carácter banal. Não há nada de excepcionalmente surpre-
endente no acontecimento, nem nas reacções à direita ou
à esquerda. O barbarismo do Islão não é notícia, é rotina.
O autismo da Esquerda não é só expectável como natu-
ral. A reacção ambígua e amoral das falsas elites políticas
também é par for the course.

A verdadeira notícia sobre o atentado Manchester não é,


pois, a violência, mas o relativismo moral do Ocidente.
Essa deveria ser a preocupação da Direita.

Num “concerto” de uma stripper cantante, cujos cartazes


que promovem o evento fazem alusão às coelhinhas da
Playboy e ao sado-masoquismo, cujo “espectáculo” con-
siste em agitar-se semi-nua ao som de cacofonia sem
qualquer redenção musical, com acompanhamento dan-
çante de homens e mulheres que simulam actos sexuais
(hetero e homo), cujo conteúdo lírico é essencialmente
pornografia (pesquisem as letras se não acreditam), o que
choca é a presença de crianças no evento. Que este facto
não seja discutido, é preocupante. Eu tentei em vão pro-
curar essa mesma discussão nos blogs de Direita, e não a
encontrei.

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As crianças morreram às mãos dos bárbaros porque a
plutocracia permitiu que eles entrassem nas nossas soci-
edades. Mas, mesmo que não se tivesse permitido a sua
entrada, a cultura moderna no Ocidente continuaria a ser
moral e intelectualmente degenerada. As vidas das crian-
ças que morreram teriam sido salvas, mas não as suas
almas. Porque as elites modernas continuariam na sua
demissão, na sua cobardia, abandonando qualquer insis-
tência em padrões artísticos e morais – ou sequer na sim-
ples rejeição da sexualização das crianças. A degeneração
continuaria a ser promovida pela Esquerda, e à direita
continuaria o silêncio gritante de quem não os tem no
sítio para chamar os bois pelos nomes.

Este é o verdadeiro tema porque se a degeneração moral


e intelectual do Ocidente não for resolvida, então o que
resta para se salvar da nossa civilização? Porquê rejeitar
os bárbaros? Essa é aliás uma das razões pelas quais os
bárbaros nos vêem como presa fácil: uma civilização sem
valores não dura muito mesmo sem invasão. A razão
porque estamos abertos a essa invasão é precisamente
por essa ausência de valores.

A Direita esqueceu-se que deveria ser moralista, e mora-


lizante. Quer ser como a Esquerda. Para angariarem meia
dúzia de plebeus, preferem mover-se intelectualmente na
Overton Window, no discurso aceitável pelo consenso de

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Esquerda. Em suma, ao aderir ao meio da Esquerda (ape-
lar ao público) a Direita transforma-se na Esquerda.

Por isso não é surpreendente que a Direita tenha tão pou-


ca influência. Os seus comentários são o espelho da Es-
querda, não uma interpretação independente. As suas
reacções aos eventos são apenas sinalizações da sua posi-
ção no espectro político. Um espectro que é definido pela
Esquerda. O seu meio é o mesmo, ou seja, a sua mensa-
gem é a mesma.

Daqui a dez anos, esta ‘Direita’ terá a mesma opinião que


a Esquerda tem hoje – tal como essencialmente tem hoje a
mesma opinião que a Esquerda tinha há dez anos (excep-
to talvez na Economia – é um tema difícil de desapren-
der). Um episódio caricato que ilustra bem a situação: há
uns bons anos presenciei uma cena em que um padre se
recusou a deixar entrar na igreja uma rapariga porque
tinha os ombros destapados, e só deixou quando ela,
contrariada, os tapou. Hoje raparigas entram na igreja
como se fossem à caça para o Intendente e ninguém diz
nada. Provavelmente para não ferir as susceptibilidades
progressistas dos pais, que deviam ter mais noção do que
deixar a miúda vestir-se assim.

Com esta atitude, é impossível evitar que os postes da


baliza se movam constantemente. O que é preciso é que a
Direita saia de campo e jogue outro jogo.

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Uma sociedade sem classe

A Constituição da República Portuguesa foi originalmen-


te escrita em 1976 por marxistas declarados que julgavam
interpretar “os sentimentos profundos” do povo português
(sempre tão científicos estes comunistas) ao derrubar “o
regime fascista” – mesmo que esses sentimentos fossem
mistos e o regime nunca tivesse sido fascista – a não ser
que se defina ‘fascismo‘ como um regime autoritário de
Direita (e nesse caso, o Estado Novo era muito mais ‘fas-
cista‘ do que o Fascismo original, visto que era um mo-
vimento verdadeiramente de Direita, isto é, antipopular).

Tendo em conta estas condições, é natural que o texto


original designasse como objectivo expresso, logo no
primeiro artigo, aspirar a uma “sociedade sem classes”, e no
segundo artigo declarasse que o “Estado Democrático (…)
tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo”.

Entretanto a Constituição foi revista, se não me engano


em 1989, e retirou alguns resquícios de verborreia mar-
xista – em especial o objectivo do socialismo e da socie-
dade sem classes. E por retirar entenda-se substituir a
linguagem aberta dos marxistas duros pela prosápia sa-
neada dos marxistas suaves: substituir o comunismo pela
social-democracia (essencialmente para nos integrar me-
lhor no newspeak da nova ordem Europeia e mascarar o

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facto de que o comunismo e a social democracia são ape-
nas variações da mesma ideia). O peso da inclusão ou
exclusão destes termos, ou até da importância efectiva de
uma constituição numa República é discutível, mas efec-
tivamente a referência aos termos originais foi retirada.

É preciso lembrar que na altura uma nova elite política


surgia para dirigir o país, e quando digo nova quero di-
zer ‘renascida’: em paralelo com os velhos tecnocratas (e
essencialmente membros da nobreza) que haviam cola-
borado com o fim do Estado Novo e que trabalharam
para o socialismo com tanto zelo e em tanto silêncio co-
mo o tinham feito para Marcello Caetano, existia a clique
de extrema-esquerda, que entretanto crescera uma cons-
ciência e rejeitara as suas raízes, ao ver o fim da União
Soviética no horizonte, confrontada com o óbvio ululante
do homicídio em massa do Comunismo que já não era
possível negar e aliciado pelas novas oportunidades de
carreira oferecidas pela elite tecnocrata da União Euro-
peia. Esta clique tornou-se de facto a elite governante do
país nas décadas que se seguiram, alguns chegando
mesmo ao cargo prestigiante de Primeiro Ministro. Só
que já não eram do PCP, do MRPP ou de outros grupos
esotéricos de Esquerda – eram do PSD e do CDS. O fa-
moso livro de Zita Seabra (que devia ser incluído no gé-
nero ‘prosa poética’) é o exemplo mais emblemático desta
deriva. Um milagre de trazer lágrimas aos olhos.

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É nesta milagrosa conversão que se funda a revisão cons-
titucional e o abandono do objectivo da ‘sociedade sem
classes‘. A partir daí, Portugal seria uma Democracia com
D grande e concretizaria a ambição ocidental iniciada
com as revoluções liberais de uma sociedade com classes,
mas sem classe.

Na diatribe original do marxismo, a sociedade sem clas-


ses era especificamente apontada à natureza económica
do fenómeno – ou não fosse o marxismo uma filosofia
puramente materialista do Homem e da Sociedade. A
Democracia Anglo-Saxónica, que é na verdade a versão
designada com D grande, não aspira a apagar as diferen-
ças económicas entre as classes. Originalmente não aspira
sequer a atenuá-las. Mas também ela teve as suas subse-
quentes revisões e a Democracia 2.0 (também conhecida
como Social Democracia), aspira a atenuar essas diferen-
ças – sem na realidade o fazer.

A Democracia não manifesta qualquer parecer sobre a


natureza extra-económica das classes. Só que manifesto
ou não o desejo, o resultado é notório: a Democracia apa-
ga as desigualdades morais, culturais e intelectuais entre
classes sem ter de as apagar no plano financeiro.

Isto é uma consequência inevitável do seu ethos igualitá-


rio. Ao dizer que o povo é soberano e rejeitar a ideia de
que certas pessoas são mais aptas a governar que outras;
ao depositar, simbolicamente, o poder de decisão na ple-

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be (a maioria), a Democracia constitui um passo para o
abismo, uma descida ao mínimo denominador comum
civilizacional – da mesma forma que o Comunismo (em
si uma ideia democrática) constitui uma descida ao mí-
nimo denominador comum económico.

Nos regimes monárquicos (em que não se inclui a fraude


da ‘monarquia constitucional’) havia diferenças entre os
nobres e a plebe, não só em poder económico, mas em
instrução, educação, higiene e erudição. De um membro
da nobreza esperava-se que fosse fluente em várias lín-
guas (incluindo línguas mortas); que fosse versado em
estratégias militares e fisicamente capaz de as pôr em
prática caso necessário; que soubesse manter uma con-
versa erudita sobre os mais variados assuntos, da ciência
à literatura, da filosofia às artes plásticas; que tocasse as
peças clássicas num instrumento e que soubesse apreciar
essas peças quando outros as tocavam; esperava-se que
se comportasse com decoro e que evitasse os devaneios,
excessos e obsessões dos plebeus. Por outras palavras,
esperava-se que fosse nobre não só em título, mas nas
suas acções.

A cultura dos nobres era nobre. A cultura dos plebeus era


plebeia. A Igreja servia de intermediário entre as duas
classes: trazendo algumas luzes à plebe; trazendo humil-
dade à nobreza. A nobreza deveria servir como exemplo
terreno aos plebeus, tal como os padres deveriam servir
de exemplo divino (imitando Cristo). A nobreza, pela sua

30
superioridade moral e cultural (não só pela sua capaci-
dade monetária), deveria liderar.
Julgo não dar novidade a ninguém ao dizer que os ‘no-
bres’ de hoje só se distinguem dos plebeus pela quanti-
dade de dinheiro que têm para gastar. E gastam-no não
numa cultura elevada, mas na mesma cultura dos ple-
beus. Em muitos casos, não só consomem essa cultura
como a produzem. E portanto, são incapazes de liderar
coisa alguma.

Em paralelo, não só a nobreza desce constantemente aos


níveis da plebe, como a própria plebe se torna menos re-
comendável. Compare-se os trovadores da idade medie-
val (a música popular) com as aberrações da música po-
pular moderna. Afinal, se não há ninguém para dar o
exemplo, não há exemplo a seguir. E se o impulso cultu-
ral é estritamente económico (e há mais plebe que no-
bres), então será a plebe a dirigir a cultura pelo seu con-
sumo.

O caso de Salvador Sobral, o novo herói da pátria ple-


beia, ilustra bem a situação. Um rapaz de 27 anos, que
noutra época já seria um homem (outro sinal da deca-
dência democrática), que faz parte de uma família de ori-
gem nobre, não se distingue em quase nada de um mem-
bro da plebe. O aspecto descuidado, as opiniões, a falta
de erudição. O que mais choca, tendo em conta as suas
origens, é a sua gritante banalidade. Ou seja, o seu carác-
ter plebeu.

31
E convém salientar que o menino Sobral não é dos casos
mais aberrantes. Apesar da sua vulgaridade intelectual e
da sua fraca figura, o rapaz até é simpático e relativamen-
te educado. Já os inúmeros membros das classes altas
(por família ou por ascensão social) que regularmente
participam na cultura plebeia nos seus expoentes mais
crassos e repugnantes, sem qualquer vergonha ou arre-
pendimento, não têm qualquer característica que os re-
dima. Abra-se uma revista ‘de sociedade‘ para confirmar.

Nos seus tempos de faculdade, o ex primeiro ministro


Britânico David Cameron, bem como o ex Mayor de
Londres Boris Johnson faziam parte de um clube aristo-
crático chamado Bullingdon Club. O clube foi fundado
há mais de 200 anos e apesar de ser originalmente dedi-
cado à caça e ao cricket (o desporto era nessa época ainda
um actividade a que só os nobres se dedicavam), já nesta
altura parece que os seus membros não se comportavam
com as maneiras dignas da nobreza, bebendo demais e
causando alguns distúrbios – afinal, convém lembrar que
a transição das sociedades monárquicas para democraci-
as já se tinha iniciado, e com ela a degeneração das elites.

Hoje, passados dois séculos, o clube já não se dedica à


caça ou ao cricket, e é simplesmente famoso por organi-
zar jantares e literalmente destruir os restaurantes onde
eles tomam lugar, pagando imediatamente os estragos
com desdém. A única coisa que distingue este clube de

32
uma claque de futebol, é que os membros de Bullingdon
têm dinheiro para não se meterem em sarilhos pela sua
conduta boçal e selvática.
O Comunismo nunca conseguiu eliminar as diferenças
entre classe, afinal existe sempre uma elite de governan-
tes que vive como sultões e um círculo exterior limitado
de membros do Partido que obtém algumas regalias pela
sua posição, que distinguem, não só economicamente
mas também em termos culturais e intelectuais, estas du-
as classes da classe geral dos proles – a ironia suprema do
Comunismo na prática – e que, sendo classes efectiva-
mente separadas, exercem uma influência na classe abai-
xo de si. A Democracia, porém, conseguiu eliminar quase
completamente as diferenças essenciais entre as elites e o
povo, entre quem governa e quem é governado, entre
quem deve dar o exemplo e quem o deve seguir. Como
uma rã cozida lentamente, a população de um regime
democrático morre lentamente sem dar por isso.

A natureza destrutiva do Comunismo é evidente e decla-


rada; o carácter insidioso da Democracia é ignorado e
invisível. O Comunismo exclama abertamente o seu ob-
jectivo de destruição, a Democracia destrói pela calada,
sem nunca o declarar a ninguém – pelo contrário, fá-lo
com a melhor das intenções, essas de que o Inferno está
cheio.

O leitor que julgue qual das duas ideias é mais perniciosa


a longo prazo.

33
O colapso de quê?

«This is the arresting and dominant fact about modern social


discussion; that the quarrel is not merely about the difficulties,
but about the aim. We agree about the evil; it is about the good
that we should tear each other’s eyes out. (…) The social case is
exactly the opposite of the medical case. We do not disagree,
like doctors, about the precise nature of the illness, while agree-
ing about the nature of health. (…) I maintain, therefore, that
the common sociological method is quite useless: that of first
dissecting abject poverty or cataloguing prostitution. We all
dislike abject poverty; but it might be another business if we
began to discuss independent and dignified poverty. We all
disapprove of prostitution; but we do not all approve of purity.
The only way to discuss the social evil is to get at once to the
social ideal.»

G. K. Chesterton, What is wrong with the world, 1910

Lendo o excerto acima (e, de preferência, o livro de onde


é retirado e de que é só uma introdução), podemos ob-
servar que a situação do discurso político não se alterou
em natureza, apenas em grau. Dizer, por exemplo, que
hoje todos desaprovamos a prostituição é obviamente
falso, quando a Esquerda decidiu abraçar todas as formas
de degeneração possível – e a prostituição, comparada

34
com algumas das novas causas da Esquerda, é um mal
menor. E no entanto, continua a ser verdade que se con-
corda, mais ou menos, nos problemas sociais que exis-
tem, na medida em que se pode ter a discussão. Atingi-
mos, porém, um ponto da discussão em que, dos partidos
às escolas passando pelos meios de comunicação e pelas
universidades (os vários tentáculos do mesmo monstro),
não só não se concorda sobre as soluções, não se mantém
sequer qualquer pretensão (em nenhuma das facções) de
haver um ‘ideal’ social.

E no entanto, esse ideal existe. E não só existe como é a


religião que enforma o mundo moderno há 300 anos
(mais ou menos), a que podemos chamar Religião Salva-
cionista Democrática. Antes de me aventurar nas conse-
quências da RSD, vou explicar os três pilares da mesma:
a RSD é uma Religião no sentido de um sistema cultural
de práticas e comportamentos centrados numa colecção
de valores e crenças (‘Liberdade, Fraternidade, Igualda-
de’ – ou LFI), com comemorações e instituições (escolas,
universidades; dias internacionais; etc) e dogmas. Mesmo
sem um ‘deus’ a RSD tem as suas premissas irredutíveis,
e quando se investiga as suas origens descobre-se que só
podem ter revelação divina, pois não são certamente sus-
ceptíveis de discussão racional. São crenças, no sentido
básico do termo. Análogas à crença em Deus. A RSD é
salvacionista porque acredita que todos os homens po-
dem ser salvos, através da sua particular sopinha ética (a
trindade da LFI), rejeitando qualquer ideia de pecado e

35
punição (na essência, o único pecado é não acreditar e
não agir em conformidade com a RSD-LFI). Por fim é
Democrática porque é o único sistema político onde é
possível pôr em prática a trindade da LFI, e a partir da
qual se promovem as características salvíficas da mesma.

Existe uma frase célebre sobre o demónio em que se


afirma que o seu maior truque foi convencer as pessoas
de que não existia. O mesmo pode ser dito da RSD. A
RSD não se identifica como tal, nem clama existir – mas é
indiscutível que existe, e que os seus tentáculos infiltra-
ram o tecido social nas suas variadas camadas, incluindo
as camadas do inimigo (as igrejas Cristãs tradicionais).
Em certa medida, o Protestantismo foi a primeira encar-
nação da RSD.

A RSD é, pois, uma rejeição do ideal de uma sociedade


Cristã, em que todos os seus conceitos – de autoridade,
liberdade, propriedade e justiça – são reapropriados e
virados do avesso e resultam na absoluta licenciosidade
e defesa do abominável e na perseguição feroz a quem se
atreve a julgar a abominação.

Visto que a RSD elevou a Ciência a um dos seus dogmas


(essencialmente o que distingue a Ciência do Cientismo –
se calhar deviamos mudar a sigla para LFIC), vamos ana-
lisar como a RSD se comporta de um ponto de vista evo-
lucionário, isto é, se a RSD contribui para a perpetuação

36
da espécie. Para isso, olhemos para o problema do declí-
nio populacional.

Há anos que se sabe que as sociedades ‘civilizadas’ (as


infectadas pela RSD) têm uma taxa de natalidade abaixo
do necessário para manter a população presente. Sim-
plesmente, não se produzem crianças suficientes. Se a
tendência se mantiver, eventualmente o ‘homem Euro-
peu’ deixará de existir. As Nações Unidas, estando uni-
camente interessadas na sustentabilidade económica e na
perpetuação da RSD (sendo a pedra ideológica em que se
fundam), têm um plano para a sua resolução: Emigração
de Substituição. O que isto significa é que a solução, do
ponto de vista dos sacerdotes da RSD, é simplesmente
importar pessoas de fora, de etnias e culturas distintas da
população original, que se reproduzam e mantenham
uma base tributária.
As razões para a solução proposta são discutíveis. A
minha interpretação é que a liderança da RSD têm uma
concepção (errónea, mas não ingénua) de igualdade entre
os povos e as culturas; essa falta de ingenuidade baseia-
se no facto de que os povos e culturas que querem impor-
tar são ‘atrasadas’ (em comparação com as Europeias) e
que as populações associadas têm, em média, QIs mais
baixos. Serão portanto, ou pelo menos imagina-se que
sejam, mais fáceis de controlar. O objectivo de um mun-
do Orwelliano (o objectivo da RSD) é muito mais facil-
mente atingível com uma população intelectualmente
diminuída, com nenhuma tradição de respeito pelo valor

37
do indivíduo, e ainda melhor se não tiver qualquer cultu-
ra comum ou apego à terra em que vive. O objectivo é ter
eleitores/consumidores ignorantes, que permitam a con-
tinuação do sistema, que mantenham uma situação de
caos (que “requer” uma vigilância constante) na rua, mas
não possuam a capacidade de abstracção e organização
que os povos Europeus possuíam (e, imagina-se, pos-
suem ainda em potência) para contestar os planos dos
líderes da RSD de controlo total. Embora, admita-se, haja
algumas indicações de que a situação talvez não seja as-
sim tão simples, e que dadas as décadas de propaganda
da RSD-LFI a que o Ocidente foi sujeito, talvez seja mes-
mo entre as populações mais primitivas que se encontre
alguma resistência. É possível que a esperança, como es-
creveu Orwell, esteja mesmo nos proles, embora no pa-
norama global os proles sejam, não o estrato mais baixo
da sociedade, mas as culturas mais primitivas, precisa-
mente por serem mais primitivas e, logo, menos sus-
ceptíveis de engolirem a propaganda da RSD.

Seja como for, é claro que este objectivo e esta solução


devem ser rejeitadas por qualquer pessoa interessada em
resgatar a cultura Europeia pré-RSD, mas servindo um
pouco de advogado do diabo, esta solução não é tão des-
cabida como parece, no sentido de tratar o problema de
forma racional. Afinal, é um facto que as etnias e culturas
Europeias deixaram de ser capazes de se reproduzir. Do
ponto de vista da RSD, são precisas pessoas, mas é irrele-
vante para eles que pessoas vivem nos países Europeus

38
(afinal, a Igualdade é um dos seus dogmas). Mas que cul-
tura na realidade existe na Europa? O consumismo? A
licensiosidade? A tolerância suicida? O poder popular? O
que existe, então, de bom para conservar? E se não existe
nada, como argumentar contra esta solução? Os que rejei-
tam a Islamização ou Africanização da Europa em defesa
da cultura do presente (que é uma cultura da RSD) não
estão a defender nada a não ser um suicídio lento. ‘Dei-
xem-nos morrer em paz na nossa vacuidade; deixem-nos ir para
o Inferno ao nosso ritmo‘ – é, na essência, a sua posição.
Uma posição em concordância com os dogmas da RSD –
a ‘oposição controlada’.

Ou seja, quer se aceite a solução das elites globais ou não,


o problema continua a existir. Mesmo sem esta solução
final que vemos todos os dias praticada, mesmo sem a
importação em massa de estrangeiros do terceiro mundo,
os Europeus continuam escravos da cultura da RSD que
conduz à sua própria aniquilação (só os acólitos da RSD
acham que é um acaso que a aniquilação moral do ho-
mem Europeu ande de mãos dadas com a aniquilação
física). Neste momento, os governos Europeus dividem-
se entre os que não querem incentivar a população nativa
à reprodução (mais a oeste), e os que querem e incenti-
vam (mais a leste), para atenuar ou reverter esta situação
aberrante. Mas o simples facto dos Europeus precisarem
de incentivos fiscais e financeiros para a sua própria re-
novação populacional mostra o quão a civilização Euro-

39
peia está perdida. Em termos evolucionários, é uma ex-
periência falhada. Mas que experiência?

A experiência é a RSD-LFIC.

Como já referimos, vários eventos históricos podem ser


apresentados como catalisadores da RSD (por exemplo, a
substituição do Feudalismo pela Monarquia Absoluta ou
a Reforma Protestante). Mas talvez seja mais adequado
apontar as revoluções liberais como a origem desta ex-
periência e que são, em última instância, as responsáveis
por esta degeneração civilizacional – afinal, a RSD não
existe sem o patrocínio do poder político e foram as revo-
luções liberais que lhe deram a hegemonia (a história,
afinal, é escrita pelos vencedores e a RSD teve as suas
grandes vitórias políticas nas revoluções liberais).
Chamando Chesterton de volta à conversa: «We often read
nowadays of the valor or audacity with which some rebel at-
tacks a hoary tyranny or an antiquated superstition. There is
not really any courage at all in attacking hoary or antiquated
things, any more than in offering to fight one’s grandmother»
As revoluções liberais foram muito simplesmente essa
revolta torpe e fácil contra a avó civilizacional. Não deixa
de ser curioso que os mais acérrimos e ortodoxos defen-
sores da RSD, completamente dentro da doutrina, se con-
siderem parte da resistência.

A civilização Europeia deixou de acreditar em Deus para


passar a acreditar no Homem. Por outras palavras, e para

40
voltar ao início do texto, a RSD substituiu o ideal antigo
pelo seu avesso. E as consequências eram previsíveis.

É por isso importante sublinhar uma vez mais que a RSD


não é a ausência de religião, mas uma religião em si
mesma. E que como não podia deixar de ser, é intolerante
para com os heréticos que questionam os seus dogmas.
Nunca nenhuma sociedade humana existiu em um para-
digma religioso e sem a garantia legal dos seus dogmas, e
a nossa não é excepção. A diferença é simplesmente no
objecto de culto. O caso só não é claro porque a RSD tem
uma tendência natural para a dissonância cognitiva e
postula a sua religião como a sua ausência. Mas não é
possível substituir algo por nada. O motor humano pode
ser abastecido com diferentes combustíveis, mas não an-
da se estiver vazio. A RSD, portanto, não aboliu a reli-
gião, apenas substituiu a antiga por uma nova – um es-
pelho perverso onde tudo o que era bom e desejável é
agora vil e execrável e vice versa. Para citar Chesterton
novamente: «When men choose not to believe in God, they do
not thereafter believe in nothing, they then become capable of
believing in anything.»

Acontece que esta particular religião é inerentemente au-


to-destrutiva. Todas as suas premissas resultaram em
suicidárias consequências. O “poder do povo” não só
nunca o foi como resultou nos sistemas mais opressivos,
onde o homem comum é mais controlado e indefeso pe-
rante o poder, do que em qualquer regime aristocrático –

41
onde a distinção entre governantes e governados é clara e
largamente inalterável. O cientismo/secularismo, em vez
de libertar o homem do fanatismo e promover o pensa-
mento livre, construiu gerações e gerações de IYIs (Inte-
llectual Yet Idiot), confundindo as sombras pela realida-
de; e, no panorama da plebe, criou uma intolerância pe-
rante qualquer crítica ou julgamento em que já não é pos-
sível inquirir se existe alguma diferença entre a sombra
na parede e a realidade reflectida – em suma, numa acei-
tação sem escrutínio de todos os vícios e pecados, e com
isso uma imparável tendência para degeneração moral e
física. A igualdade e a fraternidade, em vez de harmoni-
zarem as diferentes naturezas e capacidades, ao ignorá-
las criaram antagonismos ferozes que resultam numa
guerra de todos contra todos (filhos contra pais, mulheres
contra maridos, alunos contra professores, funcionários
públicos contra privados) e que em termos geopolíticos
resulta na guerra total (lembrar que o único regime a la-
nçar uma bomba atómica foi exactamente aquele que re-
presenta o auge e a consagração da RSD). Em nenhum
outro tópico, no entanto, isto é tão óbvio como na relação
entre os sexos. O pináculo da RSD é a incapacidade dos
seus aderentes de se reproduzirem.

Por isso o pessimismo talvez seja inevitável, mas não to-


talmente justificado. O colapso é eminente, mas o colapso
de quê? Da RSD – e dos seus dogmas LFIC. Os valores
ancestrais da honra, da autoridade, da razão e da carida-
de são ancestrais por alguma razão. Não são arbitrários

42
(apesar de, em certa medida, não serem naturais e reque-
rerem esforço e cuidado). A aberração da RSD é apenas
uma pequena intermissão. Como na história de Sodoma e
Gomorra, as sociedades controladas pela RSD serão des-
truídas por força maior (quer se ache que é justiça divina
ou simples consequência da sua irracionalidade, ou como
eu, se ache que ambas são essencialmente a mesma
coisa). Salvar-se-á quem repudiar e abandonar a RSD.
Quem olhar para trás, porém, arrisca-se a transformar-se
numa pilha de sal.

43
Teocracia e Escravatura

Não existem homens sem Religião, existem apenas ho-


mens que não sabem que Religião seguem. Visto que o
Estado é operado por homens, baseado em constituições
feitas por homens, que aplica leis escritas por homens,
segue que o Estado também não existe sem uma Religião.
Tal como o indivíduo, o Estado pode não saber, ou não
declarar, que Religião de facto o enforma – mas ignorar
ou esconder este facto não o torna menos verdade. O sta-
tus quo da modernidade, porém, é fundado precisamente
nessa falsa premissa de que o Estado e a Religião estão
separados. A premissa só será verdadeira se por Religião
se designar as fés ancestrais, pois o Estado democrático é
o principal veículo das fés modernas, promovendo-as
através de todos os seus tentáculos. Qualquer regime de
duração média, passado ou presente, funda-se em última
instância nas ideias que o enformam, ou seja, numa Reli-
gião.

Por isso, a verdade é que vivemos numa Teocracia. Vou


repetir, para o caso de ter atordoado o leitor: vivemos
numa Teocracia. A asserção pode parecer absurda, mas
isso deve-se à natureza desonesta da propaganda da era
em que vivemos, que é um produto da classe teocrática
dominante. Por isso, deixem que me explique.

44
Bem sei que a origem da palavra é grega, e que o original
theos significa Deus. Mas visto que não distingue entre
falsos e verdadeiro, a palavra aplica-se: a história moder-
na (democrática) é nada mais nada menos que a incessan-
te adoração de falsos deuses, promovidos pela classe teo-
crática através do Estado. A Teocracia em que vivemos é
baseada em falsos deuses (o poder popular, a igualdade,
o hedonismo e por aí for a), e promove esses falsos
deuses com a mesma assertividade com que teocracias
passadas afirmavam e promoviam outros, ou Aquele.

Se isto não chega, e de facto convém ir mais longe, vamos


mais longe. O dicionário define sucintamente a Teocracia
como um ‘Estado em que o poder está na mão do clero‘. Mas
quem é o clero moderno? Quem tem de facto poder no
Estado Democrático?

A pergunta é mais difícil do que parece. Um dos princi-


pais problemas da Democracia é precisamente que o po-
der está incrivelmente disperso, sem no entanto estar
descentralizado. Por disperso entende-se o carácter ine-
rentemente obstruccionista das instituições democráticas,
em que uma (por exemplo, o Governo) não pode dar um
passo sem que outra (por exemplo, o Parlamento) o per-
mita – além das outras todas que também lá estão pelo
meio a obstruir. Os magníficos checks and balances são na
verdade uma forma de não se conseguir fazer nada de
bom, sem se impedir que se faça todo o tipo de mal (ver a
teoria da Captura Regulatória). A captura, no entanto,

45
aplica-se a exemplos concretos e económicos, não à natu-
reza religiosa do poder do Estado. As empresas de facto
infiltram-se no Estado Democrático para retirar dele be-
nefícios (que surpresa!), mas não são as empresas que
definem, por exemplo, os currículos escolares, as leis an-
ti-discriminação ou a posição do Estado em relação ao
aborto – ou seja, os elementos religiosos. Curiosamente, e
em grande parte por causa da captura, as empresas aca-
bam, sem serem necessariamente obrigadas, a criar e
aplicar dentro das suas próprias estruturas as mesmas
regras religiosas (quem já trabalhou numa empresa de
tamanho relativamente apreciável, pense, por exemplo,
em todas as campanhas internas pela diversidade, in-
clusão, apoio aos refugiados, etc). Por isso temos de pro-
curar o nosso clero noutro sítio. As empresas são os aris-
tocratas modernos, mas não são eles quem detém o ver-
dadeiro, e último, poder.

De onde vêm então estas ideias que enformam o Estado e


que eventualmente chegam até às leis e às instituições
(mesmo àquelas que não são, nominalmente, estatais)? Se
o leitor respondeu “das Universidades”, acertou. Se res-
pondeu outra coisa, não se aflija: a resposta não é óbvia,
até porque não existe qualquer incentivo para que os ca-
rrascos retirem o capuz e revelem a sua identidade. O
facto é este: o clero moderno, o poder no Estado Demo-
crático, está nas Universidades. Se se quiser saber que
legislação religiosa será passada nos próximos quinze
anos, procure-se que obsessões se promoveram nas Uni-

46
versidades nos últimos quinze. Da próxima vez que vir
um professor catedrático, faça-lhe uma vénia. Está peran-
te um soberano.

Não se pode descontar os incentivos económicos, claro.


As universidades (e em menor grau, as escolas) são um
dos maiores e mais perversos esquemas de lavagem de
dinheiro do mundo moderno (dos cursos às bolsas, dos
professores às publicações, passando pelos inúmeros ins-
titutos e grupos de investigação – todos pagos, e even-
tualmente engolidos, pelo cidadão comum). Mas adivin-
he-se de onde surgiu o esqueleto, a ideia, deste sistema
em que as Universidades gozam de prestígio e privilégio
(totalmente indevido), antes de ter sido efectivado na lei?
Nas universidades. O lema oficial da Educação “Supe-
rior” devia ser ‘damos vida ao termo circle jerk‘. A lavagem
de dinheiro é, no entanto, menos importante e vem na
sequência da lavagem cerebral.

O que distingue o clero moderno dos cleros passados, é


que a Academia não ensina ou promove a verdade, nem
conserva ou dissemina o conhecimento (de vez em quan-
do fá-lo por acaso, e sem intenção – e na grande maioria
dos casos esses acasos são ignorados ou punidos). A
razão para isto é não ter uma base teológica para além da
sua própria perpetuação.

Por isso, e para concluir: vivemos numa Teocracia em


que o clero é a Academia. E isso, caso ainda não seja cla-

47
ro, é mau. Não por causa do sistema, que é inevitável (e o
que não tem remédio, remediado está), mas por quem o
dirige: o nosso clero educativo além de prepotente (o
que, admita-se, vem um pouco com a função), não é lá
muito educado – o que acaba por se notar na sociedade
que produz e dirige.

Julgo ter ilustrado suficientemente o meu argumento,


pelo que vou passar à segunda parte do texto.

Não só vivemos numa Teocracia Académica, como vive-


mos em Escravatura. E tal como no caso da Teocracia,
não houve nenhuma sociedade até hoje em que o homem
não vivesse em Escravatura – em vários graus, certo, mas
Escravatura ainda assim. Voltemos ao Dicionário: A Es-
cravatura é a ‘Condição do indivíduo privado da sua liberdade
e submetido à vontade de outrem, que o considera sua proprie-
dade‘. Perante a definição, não é difícil aferir a veracidade
da proposição.

O leitor sente-se totalmente livre? Acha que é proprietá-


rio de si mesmo? Acha que pode contestar as leis feitas
pelo parlamento? Acha que pode não pagar impostos?
Pense outra vez. A diferença entre um servo no Século
XIV, um escravo no Século XVI e um cidadão no Século
XXI é uma diferença de grau, não de natureza.

Antes de entrar em pânico e procurar soltar os grilhões


(metafóricos) que tem à volta dos tornozelos, convém não

48
esquecer que a Escravatura não é uma estrada de sentido
único. A escravidão tem obrigações, mas também tem
contrapartidas. O lorde oferecia ao servo terra e materiais
para trabalhá-la, oferecia-lhe protecção e ordem, não o
podia vender a outro lorde – embora pudesse libertá-lo
ou vender-lhe a sua liberdade – e não o podia agredir
indiscriminadamente – embora pudesse puni-lo no caso
de cometer um crime. O dono do escravo oferecia-lhe
casa, comida, saúde e instrução básica (e ao contrário do
que é popularmente acreditado, a violência indiscrimi-
nada era usada muito raramente – e por razões óbvias,
afinal, só um idiota destrói a sua propriedade, e só um
idiota maior destrói a sua propriedade quando a sua ri-
queza depende dela). Em alguns casos, o escravo era
formalmente libertado e ascendia à condição de assala-
riado. E não podemos deixar de mencionar que o lorde e
o dono de escravos, também eles, eram sujeitos a sub-
missão (ao Rei ou ao Parlamento), e também eles tinham
as suas obrigações e contrapartidas – as Teocracias que se
sobrepunham a um e a outro eram, no entanto, bem me-
nos destrutivas que a presente.

Nós, cidadãos, os escravos do século XXI, temos um


“acordo” menos parecido com os servos e mais parecido
com o dos escravos. Se há coisa que o Estado Democráti-
co não oferece é protecção e ordem, e também não po-
demos comprar a nossa liberdade – pelo menos não ofi-
cialmente (o suborno e o lobbying são indissociáveis da

49
democracia). A principal diferença entre o cidadão e o
escravo é que, ao contrário dos donos de escravos de ou-
trora, o nosso dono (o Estado e a plutocracia associada)
não tem grande incentivo em manter-nos saudáveis, ou
em instruir-nos de forma a aumentar a nossa capacidade
de trabalho, e além disso são precisamente os que menos
contribuem que recebem a maior quantidade de regalias.
Apesar de tudo, podia ser pior. Mas como dizia o velho
anarquista, um homem não é menos escravo por poder
escolher o seu dono de tantos em tantos anos.
Convém igualmente desconfiar sempre que alguém pro-
mete libertações (as libertações resultam precisamente
nos exemplos acima). Quase todos os terroristas se cha-
mam a si mesmo libertadores. E as consequências, mes-
mo quando se considera o ideal como moralmente indis-
cutível, nem sempre são as mais desejadas. A história
está cheia de exemplos, da Revolução Francesa à desco-
lonização, em que a libertação acabou por ser pior (no
momento e no futuro) que a servidão que se aboliu. Pior
a emenda que o soneto, como se diz. Às vezes parece que
a iatrogenia é a constante na história política humana. O
que só torna mais trágico o facto de quase ninguém saber
do que se trata.

Outra diferença é que o cidadão tem um papel (embora


mínimo e em última instância insignificante) na escolha
do seu dono temporário, através do voto, e pode aspirar
e concretizar a sua ascensão (temporária) à condição de
dono, ou pelo menos a parte da classe dos donos (seja na

50
condição executiva ou de teocrata). À superfície, isto po-
de parecer uma vantagem. Mas, analisando a questão em
teoria como na prática, o resultado não se recomenda
mais do que a Escravatura clássica, e menos ainda que a
servidão feudal.

Apesar de ser perene e existente em todas as sociedades,


a Escravatura não provém de nenhum contrato social. O
servo nasce servo, o escravo nasce escravo, o cidadão
nasce cidadão. O que distingue o cidadão do Estado De-
mocrático acima de tudo é que o cidadão não tem qual-
quer noção da sua condição de escravo.

E, não tendo essa noção, o seu dono nunca lhe virá a ofe-
recer a oportunidade de se libertar mas pelo contrário, a
sua viagem é para baixo, o seu nível de servidão vai au-
mentando, sem influência apreciável no processo, com
umas migalhas atiradas para o chão em forma de recom-
pensa – ignorando o que as migalhas representam. O fac-
to de o seu dono mudar a cada quatro ou cinco anos, só
acelera e aprofunda o processo – o dono temporário, ao
contrário do dono permanente, não tem qualquer interes-
se em manter a qualidade da sua propriedade (o ci-
dadão). Pelo que a qualidade de vida, estabilidade e se-
gurança do cidadão (e por consequência da sociedade em
geral) vão se deteriorando. Ao mesmo tempo, o seu dono
continua a assegurar-lhe que é livre através da instrução,
cada vez menos relevante e construtiva, que lhe oferece.
E, para confundir ainda mais o pobre escravo e atiçando

51
a natureza ínvia do homem, apresenta-lhe a possibilida-
de de subir à posição temporária de dono, apaziguando a
sua tendência para se rebelar se, por acaso, notar que as
condições de submissão estão cada vez piores para si, e
melhores para o dono.

A Democracia é, pois, uma Teocracia de falsos e etéreos


deuses e uma Escravatura rotativa em espiral descenden-
te. Da próxima vez que entregar o IRS ou colocar o bole-
tim de voto na caixa, pense na sua condição, porque co-
mo lembra o poeta o melhor escravo é o que acredita ser
livre. E se há fantasia que os nossos teocratas têm neces-
sidade de perpetuar, é essa.
Não lhes faça esse favor.

52
Uma mera formalidade

A barbárie Islâmica continua a assolar a Europa. Os de-


talhes são irrelevantes. Por muito que a imprensa queira
ofuscar a origem dos ataques terroristas ou desculpabili-
zar os responsáveis, só mesmo quem insiste em fechar os
olhos não sabe. Quem é que, com dois dedos de testa,
com o mínimo de atenção e o mínimo de honestidade
acha que se deve continuar a importar hordas de Árabes,
Magrebinos e Africanos que professam o Islão? Quem é
que, na posse das suas faculdades mentais, ainda acha
que o Islão é uma religião de paz e que o elemento de
conquista é a excepção e não a regra? Ninguém. Quem
era passível de ser instruído já o foi. Pelo que é irrelevan-
te para a Direita martelar mais uma vez o assunto.

No entanto, dada a frequência da barbárie, este martelar


tornou-se uma fonte de popularidade, de rendimento e
mediatismo. Da mesma forma que a Esquerda utiliza os
eventos para pregar o seu demónico evangelho, a sinali-
zação da virtude da Direita é exclamar, uma e outra vez,
o óbvio ululante. É pena porque é uma evidência que
ofusca o verdadeiro problema.
De certa forma, é compreensível. A Direita já não ganha
há muito: a sua existência é unicamente reactiva perante
qualquer que seja a obsessão da Esquerda no momento –
e a Esquerda, que é patrocinada pelas elites financeiras

53
com os seus propósitos particulares completamente des-
ligados dos interesses dos nativos e dos imigrantes, está
permanentemente investida num exercício de gaslighting
da população sem precedentes. A cada atentado, a Es-
querda (que inclui a imprensa, as universidades, o go-
verno, os think thanks, etc.) jura-nos que o Islão é uma
religião de paz, que os atentados nada têm a ver com a
importação desta cultura para a Europa, que criticá-la é
ser xenófobo e que, em última instância, encontrar um
padrão em todos estes eventos apenas demonstra o quão
odiosos são os críticos. Perante isto, a Direita arranca pa-
ra a refutação de todas as permissas da Esquerda, e assim
permite que ela dite o tom e o conteúdo do discurso.

A Esquerda sendo o que é, e patrocinada por quem é, vê


apenas as consequências e causas materiais. Nem impor-
ta que minta. A refutação das suas mentiras não desliga a
crítica da mundividência materialista. Além disso é mui-
to mais fácil atacar os outros do que olhar para dentro,
admitir as nossas falhas e superá-las. Se a Esquerda deci-
diu olhar para dentro e aceitar tudo o que há de mau co-
mo sendo bom, a oposição decidiu ignorar o pântano que
é a alma Europeia e apontar o foco para fora, como se
fosse possível que os elementos exteriores nos afectassem
como afectam sem que houvesse subversão interna.

É importante perceber a verdadeira origem do problema,


que não são os bárbaros estrangeiros mas os nativos mo-
ralmente apáticos. Eu não vejo nenhuma outra civilização

54
a convidar bárbaros para as suas nações, a dar-lhes casa,
comida e abrigo. Nenhuma outra raça tão apática que
após cada atentado defende as suas causas e que conti-
nua a insistir em convidá-los. Quantos dos que morreram
em Espanha apoiavam os ‘refugiados’? Quantos não
apoiando ficaram calados? Quantos permitiram ou esti-
veram-se a marimbar para o facto de as suas crianças so-
frerem lavagens cerebrais na escola para que os aceitem?

Morreram 14 pessoas no atentado espanhol. Entretanto


houve mais uns quantos, noutros sítios. Mas quantos
abortos foram perpetrados nesse espaço de tempo?
Quantas vidas pereceram às mãos dos próprios Euro-
peus, com subsídio público e indiferença da população?

No Twitter alguém perguntava, perante a notícia de que


o jihadista que cometeu o atentado já tinha anunciado o
seu propósito, ‘como é que é possível continuarem a igno-
rar?‘. A resposta é simples: apatia. Se o jihadista tivesse
dito que queria ilegalizar a pornografia tinham-lhe pres-
tado atenção e feito protestos.

Se o problema fosse só um de invasão, era fácil de resol-


ver. Infelizmente, o problema é muito mais profundo. A
ameaça física que os bárbaros Islâmicos apresentam é
insignificante comparada com a aniquilação espiritual a
que os Europeus se votaram a si mesmos. O Homem Eu-
ropeu tem como único deus o hedonismo. Enquanto lhe
permitirem refastelar-se nos seus pecados, é-lhe comple-

55
tamente indiferente se bárbaros estrangeiros matam os
seus compatriotas, violam as suas mulheres e crianças ou
destroem as suas cidades. A sua lealdade é direccionada
apenas para o seu prazer imediato. Pelo que até os críti-
cos do Islão e da sua entrada na Europa estão simples-
mente focados na sua remoção e julgam que, uma vez
removido o elemento Islâmico, a Europa pode continuar
na sua depravação hedonista e tudo correrá pelo melhor.

Os avisos foram-nos dados mas decidimos não os ouvir.


Os antigos Israelitas cometeram o mesmo erro, tiveram a
mesma presunção e sofreram as mesmas consequências:

«Todas estas maldições vos seguirão e vos alcançarão até que


sejam destruídos — tudo por terem recusado ouvir o Senhor
vosso Deus. Estes horrores cairão sobre vocês e os vossos des-
cendentes como um sinal. Tornar-se-ão escravos dos vossos
inimigos, por causa de não terem louvado o Senhor por tudo o
que vos deu. O Senhor mandará os vossos inimigos contra vo-
cês; vocês terão fome, sede, frio e necessidades em todos os do-
mínios. Um jugo de ferro será posto no vosso pescoço, até que
sejam destruídos.
O Senhor trará contra vocês uma nação distante que vos cairá
em cima como uma ave de rapina; uma nação cuja língua não
compreenderão — gente feroz e furiosa que não terá compaixão
nem de velhos nem de novos. Eles comerão tudo o que é vosso
em casa e nos campos; levar-vos-ão todo o gado e as colheitas;
desaparecerão os cereais, o vinho novo, o azeite, as crias das
vacas e das ovelhas. Essa nação sitiará as vossas cidades e de-

56
rrubará as muralhas, por mais altas que sejam e por muito que
pensem que vos protegem seguramente.» (Deuteronómio
28:45-52)

A história está a repetir-se porque os Europeus, tal como


os antigos Israelitas, elevaram as suas invenções e praze-
res terrenos acima de Deus e dos seus mandamentos. A
incrível disfuncionalidade das nossas sociedades deriva
deste facto, e faz-nos a cada dia mais fracos, mais solip-
sistas, menos humanos, e a nossa fraqueza torna-nos pre-
sas fáceis para os bárbaros. «Quem tem apego à sua vida vai
perdê-la; quem despreza a sua vida neste mundo vai conservá-
la para a vida eterna» (João 12:25). A alma do Europeu co-
mum está perdida. A morte física trazida pelos bárbaros
é uma mera formalidade.

57
O Supositório Arco-Íris

Um novo termo tomou de assalto o discurso político nos


últimos anos: o comprimido. Em especial, o comprimido
vermelho, the red pill, aludindo ao filme The Matrix. E
em especial, este comprimido tem sido um discurso polí-
tico mais à Direita, em oposição ao consenso ideológico
reinante nas últimas décadas, que é de Esquerda. No fil-
me oferecem ao protagonista dois comprimidos, um, o
azul, que o leva de volta à sua vidinha normal e de volta
à paz de acreditar em tudo o que o sistema quer que ele
acredite; o outro, vermelho, mostra-lhe a realidade pura e
dura.

Tomar o comprimido vermelho é, pois, passar a ver ve-


lhas questões com novos olhos. Da verdadeira natureza
das mulheres ao processo político, há muitos comprimi-
dos vermelhos. Depois, como a moda pegou, inventaram
outros comprimidos: o roxo, o verde, e muitos outros.
Honestamente, já perdi a noção do que estes outros signi-
ficam. Guardei um, porque já me acusaram de o ser vá-
rias vezes: blackpill, querendo isso dizer que sou pessi-
mista e transtorno algumas pessoas com esse pessimismo
– sinal evidente de que estou a fazer bem o meu trabalho.
Se a realidade é negra, e o comprimido mostra a realida-
de, então a cor adequada é mesmo essa.

58
Esta história dos comprimidos era aceitável quando só
havia dois (o vermelho e o azul), mas agora que já passou
a fase da lua de mel e se criam outros para identificar
nuances, tornou-se idiota. Era, admito, uma boa forma de
sumarizar o processo em que um homem passa a perce-
ber o que há de errado com o mundo. Hoje, ser redpilled
pode significar simplesmente que se gosta de Donald
Trump e se critica o Islão por não ser compatível com os
“valores ocidentais” (que significam tudo e o seu contrá-
rio, e por isso não existem). E convém lembrar que a ter-
minologia vem de um filme razoável, mas que tem duas
sequelas absurdas e que os seus autores entretanto deci-
diram ser transsexuais, por isso o seu julgamento da rea-
lidade não é por certo o mais adequado.

Ora, há um comprimido que grande parte da sociedade


e, infelizmente, também uma boa parte da Direita mo-
derna engoliu e que não há maneira de regurgitar. Este
comprimido é tão forte que é aparentemente imune aos
poderes medicinais do vermelho. O seu efeito permanece
mesmo quando se digere o outro. Falo, obviamente, do
comprimido arco-íris.

O comprimido arco-íris é a aceitação, ou menorização do


impacto, da causa e prática da sodomia. Nenhuma ques-
tão é tão ignorada ou menosprezada como o impacto que
a aceitação e promoção da homossexualidade têm na so-
ciedade. Tendo em conta esta realidade, talvez o com-
primido seja afinal um supositório. Tratando-se de seres

59
que se dizem à Direita, esta apatia perante um dos prin-
cipais flagelos do nosso tempo, não deixa de ser ainda
mais preocupante.

Recentemente um texto do Carlos Guimarães Pinto, um


dos paladinos do Liberalismo Português, que fala preci-
samente deste assunto, ilustra o quão enfiado está o su-
positório arco-íris nos rectos da Direita portuguesa. Su-
marizando, parece que uma secretária de estado assumiu
a sua condição de sodomita. O Carlos considera que as
pessoas normais ignoraram e continuaram a sua vida –
tendo em conta o grau de desinformação sobre assunto,
e a supressão dos instintos naturais no ser humano mo-
derno, a consideração é acertada. Mais à frente vem a
observação de que os conservadores, perante esta notícia,
se encontraram na posição de defender «que ser homosse-
xual é normal e plenamente aceite». Não é que não tenha
razão, porque tem. O que preocupa é que a Direita se en-
contre, em 2017, nessa posição. É certo que os seus efeitos
em Portugal ainda são mínimos quando comparados com
países mais ‘avançados’ na sua degeneração. Mas só uma
ingenuidade extrema (a roçar a idiotia) não consegue an-
tever que não deverá demorar muito a que os apanhe-
mos, porque na realidade os continuamos a seguir, no
caminho para o abismo civilizacional. Enquanto a Es-
querda quer acelerar o passo, a Direita limita-se a defen-
der a posição da Esquerda da década passada. É como se
não notasse que a sua defesa do status quo de Esquerda,
não mantém esse status quo, mas move-o sempre e sem-

60
pre para a Esquerda. E é como se não tivesse qualquer
princípio basilar na sua filosofia, a não ser a defesa do
status quo e a liberdade económica.

Em bom português costuma dizer-se que contra factos


não há argumentos, mas quando se toma o supositório
arco-íris os factos são irrelevantes. E a lista de factos so-
bre a insalubridade da sodomia é vasta, por isso vamos
rever apenas uma minoria para ilustrar o quão problemá-
tica em termos materialistas é esta ‘comunidade’, quão
absurdo é o seu orgulho e qual o seu impacto contabili-
zável na sociedade. Tendo em conta que a Direita parece
obcecada com números, pode ser que assim comecem a
abrir os olhos.

Homossexuais do sexo masculino têm 60 vezes mais pro-


babilidade de ter SIDA que homens heterossexuais. 46%
dos homossexuais do sexo masculino são alvo de abuso
sexual, comparado com apenas 7% dos homens heteros-
sexuais. 43% dos homossexuais de sexo masculino têm
mais de 500 ‘parceiros sexuais’ ao longo da vida. 79% dos
homossexuais de sexo masculino admitem que mais de
metade dos seus ‘parceiros’ são estranhos. Os homosse-
xuais de sexo masculino, que são apenas 1% da popula-
ção, são 83% dos casos de sífilis. 40% a 60% dos homici-
das em série são homossexuais. A monogamia não é uma
característica central da maioria das relações homossexu-
ais. 28% dos homossexuais tiveram sexo com mais de mil

61
homens. Entre os homens heterossexuais apenas 25
% tiveram relações com mais de 10 mulheres.
Claro que perante estes factos teremos um coro infindá-
vel de vozes da Esquerda a assegurar-nos que a origem
destas atitudes claramente disfuncionais se deve, única e
exclusivamente, à discriminação de que estas pessoas são
alvo pela sociedade normal. Mas parando um pouco para
pensar, não há instituição que não se vergue para lhes
fazer a vontade, e se por um acaso alguém decidir criticá-
los, as tais instituições serão bem sucedidas em destruir a
vida de quem teve a audácia de questionar os dogmas
sodomitas.

Do lado da Direita, sobretudo da Direita liberal, virá o


coro de que, se liberalizarmos o mercado e acabarmos
com a subsidiação do seu ‘estilo de vida’ perigoso, os
problemas para a sociedade deixam de existir e passam a
ser um elemento circunscrito às vidas privadas dos indi-
víduos que a praticam. E aqui se vê o quão fundo está o
supositório arco-íris. O autismo perante a sodomia é sim-
bólico e o caso mais pertinente do autismo geral da Direi-
ta perante toda a degeneração que a Esquerda tem vindo
a promover desde que tem essa liberdade e que a Direita
insiste em defender com dez anos de atraso, só para dizer
que se opõe a alguma coisa.
Podemos tentar chamá-los à razão e falar na realidade de
que uma relação homossexual nunca pode gerar progeni-
tura, e que portanto os homossexuais não contribuem
para a perpetuação da espécie. Visto que os seus maiores

62
defensores (e praticantes) costumam ser ateus e darwinis-
tas, isto deveria ser visto como uma desvantagem – mas
não alimentemos ilusões. A um homem com a cabeça no
sítio não custa a perceber que deste facto salutar nasce
quase toda a disfunção desta ‘comunidade’, mas para
quem tomou o supositório, tudo isto não passa de ódio
latente. Aliás, quem critica os homossexuais deve ser se-
cretamente homossexual – uma lógica brilhante segundo
a qual os ateus que odeiam a religião são secretamente
devotos.

Depois podemos falar do bullying que esta ‘comunidade’


faz a qualquer oposição, crítica ou julgamento. Os exem-
plos são inúmeros e deviam fazer soar o alerta em qual-
quer homem com senso comum.

Podemos falar nas marchas LGBT que ostentam, com


orgulho, todos os tipos de sexualidade desviante como se
fosse normal e desejável, e de como pais dão palmadi-
nhas nas costas a si mesmos por serem tolerantes e leva-
rem os filhos a ver o escabroso espectáculo.
E por fim, podemos apontar o facto de que os governos
ocidentais parecem ter a sodomia como uma das princi-
pais prioridades da sua política externa, ao ponto de
se gastar quase um bilião de dólares a espalhar a ideolo-
gia pelo ‘terceiro mundo’ (onde ainda mantêm alguma
da aversão natural por aquilo que é abominável).

63
Não me parece que a Direita ignore pelo menos algumas
destas realidades. E no entanto, nem um pio sai da sua
boca para condenar a ‘comunidade’, a sua causa ou a sua
desejabilidade numa sociedade sã.

A Direita não diria, por exemplo, que um heroinómano é


normal e aceitável, nem sugeriria que se aceitasse essa
disfunção como algo «normal e plenamente aceite». E no
entanto, diz o mesmo do sodomita, sobre o qual é possí-
vel argumentar que a sua disfunção tem muito mais in-
fluência na sociedade, e uma influência muito mais nega-
tiva.

A realidade é que a aceitação da homossexualidade como


normal e permissível, que veio da Esquerda e foi aceite
pela Direita, é uma das principais fonte de onde jorra o
lodo moral onde o Ocidente se encontra. Neste momento,
o leitor mais ingénuo, mesmo perante todos os dados
providenciados acima, estará a pensar que estou a exage-
rar.

E eu entendo, até certo ponto. É verdade que pecados é o


que não falta, e que muitos deles são parte integrante da
nossa sociedade desintegrada. Por exemplo, porque não
apontar o sacrifício infantil que as nossas sociedades ele-
varam a um direito de todas as mulheres com subsídio
estatal como a fonte desse lodo? É uma pergunta válida
dado que o aborto é, claramente, um sinal de que forças
demoníacas caminham entre nós, quando algo tão aber-

64
rante e destrutivo, que é nada menos que sacrifício hu-
mano ritual, é não só permitido mas, muito pior, celebra-
do.

Mas o impacto da ideologia sodomia é muito mais insi-


dioso. Em primeiro lugar, a sodomia é um ‘estilo de vida’
inerentemente egoísta, luxurioso e hedonista. Promove o
sexo como uma acção meramente física (como urinar ou
defecar), desligado da sua função biológica e, logo, da
sua componente espiritual; é necessariamente infértil e
masturbartório – mas masturbartório através do uso, e
profanação, de outra pessoa. Promove a doença, porque
o hedonismo é forçosamente uma atitude de baixa prefe-
rência temporal, ou seja, descarta o sexo seguro e a mo-
nogamia na procura de actividades mais extremas, e tal
como qualquer disfunção, não fica estanque nessa procu-
ra do prazer: a dose tem de ser maior, e o seu efeito mais
rápido (o que explica o alto número de pedófilos e pede-
rastas entre a ‘comunidade’ gay). A sodomia promove
igualmente, e pela mesma razão, o uso e abuso de dro-
gas, provavelmente porque é um acto que para ser prati-
cado, e ao contrário do sexo (o verdadeiro, entre um ho-
mem e uma mulher), necessita de lubrificantes artificiais
e é necessariamente violento (não é um acaso que seja um
acto praticado amiúde nas prisões como forma de domi-
nação dos mais fracos).

Além disso, a sodomia é inerentemente um pecado orga-


nizado, visto que é necessário pelo menos duas pessoas

65
para o cometer. Podem-me dizer que o homicídio é pior
que a sodomia, no vácuo, e eu concordo. Mas não há na-
da inerente ao pecado do homicídio que leve à formação
de ‘comunidades’ secretas de homicidas por prazer, que
tenham o objectivo de dominar as instituições e propagar
a sua ideologia homicida. Pelo contrário, os homicidas
por prazer em geral são lobos solitários. Mas os sodomi-
tas organizam-se e recrutam (a história das últimas déca-
das prova-o). Mais: a sua propensão é para a sociabilida-
de e portanto para propagar a sua disfunção. Um homi-
cida não vai criar uma ideologia para justificar os seus
homicídios, enquanto que os sodomitas fazem-no há sé-
culos para racionalizar a sua disfunção. E essa racionali-
zação, claro, não será no sentido de uma sociedade ordei-
ra, comunitária e recta, mas no sentido de individualismo
extremo – visto que o acto em que se baseia é puramente
masturbartório, sem qualquer benefício para a comuni-
dade que não o prazer imediato de quem o pratica.

Tendo em conta esta situação, e o facto de serem natu-


ralmente uma minoria, é também natural que a ideologia
e ‘comunidade’ sodomita promova todo o tipo de indivi-
dualismo degenerado entre a população, seja o aborto, o
uso de drogas, a aceitação da imigração de massas, a li-
bertação sexual das mulheres ou o transexualismo (e, em
breve, a pedofilia), como forma de destruir o modo de
vida funcional da maioria.

66
Além disso, a propagação da sua ideologia destrói as li-
gações naturais de amizade e lealdade entre os homens,
obrigando-os a temer sempre que um outro homem olhe
para eles como um receptáculo para o seu sémen. E a au-
sência destas relações de lealdade tornam a sociedade
mais fraca e mais sujeita a subversão interna ou invasão
externa, algo que podemos observar em todas as socie-
dades ocidentais.

Ou seja, embora o homicídio seja um pecado mais grave,


a verdade é que não existem manifestações de orgulho
pelo homicídio, em que milhares de pessoas não-
homicidas participam e apoiam. Não existem apoiantes
de homicidas nas posições mais altas da sociedade, das
instituições públicas às empresas privadas. Não existe
uma promoção infindável do estilo de vida homicida nas
escolas nem nas universidades. E por fim, não existe a
possibilidade de se ser ostracizado pela denúncia do ho-
micídio. O mesmo não pode ser dito da sodomia.
Não é ao acaso que o único episódio bíblico em que Deus
destrói directamente duas cidades seja pela prática e acei-
tação generalizada da sodomia. Uma tal sociedade não
tem salvação possível.

A Direita deve voltar a encarar a sodomia, a sua aceitação


e infiltração nos seus meios, como um mal. Não como
uma ‘escolha’ inócua (embora insalubre), mas como um
cancro que não só ameaça corroer a sociedade até ao seu
âmago, mas que já o fez em larga medida e possivelmen-

67
te de forma irremediável. É simples: como Cristo, deve-
mos exigir que se arrependam e que parem de praticar a
sua actividade destrutiva.

Está na hora da Direita retirar o supositório arco-íris.

68
Em Busca de uma Identidade Impossível

No Jornal da História, edição Século XXI, na secção dos


classificados, pode ler-se o seguinte anúncio: Homem
Europeu procura Identidade. Assim, sem mais especifi-
cações. O homem Europeu, como a rapariga gorda, não
pode ser esquisito. Não há, simplesmente, muito por on-
de escolher. E assim, no capítulo da oferta de identida-
des, o homem Europeu tem respostas, mas nenhuma de-
las boa. Não o podemos censurar por escolher agarrar-se
ao que existe. De um lado, as ideologias (igualitarismo,
relativismo, etc); do outro, o mínimo denominador co-
mum (a raça). Desesperado, sem rumo, escolhe uma de-
las. As ideologias oferecem-lhe um propósito, uma causa,
por mais contraditória ou contraproducente; a raça ofere-
ce-lhe uma comunidade, por mais artificial que seja. Ne-
nhuma das duas é uma identidade (identidades pré-
fabricadas, prontas a usar na lapela, não existem) mas
com uma dose razoável de cegueira auto-imposta, as lu-
tas que não necessitam do seu esforço servem para dis-
farçar a sua verdadeira identidade: o consumismo cos-
mopolita.

Comecemos pelas ideologias. Nos bons velhos tempos


em que ainda haviam identidades nacionais deste lado
do mundo, as várias nuances marxistas eram puramente
económicas. Eram o fruto de uma interpretação ignorante

69
das acções humanas e de uma inveja mal escondida pelo
sucesso. Hoje, ninguém adere a essas ideologias por ra-
zões económicas. Em 90% dos jovens, de um lado ou do
outro da barricada, a ideologia económica é a mesma:
uma economia mista, onde o pior do comunismo e o pior
do capitalismo se encontram numa apoteose brilhante de
mediocridade. Nenhum membro dos Antifas é animado
realmente pela tomada dos meios de produção. Aliás,
produzir é a última coisa que querem. Querem destruir.
E esperam que a sua destruição criativa gere frutos. É
uma identidade que procuram nessa destruição, iludidos
de que ainda existe algo para destruir enquanto espezi-
nham as ruínas do que foi o Ocidente.

Do outro lado, temos o homem Europeu que, com um


pouco mais de clareza, entende (consciente ou inconsci-
entemente) os objectivos destrutivos do primeiro grupo,
e procura algo mais construtivo. Mas estão mais ou me-
nos iludidos sobre a mesma coisa: pretendem proteger
um castelo cujas muralhas já foram destruídas, ou pre-
tendem erigir muralhas para proteger um castelo que já é
do inimigo. A comunidade não existe. A nação, por ex-
tensão, também não. Sobe-se um degrau. E acima está a
raça. Às vezes é engraçado ver as discussões online nos
fóruns dedicados ao assunto: o Português é mesmo bran-
co? Será que gostar disto ou daquilo me desqualifica co-
mo branco? Ou então ver o saudosismo de aspiração:
éramos Lusitanos, Gregos, Romanos e tal e coiso. É en-
graçado até ser deprimente. Tal como o primeiro grupo,

70
procuram uma identidade onde ela não existe. Acabam a
dar a volta ao círculo e, numa divina ironia, advogar algo
semelhante ao pan-Africanismo. Ora, África nunca teve
nações nem nacionalidades. Teve e tem grupos (muitos
deles ainda lutando violentamente pelo controlo das en-
tidades políticas criadas pelos Europeus para extermina-
rem ou escravizarem os outros grupos dentro das suas
fronteiras), mas nada que se assemelhe às nacionalidades
que surgiram na Europa. Não por acaso, e tal como a Eu-
ropa previamente com o Cristianismo, há outro verda-
deiro unificador no horizonte para África: o Islão. Sendo
um sistema total, de crenças ontológicas até às políticas, o
Islão oferece um ponto de convergência que a raça, por si
só, não oferece.

Não sou íntimo conhecedor das várias identidades Afri-


canas, mas tendo em conta que as entidades políticas de
África são artifícios, o pan-Africanismo, apesar de igual-
mente espúrio, continua a fazer mais sentido do que o
chamado ‘nacionalismo branco’, que é nada mais do que
pan-Europeísmo. Não há absolutamente nada em comum
entre as várias etnias Europeias, a não ser genética. A
Europa já esteve de facto unificada sob uma bandeira,
Cristo, mas longe vão os tempos – e muitos dos defenso-
res do Nacionalismo Branco consideram o Cristianismo
uma conspiração judaica para subjugar a alma virtuosa
dos Europeus. Onde podiam encontrar uma verdadeira
identidade, rejeitam-na. Mas mesmo os que juntam a sua
identidade racial à sua identidade religiosa, esquecem

71
que essa identidade nunca esteve ligada a considerações
étnicas e que não nasceu da procura de uma identidade –
e que se a razão para aderirem é essa procura, nunca a
vão concretizar. Há uma expressão para o fenóme-
no: LARPing, versão curta de Live Action Role Playing.
Não digo que não sejam sinceros. Até podem ser. Mas os
meios utilizados não vão gerar os efeitos desejados.

D. Afonso Henriques pode ter criado Portugal como en-


tidade política, mas não foi ele que criou a identidade
portuguesa. Como qualquer conceito nebuloso, não é
sequer fácil apontar o que é ou não é uma identidade na-
cional. Mas podemos pelo menos concordar que ela não
depende das acções de uma pessoa, mas dos hábitos e
vidas dos habitantes da Nação. Olhando para os hábi-
tos e vidas dos habitantes, conseguimos logo perceber
porque é que não existe uma identidade especificamente
nacional, nem aqui nem em qualquer outro país Europeu.
E se antes ao menos tínhamos um mito de fundação nas
conquistas de D. Afonso, hoje o mito de fundação portu-
guês é o 25 de Abril. Ou seja, é um mito de fundação que
rejeita aquilo que era a identidade portuguesa, e pretende
fundar uma nova. Meus caros, bem vindos ao vácuo que
é a identidade portuguesa no Século XXI. O 25 de Abril
como mito representa uma coisa: a abertura de Portugal
ao mundo. Antes estávamos orgulhosamente sós, depois
ficámos orgulhosamente acompanhados.
Admita-se que é difícil hoje imaginar um país fechado à
cultura além das suas fronteiras. Não só a tecnologia

72
permite o acesso a espaços e tempos distantes, mas o en-
quadramento político acompanhou a tecnologia e não
oferece qualquer entrave a esse acesso – esse era um dos
objectivos afinal de contas. O 25 de Abril foi feito para
podermos beber Coca-ColaTM e ver o Marlon Brando so-
domizar a rapariga com a ajuda da manteiga. Longe vão
os tempos em que a música, os filmes, a culinária ou a
religião de terras distantes era largamente inacessível, e
em especial ao cidadão comum. A procura adapta-se tan-
to à oferta como a oferta se adapta à procura. Talvez na
época fosse impossível de antever, mas hoje é possível
observar, os efeitos dessa abertura.

As pessoas da minha geração (a Y, os millennials), cresce-


ram tanto ou mais influenciados pela cultura anglo-
saxónica, em especial americana, como por qualquer coi-
sa feita em Portugal. Em boa verdade, e por causa dessa
influência, não somos bem portugueses, mas um híbrido
cosmopolita – e não somos um caso especial, as outras
nações (sobretudo do lado ocidental) sofrem do mesmo.
Esse híbrido cosmopolita é a verdadeira identidade Eu-
ropeia moderna. Se somos portugueses em algumas coi-
sas (das castanhas ao bacalhau, do café ao futebol), a ver-
dade é que somos menos portugueses do que os nossos
pais, e que eles mesmos eram menos portugueses que os
seus pais.

Antigamente, só as classes altas tinham acesso à cultura


de outros países – isto é, a outras culturas das classes al-

73
tas – enquanto que as classes médias e baixas eram fe-
chadas entre si. Podia dizer-se que as classes altas eram
cosmopolitas, e mais semelhantes culturalmente entre si
do que às classes baixas dos seus respectivos países. É
importante mencionar de passagem que as aristocracias
Europeias tinham laços de sangue partilhados, e eram
igualmente mais próximas umas dos outras geneticamen-
te do que das plebes nacionais. O nacionalismo clássico,
de há cem anos atrás, provou ser um movimento demo-
crático precisamente por isso: a identificação da classe
governativa com a classe governada.

Mas o nacionalismo clássico falhou na prática, porque era


na realidade uma contradição em termos. Durante Sécu-
los a distinção entre governantes e governados manteve a
identidade intacta. Outros factores determinaram a mu-
dança mesmo com a alteração dessa circunstância. A tec-
nologia, e com ela a democratização da cultura plebeia,
foi o que acabou com as identidades nacionais milenares.
Não só acabou com a cultura aristocrática, como aproxi-
mou as culturas plebeias umas das outras. E embora seja
notório que existem diferenças culturais entre os portu-
gueses e os ingleses, ou entre os suecos e os alemães, a
verdade é que essas diferenças são cada vez menos mar-
cadas e cada vez mais irrelevantes. Geralmente, são liga-
das a elementos que ainda estão condicionados por facto-
res locais e que não podem tão facilmente ser democrati-
zados como a informação. A culinária por exemplo é
muito mais particularizada do que as opiniões políticas,

74
pois está ainda até certo ponto ligada aos alimentos pro-
duzidos ou importados, que por sua vez ainda estão li-
gados à tradição do país. Mas estão apesar de tudo num
estado retardado de actualização, e adivinha-se, tendo
em conta que já há muito que todos os países têm acesso
a alimentos de todo o mundo a qualquer momento, que
também aí as diferenças continuem a esbater-se. Não me
lembro da última vez que vi, numa carta de sobremesas,
a expressão ‘fruta da época’. Porque a época já não im-
porta para a disponibilidade da fruta.

A questão do nacionalismo já era complicada quando


surgiu, tendo em conta a distinção entre a tradição políti-
ca (aristocrática) e a sua distância cultural e genética da
classe que governava. Mas hoje, é ainda mais complexa.
Quando o PNR repete o seu slogan ‘Portugal aos Portugue-
ses‘ (que sabemos não ser sério, pois o seu programa nem
sequer postula sair da União Europeia), tomado do ponto
de vista étnico é fácil identificar quem faz e não faz parte
dos ‘portugueses’. Mas em termos culturais, e deixar-se
de fora esse componente é impossível, qual é o ingredien-
te especial que nos distingue? Não só a ‘cultura portu-
guesa’ moderna é em muito indistinguível das outras
culturas plebeias da Europa, como é transversal entre
Portugueses étnicos e Africanos. Mais: uma boa parte da
cultura que é mais ou menos exclusiva a Portugal é adop-
tada por Portugueses étnicos, mas produzida pelos Afri-
canos. O mesmo se observa nos outros países Europeus
com as suas minorias étnicas. Um holandês dizia-me no

75
outro dia que os putos holandeses agora falam todos com
os maneirismos linguísticos adoptados dos Árabes, uma
forma de holandês degenerado. Se pessoas da minha ge-
ração disserem que nunca usam as palavras ‘bué‘ ou ‘ya‘,
estão a mentir. Ou então essa abstenção é produto de
uma auto-censura, de um esforço. Não só já não estamos
orgulhosamente sós, não somos sequer nós, orgulhosa ou
envergonhadamente.

Na questão religiosa, embora exista ainda imensos ele-


mentos da tradição Católica em Portugal, a verdade é que
na prática a maioria dos Portugueses são quase tão Cató-
licos como Hindus. Mesmo os que vão à Igreja não a ou-
vem, e aqui o dedo não pode ser somente apontado às
pessoas, mas à Igreja que, por farisaísmo, não só não res-
ponde aos problemas reais das pessoas modernas, mas ao
mesmo tempo vai ao sabor da corrente progressista glo-
bal – o pior dos dois mundos. O rio, em conclusão, desa-
gua no mesmo mar.

O famoso (ou infame) discurso de Salazar sobre estarmos


‘orgulhosamente sós’ era especificamente sobre a política
ultramarina, mas não é espúrio mencioná-lo neste contex-
to. Afinal de contas, o esforço em África, quer concorde-
mos com ele ou não com o benefício da distância, depen-
dia tanto das directivas políticas como da motivação dos
combatentes – e esta provou ser, em última instância,
incrivelmente afectada pelas opiniões internacionais.
Muito para lá das limitações técnicas, a mundividência

76
dos soldados, das famílias, do povo em geral, contribuí-
ram para a derrota em África. Por outras palavras, o espí-
rito do tempo impregnou a identidade nacional de dúvi-
da sobre a aventura africana, e votou-a à derrota. Um
exército que não acredita nas razões para lutar não vence
guerras.

E assim, através da influência exterior, da ideologia da


auto-determinação, do abandonar do ‘fardo do homem
branco’, do papel civilizador Europeu, do anticolonialis-
mo e do movimento pacifista americano, a guerra ultra-
marina e, com ela, o regime, caíram. E para fechar o cír-
culo com mais ironia divina, os portugueses são hoje
mais influenciados pela cultura das colónias do que al-
guma vez as colónias foram influenciadas pela nossa.

Mas este não foi caso isolado. Outras influências exterio-


res contribuíram para a sua dissolução. Podemos pergun-
tar se se a abertura do país à influência exterior foi um
benefício ou um malefício, se melhorou a sociedade ou a
piorou, se apurou as qualidades portuguesas ou as dete-
riorou. O que não podemos negar é que sucedeu.

Quando na Primavera Marcelista se começou a abrir fen-


das no dique que impedia a cultura estrangeira de entrar
em Portugal, pôde observar-se que não tardou muito a
que não houvessem suficientes meninos para meter os
dedinhos nos buracos e impedir a enxurrada.

77
No outro dia estava a ver um documentário sobre o Cas-
caisJazz, em 1971, que ilustra bem o argumento. Nele
aprende-se que alguns dos músicos – e apesar da presen-
ça das polícias – fizeram homenagens aos movimentos de
‘libertação’ Africanos, saudados com grandes aplausos e
cantos pela ‘liberdade’. As consequências não foram mui-
tas, apesar da inicial ameaça de repercussões, o que pro-
vou a abertura do regime aos apoiantes, mas sobretudo
provou aos detractores a sua fraqueza. Daí até à abertura
completa, foi um piscar de olhos.

Em condições tecnológicas industriais, e num mundo


politicamente plebeu, quer se considere boa ou má, a
abertura ao exterior é um processo contínuo, uma espécie
de PREC, que uma vez começado não tem termo, e se
alimenta a si mesmo num feedback loop.

Em menor ou maior grau, é por isso que vemos as iden-


tidades nacionais na Europa Ocidental se tornarem com o
tempo versões diferentes da mesma cultura cosmopolita,
obcecada pelas mesmas causas e guiada pelas mesmas
ideias, enquanto que na Europa que esteve por detrás da
Cortina de Ferro, o processo está mais atrasado e a dife-
rença é ainda visível. Mas infelizmente, sem que existam
medidas que o contrariem, o processo vai continuar no
Leste como continuou no Oeste.

E não parece haver grande diferença entre, por exemplo,


cultura sancionada centralmente (como a MTV ou Hol-

78
lywood), ou cultura descentralizada (como a Internet). A
ausência de fronteiras culturais cria um mundo onde as
fronteiras reais se tornam irrelevantes. Este argumento é
frequentemente avançado pela Esquerda, para justificar a
sua defesa de fronteiras abertas, e criticado pela Direita.
Mas, mais uma vez, é a Direita quem não está a ser logi-
camente consistente.
A verdade é que a Direita pretende fronteiras fechadas
na prática, mas fronteiras culturais completamente aber-
tas, ignorando que a abertura cultural leva, inevitavel-
mente, à abertura real. O consenso geral de que devemos
deixar entrar pessoas de todo o mundo para ‘enriquece-
rem’ a nossa cultura não nasceu do vácuo, foi um proces-
so gradual, e não é produto de uma conspiração. É ape-
nas o resultado natural da exposição continuada a cultu-
ras estrangeiras, que leva à perda de identidade e cultura
nacional. O ‘enriquecimento’ só é possível, e só faz senti-
do, porque se perdeu a base. Se a própria cultura é uma
mistura indiscriminada de influências, não há razão lógi-
ca para que a população o não seja. Em última instância,
só encorajamos a entrada de outras culturas porque per-
demos a nossa.

E não pensem que é possível impedir este processo. Ele já


está demasiado avançado para se salvar alguma coisa.
Qualquer ilusão sobre o assunto convém que seja aban-
donada. Os monárquicos e reaccionários autistas podem
clamar e rezar todos os dias para a restauração da cultura
portuguesa, mas o Portugal que existiu não volta a exis-

79
tir. O nacionalismo nos seus parâmetros clássicos é im-
possível e é difícil antever o que se segue. Mesmo que
Portugal, como entidade política reganhe a soberania –
algo bastante duvidoso quando nem o partido nacionalis-
ta, único, postula a possibilidade – não vem daí o regres-
so automático da identidade portuguesa perdida. Se D.
Sebastião aparecer do nevoeiro, provavelmente volta pa-
ra ele pois não reconhece as gentes e pensa que se enga-
nou na saída. Mas não é caso para desespero porque,
lembremos, a maioria das antigas nacionalidades Euro-
peias não era politicamente delineada. Viveu e sobrevi-
veu sob jugo político externo. Portugal, com os seus 900
anos de independência política, é uma excepção nesse
respeito. Nada indica que exista um Portugal politica-
mente unificado no futuro, mas isso não impede a criação
de uma ou várias identidades.

Não há restauração grandiosa possível. Temos de reco-


meçar do zero. É preciso repetir que a identidade nacio-
nal nasceu das acções individuais dos portugueses, e não
porque estes estavam conscientes de que as suas acções
levavam a esse fim. Aconteceu independentemente da
sua vontade. Por isso qualquer futura identidade requer
o nosso envolvimento, a nossa acção, o nosso investimen-
to na nossa comunidade, não em aventuras identitárias
que são, curiosamente, um fenómeno moderno global. A
comunidade é o alicerce. Só o tempo dirá se é suficiente
para suportar um edifício comum. O que é certo é que
não se constroem casas a partir do telhado.

80
Apatia Mortal

Introdução
Apesar de na grande maioria dos países Europeus não se
poder manter estatísticas criminais discriminadas por
etnia, é um segredo mal guardado que a criminalidade
violenta é um ofício praticado em grande parte por indi-
víduos de origem não-Europeia.

Com o influxo migratório que a crise de ‘refugiados’


trouxe à Europa o número desses crimes aumentou ex-
ponencialmente, como já tinha vindo a aumentar nas úl-
timas décadas com a mais calma, mas ainda assim gran-
de, enxurrada de emigrantes de países Africanos e Asiá-
ticos. Muito já se escreveu sobre o assunto, por antago-
nistas e apologistas. A identificação de padrões como o
acima descrito sobre a criminalidade e a sua relação com
a etnia é uma das coisas de que os média alternativos se
orgulham de providenciar, tendo em conta a total ausên-
cia dessa identificação (ou mesmo omissão maliciosa)
desses padrões por parte das fontes oficiais. No entanto
há um ângulo que é quase sempre ignorado (e dizer qua-
se é ser generoso), mas que me parece ser extremamente
importante, senão mesmo determinante não só para se
entender o fenómeno, mas também para encontrar solu-
ções para o mesmo.

81
Há essencialmente duas narrativas referentes a estes cri-
mes: os meios de comunicação tradicionais têm a narrati-
va globalista, muitas vezes ocultando (ou tentando ocul-
tar) as origens étnicas e religiosas dos prevaricadores –
quando não é possível ignorar os crimes; os média alter-
nativos (blogs, canais de youtube, alguns jornais online)
avançam a narrativa nacionalista, salientando o carácter
de invasão, de que estes crimes são cometidos não por
nativos, mas sim por elementos estranhos à sociedade em
que são perpetrados, racial e culturalmente. A narrativa
que nunca vejo avançada, ou sequer mencionada, é nem
nacionalista nem globalista (embora claramente mais
simpatizante com a nacionalista, pelo menos em termos
de objectivos), e é a narrativa moralista, que é a que ve-
nho apresentar aqui hoje.

Acho que é possível comparar o problema da invasão do


terceiro mundo e dos crimes cometidos pelos invasores
com o problema das armas e dos massacres perpetrados
por exemplo nas escolas. Em ambos os lados encontra-
mos a narrativa materialista: da Esquerda querem proibir
as armas, na Direita permitir o acesso a armas para efei-
tos de auto-defesa. Também aqui concordo muito mais
com a Direita (já que a auto-defesa é um direito e um de-
ver), mas não deixa de faltar ao seu argumento (muitas
vezes) uma dimensão não-materialista. A origem do pro-
blema, e logo a sua solução última, não está na posse ou
na ausência de armas – mas na alienação social, nos fár-

82
macos providenciados e na ausência de escapes adequa-
dos para jovens direccionarem a sua energia.

Mas se este problema é algumas vezes apontado pela Di-


reita, juntamente com a sua defesa da posse de armas
para auto-defesa, a verdade é que no caso da imigração
esta outra (mais fundamental) identificação do problema
é raramente mencionada.

Por isso vamos rever alguns dos casos mais famosos (ou
mais macabros) e evidenciar este problema que raramen-
te é mencionado, ou sublinhado, nos artigos que nos
apresentam as histórias ou nos comentários que se fazem
a eles.

O Escândalo de Rotherham
Este escândalo foi de tal forma grande que nem os meios
de comunicação tradicionais o puderam ignorar quando
rebentou, e consiste no abuso sexual de raparigas meno-
res, ao longo de vários anos, por parte de grupos de Pa-
quistaneses. Tais abusos foram facilitados pela reluctân-
cia das autoridades em investigar os homens envolvidos
por estes serem de uma minoria étnica (a BBC refere-se a
eles como ‘asiáticos’, mas as fotos desfazem a confusão
sobre a que parte da Ásia eles pertencem). O medo de
serem acusados de racismo foi maior do que a vontade
de descobrir a verdade sobre estes abusos, daí que eles
tenham decorrido durante vários anos.

83
Este episódio teve um precedente, raramente menciona-
do, em que um ‘casal’ de sodomitas que tinha adoptado
vários rapazes abusava frequentemente das crianças e
usava o sistema de adopção (e a apatia dos serviços de
adopção) como forma de acesso a rapazes para violar. Tal
como em Rotherham, as autoridades não investigaram
aquilo que era uma situação mais do que suspeita por
medo de serem acusados de homofobia. Ao contrário de
Rotherham, não houve grande publicidade ou agitação
nos média (tradicionais ou alternativos). E usando este
caso podemos apontar as causas óbvias, materialistas: a
cobardia dos serviços de adopção, a falta de investigação
sobre quem quer adoptar. Mas mais importante é apon-
tar, a meu ver, uma sociedade que permite e encoraja a
adopção de “casais” do mesmo sexo, e o próprio facto de
que tantas crianças Europeias são concebidas fora do ca-
samento e dadas para adopção. Ou seja, sublinha a exis-
tência de um problema moral, social, muito antes de ser
um problema policial.

Similarmente, a primeira coisa a notar sobre Rotherham,


e que foi de facto apontada pelos média alternativos, é a
chocante realidade de que o homem Europeu tem mais
medo de ser acusado de ser racista (ou homofóbico) do
que tem vontade de justiça, preferindo legar menores ao
abuso sexual e deixar os abusadores em liberdade. Isto
seria já de si extremamente demonstrativo da apatia Eu-
ropeia, mas a verdade é que essa apatia não fica por aqui

84
– e é precisamente esta parte seguinte que é frequente-
mente ignorada, mas que é talvez ainda mais ilustrativa.

Um artigo conta as histórias, na primeira pessoa, de al-


gumas das raparigas. ‘Sarah’, por exemplo, conta que foi
levada com 11 anos por outra rapariga, que lhe mostrou
‘o que fazer’. ‘Jessica’, com 14, conta como um dos ho-
mens parou o carro ao pé dela e dos amigos e que foi as-
sim que entrou em contacto com eles. Diz ela que ‘gosta-
va dele e que queria estar com ele’, e que os pais diziam
que ela não devia, que ele era muito velho, mas ela ‘não
queria saber’, estava ‘fascinada por ele’. O pai ainda foi à
polícia, mas como a rapariga ia voluntariamente com o
homem, não podiam (e não queriam) fazer nada. ‘Emma’
conheceu os seus abusadores com 12 anos, seduzida pela
promessa de drogas e álcool. As violações começaram
pouco depois e as ameaças à mãe da rapariga levaram a
que ela não fizesse queixa dos homens às autoridades.

Noutro artigo temos uma história com mais detalhes.


Outra Sarah, desta vez nome verdadeiro, conta por
exemplo que também ela foi apresentada, com 11 anos,
aos homens por uma rapariga mais velha, de 15, com
promessa de erva e álcool. Estas levaram, ao fim de dois
anos, a cocaína e anfetaminas. Os abusos sexuais faziam
parte da rotina: os homens iam buscá-la a casa e leva-
vam-na de carro para vários locais onde o consumo de
drogas e os abusos eram praticados. A rapariga vivia

85
com a mãe, e apenas com a mãe, e com 3 irmãos. A mãe
tinha dois trabalhos e sempre que tentava impedir a filha
de ir com os seus violadores ela reagia violentamente,
pois queria as drogas que eles providenciavam. Diz ela
‘eu tive 15 homens a puxar-me para fora de casa dos bra-
ços da minha mãe, mas eu odiava-a’.

Por fim, conta ainda a história da irmã mais nova, Laura,


que aos 15 anos começou uma relação com um Paquista-
nês de 16 anos. Ao fim de uns tempos acabaram e ela te-
ve um outro caso com um amigo dele, também muçul-
mano, de quem engravidou. Depois voltou para o seu ex-
namorado que, após descobrir que ela contara a história à
família dele, decidiu matá-la por ter trazido vergonha e
desonrado a sua família.

A história de Rotherham pinta um quadro de desolação


social, desagregação familiar e apatia comunitária, sem o
qual estes abusos continuados não poderiam existir. Se
eliminássemos os imigrantes muçulmanos, não elimi-
naríamos o problema, apenas um dos seus sintomas. A
facilidade e até celebração com que o Ocidente recebe
hordas de imigrantes é em si um resultado da mesma
desolação, desagregação e apatia. Quem vive numa lixei-
ra pode andar constantemente a matar os mosquitos, mas
sem se livrar do lixo não se livra da praga.

Rapariga Italiana desmembrada

86
Um dos casos mais recentes foi o de Pamela Mastropiero,
uma rapariga de 18 anos encontrada morta e desmem-
brada dentro de malas de viagem. O primeiro homem
acusado pelo crime foi um Nigeriano de 29 anos, já co-
nhecido das autoridades por ser um traficante de droga.
Haxixe foi encontrado na sua casa. A rapariga, entretan-
to, era drogada e acabara de sair da clínica de reabilitação
– a sua morte ocorrendo no dia seguinte.

Que conclusões podemos tirar?

Bom, os artigos são muito limitados na informação que


dão porque, como eu disse, são focados na causa materi-
al, nunca nas situações e disposições que levaram à con-
clusão. Mas pelos pormenores dados não é difícil de adi-
vinhar que a rapariga, com 18 anos e já viciada em dro-
gas, saiu da clínica (não se sabe se contra as recomenda-
ções dos médicos, ou com o seu aval) e no mesmo dia foi
procurar um traficante (o tal Nigeriano), aparecendo no
dia seguinte morta. Ou seja, foi procurar uma forma de
morte e encontrou outra. Por mais macabro que o crime
seja, por mais repulsivo que o assassino seja (ambas as
coisas indisputáveis), o crime não teria acontecido sem a
acção da rapariga em questão. E mesmo que o traficante
fosse italiano, e que em vez de a matar se tornasse o seu
vendedor frequente, poderíamos dizer que não havia
nenhum problema? Quanto tempo até morrer de overdo-
se? Quanto tempo até se prostituir para arranjar mais

87
uma dose? E seria este destino melhor só porque a sua
morte seria mais lenta, consentida, e com a ajuda de um
Europeu, em vez de um Africano?

Se a nossa sociedade não estivesse caída num hedonismo


suicidário, num abismo de alienação, esta história não
existiria.

Rapariga Alemã esfaqueada


O título do artigo no site da Identity Evropa lê ‘Migrante
Afegão assassina rapariga alemã de 15 anos’. O artigo em
si não adianta grandes pormenores: afirma que o assassi-
nato ocorreu numa loja devido a uma discussão (não se
sabe sobre o quê) e mais nada sobre o crime em si. É cu-
rioso, mas é preciso ir aos média tradicionais para se en-
contrar detalhes que oferecem alguma perspectiva (neste
caso a omissão maliciosa está do lado da narrativa nacio-
nalista, mais uma vez mostrando que muita gente nos
média alternativos se recusa a encarar o verdadeiro pro-
blema): a rapariga era, afinal, ex-namorada do assassino.
O artigo diz, na voz da mãe da rapariga, que antes dela
terminar o namoro com o rapaz, a família o tinha recebi-
do de braços abertos. Também aqui as autoridades nada
fizeram: aparentemente, depois da rapariga ter acabado
com ele, o rapaz começou a persegui-la online e a causar
distúrbios com os amigos dela.
Mais uma vez urge perguntar se, numa sociedade em
ordem, com uma população moralmente sã, com famílias

88
intactas, com um sentido de identidade e comunidade, se
este crime, ou mais especificamente, as circunstâncias
que levaram ao crime, poderiam ter acontecido. Não só a
rapariga de 15 anos (!) entrou numa relação amorosa (e,
deduz-se, sexual) com um emigrante Afegão, como a fa-
mília aceitou essa relação abertamente, convidou o futuro
assassino para sua casa e, por fim, a rapariga decidiu
terminar o namoro (algo que é cada vez mais comum
entre as mulheres ocidentais, seja nas suas relações com
Europeus ou não-Europeus).

Aposto que estas minhas considerações vão ser mal-


entendidas por muita gente, mas não consigo, nem acho
benéfico fazê-lo, ignorar o grande problema de lealdade
entre os ocidentais, e em especial entre as mulheres oci-
dentais, que repetidamente correm para os braços dos
refugiados, desde as mais tenras idades, com a apatia ou
apoio dos pais (quando estes têm conhecimento, ou fa-
zem parte das suas vidas de todo).

Na ausência dos ‘refugiados’ que se tornaram o objecto e


maior emblema dessa falta de lealdade, de alguma outra
forma essa falha moral se manifestaria. E o Ocidente con-
tinuaria em declínio mortal, deixando as suas raparigas e
mulheres sexualmente livres para experimentar, desper-
diçarem a sua fertilidade e beleza, e não produzirem des-
cendência, ou produzirem uma descendência igualmente

89
desligada de valores e normas de comportamento decen-
tes que perpetuariam o ciclo de degeneração.

Outra rapariga Alemã


Esta outra rapariga alemã, de 19 anos, estudante de me-
dicina, saíra de uma festa organizada pela faculdade às
2:37 da manhã e no caminho para casa, que percorria de
bicicleta, foi violada e afogada no rio por um emigrante
afegão. Como o Daily Mail observa, ‘ironicamente’ a ra-
pariga fazia voluntariado em part-time para ajudar os
‘refugiados’. A polícia acredita no entanto que o agressor
e a vítima nunca se tinham conhecido. A rapariga tam-
bém fazia parte de uma iniciativa no Facebook chamada
‘Refugee Help Freiburg’.
A família, posteriormente, pediu oficialmente que, quem
quisesse mostrar compaixão pelo sucedido, doasse di-
nheiro a uma instituição de caridade que ajudasse os ‘re-
fugiados’.

Tal como no episódio anterior, uma sociedade sã, com as


prioridades certas, não produziria esta situação. A mes-
ma rapariga há 50, 100 ou 200 anos atrás não estaria nu-
ma festa, não estaria a estudar, mas sim em casa, com o
marido e, provavelmente, com os filhos.

Não é possível desligar a libertação sexual, o acesso das


mulheres à educação, a desagregação ou inexistência da
família do problema migratório. A apatia e o hedonismo

90
que levaram a uma coisa levaram também a outro. E
mesmo que se resolva um dos problemas, mantém-se o
problema original que levou à sua existência.

A Direita em geral concorda na identificação dos pro-


blemas, e concorda com as soluções directas, mas é duvi-
doso que concordem com a identificação das causas mais
profundas que estão na origem destes problemas.
Rapariga Finlandesa Assassinada
Uma rapariga Finlandesa de 17 anos foi assassinada por
um rapaz Afegão que a violou, encharcou em gasolina e
lhe pegou fogo. O contexto? Namoravam há um mês
quando a rapariga quis acabar a relação para namorar
com outro homem, enquanto que o namorado queria que
ela se casasse com ele e fosse mãe dos seus filhos. Como
ela não cooperou, ele atacou-a enquanto ela fazia jogging.
Seja ou não verdade o que o ‘refugiado’ disse sobre que-
rer casar e ter filhos, importa pouco para ilustrar a falha
moral da parte da rapariga, que é o que me importa do-
cumentar.

Penso que não preciso de repetir a ladainha. O problema


é exactamente o mesmo, apenas a manifestação é ligei-
ramente diferente, com outro cenário e noutro país. Mas
a patologia social não muda.

Violação e violência na Suécia

91
Três raparigas adolescentes e um rapaz encontram-se
para uma festa num apartamento nos arredores de Esto-
colmo.

Uma das raparigas convidou um emigrante da Libéria de


21 anos, que já conhecia. Este trouxe outro emigrante, do
Quénia. Pouco depois, os dois emigrantes atacariam o
rapaz (deixando-o com danos cerebrais permanentes) e
violariam as raparigas.

Este é o último exemplo que aqui apresento. Tal como


nos exemplos acima, revela exactamente o mesmo hedo-
nismo, a mesma apatia, a mesma hipergamia feminina
fora de controlo, a mesma efeminação masculina que é
implícita ou explícita (um dos exemplos que não incluí
foi de uma jovem, se não me engano italiana, que convi-
dou um ‘refugiado’ para o seu apartamento para ter sexo,
e que foi depois encontrada morta pelo namorado, Euro-
peu – o exemplo perfeito da falta de lealdade de que fa-
lamos).

Conclusão
Note-se que não mencionámos absolutamente nada (pois
já muito se disse noutras paragens) sobre a política e os
políticos, as decisões judiciais e os seus decisores, os or-
ganismos oficiais e instituições, etc, que vão maioritaria-
mente no sentido da leniência para com os criminosos, de
abertura das fronteiras e de apoio aos ‘refugiados’ a to-

92
dos os custos. E também não mencionámos os atentados
terroristas que são paralelos a estes outros crimes pontu-
ais. Estes outros resultados são causados, ou no mínimo
facilitados, pela mesma apatia para que chamamos a
atenção.

Esquecendo portanto esses outros fenómenos a nível ins-


titucional, a nível individual a verdade é que encontra-
mos caso atrás de caso em que são os Europeus (e em
especial as Europeias) a convidar a sua própria destrui-
ção, seja num sentido mais global de quererem os ‘refu-
giados’ dentro das suas fronteiras, seja num sentido mais
particular de os quererem dentro das suas casas e dos
seus corpos. Caso atrás de caso em que a alienação, o he-
donismo, a apatia, a desagregação da família e da comu-
nidade, a falta de entraves à hipergamia feminina, a efe-
minação e impotência masculina, em suma, a morte espi-
ritual dos Europeus, são a linha melódica que liga os vá-
rios movimentos desta sinfonia trágica.

E é indiscutível que existem muitos outros casos em que


as vítimas (ou os pais das vítimas) não têm qualquer res-
ponsabilidade passiva, em que não procuraram a morte
mas a encontraram na mesma às mãos dos bárbaros, mas
arriscaria dizer que a maioria, senão uma esmagadora
maioria, destes crimes se encontra na primeira categoria
de ‘morte convidada’, e ignorar esta disposição suicidária
nos Europeus é ignorar uma parte importantíssima da

93
história, sem a qual o problema migratório não existiria
em primeiro lugar, nem é passível de ser entendido e lo-
go, de ser resolvido, satisfatoriamente e de uma vez por
todas.

O facto é que existem igualmente inúmeros outros casos


de mulheres que procuram os ‘refugiados’ para sexo sem
que tenham o desfecho violento que vimos nos casos
acima, que sublinham a mesma falta de lealdade, o mes-
mo hedonismo, a mesma apatia, o mesmo suicídio.

Podemos rever alguns dos mais conhecidos. Como o


da rapariga Mórmon americana que, ao invés de ajudar
as pessoas na sua comunidade, decidiu ir para um campo
de refugiados na Grécia e acabou por se ‘apaixonar’ por
um deles.
Ou as inúmeras mulheres suecas que levam ‘refugiados’
para casa que, supostamente, são menores de idade para
terem relações sexuais com eles. As mesmas mulheres
que, apesar do aumento enorme do número de viola-
ções, quando alguns, poucos, homens Europeus decidem
protegê-las dizendo para os emigrantes tirarem as mãos
das suas mulheres, elas respondem dizendo que não são
deles coisa nenhuma.

Ou as também inúmeras mulheres britânicas que foram


fazer voluntariado para a ‘selva’ de Calais para ter sexo
com os ‘refugiados’, algumas com vários em cada dia.

94
O episódio mais grotesco, e ao mesmo tempo mais icóni-
co, é o da mulher Italiana a ter relações sexuais com um
‘refugiado’ africano em cima de uma pilha de lixo.
Orwell escreveu há umas décadas atrás que se quisésse-
mos uma imagem do futuro que imaginássemos uma
bota a pisar um rosto, para sempre. Orwell, no entanto,
provou ser extremamente ingénuo. Acho que podemos
actualizar a frase e dizer, que se querem uma imagem do
futuro Europeu imaginem um ‘refugiado’ a ter sexo com
uma Europeia sobre uma pilha de lixo, para sempre. En-
quanto não mudarmos o ímpeto na alma Europeia de se
rebaixar a tal forma, de se destruir tão ilustrativamente,
não podemos mudar nada.

Mas como evitar este futuro? Infelizmente não existem


soluções fáceis nem instantâneas. O que sei por certo é
qual não é a solução. E a solução não é continuarmos com
um liberalismo, permissividade, matriarcado, degenera-
ção puramente brancos. A solução não é removermos os
imigrantes e continuarmos a indulgência no hedonismo
que resulta na apatia que os convidou em primeiro lugar
e que os continua a convidar. Afinal de contas, ainda não
há muitas décadas os nossos países eram homogéneos, e
essa homogeneidade resultou neste destino. Já existia
algo de muito errado nas nossas sociedades, e nas almas
das pessoas que a constituíam.

95
O nosso suicídio não será menos estrondoso, nem menos
trágico, se for consumado apenas entre Europeus. Sem
uma mudança estrutural, não só política, mas espiritual
(sem a qual a política não pode suceder), sem retornar à
tradição Cristã, ao patriarcado que o Ocidente rejeita mas
que o Islão, bem ou mal, representa, o Ocidente não tem
salvação. A luta não será sequer uma luta. A sociedade
patriarcal vai vencer. Será simplesmente uma questão de
saber se será a nossa, ou a deles.

96
A Apologia da Ignorância

«Ignorância é felicidade e eu quero que o meu povo seja feliz»

A frase, por vezes atribuída a Salazar, cuja veracidade da


atribuição não conseguimos averiguar, é apontada,
quando é, em modo de escárnio e nojo pelos seus inimi-
gos – querendo com isso atacar o homem pela sua supos-
ta vontade de manter o povo ignorante para poder, des-
poticamente, controlá-lo. Aqui não é tanto a veracidade
histórica que pretendemos discutir, mas a sabedoria in-
trínseca da afirmação, defender a sua intenção e fazer
uma apologia da ignorância – e explicaremos a seu tem-
po o que queremos dizer com isto. Ou seja, se Salazar a
tivesse dito, teria o nosso apoio e compreensão: o povo
será sempre ignorante, e mais vale que o seja em consci-
ência, do que inconsciente, podendo assim ser feliz na
sua condição, e a governação continuar sem impedimen-
tos criados pela soberba dos ignorantes. Ou seja, o exacto
contrário do que acontece com o regime presente.

Em jeito de introdução, convém apontar que a ideia de


que o Estado Novo quis manter a população ignorante
através do analfabetismo generalizado é em si mesma um
produto da ignorância, um mito criado pelas cliques
cosmopolitas que governam Portugal desde o 25 de

97
Abril, e que através das suas estruturas propagam a sua
estirpe especial de ignorância disfarçada de sabedoria.
Apenas mais uma das mentiras torpes que o regime no-
vo, fundado na rejeição do antigo, é obrigado a perpetuar
para se justificar. Consultando os dados sobre literacia e
analfabetismo, tal como de investimento na educação,
durante o Século XX em Portugal, vemos claramente um
esforço e uma conquista da parte do governo do Estado
Novo em remover o grosso do analfabetismo e em pro-
mover a educação básica aos seus cidadãos. E no entanto,
apesar da descida do analfabetismo ter continuado até
praticamente ser zero nos nossos dias, os mitos sobre o
Estado Novo permanecem contra toda a evidência, fun-
dados numa ignorância voluntária da maioria da popula-
ção. Se pensarmos que esta ignorância não se encontra
somente nas classes mais baixas, desinteressadas do es-
tudo e das questões da governação, a quem não aquece
nem arrefece questões abstractas e intelectuais como os
destinos do país, mas também – e com grande ênfase –
nas camadas intelectuais, naquelas cuja vocação é preci-
samente congeminar, analisar, escrever e propagar ideias,
vemos ilustrado o abismo entre as pretensões democráti-
cas do votante informado e a realidade crua da natureza
humana.

Entreviste-se o estudante médio de Ciência Política, de


Filosofia, de História, ou até o graduado, ou o professor,
e observe-se a ignorância voluntária a que se acomoda, a

98
ausência de capacidade crítica, a disposição para aceitar
todos os lugares comuns do seu tempo sem nunca os
questionar, e conclua-se que educação e ignorância não
são mutuamente exclusivos. A ignorância é o estado na-
tural do Homem. Independentemente das ferramentas
que se lhe oferecem, o cidadão comum vai continuar
agrilhoado na Caverna, interpretando as sombras como
realidade, mesmo tendo as chaves dos grilhões na mão e
um manual de fuga na outra. Isto sem se falar na outra
fatia populacional de quem não se espera qualquer afron-
tamento teórico abstracto, mas a quem a doutrina demo-
crática também atribui responsabilidade na sua liberta-
ção. Os democratas esperam que uma vaca toque piano e
surpreendem-se quando ela é incapaz de sequer perceber
para que servem as teclas – mas se por acaso produzir
meia dúzia de sons desconexos, tomam-no como evidên-
cia de que as vacas, de facto, podem ser pianistas. A pou-
co mais que isto se resume o sistema eleitoral de sufrágio
universal.

A doutrina democrática assume, porque tem de assumir,


que o povo é capaz de escolher os seus representantes,
assim decidindo por interposta pessoa, os destinos do
país. Mas só uma ingenuidade mortal, ou uma malevo-
lência premeditada, poderia levar a que proclamássemos
tão clara mentira como sendo a verdade. Mas sendo o
regime fundado nessa mentira, as estruturas exteriores
têm de se conformar a ela, sob pena de todo o edifício

99
ruir. Daí nasce a obrigatoriedade da escolaridade muito
para além do necessário ao desempenho da maioria das
funções requiridas para o funcionamento da sociedade,
primeiro até ao nono ano, depois até ao décimo segundo,
e eventualmente, dada a parvoice progressiva do nosso
sistema, até à licenciatura. Este estado de coisas só pode
advir das duas origens que mencionámos, pois é por de-
mais óbvio que a extensão da obrigatoriedade, ao invés
de elevar o conhecimento e o pensamento crítico dos ci-
dadãos, rebaixa a relevância e profundidade do ensino,
reduz a motivação e dedicação dos professores, forçados
a lidar com miúdos sem interesse no que lhes estão a ten-
tar ensinar, e necessariamente faz cair as exigências de
conhecimento para que a promoção deste novo patamar
não resulte em inúmeras desistências do salto, ou em sal-
tos que não elevem o atleta à altura desejada. A isto se
chama reduzir ao mínimo denominador comum, tarefa
que nenhum outro sistema concretiza com tamanha mes-
tria como o democrático.

Quando Eva e Adão comeram o fruto da Árvore da Sa-


bedoria não souberam o que fazer com o seu novo co-
nhecimento. Também a maioria da população não sabe o
que fazer com o que lhe ensinam para além das artes de
contar, ler e escrever. Não sabem porque não lhe vêem
qualquer préstimo, não lhes dá mais oportunidades de
serem homens produtivos e morais, não lhes permite
uma mundividência mais completa, pois incompleta será

100
sempre a mundividência dos simples. No entanto, em
grande parte, convence-os de que têm agora capacidade
para compreender e opinar sobre assuntos que de facto
não compreendem e cujas opiniões não são, na verdade,
suas, mas regurgitadas em segunda mão com origem em
figuras de autoridade – para mais, em muitos casos, ca-
racterizados por uma arrogância natural e uma aversão a
trabalhos manuais para os quais serão, na verdade, mais
dotados. Mostrem-nos um ignorante orgulhoso, e nós
desvendamo-vos um universitário moderno. Mas o igno-
rante convencido da sua sabedoria continuará, na verda-
de, mais interessado na baixa cultura do seu tempo, cren-
te sem crítica nas convenções que lhe colocam à frente
dos olhos como verdadeiras, ingenuamente interpretan-
do as notícias e os seus veículos como fidedignos, ouvin-
do os seus professores como autoridades, incapazes de
entender que eles foram e são como eles – ignorantes
que, na verdade, não dão para muito mais.

A maioria da população, agora como sempre, é atraída


quase exclusivamente por pães e actividades circenses –
sendo o tipo de pão e o tipo de circo as únicas variáveis.
E isto não é uma crítica, é uma apologia. O que nos sepa-
ra do pensamento vigente é, em primeiro lugar, reconhe-
cer esta inevitabilidade, sejam quais forem os anos obri-
gatórios de escolaridade e as exigências cívicas dos cida-
dãos, e em segundo, não lamentarmos essa condição,
pois fingir que se pode evitar o inevitável, como já dis-

101
semos, só pode ser produto de ingenuidade ou de male-
volência. E como tal, prescrevemos um sistema que leve
em conta esta realidade, um sistema que não finja que
todos podem e devem ser filósofos-reis, quando a maio-
ria não serve para bobo da corte. Consideramos uma
aberração que se peça opiniões e se exijam decisões sobre
o mundo real, a quem só o conhece pelas sombras reflec-
tidas nas paredes.

Quando a Revolução Protestante declarou que o comum


mortal podia, e devia, interpretar a Bíblia pelas suas pró-
prias luzes, abriu-se a Caixa de Pandora das mais torpes
e idióticas interpretações, tudo e o seu contrário podia ser
encontrado nas Escrituras a partir desse momento, e com
efeito, encontrou-se – pois se há matéria infindável no
universo é a da estupidez humana. Em vez de ser um
veículo para procurar a Verdade única, foi o meio de a
esconder e soterrar em mil mentiras. O mesmo se pode
dizer do presente zeitgeist, em que perante a infindável
biblioteca da Internet, o cidadão comum continua mais
interessado na vida das celebridades, nas novelas e fil-
mes e músicas da baixa cultura em que elas se distin-
guem sem distinção, no futebol e nas suas narrativas,
exercendo a sua capacidade crítica em assuntos em que
ela não tem préstimo, porque não dão para mais e simul-
taneamente aceitando sem crítica, sem a sombra de uma
dúvida, o que um actor que se convencionou chamar de
pivô lhe diz todas as noites ou todas as manhãs sobre o

102
país e o mundo. Porque, repetimos, não é capaz de mais,
e é um ultraje, uma irresponsabilidade e uma violência
exigir-lhe mais. Mas exige-se, com resultados atrozes.

A diferença entre um electricista com a quarta classe du-


rante o Estado Novo e um universitário dos nossos dias é
que o electricista não tinha a soberba de achar que a sua
opinião valia muito fora dos limites do seu mister; o anti-
go tinha a humildade de dizer ‘não sei’ e aquela ainda
maior de dizer ‘não quero saber’. Isso, e provavelmente
escrevia melhor o português. Por esta ignóbil situação
temos de agradecer aos sucessivos aumentos da escolari-
dade obrigatória e à estupidez congénita de perguntar a
todos aquilo que só alguns podem saber. Afinal, são
aqueles que agitam os fantoches formando as sombras
que iludem o cidadão comum, os mesmos que perpetu-
am a mentira de que este vê a realidade tal como ela é.

Por isso fazemos a apologia da ignorância, não porque


gostemos dela mas precisamente por não gostarmos. Um
sistema que finge que ela não é o destino da maioria, está
condenado a generalizá-la e a dar-lhe poder, em vez de a
limitar e a manter inofensiva. Devolvamos ao povo o pri-
vilégio de ser ignorante sem culpa, e devolvamos aos
capazes o dever do governo sapiente.

103
Sorriso de Raposa

Malcolm X é uma daquelas figuras que


o zeitgeist moderno prefere não mencionar. Ao contrário
de Martin Luther King, sempre aplaudido por todos os
quadrantes por se encaixar nos desígnios das elites e
promover todos os lugares comuns da nossa era, Mal-
colm X não faz parte dos santos seculares da historiogra-
fia oficial, pois era primeiramente conhecido por ser um
opositor da integração entre os pretos e os brancos na
América e favorecer o separatismo radical, uma ideia que
levou inclusivamente a que se sentasse à mesa com diri-
gentes do Ku Klux Klan para discutir esta solução, de-
monstrando que a História muita vezes não é tão simples
como a narrativa oficial faz crer. O que me leva a menci-
oná-lo aqui, no entanto, não é a sua defesa do separatis-
mo racial, mas a exposição de uma outra ideia que tam-
bém desafia a narrativa oficial.
Neste video, Malcolm X explica que a Esquerda na Amé-
rica age como defensora dos pretos americanos sem ter
no entanto qualquer intenção de os ajudar, em contraste
com a Direita, que não finge ter os pretos nas suas preo-
cupações nem tem a pretensão de avançar as suas causas.
Nem a Esquerda nem a Direita têm os interesses dos pre-
tos em conta, segundo ele, mas a Esquerda, como uma
raposa, diz que sim, sorrindo. A Direita, como um lobo,
mostra os dentes por outras razões. Tendo isto em conta,

104
Malcolm X conclui que a Esquerda é muito mais perigosa
para os negros do que a Direita.

Eu penso que podemos e devemos aplicar a mesma ana-


logia aos partidos e à intelligentsia de Direita em relação
aos tradicionalistas. Os tradicionalistas sabem que a Es-
querda não lhes tem qualquer simpatia e os antagoniza
abertamente, mostrando-lhes os dentes com a intenção de
atacar. A Direita mainstream, pelo contrário, como a ra-
posa, pretende fingir-se amiga (ou pelo menos simpati-
zante) dos tradicionalistas, sorrindo, ao mesmo tempo
que nas suas ideias e acções avança, premeditada ou in-
genuamente, uma agenda completamente distinta, avessa
e hostil à causa tradicionalista.

A Direita mainstream em Portugal (e no resto do Ociden-


te) tem essencialmente duas bandeiras: a liberdade indi-
vidual e a eficiência económica. A “Direita dos costumes”
como lhe chamaram outrora, para todos os efeitos, na
esfera mediática e partidária, não existe. Este fenómeno
encontra-se muito bem sumarizado num excerto deste
texto:
«A dimensão [dos] costumes tem sido menosprezada desde que
o marxismo impôs o primado da economia, e antes de Marx já
os liberais e os utilitaristas também davam maior importância à
economia. Essa primazia não diminuiu, pelo contrário, com o
aumento do rendimento e do conforto dos povos. A economia
passou a ser o terreno onde se confrontavam as propostas polí-

105
ticas. (…) À direita, o vazio ideológico e a fraqueza política,
aceitou-se a ditadura do politicamente correto. novo paradigma
de revolução social. (…) a direita, jótica ou degenerada, aban-
dona o combate cultural e adopta o niilismo relativista da es-
querda. A direita socializou-se. Os valores passaram a ser ro-
dapés de discursos eleitorais. Os políticos de direita aplaudidos
pelos média são os que defendem o liberalismo de costumes,
ainda que militem num partido democrata-cristão…».
Os tradicionalistas observam esta capitulação da Direita
mainstream àquilo que chamam de ‘marxismo cultural’ e,
até certo ponto, apontam-na como uma traição, para a
qual não existe grande explicação fora da respeitabilida-
de profissional e da promoção pessoal. Eu considero no
entanto que há um mal de raiz na matriz bipolar da Di-
reita moderna, e que, apoiando o liberalismo económico,
é apenas lógico e natural que apoiem o liberalismo social.
São os Liberais com visões sociais tradicionalistas que
estão em grave contradição.

Parte do problema começa no termo com que se designa


a ideologia que pretende destruir todas as relações hie-
rárquicas da sociedade tradicional através da destruição
da moral que as sustenta: ‘marxismo cultural’. O termo é
mal empregado porque, na prática e na teoria, não há
melhor veículo para o relativismo moral, para a destrui-
ção das estruturas tradicionais e da moralidade subjacen-
te a esta do que o liberalismo económico – e que portan-
to, e apesar das origens intelectuais dos seus promotores

106
originais, o termo deveria ser ‘liberalismo cultural’ (o
termo que prefiro, no entanto, é simplesmente ‘relativis-
mo’). ‘Marxismo cultural’, apontando o epíteto dos seus
promotores originais, esconde o veículo pelo qual ele se
perpetua com sucesso. É inegável que os revolucionários
culturais que deram origem à teoria se designavam como
marxistas, mas foi no país mais liberal do mundo e prin-
cipal baluarte dessa ideologia económica que a semente
encontrou terreno fértil.

De onde vêm as modas e tendências que, ano após ano,


destroem o tecido social? De onde vem o entretenimento
que serve de veículo à propaganda relativista e que é
responsável pela disseminação destas ideias? Vem dos
países marxistas ou dos países capitalistas liberais? Não
são as multinacionais – representantes maiores do capita-
lismo liberal e da globalização – os principais motores e
promotores da imigração de massas, da bastardização da
cultura, da ausência de identidade nacional e comunitá-
ria, da criação do homem-novo consumista, dos desvios e
desviantes sexuais, dos estilos de vida alternativos, da
sobresexualização da sociedade e da sexualização preco-
ce – em suma, de todos os cancros sociais a que nos opo-
mos? E que, muito mais do que através da retórica políti-
ca esquerdista e da propaganda a que são submetidos na
escola, é através do progresso tecnológico e do capitalis-
mo global que estas ideias demoníacas se inculcam nas
mentes do povinho?

107
Não observamos também que, nas sociedades que esta-
vam fechadas ao capitalismo global, as mesmas ideias,
promovidas agressivamente pelo sistema político, não
medraram ao longo de décadas da mesma forma que se
infiltraram, pela calada, nos países liberais? Como expli-
camos que os países de Leste, sujeitos a ditaduras marxis-
tas agressivas, sejam hoje os únicos onde ainda existe al-
guma identidade nacional, rejeição da imigração de mas-
sas e dos ‘estilos de vida alternativos’ e onde o Cristia-
nismo ainda é relevante, não só na vida comunitária, mas
nos destinos nacionais? A explicação é simples: ao con-
trário do Ocidente, o Leste esteve insulado do capitalis-
mo global e, portanto, da lenta subversão dos valores
tradicionais, que só a riqueza e o conforto conseguem
promover e enraizar com extrema facilidade. A tragédia
para estes países é que caso não tomem medidas para
limitar as consequências económicas da globalização, as
suas sociedades, tornando-se mais prósperas, vão con-
trair o vírus do relativismo liberal e acabar por destruir
aquilo que cem anos de comunismo não conseguiram
destruir.

Tendo nós uma visão sã do Homem e da Sociedade Hu-


mana, e sabendo que a liberdade de escolha leva necessa-
riamente, na maioria da população, a um nivelamento
por baixo, podemos continuar a ignorar que é através do
liberalismo económico que aquilo que consideramos sa-
grado vai sendo destruído, lentamente, contaminando os

108
nossos compatriotas, as nossas famílias, os nossos filhos?
Que muito antes de ser legalmente enquadrado pelo Es-
tado, o relativismo moral e cultural foi propagado atra-
vés da sociedade de consumo massificado e da globaliza-
ção?

Há quem considere a promoção do liberalismo nos cos-


tumes pela Direita uma aberração, mas na verdade não
há contradição: a sua defesa da economia liberal, do pro-
gresso tecnológico, da eficiência económica anda de mãos
dadas com a destruição do tradicionalismo. Não é pois
de estranhar que a Esquerda dite o discurso e a Direita o
aceite, pois pela sua própria moldura ideológica, não tem
meios de o rejeitar. Reparem que não estamos a argu-
mentar que o capitalismo liberal não é o mecanismo mais
adequado para melhorar o nível de vida dos cidadãos: é
inegável a eficiência do sistema em produzir riqueza ma-
terial. O que estamos a argumentar é que a forma radical
com que remove a pobreza material promove, na mesma
medida, a pobreza espiritual e moral.

Na busca da prosperidade e do progresso tecnológico, na


procura de melhorar o bem estar económico dos cidadãos
e de tornar eficientes os mecanismos para esse melhora-
mento, a Direita promove o veneno que infecta o espírito
da nação. É ingénuo achar que as mudanças económicas
radicais que o capitalismo opera podem deixar
as estruturas sociais intactas. O capitalismo procura con-

109
sumidores (a única categoria que lhe interessa) e sendo
que a eficiência na obtenção desses consumidores é de
suprema importância para a maximização dos seus lu-
cros, a promoção de valores anti-tradicionais é inevitável,
mais, é uma necessidade: a uniformização cultural, naci-
onal e racial (através da plebeização da cultura, da pro-
moção do internacionalismo e da imigração de massas) e
a atomização do indivíduo (através da promoção de ‘esti-
los de vida alternativos’) são os veículos pelos quais se
obtém o consumidor perfeito, ou seja, que se maximiza o
lucro. O sonho do Internacionalismo Comunista só é con-
seguido, paradoxalmente, através do capitalismo liberal.

A Direita Liberal que ainda vai mostrando, pouco e espo-


radicamente, algum interesse pelas questões culturais e
morais, ignora este fenómeno e vive numa dissonância
cognitiva. Eu ignorei-o durante vários anos apesar dessa
dissonância. O Liberal vê a liberdade como a ausência de
coerção pelo Estado, mas não vê a servidão imposta pelo
capitalismo liberal, em que o homem é desligado da sua
nação, da sua comunidade e até da sua família, pela
promoção de uma cultura uniformizadora, degenerativa
e ultra-individualista, que mina as fundações dessas rela-
ções primordiais. O homem moderno é tão indefeso pe-
rante o capitalismo liberal como o era perante o comu-
nismo, a diferença é que no primeiro está bem alimenta-
do, em conforto, e as suas raízes vão sendo arrancadas

110
lentamente, sem se aperceber, e portanto, muito menos
susceptível de se revoltar.

Concluímos portanto que o facto da Direita moderna ser


liberal nos costumes (como a Esquerda), mas também
liberal na economia (ao contrário da Esquerda), faz com
que a Direita seja na prática uma ameaça maior à socie-
dade tradicional, ou o que dela resta. A sua combinação
de liberdade individual e eficiência económica é a receita
perfeita para a realização prática do relativismo: a desa-
gregação da família, a destruição das instituições inter-
médias, a atomização do indivíduo. Ou seja, um tradici-
onalista tem muito mais a temer da Direita mainstream
do que da Esquerda. Até a Direita abandonar o liberalis-
mo económico o tributo que presta aos valores tradicio-
nais não passa de um sorriso da raposa.

111
Maio de 68

O João Carlos Espada (JCE) publicou um texto no Obser-


vador que ilustra a vacuidade moral, a obsessão econo-
micista e, sobretudo, a incapacidade de observar o mun-
do à volta e admitir um erro que caracteriza a Direita
moderada.

A mundividência do JCE, talvez pela idade, talvez por


teimosia, ou talvez por ser um marxista arrependido da-
queles que se converteu tarde ao anti-Comunismo, não
consegue conciliar a ideia de que o Capitalismo sem en-
traves e o relativismo moral andam de mãos dadas. Ou
se consegue, continua a achar que os benefícios do pri-
meiro justificam a iniquidade do segundo. Mais: se tiver
de escolher, e não está sozinho nessa escolha, prefere que
o capitalismo liberal continue, mesmo que para isso se
tenha de destruir toda a moral absoluta, toda a identida-
de nacional e substituir as populações nativas por alóge-
nos.

Não estou a exagerar quanto às opiniões da personagem.


O próprio não tem problemas em admitir a total falência
da sua filosofia, ou aliás, em ver a falência como uma vi-
tória: «a legalidade da “República burguesa” saiu vitoriosa; e
isso permitiu a vitória pacífica de muitas das ideias de Maio de
68.» E que ideias eram essas? Não as económicas, não o

112
anti-capitalismo, a rejeição do sistema usurário internaci-
onal ou a oposição à sociedade de consumo. As ideias
que saíram vitoriosas, e que tomaram conta da sociedade,
foram as culturais: o relativismo moral e a liberdade ab-
soluta do hedonismo que o acompanha. O JCE considera
isto uma vitória, sem ironia. Mais, ele próprio admite
que, sem a democracia e o capitalismo, essas ideias teri-
am sido impedidas de medrar: «a verdade é que, devido a
essa vitória da “oligarquia burguesa”, as ideias libertárias de
Maio de 68 puderam continuar a ser livremente defendidas —
o que evidentemente não teria acontecido se tivesse ocorrido a
revolução comunista.»

Se acham que estamos a citar fora do contexto, oferece-


mos a palavra ao JCE num parágrafo inteiro que sumari-
za toda a tragédia da sua mundividência:

«Muitos comentadores discutem hoje que avaliação devemos


fazer das ideias libertárias de Maio de 68. É certamente um
tema importante. Mas não creio que seja o essencial. O essenci-
al é que, contra os anseios revolucionários de Maio de 68, a
França permaneceu “burguesa” — isto é, livre e democrática.
Por essa razão, pôde absorver muitas ideias de Maio de 68. Pela
mesma razão, pôde e continua a poder também contrariá-las.»

As ideias libertárias a que se refere são as do relativismo


moral que conquistou o Ocidente, aquele que destrói as
relações hierárquicas na sociedade, que despreza os valo-

113
res tradicionais, que envenena as relações naturais entre
homens e mulheres, que idolatra a sodomia e os sodomi-
tas, que esbate a coesão e identidade nacionais, que im-
porta milhares de alógenos do terceiro mundo, que eleva
o hedonismo e a ‘realização pessoal’ à razão de viver e ao
objectivo a que todos devemos almejar. O JCE considera
as concessões feitas em 1968, e por consequência os seus
resultados, como algo que devemos aplaudir. Salvámos a
democracia e o liberalismo, salvámos a pureza ideológi-
ca, e o resto que se lixe. Aqui aproxima-se mais dos ideó-
logos dogmáticos do Comunismo original, indiferentes
aos resultados que a sua ideologia produz, do que do
pragmatismo racional que é suposto representar.

Na sua obsessão económica, o JCE esquece que o Maio de


68 começou, não com as greves, mas com a ocupação das
universidades e que este foi um prenúncio da subsequen-
te e gradual ocupação, muito mais radical, permitida pela
sua querida democracia liberal burguesa e que hoje é,
sem grande protesto da Direita, o status quo académico.
Mas olhando de momento para a questão puramente
económica, convém pensar como se conseguiu mobilizar
toda a classe trabalhadora industrial (poderíamos dizer, o
proletariado) para um protesto de tão massiva escala. A
intelligentsia moderna que explica o apoio aos Nacional-
Socialistas na Alemanha de Weimar meramente pela ma-
lícia da propaganda e do populismo, como se não hou-
vessem razões para a população procurar alternativas à

114
decadência total da república em questão, explica com a
mesma cegueira os distúrbios proletários de Maio de
1968. Num caso como no outro, a Direita ignora ou me-
nospreza as origens do fenómeno com a iniquidade ou
ineficiência das soluções promovidas, como se não hou-
vessem razões profundas para a revolta. Em 68 tinham-se
passado mais de 20 anos desde a grande reorganização
ideológica da indústria no mundo moderno, em que a
capacidade produtiva Europeia se começava a exportar
para a Ásia e América do Sul, e em que a inflação usurá-
ria se fazia sentir sobre o poder de compra e sobre a qua-
lidade de vida que os trabalhadores podiam dar às suas
famílias. A sua estratégia era errada e as suas alianças
ignorantes, mas as suas preocupações eram válidas.

Os trabalhadores juntaram-se aos estudantes porque jul-


garam que as suas preocupações eram aliadas naturais
das causas libertárias dos relativistas morais. Estes traba-
lhadores, com famílias para alimentar, não tinham capa-
cidade nem disposição para perceber que a Esquerda Ra-
dical que ocupara as universidades (e a que, diga-se, o
Partido Comunista Francês da época se opôs), queria tan-
to saber das suas aspirações mesquinhas de estabilidade
laboral e salários que lhes permitissem manter as suas
estruturas familiares intactas como os capitalistas. A Es-
querda Radical queria sexo, drogas e rock n’ roll, como
hoje quer sodomia, imigração de massas e mutilação ge-
nital. Note-se que, passados 50 anos, a classe trabalhado-

115
ra ainda não percebeu a grande traição daqueles que lhes
prometeram protecção e que em vez disso lhes deram
hedonismo. Na última década, as novas gerações das
classes trabalhadoras, já sem nada que reivindicar, sem
famílias para proteger, sem trabalhos para manter, junta-
ram-se a eles, preferindo o hedonismo. Mas não os cen-
suremos demais, pois de um lado e do outro não houve
quem lhes oferecesse nada de melhor e da plebe não se
pode, nem deve, esperar mais. O trágico é que, defen-
dendo o contrário, os Comunistas percebiam este truís-
mo. Os liberais acharam que, sem pressões sociais, os
valores tradicionais da plebe se manteriam intactos pe-
rante a grande subversão relativista que o seu sistema
permitia.

Em Maio de 1968 era talvez natural e compreensível


achar-se que a maior ameaça aos valores tradicionais vi-
nha do Comunismo, não só pela ideologia, como pelo
poder político que representava e pelas alianças culturais
que mantinha no Ocidente (isto é, os relativistas morais).
Meio século depois, os opositores do Comunismo, se o
eram por razões morais (e hoje é difícil dizer se de facto o
eram ou não), deveriam admitir o erro que cometeram ao
promoverem o Liberalismo como força de oposição. Afi-
nal, os valores que se combatiam em 68 não eram apenas
económicos, e foram esses outros que ganharam a bata-
lha, não através do Comunismo, mas através do Capita-
lismo. Já aqui o dissemos e voltamos a repetir, a combi-

116
nação de mercado livre internacional e relativismo moral
é a força mais destrutiva dos valores tradicionais, sobre-
tudo pelo seu carácter progressivo e gradual, que não
facilita a identificação do fenómeno e que essa combina-
ção é absolutamente inevitável. Mas nem precisamos de
ficar presos à teoria. Observando o trajecto das democra-
cias liberais, bem como o trajecto paralelo que os países
comunistas efectuaram, só uma boa dose de vaidade e
dissonância cognitiva podem fazer com que não se admi-
ta o erro.

117
Progresso tecnológico e Globalismo

«The conservatives are fools: They whine about the decay of


traditional values, yet they enthusiastically support technolog-
ical progress and economic growth. Apparently it never occurs
to them that you can’t make rapid, drastic changes in the tech-
nology and the economy of a society without causing rapid
changes in all other aspects of the society as well, and that such
rapid changes inevitably break down traditional values.»

Theodore Kaczynski, Industrial Society and Its Future,


1995

Um dos argumentos mais usados pe-


la intelligentsia globalista para justificar a imigração de
massas para o Ocidente é o baixíssimo índice de fertili-
dade observado entre as populações nativas e a necessi-
dade de manter a população a um nível estável evitando,
desta forma, uma descida nos níveis de produtividade e
um colapso do sistema de pensões. Esquecendo a pers-
pectiva ‘conspiratória’ de que existem motivos ulterio-
res para as elites globalistas quererem esta solução, o ar-
gumento que apresentam é puramente económico – e
nessa sua miopia estão perfeitamente alinhados com a
Direita moderada, para quem a economia é o único ba-
rómetro político, social e cultural.

118
Este argumento pode ser rejeitado por várias razões, al-
gumas económicas e outras de cariz moral: a mais impor-
tante, a meu ver, não tem absolutamente nada que ver
com economia, e baseia-se no princípio moral de que
uma população deve manter a integridade étnica (e logo,
cultural) da sua nação ancestral. Acontece que este prin-
cípio, embora moralmente justificado, para ser aplicável
na realidade, obriga a que se façam considerações de or-
dem técnica. Podemos achar, e com razão, que os argu-
mentos e intenções dos globalistas são iníquos, mas te-
mos de concordar que o seu raciocínio não é totalmente
disparatado, sobretudo se quisermos manter ou aumen-
tar o nível de riqueza presentemente existente. Tendo em
conta o índice de fertilidade dos nativos Europeus, a Se-
gurança Social e semelhantes sistemas de transferência de
rendimentos de jovens para idosos é insustentável. Já o é
há várias décadas, e a combinação de declínio populacio-
nal e políticas inflacionárias promete destruir o sistema
por dentro, seja através da impossibilidade de o Estado
cumprir com os compromissos para com os beneficiários
ou de os cumprir para com os credores a quem se endi-
vidou para pagar aos beneficiários. É um problema ina-
movível e que exige uma solução.

A Direita moderada não tem preferência: desde que se


resolva, não importam os meios – mesmo que esses mei-
os sejam a substituição da população original por africa-
nos, árabes e ameríndios. Tendo em conta que esta subs-

119
tituição não implica uma reposição qualitativa, mas sim
quantitativa, que os imigrantes que invadem o Ocidente
não têm a mesma capacidade intelectual e produtiva dos
nativos, que uma boa parte deles adicionam custos em
vez de benefícios ao sistema, e que a economia mundial
necessita de cada vez menos mão de obra não-
especializada dada a automatização e o avanço tecnológi-
co (algo que já afecta as classes baixas e médias do Oci-
dente) as considerações conspiratórias ganham alguma
validade. Pelo que a Direita identitária rejeita obviamente
esta solução, tanto moral como economicamente, e em
contraposição diz que não precisamos de imigrantes,
precisamos somente de mais automatização e progresso
tecnológico. Com a automatização e o progresso tecnoló-
gico vem racionalidade económica, maior produtividade
e logo a libertação de recursos sem se sacrificar a produ-
ção de riqueza, permitindo, em princípio manter o siste-
ma de pensões mesmo perante uma população envelhe-
cida e uma diminuição da população activa. A automati-
zação permite já, e permitirá cada vez mais, a realização
de inúmeras tarefas de forma menos dispendiosa do que
a prévia necessidade de se empregar as classes baixas e
médias, aumentando o nível geral de riqueza. O argu-
mento é ilustrado sucintamente neste video. Ao contrário
da Direita moderada e dos globalistas, a Direita identitá-
ria pode apontar para sociedades onde a sua solução já
está a ser praticada.

120
Para os identitários, o Japão funciona como o exemplo a
seguir. Uma sociedade envelhecida, sim, mas que, apesar
disso, continua a prosperar economicamente, cada vez
mais tecnologicamente avançada e que se mantém ainda
etnicamente homogénea, e logo largamente livre do cri-
me violento ou de propriedade, ao ponto de a polícia não
ter o que fazer. No entanto, penso que é algo ingénuo
olhar para o Japão como uma história de sucesso, quando
essa história pode ser mais correctamente descrita como
uma tragédia. Se as afirmações acima sobre a sociedade
Japonesa são verdadeiras, é preciso no entanto olhar para
o abismo social e moral em que o país caiu – não apesar
delas, mas por causa delas. Neste mini-documentário,
vemos a profundidade da decadência para lá dos núme-
ros, aquela que não podendo ser quantificada, pode ser
observada e sentida. Esta é uma sociedade altamente dis-
funcional, um pesadelo kafkiano de hotéis capsula,
de homens herbívoros, de hikikomoris, em que homens e
mulheres não têm interesse no sexo oposto, em que a fi-
gura do funcionário ideal da corporação se realiza na
sua mais assustadora representação – e mesmo isso não
sendo suficiente para satisfazer as necessidades de uma
sociedade altamente competitiva – em suma: o cúmulo
da sociedade materialista. O desenvolvimento tecnológi-
co que tornou o Japão numa história de sucesso económi-
co foi o mesmo que tornou os seus cidadãos meros autó-
matos ultra-materialistas, desligados da sua humanidade
e, logo, do próximo. E, sem alógenos violentos que, pelo
seu barbarismo, os lembrem da realidade pura e dura da

121
vida, têm liberdade e paz para adormecer num torpor
estéril de conforto. Não admira que uma tal sociedade
não produza progenitura. Para quê trazer crianças ao
mundo quando o mundo é um vazio absoluto? Os Japo-
neses são um retrato aterrador do futuro que a automati-
zação trará ao resto do mundo – se o permitirmos. No
fundo são uma ilustração humana da fossa comporta-
mental observada por John B. Calhoun na sua experiên-
cia com roedores. E na verdade, mesmo em países relati-
vamente atrasados (em comparação com o Japão), obser-
vamos já as mesmas consequências.

Mesmo deixando de lado considerações sobre a alienação


social, o problema demográfico é, pelo menos em parte,
um produto da sociedade pós-industrial. Tome-se, por
exemplo, o declínio nas contagens de espermatozóides
nos homens ocidentais, cujas origens particulares não são
objecto de concordância nos estudiosos mas em que to-
das as hipóteses são produtos do estilo de vida permitido
e apenas possível pelo rápido progresso tecnológico (a
comida altamente processada, o excesso de toxinas no ar,
os químicos na água, etc).
A solução para um problema não pode ter a mesma natu-
reza que a origem desse problema. Aquilo que permitiu a
baixa fertilidade e o envelhecimento nas nossas socieda-
des foi a automatização e o avanço tecnológico, a terciari-
zação da economia, o desligar da actividade económica
da capacidade de sobrevivência. Pelo que mais automati-
zação, mais avanço tecnológico e mais terciarização não

122
vão resolver o problema, mas sim complicá-lo. Quanto
mais removidas as pessoas estiverem das realidades da
natureza, quanto mais conforto e alienação, quanto mais
artificiais forem as suas vidas, mais fácil será subverter os
seus valores e destruir a sua humanidade.

É inegável que o relativismo moral propagado quer pelas


universidades quer pela sociedade de consumo e pela
Internet teve e tem um efeito devastador nas atitudes so-
ciais, incluindo aquelas directamente relacionadas com a
reprodução, a sexualidade e as relações entre os sexos.
Mas estas razões culturais são inseparáveis dos avanços
tecnológicos que as permitiram – e sem os quais a propa-
ganda que as promoveu não teria tido efeito, pois os re-
cursos materiais para os realizar não existiriam. Não só a
tecnologia permite disseminar a propaganda, mas as
próprias atitudes são possíveis apenas através dos meios
tecnológicos. Imagine-se, por exemplo, sexualidade des-
ligada da reprodução de forma generalizada sem contra-
ceptivos, transsexualismo sem técnicas avançadas de ci-
rurgia plástica, homossexualidade continuada sem medi-
camentos que mantenham as várias doenças propagadas
pela actividade sob controlo ou, para usar um exemplo
ainda mais simples, a própria medicina que permite que
pessoas, por mais ineptas ou irresponsáveis, sobrevivam
até uma idade extremamente avançada.

123
Eu costumava partilhar da ideia que a tecnologia era so-
cialmente neutra, isto é, que eram os homens e as suas
disposições que imprimiam a uma particular tecnologia
uma faceta benéfica ou maléfica. E até certo ponto é ver-
dade. Mas é preciso entender que a tendência natural no
Homem é para o mal devido à sua natureza caída. Como
diziam os antigos: a carne é fraca. E é igualmente impor-
tante compreender que não é tanto uma tecnologia em
particular que constitui o problema, mas o rápido e ex-
ponencial avanço da mesma, que leva à introdução de
uma ou outra ferramenta na sociedade sem que haja uma
consideração prévia das suas consequências para a socie-
dade. Os últimos 250 anos no Ocidente, quase sem excep-
ção, foram de ditadura científica e tecnológica – sob um
ou outro sistema político, a constante foi a primazia deste
progresso sobre todas as outras considerações e o con-
comitante desprezo por qualquer preocupação levantada
em relação a essa primazia. Salazar não prezava o ‘imobi-
lismo’ português, como os seus detractores o apelidavam,
nem o protegeu institucionalmente por uma questão de
pequenez provinciana, mas sim porque sabia que o pro-
gresso tecnológico veloz levava a uma igual revolução
nas estruturas sociais.

É óbvio que muita gente utiliza a tecnologia para fins


nobres, para procurar a verdade, para se tornar uma pes-
soa melhor e mais completa, para ajudar os outros, etc.
Mas, pela própria natureza humana, esses serão sempre

124
uma minoria. Esta realidade, no entanto, só tem conse-
quências sociais graves quando a tecnologia atinge um
ponto de sublimação – ou seja, quando se torna generali-
zada.

A melhoria das condições de vida desligada do esforço


individual não é uma estrada de sentido único. Estas me-
lhorias, sobretudo a partir de um certo ponto de desliga-
mento completo entre produção e sobrevivência, de con-
trolo e alienação quase absolutos da natureza, criam as
suas próprias estruturas mentais e culturais. As normas
tradicionais existem dentro de uma moldura civilizacio-
nal em que os homens têm de trabalhar para sobreviver,
estão sujeitos e, até certo ponto, limitados pelas forças da
natureza. Não admira pois que, quanto mais avançada a
revolução industrial e mais removidos os homens estão
destas condições naturais, menos as normas tradicionais
sejam seguidas ou vistas como válidas, e mais a promo-
ção dos estilos de vida alternativos se torne aceitável.

Veja-se algo tão simples como veículos motorizados. Es-


tes permitem percorrer distâncias relativamente longas
com facilidade, onde antes as mesmas distâncias eram
muito mais dispendiosas e difíceis. Por um lado, admiti-
mos todos os benefícios que trouxe, mas não nos pode-
mos admirar que esta mobilidade facilitada tenha ajuda-
do também a acabar com a proximidade comunitária,
que tenha levado a que a família estendida se transfor-

125
masse em família nuclear, que a educação das crianças
deixasse de ser um trabalho do bairro, da vila ou da al-
deia. Isto para ilustrar que até uma tecnologia que toma-
mos como garantida, tem implicações para a organização
social e enfraquece normas tradicionais de comunidade.

Outro exemplo do dia-a-dia pode ser encontrado nos


electrodomésticos. Tendo sido originalmente oferecidos
às donas de casa, para as ajudar nas tarefas diárias que
faziam parte dos deveres de uma mulher, rapidamente se
transformaram numa forma de libertação, não só dos as-
pectos mais cansativos da lida da casa, mas eventualmen-
te da própria casa. A mulher libertada pelos electrodo-
mésticos que não tinha de despender tanto tempo nas
tarefas domésticas criou a ‘dona de casa aborrecida’, su-
jeita a todo o tipo de propaganda da sociedade de con-
sumo, até eventualmente criar a mulher que entra no
mercado de trabalho, a mulher carreirista, as enormes
taxas de divórcio e mães solteiras, e por aí adiante.

Estes exemplos, e milhares de outros, sugerem que o ní-


vel de crescimento tecnológico, que é exponencial, não
linear, é rápido demais para que exista uma concordante
adaptação mental nas pessoas, gerando a disfunção e ali-
enação que caracterizam as nossas sociedades.

As pessoas gostam de imaginar, por exemplo, que os car-


ros conduzidos automaticamente vão libertar tempo para

126
as pessoas se instruírem, adquirirem novas capacidades,
criarem novas obras de arte, etc. Na realidade, o que vai
acontecer e acontece sempre é que as pessoas vão usar
esse tempo para ver pornografia, reality shows, tirar sel-
fies e jogar jogos de computador. Da mesma forma
que gostavam de imaginar que a Internet seria usada pa-
ra expandir o conhecimento e erudição do cidadão co-
mum, quando na verdade a maioria usa-a para satisfazer
impulsos primários e alienar-se do vácuo da vida mo-
derna através de entretenimento.
E repare-se que nem mencionámos os perigos que a Inte-
ligência Artificial e a modificação genética apresentam
para a humanidade, problemas distintos em natureza
daqueles que falámos acima, e que são o produto do pro-
gresso tecnológico exponencial quando não existem en-
traves institucionais, ou sequer considerações sérias so-
bre as consequências desse progresso.

Por isso a invasão imigrante é menos destrutiva a longo


prazo do que a crescente automatização e progresso tec-
nológico, precisamente por gerar mais sofrimento físico e
mais tensão – uma tensão e sofrimento que podem tra-
zer-nos de volta a um reconhecimento das realidades ba-
se da vida e que são essenciais para acordar o homem
moderno ocidental do seu torpor tecnologicamente indu-
zido. Quando tudo arde nenhuma mulher vai queixar-se
do patriarcado, nenhum homossexual vai insistir na sua
perversão. Se insistirem vão rapidamente perecer. Os

127
identitários gostam muito de falar nas práticas disgénicas
da nossa sociedade, mas nunca mencionam o factor que
permite esta disgenia generalizada: o progresso tecnoló-
gico. Pelo contrário, paradoxalmente encontramos entre
eles alguns dos seus mais ávidos defensores. Nenhuma
outra força permite numa escala tão grande a sobrevi-
vência dos fracos, nem promove com a mesma ferocida-
de a complacência dos fortes. O avanço tecnológico é um
sedativo gradual que leva ao equivalente social de um
corpo vegetativo ligado a uma máquina.

Muitas sociedades e povos sobreviveram a invasões, ne-


nhuma sobreviveu à decadência do conforto. Foram pre-
cisamente as sociedades afluentes, confortáveis e deca-
dentes (uma combinação que não é um acaso) que foram
incapazes de resistir aos invasores. Pelo que a solução
não pode ser uma insistência e intensificação dos meios
que geraram os fins que queremos evitar, mas sim uma
rejeição desses meios e um retorno a uma forma de orga-
nização económica e social que não só reflicta os valores
que consideramos certos, mas garanta a manutenção da
sociedade de acordo com esses valores.

128
O Problema da Fundação

«O Temor do Senhor é o princípio da sabedoria e a inteligência


é a ciência dos santos.» (Provérbios 9:10)

«Assim, toda a árvore boa produz bons frutos, e toda a árvore


má produz frutos maus. Não pode a árvore boa dar maus fru-
tos; nem a árvore má dar frutos bons. Toda a árvore que não dá
bom fruto corta-se e lança-se no fogo. Portanto, pelos seus fru-
tos os conhecereis. Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor!
entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade do meu
Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: Senhor,
Senhor, não profetizámos nós em teu nome? e em teu nome não
expulsámos demónios? e em teu nome não fizemos muitas ma-
ravilhas? E então lhes direi, abertamente: Nunca vos conheci;
apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade. Todo aque-
le, pois, que escuta estas minhas palavras, e as pratica, asseme-
lhá-lo-ei ao homem prudente, que edificou a sua casa sobre a
rocha; E desceu a chuva, e correram rios, e assopraram ventos,
e combateram aquela casa, e não caiu, porque estava edificada
sobre a rocha. E aquele que ouve estas minhas palavras, e não
as cumpre, compará-lo-ei ao homem insensato, que edificou a
sua casa sobre a areia; E desceu a chuva, e correram rios, e as-
sopraram ventos, e combateram aquela casa, e caiu, e foi grande
a sua queda.» (Mateus 7:17-27)

129
Nenhum movimento sobrevive sem unidade e em espe-
cial sem unidade filosófica. Sem uma mundividência par-
tilhada, a tendência será sempre para a luta interna e,
eventualmente, para a cisão. E um movimento com cisões
é incapaz de levar a cabo as suas aspirações. Mas ainda
mais importante é que essa fundação seja sólida, pois
apenas sobre ela se pode construir um edifício resiliente.
Aqui pretendo defender que só a mundividência Cristã
pode providenciar esta fundação para a ampla e ainda
vaga afiliação de vozes que, tendo em conta os objectivos
expressos, podemos considerar da ‘Direita Dissidente’, e
demonstrando que as outras fundações são insuficientes,
prejudiciais e, em alguns casos, incoerentes com as con-
sequências prescritivas a que são associadas.

Tendo seguido e investigado as várias vozes que pode-


mos considerar como parte desta Direita consigo identifi-
car três grupos, nos quais existe obviamente alguma so-
breposição, mas que em termos fundacionais merecem
ser mencionados em separado: os tradicionalistas pereni-
alistas, os nacionalistas/identitários e os tradicionalistas
Cristãos. Encontrando-me neste último grupo, e fazendo
a apologia dele, tratarei das virtudes da sua fundação em
comparação com as fundações dos outros dois.

Observando os principais blogs que representam estas


três ‘facções’ há algum tempo e mergulhando nos seus
arquivos, fiquei com a ideia que, dos três grupos, a au-

130
sência de fundação é observada maioritariamente nos
nacionalistas/identitários, em que não só não existe uma
mundividência base que seja partilhada, mas ainda mais
grave, em alguns casos não existe uma preocupação em
expor ou estabelecer essa mundividência. Há um imedia-
tismo neste grupo que, embora tenha os seus méritos,
põe de lado a questão fundacional e se preocupa somente
em reagir a eventos, notícias ou ideias da modernidade.
Nessas reacções está necessariamente subjacente uma
visão do mundo, premissas antropológicas e ontológicas
– mas estas nunca são explicitamente apresentadas ou
explicadas, e não é claro que sejam reconhecidas pelos
seus promotores. Em alguns casos, por serem inconscien-
temente professadas, acabam mesmo por ser contraditó-
rias com as prescrições, dependendo da manifestação
particular de texto para texto.

Embora exista algum tipo de unidade em relação a ques-


tões particulares, em especial a oposição à imigração, tu-
do o resto é difuso porque as questões de fundação filo-
sófica não são postuladas. Sendo que a mundividência
relativista já é o status quo fundacional do Ocidente, não
me surpreende que, mesmo postulando valores que só
podem ser compreendidos numa ética Cristã, muitos se
considerem ateus ou perenialistas. Note-se que eu leio
frequentemente, e já recomendei, uma boa parte das pes-
soas de quem estou a falar. Não é pois uma crítica, é uma
exortação.

131
Antes de entrarmos a fundo na análise, observemos al-
gumas dicotomias absolutamente absurdas que ilustram
o vazio fundacional. Há quem seja ardentemente pró-
Israel, e quem ache que o mundo é controlado por um
cabal judaico (sendo o Cristianismo a maior conspiração
de todos os tempos) – ambas as posições, a meu ver, de-
monstrando uma ignorância (ou malícia) risível. Vamos
assumir que não é malícia, mas simplesmente ignorância.
Os blogs (supostamente Cristãos) ardentemente pró-
Israel e pró-Judeus fazem uma crónica ininterrupta dos
males do Islão, nunca abrindo a boca sobre o papel dos
Judeus na promoção da invasão Islâmica do Ocidente, as
atrocidades cometidas pelos Israelitas ou as circunstân-
cias históricas em que o Estado se formou, a influência do
Sionismo e dos judeus na propagação do relativismo no
Ocidente, ou sequer reconhecendo as razões mais pro-
fundas, morais, da invasão islâmica que tanto criticam.
Ou seja, proclamando-se Cristãos, são na prática meros
materialistas e, na sua ardente defesa dos Judeus dos
nossos dias, revelam que nunca leram a Bíblia com aten-
ção. Os blogs anti-Israel, por seu turno, vivem obcecados
com os judeus de tal forma que lêem o Novo Testamento
(assumindo que o leram) e acham que Jesus de Nazaré
foi um Sayanim da antiguidade, enviado para enganar os
gentios. Ambas as posições são patentemente absurdas.
No entanto, ambos os lados são considerados parte deste
mesmo movimento – seria interessante ouvir um debate
entre os representantes, mas isso é outra história – e a
razão para o serem é porque concordam com prescrições

132
específicas para problemas concretos (sobretudo, a oposi-
ção à imigração). Termino este parágrafo dizendo apenas
que tanto os partidários da teoria de que o Cristianismo é
uma conspiração judaica como os Cristãos que são arden-
temente pró-Israel estão para lá de qualquer razão ou
argumento – e digo isto por experiência. A insanidade
dos anti e o sabujismo dos pró tolda-lhes a visão. Aos
segundos, custa-me não atribuir também segundas inten-
ções ou malícia, mas não importa muito explorar o fenó-
meno neste texto.

Tentemos, pois, encontrar as fundações subentendidas


nas duas estirpes não-Cristãs.

Para os perenialistas a fundação é, à superfície, mais se-


melhante à Cristã, pois é de origem transcendental. No
entanto, esta filosofia afirma que todas as tradições reli-
giosas são apenas manifestações diferentes da mesma
ideia, da mesma verdade metafísica. Assim, o Deus do
Zoroastrismo ou o ‘motor imóvel’ de Aristóteles seriam
apenas diferentes manifestações do Deus da Bíblia. E
igualmente as doutrinas de um e de outro serão igual-
mente manifestações esteticamente distintas mas metafi-
sicamente semelhantes – e todas portanto com a mesma
validade e das quais se poderão inferir as mesmas impli-
cações éticas. Usei os exemplos mais próximos (ao invés
de, por exemplo, o Hinduísmo) precisamente porque,
mesmo sendo na aparência mais semelhantes (afinal, são

133
uma ou outra forma de monoteísmo), se pode mostrar
que na verdade não existe equivalência, e que estas não
são manifestações diferentes da mesma ideia, mas ideias
distintas, com distintas consequências teóricas e práticas.
Antes de apontar aquilo que distingue estas concepções
da concepção Cristã, convém salientar que não disputa-
mos a ideia de que as várias culturas e tradições religio-
sas chegaram a algumas conclusões práticas semelhantes
– da mesma forma que as várias vozes dissidentes do
nosso dia chegam também às mesmas conclusões apesar
das suas fundações metafísicas distintas. Assim, por
exemplo, quase todas as tradições religiosas, sobretudo
aquelas que fundaram civilizações dignas desse nome,
foram patriarcais, reconheciam a propriedade privada e
restringiam a liberdade sexual. São Paulo, falando aos
Pagãos Romanos, afirma: «Com efeito, quando há gentios
que, não tendo a Lei, praticam, por inclinação natural, o que
está na Lei, embora não tenham a Lei, para si próprios são lei.
Esses mostram que o que a Lei manda praticar está escrito nos
seus corações, tendo ainda o testemunho da sua consciência tal
como dos pensamentos que, conforme o caso, os acusem ou de-
fendam.» (Romanos, 2:14-15). Ou seja, Deus imprimiu em
todos os homens a capacidade de discernir formas de
conduta e de organização social desejáveis. Mas dizer
que a Lei é discernível não remove a necessidade da sua
revelação, tal como o facto de sabermos que moderar a
velocidade é benéfico não remove a necessidade de co-
nhecer o Código da Estrada.

134
O monoteísmo do Zoroastrismo e o monoteísmo do ‘mo-
tor imóvel’ não são iguais ao monoteísmo Bíblico, e as
diferenças são logo encontradas na fundação. A antiga
religião Persa afirma uma concepção divina, ontológica e
antropológica dualista, em que o Bem e o Mal são forças
equivalentes em constante fricção e à procura de equilí-
brio – e em que tanto o ‘deus bom’ como o ‘deus mau’
existiam previamente à Criação: «Ahura Mazda spake unto
Spitama Zarathushtra, saying: I have made every land dear (to
its people), even though it had no charms whatever in it: had I
not made every land dear (to its people), even though it had no
charms whatever in it, then the whole living world would have
invaded the Airyana Vaeja. The first of the good lands and
countries which I, Ahura Mazda, created, was the Airyana
Vaeja, by the Vanguhi Daitya. Thereupon came Angra
Mainyu, who is all death, and he counter-created the serpent in
the river and Winter, a work of the Daevas.» (Vendidad, Far-
gard 1:1-2). Por cada coisa boa que Ahura Mazda (o deus
bom) cria de benéfico, o seu contraparte maléfico, Angra
Mainyu, cria o seu oposto: «The second of the good lands
and countries which I, Ahura Mazda, created, was the plain
which the Sughdhas inhabit. Thereupon came Angra Mainyu,
who is all death, and he counter-created the locust, which
brings death unto cattle and plants. The third of the good lands
and countries which I, Ahura Mazda, created, was the strong,
holy Mouru. Thereupon came Angra Mainyu, who is all death,
and he counter-created plunder and sin.» (Vendidad, Far-
gard 1:4-5).

135
Algo completamente distinto é-nos contado na história
da Criação Bíblica, em que Deus Cria ex nihilo (isto é, na-
da existia antes além Dele), e em que o mal é simples-
mente a rebelião de seres criados contra a sua autoridade.
O Mal, portanto, não tem existência ontológica no Cristi-
anismo, mas é simplesmente a ausência do Bem – e o
Homem não foi criado com duas naturezas, mas com
uma: uma natureza que a sua desobediência corrompeu.
Isto pode parecer insignificante mas não é: na concepção
Zoroastra o Mal já existia, e é uma de duas escolhas pos-
síveis; na concepção Cristã existe obediência ou desobe-
diência à Lei, adesão ou não-adesão ao Bem. Voltando à
analogia do Código da Estrada, o Zoroastrianismo diz-
nos que, na génese, há dois Códigos, o bom e o mau – e
que devemos seguir o ‘bom’ porque gera boas conse-
quências e evitar o ‘mau’ por gerar as más; no Cristia-
nismo existe apenas um Código, o Bem, e é da nossa de-
sobediência que surgem as más consequências, o Mal.

Também o ‘motor imóvel’ não é o Deus da Bíblia, mas


algo mecânico e impessoal que ‘põe as coisas em mo-
vimento’: «Since this is a possible account of the matter, and if
it were not true, the world would have proceeded out of night
and ‘all things together’ and out of non-being, these difficulties
may be taken as solved. There is, then, something which is al-
ways moved with an unceasing motion, which is motion in a
circle; and this is plain not in theory only but in fact. Therefore
the first heaven must be eternal. There is therefore also some-

136
thing which moves it. And since that which moves and is
moved is intermediate, there is something which moves without
being moved, being eternal, substance, and actuality.» (Me-
taphysics, Book 12, Part 7). Mas se Deus não é pessoal
nem a Criação é o produto da sua acção, a Lei não existe
como algo transcendente que nos foi revelado – mas tor-
na-se um mero artifício humano, uma heurística, desen-
volvida pelos mecanismos naturais derivados do primei-
ro movimento.
Pode questionar-se a relevância destas considerações pa-
ra as questões mais concretas com que nos deparamos,
mas a fundação determina não só a resiliência do edifício
mas também a forma que esse edifício toma. Estas noções
de ‘equilíbrio’ entre Bem e Mal (existente nas concepções
orientais do divino tão promovidas no Ocidente moder-
no) e do ‘motor imóvel’ (de que a teoria do Big Bang é
um exemplo) são partes importantes da mundividência
maçónica/gnóstica que tomou conta do Ocidente nos úl-
timos séculos, e é sobre elas que as nossas sociedades são
erigidas. Não admira, pois, que o edifício esteja a ruir.
Ambas as fundações, embora na aparência monoteísticas,
levam directamente ao relativismo. A abertura da teolo-
gia Cristã a estes conceitos antagónicos, numa tentativa
de ‘ecumenismo’ e ‘sincretismo’, foi uma das principais
razões para esta degeneração fundacional na civilização
Ocidental. Não é um acaso que quando a consciência da
fundação Cristã, da Criação ex nihilo e da Lei como reve-
lação, foi apagada no Ocidente, se deixou de prestar tri-

137
buto à dignidade humana inerente e se começou a achar
que todas as formas de viver são certas.

Tornamo-nos agora para os identitários. Alguns subscre-


vem uma forma ou outra de neopaganismo como funda-
ção supostamente transcendental – e digo supostamente
porque, na maioria das vezes, é somente uma rejeição do
Cristianismo do que uma convicção noutra forma de es-
piritualidade e fundação, uma forma de procurar algo
que o ateísmo, por si mesmo, não oferece (e saúdo-lhes,
pelo menos, o reconhecimento deste facto – embora, co-
mo vamos ver, não o sigam até à sua conclusão última).
É, além disso, difícil analisar as premissas dos neo-
pagãos porque, na verdade, não existe uma teologia coe-
rente mesmo quando procuram essa fundação. Nas mi-
nhas observações noto que os vários neo-pagãos resume-
se simplesmente à ideia de preservar a tribo a que per-
tencem e simultaneamente ao darwinismo social. Por isso
esta análise é, não tanto de um ou vários neo-paganismos
(que, na realidade, são apenas apêndices cosméticos),
mas da visão ateia e evolucionária que permeia a mundi-
vidência identitária.

Para eles a fundação é a tribo ou a raça – o ethnos – e to-


das as outras considerações devem ser a ele subjugadas.
Rejeitam o Cristanismo afirmando que este, postulando
uma moral universal a que todos estamos subjugados,
não tem qualquer apreciação pelo ethnos. Tal afirmação,

138
tão comum nos nossos dias, seja da boca de anti-Cristãos
como dos próprios Cristãos, é simplesmente falsa, e sur-
ge simplesmente de ignorância.

Se observamos muitos auto-proclamados Cristãos a de-


negrir o ethnos, é em directa oposição às escrituras e aos
Pais da Igreja. Não só a tradição reconhece a existência
do ethnos, como recomenda a sua preservação. São Paulo,
pregando aos Atenienses, sublinha a existência e impor-
tância das diferenças entre as tribos no próprio plano Di-
vino: «De um só homem fez Deus todas as raças humanas, a
fim de que povoassem a terra, havendo determinado previamen-
te as épocas e os lugares exactos onde deveriam habitar. Deus
assim procedeu para que a humanidade o buscasse e provavel-
mente, como que tacteando, o pudesse encontrar, ainda que, de
facto, não esteja distante de cada um de nós». São Paulo ex-
pressa também na sua carta aos Romanos o peso que tem
o seu apego à sua própria tribo: «Digo a verdade em Cristo,
não falo inverdades, minha consciência o confirma no Espírito
Santo, que tenho grande tristeza e incessante dor no meu cora-
ção. Porquanto eu mesmo desejaria ser amaldiçoado e separado
de Cristo por amor de meus irmãos, que são meus parentes se-
gundo a carne» (Romanos 9:1-3). Mais, a única ocasião em
que S. Paulo repreende S. Pedro é precisamente na ques-
tão étnica, mostrando que, sendo a Lei para todos, cada
cultura deve manter-se e não ser forçada uma sobre a
outra: «Quando, porém, Pedro chegou a Antioquia, eu o en-
frentei face a face, por causa da sua atitude reprovável. Porque

139
antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele fazia suas re-
feições na companhia dos gentios; todavia, quando eles chega-
ram, Pedro foi se afastando até se apartar dos incircuncisos,
apenas por temor aos que defendiam a circuncisão. E os outros
judeus de igual modo se uniram a ele nessa atitude hipócrita,
de modo que até mesmo Barnabé se deixou influenci-
ar. Contudo, assim que percebi que não estavam se portando de
acordo com a verdade do Evangelho, repreendi a Pedro, diante
de todos: “Se tu, sendo judeu, vives como os gentios, e não con-
forme a tradição judaica, por que obrigas os gentios a viver co-
mo judeus?”» (Gálatas 2:11-13). E também nas visões de S.
João o ethnos surge como parte da providência eterna de
Deus para a humanidade: «Em seguida, olhei, e diante de
mim descortinava-se uma grande multidão tão vasta que nin-
guém podia contar, formada por pessoas de todas as nações,
tribos, povos e línguas. Estavam em pé, diante do trono do
Cordeiro, vestidos com túnicas brancas, empunhando folhas de
palmeira. E proclamavam com grande voz: “A Salvação perten-
ce ao nosso Deus, que se assenta no trono e ao Cordeiro!”»
(Apocalipse 7:9-10).
Tendo em conta que os identitários reconhecem o valor
da tribo e procuram uma ordem social que a sirva, e que
o darwinismo social, quando levado à sua conclusão ló-
gica, impossibilita qualquer forma de lei que não a da
simples sobrevivência, o próprio facto de terem a tribo
como valor e postularem uma ordem social é contraditó-
ria com essa fundação. Para ilustrar este ponto, pensemos
no seguinte: várias vezes li identitários a aplaudir as ra-
ças do Oriente Extremo como ‘superiores’, querendo com

140
isso dizer que exibem em grande quantidade as caracte-
rísticas que consideram de valor (quase todas fundadas
no facto de terem QIs relativamente altos – com as conse-
quências societais derivadas desse facto). Podemos con-
cluir então que a nossa tribo merece, a bem da sobrevi-
vência e da evolução, ser conquistada e substituída por
Chineses e Japoneses. Não são eles ‘superiores’? Se to-
marmos o darwinismo social como fundação filosófica,
temos de responder que sim (lembremos que o título
completo do famoso livro de Darwin é On the Origin of
Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of
Favoured Races in the Struggle for Life), embora claramente
os identitários respondam que não. E se se pudesse pro-
var que a miscigenação criaria uma raça biologicamente
superior, seriam os identitários darwinistas a favor desse
destino? Obviamente que não. Mas porquê? Porque valo-
rizam a sua tribo acima da sobrevivência do ‘mais forte’ e
acima da evolução, e é nessa premissa que se funda a sua
mundividência – por muito que erroneamente conside-
rem que a fundam no darwinismo. Por outras palavras, a
sua mundividência funda-se no amor ao próximo. E o
próximo não é qualquer um, é aquele que está próximo.
Porquê amar o próximo como a nós mesmos? Porque o
próximo é como nós. É parte de nós. A concepção Cristã,
a original, não é antagónica à identidade tribal: o ethos e
o ethnos complementam-se. Perdendo-se um, perde-se o
outro.

141
O facto de, aos olhos de Cristo, sermos todos iguais não
significa que não existam diferenças entre nós, nem que
essas diferenças não devam ser observadas por Cristãos
(se assim fosse, Deus não teria, por exemplo, ordenado a
submissão terrena da mulher ao homem, porque a famo-
sa passagem Gálatas 3:28 diz que em Cristo ‘não há mascu-
lino nem feminino‘). Os Cristãos são comandados a obser-
var tais diferenças, e o que Cristo observa é a nossa obe-
diência. E o que é que Cristo requer de nós? «Mestre, qual
é o grande mandamento na lei? E Jesus disse-lhe: Amarás o
Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e
de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande manda-
mento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próxi-
mo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos depende toda a
lei e os profetas.» (Mateus 22:36-40).

«Se alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia o seu irmão, é mentiro-


so. Pois, quem não ama o seu irmão, ao qual viu, como pode
amar a Deus, a quem não viu? E dele temos este mandamento:
que quem ama a Deus, ame, também, o seu irmão.» (1 João
4:20-21). Os Cristãos que professam a sua fé apoiando a
invasão de povos alógenos estão a descurar o amor ao
próximo em nome de um ideal universalista condenado
por Deus, não só na separação dos povos na Babilónia
mas ao dizer, pela voz de Cristo, que é ao próximo que
devemos em primeiro lugar apontar o nosso amor. Di-
zendo amar a Deus e à sua Verdade, odeiam o próximo, e
portanto, rejeitam a Deus. Pelo menos neste aspecto,
aqueles que se dizem anti-Cristãos mas valorizam

142
o ethnos, estão mais perto da Verdade do que aqueles que
o desprezam, dizendo-se Cristãos.

O ethnos, no entanto, não pode ser a fundação e isso é


claro quando compreendemos o sentido de ‘amar’ no
Cristianismo. Amar não é ser tolerante, ou simpático, ou
permissivo. Amar é ter o desejo de colocar alguém no
caminho recto e agir de forma a fazer o Bem por quem se
ama. Isso por vezes pode significar repreensão violenta:
«Quem se nega a disciplinar e repreender seu filho não o ama;
quem o ama de facto não hesita em corrigi-lo.» (Provérbios
13:24). No entanto, tendo o ethnos como base, todas as
considerações têm de estar a ele subjugadas, o que impli-
ca a defesa dos membros degenerados da tribo em detri-
mento de algo maior (o ethos). E isso observa-se na facili-
dade com que tantos identitários abraçam o relativismo
moral e aceitam membros da tribo na sua iniquidade por
mais destrutivos que eles sejam para a própria tribo.
Quantas famílias foram já destruídas por causa de “amor
incondicional”, em que mães e pais defendem os filhos
por mais pulhas que sejam? E quantas vezes vemos o
problema de diagnóstico dos identitários, que na sua de-
fesa incondicional da sua ‘família’ nacional, são incapa-
zes de lhe ver as falhas e assim também incapazes de
apontar a origem (moral) dos seus problemas? E nos ca-
sos em que os identitários de facto se recusam a aceitar
degeneração moral e a rejeitar os membros da tribo que a
personificam, deixaram de colocar a tribo em primeiro

143
lugar, e inconscientemente aceitaram que o ethos tem de
preceder ao ethnos.

Quem se dá ao trabalho de considerar questões políticas


e sociais complexas, em geral não o faz tendo como objec-
tivo apenas o seu próprio bem-estar – está subentendido
um reconhecimento do valor da comunidade e da ordem.
Se considera que existe valor na comunidade e na ordem,
reconhece que existe uma dimensão superior, que não
somos apenas pedaços de carne conscientes, produtos de
forças aleatórias. Essa dimensão tem de ter uma origem e
essa origem, para ser generalizável – como tem de ser
numa ordem social – não pode ser baseada somente nas
preferências pessoais de quem a postula. Mas rejeitando
uma origem transcendental, isto é, divina, para essa di-
mensão, não podemos dizer sem contradição que a Or-
dem é preferível ao Caos, que a Justiça é preferível à In-
justiça, ou sequer que a Ordem e a Justiça existam como
conceitos válidos – se tudo é fluxo, também a Ordem e a
Justiça são conceitos transitórios, mutáveis conforme os
movimentos da história, da natureza, das condições ma-
teriais, etc. Ou seja, voltamos ao materialismo relativista
que precisamos de rejeitar.

Um dos argumentos que já repeti mais vezes é o de que


os nossos problemas materiais (como a imigração) têm
origem na nossa disposição espiritual (o hedonismo). Es-
ta disposição é o produto directo da fundação relativista

144
que substituiu a fundação absolutista fundada na Criação
revelada na Bíblia. Sem rejeitarmos as várias fundações
erróneas, não temos meio de rejeitar os seus resultados. E
sem aceitarmos a fundação certa, não temos meios de
obter os seus benefícios.

145
O Nacionalismo não é necessário, nem suficiente

«Quem dentre vós, querendo construir uma torre, não se senta


primeiro para calcular a despesa e ver se tem com que a con-
cluir? Não suceda que, depois de assentar os alicerces, não a
podendo acabar, todos os que virem comecem a troçar dele, di-
zendo: ‘Este homem começou a construir e não pôde acabar’.
Ou qual é o rei que parte para a guerra contra outro rei e não se
senta primeiro para examinar se lhe é possível com dez mil ho-
mens opor-se àquele que vem contra ele com vinte mil? Se não
pode, estando o outro ainda longe, manda-lhe embaixadores a
pedir a paz.» Lucas 14:28-32

O principal problema de qualquer putativo movimento


dissidente é a sua sobrevalorização daquilo que pode ser
quantificado, aquilo que é visível a olho nu, aquilo que é
imediatamente palpável, em detrimento das questões
filosóficas, metafísicas e espirituais que são muitas vezes
consideradas espúrias. Como o construtor da torre e o rei
que parte para a guerra nas palavras de Jesus, muitos não
consideram o invisível que subjaz às realidades visíveis.
Como um médico que toma os sintomas pela doença e se
oferece para os tratar julgando tratar a doença, o Nacio-

146
nalismo opera da mesma forma no plano político. É desta
mentalidade que surge a defesa do Nacionalismo.
Pretendemos aqui argumentar que o Nacionalismo não
pode constituir a base para o movimento, pois mesmo
para os objectivos que pretende concretizar não é neces-
sário, nem suficiente. Para isso temos primeiro de o defi-
nir, para que se saiba aquilo a que apontamos a nossa
crítica. Como todas as ideologias, pode dizer-se que é
tudo e mais alguma coisa, por isso tentaremos cingir-nos
a uma definição que tenha em conta, ao mesmo tempo, a
História da ideologia e a sua presente manifestação. O
Nacionalismo é uma ideologia política Republicana e
Democrática saída da Revolução Francesa, que postula a
preservação da Nação enquanto entidade política (o Es-
tado-Nação), a defesa de território delineado por frontei-
ras terrestres, da tradição e coesão linguística, cultural e
étnica contra processos de destruição identitária ou trans-
formação. Quando digo que o Nacionalismo não pode
constituir a base, quererá isto dizer que sou contra os
seus objectivos individuais postulados acima? Não. Mas
quer dizer que estas ideias em si mesmas não garantem
aquilo que pretendem garantir, e em particular a forma-
lidade da ideologia (a identificação da nacionalidade com
o estado-nação) não é necessária, nem suficiente.

Com a ameaça presente e tangível da imigração de mas-


sas, é compreensível que a ideologia do Nacionalismo se
tenha tornado a bandeira em torno da qual os dissidentes
maioritariamente se agitam, mas esse foco único confun-

147
de as árvores pela floresta, e esquece que há factores me-
tafísicos que o Nacionalismo por si mesmo não contradiz,
que não só permitem mas promovem esta situação. Sen-
do uma invenção moderna saída do próprio Liberalismo,
o Nacionalismo tem a mesma fundação no Materialismo
Iluminista e sofre dos mesmos problemas insolúveis. O
Nacionalismo, por mais benéficas que sejam as suas in-
tenções, acaba a longo prazo na mesma situação que
qualquer outra ideia democrática. Isto é, acaba na des-
truição daquilo que pretende defender. Tal como o Libe-
ralismo é a longo prazo incapaz de defender a Liberdade,
o Nacionalismo é incapaz de defender a Nação.
O caso Português, com as suas fronteiras e unidade polí-
tica com quase mil anos, não é dos melhores exemplos
para se perceber o argumento que fazemos aqui. Mas por
outro lado, o facto de ser uma absoluta raridade na His-
tória Europeia, acaba por ilustrar ainda assim o ponto
acima. As nacionalidades de Leste, por exemplo, ofere-
cem um perfeito exemplo de como a coesão étnica e cul-
tural de um povo não dependem de uma entidade políti-
ca equivalente, ou seja, não precisam de Nacionalismo. E
em alguns casos, observa-se que muitos grupos étnicos
estavam mais bem servidos sob uma entidade política
mais larga do que quando obtiveram os seus estados-
nação. O Império Austro-Húngaro, a Jugoslávia de Tito,
ou até a França pré-Revolucionária – onde, lembremos,
existiam várias nacionalidades, entretanto extintas preci-
samente pelo Liberalismo – ou até a Rússia moderna, são
bons exemplos de como o Nacionalismo não é necessário.

148
Na maioria dos casos foram precisamente os poderes Li-
berais e a ideia da auto-determinação dos povos que de-
sagregaram ou destruíram nacionalidades (como no caso
Francês ou, em menor escala, na centralização nacionalis-
ta da Itália ou da Alemanha). Sob um ou outro império
várias nacionalidades sobreviveram sem Nacionalismo, e
com Nacionalismo destruíram-se várias nacionalidades e
identidades.

Penso que isto prova que a questão da nacionalidade, da


coesão étnica e cultural de um povo, é uma questão mui-
to mais complexa do que a simples edificação política.
Argumentar o contrário implica admitir, por exemplo,
que os falsos estados-nação formados pelos poderes co-
loniais em África, na Ásia e nas Américas eram nações
antes de serem estados, quando uma investigação sim-
ples da sua História demonstra que essa concepção é fal-
sa. Obviamente que, com o tempo, outras nacionalidades
(ou semi-nacionalidades) se formam a partir destes esta-
dos artificiais, mas esse mesmo facto confirma que nesses
casos, antes de existir o estado, não existia a nacionalida-
de, mas uma colecção de grupos étnicos, culturais e lin-
guísticos distintos.

O Nacionalismo não é, pois, necessário à manutenção


daquilo que pretende defender. A verdade é que, para-
doxalmente, sendo uma consequência da destruição da
monarquia e da sociedade tradicional, o Nacionalismo é
uma reacção inconsequente, desnorteada, um penso para

149
uma ferida de bala, e sendo uma ideia em grande parte
contraditória, como demonstrámos, acaba por ser utili-
zada amiúde pelas elites globalistas para fomentar o caos
e destruir a sociedade tradicional. Obviamente, o Nacio-
nalismo pode ser, sob determinadas circunstâncias, uma
força contrária aos planos globalistas, sobretudo centenas
de anos depois da destruição da ordem monárquica, mas
é preciso nunca esquecer que o próprio Nacionalismo foi
uma ideia promovida pelas elites maçónicas da época
com o objectivo de destruir as sociedades que existiam,
tal como hoje promovem o Globalismo para destruir as
que existem. Como a História demonstra, o Nacionalismo
não é uma condição necessária para a defesa da naciona-
lidade mas sobretudo não é suficiente – algo que é ilus-
trado perfeitamente no Nacionalismo dos nossos dias.

Se investigarmos seriamente os objectivos das elites glo-


balistas percebemos que o seu plano não é somente de
aniquilação da nacionalidade, mas aniquilação de qual-
quer tipo de identidade: étnica, cultural e linguística, mas
também familiar, religiosa, sexual e, o plano final
transhumanista, também da identidade humana. Quão
fútil é pois que nos oponhamos a um dos seus objectivos
mas descuremos a oposição aos outros? Ou pior, que se
subscreva uma parte do seu programa? O Nacionalismo
hoje pretende cortar uma das cabeças do monstro globa-
lista, mas deixar as suas outras cabeças intactas. Isto é
por demais óbvio olhando para os partidos nacionalistas
que vão surgindo sob a bandeira da anti-imigração, e em

150
particular anti-Islão, e que predicam a sua oposição na
defesa de valores modernos completamente antagónicos
à coesão nacional. Os exemplos são demasiado numero-
sos, tanto dos partidos e movimentos, como das ideias
que partilham com os globalistas, para que se ignore esta
tendência. A sua manifestação mais gritante é na oposi-
ção ao Islamismo. É um óbvio ululante que nos devemos
opor ao Islamismo como ideologia, e ainda mais à imi-
gração massiva de proponentes dessa ideologia para a
Europa, mas há boas e más razões para o fazer. E, infe-
lizmente, a maioria dos nacionalistas opõe-se ao Islamis-
mo pelas razões erradas. A maioria das críticas feitas pe-
los nacionalistas são às ideias que caracterizam como ‘re-
trógradas’ e que contrastam com as ‘liberdades’ ociden-
tais: a submissão da mulher ao homem e a intolerância
dos desviantes sexuais, em particular, comprazem a
grande maioria das críticas. Nelas está subjacente a defe-
sa da insubmissão e liberdade femininas e da tolerância
dos desviantes sexuais. Ou seja, atacando o Islamismo
por estas coisas, os Nacionalistas atacam igualmente
qualquer sistema político e social que incorpore es-
tes princípios. Isto demonstra que estes Nacionalistas são
infelizmente ignorantes, tanto da História Ocidental co-
mo da História universal, pois todas as civilizações dig-
nas desse nome impuseram regras sociais estritas, e em
particular, a submissão da mulher ao homem e a remo-
ção dos desviantes sexuais (aquelas que, com o tempo,
deixaram de o fazer acabaram na mesma decadência em
que a nossa se encontra hoje); e demonstra igualmente

151
que são antagónicos à organização social Cristã que do-
minou a Europa durante pelo menos 1500 anos, e que foi
paralela ao florescimento da Europa como força domi-
nante em todos os aspectos em que normalmente se ava-
liam as civilizações. Ou seja, pretendendo defender o
Ocidente, a maioria dos Nacionalistas defende as ideias
que perverteram a nossa civilização e nos trouxeram ao
ponto actual. O bem comum, a coesão social, a unidade
nacional, requerem necessariamente determinados sacri-
fícios de liberdade individual. Ao elevarem essa liberda-
de ao princípio base da sua visão do Ocidente, estes Na-
cionalistas plantam a própria semente que germinará na
disfunção política, social e económica que cria o proble-
ma migratório em primeiro lugar.

A base da Nação é a família e o individualismo primário


que defendem é a antítese da família. Ao defenderem o
individualismo contra o colectivismo dos Islamistas, os
nacionalistas apenas escolhem uma forma de atentado
contra a Nação em prol de outra. Esta defesa é emblemá-
tica da atitude que, na realidade, existe na génese do Na-
cionalismo: o Estado-Nação torna-se na única premissa, e
a ordem social necessária à manutenção da nacionalidade
é ignorada. Um movimento que defenda o Estado-Nação
e se oponha à imigração, mas que aprove e permita todos
os males da modernidade, que pretenda manter o status
quo social de liberdade sexual, de supremacia feminina,
de economia baseada na usura, de organização democrá-
tica, é incapaz de sequer manter aquilo que eleva como

152
valor principal. E é a isto que nos referimos quando di-
zemos que o Nacionalismo descura o aspecto metafísico,
pois é incapaz de perceber que a situação migratória é
uma consequência da perda de valores tradicionais na
sociedade, não é um assunto separado que possa ser re-
solvido sem se resolver este outro.

A identidade é feita de círculos concêntricos – o primeiro


sendo a família nuclear, depois a família extensa, o bair-
ro, a cidade, a região, a Nação (entendida como esfera
partilhada de laços étnicos, linguísticos e culturais), a li-
gação regional (por exemplo, entre povos com línguas de
origem latina ou de proximidade geográfica) e, por fim, a
identidade geral Europeia, que não pode ser entendida
fora do domínio da Cristandade – pois previamente os
vários povos Europeus não tinham língua, cultura
ou logos em comum, mas eram sim uma colecção de po-
vos com crenças, culturas e línguas distintas e rivais.

Os nacionalistas verdadeiros reconhecem que a Nação


não é uma mera delineação geográfica e que o que a
constitui não é meramente a terra onde se encontra (o
ridículo conceito de ‘magic dirt’), mas sim as pessoas que
a compõem, com uma etnia e cultura próprias. Reconhe-
cem, logo, que não se pode substituir as pessoas sem ani-
quilar a Nação, ou sem a transformar em algo completa-
mente distinto. No entanto, e infelizmente, muitos não
prestam a devida atenção à conduta das pessoas que
compõem a Nação, nem têm um entendimento de que o

153
bem comum da Nação é muito mais do que o bem indi-
vidual dos seus membros, e subscrevem assim uma for-
ma ou outra de individualismo, que é radicalmente anta-
gónico ao objectivo que pretendem alcançar.

Mesmo admitindo que o Nacionalismo consegue ganhar


eleições e expulsar os alógenos, qual é o resultado? Ter
paradas gay mais seguras? Um sistema de saúde a funci-
onar melhor para mais eficientemente abortar crianças?
Jovens mulheres a embebedarem-se nas ruas das nossas
cidades sem o receio de violação por parte de alógenos?
O Nacionalismo hoje é análogo ao puxar um suicidário
da beira da ponte, mas depois mandá-lo para casa onde
tem cordas, armas e comprimidos. É a fantasia de achar
que se não resolvermos o problema psicológico e espiri-
tual ele vai deixar de ter tendências suicidas. A nossa ci-
vilização presente é patentemente suicidária, a vários
níveis, e o Nacionalismo infelizmente apenas pretende
criar as condições para que se suicide em paz.

Como expliquei anteriormente, o Ethnos tem de ser en-


tendido e só pode ser defendido através do Ethos. Só o
retorno a uma ordem tradicional, em todas as suas impli-
cações, pode garantir a coesão étnica e cultural. Não po-
demos manter uma parte do edifício liberal e esperar que
fique estanque e não volte a destruir aquilo que já destru-
iu uma vez. Aqueles que anseiam por uma sociedade
etnicamente coesa mas que pretendem simultaneamente
manter outros aspectos da sociedade moderna, estão a

154
perseguir uma ilusão, mas ainda mais importante, não
podem ser considerados como aliados. Pelo que é de ex-
trema importância que se entenda que o movimento tem
de rejeitar todos os pontos do liberalismo, e ser muito
mais radical do que o simples Nacionalismo.

155
O Papel das Mulheres

O ditado popular sobre a mulher ser quem usa as calças


em casa é bem conhecido de todo o povo português e
aponta para o facto de, contrário à natureza humana, ser
a mulher quem lidera o lar. Este ditado providencia um
mote perfeito para a discussão que pretendemos efectuar
aqui, que é o do papel da mulher no movimento dissi-
dente. Analisando a expressão, o que podemos concluir?
Primeiro, a supracitada artificialidade da liderança femi-
nina, tão artificial que é necessário criar um ditado jocoso
para ilustrar a situação. Segundo, que essa artificialidade
é demonstrada não apenas no interior (liderança) mas no
exterior (calças), sendo que o exterior é simbólico de algo
maior, e mais pernicioso. Ao imitar os homens, as mulhe-
res perdem as suas qualidades femininas, sem ganhar
nenhuma das masculinas: tornam-se meramente homens
de segunda. Por isso, não exagero quando digo que a de-
cadência da nossa civilização se deve, em grande parte,
ao facto das mulheres terem começado a usar calças. Po-
de parecer apenas um pormenor, mas é um símbolo da
deriva maior da nossa civilização, da corrente igualitária
que a inundou e virou do avesso, do caos identitário em
que nos encontramos. Toda esta tragédia começou, não
pela raça, não pela imigração, mas pela confusão do pa-
pel da mulher na sociedade. E tão importante é a concep-
ção correcta dos papéis adequados de cada sexo, que to-

156
das as sociedades que foram além do mais básico primi-
tivismo a reconheceram e aplicaram. Excepções sempre
as houve, mas como se costuma dizer, servem apenas
para confirmar a regra. E a regra existe com razão. Uma
mulher como a Ayn Rand, por exemplo, fez muitíssimo
bem em nunca ter tido filhos e ser dona de casa e, em vez
disso, dedicar-se ao trabalho intelectual, produzindo
ideias de indiscutível valor e originalidade (a avaliação
última dessas ideias é uma questão demasiado complexa
para discutirmos aqui). Mas também por essa razão, uma
vez chamaram-lhe ‘o homem mais corajoso na América’. Por
certo que os que pretendem que as mulheres tenham a
liberdade de participar no movimento no mesmo pata-
mar que os homens não quererão que elas se transfor-
mem em meras imitações dos homens. E no entanto,
quando o fazem, é precisamente nisso que se transfor-
mam.

Não é ao acaso que a Bíblia menciona a indumentária


especificamente: «Uma mulher não poderá usar coisas de
homem e um homem não poderá vestir-se com roupas de mu-
lher, porque o SENHOR, teu Deus, abomina quem assim pro-
cede.» (Deuteronómio 22:5). Especula-se que a razão para
que tal viesse especificamente mencionado na Bíblia se
encontra na proximidade das sociedades pagãs que rode-
avam os hebreus na época, e que possivelmente não ob-
servariam estas distinções. Ora, tal razão aplica-se tam-
bém à nossa moribunda civilização, que dedicada hoje a
variadíssimos deuses pagãos, se acaba por esquecer até

157
do mais fundamental da organização humana: das dife-
renças salutares entre homens e mulheres.

É fácil antecipar as objecções: que é um anacronismo ex-


tremista, que a sociedade mudou, que ‘evoluímos’, que
tais concepções são resquícios antiquados de uma era
primitiva, ou no mínimo, menos ‘iluminada’. Estas objec-
ções são, em grande parte, feitas por companheiros dissi-
dentes, a quem só podemos apontar que com essas mes-
mas objecções a Esquerda defende todo o seu programa –
desde a imigração até à aceitação dos ‘estilos de vida al-
ternativos’. Pelo que podemos concluir que tais argumen-
tos são inválidos – ou, caso concluamos que são válidos
para uma coisa, são igualmente válidos para outra. Por
outras palavras, das mulheres usarem calças à abolição
da identidade nacional, vai um tirinho.
Neste canto da Internet, ter opiniões impopulares e con-
sideradas radicais pela maioria é uma inevitabilidade. No
entanto, a visão tradicional da Mulher é impopular e con-
siderada radical mesmo no seio do movimento dissiden-
te, mesmo entre homens e mulheres que reconhecem as
diferenças físicas, mentais e espirituais entre os sexos,
que reconhecem o papel de ambos na ordem tradicional.
Para eles, a ideia de que as mulheres devem ter uma fun-
ção fundamentalmente distinta da dos homens no movi-
mento ainda é tabu, senão mesmo anátema. Pelo contrá-
rio, o consenso parece ser que as mulheres podem (e em
alguns casos devem) ter um papel semelhante ao dos
homens na produção e distribuição de ideias, na partici-

158
pação em demonstrações e debates e, deduz-se, nas bata-
lhas campais em que muitos dos eventos se transformam
e eventualmente nas trincheiras de uma potencial guerra
civil.

Recentemente o Youtube lançou uma sequela do Karate


Kid em forma de série que é surpreendentemente contrá-
ria ao politicamente correcto. A série chama-se Cobra
Kai (o nome do dojo dos antagonistas no original), e uma
das cenas mais hilariantes é quando uma preta gorda
com cabelo de lésbica se tenta juntar ao dojo e o sensei lhe
diz que não se aceitam mulheres no karaté pela mesma
razão que não se aceitam no exército: porque é estúpido.
Numa civilização em ordem, eu não necessitaria de justi-
ficar o porquê do papel das mulheres no movimento de-
ver ser o de esposas e mães, de aliadas domésticas dos
homens que efectuam o principal do trabalho (intelectual
e físico) requerido para o triunfo das nossas ideias. Numa
civilização em ordem, bastaria simplesmente repetir o
truísmo da série e dizer que qualquer outra abordagem é
estúpida. Mas infelizmente a nossa civilização não está
em ordem, e até os truísmos têm de ser explicados, justi-
ficados e argumentados, uma e outra vez.

Já mencionámos a Bíblia, mas convém voltar a mencioná-


la e lembrar que as prescrições sobre o papel feminino
não se limitam à advertência contra o seu uso de indu-
mentária masculina. Pelo contrário, a mulher é distinta

159
do homem, e deve a ele ser submissa. Repare-se nas se-
guintes passagens:

«Como acontece em todas as assembleias de santos, as mulheres


estejam caladas nas assembleias, porque não lhes é permitido
tomar a palavra e, como diz também a Lei, devem ser submis-
sas. Se quiserem saber alguma coisa, perguntem em casa aos
maridos, porque não é conveniente para uma mulher falar na
assembleia.» (1 Coríntios 14:33-35)

«
Submetei-vos uns aos outros, no respeito que tendes a Cristo:
as mulheres, aos seus maridos como ao Senhor, porque o mari-
do é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da
Igreja – Ele, o salvador do Corpo. Ora, como a Igreja se subme-
te a Cristo, assim as mulheres, aos maridos, em tudo.» (Efésios
5:21-24)

«A mulher receba a instrução em silêncio, com toda a submis-


são. Não permito à mulher que ensine, nem que exerça domínio
sobre o homem, mas que se mantenha em silêncio. Porque pri-
meiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi
seduzido mas a mulher que, deixando-se seduzir, incorreu na
transgressão. Contudo, será salva pela sua maternidade, desde
que persevere na fé, no amor e na santidade, com recato.» (1
Timóteo 2:11-15)

«Do mesmo modo, as anciãs tenham um comportamento reve-


rente, não sejam caluniadoras nem escravas do vinho, mas mes-

160
tras de virtude, a fim de ensinarem as jovens a amar os maridos
e os filhos, a serem prudentes, castas, boas donas de casa e dó-
ceis aos maridos, de modo que a palavra de Deus não seja difa-
mada.» (Tito 2:3-5)

Saliento estas passagens porque elas não existiram no


vácuo. Pelo contrário, elas foram a base da civilização
que, de uma forma ou de outra, todo o movimento dissi-
dente respeita como o auge da Europa e quer ressusci-
tar. A identidade nacional nasce primeiro na família, e a
família nasce do homem e da mulher. Quão importante é,
pois, que tenhamos a concepção correcta do relaciona-
mento entre os dois? E quão destrutivo é que tenhamos
uma errada? Basta observar a sociedade presente, que é
predicada, não na distinção entre homem e mulher, e na
submissão da mulher ao homem, mas pelo contrário,
numa absoluta igualdade e individualismo que permite,
a homens e a mulheres, fazerem o que bem lhes apetece,
mesmo que o que lhes apeteça semeie a destruição da
ordem social.

Mas toda esta conversa de religião e civilizações antigas


diz muito pouco a um grande número de pessoas no nos-
so movimento, e apesar das evidências sobre a importân-
cia destas considerações, elas são maioritariamente rele-
gadas para o plano da fantasia, pois a questão fundacio-
nal é muitas vezes esquecida ou abertamente ignorada
(como já apontámos). Por isso avancemos para conside-
rações mais terrenas.

161
Quando se advoga a participação das mulheres no mo-
vimento, não como esposas, mães e companheiras, mas
como equivalentes intelectuais e físicas dos homens, ob-
viamente que se tem em mente muitos casos recentes
que, admita-se, angariaram indiscutivelmente um grande
número de novos convertidos à causa identitária, à defe-
sa do Ocidente e à tentativa de o ressuscitar do torpor
terminal em que se encontra depois de ter sido vergado
às forças igualitárias e relativistas do Iluminismo.

Consideremos o caso Lauren Southern. Com 23 anos, a


menina Southern é não só a fêmea mais famosa no mo-
vimento, mas uma das figuras mais proeminentes mesmo
descontando o seu cromossoma identificador. Qual é a
razão para esta popularidade? Será a originalidade das
suas ideias ou da apresentação dessas ideias? Ou será por
ser uma jovem rapariga que, no decorrer do seu trabalho,
vai mostrando as pernas e os ombros, e por vezes um
pouco mais que isso? Não se pode subestimar o poder da
libido masculina, que mesmo em assuntos em que deve
ser posta de parte acaba por dominar as prioridades.
Como podemos ver ilustrado nesta review do seu livro, a
menina Southern não é nem original nas ideias, nem na
apresentação – pelo contrário, nem sequer se eleva acima
do mais básico em ambas as categorias. Nesse livro, in-
clusivamente, encontra-se esta pérola de intelectualidade
e bom gosto: «If there was a moment in the 2016 U.S. election

162
that epitomized this newfound hate for the young on the right,
it was Republican consultant Rick Wilson’s infamous… decla-
ration that Trump supporters were “childless, single losers
who masturbate to anime.” Guilty as charged. Well, except I
don’t masturbate to anime characters. I dress up like them and
guys masturbate to me.» Se isto não demonstra que a me-
nina Southern sabe perfeitamente qual é o seu papel –
uma softcore camwhore para nerds políticos – não sei o
que demonstra.

Convém neste momento fazer um reparo: não estamos a


argumentar que a rapariga não produz nada de qualida-
de, pelo contrário. Um exemplo recente de algo de quali-
dade que produziu foi o documentário Farmlands, publi-
citado aqui com legendas em português do Brasil, que
chama a atenção devida para a horrível e ignorada situa-
ção dos brancos na África do Sul. Mas há perguntas im-
portantíssimas que se devem colocar: será que este do-
cumentário, ou as outras obras de qualidade feitas pela
menina Southern, só poderiam ser feitas por ela ou, pelo
contrário, um jornalista masculino poderia ter feito o
mesmo, com pelo menos a mesma qualidade (note-se que
as únicas partes más do filme são precisamente quando
ela faz monólogos em voz off enquanto se pavoneia em
frente da câmara)? E, sendo que um homem poderia fa-
zer o mesmo trabalho, e potencialmente mais bem feito,
haverá algo que só a menina Southern possa fazer, uma
categoria de actividades em que um homem a não possa
substituir? A resposta é igualmente afirmativa. E essas

163
actividades são aquelas que coincidem com o papel tra-
dicional da mulher na sociedade: ser uma esposa, uma
mãe, providenciar acompanhamento emocional e intelec-
tual nos primeiros anos de vida das crianças, manter um
lar estável e saudável para a sua progenitura.

Nunca me deixa de surpreender que tantos anti-


feministas queiram para as suas mulheres o mesmo que
as feministas querem para todas as mulheres: que sejam
imitações de segunda dos homens. Que em vez de se de-
dicarem àquilo que a sua biologia e seu espírito lhes lega
como natural e que só mesmo elas podem concretizar,
queiram que elas se dediquem a produzir frutos que os
homens também podem produzir, e em geral melhor.
Esta é uma das falhas primordiais da nossa civilização:
esquecer as divisões naturais, os papéis naturais, e trans-
formamos as mulheres em homens de segunda. Não ob-
servamos nós o vácuo criado por esta ideia de igualdade,
em que as mulheres da nossa raça desperdiçam a sua fer-
tilidade, os seus dons naturais, na perseguição do hedo-
nismo, por um lado, mas por outro lado igualmente des-
trutivo, na perseguição de carreiras, na imitação do papel
masculino? Não reconhecemos as consequências destru-
tivas para a civilização dessa nova ordem? Não as obser-
vamos todos os dias, quer em estatísticas, quer no dia-a-
dia? E se sim, porque queremos nós que as nossas mulhe-
res, participando num movimento que fundamentalmen-
te rejeita as consequências dessa ordem social, funcionem
da mesma forma e concretizem os mesmos erros?

164
Depois é preciso considerar algo que já foi mencionado
noutros textos: primeiro, que o meio é a mensagem. E
depois que atrair as pessoas erradas, e sobretudo os ho-
mens errados, é contraproducente. Neste caso, o meio é
muitas vezes o de ter mulheres a ditar a homens aquilo
em que devem acreditar e porquê. Psicologicamente, isto
resulta em homens castrados. A verdade é que a popula-
ridade de Lauren Southern, bem como de raparigas se-
melhantes, vem da percepção óbvia, mas perniciosa, de
que o mesmo tema quando apresentado em conjunção
com um decote ou uma carinha laroca tem automatica-
mente mais audiência. E note-se que a menina Lauren,
em termos de beleza, será no máximo um 6.5. Tire-se a
maquilhagem e desconfio que se encontra um 4 ou no
máximo um 5. Será que queremos conquistar uma audi-
ência de homens sexualmente frustrados que se perdem
de amores por uma rapariga de aspecto banal com quem
concordam politicamente?

Uma boa ilustração do tipo de homem que estas rapari-


gas atraem para um movimento que se quer sério e que
precisa, definitivamente, de homens com espinha, encon-
tra-se quando se ‘segue’ o dinheiro. Antes de ser banida
do Patreon, por exemplo, a Lauren estava a receber quase
quatro mil dólares por mês e, além de mostrar um deco-
te proeminente na sua foto, referia-se jocosamente ao fac-
to de uma doação dar o direito ao dador de dizer que era
seu ‘namorado’ e que ela não confirmaria nem desmenti-
ria. Outro exemplo, entretanto desaparecido da sua pági-

165
na, encontrava-se na possibilidade de pagar duzentos e
cinquenta dólares por 15 minutos (!) de sessão de Skype
privada com a menina Southern. Não sei de ciência certa,
mas apostaria que uma prostituta de luxo levaria menos
de mil dólares à hora – em carne e osso, não por sessão
de Skype. Isto ilustra tanto o empreendedorismo (por
assim dizer) da menina Southern, como a sede de atenção
feminina e a total efeminação dos homens brancos mo-
dernos, obcecados com a sua ‘namorada virtual’ ao ponto
de pagarem a peso de ouro a oportunidade de fazerem
parte do seu ‘círculo íntimo’ (quão grande é esse círculo,
nunca saberemos). Entretanto a menina Southern apagou
esta opção do seu site (depois de algumas críticas) e ficou
apenas a opção ‘Exclusive’, em que pagando cem dólares
por mês, obtêm um livestream particular entre os subs-
critores dessa opção e, cereja no topo do bolo, ela segue-
os no Twitter (não estou a gozar!). Não só não queremos
estes homens ao nosso lado numa batalha, mas perpetuar
este tipo de atitude é absolutamente contraproducente.
Podemos ter um exército de milhões, mas se forem mi-
lhões como os que dão dinheiro à menina Southern, se-
remos derrotados por trezentos inimigos duros, como na
mítica história.

Vários outros exemplos existem destas raparigas, tam-


bém chamadas de trad thots (ou putéfias tradicionalis-
tas), e das suas legiões de seguidores que comem dema-
siada soja. Nenhuma delas é casada, ou tem filhos. As

166
únicas mulheres do movimento que os têm são muito
mais recatadas, trabalham com os seus maridos e, por
essa razão, não obtêm o mesmo nível de atenção mascu-
lina (nem é esse o seu objectivo). Mas não podemos cul-
par apenas as raparigas. Quem devemos culpar são os
homens fracos que as promovem e lhes sustentam o esti-
lo de vida. Espero estar enganado, mas suspeito que ne-
nhuma dessas raparigas vai casar e ter filhos enquanto a
sua beleza relativa e juventude lhes permitirem ter hor-
das de frustrados a patrocinar as suas viagens e ‘aventu-
ras’. Para quê dedicarem-se a um homem, quando po-
dem ter a atenção de milhares, senão milhões?

Começámos com um ditado popular, e acabamos com


uma história que ilustra a importância, e a força impará-
vel, que é viver e agir conforme a ordem divina, e como
isso é espelhado pelos papéis, absolutamente distintos,
dos homens e das mulheres.

Com a subida ao poder dos bolcheviques na Rússia, vá-


rias leis contra a religião foram passadas, impedindo os
padres de evangelizar, incluindo ensinar o Cristianismo
às novas gerações. O objectivo, claro, era destruir a prazo
toda a religião visto que esta era um obstáculo, senão o
maior obstáculo, à criação do paraíso socialista na terra.
Estas leis mantiveram-se até praticamente ao final do re-
gime soviético, quase 80 anos. Conta-se que um líder So-
viético, pouco depois da revolução e tendo em conta as

167
leis estabelecidas contra a religião, perguntou ao Patriar-
ca de Moscovo o que iria acontecer à Igreja quando a úl-
tima avó morresse. O Patriarca respondeu-lhe que have-
ria outra geração de avós para as substituir. Palavras pro-
féticas, sobretudo se se considerar que a maioria das avós
russas de hoje eram apenas crianças ou nem sequer nas-
cidas quando estas palavras foram proferidas, e que a
Igreja manteve-se ao longo de toda a animosidade comu-
nista e retomou o seu lugar (e continuou a crescer) logo
após a queda do regime.

O que a história ilustra é que a Igreja salvou-se pelo facto


das mulheres agirem como mulheres, cumprindo o seu
papel natural, ensinando os mais novos, passando as tra-
dições. Repare-se que não foi através da ordenação de
mulheres para o sacerdócio que a Igreja continuou, mas
pelo contrário, precisamente por manter essa restrição,
cada sexo ter a sua função, permitiu que mesmo sob con-
dições incrivelmente adversas encontrasse uma continua-
ção. Há uma lição aqui para os homens e mulheres oci-
dentais dos nossos dias. Ao invés de aceitar a senda igua-
litarista e querer transformar as mulheres em homens de
segunda, que invariavelmente transforma os homens em
seres efeminados, devemos respeitar a ordem e separação
natural de funções, cada um apelando às suas forças, em
cooperação, em vez de competição.

168
O Elefante Tecnológico

A ortodoxia do nosso tempo assegura-nos que vivemos


numa era sem tabus. Na verdade, a nossa era é não só
fértil em tabus, como tem neles a sua fundação, meras
inversões dos tabus antigos. O consenso social é, em
qualquer era, um que requer certas verdades inquestio-
náveis. O processo de questioná-las e da dissolução do
consenso social é uma bola de neve. Quanto mais o con-
senso é discutido, mais os tabus que o mantêm são des-
truídos, e mais a sociedade se transforma noutra direc-
ção, com os seus próprios tabus.

É observável nas sociedades modernas que vivemos o


fim de uma era, que certos tabus que reinaram desde que
os antigos foram destruídos, estão a ser questionados,
pelo menos por uma minoria. Todos nós sabemos quais
são: a questão da imigração, provavelmente a mais pro-
eminente, mas nas franjas também a questão racial, o li-
beralismo social, a teoria da evolução, o materialismo, o
igualitarismo e até a democracia de massas.

No entanto há um tabu (e, por conseguinte, um consen-


so) que persiste, entre Esquerda e Direita, entre Progres-
sistas e Tradicionalistas, que é raramente questionado e,
pelo contrário, é defendido e proposto, não só como

169
acompanhamento inevitavelmente benéfico, mas como
panaceia para os problemas criados pelos outros tabus –
e ainda mais estranhamente, esta visão salvífica é princi-
palmente mantida pelo lado direito da barricada.

O tabu, e consenso, em questão é o progresso tecnológico


– e quão estranho e irónico é que tal tabu seja uma pre-
condição, uma necessidade para a manutenção de todos
os outros. Nem o anti-imigracionista, nem o racialista,
nem o tradicionalista se referem a ele. Preferem ignorá-lo
e focar-se nos tabus e consensos permitidos pelo progres-
so tecnológico, ou pior, exaltá-lo como mágica solução
para a destruição desses tabus e consensos. Como um
médico diligentemente dedicado a tratar os sintomas,
ignorando ou comicamente promovendo a doença que os
causa. O progresso tecnológico tornou-se o elefante na
sala que a direita insiste em ignorar, enquanto este des-
trói a mobília.

O anti-imigracionista vocifera contra a imigração de mas-


sas, vendo os navios e aviões que trazem milhões de pes-
soas vindas de longínquas paragens, sem nunca ligar os
dois pontos. Diz ele que trazer pessoas de culturas com-
pletamente distintas, com padrões civilizacionais comple-
tamente díspares, evoluções históricas e padrões sociais
avessos, é uma receita para o desastre. Mas não só ignora
ou aplaude o mecanismo que torna essa integração for-
çada possível, como nem contempla as origens de tais

170
distinções e disparidades e portanto é incapaz de enten-
der a génese do problema.

O carácter de cada cultura tem obviamente raízes religio-


sas, raciais e ideológicas. Mas têm igualmente um carác-
ter geográfico, delimitado. A única cultura que não é ge-
ograficamente delimitada é a cultura global, contra a qual
se insurgem, pelo menos em parte. As distinções entre as
várias culturas derivam do facto de não terem tido uma
evolução em comum, de estarem, mais ou menos, isola-
das umas das outras, desenvolvendo os seus próprios
padrões, costumes e normas. Até à Revolução Industrial,
as distinções culturais entre vários países, regiões e loca-
lidades Europeias eram certamente menores do que as
distinções entre culturas Europeias e Africanas – mas as
distinções existiam, e eram parte fundamental da identi-
dade de cada povo, região e localidade. Apesar das raízes
religiosas e raciais comuns, havia diversidade entre elas.
Com o progresso tecnológico, veio a possibilidade de
unificar culturas intra-nacionais, como em Itália, França
ou Alemanha, e eventualmente fazê-lo num panorama
multi-nacional. O paradigma e objectivo presente é fazê-
lo à escala global, mas a natureza do problema é a mes-
ma.

Existem ainda distinções entre a cultura de Portugal e da


Alemanha, mas em larga medida, muitas das que existi-
am e caracterizavam estes povos como distintos um do

171
outro deixaram de existir. Não vêem todos os mesmos
programas de televisão, usam os mesmos smartphones
com as mesmas aplicações, conduzem os mesmos carros,
praticam as mesmas profissões seguindo os mesmos mé-
todos, bebem as mesmas bebidas, comem nos mesmos
restaurantes, partilham da mesma ideologia? E qual é o
instrumento que, não só lhes permite fazê-lo hoje, mas
que destruiu as suas prévias ligações nacionais, locais,
comunitárias? Só há uma resposta válida: o progresso
tecnológico.

A verdade é que cada cultura distinta que existe e existiu


na terra, era circunscrita por um determinado contexto
geográfico que era, por sua vez, condicionado pelo de-
senvolvimento tecnológico, que não lhe permitia esten-
der as suas fronteiras e entrar em contacto continuado e
massivo com outras culturas. O progresso tecnológico
leva, então, inevitavelmente à contaminação e unificação
das culturas, primeiro locais, depois regionais, depois
nacionais e, agora, globais.

E é importante notar que a possibilidade de integração


com outras culturas torna-se uma eventualidade pois é
uma necessidade do próprio sistema tecnológico – tal
como todas as outras inovações trazidas por ele. Não só o
progresso tecnológico traz facilidades e confortos que são
atractivos para o cidadão comum, como eventualmente a
sua rejeição torna-se impossível para qualquer um que

172
queira participar na sociedade. Isto acontece no plano
individual como no plano comunitário, local, regional e
nacional. O rebelde que em meados do Século XX dizia
que nunca iria conduzir ou utilizar meios de transporte
automatizados, torna-se obrigado a usá-los quando todos
à sua volta e a própria organização do seu meio envol-
vente o obriga a tal, se quiser ter uma participação ainda
que ínfima na sociedade e obter o seu próprio sustento.
Ou o empresário que pretende manter os seus emprega-
dos pois é ideologicamente contra a automatização ou
simplesmente porque tem uma relação extra-económica
com eles, eventualmente terá de automatizar os seus pro-
cessos, cada vez mais, para acompanhar as outras empre-
sas e manter a sua rentável. Em alternativa, declara falên-
cia, despede os seus funcionários e torna-se ele mesmo
um funcionário de outrem, sempre com o cutelo da au-
tomatização a pairar sobre a sua cabeça, ameaçando o seu
posto de trabalho e a sua capacidade de se sustentar. E
também o país que rejeita os avanços tecnológicos que
vão ocorrendo noutras paragens torna-se vulnerável à
conquista por países tecnologicamente mais avançados, e
sofre pelo menos a pressão do seu próprio povo para
emular estes países pela informação que chega de fora
sobre as maravilhas trazidas pelos desenvolvimentos
tecnológicos.

Ou seja, o progresso tecnológico é primeiro introduzido


como uma opção, mas, eventualmente, e cada vez mais

173
rapidamente, se torna uma necessidade. A adesão aos
seus serviços deixa de ser uma escolha e passa a ser uma
obrigação para todos – e o preço a pagar pela não-adesão
cada vez maior quanto maior o desfasamento entre um e
outro grupo. E claro que este processo sempre ocorreu,
mesmo em sociedades primitivas, mas sempre de forma
muito limitada. Com a Revolução Industrial o espectro
de influência e a velocidade com que sucede, tornou-se
inescapável para qualquer povo, em qualquer parte do
mundo.

O racialista encontra-se na mesma posição. Ele sabe que a


integração de raças diferentes, não só de culturas, é em
geral uma fonte de conflicto e, excepto em casos históri-
cos pontuais com a combinação perfeita de outros facto-
res, degenera no caos social. Ele sabe que a miscigenação
entre raças díspares é uma fonte de fraqueza, não só ge-
nética como cultural, e uma destruição da herança deixa-
da pelos nossos antepassados. E, no entanto, ignora ou
promove o progresso tecnológico através do qual é pos-
sível a importação de outras raças, a convivência conti-
nuada e a atenuação das consequências directas da mis-
cigenação. Os problemas e perigos da endogamia são
bem conhecidos, sendo que confirmam os tabus moder-
nos, mas os perigos da exogamia são largamente ignora-
dos. No entanto os estudos apontam que, entre membros
de raças díspares, existe uma depressão exogâmica, uma
degeneração que enfraquece os seus frutos, e quanto

174
mais díspares as combinações, mais geneticamente fraco
será o produto. No entanto, através do progresso tecno-
lógico, estas fraquezas são atenuadas – e, eventualmente,
resolvidas. Qual é, nesse caso, o argumento contra, se a
tecnologia nos permite solucionar os problemas causados
pela exogamia? Torna-se num argumento meramente
cultural e sentimental. E aí voltamos aos parágrafos ante-
riores sobre a contaminação e unificação cultural levada a
cabo pelo progresso tecnológico.

Mais, numa era em que as culturas se unificam e homo-


geneízam, o argumento de que importar outras raças e
culturas é disruptivo torna-se ele mesmo espúrio, pois
até que ponto podemos falar de culturas diferentes num
mundo globalizado? O Africano tribal é certamente inas-
similável à cultura tradicional Portuguesa, mas o Africa-
no que ouve música popular americana, come McDo-
nalds, bebe Coca-Cola e vê Netflix é culturalmente seme-
lhante ao Português que faz exactamente o mesmo. A
cultura é a suma das acções e atitudes de um grupo hu-
mano – se as acções e atitudes são as mesmas, os grupos,
para todos os efeitos, são os mesmos e podem misturar-
se à vontade, pois já não há praticamente nada a separá-
los.

Da mesma forma, o tradicionalista queixa-se do declínio


moral observado na sociedade, da destruição da família e
da comunidade, da atomização e do individualismo, sem

175
nunca apontar a mira ao mecanismo que não só possibili-
tou a destruição de toda a ordem social que considera
valiosa, mas tornou essa destruição uma inevitabilidade.

Na sociedade tradicional, a família e a comunidade não


eram uma escolha, nem uma convenção, mas uma neces-
sidade de sobrevivência. O indivíduo precisava de uma
rede de apoios familiares e comunitários para existir e
persistir. A tradição era, ao mesmo tempo, uma ferra-
menta para as novas gerações, que tinham um ponto de
partida, e um objectivo que significava a sua perpetua-
ção, porque ao perpetuá-la cada família e comunidade
assegurava o seu futuro. Coisas tão simples como os fi-
lhos continuarem os misteres dos pais, ao invés de perse-
guirem outras ocupações, assegurava a continuação e
manutenção da comunidade. A introdução de automa-
tismos retira esta necessidade, e promove a dispersão e
dissolução da comunidade. A invenção da fábrica mo-
derna destruiu, para todos os efeitos, esta forma de vida
– ou seja, destruiu a comunidade e a família tal como foi
entendida durante milénios. Hordas de rurais abandona-
ram as suas comunidades porque as suas actividades
económicas já não eram rentáveis face às capacidades
tecnológicas das fábricas; substituíram a sua comunidade
particular pelos habitáculos indistintos e estranhos da
cidade onde não conheciam os vizinhos, nem tinham com
eles nada em comum, a não ser a desgraça de terem sido
empurrados para aquela situação; as suas culturas co-

176
munitárias, por sua vez, desapareceram, visto que o ciclo
de continuação foi abruptamente parado; nas cidades, os
indivíduos atomizados aderem, pois, necessariamente à
cultura urbana, cosmopolita e desligada de qualquer raiz,
pois é a única que existe e que pode existir.

A moralidade tradicional perde toda a sua força quando


é desligada da sua razão objectiva, de sobrevivência. A
castidade e a monogamia deixam de ser ferramentas ne-
cessárias para uma vida salubre, e tornam-se opções –
opções morais, mas cuja não-adesão deixa de ter penas
concretas na vida terrena. Onde antes a libertinagem se-
xual trazia graves consequências para o indivíduo (e, vis-
to que este estava inserido numa comunidade, também
para todos à sua volta), com a introdução de métodos
contraceptivos modernos, de métodos abortivos mais
seguros, até da facilidade de providenciar sustento sendo
mãe solteira, as consequências são atenuadas, quando
não removidas, e a regra moral deixa de ter uma aplica-
ção clara e objectiva na vida comum. O mesmo para a
monogamia heterossexual, que numa sociedade tradicio-
nal é a única forma de produzir progenitura e assegurar
que esta tenha possibilidade, não só de estabilidade psi-
cológica, mas de sustento e sobrevivência, através da in-
trodução tecnológica torna-se uma escolha – e todo o tipo
de arranjos alternativos se auto-justificam.

177
E reparem que não referimos as consequências
dos malefícios do progresso tecnológico, que em geral só
são descobertos tarde demais, como por exemplo a des-
truição do meio natural pela poluição industrial ou a con-
taminação dos nossos corpos por partículas tóxicas, como
comprovadas regularmente em estudos que chegam à
conclusão de que os avanços tecnológicos têm, afinal,
também prejuízos. Estamos a falar das consequências,
não dos malefícios, mas dos benefícios do progresso tecno-
lógico. Estes benefícios, que são inegáveis, como o au-
mento da esperança de vida ou a relativa facilidade na
produção de alimentos, têm em si mesmos contrapartidas
nefastas, sobretudo de um ponto de vista de direita. Que
os vários avanços tecnológicos tenham algumas conse-
quências materiais negativas é óbvio para todos com o
passar do tempo, mas que as consequências materiais
positivas trazem os seus próprios problemas – e que não
são problemas pontuais e circunscritos, mas problemas
civilizacionais, de paradigma – não é tão fácil de ver, ou
de admitir. Se o fosse teriamos muito mais vozes na direi-
ta a expressar preocupações com este fenómeno, e a ver-
dade é que não temos.
Inúmeros outros exemplos podem ser dados daquilo que
era natural e necessário numa sociedade tradicional, mo-
no-cultural e mono-racial, e que se torna acessório, opci-
onal ou até desvantajoso com a introdução de tecnologia
moderna. Aqueles que lutam a favor de um retorno sem
criticar o sistema tecnológico, estão a lutar contra uma
sombra numa parede – e quem dá murros contra pare-

178
des, não só magoa a mão, como não fere o inimigo. A
modernidade pode ser uma doença espiritual, mas é en-
quadrada em parâmetros físicos. Todas as sociedades
Europeias, no continente ou na diáspora, estão afectadas
e infectadas por esta doença. Será que o problema é, en-
tão, especificamente Europeu? Não, a razão para as soci-
edades Europeias (e logo a seguir as do extremo Oriente)
serem as mais afectadas é que são as que há mais tempo
convivem com a tecnologia moderna, que lideram os
seus avanços e sofrem primeiro as consequências da sua
introdução. A existência de grupos como os Quakers, os
Amish ou os Menonitas, que rejeitam a tecnologia mo-
derna e, não por acaso, mantêm comunidades tradicio-
nais, mono-culturais e mono-raciais, prova a origem do
problema.

O Globalismo, em todos os seus aspectos culturais, raci-


ais e morais, não é na sua génese uma simples ideologia,
que pode ou não ser promovida e pode ou não ser com-
batida em si mesma. O Globalismo é a mera racionaliza-
ção do sistema tecnológico, a moldura necessária para o
quadro pintado pelo progresso tecnológico. A história da
Torre de Babel é muitas vezes trazida à discussão para
ilustrar o Globalismo, tanto da parte dos seus opositores
como dos seus proponentes. Mas os seus opositores fa-
lham em ver que há uma lição tecnológica na história: a
construção não seria possível sem os materiais, o conhe-
cimento e a linguagem comum. Quando Deus dispersa as

179
nações, não as separa simplesmente em termos geográfi-
cos, mas retira-lhes a ferramenta, a linguagem comum,
que era a condição principal para a sua afronta a Deus. A
mesma lição existe na história da desobediência humana
no Jardim do Éden, em que o novo conhecimento precipi-
ta a decadência de toda a criação. Aqueles que encolhem
os ombros e vêem esta admonição como irrelevante ou
até contraproducente, estão presos numa visão progres-
sista do mundo, a mesma da Esquerda, de que o progres-
so é um bem em si mesmo, trazendo novos amanhãs que
cantam, e que a estabilidade é uma anomalia. Daí verem
o progresso tecnológico, não como destrutivo, mas como
libertador. Mas piores são aqueles que, entendendo a li-
ção Bíblica, ainda assim fecham os olhos à sua manifesta
e óbvia encenação contemporânea, o progresso tecnoló-
gico e as suas consequências para a saúde moral dos ho-
mens e das suas sociedades. Ambos, porém, ao ignora-
rem ou apoiarem o progresso tecnológico, passado, pre-
sente e futuro, estão a lutar sem saberem contra si mes-
mos, em contradição absoluta.

Este parece ser o comprimido mais difícil de engolir para


os meus correligionários: o progresso tecnológico é ine-
rentemente disruptivo de tudo aquilo que a direita diz
querer preservar, seja de natureza cultural, racial ou mo-
ral. Ou seja, é necessariamente uma ferramenta da es-
querda, que só pode avançar os objectivos da esquerda.
Se a direita quiser lutar de forma séria e eficaz contra os

180
males que correctamente identifica no mundo, tem de ser
necessariamente céptica de avanços tecnológicos e favo-
recer um retorno, não só aos aspectos exteriores da socie-
dade tradicional, mas às condições tecnológicas que as
tornavam possíveis e salutares.

181
Informar o Público

Nada sublinha a irrelevância de informar o público sobre


as forças que o controlam e moldam do que a existência,
documentada e comprovada, uma e outra vez, de redes
de tráfico humano e pedofilia com pendor ocultista, que
operam ao mais alto nível das nossas sociedades e o ab-
soluto nada que resulta sempre que este facto se torna
público.
Sempre que uma tal notícia, como aconteceu recentemen-
te, é demasiado grande para ser simplesmente silenciada,
ela lá passa nos meios de comunicação oficiais, filtrada
como sempre, mas passa.

E depois de passar, desaparece. Casos semelhantes e com


implicações igualmente globais aconteceram em inúme-
ros países, incluíndo o nosso rectângulo atlântico, sem
que o castelo de areia que é o sistema de poder moderno
fosse derrubado, sem que as pessoas exigissem justiça,
sem que houvessem visíveis consequências, culpados e
sentenças que mudassem o paradigma.
Como explicar esta situação? Se perguntarmos individu-
almente aos nossos conhecidos, obviamente que nos ex-
pressarão o seu pesar pelo sofrimento das crianças, a sua
preocupação com a corrupção dos oligarcas psicopáticos
a que insistem em chamar de elites e algum temor com os
elementos ocultistas e satânicos envolvidos – se chega-

182
rem até essa camada da informação disponível, algo que
em si já é duvidoso.

Será pela censura, pela ausência de meios oficiais e de


massas para veicular esta informação? Há quem acredite
que sim, mas eu acredito que não. Penso até que os nos-
sos mestres sobrestimam a disposição da pessoa comum
para se preocupar com estes assuntos.
Se por acaso o cidadão comum se deparasse, como even-
tualmente se depara, com a realidade dos oligarcas, cons-
ciente ou inconscientemente, será levado a concluir que
condená-los seria condenar-se a si próprio. E o mesmo
poderia ser dito da questão migratória, da influência da
cultura de libertinagem sexual e os seus tentáculos, ou
qualquer outra questão cultural de peso no nosso tempo.

Porque iria o cidadão comum exprimir, ou sequer sentir,


consternação com redes pedófilas quando ele mesmo vê
miúdas menores em trajes menores a exibirem-se no Ins-
tagram, quando a sua filha adolescente anda na rua ves-
tida como as prostitutas de há 20 anos e o seu filho vê
pornografia no telemóvel? Porque iria ele condenar a
imigração em massa quando, para o seu Benfica, ela até
significa mais vitórias? Porque irá ele criticar a cultura de
libertinagem sexual quando tira proveito dela?

É irrelevante informar as pessoas sobre a toxicidade da


cultura, quando são viciadas no veneno que as está a ma-
tar. A educação de que as pessoas precisam é muito mais

183
profunda do que a mera informação sobre o clima políti-
co e social. E pelas minhas observações, são os que mais
precisam dessa educação, que mais avessos são a ela,
pois é o antídoto para a desordem na qual estão viciados.

Cristo veio trazer a divisão – e os nossos inimigos serão


aqueles da nossa própria casa. Se por conveniência, co-
modismo ou sentimentalismo nos negarmos a expurgar
quem se recusa a fazer a coisa certa, quem se recusa a dar
uma orientação moral e cultural aos próprios filhos,
quem tira partido sem pudor da desagregação social para
fins de entretenimento e lucro, lembremo-nos que esta-
mos a negar o Bem. Só porque a lista é longa, não nos
devia demover do nosso dever de estabelecer limites e
princípios, segundo os quais vivemos, e que não sacrifi-
camos por vantagens de networking ou pela dor da per-
da de laços de sangue. Se não rejeitamos o mal, e as pes-
soas que o fazem, por mais banal, ou por omissão, esta-
mos implicitamente a rejeitar o Bem. A hora de ser mor-
no está a chegar ao fim. E podemos pelo menos atentar a
sabedoria dos nossos antepassados, que nos explicaram,
de forma sucinta e clara, que mais vale só do que mal
acompanhado.

É preciso que percebam que há por aí muitas más com-


panhias e que a tentativa de as reformar acaba, quase
sempre, na corrupção do reformador.

184
A Caverna

Um leitor deixou uma nota, que considero acertada, que


diz o seguinte:

«um dos melhores locais para se avistar casais mistos são


precisamente os centros comerciais.»

É importante perceber o porquê deste fenómeno, que não


é uma mera coincidência, mas aponta sim para uma rea-
lidade muito mais profunda que é necessário confrontar.
A miscigenação (sobretudo em massa como vemos acon-
tecer hoje) é um sintoma, não a doença – e quanto mais
tempo confundirmos um com o outro, mais adiaremos a
cura.

Qual é a então a ligação entre miscigenação e centros co-


merciais? Qual é a doença que produz este, entre outros,
sintomas?

Primeiro temos de entender o que é um centro comercial,


e o que veio substituir. O centro comercial é o símbolo do
desligamento entre produção e consumo, e também entre
comunidade e economia. É o símbolo por excelência do
capitalismo global, onde produtos do mundo inteiro, fa-
bricados pelo mundo inteiro, vendidos por multinacio-

185
nais são comprados por um grupo heterogéneo de pesso-
as, que nada têm em comum a não ser o consumo.

Contrastemos isto com a realidade pré-centro comercial.


Eu ainda lembro um mundo diferente da minha infância
dos anos noventa, e não foi numa terriola, mas num bair-
ro lisboeta – que mesmo nessa época tardia de perdição
ainda mantinha a mesma configuração, embora as bre-
chas estivessem prestes a ser abertas definitivamente e o
dique permanentemente destruído, levando à inundação
do capitalismo global e da destruição de todas as raízes
locais.

A identidade nacional não é construída directamente en-


tre o Eu e o País, mas requer inúmeros passos intermé-
dios: do Eu para a Família, da Família para o Bairro, do
Bairro para a Localidade, da Localidade para Região e da
Região para o País. Todos estes degraus, começando na
família directa e acabando na família nacional, são neces-
sários. Do Eu para o País sem intermediários, não há fa-
miliaridade. E tendo destruído estes degraus não admira
que o Português médio não tenha qualquer apreço pela
sua Portugalidade – porque sem a familiaridade inter-
média, essa Portugalidade não existe – é um produto de
propaganda estatal, de eventos históricos com o qual não
tem qualquer ligação e de artefactos que, desligados da
sua origem e contexto, tornam-se meramente objectos de
consumo.

186
A identidade nacional não pode ser construída pelo topo,
e como tal não foi destruída pelo topo, mas pela base.

No pequeno bairro da minha infância, toda a gente se


conhecia. Em grande medida, os homens casavam com
mulheres que conheciam desde pequenos, e as famílias
dos noivos conheciam-se há pelo menos uma geração,
tendo vivido lado a lado e partilhado um espaço público
que hoje é difícil de conceptualizar, sobretudo para quem
o não viveu. O grosso do consumo era não só feito dentro
do bairro, mas entre pessoas que partilhavam mais do
que uma relação comercial. Eu comprava gomas no qui-
osque do senhor Zé que tinha ficado viúvo muito novo;
ouvia repreensões da costureira permanentemente à jane-
la que ameaçava ir contar as minhas diabruras à minha
avó; ou ia comprar bagaço ou tabaco no café do Sr. Lo-
pes, que sabia muito bem que o bagaço e o tabaco não
eram para mim e mos dava sem eu ter de pagar porque
depois acertava contas. E se por acaso me visse a beber
ou a fumar, eu já sabia que ia logo descer a rua ou à mi-
nha avó. As velhotas juntavam-se na praça central para
conversar enquanto faziam tricot, os velhotes jogavam
dominó ou conversavam sobre futebol. Os meus pais, os
adultos nascidos no fim do antigo regime ou pouco de-
pois, que cresceram com a televisão e com a promessa do
mundo global que esta trazia, começavam já a sonhar
com o mundo do Centro Comercial, sem saber aquilo que
estavam a deitar fora.

187
Primeiro foi o carro, que nos levou do bairro familiar on-
de toda a gente se conhecia para o bairro dormitório em
que ninguém se conhecia apesar de todos virem de sítios
e situações semelhantes. O próprio bairro dormitório não
tem zonas comunitárias que não estejam ligadas ao con-
sumo, e assim que as lojas fecham, as praças ficam deser-
tas, ficando só os adolescentes a fumar charros – até isso
ligado ao consumo. Na praça do bairro velho, as pessoas
juntavam-se para falar umas com as outras sem precisar
de um objecto de consumo que as ligasse dada a rede
complexa de outras ligações que ali existiam; as velhotas
ficavam o dia todo à janela, a fazer conversa ou a vender
os seus serviços dos mais variados tipos, mas todos com
o propósito de reparação. O Centro Comercial, pelo con-
trário, representa a mudança deste modo de pensar as
coisas: nada se repara, tudo se substitui. Por novo, maior,
mais vistoso. Até as igrejas destes bairros dormitórios
não oferecem na maioria um local de confraternização
exterior à liturgia, algo que era dado como garantido, e
em vez disso servem um propósito único e que, sem o
que o rodeia, perde uma grande parte do seu sentido e
apelo.

Os bairros tradicionais foram sendo abandonados pelos


adultos, munidos de carros e centros comerciais, e ven-
didos a compradores de luxo (muitas vezes estrangeiros),
dada a sua localização na cidade. As lojas das pessoas
que lá viviam foram substituídas por cadeias comerciais,

188
as pessoas que lá trabalham moram a horas de distância e
não vão manter esses trabalhos muitpo tempo. Já não há
velhotas às janelas, só estabelecimentos comerciais, es-
planadas, e lojas de ‘artesanato’ português, vindas do
Norte e do Sul e do Centro, completamente desligados do
seu contexto. O bairro antigo já não é um bairro, é a uni-
dade comercial número X, e o bairro dormitório não é um
bairro, é a unidade habitacional número Y. Se mudassem
as pessoas e os estabelecimentos, como mudam frequen-
temente, não se mudava nada. A sua verdadeira identi-
dade é a ausência de identidade. E como tal, que diferen-
ça faz para o habitante do dormitório se no apartamento
ao lado está um português ou um angolano: a um como a
outro só vai dizer bom dia, se disser, e nada vai saber da
sua vida, nem ele da dele. Ambos se poderão encontrar
no centro comercial, com os mesmos objectivos de con-
sumo, e igualmente desligados de qualquer ligação pro-
funda.

Tudo foi orientado para a utilidade e como tal a própria


identidade das pessoas se torna utilitária – daí a prolife-
ração das amizades e relações à volta de ‘interesses co-
muns’, seja a devoção por uma série de filmes ou por
uma banda qualquer, ou até por ideologia política. É uma
identidade mercantil, um pobre substituto da verdadeira.

Este mundo, de comercialismo e utilitarismo, cujo em-


blema maior é o Centro Comercial, não pode nunca sus-

189
tentar qualquer identidade nacional, a não ser de uma
narrativa fictícia ligada a eventos histórios longínquos (e
mesmo isso está a ser apagado, porque não tem mais ra-
zão de ser mantido) ou a representações fúteis (como o
futebol).

O que muitos vêem como solução, é parte do problema.


O Nacionalismo postula a ligação directa entre o Eu e a
Nação, sem intermédios. Foi um produto do iluminismo,
do liberalismo, e é apenas o passo anterior ao globalismo
que postula a identidade do Eu como cidadão do mundo,
ligado directamente ao todo global. Ambos são ausentes
de raízes. E um leva ao outro. Não posso salientar o quão
importante é entender esta dinâmica, pois caso contrário
os meus correligionários andarão a lutar por uma mera
encarnação prévia do mesmo problema, em vez de lutar
por uma solução.

O Centro Comercial, emblema e veículo físico da destrui-


ção das identidades intermédias, é pois naturalmente o
lugar das pessoas desafectadas, daquelas cuja identidade
é pessoal e global, sem nunca ser outra coisa. Pelo que a
miscigenação, um produto desta desafecção, se mostre
tão claramente nestes estabelecimentos. No bairro antigo,
o casal miscigenado contrastaria violentamente com o
mundo ordeiro e natural, de proximidade a todos os ní-
veis. No Centro Comercial, o casal miscigenado é o resul-
tado natural e expoente máximo da primazia da técnica,

190
da utilidade e do comercialismo global, primazia que
levou à destruição das identidades que sustentavam a
identidade étnica.

A mistura de raças e a destruição da etnia é um resultado


natural da mistura de populações internas e da destrui-
ção de identidades locais. Uma deriva da outra. Sem re-
jeitar uma não se rejeita a outra.

Por outras palavras, o Centro Comercial (e sobretudo o


que ele representa), é incompatível com a sociedade que
os nacionalistas desejam. Espero que não seja tarde de-
mais quando entenderem isto.

191
A supremacia da excepção

Se estudarmos a estrutura da sociedade medieval, que é a


meu ver o periodo histórico mais elevado da civilização
Cristã Europeia, vemos por exemplo coisas como estas:

Tais vulgares imagens eram pintadas nas margens de


livros, objectos altamente prezados na época pela dificul-
dade e labor envolvidos em os fabricar, e tanto mais que
as palavras que continham eram quase sempre ligadas ao
Divino de uma forma ou de outra, fosse por divagações
teológicas, orações e canções litúrgicas ou a própria Sa-
grada Escritura.

Nos seus livros estava contido o seu mundo, um mundo


em que o centro é claramente o centro, e a margem é a

192
margem – mas ambos existem nos seus lugares, sem
nunca se confundirem. Há dias específicos para celebrar
a margem, e depois volta-se ao normal (como o Carna-
val). O que a modernidade fez foi, sucessivamente, afir-
mar o absolutismo do centro, ou da margem, rotativa-
mente.

Nos nossos dias a margem substituiu o centro, e até há


poucos meses eu ainda estava preso numa visão moder-
na do mundo e achava que as margens tinham de ser,
não só impedidas de se tornar o centro, mas retiradas da
página.

O mundo não funciona assim. É necessário que estejamos


conscientes dos ‘monstros’ existentes na alma humana,
na nossa e na do próximo, para que os possamos manter
à margem – porque nunca nos poderemos ver livres de-
les inteiramente.

Precisamos de humildade, uma humildade que os nossos


antepassados não tiveram. O meu orgulho, o meu
próprio zelo em manter os meus valores, impedia-me de
perguntar de onde vinha toda esta inversão, toda esta
teoria e prática virada do avesso para destruir as mais
elementares bases da sociedade. Pela graça de Deus colo-
quei a pergunta, e a resposta não deixava o nosso lado
impune. Estas pessoas e movimentos não surgem do na-
da – surgiram de uma procura de pureza absoluta do

193
centro expurgando as margens, mas por sua vez essa
procura por pureza surgiu de uma erupção das margens,
e por aí adiante, numa questão que acaba por ser como a
da galinha e do ovo.

É importante quebrar este ciclo de violência e instabili-


dade. Não precisamos de viver em anarquia, nem em
ditadura, nem numa estranha mistura das duas (como
nos nossos tempos). Há um caminho intermédio, de ver-
dadeira estabilidade, com monstros nas margens, mas
Jesus Cristo no centro.

194
Feira

Numa feira local, com carrosseis, algodão doce, farturas e


jogos de precisão impossíveis de ganhar, havia também
bancas de produtos regionais de negócios familiares e
um rancho folclórico, tocando e cantando temas tradicio-
nais. Ao lado do palco, num placard fora da feira, estava
um anúncio a uma marca de preservativos.

Não foi só o contraste do mundo tradicional do folclore e


das chouriças com o mundo moderno que me atingiu, foi
onde ambos se manifestavam.

Sempre achei que as feiras, com as suas ‘diversões’ e gu-


loseimas tinha algo de grotesco e de aterrorizante. Depois
vim a descobrir que nos nossos tempos já tinham, afinal
perdido grande parte daquilo que as caracterizava, preci-
samente o grotesco, o bizarro, o invertido, o excesso –
não porque se quisesse extinguir ali o seu espaço, mas
porque todos os espaços se tornaram adequados para a
sua manifestação.

As feiras populares, como o Carnaval e outras celebra-


ções do género, serviam como válvula de escape: a Mar-
gem tinha finalmente o seu momento, o excesso, o bizar-
ro e o invertido ocorrem num ambiente controlado, parti-

195
cipa-se até certo ponto, satisfazem-se os demónios mais
fracos, para no resto do tempo se evitarem os mais fortes.
A vida depois volta ao normal.

No mundo moderno, a Margem e a Excepção tomaram


mais e mais espaço, dizendo abolir o Centro, mas na prá-
tica relegando-o para a Margem.

Na sociedade medieval o Centro e a Margem, a Regra e a


Excepção coexistiam, mantendo os seus lugares e as suas
correctas proporções. Na nossa, a inversão é absoluta.
Vemos Igrejas conspurcadas por sacrilégio, instituições
de educação submetidas à ignorância e ao obscurantis-
mo, forças de ordem fomentando o caos e por aí fora.

Não é absurdo pois esperar que se encontrem sinais de


vida, de esperança, de tradição e de ordem em sítios
inesperados, já que os seus lugares naturais foram des-
truídos. Por muito que se queira tapar a luz, algumas
frestas acabam sempre por permitir a sua passagem.

Ao lado de um anúncio de preservativos, o rancho folcló-


rico, composto por várias gerações, todos vestidos a ri-
gor, canta sobre um mundo onde eles não são necessá-
rios.

196
Ser Humano

O sol não se põe. A terra roda, sobre si mesma, e à volta


do sol, dando a impressão de que este nasce numa ex-
tremidade da terra, e se põe na outra. Mas é apenas uma
impressão. Por sinal, a terra também não tem extremida-
des.

Sabendo isto, quantos de nós se lembram destes factos


quando vemos o sol a viajar no céu, a surgir e a desapa-
recer de vista?

A realidade do pôr-do-sol, que serviu como orientação


vital para os nossos antepassados e para ainda alguns de
nós, é observada por todos. A descrição científica do
mesmo fenómeno, por muito correcta que possa ser, po-
de apenas ser observada por uma minoria de seres hu-
manos, e através de sofisticados meios técnicos – e a ori-
entação que oferece é igualmente limitada.

Nenhum materialista, querendo descrever um pôr-do-


sol, colocará a questão nos termos científicos que consi-
dera descreverem a realidade. Em vez disso dirá ‘que
belo pôr-do-sol’. Quão anti-científico da sua parte.

Da mesma forma, aquilo que entendemos por ‘ser huma-


no’, é igualmente afectado por esta contradição. Por um

197
lado, dizem-nos que somos mera carne, talvez mente,
mas só na medida em que a mente é o software a correr
no hardware do cérebro. E por outro, sabemos que têm
um conceito do que é agir ‘humanamente’. Mas que é
isso, numa visão materialista?

Se um homem é um mero conjunto de características,


qualquer das suas acções é necessariamente humana.
Agir de forma humana é então uma mera tautologia,
uma categoria falsa, não-científica, e como tal, inexistente
ou, na melhor das hipóteses, irrelevante.

Mas quantos materialistas realmente agem baseados nes-


sa premissa? Na verdade muitos dos seus argumentos
fundam-se na extinção ou aliviamento do sofrimento
humano – com que justificação, exactamente?

Porque reconhecem, suponho eu, uma humanidade ‘ide-


al’, além da mera carne.

Ao viver em sociedade, o materialista implicitamente


reconhece que, para se ser verdadeiramente humano, há
que suprimir desejos, retardar gratificações, evitar con-
fortos, em prol do futuro. Mas um mero calculista tam-
bém pode retardar a sua gratificação no momento, mas
meramente em benefício próprio, e sem qualquer pudor
em destruir o próximo para obter aquilo que deseja. Será
que isso é, enfim, agir humanamente?

198
Continuo a achar que até o mais convicto ateu diria que
não – se fosse rigoroso, diria que sim, mas só dentro dos
parâmetros estabelecidos, que não incluem a compaixão
pelo outro como critério. Será que essa definição tão limi-
tada nos serve? Talvez para a medicina, para a química e
outras ciências naturais. E se a mantivermos nesse domí-
nio, sem querer daí extrapolar uma visão completa do
mundo, tudo está bem.

Infelizmente, o materialista insiste na primazia dessa li-


mitação.

Que definição devemos então usar de humanidade, da


visão ideal do que seria ‘agir humanamente’? É, tão sim-
plesmente, sacrificar a própria vida pelo outro.
Quando nascemos somos um poço de exigências, e
quando estas não são atendidas imediatamente fazemos
birras. Com o tempo, e com sorte, aprendemos a ter
compaixão com as nossas mães e pais, compreender o
seu sacrifício por nós, e assim também começamos a sa-
crificar-nos por eles, a pôr as suas necessidades antes das
nossas, e eventualmente aprendermos a fazê-lo com ou-
tros, mais afastados de nós, e até com aqueles que nos
odeiam e nos desejam o mal.

Se a essência do que é ‘agir humanamente’ é o sacrifício


pelo próximo, então Jesus Cristo é o seu máximo exem-
plo. Deus mostra-nos o que é ser humano na crucificação.

199
No primeiro capítulo do primeiro livro das escrituras,
Deus cria o mundo pela Palavra. Diz: haja Luz, e haja
animais, e por aí fora. Mas na criação da humanidade,
Deus diz: Façamos. E toda a gente se foca no plural, mas
não no verbo.

Nós, ao contrário do resto da criação, somos um projecto


Divino. Nós não surgimos apenas pela palavra na nossa
forma final, connosco é preciso amassar e esculpir o barro
até que seja, verdadeiramente, um homem. E esse projec-
to é completado em Cristo. Somos humanos quando imi-
tamos a Cristo, e somo-lo mais na medida em que o imi-
tamos mais fielmente.

No Evangelho de João, Pilatos declara ‘ecce homo’, aqui


está o Homem, querendo com isso dizer que era ‘mera-
mente’ um homem. Mas ao morrer na cruz Deus mostra-
nos não só o que é ser humano, mas o que é ser Divino.
Pois é ao morrer como humano que Cristo prova a sua
divindade. A imagem de Deus à qual nós fomos feitos é
Cristo. E é através Dele que nos tornamos humanos. Por
isso, uns versos mais tarde no mesmo capítulo, Cristo
diz, antes de morrer: ‘Está consumado’.

O que está consumado é o projecto humano. Cabe a cada


um de nós tornarmo-nos humanos, através de Cristo, ao
sacrificarmos a nossa vida pelo próximo, tal como ele o
fez por todos nós.

200
Paradoxos

A primeira coisa a ter em conta quando um Cristão se


depara com qualquer oposição, é que é tão possível negar
a Verdade em todas as suas manifestações como é possí-
vel parar de respirar – eventualmente, por muito que se
tente, desmaia-se e a respiração é reiniciada. A única
forma eficaz é utilizar uma corda bem apertada à volta
do pescoço – e por vezes, de facto, os não-Cristãos tendo
uma visão enviesada, confundem a corda que os pendura
pelo pescoço com aquela que lhes ata os sapatos.

Mas como a respiração, também com a Verdade. Ela


permeia tudo, e como tal, mesmo entre os erros e os pre-
conceitos, surge lá no meio, guiando as mentes que pen-
sam e os corações que sentem. Todas as estradas lá vão
dar, e a única forma de não chegar lá, ou pelo menos
aproximar-se, é parar de andar.

Daí que tenha sido possível trazer o Cristianismo aos


quatro cantos do mundo – porque a Verdade está escrita
nos corações de todos os seres humanos e é preciso muito
esforço para a ignorar.

Como é costume, prefiro olhar para dentro para encon-


trar o que está errado, antes de apontar o dedo aos ou-

201
tros. E é necessário admitir que é aos Cristãos que cabe o
trabalho de pregar decente e adequadamente; e que essa
tarefa foi negligenciada durante séculos, em particular
aos Europeus, por se julgar que o trabalho estava feito. A
verdade é que os Cristãos se demitiram de pregar aos
convertidos, como quem se esquece de pôr mais lenha na
fogueira – e eventualmente ela apaga-se, ou fica tão fraca
que é preciso muito trabalho para a reacender.

Em particular, houve um erro táctico enorme, o erro do


general quando ganha a batalha e pensa que a guerra
também está ganha. E assim, marchando depois pelas
terras do que se pretende conquistar, encontra-se uma
oposição que se pensava já não existir. E assim os Cris-
tãos, em vez de converter repetidamente, limitaram-se a
repetir a conversão. Em vez de explicar, reiteraram. Em
vez de persuadir, impingir. Antes da queda vem o orgu-
lho, e como tal, reiterar e impingir acabam eventualmen-
te na retirada táctica, perdendo terreno sem saber muito
bem para quem o tinham perdido, nem porquê.

A meu ver o porquê deve-se à abordagem. O Cristianis-


mo não suprimiu os antigos pagãos: incorporou o que
havia de bom e descartou o que havia de mau. Se foi uma
conquista, não foi pela força, mas pela sedução. Viu que a
fruta estava a apodrecer, mas guardou as partes ainda
saudáveis.

202
Quando São Paulo foi pregar aos Atenienses não come-
çou por dizer-lhes o quão errados estavam, que eram
burros, que a sua religião ancestral era uma falsidade e
apresentado Cristo como uma novidade e uma ruptura.
Não quis deitar tudo abaixo e construir sobre os escom-
bros – construiu sobre as pedras firmes que já estavam
lançadas, e deixou cair as que tinham fundação duvidosa.
Pegou no que de bom havia neles, e partiu daí. Vendo
que os Atenienses eram religiosos e observando os seus
objectos de culto, encontrou um altar que dizia ‘ao Deus
desconhecido’ e, em vez de lhes dizer que vinha pregar
um Deus novo, disse-lhes que lhes vinha dar a conhecer
Aquele que até então lhes era desconhecido.

O mesmo tem de ser feito com os Ateus, os Agnósticos,


os New Agers e os anti-Cristãos. Há muitos objectos de
culto e toda a gente os tem. Não é preciso colocar a pa-
chamama no Altar, mas sim encontrar o pouco de bom
que ela representa, e clarificar que o que tem de bom vem
de Deus, e o que tem de mau vem de nós. Nesse caso par-
ticular a que aludi, há quem não compreenda as razões
para o caso surgir, mas a verdade é que há uma ausência
e rejeição gritante do feminino no mundo moderno (um
tema para outro texto), e é apenas natural que seja procu-
rado. Cabe aos Cristãos apontar o sítio onde se o deve
procurar – a Mãe de Deus, não a mãe natureza.

203
Virando-me agora para outro lado, o mais curioso nas
oposições ao Cristianismo, é que elas são paradoxais, por
vezes vindas de lados opostos, mas até do mesmo lado.

Por um lado critica-se o Cristianismo por ter destruído


violentamente os paganismos Europeus, por outro diz-se
que é demasiado dócil e ensinou aos Europeus uma men-
talidade de escravo. De um lado dizem que é uma inven-
ção judaica para subjugar os gentios, do outro que é anti-
semita. De um lado criticam-no por ser demasiado re-
pressivo da sexualidade, por outro que os Cristãos fazem
muitos filhos. De um lado diz-se que os Cristãos só vêem
no mundo escuridão e perversidade, e por outro que têm
uma atitude de alegria infantil perante ele. De um lado
diz-se que oprime a mulher, de outro que a põe num pe-
destal. Por um lado que exalta a pobreza e a modéstia, e
por outro que adorna os seus templos de ouro e os seus
sacerdotes de vestes exuberantes. Por um lado que su-
primiu as práticas pagãs, por outro que as incorporou
nas suas. Por um lado que considera o suicídio como o
maior dos pecados, e por outro que encoraja os fiéis a
serem mártires pela fé. Que Cristo nos dizia para amar os
inimigos, e depois que eles eram os da nossa própria ca-
sa. Que Cristo disse a Pedro para arranjar uma espada, e
depois o repreendeu quando este a usou. Que Cristo é o
Príncipe de Paz, mas que veio deitar fogo ao mundo e
gostava que ele já estivesse a arder.

204
Os críticos têm alguma razão. As acusações são verdadei-
ras, até certo ponto. O Cristianismo é, de facto, parado-
xal. E é aí que reside a sua veracidade. Porque o Homem
é paradoxal. Não é pois o Cristianismo que acusam, mas
a própria natureza humana. Não é num extremo nem no
outro que se encontra a virtude, mas no meio. E Cristo
veio apontar-nos esse caminho, para que não pecássemos
por um lado nem pelo outro, como tinha sucedido com
todas as culturas e religiões até à sua vinda.

Mas não é apenas um compromisso entre extremos, mas


a existência dos extremos simultaneamente. O pacifismo
do mosteiro e a violência da cruzada, ambos ao mesmo
tempo, e na sua plenitude. Cristo morreu para nos liber-
tar da morte. Uma união de opostos, sem anular nenhum
deles. Pois Cristo não era meio-Deus e meio-Homem,
mas totalmente Deus e totalmente Homem.

E assim se entende que enquanto a Igreja foi intacta na


Europa, outras manifestações paradoxais existiram que
talvez os críticos (ou alguns deles) possam apreciar: a
Europa estava, ao mesmo tempo, unida, mas dividida em
múltiplas entidades, sem nenhuma suprimir as outras;
sublinhando sempre a irmandade entre os povos, mante-
ve-os separados; insistindo na primazia da cultura Cristã,
preservou as culturas nacionais, regionais e locais; insis-
tindo no Latim ou no Eslavónico, manteve as centenas de
línguas existentes no continente. E quando essa primazia

205
dos opostos começou a ser quebrada, não foi só a prima-
zia que se destruiu, mas os próprios opostos morreram
uniformizados.

Numa metáfora que alguns críticos podem certamente


apreciar, o Cristianismo insistia no preto e no branco, em
absoluto. Ao destruir-se essa insistência radical, criou-se
o cinzento que permeia o mundo moderno, o mundo
pardo que a todos parece ao mesmo tempo sufocante e
insuficiente.

206
Protestar

Quando nos apercebemos que o mundo está virado do


avesso, é útil olhar para o que é vilificado, pois muitas
vezes é aí que se encontra a Verdade. Penso ter sido as-
sim que, pelo menos em parte, tenhamos chegado às con-
clusões a que chegámos. Observando que nenhuma reli-
gião é tão criticada como o Cristianismo, concluímos que
alguma coisa de bom se há-de encontrar nela. É pois
também necessário fazer o mesmo em relação à Igreja
Católica, e perceber que nenhuma outra instituição é tão
vilificada pelo sistema e pelos que se dizem contra ele, e
que há aí uma lição. Isso não quer dizer que todas as crí-
ticas estejam erradas, mas que a avalanche de críticas
vindas de todos os lados ou quase, deveria pôr-nos a
pulga atrás da orelha.

Mas é um facto que não há nenhuma instituição, grande


ou pequena, que não tenha sido corrompida pelo moder-
nismo, e nisso incluiu-se a Igreja Católica Romana, mas
também a Ortodoxa, as igrejas protestantes, as nações e
os povos, e por aí fora. Também é importante dizer que a
era moderna começou no século XV, não no século XX. A
corrupção não é nova. Se o que vemos hoje é uma extre-
ma corrupção que nos parece recente, ela é apenas a rea-
lização de uma corrupção começada há muito tempo,
como quando se toma uma estrada errada, não é imedia-

207
tamente aparente que o seja, mas só depois de a percorrer
um bocado, ou até mesmo só depois de chegar ao destino
errado se percebe. E depois o retorno é igualmente de-
morado, tem de se percorrer a estrada toda até ao cruza-
mento onde se tomou a esquerda, em vez da direita (me-
táfora usada não aleatoriamente, claro).

Por isso quando dizemos, por exemplo, que nascemos e


crescemos numa cultura Católica, é tanto verídico como
falso, depende do termo de comparação: Portugal dos
anos noventa é certamente uma cultura mais Católica do
que a Alemanha dos anos noventa, mas muito menos do
que a Alemanha de 1200. O que quero dizer pode ser en-
tendido desta forma: não é tanto que a cultura em que
crescemos fosse Católica e nos desse poucas respostas, é
que era pouco Católica, e por isso deu-nos respostas sem
se colocar as perguntas. Daí que tenha afastado quase
todos os jovens de tendência intelectual: não há nada
mais anti-intelectual do que responder a uma pergunta
que não se ousa colocar.

Mas mais importante do que identificar o que foi cor-


rompido, e quando começou a corrupção, é qual a forma
que essa corrupção tomou. E isso é mais fácil de identifi-
car do que parece: a corrupção efectuada foi a perda (ou
desvalorização, e em alguns casos diabolização) do pen-
samento místico e uma aderência fanática ao pensamento
puramente materialista.

208
Antes de continuar, devo dizer que não aprecio antago-
nizar Cristãos protestantes, não os considero menos Cris-
tãos por isso, e que se critico é por amor, e por achar que
é absolutamente necessária – mas não me é agradável.
Mas o facto é que vejo o erro dos nossos tempos como
um resultado directo do Protestantismo, que é em si um
resultado do materialismo – um obstáculo que se coloca
sobre os olhos, mas que em vez de atenuar a luz para não
sermos cegados, se assemelha mais a um telescópio ou
microscópio, que assegura a cegueira. É o erro da extre-
ma proximidade bem como da extrema distância. De
uma forma ou de outra, não se vê o que está à frente dos
olhos.

Pegando no exemplo da Igreja: em diferentes graus e em


diferentes manifestações a Igreja Católica foi ‘protestanti-
zada’ – isto é, despida da sua componente mística (muito
mais na Romana do que na Ortodoxa, por várias razões
que terão de ser abordadas noutro texto). E antes de ex-
plicar porque é um erro, preciso de explicar em que con-
siste.

O Protestantismo, sendo fundado unicamente na Bíblia e


dizendo descartar a Tradição, tem logo três problemas
insolúveis. Primeiro, que a própria Bíblia foi compilada
pela Igreja Católica (na altura sem a separação entre Oci-
dente e Oriente) – ou seja, a própria Bíblia é um produto
da Tradição, que existia antes do Cânone a que os Protes-

209
tantes aderem. Aderindo ao Novo Testamento, aderem já
à Tradição, dizendo rejeitá-la. Mas sem a orientação da
hierarquia, o que sucede é que se utiliza o microscópio ou
o telescópio, e focando-se num ponto mais longínquo ou
num ponto mais próximo, se é incapaz de ver o todo. Daí
que do Protestantismo tenha nascido o Capitalismo e o
Comunismo. Aqueles focam-se na parábola dos talentos
esquecendo-se que Jesus nos diz quão difícil é a um rico
entrar no Reino de Deus; os outros focam-se exactamente
no contrário. Ambos estão certos em relação aos particu-
lares, mas errados em relação ao todo.

Segundo, que o próprio Protestantismo forma uma tradi-


ção (ou, na verdade, sendo que quebram o elo de ligação
com a Tradição e a hierarquia, várias), e essa fragmenta-
ção não é uma coincidência. Deus é unidade com varie-
dade, não variedade sem unidade (o seu exacto oposto,
na verdade): quando Jesus pergunta à criança possuída
(Marcos 5) como se chama, os demónios respondem: “le-
gião, porque somos muitos”.

Terceiro, que essa aderência única à Bíblia necessita de


meios técnicos específicos para ser realizada – daí que a
revolução protestante, como todas as outras revoluções,
veio na sequência de um desenvolvimento tecnológico
particular e à permissão de que essa tecnologia fosse
usada sem limites (isto é, fora da Tradição): a prensa mó-
vel. Sem esse meio técnico que permitiu a reprodução

210
simples de Bíblias em várias línguas, a fé Cristã só pode-
ria ser transmitida por meio da Tradição e das hierarqui-
as estabelecidas, como até aí tinha sido feito.

Quando os Protestantes olham para o Catolicismo e os


seus rituais, olham-nos com olhos modernos, materialis-
tas, e como tal não conseguem conceber mais do que su-
perstição (no melhor dos casos) ou conspirações ocultis-
tas. Da mesma forma, quando olham para a Bíblia, só a
conseguem entender de forma materialista, o que leva a
que estejam constantemente em desacordo sobre inter-
pretações – em comparação, e mesmo em cisma, as Igre-
jas Católicas (Romana, Ortodoxa ou Oriental) têm muito
poucas divergências (à parte as corrupções, protestantes,
do Concílio Vaticano II). E também quando olham para
as similitudes entre celebrações ou práticas Católicas e
práticas pagãs, em vez de tentarem entender a forma co-
mo Cristo transformou essas práticas, lhes deu novo sig-
nificado, só conseguem ver ocultismo e conspiração.

O Protestante observa que certas tradições Católicas têm


origens, similitudes ou contornos pagãos, e decide des-
cartar tal facto como heresia, em vez de pensar no porquê
de se ter mantido essas práticas e não outras, já que mui-
tas não foram mantidas. A ideia de Jesus como revoluci-
onário só podia, pois, ter vindo do Protestantismo: a re-
jeição radical de tudo o que veio antes.

211
É essa mesma mentalidade que leva outros críticos a di-
zer que o Cristianismo, sendo a realização da Tradição
judaica, é incompatível ou externo aos Europeus. E por
isso uns e outros pecam pelos extremos: há aqueles que
se focam na tradição judaica, e os que se focam na tradi-
ção Europeia. Em vez de se focarem em Cristo e na sua
Igreja, separar o trigo do joio e viver numa sociedade
equilibrada.

De certa forma ambos estão certos, mas igualmente erra-


dos, e pela mesma razão: estão certos porque, de uma
certa perspectiva materialista, as suas críticas são factu-
ais, mas errados por ser uma análise incompleta. Como
se olhassem para um copo, e descrevendo todos os seus
componentes físicos, não o identificassem como um reci-
piente para líquidos. E de facto, não há nada nesses com-
ponentes em si mesmos, nem na sua unificação em si
mesma, que faça deles um copo. Mas tal consideração é
completamente irrelevante para se perceber o que é um
copo e para que serve. Da mesma forma, os materialistas
não entendem o que é nem para que serve a Igreja (e a
religião em geral).

A própria estrutura da palavra original (do latim, religa-


re) nos diz para que serve: para nos voltar a ligar ao Di-
vino. Se essa ligação pudesse ser directa, como pensam
todos os materialistas (incluindo os que colocam a ciência
ou os seus produtos como objecto de culto) não precisarí-

212
amos de religião. Por vezes penso que os Protestantes
nem sequer entendem que a nossa natureza caída signifi-
ca que fomos desligados do Divino e precisamos que nos
voltem a ligar, e que portanto o sufixo ‘re’ em religar pa-
ra um Protestante não está lá a fazer nada.

Um exemplo: a visão materialista leva automaticamente a


considerar o pecado ancestral de uma certa perspectiva,
de que o conhecimento é inerentemente mau, o que que-
reria dizer que Deus teria criado algo mau. E o ateísmo
resultante deste desentendimento leva ao contrário, que
se preste culto ao conhecimento sem se considerar que há
formas boas e más de o obter.

A visão correcta é-nos explicada por vários Pais da Igreja,


de que a Árvore era meramente um teste, e que o conhe-
cimento em si não era mau, mas apenas a forma de o ob-
ter. Obtido em desobediência, sem preparação, o homem
seria corrompido, não pelo conhecimento, mas pela de-
sobediência – como alguém que tendo os olhos fechados
os abre directamente para uma luz fortíssima, e assim
permanece incapaz de ver. Pelo contrário, Deus queria
que o homem fosse digno desse conhecimento, se apro-
ximasse aos poucos, e assim não fosse cegado pela luz. Se
Adão e Eva tivessem obedecido ao mandamento, Deus
ter-lhes-ia em tempo dado o conhecimento. É até possível
especular que tivessem eles se aproximado pela sua sim-
ples experiência. Sem ter caído na primeira tentação do

213
demónio, eventualmente seriam levados ao conhecimen-
to do bem e do mal, pelo simples facto de que o raio da
serpente estava sempre a tentá-los – veriam claramente
que existia o mal, e que consistia na desobediência ao
mandamento divino e à vontade de sermos iguais a
Deus, sem nos juntarmos a Ele. Mas Adão e Eva caíram, e
sendo confrontados com esse conhecimento imprepara-
dos, ficaram aterrorizados. A razão porque não se mos-
tram certas imagens a crianças de certa idade, e eventu-
almente se lhas revelam, é a mesma. O Protestante diz:
mostremos tudo de uma vez, ou nunca mostremos. Este
padrão do tudo e nada, dos extremos sem o equilíbrio do
meio, é o que o define – e essa sua influência é a que de-
fine os nossos tempos como resultado da mentalidade
protestante.

Outro exemplo: a cronologia da Crucificação de Cristo é


diferente entre os Evangelhos, o de João coloca-a antes do
festival judeu Pessach e os outros depois. Será que se en-
ganaram? Sem um entendimento não-materialista, e sem
uma interpretação exterior à própria Bíblia, o Protestante
cai no desespero, porque é suposto encontrar na Bíblia
toda a Verdade independente da História, mas ao mesmo
tempo um documento histórico semelhante a um manual
de História. Mas a Bíblia é mais do que história, e é mais
do que a lei, e é mais do que sabedoria. Há uma compo-
nente mágica, no sentido estrito, em que os eventos, sen-
do reais, são apresentados de forma não-linear, para

214
atingir um determinado significado – e esse significado
tem de vir de fora – e ou vem assente na hierarquia e na
Tradição, ou leva às heresias do Comunismo, do Capita-
lismo, do Anarquismo, e todos os outros ismos. Não é
por acaso que todas essas ideologias revolucionárias nas-
ceram no Ocidente. O Zen Budista ou o misticismo Hin-
du são menos distantes de Cristo do que os proto-
comunistas de Munster. Os dois primeiros são meramen-
te incompletos, o segundo uma inversão.

No caso da discrepância entre a descrição em João e os


outros, ela tem que ver com o objectivo do Evangelho, e o
contexto. No primeiro capítulo do Evangelho é dito ‘ali
está o Carneiro de Deus’ (a única instância em que é pro-
ferida tal frase), e quando a sua crucificação é apresenta-
da durante (e não depois) do Pessach, é para salientar
este facto – sendo que neste festival se sacrificavam car-
neiros, João quer mostrar que o sacrifício de Jesus Cristo
é o derradeiro, o fechar deste ciclo. O Carneiro de Deus é
sacrificado, e daí em diante, não será necessário sacrificar
mais nenhum. Uma visão puramente materialista não
nos permite compreender a profundidade dos versos, e
muito menos a profundidade da discrepância – porque
ela não é um erro, mas uma impressão de significado
maior.

Por causa desta lacuna, o próprio entendimento histórico


é perdido. Por exemplo quando se fala de ‘verdadeiro

215
Cristianismo’ dos primeiros anos e das diferenças entre
este e o Catolicismo organizado dos anos posteriores, não
se percebe o carácter histórico do próprio Cristianismo. É
óbvio que o Cristianismo dos primeiros séculos não foi
igual aos seguintes, mas da mesma forma que a fundação
de uma casa é diferente da casa depois de ter sido com-
pleta, não faz da casa outra coisa que não uma casa, nem
da fundação algo para ser usado em si mesmo, mas uma
mera fase na construção da casa.

O que nos leva ao ocultismo, aos símbolos e aos rituais. É


absolutamente verdade que seitas maléficas se apodera-
ram de vários símbolos e os usam para maus fins. Mas na
grande maioria esses símbolos foram apropriados, não
originais. O seu poder como símbolo não desaparece,
nem aquilo que nos quer ensinar. Veja-se por exemplo a
frase, muitas vezes usadas pelos ocultistas: ‘as above so
below’. Já vi muitos protestantes alarmados por esta fra-
se, pensando em conotações satânicas, quando basta pen-
sar um pouco para perceber que Cristo é a verdadeira
realização dele e Ele mesmo o diz de outra forma, na ora-
ção que nos legou nas Escrituras: ‘assim na terra como no
céu’. O importante é não deixar de lado que é a vontade
de Deus, não a nossa, que deve ser ‘na terra como no
céu’. Abandonar esse símbolo aos satânicos, no entanto, é
o mesmo que abandonar o Pai Nosso – daí que o credo
principal de tanta gente hoje seja ‘a minha vontade assim
na terra como no céu’.

216
O problema é precisamente que os Ocidentais abandona-
ram o pensamento místico, e deixaram-no ser tomado
pelos inimigos do Bem. Se queremos derrotá-los, temos
de o reincorporar na nossa mundivisão – ou melhor, vol-
tarmos a perceber como é impossível separá-lo. Tentei
explicar anteriormente, por exemplo, que o pôr-do-sol,
entendido literalmente, não existe – e mostrar com isso
que o literalismo é uma parvoice. Talvez seja essa realiza-
ção inconsciente que leve ao abuso da palavra ‘literal-
mente’ na língua inglesa. O literal é muito menos impor-
tante do que o figurativo. É no figurativo que nós existi-
mos a maior parte do tempo. Mas a única forma de o fa-
zer sem cair em distorções, sem achar que é a nossa von-
tade em vez da Sua, a ser realizada na terra e no céu, é
através da Tradição, as práticas, a sua arte e as suas for-
mas, para que possamos compreender e recuperar esse
mundo perdido das mãos daqueles que o usam apenas
para o subverter.

O simbolismo apresentado nos filmes de hollywood, que


é muitas vezes orientado para uma interpretação satâni-
ca, é tão apelativo porque é verdadeiro, mas apresentado
do avesso – a Crucificação e Ressureição fazem parte de
quase todos os filmes de super-heróis, e é por isso que
são tão apelativos; em contraste com a arte nominalmente
Cristã que só apela aos convertidos, porque é tristemente
literal. No fundo, estamos a deixar o inimigo usar o po-
der das nossas histórias para as desconstruir – enquanto

217
nós abandonamos as histórias, os símbolos, e como tal,
legamos o seu poder elucidativo ao inimigo.

Por fim, lembremos que em todas as eras houve quem


achasse que vivíamos no fim dos tempos. Em parte, por-
que os padrões da realidade se repetem, e como tal o que
vem no Antigo Testamento repete-se uma e outra vez e
também o que vem no Apocalipse. Mas não é bom vi-
vermos sob essa presunção – é melhor viver sob a pre-
sunção de que podemos ainda construir algo de bom e
salvar alguma coisa, tanto para a nossa saúde espiritual,
como para a dos que nos rodeiam e como tal, do mundo
inteiro.

218
José Mário

Morreu hoje José Mário Branco, paz à sua alma.


Sou um grande apreciador da sua música, desde o início
da minha adolescência, e com os anos fui solidificando a
minha convicção de que nele se encontrava o melhor
‘cantor de intervenção’ da sua geração, e não apenas isso,
mas como todos os grandes artistas, não só bebeu da ine-
vitável influência de Zeca Afonso, como ele mesmo aca-
bou por influenciar o mestre, ajudando-o a produzir al-
guns dos seus melhores discos.

Pode parecer estranho, à primeira vista, que um escriba


como eu tenha tamanha admiração por um artista como
José Mário Branco, um feroz opositor do antigo regime,
um desertor do exército, um comunista. Mas o mundo é
muito mais complicado do que parece, e os artistas não
são necessariamente da mesma qualidade que as suas
opiniões. Um pouco como nos melhores livros de Sara-
mago, em que o mundo e as ideias apresentadas chegam
a ser contraditórias com o que o autor proclamava fora
da sua capacidade de autor, José Mário Branco produz o
mesmo fenómeno: não só nas suas letras, mas nas formas
que utilizava para as apresentar, sempre me pareceu que
o mundo que sugeria era muito mais coerente do que a
incoerência da sua ideologia política, que hoje é manifes-
ta para quase todos os seres pensantes. O conteúdo segue

219
a forma, o meio é a mensagem, e uma canção medieval
sobre o proletariado é menos de esquerda do que um rap
sobre Deus. Até mesmo numa peça de cariz eminente-
mente político e social, como o icónico FMI, que ainda
hoje me arrepia em certos momentos de cada vez que a
oiço, consegue-se descobrir uma complexidade e hones-
tidade que não se limita aos lugares comuns do marxis-
mo.

Não é minha intenção aqui analisar a carreira nem a pro-


dução artística de José Mário Branco, é muito melhor ou-
vi-la do que ler sobre ela, até porque como Frank Zappa
o colocou uma vez ‘escrever sobre música é como dançar
sobre arquitectura’, um absurdo. Mas a sua morte, além
de me pôr taciturno, lançou-me numa reflexão sobre a
pessoa, o artista, e de onde surgem estas contradições
vivas. Convém entrarmos um pouco na biografia, outro
exercício que o modernismo desaconselha na apreciação
de uma obra e de um autor, e como tal sabemos que é um
exercício da mais basilar importância.

Os dados mais importantes da sua biografia são os se-


guintes: filho de professores primários, que certamente
lhe incutiram o valor da educação (não confundir com
escolaridade), Católico extremamente envolvido na vida
da Igreja, cursou História em duas universidades nunca
tendo terminado o curso. A certa altura na sua vida,
substituiu a Igreja pelo Partido Comunista – um fenóme-
no que Vasco Pulido Valente escarnece com desdém, mas

220
que nos diz muito mais do que o velho cínico sugere,
nem que seja pela enorme quantidade de gente que fez o
mesmo percurso.

Como já aludi noutros textos, a Igreja deixou de pregar


aos convertidos. O mundo tecnológico e científico avan-
çava para os seus domínios e a Igreja retraia-se, guardava
um bocado cada vez mais pequeno da cabeça das pesso-
as. Foi incapaz de lhes explicar as implicações, e mais
importante, incapaz de lutar contra a ideia tecnocrática
de que só o que é mesurável e quantificável é importante.
Manteve meramente o qualitativo, mas sem valorizar
essa qualificação. E assim, claro, perdiam qualquer força
de acção na sociedade: a Igreja deixou de ser deste mun-
do e como tal, de nos ajudar a chegar ao outro. Vários
Católicos fizeram então esta conversão para o Comunis-
mo. O Comunismo descartava o imaterial, mas não se
demitia da luta metafísica: oferecia uma narrativa com-
pleta sobre o homem, o mundo, de onde vínhamos e,
igualmente importante e basilar, para onde íamos. A
Igreja esqueceu-se desta última parte e perdeu os fiéis
para uma nova igreja fundada na Alemanha e com patri-
arcado oficial em Moscovo. O mesmo aconteceu com o
Fascismo, ou o Nacional Socialismo Alemão, e todas as
outras ‘grandes narrativas’. Ninguém se perguntou por-
quê, sobretudo as mentes bem-pensantes do Ocidente,
que consideravam o homem moderno acima de tais limi-
tações: o homem não precisa de uma grande narrativa
para a sua vida, precisa de pão e liberdade para perse-

221
guir os seus interesses. O agnosticismo sobre que interes-
ses seguir, é o vazio de onde depois surgem tiranias, às
quais os niilistas liberais e democráticos reagem com cara
de Pikachu surpreendido. Quem poderia ter previsto que
a visão tecnocrática do homem, sem passado nem futuro,
poderia ter gerado todos os ismos? Quem poderia imagi-
nar que a incapacidade ou indisponibilidade do mundo
tecnológico e científico em colocar perguntas de ordem
maior, não iria impedir que elas se pusessem na mesma,
sob formas distorcidas e perniciosas?

Muitos intelectuais a partir dos anos 80 gozavam com a


afirmação, antes sincera e bem vista, de que o Comunis-
mo oferecia um ‘aparelho para pensar’. Muitos deles ti-
nham sido comunistas, mas tal como tinham rejeitado a
Igreja, convertiam-se agora a uma nova fé: a democracia
liberal, ou o que quiserem chamar àquilo em que vive-
mos. Mas não deixaram de ter um ‘aparelho para pensar’,
pelo menos não imediatamente: é mais seguro e produti-
vo saber que se o tem, do que fingir que ele não existe.
Mas com o tempo, de facto, a civilização ocidental passou
da fé Católica, para a fé Comunista para eventualmente
se converter na negação de que a fé é necessária de todo:
o niilismo mercantil puro e duro do consumismo.
E essa ausência de uma grande narrativa gerou o mundo
em que vivemos hoje: uma ausência de propósito que
está a ser preenchida por uma ou várias novas ideologias
violentas e destrutivas como o Comunismo. Hoje vemos
a cara de Pikachu surpreendido perante o avanço do ab-

222
solutismo da ideologia de género, dos identitarismos (de
um lado e de outro), e todos os outros ‘aparelhos para
pensar’ que oferecem uma narrativa, ainda que incom-
pleta, ou mesmo completamente idiota. Mas aparente-
mente é preferível uma narrativa idiota ou incompleta à
ausência de narrativa, que só produz suicídio, infantiliza-
ção, demissão.

Pura e simplesmente, o mundo moderno engoliu-se a si


mesmo, não é possível continuar uma civilização sem
uma grande narrativa, e assim vemo-lo colapsar. O Oci-
dente está a morrer, mas visto que o Ocidente impingiu a
sua visão tecnocrática ao mundo inteiro, não é apenas o
Ocidente mas a própria visão tecnocrática. Pelo mundo
inteiro se protesta, e os gatilhos são variados, mas na gé-
nese está essa grande ausência de narrativa: e os povos
que ainda a têm, são precisamente aqueles em que ainda
há vitalidade e que invadem aqueles que já não têm ne-
nhuma para além do dinheiro, do conforto e do entrete-
nimento.
O vácuo não permanece por muito tempo, e não há tal-
vez nada mais repugnante do que um homem sem con-
vicções: é esse o resultado do absolutismo materialista.
Mas a sua insuficiência é hoje óbvia para uma boa parte
da população que nasceu no seu seio. Temos pois uma
oportunidade para substituir a ausência de narrativa por
uma que seja acertada: a Cristã, do Homem feito à ima-
gem de Deus, e da inerente dignidade e propósito dessa
realidade. Essa narrativa que nos fundou e que conhece-

223
mos apenas porque a sua abolição deixou explícito o va-
zio da sua ausência.

Se José Mário Branco tivesse nascido nos anos noventa do


Século XX não seria comunista, mas poderia ser um acti-
vista ambiental, ou um racialista, ou até um tradicionalis-
ta Católico. Não seria certamente um ser desengajado da
realidade, um mero consumista cujo único propósito na
vida é a obtenção do lucro. Na sua arte, podemos ver lai-
vos da luz, que mesmo apontando para o lado errado, ao
menos aponta para algum lado, uma vida com propósito
para além da satisfação pessoal. Essa arte permanecerá.
Ainda tem algo que nos ensinar. Em comparação os artis-
tas de hoje, meros burgueses, agnósticos e liberais, não
deixarão nada digno de lembrança. Ninguém, aquando
da sua morte, ficará taciturno, pensará no valor da músi-
ca que produziram, nem será acometido por pensamen-
tos sobre o estado do mundo.

Que Deus tenha piedade da sua alma.

224
Contar a história certa

O trabalho de um escritor é contar histórias. Para ser coe-


rente as suas histórias têm necessariamente de discrimi-
nar que detalhes serão contados. Há muitas formas de
contar a história da queda do Império Romano mas é du-
vidoso que uma história bem contada desse período per-
ca tempo a descrever as espécies de peixe mais consumi-
das pelas populações envolvidas (posso estar errado, no
entanto, e o consumo de peixe ser extremamente relevan-
te para a história – não sou um especialista, é apenas um
exemplo).

Se o escritor for bom contará a sua história excluindo os


detalhes irrelevantes e incluindo os que são relevantes
para a história e para as conclusões ou perguntas que se
quer suscitar nos leitores. O problema é, pois, determinar
quais são relevantes e quais são irrelevantes. Isso não
implica que o que se deixa de fora da história é falso, mas
simplesmente que não tem importância (ou pelo menos
tanta) para a história que se quer contar.

E essa importância não é fixa: detalhes que possam ter


sido extremamente relevantes, podem deixar de o ser, e
vice-versa. Por exemplo, se a um miúdo de 8 anos se diz
para não comer os chocolates todos da caixa, dez anos

225
depois talvez seja mais relevante dizer-lhe para não co-
mer as miúdas todas da turma. Adapta-se a história ao
contexto, às necessidades de compreensão e acção do
contexto presente. O escritor político e social tem pois de
analisar a sociedade em que vive, e determinar que deta-
lhes são relevantes para contar a história do seu tempo,
para convidar os seus leitores a pensar, mas sobretudo
convidá-los a pensar sobre os temas relevantes.

Durante muitos anos, foi extremamente relevante falar


dos perigos do comunismo, da sua natureza destrutiva,
das atrocidades que os seus regimes perpetraram e per-
petravam, e por aí fora. Em escribas que viveram essa
época é compreensível que seja complicado desligarem-
se dessa realidade. Mas acontece que ela mudou. E falar
de comunismo hoje, condená-lo com a veemência que era
salutar outrora, é como descrever as espécies de peixe
consumidas por Romanos e Góticos e esperar que daí se
retire qualquer conclusão sobre a queda do Império Ro-
mano do Ocidente. O nosso império do Ocidente também
está a cair, e não é por causa do comunismo.

Hoje, os comunistas clássicos são tão poucos, e com tão


pouca influência, que são irrelevantes. Dão mais pena do
que metem medo. Os militantes e activistas de extrema-
esquerda com influência não pretendem colectivizar os
meios de produção, nem abolir a propriedade privada,
nem sequer acreditam que a história é movida pela luta

226
de classes e que o proletariado vai, inexoravelmente, to-
mar o poder, abolir as classes e depois o Estado. O mais
provável é não só ignorarem Marx, mas ignorarem-no
por nunca o terem lido. Pelo contrário, a extrema-
esquerda é pós-Marxista da mesma forma que o Ocidente
é pós-Cristão. E a extrema-esquerda é hoje conivente (e a
maior defensora) do capitalismo monopolista, por este
avançar as suas novas causas de libertinismo sexual e
criação de identidades mercantis, que por sua vez contri-
buem para o lucro e consolidação da classe monopolista –
num círculo e ciclo vicioso. Se a nova esquerda presta
homenagem e usa os símbolos da velha esquerda, é por
mera conveniência, estilo e anacronismo – da mesma
forma que a direita homenageia e enaltece figuras e idei-
as das quais deveria ter vergonha (como Thatcher e o
‘conservadorismo’ que nada conserva). E é extremamente
cómico quando os vejo lembrar a putos com camisetas do
Che Guevara que o velho comunista odiava pretos e exe-
cutava sodomitas com prazer – cómico porque o Che é
um símbolo, não uma tese, e só a mente materialista da
direita moderna pode pensar que vai chegar a algum la-
do lembrando esse facto à nova esquerda – que para o
nosso mal ainda é capaz de pensar, e usar, símbolos efici-
entemente.

No nosso mundo, é praticamente irrelevante falar de co-


munismo – e se talvez se possa conceder que falar dele na
América do Sul seja relevante (e mesmo aí, é discutível se

227
o problema será exactamente esse). Na Europa, e sobre-
tudo na Europa Ocidental, é uma perda de tempo e de
energia. Toda a gente passível de ser instruída sobre esse
particular problema já o foi – e o problema hoje é mani-
festamente outro. Ninguém, a não ser os velhos apoiantes
e os velhos detractores, se animam com o assunto.

Muitos já falaram e continuam a falar das vidas que se


perderam por causa do comunismo, mas comparativa-
mente muito poucos falam das almas que se perderam e
perdem, a ritmo cada vez mais acelerado e em idades
cada vez mais precoces, por causa do liberalismo. Esse é
o grande flagelo da nossa era, mas aqui também os críti-
cos do marxismo demonstram que as suas mentes foram
capturadas pelo mesmo materialismo que o originou e
que continuam a criticar, quase em contradição. Alguns
deles são Católicos mas agem como se a vida terrena fos-
se a única, e portanto perdem-se em críticas espúrias a
um inimigo material que já não existe ou cujo impacto é
nulo, esquecendo ou menorizando o inimigo imaterial
que devora a nossa sociedade – porque, lembremos, “não
é contra a carne e sangue que temos que lutar, mas sim
contra os principados, contra as potestades, conta os
príncipes do mundo destas trevas, contra as hostes espiri-
tuais da iniquidade nas regiões celestes.”
A verdade é que os maiores atentados à dignidade hu-
mana do nosso tempo não vêm do aparelho estatal como
antes vieram, nem de qualquer teoria de supremacia do

228
Estado, mas dos monopólios de capital multinacional,
dos seus inúmeros tentáculos ‘não-lucrativos’, de concep-
ções individualistas e não colectivistas, da extrema licen-
ciosidade e não da extrema repressão: isto é, vêm do libe-
ralismo, não do comunismo.

Por exemplo, podemos e com razão rejeitar e lutar contra


a implementação da ‘ideologia de género’ e absurdos re-
lacionados nos currículos escolares, mas não podemos
fingir que o problema começa ou acaba aí. Deveria ser
óbvio a todos os que se opõem a tais ideias que elas são
tornadas disponíveis às crianças muito antes da escola,
através da internet, das televisões, dos produtos cultu-
rais, dos anúncios e marcas de produtos de consumo,
incluindo aqueles directamente destinados ao público
infantil. A sua implementação a nível estatal é muito pos-
teriore, e só se torna parte das reivindicações institucio-
nais depois de ter sido disseminada pela cultura e pelos
meios tecnológicos que lhe servem de veículo. Até uma
série sobre desviantes que passa na RTP, que é paga com
os nossos impostos, é claramente um produto tardio de
uma cultura que fomenta tais ideias, e que eventualmen-
te acabam espelhadas também pelo Estado. Ou seja, os
problemas são resultado dos desenvolvimentos tecnoló-
gicos e económicos do liberalismo e da mundividência
daí resultante, desenvolvimentos que seriam na verdade
impossíveis em regimes comunistas – facto que explica o
relativo ‘atraso’ dos países da antiga esfera soviética em

229
relação às questões sociais que envenenam as sociedades
do Ocidente, e ainda assim, com a sua abertura e incor-
poração na esfera liberal e no capitalismo mundial, esse
atraso está a ser rapidamente aniquilado, com as conse-
quências que já conhecemos, porque as vivemos aqui no
Ocidente há várias décadas.

O mesmo que se disse sobre a confusão sexual se poderia


dizer do divórcio, do aborto, da desintegração da família,
da contracepção, da alienação social, da inundação em
entretenimento, da invasão do terceiro mundo e de mui-
tos outros problemas tipicamente de ‘primeiro mundo’ –
o mundo da democracia capitalista e liberal.

E da mesma forma que temos de apontar os canhões às


antigas vacas sagradas de alguma direita, temos de abra-
çar algumas das causas da velha esquerda. É absurdo
ignorar, por mero preconceito ideológico, que a riqueza é
cada vez mais concentrada num número cada vez menor
de pessoas e continuar a considerar isso uma consequên-
cia não só natural, mas inócua, do mercado e da proprie-
dade privada. Porque mesmo que seja natural nesse sis-
tema, não é saudável, e devem ser colocados entraves a
tais desenvolvimentos. Apontar este facto não é ineren-
temente de esquerda, é inerentemente moral e salutar.
Ser contra a extrema desigualdade económica, contra a
exploração do ‘terceiro mundo’, contra a destruição da
natureza, não são causas de esquerda – são causas que

230
qualquer Cristão devia ter e levar a sério, e não só isso,
estar na vanguarda da sua defesa, porque a sua centrali-
dade para as questões morais é impossível de ignorar.

Um exemplo para ilustrar este ponto é a incapacidade de


uma família sobreviver dignamente apenas com um salá-
rio, para que a mãe possa ficar em casa a tratar das crian-
ças nos seus primeiros e mais importantes anos de vida.
Isto que é do mais básico e importante, a formação das
crianças, é completamente impossível pelas condições
económicas, e completamente ignorado pela direita. Se a
direita fosse realmente de direita pegaria nesta bandeira
e agitá-la-ia com a máxima força e do mais alto dos mon-
tes e deveria estar a marimbar-se se é considerado de es-
querda ou não. A verdade é que isso não importa: impor-
ta ter uma sociedade digna, moral e em que a dignidade
e a moral sejam possíveis. E para isso é preciso colocar
entraves ao liberalismo, económico, social e político. A
mera aderência histórica a certas ideias ou causas por
‘uma’ esquerda é irrelevante, tal como é irrelevante os
chocolates ao miúdo de 18 anos, ou as miúdas ao de 8,
para voltar ao exemplo usado no início.

Durante muitos anos eu fui um liberal radical, e como já


expliquei, está na minha natureza olhar primeiro para
dentro, tirar primeiro a farpa do meu próprio olho antes
de a tirar do próximo – queira isso dizer a minha pessoa,
a minha família, o meu povo ou a minha ideologia. Daí

231
que tenha olhado para o liberalismo que proclamava, e
que aí tivesse encontrado não só problemas, mas sobre-
tudo os problemas mais prementes do nosso tempo. Es-
pero que os velhos escribas que lutaram contra o comu-
nismo consigam perceber que o inimigo foi vencido, e
que agora temos outro, igualmente perigoso ou, pela sua
natureza camaleónica e gradual, talvez até mais perigoso
– e apontar para aí as suas críticas, com a mesma feroci-
dade e clareza com que o fizeram outrora contra o comu-
nismo.

232
Comunismo e capitalismo

Continuando no tema do comunismo e do capitalismo,


que me tem ocupado o pensamento ultimamente, con-
cluo que o assunto vai muito mais fundo do que meras
ideologias políticas. Antes de lá chegar, no entanto, que-
ria deixar uma observação curiosa e explicar a relevância
de ir mais fundo, para esta e qualquer discussão sobre
política.

Quando escrevo directamente sobre política, ou sobre um


assunto político do dia, recebo comentários, e quando
escrevo sobre temas mais obscuros, ouvem-se os grilos.
As regras básicas do marketing ditam que para ter mais
‘engagement’ pare de escrever sobre coisas impopulares
como as paredes que erguemos no nosso coração e aquilo
que nos separa de Deus, e em vez disso escreva sobre as
paredes que o governo ergue em frente ao parlamento e o
que separa o Rui Tavares da Joacine. O mero facto de que
são palavras inglesas como marketing e engagement a
sugerirem este caminho indispõem-me a segui-lo. Mas
isso não exclui uma investigação sobre as razões desse
facto, indiscutível, que os meus leitores querem saber
mais do parlamento do que do paraíso, ou pelo menos,
querem saber mais das minhas impressões sobre um do
que sobre o outro.

233
Uma das razões pode ser que não me consideram apto
para falar de coisas tão importantes como o paraíso, e
apenas de coisas menos importantes como o parlamento
– uma justa avaliação da situação. Mas se isso é verdade,
confesso que a minha aptidão para falar sobre política
também não é digna de recomendação. Só nos últimos
três ou quatro anos mudei várias vezes de opinião, ou
refinei opiniões, sobre esse tema e todos os que andam à
sua volta. Pelo que as minhas palavras devem ser vistas
como um ‘crescer em público’, como se usa dizer.

No entanto, é possível que os meus leitores me concedam


alguma autoridade sobre assuntos políticos, e por isso me
ofereçam mais atenção nesses. Só que não me parece que
seja essa a razão, mas sim por estarem mais interessados
nos ‘temas do dia’. Eu tento manter-me fora dos temas do
dia, preferindo falar dos temas do século, ou melhor ain-
da, de temas sem dia nem século. Esses são os importan-
tes. Os temas do dia desaparecem como a espuma das
ondas – vem outra e lá se vai o tema. Mas nem sempre
consigo manter-me fiel às regras auto-impostas, aliás,
geralmente não consigo.

Quando escrevo textos sobre homens de saias quebro


uma regra que impus a mim mesmo: de não comentar o
ciclo (e circo) mediático, pois daí vem muito pouco, ou
mesmo nada, de útil ao mundo ou a mim mesmo. Pelo
contrário, está estudado e documentado o efeito que este

234
envolvimento tem na saúde mental e até física de quem
nele se deixa capturar. Parte da razão para o ter deixado
de fazer foi precisamente essa – porque a minha sanida-
de, e a vossa, estava em jogo, ao falar constantemente da
última manifestação de decadência da nossa civilização.

Quem olha para o abismo acaba também a ser olhado por


ele, já dizia o outro, que de tanto olhar ficou maluco –
não que já o não fosse, mas talvez por isso também tenha
sido incapaz de lá tirar os olhos.

Mas como dizia, quebrei esta regra. Antes de quebrá-la,


tinha quebrado outra: a de não seguir estes acontecimen-
tos. E como a quebrei, acabei a escrever sobre o assunto.
Um erro compreensível, pois é este o destino dos limites
auto-impostos. E é esse o problema.

A nossa sociedade não aceita outros. O único barómetro


aceitável é o que nos dá na gana. O assistente acha que
pode usar saias no parlamento, e quem lhe pode dizer
que não? Como se costumava dizer, é proibido proibir,
mas aí mesmo há uma proibição. E da mesma forma, a
única limitação que existe na nossa sociedade é a apli-
cação de limites exteriores.

Por vezes fico surpreendido com a forma como os temas


e os eventos se interligam.

235
Antes de ter escrito sobre homens de saias, tinha escrito
sobre as ocasiões e locais na sociedade tradicional onde o
invertido se podia manifestar – sem represálias, até enco-
rajado, mas sempre com o entendimento que era uma
inversão. A Câmara Municipal lançou um tweet em que
dizia que homens de saias não eram novidade, usando D.
Afonso Henriques como exemplo. Um mau exemplo.
Mas podia ter usado o bom exemplo das feiras medie-
vais, porque de facto aí se permitiam os homens de saias.
A diferença é que se permitia também que nos ríssemos
dos mesmos, por se entender que se tratava de uma in-
versão. Hoje não se entende, nem se permite – muitos
observam já que a comédia está a morrer por esta mesma
razão. Quando todos os lugares se tornam palco do in-
vertido, o invertido deixa de ter palco. Como uma piada
sobre cancro num hospital. Por alguma razão a ‘comuni-
dade’ LGBT se apropriou da palavra ‘queer’ (estranho).
Ora, não se pode ser estranho e normal ao mesmo tempo.
Para haver uma excepção tem de haver uma regra.

Voltando ao início, é sem surpresa que observo que tinha


muito mais visitas quando perdia o meu tempo a criticar
e dissecar cada manifestação de inversão na nossa socie-
dade, sem perceber que esta atenção e análise é em si
mesmo parte do problema. Se como expliquei o homem
de saias e a mulher gaga queriam uma reacção, e qual-
quer reacção é uma vitória, então a única forma de ven-
cer é não reagir. Mas a imersão no degredo do ciclo noti-

236
cioso é uma espécie de vício, e somos puxados para ele
para nos sentirmos melhor connosco mesmos. Ao vermos
o degredo, lembramo-nos de quão melhores nós somos.

Todas estas coisas estão ligadas ao assunto do comunis-


mo e capitalismo, eu juro, mas temos de ir lentamente.
Recapitulemos: limites auto-impostos não resultam e a
nossa ânsia de nos sentirmos melhores que os outros é
prejudicial, mesmo que sejamos melhores, ou especial-
mente se formos. Daí podemos expandir para a socieda-
de em geral: limites meramente humanos não resultam, e
a ânsia de uma sociedade se considerar ‘superior’ é pre-
judicial.

Essa sociedade que todos inconsciente ou conscientemen-


te consideram superior é a sociedade capitalista e tecno-
lógica. A esquerda, inconscientemente, porque desden-
hando esta sociedade pretende importar os povos que a
não têm para onde ela existe e, ao mesmo tempo, consi-
deram que a única forma de emancipar esses povos é
transformar os seus países de forma a que se assemelhem
ao nosso, seja isso possível ou não. A direita é mais cons-
ciente deste facto, e talvez por isso não queira importar
povos que considera atrasados para a sua sociedade ava-
nçada, mantendo no entanto o objectivo de elevar esses
povos do seu ‘atraso’. Penso já ter falado dessa curiosa
definição de avanço: uma sociedade tão avançada que
uma larga fatia da sua população não se quer reproduzir

237
ou não se importa com os produtos da sua reprodução,
que mata uma enorme quantidade dos seus filhos no
ventre e dos seus pais nas camas de hospital, com altas
taxas de suicídio, de uso de drogas, entretenimento e
qualquer outra distração que lhes permita alienar-se do
mundo – ou seja, que directa ou indirectamente, rápida
ou lentamente, se mata a si mesma. Mas por muitas críti-
cas que a esquerda ou a direita façam ao mundo mo-
derno do capitalismo tecnocrático, não conseguem con-
ceber um melhor sistema. E esse sistema, que consideram
superior, é aquele que eleva a capacidade humana de se
levantar a si mesma pelas suas próprias mãos. Mas se
observamos alguma coisa na sociedade moderna é que a
capacidade humana levanta muitas coisas, mas não se
levanta certamente a si mesma, pelas razões apontadas
acima, e onde quer que essa concepção de sociedade se
estabeleça, no Ocidente ou no Oriente, a Norte ou a Sul,
nesta ou naquela cultura, os mesmos fenómenos são ob-
servados. Afinal, se fosse capaz de se levantar a si mes-
ma, não teria necessidade de levantar todas as outras
coisas, de perseguir melhorias materiais com a voracida-
de com que o faz. Estaria em paz, não em constante revo-
lução. Se Deus no comunismo é agressivamente negado,
no capitalismo é um pensamento secundário – os seus
sucessos são precisamente os meios pelos quais co-
meçamos a pensar que não precisamos de Deus.

238
E que outro nome podemos dar a essa propensão para a
independência, a essa convicção de que o homem se pode
levantar a si mesmo, sem Deus? Satânico. É importante
pois clarificar o que esta palavra realmente significa, de
onde vem, e como se manifesta – pois também aí a nossa
percepção foi distorcida.

Quando se fala em satanismo, uma série de imagens vêm


à cabeça, geralmente associadas com o heavy metal. De-
vido à influência evangélica americana tivemos o ‘pânico
satânico’, que não só fez um diagnóstico errado, como
confirmou esse erro entre aqueles que originalmente o
fizeram.

Assim, inúmeras bandas de heavy metal, com imagética


de escuridão, morte, destruição, tortura, etc, apelidavam-
se e foram apelidadas de satânicas. Ao mesmo tempo, a
extrema sensualização e celebração da vida terrena na
música popular era normalizada. Um entendimento bási-
co do que é o satanismo levar-nos-ia a perceber que o
segundo exemplo é uma muito melhor representação do
que o primeiro.

239
Olhando para as capas destes dois discos, ambos de 1986,
qual diriam ser mais satânico? Se responderam o da es-
querda, estão errados (escolhi o álbum dos Candlemass
especificamente porque, além do nome da banda ser ex-
plícito, a capa mostra uma caveira demoníaca a ser perfu-
rada por uma cruz – imagética mais clara era impossível).
O álbum da Madonna teve inclusivamente um dos seus
maiores sucessos, intitulado ‘Papa don’t preach’, cuja
letra é sobre uma adolescente a contemplar abortar o seu
filho e, segundo Madonna, sobre rejeitar a autoridade
patriarcal, seja do Pai ou do Papa. Enquanto que no ál-
bum dos Candlemass temos letras sobre pecadores e o
destino que os espera no inferno e no single, ‘Solitude’,
uma letra sobre o desespero e o desejo de morrer em paz,
longe da falsidade do mundo moderno, e cujo refrão é
uma paráfrase bíblica: ‘Earth to earth, ashes to ashes, and
dust to dust’.

Muitos críticos do Cristianismo gostam de apontar a sua


aparente atracção pela morte, pelo sofrimento e mortifi-
cação, em oposição a vários paganismos que exultam a
luz, o prazer e a sensualidade – é uma crítica válida. Se
virmos a imagética do Cristianismo dos primeiros sécu-
los, com as suas catacumbas, os seus mártires e as suas
histórias de sofrimento, e obviamente a propria história
de Jesus Cristo, vemos que essa imagética é semelhante à
das bandas metaleiras. Em contraste, a Bíblia diz-nos que
o demónio se manifesta frequentemente como um ‘anjo

240
de luz’, que é um sedutor, e que Lucifer era precisamente
o mais belo ser criado por Deus – e talvez por isso tenha
ficado tão enamorado por si mesmo e concluído que po-
dia ele mesmo ser deus.

Satanás, e o seu número 666, é o símbolo da exaltação do


humano, ou melhor, da autossuficiência, do triunfo inde-
pendente de Deus, 6 sendo o número do Homem, feito
no sexto dia, e todos os produtos das suas mãos – é, pois,
primeiramente um número de glória, mas uma glória
incompleta. Convém neste ponto lembrar que é da lin-
hagem de Caim que nascem as cidades, a tecnologia e o
domínio da natureza. Há, portanto, algo de inerentemen-
te corrupto nessas empresas, e devemos sempre ser cui-
dadosos no seu uso, individual e colectivamente. Daí que
antes do Dilúvio, a sociedade estivesse a avançar rapi-
damente nos seus desenvolvimentos tecnológicos e na
quantidade de entretenimento, e ao mesmo tempo a cair
também rapidamente na depravação – soa familiar?

O exemplo mais óbvio deste ponto, do demoníaco como


a independência de Deus, é a torre de babel, que não di-
fere em nada do objectivo de todo o humanismo de criar
o paraíso na terra, sem Deus. Tanto o comunismo como o
capitalismo procuram esse fim, e são por isso, manifes-
tações do satanismo. O que distingue o comunismo é que
é um rotundo falhanço, reconhecido por todos mas so-
bretudo pelos que o vivem, uma clara prova de que as

241
forças humanas não se valem a si mesmas, que um paraí-
so na terra sem Deus é, na verdade, o inferno. Só mesmo
em países capitalistas é que tanta gente se poderia enga-
nar sobre o inferno do comunismo – em si mesmo, uma
bela ilustração do problema, não do comunismo, mas do
capitalismo. E daí não ser particularmente surpreendente
que a ideologia do comunismo tenha nascido no Ociden-
te, da filosofia alemã, da sociologia francesa e da econo-
mia inglesa. É uma ideologia que nasce de sociedades
corruptas, e a corrupção que a gera é a corrupção da au-
tossuficiência.

Nos nossos dias a batalha foi claramente ganha pelo capi-


talismo, que como vimos acima, é consciente ou incons-
cientemente considerado como a forma de atingir esse
paraíso na terra. A economia e a tecnologia vão retirar-
nos todas as nossas lacunas, tapar todos os buracos, satis-
fazer todas as nossas necessidades. Excepto que, como
observamos, é incapaz de nos satisfazer a um nível mais
profundo. Mantendo-nos o corpo coberto, a barriga
cheia, a cabeça entretida, não só nos engana fazendo pen-
sar que isso é suficiente, como nos distrai da procura do
que nos pode salvar e realmente tornar completos.

Tendo dito isto de que sociedade é mais provável vir o


anticristo? Da miséria e escuridão do comunismo, ou da
abundância e espalhafato do capitalismo? Vemos então
porque Dostoievsky conseguiu encontrar Deus numa

242
prisão na Sibéria, mas não o encontraria num centro co-
mercial.

Repetindo uma frase do venerável arcebispo Fulton


Sheen, o Comunismo é a Cruz sem Cristo, e o Capitalis-
mo é Cristo sem a Cruz. Para sabermos qual deles é pior,
lembremo-nos de uma situação única, em que Cristo acu-
sou alguém, não de fazer o trabalho do demónio ou ser
filho do demónio, mas de ser o próprio (Mateus 16:13-
23):

«Quando chegou a Cesareia de Filipe, Jesus perguntou aos dis-


cípulos: “Quem diz o povo que é o Filho do Homem?” “Bem,
alguns dizem que és João Batista, outros que és Elias, outros
ainda que és Jeremias ou um dos outros profetas.” Então per-
guntou-lhes: “E vocês, quem pensam que eu sou?” Simão Pe-
dro respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!” “Feliz
és tu, Simão, filho de Jonas, porque quem te revelou isso foi o
meu Pai que está nos céus; não é pensamento humano. Tu és
Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja; as forças to-
das do inferno nada poderão fazer contra ela. Dar-te-ei as cha-
ves do reino dos céus; tudo o que proibires na Terra será proibi-
do no céu e tudo o que permitires na Terra será permitido nos
céus.” Então avisou os discípulos de que não deveriam divulgar
ainda que ele era o Cristo. A partir daí, começou a explicar aos
discípulos que estava destinado a ir para Jerusalém e a passar
por muitos sofrimentos, ser rejeitado pelos anciãos, pelos prin-
cipais sacerdotes e pelos especialistas na Lei e ser morto, mas

243
três dias depois ressuscitaria. Pedro chamou-o à parte e co-
meçou a repreendê-lo: “Deus o não permita, Senhor! Isso não te
há de acontecer!” Mas Jesus, voltando-se para ele, respondeu:
“Vai para trás de mim, Satanás! És um motivo de escândalo
para mim. Vês as coisas do ponto de vista humano e não do
ponto de vista de Deus.»
Incluí todos estes versos porque é importante reparar no
seguinte: Pedro afirma a divindade de Jesus, algo que
leva Jesus a edificar a sua Igreja sobre ele e a dizer-lhe
que ele terá as chaves do paraíso. Pouco depois chama-
lhe Satanás. É difícil imaginar uma reversão mais radical,
e convém então entendermos porquê. Pedro reconhece a
divindade de Jesus e depois tenta afastá-lo da cruz, da
morte necessária para o mundo. Jesus não chamou Sata-
nás a nenhum dos outros que se enganaram sobre a sua
pessoa, mas só àquele que, estando certo, o tentou afastar
do sofrimento terreno necessário para a glória divina, o
sacrifício necessário da morte para o mundo e o nasci-
mento para Deus, dizendo-lhe que ele vê as coisas do
ponto de vista humano (mais uma vez, a exaltação do
humano independente do Divino). Não é pois surpreen-
dente que, negando a cruz, Pedro viesse eventualmente a
negar o conhecimento de Cristo. Melhor descrição da
evolução tecnocrática ocidental não poderia ser feita. Se
alguma vez se questionarem a razão para a irreligiosida-
de do mundo moderno, é esta: erradicamos a necessidade
da cruz, da mortificação, da negação das nossas paixões,
do sofrimento. Sem isso, a nossa afirmação de Cristo vai
ao sabor da conveniência e quando encostados entre a

244
espada e a parede, vamos negá-lo. Ou como o monge
Seraphim Rose o colocou uma vez: “o anticristo não é en-
contrado nos que negam a Cristo, mas nos que o afirmam timi-
damente e apenas com os lábios”.
Uma última alegoria: se vos perguntarem qual destas
duas drogas é mais perigosa, a canábis ou a heroína, o
mais provável é responderem a segunda. Afinal de con-
tas, a heroína é claramente destrutiva para o corpo e a
mente, os sinais da destruição são óbvios e rápidos, e por
isso rapidamente um heroinómano se torna incapaz de
funcionar em sociedade, tendo de ser internado para se
curar. Eu diria que essa característica de extrema potên-
cia é a sua condição mais salvífica. Um utilizador regular
de canábis pode atravessar a vida com relativa facilidade
sem nunca ter consequências tão graves e tão súbitas que
o façam reavaliar o seu uso, e é aí que está o seu maior
potencial destrutivo.

Essa mesma dinâmica encontra-se na questão do comu-


nismo e do capitalismo. O comunismo mata rápido, o seu
potencial destrutivo é óbvio, e por isso não nos ilude so-
bre a capacidade das construções humanas poderem res-
ponder às suas ânsias mais profundas – a conclusão de
que só Deus pode respondê-las é de uma relativa facili-
dade, o que explica que a Igreja não tenha apenas sobre-
vivido, mas saído mais forte, da experiência – um fenó-
meno observado um pouco por todo o Leste. O capita-
lismo, pelo contrário, ilude-nos continuamente sobre a

245
humanidade se poder salvar a si mesma – e aí reside o
seu enorme potencial destrutivo.

A rã cozinhada em lume brando é aquela que nunca salta


da panela.

246
Uma derrota concedida

Parece que ontem foi o ‘dia internacional da visibilidade


trans’. Sim, no meio de uma pandemia que ameaça não
deixar pedra sobre pedra do edifício moderno, esse
mesmo edifício demonstra nas suas prioridades que não
merece que fique dele nem pó.

Mas não são as prioridades do sistema, mas sim do povo,


que mais provam o quanto o edifício precisa de ruir.

Por ocasião do tal ‘dia internacional’, a parada de congra-


tulações torpes da parte de corporações desenrolou-se,
incluindo, como se vê abaixo, canais de televisão desti-
nados a crianças.

O que salta à vista, pelo menos a mim, não é o apoio cor-


porativo à disforia sexual: como já explicámos neste es-
paço e é bastante fácil de perceber, é do interesse do capi-
talismo e dos seus braços armados que as pessoas sejam
destruídas como pessoas e reerguidas como autómatos
com identidades mercantis, dependentes dos produtos
oferecidos pelo aparato capitalista.

247
O que salta à vista, no post e nos comentários, são as as-
sumpções silenciosas dos pais, demonstrando que estes
abandonaram definitivamente a ideia de que devem ser
eles, e não corporações através de meios tecnológicos,
que devem educar os seus filhos.

O problema dos pais não é, pois, que os filhos passem


uma maioria das suas vidas sentados em frente a um
ecrã, e não consideram que a responsabilidade sobre o
que os filhos vêem ou deixam de ver é sua, mas pelo con-
trário, externalizam essa responsabilidade nas corpora-
ções, e a sua indignação é que as corporações não ofere-
çam o conteúdo que consideram adequado. No fundo,
querem que as corporações não actuem no seu interesse
(que é, naturalmente, criar um novo modelo de humani-
dade puramente mercantil), porque eles, os pais, não
concebem sequer que possam agir por si mesmos no inte-
resse das suas crianças.

Deduz-se que se os canais de televisão e o youtube pro-


videnciassem conteúdo que os pais consideram adequa-
do, seria benéfico ou aceitável que os miúdos tivessem
acesso sem supervisão a estas tecnologias.

É simplesmente assumido que a responsibilidade é do


youtube, ou da internet, ou das televisões, controlar e
filtrar o entretenimento a que os miúdos têm acesso. No
fundo, estes pais abdicaram completamente da ideia de

248
que têm qualquer responsabilidade no crescimento psico-
logicamente saudável dos seus filhos.

Mesmo os pais que perdem tempo a criar um perfil de


youtube para os filhos, e filtrar as sugestões que não
aprovam, a criança ainda é livre de navegar e muito ra-
pidamente aprende como retirar os filtros. E os pais sa-
bem isto, tal como os meus pais sabiam que eu sabia co-
mo desbloquear os canais bloqueados. Esta é uma conse-
quência inevitável de qualquer avanço tecnológico: as
precauções tomadas para meios prévios são notavelmen-
te insuficientes – como estes pais que tentam filtrar o
youtube, como se estivessem a escolher que livros a cri-
ança pode ler e colocar os livros inadequados numa pra-
teleira à qual os miúdos não conseguem chegar. Mas na
internet, e na televisão, não há prateleiras fora do alcance.

A menos que se limite ou proiba o acesso (físico) à televi-


são e à internet, todas as medidas são ultimamente fúteis.
Mas ao sugerir esta ideia, como eu já sugeri, recebem-se
olhares de incredulidade, como se estivesse a propôr
amputar um dos membros da criança, como se o acesso a
estas tecnologias fosse o estado natural da humanidade e
a regulação do seu conteúdo, não do seu uso, fosse a úni-
ca medida à disposição que não viole os direitos naturais
da criança.

249
E lembremos que estamos a falar de um dos mais impor-
tantes pilares de uma sociedade, a instrução infantil. Que
os pais abandonem assim a sua responsabilidade não é
novo, mas é uma boa ilustração de como, na nossa era
materialista, a vitória já foi concedida antes da batalha
começar. Qualquer inovação tecnológica é imediatamente
aceite sem protesto, e qualquer negociação da nossa li-
berdade é feita nos termos propostos por ela. E pior, os
pais que tentam esta negociação fútil e impotente, são
uma pequena minoria. Para a maioria, é aceitar e calar.
Ou, muitas vezes, celebrar.

Não vale a pena bater com as mãos na mesa contra o con-


teúdo do youtube ou das televisões, mas também não
vale a pena, do nosso lado, bater com as mãos na mesa
contra a attitude da maioria dos pais. As pessoas não
mudam. E por isso observamos esta adaptação continua,
e cada vez mais rápida, às novas condições tecnológicas.
Conclui-se daqui que não há qualquer solução para este
problema da parte humana, e que a única solução é a
destruição destes meios tecnológicos: os tweets acima
demonstram sem a sombra de uma dúvida que mesmo
os pais mais atentos se resignam à perda de liberdade e à
corrupção dos seus filhos, ficando-se pela luta vã e fútil
de que sejam corrompidos apenas aos poucos.

250
O Trigo e o Joio

As minhas divergências com os nacionalistas, nas suas


várias estirpes, não são novas. Tanto na vertente política
(isto é, nas medidas que consideram vitais), como na ver-
tente filosófica (por reconhecer que o Nacionalismo é
uma ideologia, e como tal um produto do materialismo
Iluminista, incompatível com um entendimento natural
da natureza humana, das divisões naturais entre os po-
vos e da correcta organização social daí resultante), como
na vertente moral (para os que se lembram dos podcasts
que gravei, os exemplos eram variados).
Isto não quer dizer que não considere alguns deles alia-
dos, ou até que não concorde em grande parte com o que
dizem. Concordo. No entanto, aqueles com quem con-
cordo mais frequentemente do que discordo, têm-se eles
mesmos afastado, voluntaria ou involuntariamente, do
movimento Nacionalista mais geral. Os mais recentes
desenvolvimentos no movimento têm sido, a meu ver,
todos extremamente insalubres, e cada vez mais avessos
àquilo que considero salutar. Em geral, há cada vez mais
uma ênfase no Darwinismo, no Arqueofuturismo, no Au-
toritarismo, no pseudo-Paganismo e no determinismo
(primeiramente biológico, mas que descamba em muitas
outras formas).

251
Os eventos recentes relacionados com o Coronavírus só
têm aberto mais este fosso, para o bem ou para o mal. No
meu entender, o pior daquilo que estava latente no mo-
vimento Nacionalista está a vir ao de cima, em particular
a exultação da Ciência, da Tecnocracia e do Autoritaris-
mo (que, num contexto de tecnologia moderna, é Totali-
tarismo).

O autoritarismo pseudo-científico, a abertura da porta (já


de si escancarada) para a tirania médica, o totalitarismo
latente sem justificação que não a da reverência aos ‘es-
pecialistas’, não poderia estar mais às avessas com a mi-
nha mundividência.

Como objecções, podemos começar pelo facto de viver-


mos num mundo submerso em informação em que é im-
possível a qualquer indivíduo computar todos os dados,
pelo que a natureza humana acaba por nos fazer aceitar
este ou aquele ponto, não por ser o produto de uma ava-
liação racional de todos os dados (impossível pela quan-
tidade), mas por concordar com a nossa mundividência.
Ou seja, a aceitação de estudos, dados, testes é feita com
base na fé: na Ciência (com C grande), nos cientistas e,
por consequência, naqueles que os financiam. Ora, é ób-
vio que tais testes e estudos, pelos recursos que são ne-
cessários, são financiados por organizações com grande
poder económico, as mesmas organizações que traba-
lham incessantemente, por outros ou os mesmos meios,

252
para destruir a Europa e os Europeus. Seria expectável
que houvesse um pouco de cepticismo nem que fosse por
este mero facto. Mas não há porque, como Chesterton o
disse uma vez, quem não acredita em Deus acaba por
acreditar em tudo. E no caso do movimento nacionalista,
essa fé é colocada na Ciência (C grande), como se fosse
uma entidade independente, que não é, pelas razões
apontadas acima.

Mas indo além da ignorância disfarçada do cientismo é o


declarado totalitarismo que mais vai de encontro à minha
própria mundividência. Embora, diga-se em abono dos
autores e dos que concordam com eles, o totalitarismo
seja precisamente a consequência lógica e necessária do
mundo tecnológico que professam. E nisto, não estão so-
zinhos, são apenas mais consistentes. Sem rejeitar o nexo
tecnológico nascido na revolução industrial o resultado
será sempre o totalitarismo científico, sempre à mercê de
quem o financia.

E aqui está a mais deprimente conclusão: que embora a


minha mundividência esteja às avessas com os naciona-
listas, posso ao menos dizer que são logicamente consis-
tentes. Eles não recusam o totalitarismo científico, eles
abraçam-no e julgam (correcta ou incorrectamente não é
do nosso interesse, por rejeitarmo-lo explicitamente) que
podem, um dia, controlá-lo e fazer uso dele para recupe-
rar e garantir a herança étnica Europeia. Daí também o

253
seu apoio à União Europeia. A conclusão deprimente é
que, precisamente os que concordam comigo sobre as
fundações, isto é, o Cristianismo, ou pelo menos um en-
tendimento moral do ser humano como base, são absolu-
tamente cegos em relação à incompatibilidade dessa fun-
dação com o mundo tecnológico e o sistema industrial.
Esse sistema irá sempre navegar numa única direcção,
que é a abolição do ser humano à imagem de Deus, resul-
tará sempre na subjugação do espírito humano à necessi-
dade técnica, e o seu potencial destrutivo só pode ser,
temporariamente, minimizado através de regulação da
liberdade humana – e quanto mais complexa a rede de
tecnologia, mais controlo é necessário, seja da parte do
Estado ou de outras organizações vastas, às actividades
humanas. Para um exemplo concreto, olhemos para as
medidas draconianas aplicadas pelos putativos Estados
‘Cristãos’ na Europa da Hungria e da Polónia, tão fre-
quentemente apontados como os raios de luz modernos
contra a degeneração étnica e moral, mas que, para mal
dos nossos pecados, não passam de meros espantalhos, e
agora completamente vergados à ditadura ‘científica’, e
em breve, como já previmos aqui, completamente subju-
gados ao mesmo globalismo que os hipócritas ou enga-
nados Cristãos que nos juraram ser neles que se encon-
trava a resistência ao sistema. Seria risível, se não fosse
triste, censurável e absolutamente fantasioso.

254
Repita-se: este totalitarismo, cujo jugo está prestes a tor-
nar-se ainda mais pesado, é a consequência natural do
sistema industrial. E não há salvaguardas políticas que o
possam atenuar. Os Cristãos, em particular, serão em
breve confrontados com uma escolha que adiaram há
pelo menos dois séculos: entre rejeitar o mundo moder-
no, incluindo as “benesses” tecnológicas, ou ser fiéis ao
Deus que professam. Até agora pudemos viver na Torre
de Babel figurativa do sistema industrial, fingindo que
rejeitávamos a sua fundação, sem nunca rejeitarmos as
várias camaddas erigidas sobre ela. Esta hipocrisia será,
finalmente, desmascarada. No fundo, e finalmente, os
Cristãos serão obrigados a escolher, explicitamente, entre
os confortos terrenos ou a sua fé em Cristo. E não é parti-
cularmente surpreendente, tendo em conta que desde a
fundação do sistema industrial foram muito poucos os
Cristãos (incluindo as suas instituições) que se insurgi-
ram contra a sua implementação violenta, opressiva e
coerciva; também nada disseram quando essa mesma
violência, opressão e coerção foi exportada para fora da
Europa, quando o seu conforto passou a depender de
trabalho escravo, e muitas vezes infantil, no terceiro
mundo. Poucas vozes Cristãs se levantaram contra isto. E
as que se levantaram preferiram viver na ilusão de que se
podia reformar o sistema, o mesmo sistema que subjugou
e destruiu as formas de vida ancestrais e tradicionais do
mundo inteiro.

255
Era uma ilusão voluntária, saída do desejo de conforto.
Essa ilusão está prestes a ser impossível.

‘Aquele que ama a sua vida, a perderá; aquele que odeia sua
vida neste mundo, a preservará para a vida eterna.’

Finalmente, o trigo será separado do joio.

256
Uma Fábula

H e M conheceram-se por ter um objectivo em comum.


Cada um deles podia perseguir o objectivo sozinho, mas
em conjunto, não só o atingiriam mais rápido, também o
fariam mais perfeitamente. H era criativo, ambicioso e
algo utópico. M era calculista, metódica, jovem, atraente
e cheia de potencial.

Rapidamente descobriram que a sua parceria poderia


estender-se a outras áreas. Assim, cada vez mais, H & M
andam de mãos dadas. Partilham a vida laboral, mas
também o lazer. H convida M para a sua casa. Primeiro
para a sala e cozinha, eventualmente para as outras divi-
sões também.

E em breve, também nas idas e nas vindas, nas férias, nas


obrigações legais. Na alegria e na tristeza, na saúde e na
doença, na riqueza e na pobreza. Inseparáveis.

Mas a pouco e pouco a lua de mel esmorece, as idiossin-


crasias que pareciam encantadoras são agora irritantes, e
as personalidades começam a chocar. H, o criativo e so-
nhador, versus M, metódica e pragmática.

257
M torna-se mais e mais exigente, sufocante, tem de levar
sempre a sua avante, quer controlar todos os aspectos da
vida de H, que começa a ponderar se a sua união total
com M foi uma boa ideia. Mas é tarde demais: H está iso-
lado, toda a sua vida está, de uma forma ou de outra, li-
gada a M, pois M só lhe permite uma vida na medida em
que é ligada a si. M alienou todos os seus amigos, alguns
até ao ponto de apagar os seus contactos. H já não pode
dar a sua opinião sem temer atiçar a ira de M.

Um dia, em relação a um ou outro pormenor, H decide


impor-se e dizer ‘chega’. Mas a resolução dura pouco. Em
breve, numa outra circunstancia, cederá. Já não sabe vi-
ver sem M. Abdicar dela nos seus dias maus levaria a ter
de abdicar dela nos bons. As suas qualidades são insepa-
ráveis dos seus defeitos. Está refém da relação, e no má-
ximo pode negociar as condições da captura, mudar um
ou outro termo do contrato, temporariamente, mas a sua
prisão permanece, e H definha – toda a sua criatividade e
entusiasmo perdidos. H é anulado como ser independen-
te. Toda a sua existência é definida por M.

Até que a morte os separe.

***

258
O leitor foi levado a pensar que a história acima é sobre
um homem e uma mulher. Mas está errado: é sobre o
Homem e a Máquina.

259
O Novo Sagrado

O secularismo morreu. Temos pessoas a ajoelhar-se pela


diversidade, pessoas a usar máscaras sem justificação
médica, pessoas na rua a dizer que Portugal é racista,
outras para dizer que não é. Tudo isto, e muito mais que
podemos encontrar nas notícias mas também no dia a
dia, são práticas profundamente religiosas, simbólicas e
rituais. O homem moderno não é menos religioso, não
tem menos necessidade de ritual e devoção, do que o
homem medieval ou que o homem primitivo. E se por
momentos se pode acreditar que fosse, o estado da socie-
dade em que vivemos demonstra-nos, todos os dias, o
ímpeto religioso a manifestar-se profundamente. De for-
ma caótica e descontrolada, sem razão nem intuição, sem
rumo e sem destino, sem equilíbrio e sem ponto focal.
Mas ímpeto religioso ainda assim. O secularismo, a sua
ideia e doutrina, morreu. Celebremos, mas não muito:
porque isto é o inevitável, mas não podemos esquecer
que as religiões e os cultos, as práticas e os símbolos, os
credos e as fés, não são todos iguais. E no Ocidente temos
um problema especial.

Chesterton avisou: quando os homens deixam de acredi-


tar em Deus, não passam a acreditar em nada, mas sim
em tudo. O tudo aqui refere-se à multiplicidade que flui
necessariamente da ausência do Deus único. Se Cristo é

260
unidade, a sua ausência é fragmentação. ‘Legião é o meu
nome, porque somos muitos’, dizem os demónios. Não
consigo pensar numa melhor descrição para a nossa era.

O Ocidente é pós-Cristão. Desde que abandonou Cristo,


o Ocidente nunca foi, nem nunca poderá ser, apenas se-
cular, ou apenas pagão. Nunca mais. Cristo refez-nos, e
depois nós rejeitámo-lo. Não podemos alegar ignorância,
ou inocência: todos os ídolos do Ocidente são, necessari-
amente, rejeições de Cristo. Todas as ideologias e doutri-
nas, bem sucedidas ou não, são meras tentativas de ofe-
recer uma explicação e um significado à existência hu-
mana; uma tentativa de cobrir o buraco deixado por Cris-
to no coração do Ocidente. Mas o buraco é tão largo, tão
profundo, que não há penso grande o suficiente, nem em
número que baste, para o tapar. E é óbvio que a opção do
buraco pode ficar destapado é impossível. O impulso
religioso é inerente ao homem, é uma memória distante e
genética da nossa origem, a vontade inescapável de nos
redimirmos do pecado de Adão e Eva e voltar ao Jardim.
Mas visto que rejeitámos o Deus verdadeiro, só podemos
por consequência adorar falsos.

É um padrão comum na história humana que o agente


dessacralizador torna-se, ele mesmo, sagrado e cumprin-
do a mesma função. A Igreja dessacralizou o paganismo
e o tribalismo, tornando-se ela mesma o símbolo do sa-
grado e tornando-se ela mesma a tribo. Depois a ‘refor-

261
ma’ Protestante dessacralizou a Igreja tendo a Bíblia co-
mo base, e nesse preciso instante tornou a Bíblia o objecto
e símbolo último do sagrado, e a autoridade que antes
pertencia à Igreja passou a estar puramente nas Escritu-
ras. A Ciência dessacralizou a Bíblia e tornou-se ela
mesma sagrada e o lugar onde se procura o significado
da vida e do mundo; e a tecnologia, ao dessacralizar a
natureza, elevou-se ao estatuto de sagrado e substituiu a
natureza como o substrato da existência, aquela a que o
homem tem de se adaptar para sobreviver e cujos desíg-
nios o homem é impotente para mudar.

No Ocidente montou-se um ataque durante séculos con-


tra a ideia do sagrado, tudo o que pertencia a essa ordem
nas nossas sociedades foi dessacralizado. E por uns ins-
tantes julgou-se que tínhamos, finalmente, chegado a
uma sociedade acima de tais considerações. Agora, só a
prática, a técnica, a eficiência e a ciência importavam.
Mas nesse exacto momento, tornaram-se sagradas. Quem
ousa contrariar o progresso, medido exactamente pelos
mecanismos por nós criados? O último sagrado da nossa
época é a técnica.

Nenhum dos cultos modernos, nem mesmo o ambienta-


lismo, ousa de facto contrariar o substrato da nossa soci-
edade: a técnica. A técnica é o sagrado ao qual o homem
tem de se adaptar como antes se adaptava às condições
naturais; é o sagrado que providencia significado à vida,

262
e também o que promete transcendência. Nenhum dos
cultos modernos concebe um mundo sem os avanços téc-
nicos dos últimos 200 anos, apesar da humanidade ter
vivido sem eles durante a grande maioria da sua história.
Não só não concebem, como se confrontados com tal
possibilidade reagem da mesma forma que um qualquer
outro religioso reagiria à proposta de um mundo sem a
sua forma de sagrado: escândalo e ofensa. Perguntem a
um libertário ou a um fascista, a um comunista ou a um
social democrata, a um Cristão ou um ateu, a um nacio-
nalista ou a um imigracionista, e por aí fora. Todos reagi-
riam da mesma forma, instintivamente. E é apenas natu-
ral, pois essa é a fé do nosso tempo. A fé última sobre a
qual todas as outras fés modernas assentam.

Sem compreender isto, não se compreende o mundo in-


sano em que vivemos, nem como curar a insanidade.

263
Prisioneiros de Guerra

Há um sinal claro e inequívoco de que uma guerra está


perdida mesmo antes de acabar oficialmente: quando se
concede ao adversário a validade das suas premissas.
Este padrão surge em várias manifestações. Por exemplo,
quando os combatentes já não acreditam na razão que os
leva a combater: a Guerra do Ultramar acabou, oficial-
mente, em 1974, mas o Estado Português já tinha perdido
anos antes, sem se aperceber, nas inúmeras concessões
que fez, tanto nos esforços directos da guerra como no
plano indirecto da opinião pública. Outro exemplo é uma
simples discussão entre duas partes: se uma das partes
conceder validade às premissas da outra parte, a discus-
são pode durar horas, mas está perdida desde que as
premissas do opositor foram validadas. Por isso quando
o nosso lado tinha poder dizia: ‘não discutimos’ Deus e a
virtude, a pátria e a sua história, e por aí fora. O outro
lado tem agora o poder, e Deus, virtude, pátria e história
são infinitamente discutidas. Os interditos agora são ou-
tros. O importante aqui perceber é que quem dita a dis-
cussão não somos nós.

Há muita gente convencida que estamos a lutar uma


‘guerra cultural’, mas estão errados, porque a guerra já
foi perdida há muitos anos, quando as premissas foram
concedidas ao adversário: as premissas da igualdade e do

264
progresso. Numa tal situação, até as contraofensivas do
lado derrotado sublinham a sua derrota – e das mais va-
riadas formas, o lado derrotado insiste em sublinhar a
sua derrota tentando argumentar contra o poder, como se
o poder ouvisse argumentos, em vez de a reconhecer e
andar em frente.

Imaginem a seguinte conversa entre um casal: a mulher,


histriónica e desvairada, acusa o marido de ser o líder da
família. E o homem reage agressivamente dizendo que
não senhor, na verdade eles são em tudo iguais, ele não é
líder de coisa nenhuma nem quer ser, e ai de quem disser
que é ao homem que cabe essa função. É nesta fase da
‘guerra cultural’ que nós estamos: na humilhação que
segue a derrota.

Outro exemplo hipotético: imagine-se que todas as insti-


tuições de um país acusam a população nativa de consi-
derar que a sua terra é a sua terra, e que estrangeiros são
estrangeiros e serão sempre, no melhor dos casos, meros
convidados. Numa guerra cultural que ainda pudesse ser
ganha, teríamos várias vozes públicas proeminentes a
rejeitar a premissa do ataque: que manter uma diferenci-
ação entre o nativo e o estrangeiro é algo de natural e
saudável, e que quem acha isso negativo tem sérios pro-
blemas psicológicos. Mas numa guerra perdida, porém, a
premissa é concedida: a oposição aberta apenas pode di-
zer que não é aquilo de que a acusam, mesmo que aquilo

265
de que a acusam seja uma coisa natural e saudável. E as-
sim, no preciso momento em que protesta a ordem vigen-
te, fá-lo de forma que confirma a validade dessa ordem.

Quanto mais cedo os dissidentes perceberem que a guer-


ra acabou, e que fomos derrotados, mais cedo poderão
fazer aquilo que todos as forças derrotadas fazem: bater
em retirada e dispersar. Somos ‘ovelhas entre os lobos’ e
esta é a hora de ser ‘astutos como serpentes e inofensivos
como as pombas’.

O aparecimento de uma ou outra voz pública que pare-


çam chocar com o status quo ilude alguns de que ainda
existe forma de ganhar a guerra, mas uma análise racio-
nal e sóbria da situação desvenda que o choque já é feito
nos termos do inimigo – isto é, que a guerra já está per-
dida. A grande maioria da população, mesmo os que cri-
ticam a vanguarda do sistema, aceita as premissas do
sistema, não apesar das críticas, mas através das mesmas.
Em vários graus, a oposição, o lado derrotado da guerra
cultural, aceita uma ou várias premissas do inimigo, e
não apenas no domínio do exemplo explorado acima,
mas em todas as áreas: o opositor comum aceita, volunta-
ria ou coercivamente, que a distinção entre o nativo e o
estrangeiro seja anátema, tal como aceita que todos os
estilos de vida são válidos e com o mesmo valor, tal como
aceita que a existência e virtude desses estilos (alternati-
vos mas ao mesmo tempo totalmente normais) sejam

266
propagandeados nos meios de comunicação, tal como
aceita que estas e outras ideias, do inimigo, sejam ensi-
nadas às suas crianças nas escolas. E por aí fora. E não
importa que seja aceite por fé nesses dogmas, ou por me-
do de represálias. Se for por fé, é um convertido; se for
por medo, é um conquistado. E todos estamos, numa par-
te ou noutra, numa medida ou noutra, convertidos ou
conquistados.

E isto sem falar nas outras questões em que os dissiden-


tes se alinham directamente com o inimigo, como no
apoio ao capitalismo e à sociedade industrial, defenden-
do condições e estruturas que impossibilitam a realização
ou sequer sobrevivência dos seus outros valores. É devi-
do a este último ponto que é mais difícil entenderem a
derrota e assumir que só uma estratégia de retirada, dis-
persão e reconstrução por baixo oferece alguma possibi-
lidade de sucesso, que será sempre, dada a guerra perdi-
da, a longo prazo. Mas é, ao menos, possível. A corrente
estratégia é de garantido falhanço. E infelizmente, dado o
custo de oportunidade, não é possível dividir o nosso
tempo e o nosso espírito entre uma e outra estratégia. O
tempo e vontade gastos na guerra perdida não podem ser
gastos na reconstrução.

Ao leitor céptico, que ainda mantem a fé em algumas


partes do sistema (e como tal pensa que pode capturá-lo
para o seu lado), peço que se coloque a seguinte série de

267
perguntas: tem cuidado ao expressar certas opiniões em
público, com colegas de trabalho, na vida real ou sob o
seu nome civil na internet? Se tais opiniões fossem públi-
cas, perderia o seu emprego, ou perderia clientes e cola-
boradores? Seria ostracizado por vizinhos, conhecidos,
amigos e até família? Será que sofreria represálias e ata-
ques da comunicação social e veria o seu nome vilificado
nas redes sociais? Seria atacado na rua por populares,
organizados ou não, sem qualquer esperança de recurso
ou simpatia pública? Será que o Estado o protegeria dos
populares, da difamação e ostracismo? Será que o perse-
guiria através do aparelho burocrático? Seria condenado
em praça pública pelas mais altas figuras do Estado?

Se tudo isto e mais acontece todos os dias a quem se des-


via do status quo, por muito pouco que seja e até por aca-
so, que conclusão se pode tirar, a não ser a de que somos
prisoneiros de guerra, de uma guerra que já se perdeu.
Não é possível acreditar que estamos em pé de igualdade
e que qualquer um dos lados ainda pode vencer, que te-
nhamos qualquer poder ou sequer influência nas institui-
ções que governam a sociedade: o inimigo governa, com
punho de ferro, e nós acatamos. Num tal cenário, a única
possibilidade de influência encontra-se nas instituições
locais e descentralizadas, que em grande parte morreram
ou estão em fase de decomposição.

268
Mas é da decomposição do presente que vem a fertilida-
de do futuro, numa metáfora agrícola escolhida proposi-
tadamente. As metáforas em que vivemos alteram com-
pletamente não só o nosso pensamento, mas a nossa ac-
ção. Neste momento, os dissidentes vivem ainda sob a
metáfora da máquina: é preciso consertar ou substituir as
partes que funcionam mal (as escolas, as redes sociais, o
governo, etc) e olear as que funcionam bem; se não hou-
ver conserto, então substitui-se a máquina por outra. Mas
a máquina pertence ao inimigo, só funciona para os ob-
jectivos do inimigo. Esta é uma metáfora de soberba, de
imediatismo e revolução, do poder do homem sobre o
seu próprio futuro, do seu desejo de supremacia sobre a
ordem natural e, em última instância, sobre Deus. É, na
verdade, a metáfora do inimigo, mas aplicada selectiva-
mente a uma ou outra dimensão da vida. Mas a consis-
tência ganha e o inimigo é consistente: se a metáfora e a
premissa são aptas para uma dimensão, são aptas para
todas.

Em vez disso, os dissidentes precisam da metáfora da


árvore: é preciso preparar a terra, plantar a semente, ser
paciente e dedicado, e rezar para que um dia venha a dar
fruto. Esta é uma metáfora de humildade, de aceitação da
ordem natural, de continuação e estabilidade. Não é pos-
sível defender a tradição de um lado e a revolução do
outro, não é possível viver na metáfora da árvore e da
máquina ao mesmo tempo. Ambas existiram, existem e

269
existirão sempre em oposição absoluta. A tradição vem
sempre do campo, a revolução sempre da cidade. E se
queremos rejeitar a revolução, sobretudo quando está
consumada, então só nos resta rejeitar a cidade e abraçar
a ruralidade, onde as virtudes defendidas pela dissidên-
cia podem florescer, porque é aí que são cultivadas.

Esta posição é muitas vezes descrita com desdém como


‘fugir para o campo’, e de facto não é menos que isso.
‘Fugir para o campo’ é o que todas as forças derrotadas
fazem. O que os desdenhosos não entendem é que são
uma força derrotada. Quanto mais rápido o entenderem,
mais chances terão de ser bem-sucedidos na fuga e sub-
sequente reconstrução. A única outra alternativa é viver
como prisoneiro de guerra, em terra ocupada pelo inimi-
go, até ao fim.

270
Religiões Seculares

No Séxulo XX o Comunismo e o Fascismo (e as suas vari-


antes menos proeminentes) substituiram a fé Cristã. Com
a morte de Deus no Ocidente às mãos da máquina indus-
trial, o vácuo religioso foi rapidamente substituído pelas
religiões seculares e políticas. Note-se a rapidez surpre-
endente com que o racionalismo e o secularismo morre-
ram, dando à luz as religiões do Proletariado e da Na-
ção/Raça. Recapitulemos as características dessas religi-
ões seculares, e como imitam a fé Cristã: fundadas num
livro cujas páginas e afirmações são tomadas como divi-
nas e proféticas (O Capital, Mein Kampf), apresentando
uma visão total da história da origem à escatologia, pos-
tulando a descida até à escuridão para a subida depois
até à luz como o sofrimento que precede o triunfo final
(do proletariado ou da raça/nação), formando um clero
no Partido, tendo um ou vários profetas/messias e o seu
culto de personalidade (Marx, Engels, Lenine, Hitler,
Mussolini, etc). Isto é o básico. Encontramos nestas reli-
giões também a componente festival, de comunhão, de
união e de libertação.

Tudo isto já foi dito e repetido, e é em geral aceite. E essa


é a prova de que estas religiões, apesar de ainda terem
aderentes, já estão, de facto, mortas.

271
Estas religiões seculares dominaram o Século XX como a
religião Cristã havia dominado antes delas – naturalmen-
te, sendo falsas, a sua permanência, longevidade e estabi-
lidade não se compara à original e verdadeira. E apesar
de ainda se encontrar por aí religiosos deste tipo, ambas
as religiões morreram de vez. Mas se ambas haviam
substituído o Cristianismo, o que as veio substituir a
elas?

Para o entender, temos de entender que quanto mais


avançamos em termos científicos e tecnológicos, mais os
homens regridem mental e espiritualmente, e perceber
também aquilo que o Cristianismo substituiu e elevou.
No nosso tempo, o caminho é exactamente o contrário
por consequência da regressão mental e espiritual resul-
tante do avanço tecnológico. Se as religiões seculares fo-
ram uma imitação do Cristianismo, o que se seguiu e vi-
vemos agora é uma regressão às formas pré-Cristãs. O
Cristianismo substituiu os inúmeros credos pagãos, com
as suas superstições e miríade de divindades, e é isso que
vemos hoje também – embora distorcido, pois o substrato
é distinto. Da fé única e concentrada do Comunismo ou
do Fascismo, com objectivos singulares e definidos, com
unidade e propósito, passámos às fés desregradas e à
multiplicidade de deuses. A revolução proletária ou o
triunfo da nação já não são os propósitos singulares e
monolíticos que antes foram, e no seu lugar temos uma
colecção que, embora associada, não partilha de verdades

272
últimas, nem de objectivos particularmente consonantes
– excepto um, de ambos os lados, que revelaremos mais à
frente. Nem o racismo nem a libertação sexual, nem os
seus opositores do outro lado, cujas bandeiras se poderi-
am dizer formarem pelo menos dois sistemas totalizantes
e unificados, o são de facto. Dentro dessas caixas, há uma
multiplicidade de divindades e objectivos, isto é, uma
multiplicidade de cultos: das várias identidades raciais,
das várias identidades sexuais e das várias identidades
de consumo (desde a comida até ao entretenimento).

Apesar do sincretismo formal entre os vários cultos pa-


gãos, as suas manifestações e realizações continuavam a
ser extremamente individuais e particulares. Havia, no
entanto, algo de verdadeiramente comum a todos eles,
que era a devoção e temor pelo sagrado último, o subs-
trato da realidade: e no mundo da antiguidade, esse
substrato era a natureza. A natureza era o inescapável, o
indomável. Os seus desígnios eram últimos, e contra eles
as forças humanas eram impotentes. E quaisquer que
fossem os nomes dos deuses, ou das forças, o mundo na-
tural no seu todo permanecia no topo da hierarquia.

Como se traduz isto nos credos pagãos do Século XXI?


Qual é o substrato inescapável, indomável, cujas forças e
desígnios são absolutos, no nosso tempo? A natureza foi
conquistada pelo homem, e como tal já não é a ela que
estamos ultimamente sujeitos. Onde antes o homem se

273
acomodava às condições naturais, agora são as condições
naturais que se acomodam. A natureza já não oferece
qualquer oposição ou disciplina, e a posição suprema que
ocupava nos paganismos antigos é nos nossos tempos
ocupada pelo sistema industrial. É esse o substrato ines-
capável, a força à mercê da qual os homens têm de viver,
e cujos desígnios têm de obedecer, o poder último do
qual a sua sobrevivência e continuidade dependem. Re-
sistir ao avanço tecnológico nos nossos dias é o equiva-
lente à resistência contra uma cheia, um terremoto ou um
incêndio nos tempos antigos: aquele que desafia o último
sagrado, em vez de respeitar os seus desígnios, paga o
preço da destruição. Mas o seu poder é tão inescapável
que a submissão acaba por ser inevitável. O homem nada
podia fazer contra a cheia e o terremoto, tal como agora
nada pode fazer contra o smartphone ou a bomba atómi-
ca. Do outro lado da moeda, a natureza providenciava
sustento em todas as áreas da vida, e como tal, exigia o
respeito máximo e o temor resultante que as suas bênçãos
sejam interrompidas por ofensa ao seu supremo. Onde
antes havia a seca ou a praga, agora há o corte da electri-
cidade ou a disrupção do abastecimento dos supermer-
cados. À mercê do sistema, e sem um Deus acima desse
sistema, o homem moderno não tem como senão pros-
trar-se em reverência.

Os cultos pagãos do nosso tempo reconhecem esse sa-


grado último, essa força inescapável, que é o sistema in-

274
dustrial, tanto na sua vertente destrutiva como na sua
vertente salvífica. E é nesse ponto que todos convergem:
definidos por raça ou por sexo ou por qualquer outro
identificador, todos os grupos almejam simplesmente
estar dentro das bênçãos do sistema industrial. Os grupos
são marginais na medida em que não participam, ou que
não os deixam participar, no frenesim de consumo, nas
bênçãos providenciadas pelo sistema industrial. Estes
cultos, sejam pelo lado direito ou pelo lado esquerdo, têm
como mal último a exclusão desse sistema. E se do lado
esquerdo querem incluir o Africano ou o Transsexual, do
lado direito querem evitar a exclusão do Europeu e o He-
terossexual. Daí que da esquerda queiram trazer todos os
povos fora do sistema para dentro dele, seja pelo ‘desen-
volvimento’ do terceiro mundo ou pela imigração em
massa; e da direita queiram assegurar a manutenção do
sistema com o mínimo de atrito, e assim emular por
exemplo as sociedades distópicas mas estáveis do Este
Asiático. Para a direita é uma luta de manutenção: vêem
o homem Europeu a perder as bênçãos do sistema indus-
trial, e pretendem mais uma vez cair nas suas graças; pa-
ra a esquerda é uma luta de acesso: vêem todos os grupos
marginais excluídos do festival orgiástico de consumo e
querem incluí-lo, mesmo que isso signifique aboli-los
como grupos distintos.

E naturalmente, como corolário, ambos têm como oposi-


ção um mal supremo que ameaça essa inclusão, essa co-

275
munhão com o divino industrial e as suas bênçãos de
consumo: por um lado, os homens Europeus e heterosse-
xuais; e pelo outro, os ‘globalistas’, os Judeus ou os Mu-
çulmanos. O bode expiatório funciona da mesma forma
para os dois lados, e o seu objectivo último é, na verdade,
o mesmo. Em ambos os casos, o mal supremo é a exclu-
são do sistema industrial, do sustento que ele providen-
cia, do conforto que facilita. Mesmo que oferecessem a
oportunidade aos cultistas de salvarem o seu grupo atra-
vés da rejeição do supremo tecnológico, não o fariam,
porque o seu culto final não é o grupo, mas o acesso do
grupo ao divino da máquina.

Só Cristo oferece um caminho diferente, como ofereceu


aos pagãos de há dois mil anos, libertando-os de viver no
medo do supremo da natureza. Mas a nossa situação é
mais grave, e mais difícil, pois o mundo natural foi uma
criação divina e acima dele sempre esteve Deus, enquan-
to que o supremo dos nossos tempos é uma criação nossa
– e mais grave ainda, uma criação com origem na rebe-
lião contra Deus, tal como a Torre de Babel. Que Deus
tenha piedade dos homens, e a destrua mais uma vez, é a
nossa única esperança.

276
Existe sistema ‘pós-industrial’?

A expressão ‘pós-industrial’ é usada, sobretudo na disci-


plina de sociologia, para designar um sistema em que o
sector terciário suplanta (em riqueza produzida e em
proeminência) o secundário.

A meu ver esta expressão, e o que designa, induz em erro


qualquer investigação sobre a natureza do sistema em
que vivemos. Será que vivemos de facto num sistema
‘pós-industrial’? Eu penso que o termo foi inventado pa-
ra aliviar as consciências do Ocidente, para nos permitir a
ilusão de que o sistema agora é diferente, e que os altos
custos para a vida e dignidade humana, bem como para a
natureza, foram superados.

A primeira observação é a seguinte: hoje já não temos


fábricas, temos escritórios e lojas, mas será que os escritó-
rios e as lojas, a realidade que servem, a economia de que
fazem parte, os serviços que produzem, não são também
indústrias? A mentalidade de racionalização, uniformiza-
ção e exploração é a mesma. A criação de relações pura-
mente mercantis, bem como a orientação da vida social
em volta do consumo e desperdício, continua exactamen-
te a mesma. O escritório e a loja operam sob a mesma
ideologia que a fábrica, só se altera o objecto da explora-

277
ção. Por isso a economia de serviços não é pós-industrial.
É apenas outra industria.

Mas mais importante ainda é que só superficialmente nos


livrámos da fábrica. Longe vão os tempos no Ocidente
dos exércitos fabris e das horríveis condições de trabalho
e da enorme quantidade de poluição, porque a nossa
economia é hoje quase exclusivamente dominada pelos
serviços. No entanto, isto não quer dizer que superámos
a necessidade do sistema desumano da fábrica. Pelo con-
trário.

As economias Ocidentais podem ser movidas por servi-


ços, mas ninguém come serviços, ninguém constrói casas
feitas de serviços, e mesmo os próprios serviços precisam
de infraestrutura e maquinaria produzida pelo sector
secundário. Até a agricultura depende sobretudo do sec-
tor secundário, porque os modos de produção tradicio-
nais foram abandonados pela produção que utiliza, qua-
se exclusivamente, meios mecânicos – meios que não só
têm custos para o ambiente na sua utilização, mas que
além disso, e o que nos importa neste texto, são produzi-
dos em fábricas. Por isso, hoje como no Século XIX, o sis-
tema não é pós-industrial, está apenas organizado de
forma a que o sector secundário, e certamente aquele que
sustenta a grande maioria da produção necessária, esteja
fora do Ocidente. Longe da vista e logo longe do coração.
As consciências do Ocidente são assim apaziguadas –

278
nada no seu modo de vida precisa de mudar, porque não
vêem os seus efeitos, sentidos do outro lado do mundo.

O sistema industrial hoje ainda existe e não muito dife-


rente do que era no Século XIX. As condições, a alienação
e os danos (para a vida humana como para a natureza)
continuam os mesmos, só estão do outro lado do mundo.
Em alguns aspectos, o sistema industrial do nosso tempo
é ainda mais desumano. Nem mesmo no auge da revolu-
ção industrial, com todos os horrores que perpetraram,
ocorreu aos donos das fábricas colocarem redes por baixo
das janelas para que os seus trabalhadores não se pudes-
sem suicidar, tal é a miséria da realidade em que são for-
çados a trabalhar que a morte pela própria mão é preferí-
vel – mas nem esse pequeno gesto de autonomia lhes é
permitido. Aparentemente as condições na Inglaterra do
Século XIX não eram tão más como são na China no Sé-
culo XXI. É o progresso. Abolimos ou não abolimos a es-
cravatura? Será por isso que tanto falam em reparações
pela escravatura do passado, para que ambos os lados,
perdidos nesse argumento irrelevante, não se apercebam
de que ela existe hoje, e infinitamente mais brutal? E que
compactuamos com ela sem nos apercebermos? Que a
nossa sobrevivência depende dessa escravatura?

Toda a riqueza do Ocidente continua dependente dessa


pobreza, escravatura e destruição – só que ela já não su-
cede aqui, mas no ‘terceiro mundo’. A nossa economia

279
terciária ajuda a mascarar o problema, e continuamos a
consumir os produtos sem ter à nossa frente os custos
humanos e naturais desse modo de produção, mas os
custos permanecem os mesmos.

Uma nação moderna (isto é, tecnologicamente avançada)


pode tanto ser pós-industrial como um homem pode ser
pós-comida e pós-roupa. A única questão é se a comida e
a roupa que necessariamente consome é produzida por si
ou pelo vizinho ao fundo da rua.

É importante perceber que não vivemos num mundo


pós-industrial, mas que por um lado a indústria domi-
nante no Ocidente passou a ser outra, e que por outro
simplesmente exportámos as indústrias clássicas, e o so-
frimento e destruição inerente a elas, para partes longín-
quas.

Os Cristãos em particular deviam levar esta realidade a


sério, pois a nossa forma de vida e consumo é inerente-
mente baseada na violência e na exploração, bem como
na destruição de modos de vida tradicionais – que no
Ocidente já foram destruídos pelo industrialismo há mui-
to, mas continuam a ser no resto do mundo. Criticar so-
mente o conteúdo da nossa sociedade (o ‘marxismo cul-
tural’ e as suas manifestações) não chega: mesmo que o
conteúdo fosse puramente de acordo com a moralidade
Cristã, o veículo pelo qual é apresentado é inerentemente

280
incompatível com a dignidade humana que os Cristãos
têm o dever de defender.

Não podemos cair na armadilha, posta especialmente


para nós, de que a distância da vista seja distância do co-
ração. O sistema continua tão desumano e destrutivo
como sempre foi.

Resta, por fim, antecipar uma objecção e proposta que vai


sendo avançada, aqui e ali, tanto pela direita como pela
esquerda: a de trazer de volta o sector secundário para o
Ocidente. Muito bem. Mas o Ocidental não aceitará as
mesmas condições de trabalho que o terceiro mundo
aceita. E se eliminarmos os seus aspectos mais extremos e
destrutivos, pagando salários condizentes com o que es-
tamos habituados (como ainda existem, embora numa
escala muito reduzida), a capacidade produção será mui-
to menor, os preços muito mais altos, e os produtos, por
consequência, largamente inacessíveis à grande maioria.
Isto quer dizer que, tais indústrias irão à falência pela
competição internacional, ou o modelo de produção e
consumo irá alterar-se radicalmente. A conclusão é que o
sistema industrial, na sua totalidade e nas suas aplicações
particulares, na produção como no consumo que necessi-
ta para se perpetuar, é e será sempre insustentável. Não
há varinha mágica que dê a volta a este destino. Sobra
apenas tomar a decisão de aceitamos as implicações do
sistema ou não. E em geral, exceptuando certos excêntri-

281
cos e idealistas como o presente escriba, tanto à direita
como à esquerda, são aceites. É o preço do progresso.

282
Progressistas somos nós todos, desde pequenos*

*o título é uma alusão ao verso do poema ‘Litania Para Os


Tempos de Revolução’ de Mário Cesarini, ‘burgueses somos
nós todos, desde pequenos’.

Já ouvimos dizer, e porventura já dissemos, vendo a im-


potência da direita no mundo moderno, que ‘os conser-
vadores não conservam nada’. E é absolutamente verda-
de, mas convém perceber porquê, para que os críticos (a
‘extrema-direita’) entendam que na sua esmagadora mai-
oria, ao ignorarem a natureza profunda do sistema em
que vivem e na sua indisponibilidade de o rejeitar, as
críticas que fazem são nulas e igualmente impotentes. E
quanto mais extremos os seus valores, mais impotentes
são as suas críticas, porque mais desligadas da realidade
– como alguém que se queixa de estar permanentemente
molhado mas que se recusa a sair da chuva.

Já vimos como o sagrado da máquina subjaz todo o pen-


samento moral, social e político dos nossos tempos, fora
das distinções largamente artificiais de esquerda e direi-
ta. Ora, todo o sagrado é fundado num mito, numa narra-
tiva que dá forma e direcção às nossas acções e à socie-
dade em que vivemos. E o mito em que o sagrado da
máquina é fundado é o mito do progresso.

283
Se o sagrado é intocável por definição, o mito é inquesti-
onável por definição. Na nossa sociedade questionar o
mito do progresso está fora do reino das possibilidades, o
mito é impermeável à realidade. E se um problema surge
dentro do sistema, a solução progressista nunca é voltar
atrás, mas ‘resolver’ o problema. Isto é a atitude esquer-
dista por natureza. Por exemplo, quando Marx observou
a decadência e desumanização causada pelo sistema fa-
bril, não rejeitou o sistema, mas propôs em vez disso con-
trolá-lo, dar-lhe uma direcção diferente. O resultado, co-
mo se sabe, foi terrível.

Mas eu não falo para os esquerdistas, pois a sua filosofia


é perfeitamente concordante com o mito do progresso.
Eu falo para os conservadores, cuja filosofia é profunda-
mente contraditória. E quando uso a palavra conservado-
res não me refiro apenas aos moderados que dão por esse
nome na gíria comum, e que em quase nada se distin-
guem dos outros moderados todos, refiro-me a todos os
homens que discordam do software de esquerda, vee-
mentemente até, mas que se recusam a mudar o hardwa-
re – um hardware construído, mantido e feito à medida
do software que lá corre.

Comecemos com um exemplo patentemente ignorado


pelos conservadores: a exploração dos combustíveis fós-
seis. O sistema industrial fundado pelo mito do progres-
so extraiu já o suficiente destes combustíveis para alterar

284
para sempre a composição geológica do planeta. Haverá
algum conservador que se pergunte se isto é bom ou
mau? Segundo o mito do progresso, que o conservador
subscreve, a natureza existe como recurso para ser explo-
rado. Como já explicámos, antes do mito do progresso se
tornar o mito definitivo da nossa civilização, a natureza
era o substrato e a técnica o recurso. Mas o mito do pro-
gresso alterou a dinâmica: a natureza é o recurso, e a téc-
nica o substrato. Tudo o que pode ser feito, deve ser feito
– e a única coisa inquestionável é a técnica. A técnica tem
de ser obedecida, a natureza subjugada em nome dela. A
própria designação de ‘combustíveis fósseis’ nos diz o
que a nossa civilização pensa sobre o assunto: explora-
ção. É esta a nossa relação com a natureza: consumir.
Porque precisamos de carros, e de máquinas, de motores.
E claro, nunca sequer nos perguntámos que outras coisas
destruíamos com a utilização destas máquinas. Nem de-
mos meia volta quando começámos a ver os efeitos:
quando vimos o carro destruir comunidades, afastando
famílias, criando bairros dormitórios; ou quando vimos
as máquinas destruírem a capacidade de homens susten-
tarem as suas famílias e destruir o equilíbrio entre os se-
xos; ou quando vimos os motores encherem as nossas
ruas de poluição dos mais variados tipos. Nada disto foi
reconsiderado, porque o progresso não é negociável. Não
podemos parar, muito menos voltar atrás. As famílias e
comunidades destruídas pelo progresso terão de se adap-
tar, porque o progresso é o mais importante. Tudo o resto
que se quilhe. E surpreendentemente, o conservador con-

285
corda. Só quer ir mais devagar, por contraste ao esquer-
dista, que quer ir em força e rápido.

E assim, também, quando nos deparamos com um pro-


blema, nunca o solucionamos, mas simplesmente criamos
outro. Os combustíveis fósseis estão a acabar, ou a poluir
demais? Será que devíamos repensar o carro, a máquina,
o motor? Claro que não, a solução é pensar num motor
que funcione por outros meios. Certamente não terá ou-
tras consequências que não previmos, nem confirmará e
aprofundará as consequências que já observámos. E se
tiver, lidaremos com elas quando chegarem. Será que o
conservador, e em especial o Católico, sabe que todos os
industrialistas faziam parte da maçonaria? Será que al-
guma vez estudou a resposta da Inquisição nos países
Católicos ao avanço do industrialismo? Será que alguma
vez ouviu falar de Bento de Moura, e o que lhe aconteceu
e porquê?

Outro exemplo: a agricultura. A quinta de família foi


substituída pela agricultura industrial (como tudo, na
nossa civilização, se tornou indústria). Os bois substituí-
dos por tractores, e o estrume substituído por fertilizan-
tes químicos. Onde antes havia uma organização orgâni-
ca e um ciclo vital, agora existe um sistema de uso e des-
perdício. O boi era alimentado pela quinta, e em seu tur-
no alimentava a quinta, formando um ciclo natural e an-
cestral. Em vez disso, o mito do progresso dita que faça-

286
mos mais, mais rápido, mesmo sob pena de destruir o
ciclo natural e ancestral, e de criar um beco sem saída de
desperdício. Hoje sabe-se que os tractores (para além dos
altíssimos custos humanos e sociais da sua produção e da
produção do seu combustível) compactam o solo de for-
ma a exterminarem a vida que lá existe e que é necessária
para as plantações; sabe-se também que aos fertilizantes
químicos faltam micronutrientes importantes (para além
dos custos humanos e sociais da sua produção) e que
deixam vestígios nas colheitas que depois afectam a saú-
de humana. Mas nada disto importa, porque é preciso
mais, mais rápido, mesmo sob pena da própria saúde das
pessoas e do meio natural. E quando as consequências
surgirem, logo inventamos novas soluções. Voltar atrás é
que não, nunca. Porque o progresso não pode parar, é
inquestionável.

É impensável hoje ao conservador viver sem auto-


estradas e sem supermercados, sem electricidade e sem
telemóveis, sem universidades e sem redes sociais. Se por
acaso pensar nos seus antepassados, sem tais ‘benesses’,
mas com família, comunidade e um propósito de vida,
continua a considerá-los amputados. Eram tristes e não
sabiam – não se podiam queixar na internet das conse-
quências sociais da internet, não podiam ir de carro ao
supermercado comprar alface e em vez disso iam a pé ao
quintal. O absurdo patente na visão do conservador mo-
derno é-lhe invisível, porque o mito do progresso cega os

287
seus acólitos. Até entre Católicos – outrora dos maiores
críticos da revolução industrial – as estruturas modernas
são inegociáveis.

A mesma dinâmica que existe com o petróleo ou a agri-


cultura, se encontra nas discussões sobre escolaridade ou
sobre as redes sociais. O esquerdista tenta controlar as
instituições, e o conservador chora sobre o controlo das
instituições e recusa-se a admitir os danos (sociais, psico-
lógicos e morais) da escolaridade ou das redes sociais, e
ainda mais que esses danos são combustível para criar
esquerdistas, isto é, progressistas convictos, em vez dos
progressistas apologéticos do conservadorismo. Tudo
porque “não podemos voltar atrás”. Esta é a oração do
progressismo. Mas se tomámos um caminho errado, que
outra solução senão dar meia volta e começar o caminho
para trás?

O conservador não é menos convicto do progressismo do


que o esquerdista, mas o esquerdista é consistente – está
na vanguarda da vanguarda. O conservador está sempre
na retaguarda da vanguarda. Como por exemplo se vê
quando se depara com uma crítica do Estado Novo. O
esquerdista critica o Estado Novo precisamente pelo
prisma do progressismo, como não poderia deixar de ser:
sob o Estado Novo, diz o esquerdista, o país regrediu, ou
estagnou. Não há pecado maior na religião do progresso
do que estagnar, exceptuando regredir, um pecado ainda

288
maior. E não importa aqui se isso é verdade ou não – a
verdade é que, apesar do ritmo mais lento do que Ingla-
terra ou França, o Estado Novo não regrediu, nem estag-
nou, pelo contrário. E talvez aí esteja, da perspectiva anti-
progressista, o seu maior erro. Salazar, em particular, era
muito consciente dos perigos do avanço tecnológico, es-
pecialmente dos perigos para a estabilidade social, para a
moralidade, para a coesão da família e a manutenção da
comunidade. Mas não era, infelizmente, totalmente anti-
progresso. Mas a única coisa que ocorre ao conservador
dizer quando um esquerdista critica Salazar é que é men-
tira, Salazar na realidade avançou muito o país, escolari-
zou muita gente, pavimentou muitas estradas e criou
muitas centrais eléctricas. É a tristeza de acreditar no mi-
to do progresso, mas sem o saber ou admitir. O único
erro do Salazar foi não ser ainda mais progressista, diz o
moderno conservador.

A mesma coisa quando o esquerdista ataca a Igreja medi-


eval por ter atrasado o progresso, por ter impedido que o
conhecimento se democratizasse, por ter proibido inven-
ções de serem realizadas, por ter controlado o fluxo e a
prática da ciência. O conservador contrapõe que não se-
nhor, que a Igreja era como que um departmento do MIT,
que criou universidades, e que a própria revolução cientí-
fica veio das suas entranhas. E está certo, claro, mas ava-
lia tais sinais de decadência da Igreja como sinais da sua
prosperidade, quando foram as sementes do mundo caó-

289
tico cuja colheita estamos agora a provar. O mérito da
Igreja medieval foi precisamente atrasar o progresso, não
foi ajudá-lo; foi impedir que certos desenvolvimentos se
dessem, não foi dar-lhes a sua bênção mais tarde. Foi
desse esforço hercúleo de estabilidade que nasceram na-
ções e sociedades equilibradas. E foi do seu desleixo nes-
sa tarefa fundamental que nasceram os monstros que ho-
je conhecemos tão bem.

A diferença entre progressistas e conservadores não é de


natureza, mas de grau: o progressista defende o progres-
so acelerado em todas as frentes, o conservador defende
o progresso com uns anos ou décadas de atraso – mas a
aderência ao mito do progresso é a mesma. Tal como o
esquerdista, acredita na primazia da técnica, e isto vê-se
particularmente na sua fé inabalável no processo político,
contra toda as evidências da sua impotência. A política
não pode mudar as implicações do smartphone, pode
apenas (e se tanto) condicionar o seu uso. Mas é uma ba-
talha perdida a longo prazo – como até os regimes con-
servadores do início do Século XX provaram mesmo pe-
rante uma tecnologia muito menos poderosa como o ci-
nema, a imprensa ou a televisão. O conservador sabe que
os seu filho pré-adolescente vê pornografia no telemóvel,
mas só se preocupa com o conteúdo do currículo escolar.
Currículo esse que o miúdo vai ignorar em grande parte,
porque vai estar agarrado ao telemóvel.

290
Já ouvimos muitas vezes dizer que os progressistas de
hoje são os conservadores de amanhã. Mas é irónico que
esta acusação venha dos conservadores mais ‘extremos’,
acusando os conservadores mais moderados de, no futu-
ro, irem defender qualquer dos progressismos esquerdis-
tas (como hoje vemo-los defender a ‘liberdade’ de auto-
destruição sexual, por exemplo), quando os conservado-
res mais extremos defendem hoje as estruturas (como o
mercado, o governo republicano e democrático, ou o sis-
tema industrial) que foram promovidos pelos inimigos
da sociedade tradicional precisamente para a destruir.

Porque vivendo ambos no mito do progresso, a diferença


entre conservadores e progressistas resume-se à rapidez,
não à direcção geral da sociedade. O progressista de hoje
que quer abolir a família tradicional, ou promover uma
identidade sexual artificial, não está a ser radical, mas
simplesmente a levar o mito do progresso às suas conse-
quências naturais. Se é possível ao homem destruir cultu-
ras e modos de vida ancestrais, mudar os seus hábitos de
trabalho e os seus hábitos de consumo, porque não lhe é
possível alterar a identidade sexual? Se é possível libertar
a mulher do trabalho doméstico através da máquina de
lavar loiça, porque não é possível fazer o mesmo através
do seu ingresso numa empresa de marketing? Se é possí-
vel ao homem libertar-se da responsabilidade sexual
através da contracepção, porque não o é através do di-
vórcio? Partindo da premissa errada, os progressistas de

291
esquerda estão logicamente correctos. O grosso do que
constituía um homem e uma mulher no passado já foi
alterado. Não há qualquer razão lógica para não apro-
fundar essa mudança, essa redefinição, dentro da pre-
missa do mito do progresso. O credo de hoje na auto-
determinação do “género” é apenas a vanguarda da au-
todeterminação da carreira ou do consumo que os con-
servadores hoje abraçam de forma impensada como uma
das posições inalteráveis do seu conservadorismo. O abo-
licionismo da normatividade sexual da feminista univer-
sitária de cabelo azul tem origem no seu pai conservador
consentir que ingresse na faculdade.

É o conservador que está errado sobre as identidades


tradicionais, quando as circunstâncias materiais em que
vivemos são em tudo incompatíveis com essas identida-
des. E todas as suas queixas são em vão, e patéticas, en-
quanto se recusar a rejeitar os meios que tornam essas
identidades obsoletas. Por muito que chore a ausência de
masculinidade não exige o retorno do trabalho físico, por
muito que chore a perda da nação não exige a extinção
do mercado internacional, por muito que chore a desin-
tegração da família não exige a extinção dos meios que
promovem essa desintegração, por muito que chore a
propaganda da vanguarda não exige a exinção dos meios
pelos quais a propaganda é veiculada. Mas é pior que
isto, porque na vasta maioria, nem sequer extingue esses
estímulos dentro da sua própria casa. Porque no fundo

292
da sua mundivisão não está a tradição, e não está prepa-
rado para, nem consciente da, necessidade de a aplicar na
prática. No fundo da sua mundivisão está o progresso, e
“voltar atrás” é para si um pecado tão grande como é
para o mais convicto esquerdista.

Um conservador que se queixa da disciplina de ‘desen-


volvimento social’ mas não tira os filhos da escola não é
um conservador, é um esquerdista com atraso. O pro-
blema para um verdadeiro conservador não é o conteúdo
da disciplina, mas o facto de existir tal disciplina em pri-
meiro lugar, seja qual for o conteúdo. Mas o mito do pro-
gresso diz que os miúdos têm de viver numa prisão du-
rante doze anos, e isto é inquestionável. O conservador
acredita piamente que uma professora formada pela
mesma máquina e doutrinada pelo mesmo mito do pro-
gresso, com uma conta de instagram onde posta fotos
semi-nua e apoio à causa LGBT é capaz de ensinar os
seus filhos desde que o ministério da educação designe
um programa ‘conservador’. É de uma burocratização e
formalismo que faria um soviético corar.

O conservador vê os delinquentes na América a destruir


um restaurante de uma cadeia de fast food ou uma loja
de uma marca qualquer e exclama indignado que a soci-
edade se está a desintegrar, ao mesmo tempo que ignora
a desintegração a todos os níveis que o fast food e as
marcas promoveram e continuam a promover.

293
Ao conservador só lhe ocorre apelar à liderança que im-
ponha padrões de moral, sem compreender que a moral
nunca foi imposta pela liderança. A liderança das socie-
dades tradicionais impõe as condições para que a moral
floresça naturalmente. Sem essas condições, todas as im-
posições das mais altas autoridades são em vão. Daí a sua
obsessão em ‘recapturar as instituições’. Será que ocorre
ao conservador o porquê de as ter perdido? Claro que
não, porque se ocorresse percebia que nunca foram suas,
que nunca estiveram de acordo com os valores que pre-
tende conservar.

Que instituições quer o conservador ‘recapturar’? O go-


verno republicano e democrático? Será que sabe a ori-
gem, e a mundividência inerente, desse tipo de governo,
que desde o início foi inimigo da moralidade e organiza-
ção social tradicional? Será que entende que a sua pró-
pria existência é uma negação da hierarquia a nível naci-
onal da mesma hierarquia que se pretende conservar a
nível familiar e comunitário?

Ou será que quer recapturar as escolas? Será que entende


que a escolaridade foi desde o início um instrumento de
propaganda contra a sociedade tradicional e que nunca
pode ser outra coisa? Será que entende que educação e
escolaridade são duas coisas completamente distintas?
Não me parece. As escolas existem para dois propósitos,
que coincidem na perpetuação do mito do progresso: pa-

294
ra inculcar nas mentes jovens a propaganda do sistema e
perpetuarem-no como indispensável para uma vida sa-
lúbre e feliz; e para treinar as novas gerações para acatar
as necessidades técnicas do sistema. Quando o conserva-
dor afirma que ‘tem de enviar os filhos para a escola’ (e
sobretudo ‘para a faculdade’) para que possam ‘ter um
bom emprego’, o que está a dizer é que a única coisa que
antevê para os filhos é que se tornem escravos do siste-
ma, no mínimo, e escravos felizes na maior parte das ve-
zes. Por isso em vez de garantir que filhos e filhas estão
orientados para casar e formar família, garante que este-
jam orientados para cumprir uma função económica que
seja adequada ao sistema (‘a empregabilidade’) e em vez
de poupar para ajudar os jovens filhos nos primeiros
anos de casamento, para que possam ir formando as suas
próprias famílias enquanto não têm estabilidade e matu-
ridade, poupa para os mandar para as faculdades onde
irão receber uma lavagem cerebral contra os pais, e con-
tra a própria instituição da família – se não directamente,
sob as disciplinas pseudo-sociológicas, pelo menos cola-
teralmente através da orientação da vida para a função
económica. A esta forma de escravatura e alienação, o
conservador chama sem ironia de educação, e pior, con-
sidera-a ‘necessária’. E bom, será necessária para algu-
mas coisas, mas não para qualquer um dos putativos
propósitos conservadores.

295
O conservador pensa, sem qualquer base na realidade,
que consegue impingir valores tradicionais em estruturas
necessariamente progressistas, seja a escola, o mercado,
as redes sociais ou qualquer outra estrutura do nosso
mundo fundada no mito do progresso. Da mesma forma
que a quinta familiar funcionava organicamente (e não
pode funcionar de outra forma sob pena de deixar de o
ser), a família tradicional, a coesão étnica e cultural, o
papel das mulheres e dos homens na sociedade, a sexua-
lidade e tudo o resto de que os conservadores se queixam
no mundo moderno dependem desse mesmo funciona-
mento orgânico, dependem de um mundo necessaria-
mente pré-moderno. Não há uma possibilidade intermé-
dia de manter as estruturas do mundo moderno e ter va-
lores tradicionais. O mito do progresso é a antítese do
mito de estabilidade que o precedeu, e que é a base de
todas as sociedades tradicionais. Todas as sociedades
pré-industriais têm valores tradicionais e todas as socie-
dades industriais sofrem da perda desses mesmos valo-
res, independentemente da geografia, da genética e da
cultura. Isto é tão observável que só mesmo o poder de
um mito pode cegar o observador.

É por tudo isto que o conservadorismo, do mais modera-


do ao mais extremo, é incapaz de conservar seja o que
for.

296
Bolas e Doces

Eu adoro analogias e gostaria de usar uma para explorar


a ideia de hierarquia de objectivos, e de como muitas ve-
zes dizendo que temos um objectivo, na verdade temos
outro que é prioritário, e só atingindo esse ficamos satis-
feito com o outro. Estão a ver como é confuso? Vamos à
analogia.

Dois miúdos têm como objectivo declarado comprar uma


bola de futebol – os pais dizem-lhes que não lhes vão
comprar a bola, mas que têm eles de as comprar com di-
nheiro que recebem de mesada. O primeiro miúdo decide
poupar a sua mesada durante três meses e comprar a bo-
la de futebol. O segundo miúdo continua a gastar a sua
mesada em doces e ao fim de um ano ainda não tem a
bola (mas tem cáries, felizmente os pais não o fazem pa-
gar o dentista). O segundo miúdo continua a dizer que o
seu objectivo é a bola de futebol, mas as suas acções de-
monstram que, embora a bola esteja teoricamente nos
seus objectivos, não é o objectivo principal. Logicamente,
o miúdo valoriza mais os doces do que a bola – caso con-
trário sacrificaria os doces pela bola, quando na verdade
faz o contrário, e sacrifica a bola pelos doces.

297
Poderíamos dizer que o segundo miúdo não conhece o
primeiro, e que como tal não tem um exemplo a seguir
para obter a bola, e não consegue raciocinar quais os pas-
sos a seguir para concretizar o objectivo. Mas hipotetica-
mente digamos que os miúdos se conhecem na escola, e
que o primeiro partilha a sua estratégia com o segundo,
mas este continua a comprar doces, em vez de poupar a
mesada para comprar a bola.

A situação do segundo miúdo é, a meu ver, análoga (com


as devidas distâncias de complexidade) à situação dos
nacionalistas, entendidos muito largamente.

Quais são os principais objectivos desse grupo? Eu consi-


go encontrar quatro (a ordem de prioridade depende de
cada sub-grupo):

1. Coesão e manutenção étnica


2. Taxa de Natalidade superior a 2 filhos por mulher
3. Manutenção e continuidade cultural
4. Moralidade tradicional

Estes parecem-me ser os objectivos transversais a todos


os grupos e opiniões debaixo da designação ‘nacionalis-
ta’, e todos os objectivos secundários (como segurança
pública ou saúde física e mental) advêm em larga medida
da implementação dos objectivos principais.

298
E se eu vos dissesse que existe, hoje, um grupo (compos-
to por vários sub-grupos relacionados) de Europeus que,
ao contrário de todos os outros grupos Europeus, conse-
guem consistentemente alcançar os quatro objectivos
principais? E ainda mais surpreendente, conseguem al-
cançá-los sem os terem como objectivo primário – eles
surgem quase como consequência colateral. Talvez não
acreditem, mas a verdade é que existe. Antes de revelar-
mos o seu nome, vamos explorar os factos concretos so-
bre este grupo e a sua relação com os quatro objectivos
nacionalistas.

Em relação ao ponto 1, este grupo mantêm a mesma


composição étnica desde a sua origem há vários séculos.
Embora em teoria seja possível juntar-se a tal grupo sem
partilhar a mesma herança étnica, tal é tão raro ao ponto
de ser estatisticamente irrelevante – algo que liga com o
ponto 2: a taxa de natalidade.

Este grupo tem uma das mais altas taxas de crescimento


populacional do mundo, duplicando os seus números em
menos de 20 anos. A taxa da natalidade deste grupo é,
neste momento, de 5.3 filhos por mulher. É o único grupo
Europeu que mantêm uma taxa de natalidade acima do
necessário para a substituição populacional (se descon-
tarmos a contabilidade enviesada pelos imigrantes em
países Europeus), e rivaliza com as mais altas taxas no

299
mundo (todas elas, com esta excepção, em países de ‘ter-
ceiro mundo’).

No ponto 3, este grupo mantem e continua a sua cultura


largamente inalterada desde a sua incepção. Este ponto
pode ser ilustrado especialmente pelo facto de continua-
rem a falar a mesma língua que os seus antepassados,
mas não só: embora vivendo numa área geográfica que
não a de origem, mantêm um dialecto que no lugar ori-
ginal já está extinto, ou seja, são um testamento vivo de
continuidade e manutenção cultural. Esta língua é uma
das poucas línguas minoritárias no país em que se encon-
tra (e a única de origem Europeia) que não está em vias
de extinção pela chegada de imigrantes. A mesma dinâ-
mica se encontra nas formas musicais tradicionais que
ainda praticam, que entretanto estão extintas na geogra-
fia e grupo étnico original.

No ponto 4 basta dizer que o grupo adere a normas de


moralidade tradicional, dando ênfase à família, ao casa-
mento e à educação dos filhos para manter essas normas.
O grupo considera a sua unidade mais básica a família,
em vez do indivíduo, e é pelo número de famílias (e não
de indivíduos) que contabilizam os números da comuni-
dade (a contabilização da taxa de natalidade é feita pelo
governo através dos métodos comuns). O homem é o
líder da família e os sexos têm obrigações diferentes – e
tradicionais. A maioria dos filhos continua a profissão

300
dos pais e a maioria das filhas tem como actividade prin-
cipal o cuido da casa e dos filhos. Divórcio, homossexua-
lidade, estilos de vida ‘alternativos’, drogas e suicídio são
inexistentes.

O grupo (ou colecção de grupos) em questão dá pelo


nome de Amish. São descendentes de Alemães e Suiços,
vivem maioritariamente na América do Norte (mas tam-
bém do Sul), e avaliando os putativos objectivos dos na-
cionalistas, deveriam ser um exemplo a seguir, ou pelo
menos a emular. Deveriam figurar permanentemente na
sua propaganda e constituir um exemplo aspiracional.

Mas este cenário idílico tem custos e é quando conside-


ramos esses custos e os sacríficos requiridos que surgem
dúvidas sobre os objectivos principais dos nacionalistas:
serão assim tão prioritários? Ou como o segundo miúdo
do exemplo inicial, não preferem certos outros objectivos
a estes? Tal como o miúdo que não quer sacrificar os do-
ces pela bola, e como tal quer mais os doces do que a bo-
la, os nacionalistas não parecem estar dispostos a sacrifi-
car os confortos do mundo moderno pelos objectivos que
os Amish, sacrificando-os, cumprem sem qualquer difi-
culdade.

Os Amish, ou os seus líderes, rejeitam o uso de uma


grande quantidade de ‘benesses’ do mundo moderno. O
nível de rejeição destes confortos é variado, havendo os

301
que rejeitam totalmente a electricidade, veículos motori-
zados ou água canalizada, e os que os utilizam em apli-
cações específicas (mesmo assim uma minoria). Nenhum
dos sub-grupos permite televisões ou computadores –
alguns permitem telefones (antigos) em contexto de tra-
balho, mas não de lazer. Em última instância, cada tecno-
logia, a sua introdução e o seu uso são decididos pela
liderança de cada grupo – geralmente um conselho de
anciãos – e são avaliadas pela perspectiva única de ajudar
ou prejudicar a estabilidade da comunidade e dos seus
valores, e a manutenção dos mesmos. Em geral, a avalia-
ção é que as tecnologias modernas não só não são propí-
cias à saúde dos valores da comunidade, como são em
geral detrimentais. E claro, as comunidades obedecem
sem questionar as decisões dos seus líderes sobre estas
questões.

Seja como for, aqui está, em pleno Século XXI, um exem-


plo a seguir do ponto de vista nacionalista, um grupo que
cumpre todos os requisitos e atinge todos os objectivos.
Mesmo concedendo algumas dificuldades logísticas em
pôr em prática uma versão adaptada deste grupo, esta
não é de todo uma missão impossível. E no entanto, não é
costume ver propostas nesse sentido, pelo contrário. Será
por falta de conhecimento? Talvez, mas tendo lido este
texto – e podendo agora fazer mais pesquisa para apro-
fundar o conhecimento – poderão espalhar a mensagem e
começar a preparação. Ou no mínimo, começar a falar da

302
condição principal que faz com que os Amish sejam ca-
pazes de cumprir os tais objectivos.

A pergunta que se impõe aos nacionalistas, e à qual é


impossível fugir, é se valorizam mais os objectivos ex-
pressos ou os confortos modernos cuja abdicação é re-
querida para os alcançar. Se estão dispostos aos sacrifí-
cios necessários para atingir os seus objectivos, ou se só
aceitam esses objectivos dentro de certas outras condi-
ções – condições essas que se tornam, na verdade, os ob-
jectivos principais. Por outras palavras, se preferem a
bola ou os doces. E a mim parece-me que mesmo dizendo
que preferem a bola, preferem ter os doces e queixar-se
das cáries.

Comida para o pensamento, como se costuma dizer.

303
O Espírito Lusitano
escrito no dia das eleições Americanas de 2020

Será que os Lusitanos se agitavam com a política Roma-


na?

A pergunta tem-me vindo à cabeça ultimamente, mas


hoje ainda mais. Eu imagino que esta seja uma doença
moderna, derivada da comunicação instantânea. O in-
ventor do telégrafo foi certamente impelido por demó-
nios – como todos os inventores, na verdade. Para nos
perturbar a paz com notícias distantes, informação que
não nos serve para nada, que não nos impele a agir, mas
apenas a definhar, a sublinhar a nossa insignificância e
dar-nos ansiedade. E para quê? Para nada, isso mesmo.

Imagino o Lusitano a mandar às favas figurativas o seu


colega preocupado com a política Romana enquanto ele
vai às favas literais pois está ocupado com algo relevante,
isto é, o almoço. Ocupado, não PRE-ocupado – tome-se
nota pois vem ao caso mais à frente. Enquanto isto cole-
gas mandam-me mensagens preocupadas com uma elei-
ção na capital do império. Vai ser o fim dos tempos se o
homem laranja ganhar!

304
Do outro lado não é melhor – também pensam que faz
alguma diferença. Não importa salientar as ligações al-
tamente duvidosas do putativo salvador às outras faces
plutocratas e os planos das mesmas (igualmente perigo-
sos e diabólicos), mas nada disso importa para gente ob-
cecada com a política. Tal como de nada serve lembrar
que passaram quatro anos, e o mundo ficou pior e todas
as más tendências se agravaram – como se esperava que
ficasse e se agravassem, ganhasse quem ganhasse o con-
curso de popularidade. ‘Mas a culpa é dos outros’. Sendo
ou não, o putativo salvador foi e é impotente, ou nunca
foi suposto mudar o curso da história e pela primeira vez
pôr o mundo no caminho certo. Como dizia o outro: se as
eleições pudessem mudar alguma coisa não eram permi-
tidas.

Eu ainda me lembro, há duas décadas, quando as pessoas


sabiam todas, intuitivamente, que a política e os políticos
(especialmente em democracia e quando era suposto re-
presentarem o povo) eram, na melhor das hipóteses, irre-
levantes e que quem realmente mandava nisto tudo era
de outra estirpe. E ainda me lembro de na semana passa-
da pessoas que ainda hoje deviam saber melhor (como
dizem os burgers) expressarem como a política é um me-
ro teatro plutocrático, mas que com a badalada da meia
noite esqueceram-se, e se o deus-imperador não ganhar
cai o carmo e a trindade, o céu e a terra, e os pólos vão
mais uma vez dar a volta.

305
Aqui convém lembrarmo-nos do que uma certa passa-
gem Bíblica (Lucas 4:5-8) nos diz sobre como a política
realmente funciona, quem realmente manda nela, e qual
deve ser a nossa atitude perante a mesma:

«Então o Diabo levou-o para mais alto e mostrou-lhe num mo-


mento todos os países do mundo. Depois disse-lhe: «Posso dar-
te todo este poder e a sua glória, porque tudo isto me foi entre-
gue a mim e eu dou-o a quem eu quiser.
Tudo será teu, se me adorares.»
Mas Jesus respondeu-lhe: «A Escritura diz: Adorarás o Senhor
teu Deus e só a ele prestarás culto.»

Reparem como Jesus não desmente o diabo. Jesus não lhe


diz que está errado, que os países e os seus governos afi-
nal não lhe foram entregues e que o poder político não é
seu para dar. Jesus, como o hipotético lusitano de há
pouco, dá o ponto como assente, mas manda-o à fava
pois há coisas mais importantes. O poder político perten-
ce ao demónio e quem quer servir Deus deve mandar o
demónio e a sua política dar uma volta.

Mas, se tudo isto é verdade, não devíamos ficar ainda


mais preocupados?

«Ninguém pode servir a dois patrões: ou não gosta de um deles


e estima o outro, ou há de ser leal para um e desprezar o ou-

306
tro. Não podem servir a Deus e ao dinheiro.
É por isso que eu vos digo: Não andem preocupados com o que
hão de comer ou beber, nem com a roupa de que precisam para
vestir. Não será que a vida vale mais do que a comida e o corpo
mais do que a roupa?
Olhem para as aves do céu, que não semeiam, nem colhem, nem
amontoam grão nos celeiros. E no entanto, o vosso Pai dá-lhes
de comer. Não valem vocês muito mais do que as aves?
Qual de vós, por mais que se preocupe, poderá prolongar um
pouco o tempo da sua vida?»

Jesus reitera a necessidade de servir apenas a Deus e em


apenas três versos (Mateus 6:24-27) contradiz aquilo que
as notícias nos dizem todos os dias, já que também elas
servem não a Deus, mas ao mafarrico e os seus interesses.

Um general Romano disse uma vez (ou diz-se que disse,


mas vai dar ao mesmo): “Há, na parte mais ocidental da
Ibéria, um povo muito estranho: não se governa nem se
deixa governar!”

Talvez não seja tarde para recuperarmos o nosso espírito


ancestral. Rejeitemos a modernidade, e abracemos a tra-
dição, como diz o meme. A nossa tradição, como explica-
da por aqueles que nos queriam dominar, era pelos vistos
seguir o conselho de Jesus Cristo, mesmo sem ter ouvido
falar dele. Afinal de contas, o certo e o errado está escrito
nos corações de todos. E neste capítulo, parece que estava

307
escrito e sublinhado nos corações dos portugueses mes-
mo antes de o serem. Oxalá ainda possamos recuperar
essa sabedoria dos antigos.

308
O Culto do Microscópio

É difícil encontrar uma palavra que detenha mais poder


nos nossos dias do que ‘ciência’. O apelo à ‘ciência’ é im-
buído de um tal espírito de sacralidade que quem levanta
alguma objecção é apelidado de ‘negacionista’; os políti-
cos, sempre oportunistas, usam-na como antes usavam o
nome de Cristo, ou como imperadores Romanos usavam
nomes de divindades – isto é, para se glorificarem a si
mesmos, não aos deuses; o público apela à ‘ciência’ como
antes se apelava à providência. A ‘ciência’ é, como já ex-
plicámos, parte do novo sagrado – e de nada importa que
não tenha, neste caso, nada que ver com o método em
que é suposto fundar-se e em que deve findar-se.

Mas é também curioso que se de um lado temos uma re-


verência religiosa à ‘ciência’, temos do outro um apelo à
mesma, mas na sua forma pura. Uma pretensão de racio-
nalidade, um sentimento salvífico de procura da ‘verda-
deira’, da ‘pura’ ciência. Quando, no alinhamento político
dos nossos dias, a ‘direita’ acusa a ‘esquerda’ de usar a
ciência como um martelo que só vê pregos, não é, infe-
lizmente, por reconhecer os limites intrínsecos à tal coisa
que designam como ciência, é por serem verdadeiros
crentes – e isso é mais triste. Contra os que pervertem a
‘pura ciência’ do método para os seus objetivos políticos,
os seus defensores pretendem restaurá-la à sua condição

309
imaculada, puramente racional, objectiva – isto é, científi-
ca. E, deduz-se, com tal propósito, não a retirar do co-
mando das decisões, mas mantê-la lá – só que pura. Se a
ciência, a verdadeira, a pura, extraída como néctar da
prodigiosa fruta que é o método também ele sagrado, nos
conduz a alguma conclusão, então há que restruturar a
sociedade segundo a mesma. O uso aqui da metáfora da
fruta não é um acaso, tal como não foi um acaso que
Adão tenha dado a primeira dentada. O apelo é e sempre
foi grande. O conhecimento é poder, e se acedermos a ele,
acedemos ao poder, tornamo-nos como deuses, senhores
do destino, capazes de tudo. Orgulhosos como o demó-
nio.

É tudo um pouco triste e patético, como é em geral o


mundo humano (especialmente o moderno) no seu todo
e nas suas particularidades, mas vale a pena explorar a
questão, precisamente para demonstrar o quão patética
esta atitude é realmente e assim maltratar o hubris que
quanto mais nos faz procurar o conhecimento humano
mais nos afasta do conhecimento de Deus – como fez pe-
la primeira vez naquele fatídico evento no Jardim.

Por isso não é a aura religiosa na sua manifestação mo-


derna que nos interessa, isto é, a reverência bajuladora
que se encontra na ‘esquerda’ pela palavra ‘ciência’ – isso
é o menos, isso é o expectável, e se nos permitem dizê-lo,
é menos perigoso, por ser tão natural. E é natural porque,

310
tendo a ciência, a verdadeira, a pura, posto em causa e
desvirtuando tudo o que era antes sagrado, que mais co-
locar no lugar mais alto senão o martelo que destruiu as
fundações do anterior edifício?

O que nos interessa é a fé inabalável da ‘direita’ na mes-


ma, na sua forma pura, no imaculado método, para nos
dar todas as respostas e nos apontar um caminho – o ca-
minho, seja ele qual for, só pode ser sempre um que nos
permita mais ‘ciência’, mais poder aos seus ditames e
mais progresso pela sua realização. Interessa-nos por isso
muito mais desfazer o seu mito, não entre os crentes mís-
ticos mas entre os crentes que se dizem objectivos. Afi-
nal, quando alguém funda a sua mundividência na ‘ciên-
cia’, não estamos perante um método que nos permite
aprender detalhes sobre o mundo, mas perante uma ver-
dade última a que se adere para se entender o todo.

Começemos por uma proposição, que possivelmente até


será aceite pelos crentes no método: os testes experimen-
tais, nos quais o método científico é fundado, só nos po-
dem esclarecer sobre pormenores, não podem ser extra-
polados para nos fornecer uma visão coerente do mundo.
Que teste podemos fazer para averiguar quem somos,
porque estamos aqui, e qual é o propósito da vida? Exis-
tem apenas duas formas de obter conhecimento sobre
estas questões, sobre as causas últimas, que têm de ser
combinadas: primeiro, é através da revelação; e segundo,

311
através da razão intuída sobre essa revelação. O primeiro
ponto pode parecer aplicar-se apenas à Bíblia como a pa-
lavra revelada de Deus, mas aplica-se também às teorias
científicas e de muitas outras formas.

Isto está bem documentado num breve artigo de George


Orwell (tão mencionado nos nossos dias como mal en-
tendido), “Como Sabes que a Terra é Redonda? ‘. Escreve ele:

“Bernard Shaw observa que somos hoje mais crédulos e supers-


ticiosos do que éramos na Idade Média, e como exemplo de cre-
dulidade moderna cita a crença generalizada de que a terra é
redonda. O homem médio, diz Shaw, não pode avançar uma
única razão para pensar que a terra é redonda. Ele apenas en-
gole esta teoria porque há algo nela que apela à mentalidade do
século XX“.

Ou seja, a maioria das pessoas que não se encontram


num determinado campo de estudo, apenas acreditam no
que acreditam devido à revelação – e tal como o homem
medieval acreditava na revelação de Deus na Bíblia me-
diada através da classe sacerdotal, o homem moderno
acredita na revelação do método científico através da
classe sacerdotal científica resumida nos jornais pela clas-
se sacerdotal de nível inferior de jornalistas, que por sua
vez acreditam na descrição do perito da revelação deta-
lhada nas revistas científicas. Este é o melhor cenário.
Pois a credulidade não acaba aí, pois também se deve

312
acreditar – sem qualquer prova – no conhecimento e infa-
libilidade (ou próximo dele) das pessoas que pertencem a
essas classes. E, em adição, acreditar na idoneidade e
neutralidade dos financiadores de ambas as operações.
Por outras palavras, a maior parte do que sabemos sobre
o mundo baseia-se, unicamente, na autoridade.

Como Orwell conclui, depois de perceber que não tem


uma base racional para a sua crença numa terra redonda:
“Ver-se-á que as minhas razões para pensar que a terra é re-
donda são bastante precárias. No entanto, esta é uma informa-
ção excepcionalmente elementar. Na maioria das outras ques-
tões, teria de recorrer ao perito muito mais cedo, e seria menos
capaz de testar os seus pronunciamentos. E a maior parte do
nosso conhecimento está a este nível. Não repousa no raciocí-
nio ou na experiência, mas na autoridade. E como pode ser de
outra forma, quando a gama de conhecimentos é tão vasta que o
próprio perito é um ignorante assim que se afasta da sua pró-
pria especialidade? A maioria das pessoas, se lhe pedissem para
provar que a terra é redonda, nem sequer se dariam ao trabalho
de produzir os argumentos bastante fracos que descrevi acima.
Começariam por dizer que “toda a gente sabe” que a terra é
redonda, e se fosse mais pressionada, ficaria furiosa. De certo
modo, Shaw tem razão. Esta é uma era crédula, e o fardo do
conhecimento que agora temos de carregar é parcialmente res-
ponsável“.

313
Embora este não seja um ponto de vista contraditório
para os Cristãos, que não colocam a fé no método cientí-
fico como meio de obtenção de uma verdade última, é
extremamente contraditório para as pessoas que elevam
a Ciência (aquela com o sinistro C maiúsculo) à fonte úl-
tima da verdade tal como revelada pelo método científi-
co. Em primeiro lugar porque as suas críticas e descren-
ças da história Cristã vão todas dar ao mesmo argumen-
to, de ausência de ‘provas’ e de confiança na narrativa
dada por outrem. Mas é, pelo menos no vácuo, uma críti-
ca válida. Pelo menos até os confrontarmos com a areia
movediça das suas próprias crenças.

Pois se levassem realmente a sério e rigorosamente a sua


perspectiva científica, não acreditariam na grande maio-
ria daquilo em que acreditam, uma vez que não têm nem
o conhecimento, nem os meios, nem o tempo para testar
todas as teorias que acreditam serem verdadeiras. Seriam
cépticos radicais, o que é o ponto final verdadeiro e con-
sistente da visão de mundo puramente científica. Mas são
verdadeiros crentes, sem qualquer investigação racional:
confiam na validade da proposição de que o método ci-
entífico é a forma de descobrir tal conhecimento, confiam
que os peritos se empenharam nele e aplicaram fidedig-
namente, que os seus testes foram correctamente realiza-
dos, e por último acreditam que os peritos e os jornalistas
de nível inferior estão a transmitir com precisão e hones-
tidade o que encontraram ao público. Em suma, são tão

314
crédulos como um homem que confia na revelação de
Deus, mas menos honestos a esse respeito, e a sua posi-
ção requer uma fé muito mais cega.

Assim, estabelecemos que a refutação comum de um en-


tendimento Bíblico é absurda, e poderia mais facilmente
ser aplicada para refutar as crenças amplamente difundi-
das do homem moderno, precisamente porque estas se
baseiam numa crença dogmática no método científico,
nos peritos que o utilizam correctamente, e nos peritos e
jornalistas que relatam as suas ‘descobertas’ – e uma
crença dogmática naquilo que é suposto ser contra as
crenças dogmáticas é um oximoro cómico. Portanto, o
nível de fé cega é triplicado, enquanto que o Cristão só
precisa de acreditar que o relato Bíblico é a revelação de
Deus a determinados homens ao longo da história e que
esses homens a relataram com precisão. Para compara-
ção, crenças em tempos anteriores que imitariam a fé do
cientismo seriam como uma crença de que quem tem
acesso a um dispositivo ou fórmula especial, como as
conchas e os feitiços mágicos, e no nosso tempo acesso ao
laboratório e ao método científico, tem uma percepção
perfeita do funcionamento do mundo. Daí que as crenças
generalizadas da nossa época sejam essencialmente as
mesmas que as crenças em feitiçaria das sociedades pri-
mitivas, excepto pela pretensão da racionalidade que as
sociedades primitivas tinham a decência de deixar de
fora da sua visão do mundo.

315
Por isso é necessária a segunda parte: razão intuída. De-
vemos aplicá-la a todas as revelações, para não sermos
tão ingénuos e perdidos como o homem moderno. Ago-
ra, vale a pena notar que muitos Cristãos parecem depo-
sitar mais fé nas autoridades científicas do que na revela-
ção de Deus. Isso apenas confirma que os Cristãos mo-
dernos sofrem dos mesmos condicionamentos que a mai-
oria dos moderados, não significa que, ao nível da mun-
dividência, esses dois paradigmas sejam reconciliáveis.
Embora a aplicação do método científico a pormenores
seja perfeitamente compatível com ser Cristão e, portan-
to, acreditar na revelação de Deus, a crença dogmática na
força omnisciente e omnipotente do método para forne-
cer uma cosmologia, e a autoridade e revelação dos seus
praticantes não o é. Assim, para o Cristão, as descrições
científicas, teorias e “provas” (colocadas entre aspas por-
que a mesma estrutura de crença explicada acima se lhes
aplica, ou seja, a sua classificação como aceitável, prova
objectiva pelo público é baseada na autoridade) devem
ser consideradas à luz da revelação Bíblica e dos Santos e
Pais da Igreja, e não o contrário, como parece ser tão co-
mum para os Cristãos fazer hoje em dia.

Há uma diferença final entre a cosmovisão Cristã e a


cosmovisão moderna do cientismo, que é que a primeira
é uma base imutável, enquanto a segunda é uma premis-
sa em constante mudança, cuja única oferta estável é que
mudará, quanto mais não seja através da expansão. A

316
narrativa Bíblica não muda, mas a científica deve, por
necessidade, ser pelo menos possível de mudar. Por esta
razão, o cientismo é uma falsa doutrina, uma vez que a
ciência, embora útil, nunca pode ser a base para uma vi-
são coerente do mundo e da vida.

Resta uma última consideração sobre a narrativa Bíblica


(ou qualquer texto, na realidade), pois é uma considera-
ção que, por mal entendida, previne muita gente de se-
quer tentar entender a revelação. Trata-se da questão de
interpretação e de como as palavras se relacionam com a
realidade. Este é o eterno debate sobre leituras literais e
figurativas da Bíblia. Consideramos essas distinções arti-
ficiais. Não existe uma descrição literal do mundo, uma
vez que as descrições são feitas com palavras, e as pala-
vras são símbolos destinados a representar a realidade,
mas não são a realidade. As palavras são como um mapa,
apontam para a realidade, representam a realidade, mas
não são a própria realidade: são por necessidade uma
redução do real. Assim, não existe tal coisa como uma
descrição literal de nada. Isso não torna a descrição me-
nos verdadeira, nem os acontecimentos e as coisas que
está a descrever menos verdadeiros. Significa apenas que,
tal como com a ciência e a tecnologia, o homem moderno
é novamente levado a sobrestimar o poder da sua pró-
pria invenção, neste caso, a linguagem. O homem medie-
val não acreditava em leituras literais, é o homem mo-
derno que acredita. É por esta razão que ele não consegue

317
compreender sequer a distinção mais básica entre mapa e
realidade – e isto aplica-se tanto à sua leitura da Bíblia
como às descrições científicas, com a excepção de que ele
tende a pensar que as palavras na Bíblia não descrevem
nada de real, enquanto que as palavras dos jornalistas e
dos cientistas são as mesmas que a realidade que estão a
tentar descrever.

Deus tem a vista de cima, a vista completa, mas escolheu


dar-nos um mapa usando uma ferramenta humana, a
linguagem. Isto não significa, contudo, que o mapa possa
ser confundido com a vista de cima. E assim, quando le-
mos a Bíblia, por exemplo Génesis 1:1 “No princípio Deus
criou o céu e a terra“, podemos ter apenas uma ideia apro-
ximada do seu significado. Embora algumas descrições
na Bíblia, especialmente no que diz respeito às idas e
vindas históricas de Israel e das nações com as quais en-
tram em contacto tanto no Antigo como no Novo Testa-
mento, sejam precisas e fáceis de compreender, eventos
tão monumentais e sobrenaturais como a Criação, a Que-
da, a Encarnação ou a Ressurreição de Cristo devem ne-
cessariamente permanecer misteriosos, porque falam de
eventos que nunca podem ser compreendidos puramente
a partir de uma visão humana, e portanto uma constru-
ção puramente humana como a linguagem nunca pode
fornecer uma descrição inteiramente satisfatória e deve
recorrer, por necessidade, a uma linguagem poética.

318
O mesmo, na verdade, se aplica às descrições científicas
do mundo e sobretudo de eventos de enorme magnitude
e profundidade – mas infelizmente, nunca veremos os
crentes na ciência colocarem a sua racionalidade a funci-
onar e colocar o proverbial grão de sal nas descrições que
lêem dos seus sacerdotes de microscópio e telescópio.
O universo surgiu sozinho e os homens vêm dos maca-
cos. Não é preciso nenhuma interpretação, tudo isto é
claro como a manhã – se vier de uma bata branca.

319
A Política à luz da Técnica

A ideologia é um fenómeno puramente moderno, con-


temporâneo com a ascensão do sistema industrial. Embo-
ra existam antigas distinções entre os caminhos de mão
esquerda e mão direita, não há nada no mundo tradicio-
nal, pré-industrial que transforme as inclinações ineren-
tes à nossa natureza caída em ideologias e movimentos
políticos. Não é um acaso que os termos direita e esquer-
da tenham surgido com a Revolução Francesa. Como em
tudo o resto que toca, a técnica toma o natural e sistema-
tiza-o – e no domínio do discurso político, dá origem a
ideologias, à política tal como a conhecemos, à luta de
grupos políticos para que os seus interesses sejam repre-
sentados e as suas queixas sejam ouvidas.

Compreendendo isto, não devemos cair no erro cometido


por muitos de ambos os lados de desprezar as queixas e
as causas do outro lado do espectro. Quase todos os gru-
pos políticos têm, pelo menos algumas, queixas legítimas
e tentam resolver problemas verdadeiros. Isto não quer
dizer que os líderes de tais movimentos sejam sinceros,
ou que a sua defesa de certas causas seja por convicção
na justiça dessas causas (em geral, os líderes de todos os
movimentos, da extrema esquerda à extrema direita, são
oportunistas psicopáticos). Mas a razão porque os líderes
podem agitar certas bandeiras e ter apoiantes (por vezes,

320
fervorosos) é porque as causas não são totalmente espú-
rias, mesmo que as soluções que propõem sejam ou insu-
ficientes ou absolutamente contraproducentes (como ve-
remos mais à frente).

Vejamos alguns exemplos de causas justas.

Os Comunistas e Socialistas têm razão em preocupar-se


com a exploração económica. Os Conservadores têm
razão sobre o declínio da decência pública e de uma cul-
tura bastardizada e degenerada. Os Ambientalistas têm
razão em preocupar-se com a destruição dos ecossiste-
mas, o abuso do mundo natural e a crueldade para com
os animais na agricultura industrial. Os Identitários têm
razão sobre a imigração e a limpeza étnica das suas pá-
trias. Os Libertários têm razão em preocupar-se com a
perda de liberdade e autonomia, com a intrusão política
nas decisões económicas das pessoas, com a burocracia
maciça e com a arregimentação social. A Esquerda tem
razão sobre o papel do Ocidente na conquista e subju-
gação de outros povos, apesar da sua visão muitas vezes
míope que exonera outros povos de fazerem o mesmo,
ainda que não tão sistematicamente, colocando assim
inadvertidamente o dedo no verdadeiro e particular pro-
blema (a sistematização da conquista e da exploração).
Os Tradicionalistas têm razão acerca da natureza destru-
tiva da libertação sexual. E assim por diante.

321
O entendimento político comum, tanto à esquerda como
à direita, considera os grupos acima referidos e as suas
causas como sendo, em grande parte, impossíveis de re-
conciliar. Mas isto não é verdade. Todas estas queixas, e
outras igualmente legítimas, têm uma coisa em comum,
que é o seguinte: os grupos que se preocupam com elas
rejeitam, ou nem sequer consideram, a origem dos pro-
blemas que querem solucionar e, portanto, não conside-
ram também a eliminação dessa causa original como a
única solução para os seus problemas: o sistema indus-
trial. Cada grupo considera cada problema de forma iso-
lada. Podem resolver o seu problema sem se verem livres
das fundações industriais do nosso mundo, ou mais fre-
quentemente, utilizando o poder do próprio sistema, que
depois causam outros problemas, mas geralmente de ou-
tro lado da cerca, com algum outro grupo a ser vitimiza-
do, algo que o originador e defensor da solução não vê,
ou não se importa.

Mas o facto é que todas as queixas destes movimentos


políticos são queixas totalmente modernas, e não podem
ser compreendidas ou resolvidas sem a rejeição da mo-
dernidade – em particular, o industrialismo, que ou acen-
tua velhos problemas como o equilíbrio sempre frágil
entre o uso e o abuso da natureza pelo homem, ou cria
novos problemas, como a migração em massa ou a des-
ordem sexual generalizada. Especificamente, a sociedade
industrial transforma estes problemas em problemas de

322
massa e onde quer que os seus tentáculos alcancem, e
quanto mais território conquista, seja ele físico ou mental,
mais graves se tornam.

Tendo enumerado as queixas dos vários grupos e visto


como elas são legítimas e os problemas que levantam
reais, temos agora de explorar como esses problemas são
produto, e não podem ser resolvidos permanentemente
dentro, do sistema industrial.

A exploração económica de que os Comunistas e Socialis-


tas se queixam nasce com o sistema industrial – o próprio
Marx observa isto no seu tomo famoso O Capital, con-
cluindo (sem qualquer base racional) que o problema não
é o sistema, mas apenas a sua gestão, cometendo nova-
mente o mesmo erro que a maioria (‘a tecnologia é neu-
tra, tem bons e maus usos’ diz o Japonês iludido enquan-
to leva com a bomba atómica). Até ao século XVII, o ho-
mem comum (incluindo o camponês) tinha muito mais
autonomia e poder económico (já para não falar de tem-
po livre) do que o trabalhador fabril ou de escritório.
Apesar das diferenças de classe, quer na agricultura quer
nos ofícios, o homem comum não estava à mercê das
flutuações do mercado ou dos investimentos de capital.
Ele estava apenas à mercê da natureza, tal como o resto
da sociedade, incluindo o Rei. Embora os inícios do sis-
tema mercantil capitalista estejam na ‘renascença’, foi o
sistema industrial que criou a concentração bruta da ri-

323
queza, a rápida deterioração da independência económi-
ca do homem comum e os exércitos em massa de trabal-
hadores, incluindo mulheres e crianças, cuja única opção
de sobrevivência era trabalhar nas fábricas, e que opção
horrível e empobrecida era. Foi também o industrialismo
que criou efectivamente um mercado internacional to-
talmente interdependente, e subjugou todos os povos à
especulação monetária. Enquanto o trabalhador de escri-
tório moderno no mundo “desenvolvido” não sofre os
efeitos fisicamente destrutivos das fábricas do século XIX,
ele está sob uma série de outros efeitos físicos e psicoló-
gicos. A única solução para a queixa comunista de explo-
ração económica é rejeitar o sistema industrial, sob o qual
esta exploração é inevitável, independentemente da ges-
tão – como a União Soviética ou a China Maoista atestam.

A queixa conservadora de uma cultura degenerada, um


debate público empobrecido e a simples decadência da
decência, também é um produto inevitável do industria-
lismo capitalista. Embora possa ser resolvido com uma
tremenda arregimentação e ditadura, como por exemplo
na Alemanha de Hitler ou na Rússia de Estaline, é duvi-
doso que os conservadores apreciassem tais medidas, a
fim de manterem o que consideram ser naturalmente
bom. A resposta é, evidentemente, que o que é natural-
mente bom só pode florescer em situações naturais – e a
sociedade industrial é tudo menos natural, é a própria
rejeição de tudo o que é natural. A decência pública, o

324
debate educado, uma cultura saudável não pode ser
mantida, ou originada, num sistema industrial liberal. As
externalidades negativas das ideias e imagens perturba-
doras têm uma capacidade exponencial de propagação e
crescimento, deixando assim ao conservador a escolha
entre a censura ou a aceitação dos efeitos degenerativos
destas ideias ou imagens. Por outro lado, a natureza mer-
cantilista do capitalismo liberal tem uma tendência natu-
ral para a vulgaridade e para a homogeneização da cultu-
ra para o menor denominador comum – a sensualidade
vende, e se vende, será vendida. Assim, as operações na-
turais do mercado, e o poder expansivo da produção in-
dustrial, provocam necessariamente uma decadência na
moral pública, decência e debate.

A destruição ambiental é a preocupação mais fácil de ex-


plicar e compreender à luz da civilização industrial. To-
das as sociedades anteriores à nossa, e especialmente
aquelas centradas nas cidades e acima de um certo nível
civilizacional, tiveram de lidar, nunca satisfatoriamente,
com o seu lugar na natureza, como a natureza deve ser
utilizada para a sobrevivência e conforto humanos e até
que ponto pode ser manipulada ou destruída em nosso
benefício. Antes do industrialismo, porém, os homens
não podiam escapar à natureza ou controlá-la completa-
mente – estavam sempre, de alguma forma, em dívida
para com ela e à mercê dos seus poderes. A queda de to-
das as civilizações tem, como um factor perene, a des-

325
truição da natureza que sustenta a vida. Mas as civili-
zações pré-industriais tinham muito menos oportunidade
para escapar, e durante tanto tempo, às consequências
naturais da sua exploração. O motor a vapor libertou pe-
la primeira vez a humanidade desta dinâmica disciplina-
dora natural ao fornecer uma fonte de poder indepen-
dente e impermeável à estação do ano, ao clima e à geo-
grafia. O que se seguiu à racionalização e aplicação da
máquina a vapor (não realmente da sua invenção em si
mesma, já que isto se deu no Egipto Romano no século I
depois de Cristo) foi uma capacidade cada vez maior de
subjugar e explorar processos naturais, invadindo cada
vez mais a natureza selvagem e permitindo que quase
nenhuma parte dela permanecesse selvagem, mas sim
trabalhar para benefício imediato do homem, e para o
lucro imediato, sem quaisquer preocupações de conser-
vação e sem as pressões naturais a que a ausência dessas
preocupações levaria. Para usar a expressão angla, o sis-
tema industrial permitiu e permite chutar a lata ao longo
da rua. Como a nível individual é possível, por causa da
medicina moderna, sobreviver muito mais tempo do que
seria natural a alguém que se auto-destrua, a sociedade
industrial pode sobreviver muito mais tempo às conse-
quências da sua destruição da natureza. A história da
sociedade industrial é, em grande medida, uma história
de destruição ambiental sem as consequências que, em
tempos pré-industriais, equilibravam essa destruição,
sem a disciplina que essas consequências trazem, não
deixando nenhum lugar intocado, nenhuma margem por

326
conquistar, destruindo para sempre a natureza selvagem
tal como era entendida por todos os nossos antepassados
antes de o malabarismo industrial a destruir para a efi-
ciência e para o lucro. E, note-se, esta destruição na Eu-
ropa é praticamente total (não admira que a Europa seja
vista como ‘aborrecida’ de um ponto de vista de beleza
natural, em contraste com outras partes do mundo onde
a natureza selvagem ainda existe), mas a destruição pelo
mundo fora continua – e só parará quando o sistema co-
lapsar ou quando não houver mais nada para destruir e o
mundo todo for um parque de estacionamento. A preo-
cupação com a natureza selvagem, com a sustentabilida-
de das actividades humanas em termos naturais, com a
proporção correcta do uso humano da natureza, não são
causas inerentemente esquerdistas – e é de uma tristeza
enorme que a direita as tenha abandonado. O Cristão em
particular deve lembrar-se que a natureza, tal como nós,
é criação de Deus, enquanto que as obras das nossas
mãos não são, e que foi-nos ordenado que sejamos cui-
dadores e não exploradores. E enquanto a nível indivi-
dual podemos fazer esforços para reduzir a nossa parti-
cipação na exploração, quer beneficiemos dela directa ou
indirectamente, também não devemos ser cegos ao carác-
ter destrutivo do próprio sistema, tentar convencer os
outros da sua iniquidade e rezar pelo seu desaparecimen-
to.

327
Da mesma forma que a sociedade industrial destrói a
biodiversidade e os ecossistemas não humanos, também
destrói a biodiversidade e os ecossistemas humanos. Em-
bora as migrações de povos, e por vezes povos muito
díspares, tenham ocorrido ao longo de toda a história, o
seu alcance, dimensão e velocidade não foram nada em
comparação com as migrações modernas, mesmo se ex-
cluirmos o tipo de migração intermédia da era colonial.
As migrações de massa do mundo pós-moderno são um
fenómeno único e particular. A sociedade industrial, com
o seu foco único na eficiência, faz uso dos seres humanos
como qualquer outro recurso e, assim, deslocará popu-
lações para realizar uma miríade de objectivos, e devido
às suas capacidades técnicas, pode permitir a migração
humana sem quaisquer barreiras naturais. Um bom exe-
mplo disto é a importação de Africanos para a Escandi-
návia, que depois necessitam de suplementos de vitami-
na D para sobreviver à baixa quantidade de luz solar
numa latitude tão elevada à qual não estão adaptados. Os
objectivos não são apenas económicos, mas também mili-
tares, culturais e sociais. A sociedade industrial de uma
inclinação liberal – que é o seu viés natural – beneficiará
se as populações e culturas homogéneas forem desfeitas,
se as alianças etno-religiosas forem destruídas e substi-
tuídas por uma cultura mercantil comum. Mais uma vez,
se se quiser manter o sistema industrial e evitar a perda
da pátria e a migração em massa, é necessário um contro-
lo ditatorial sobre os meios industriais e uma perda de
produtividade e de competitividade, permitindo assim

328
que o resto do mundo industrial liberal acabe por con-
quistar os países cuja indústria foi regimentada para fins
fora da própria eficiência – tal como as ditaduras de
Hitler e Estaline foram conquistadas pelo mundo liberal.

Esta linha de raciocínio também nos ajuda a ver como o


anseio libertário pela liberdade é incompatível com o sis-
tema industrial. Devido ao poder expansivo das tecnolo-
gias e técnicas modernas, a liberdade dentro deste siste-
ma significa caos que, por sua vez, destruirá a liberdade.
A fim de evitar o resultado caótico de todas as técnicas
interligadas, têm de ser criadas burocracias para regular
todos os aspectos da vida, uma vez que todos os aspectos
da vida de uma pessoa estão agora ligados ao sistema, e
cada participante individual tem ao seu alcance uma vas-
ta quantidade de poder que, se não for regulado, pode
criar enormes quantidades de sofrimento para os outros,
e, em última análise, infringir as suas próprias liberda-
des, e isto sem qualquer má intenção. As leis de trânsito
são um bom exemplo. A primeira instância de regula-
mentação de trânsito, embora não fosse para automóveis,
foi introduzida durante os primeiros dias do industria-
lismo e para servir a produção industrial, dado o aglome-
rado de carruagens com matérias primas e produtos aca-
bados. Para o trânsito comum, no entanto, as limitações
naturais dos cavalos e das carruagens garantiam a sua
própria regulamentação, sem necessidade de invadir a
liberdade dos seus utilizadores – não havia necessidade

329
de regular o seu movimento. O trânsito automóvel, no
entanto, ou é regulamentado ou resulta num cenário caó-
tico e destrutivo – não só pelo seu movimento, mas pela
sua poluição do ar e sonora. Esta mesma dinâmica pode e
aplica-se a todas as áreas da vida, ligada a todas as dife-
rentes tecnologias, tal como acontece no mundo mo-
derno. Pode ser resumida da seguinte forma: quanto
mais complexo for o nexo económico e tecnológico, quan-
to mais dependência houver de grandes sistemas de so-
brevivência, menos liberdade cada indivíduo tem no seu
interior, menos autonomia tem para decidir o que fazer
com a sua propriedade – ou, caso a liberdade e a auto-
nomia lhe seja permitida, uma enorme quantidade de
externalidades negativas as seguem, prejudicando a vida
e a liberdade de outrem.

A civilização ocidental tem uma má reputação no mundo


pós-moderno, em grande parte devido aos ideólogos de
esquerda que a culpam por todos os males do mundo
como únicos perpetradores. Embora a análise seja, se não
incorrecta, muito incompleta (e sem falar nas motivações
duvidosas dos seus defensores) existe nela um grão de
verdade significativo. A Civilização Ocidental não foi a
primeira a explorar, expandir, escravizar, destruir e colo-
nizar outros povos. No caso da escravatura, por exemplo,
o Ocidente liderou a sua abolição – pelo menos de um
tipo tradicional. Porque aquilo que a substituiu foi uma
forma de escravatura muito mais dura, muito maior,

330
muito mais degradante e perigosa. Em primeiro lugar, é
de notar que as condições de um operário fabril no início
da era industrial eram de longe mais degradantes, des-
trutivas, insalubres e antinaturais do que a maioria dos
escravos ao longo da história tinham vivido, incluindo os
Africanos escravizados nas plantações do continente
Americano. Uma análise da ingestão calórica e da saúde
geral dos pobres industriais e dos escravos americanos e
revelou que, em comparação com os pobres industriais,
os escravos tinham uma vida significativamente melhor –
mesmo no domínio da liberdade e autonomia, os pobres
industriais eram pelo menos tão vinculados e sem opções
como o escravo oficial. Mas a escravatura do sistema
criado pelo mundo ocidental vai muito mais além desta
mera comparação, e de facto faz parte da sua concepção
escravizar a todos em todos os aspectos – e a verdadeira
razão para abolir a escravatura ‘tradicional’ não foram
sensibilidades morais (pois essas já eram argumentadas
há vários séculos), mas sim a observação de que a escra-
vatura ‘tradicional’ era menos eficiente que esta nova
forma de escravatura industrial. Hoje já não é um grupo
de pessoas a escravizar outro, ou a cultura de um grupo a
dominar a de outro: é a própria sociedade técnica e as
suas estruturas, que se forçam sobre todos os povos, es-
cravizando-os a todos na sua maquinaria, não só no cor-
po, mas também na mente e no espírito, criando uma cul-
tura que separa cada pessoa individualmente e cada gru-
po colectivamente de qualquer forma natural de comuni-
dade e identidade, conforme necessário para a sua

331
própria continuação e avanço. Os Europeus podem ter
sido os iniciadores deste processo, mas foram também as
suas primeiras vítimas (os pobres industriais), e conti-
nuaram a sê-lo de outras formas, tal como o resto da hu-
manidade. Assim, a Esquerda tem a intuição certa quan-
do sente repulsa perante a visão da modernidade, peran-
te a sua sistematização prepotente e a sua exploração e
regimentação de povos “subdesenvolvidos”. Apenas a
percebem erroneamente em termos pré-industriais, como
um grupo definido explorando e destruindo outro, en-
quanto que a exploração actual não é particularmente
sobre uma ou outra etnia, ou sobre um ou outro grupo
económico (embora também o seja), mas sobre todo o
edifício do industrialismo consumindo a humanidade no
seu avanço.

Enquanto que a direita está absolutamente certa ao iden-


tificar a natureza caótica da modernidade, a esquerda
está certa ao identificar o outro extremo: o controlo ex-
cessivo. Pois a sociedade industrial extingue o meio, trata
apenas de dois extremos: o controlo extremo e o caos ex-
tremo. A intrusão em cada vida e cada interesse, o ma-
peamento de cada centímetro de espaço, o cálculo de ca-
da cenário, a sistematização de qualquer tarefa, a inte-
gração tecnológica em cada esfera, e assim por diante.
Mas também a dispersão dos povos, o caos sexual, a mis-
tura ou invenção de identidades, a vulgaridade da cultu-
ra, a falta de regras e hierarquias, a redefinição da comu-

332
nidade ao interesse comum mundano (bandas, séries, etc)
e um tipo específico de violência observada particular-
mente nos centros urbanos (que são a vanguarda do sis-
tema).

A libertação sexual cai no lado do caos, servindo ao


mesmo tempo uma função para o lado do controlo. Os
Tradicionalistas têm razão ao salientarem a natureza des-
trutiva do caos sexual. No entanto, estão desesperada-
mente concentrados nas motivações das pessoas que
promovem esta cultura degenerada, ao mesmo tempo
que ignoram quase completamente o papel determinante
da técnica. A promiscuidade, a contracepção, a pornogra-
fia, o aborto, a homossexualidade e a confusão sexual
sempre existiram. E tais actos foram combatidos e conde-
nados ao longo dos séculos, com métodos diferentes e
resultados diferentes, mas nunca foram batalhas perdidas
desde o início. Mas ao fim de uma década após a con-
clusão da imprensa de Gutenberg, a pornografia e todo o
tipo de blasfémia era publicada e divulgada. Era o início
de uma batalha perdida. Será que a máquina criou os
desejos das pessoas por pornografia e blasfémia? Ou será
que simplesmente ofereceu um veículo mais poderoso,
capaz de atingir mais pessoas e, portanto, de causar mais
estragos?

A história não mudou na batalha perdida sobre a morali-


dade das pessoas desde então, e com meios cada vez

333
mais tecnicamente poderosos. A tendência natural desses
meios não é a moralidade, nem sequer a imoralidade,
mas sim a amoralidade. A técnica não tenta quebrar as
normas morais, mas acontece que quebrá-las é benéfico
para o seu funcionamento eficiente, e como tal é isso que
sucede. E a única forma de, pelo menos temporariamen-
te, controlar essa natureza caótica, é implementar uma
arregimentação extrema de todos os aspectos da comuni-
cação e da vida comunitária. Mas mesmo isso é uma ba-
talha perdida no contexto da sociedade industrial: quanto
mais fácil e expansiva for a tecnologia de comunicação,
mais dura e menos capaz será a censura. E assim, o tradi-
cionalista moral está numa batalha perdida contra a na-
tureza dos próprios meios técnicos. Há uma razão pela
qual todas as sociedades tradicionais pré-industriais têm
normas morais sexuais muito semelhantes – há alguns
pormenores, e alguns exemplos individuais de contra-
dição e mesmo de inversão, mas poucos e de longe. E
sabemos que são sempre minoritários pois caso contrário
a sociedade teria colapsado – sem medicina e tecnologia
moderna, as consequências naturais desses comporta-
mentos desviantes mantêm-nos em cheque. A sociedade
industrial não elimina as normas morais, apenas torna
inútil a sua razão prática, a sua necessidade para a sobre-
vivência. Numa sociedade em que apenas o quantificável
é valorizado, em que considerações não técnicas são ig-
noradas e em que o homem é libertado das pressões na-
turais, com múltiplos suplementos para evitar conse-
quências para os seus actos, a moralidade tradicional

334
deixa de ter qualquer coisa a oferecer. Não tem uma apli-
cação prática na sociedade industrial, na qual apenas as
aplicações práticas são motivo de preocupação.

Uma frase que se tornou muito popular nos últimos anos


é que a política está sempre a jusante da cultura. É muito
mais importante entender, no entanto, que tanto a políti-
ca como a cultura estão a jusante do nível de desenvol-
vimento técnico de cada sociedade.

335
A Abordagem Conspiratória

Muitos críticos da modernidade gostam de tomar uma


abordagem conspiratória e usar o seu tempo e intelecto
para descobrir e apontar quem são as personagens domi-
nantes e quais são as suas intenções. Eu gostaria de ex-
plorar o porquê desta abordagem ser não só inadequada,
mas em última instância, perniciosa.

O termo “teoria da conspiração” é usado pelo mainstre-


am como forma de denegrir ou desacreditar uma certa
pessoa ou narrativa, e não é de todo essa a forma como
estou a usar o termo. Não tenho dúvidas de que algumas
teorias da conspiração são parcialmente verdadeiras, e
outras são mesmo completamente verdadeiras. Não são
tanto teorias, mas sim factos. Mas mesmo sendo verda-
deiras as conspirações, focarmo-nos nelas como críticas
daquilo que vemos de errado na sociedade é inadequado
e pernicioso porque, por necessidade, leva-nos a concen-
tramo-nos em personagens e intenções, e não em causas e
efeitos. E isto é particularmente verdade na questão tec-
nológica, e leva a uma análise altamente superficial e er-
rónea sobre o papel e o impacto desta questão e das suas
origens no nosso tempo.

336
Tal como podemos encontrar inúmeras declarações sobre
os objectivos da classe dominante nos nossos dias, po-
demos encontrar vários exemplos de industrialistas do
século XVII e XVIII a declararem claramente as suas in-
tenções maliciosas na implementação do sistema indus-
trial. Mas o argumento contra esse sistema – que é, na
verdade, a origem do que existe hoje – não pode nem
deve fundar-se nessas intenções, nem mesmo parcial-
mente. A abordagem conspiratória acaba por não ser de
todo uma crítica, já que pelo seu próprio foco em perso-
nagens e intenções leva à conclusão, explícita ou implíci-
ta, que com diferentes personagens e melhores intenções
o mesmo conjunto de circunstâncias e pressões conduzi-
ria a diferentes, e bons, resultados.

Embora as intenções sejam certamente importantes para


o julgamento de Deus, elas são irrelevantes para avaliar
os resultados terrestres das acções humanas. Conhecê-
los-emos “pelos seus frutos”, não pelas suas intenções
declaradas, diz-nos Cristo.

Uma observação importante a fazer, sobretudo para os


Católicos que defendem a Igreja como uma fonte de pro-
gresso tecnológico, é que as instituições Cristãs que pro-
duziram avanços técnicos na Idade Média, alguns deles
bastante complexos e especializados, não tiveram esta
atitude de neutralidade em relação ao desenvolvimento
tecnológico que os seus modernos apologistas têm. Todas

337
as invenções que produziram foram sujeitas a considera-
ções éticas e teológicas e só quando consideradas benéfi-
cas a partir destas perspectivas, e não a partir da perspec-
tiva da técnica em si, é que prosseguiram com a realiza-
ção das suas invenções. Em alguns casos a sua produção
era permitida, mas não a sua difusão fora dos mosteiros,
devido às mesmas preocupações. No entanto, e em últi-
ma análise, as suas boas intenções não impediram que
algumas das suas invenções causassem danos irrepará-
veis na sociedade e mudassem a perspectiva e o foco do
homem de Deus e da ordem natural para o mundano e o
artificial, do eterno para o temporal, e do ético e teológico
para o puramente técnico.

O exemplo mais óbvio deste efeito é a invenção do reló-


gio mecânico. Quando os monges Beneditinos o inventa-
ram para rezar com maior precisão ao longo do dia, ti-
nham uma intenção puramente pia, mas o resultado des-
ta invenção foi exactamente o oposto. O relógio mecânico
libertou os homens da ordem divina da natureza e subju-
gou-os a uma ordem mecânica, suprimindo o ritmo natu-
ral regulado pelo dia e a noite criadas por Deus para que
o homem trabalhasse e descansasse respectivamente, e
dando origem ao ritmo artificial que hoje nos rege a to-
dos, facilitando a produção racionalizada que se rege
somente pelo lucro imediato dos donos dos meios de
produção. E não só mudou as relações e vagares laborais,
mas ao fazê-lo mudou inevitavelmente a visão do ho-

338
mem sobre o próprio tempo e removeu o seu olhar da
eternidade para a existência mundana.

Dentro de um século o relógio tinha saído do mosteiro


para tornar possível as práticas de produção regular, ho-
ras de trabalho regulares e um produto homogeneizado
(e um povo homogeneizado). Esta mudança cumpriu um
papel extremamente importante na destruição da con-
cepção do sagrado. De um instrumento para a busca de
Deus o relógio foi muito rapidamente transformado num
instrumento para a busca de dinheiro. Esta grande inven-
ção realizada com a melhor das intenções acabou por
servir não a Deus, mas sim a Mamon.

Outro exemplo semelhante de como as intenções e os


efeitos são por vezes radicalmente díspares é a imprensa
móvel. Sendo Gutenberg um Católico devoto, não pre-
tendia certamente que a sua invenção fosse o gatilho e o
principal veículo para a Reforma, o Iluminismo e a revo-
lução científica que deu uma série de golpes graves à
Igreja Romana e à sua influência na sociedade, para não
falar das mudanças na concepção humana do universo,
cujos resultados vemos ainda hoje desenrolar-se com
consequências desastrosas. Mas as suas intenções não
conseguiram travar as consequências da sua invenção.

Vários outros exemplos poderiam ser dados da mesma


dinâmica. E, claro, múltiplos exemplos de más intenções

339
que conduzem a resultados igualmente maus, como os
proponentes e financiadores da revolução industrial. Mas
mesmo as suas más intenções foram ajudadas e permiti-
das pelas invenções de pessoas bem-intencionadas que
vieram antes deles, sem que essas pessoas tivessem qual-
quer poder contra as implicações do que criaram. Portan-
to, não nos ajuda muito, ou de todo, investigar as moti-
vações e personagens no que diz respeito ao desenvolvi-
mento tecnológico e às suas implicações morais, sociais,
económicas e políticas. Tal como não nos diz nada sobre
a engenharia social que é um tema tão falado nos nossos
dias. A verdade que passa por entre os pingos da chuva é
que essa engenharia é o produto de meios técnicos cujas
implicações são largamente independentes das intenções
e personagens que estão por detrás delas.

A abordagem conspiratória pode satisfazer a nossa curio-


sidade, mas não nos diz nada acerca da natureza da rea-
lidade em que vivemos ou dos seus efeitos. Além disso,
só Deus conhece as verdadeiras intenções no coração dos
homens, por isso qualquer investigação sobre motivos
deve ser sempre temperada com um cepticismo saudável
em relação à nossa capacidade de os conhecer e transmi-
tir, bem como à dos próprios os conhecerem e transmiti-
rem.

Tal como os Comunistas que dizem que o ‘verdadeiro


comunismo’ nunca foi tentado, os conspiracionistas tiram

340
no fundo a mesma conclusão, mas em relação a outras
coisas, como por exemplo o sistema tecnológico. Pois a
abordagem conspiratória leva-os a concluir que o pro-
blema é a má utilização ou má gestão e que o sistema
tecnológico não constitui um problema em si mesmo. O
que por sua vez leva também a vias de pensamento mui-
to perigosas, sobretudo para os Cristãos. Se se considerar
realmente que o desenvolvimento tecnológico é neutro, e
que apresenta um problema de má utilização ou gestão e
não em si mesmo, para permanecer consistente, é preciso
aceitar que existe algo como um uso apropriado de con-
traceptivos, fertilização in-vitro ou a bomba atómica. E
sem dúvida que algumas seitas ‘cristãs’ modernas acei-
tam e apoiam parte ou a totalidade do edifício moderno –
mas a ênfase dessas seitas está na modernidade, não em
Cristo.

Por último, a abordagem conspiratória tem necessaria-


mente de rejeitar o que as Escrituras nos dizem sobre o
tema, desde o primeiro até ao último livro. Nas Escrituras
encontramos a perspectiva de Deus sobre a técnica e,
mais importante para este ponto em particular, encon-
tramos também as intenções (que só Deus conhece) das
pessoas que originaram o desenvolvimento tecnológico,
que é explicitamente declarado nas Escrituras como rebe-
lião contra Deus – seja na queda de Adão e Eva em busca
de conhecimento, em todos os construtores de cidades a
começar por Caim, todas as palavras de Deus contra as

341
cidades e os seus representantes no Antigo Testamento, o
tratamento de Cristo das cidades no Novo e a rejeição de
Cristo pelos fariseus – uma vez que o legalismo é apenas
mais uma manifestação do culto da técnica.

Tudo isto, a meu ver, é ignorado mas não desconhecido,


e assim continua a ênfase na investigação das intenções e
personagens, e pouca ou nenhuma na análise das estru-
turas do nosso mundo e nas suas implicações. Porque
reconhecê-lo leva a conclusões extremamente desconfor-
táveis, que exigem introspecção em relação às nossas
próprias acções, e em última instância a mudanças no
modo de vida da parte de quem as reconhece.

Mas se as nossas investigações não servem para mudar a


nossa conduta, então não servem para nada a não ser pa-
ra satisfazer a nossa curiosidade mórbida, um propósito
meramente masturbatório.

342
A Cidade nas Escrituras

No nosso mundo desencantado e materialista, a Cidade é


apenas uma povoação que atingiu um determinado nú-
mero de ocupantes, sobretudo em relação ao terreno
ocupado, e assim distingue-se de uma vila ou de uma
aldeia. Escapa-nos qualquer sentido maior da palavra,
qualquer significado transcendente do fenómeno. Os di-
cionários e enciclopédias também não conseguem ofere-
cer uma definição particularmente precisa além da já
mencionada densidade populacional. Tal como muitos
outros conceitos na modernidade e pós-modernidade, a
Cidade não só perdeu qualquer significado e simbolismo
transcendente, como adquiriu um carácter difuso e con-
fuso. Se falarmos em Lisboa, falamos apenas do centro
administrativo? Aquilo que se entende por Lisboa (ou
qualquer outra cidade) depende muito do contexto – e
assim, uma pessoa que viva ou trabalhe nos arredores da
Lisboa administrativa, também é um citadino, também
faz parte de uma Lisboa quase mítica. Isto porque a Ci-
dade tem e sempre teve um carácter expansionista, não
só material, mas espiritual. As povoações que circundam
a cidade vão sendo engolidas, por assim dizer, pelo po-
der e importância da cidade mais próxima. Alguém que
viva na Amadora, ou em Oeiras, ou em Sintra – e cada
vez mais a influência vai alastrando – vive sob a influên-
cia, na órbita, dessa criatura chamada Lisboa. Esses con-

343
celhos, ainda há cem anos largamente campestres, são
agora dormitórios, centros industriais e comerciais, par-
ques de estacionamento. Lugares onde as pessoas se
amontoam umas por cima das outras, e cuja vida é quase
completamente dependente do centro, da Lisboa – mate-
rial, cultural e espiritualmente. Como um cancro que vai
infectando mais e mais partes do corpo, a Cidade vai
conquistando mais e mais território e colocando-o ao seu
serviço. E tal como nivela montanhas e abate florestas no
seu caminho expansionista, fá-lo igualmente com as al-
mas humanas que encontra no seu caminho. Através de
ferramentas cada vez mais sofisticadas, de comunicação e
transporte, a Cidade consegue inclusive infectar a mente
e a alma dos que estão longe dela, criando urbanos de
espírito, mesmo sem o serem fisicamente. Afinal, quem
hoje em dia consegue fugir à cultura, que é sempre criada
na Cidade?

Historicamente, a Cidade é o lugar e a origem de todas as


grandes obras humanas. Da Arte à Tecnologia, do Pen-
samento à Arquitectura. E, claro, é o lugar por excelência
do poder político. A Cidade é a Civilização em si mesma
– ou não viessem ambas da mesma raiz, Civitas. Fora
dela estão os bárbaros, os primitivos, os camponeses, os
ignorantes – e os pagãos. Originalmente, na língua latina,
a palavra ‘pagão’ não tinha um carácter religioso e signi-
ficava meramente camponês, habitante do campo, o que
vivia fora das cidades – a sua adopção para designar o

344
‘outro’ religioso demonstra uma certa atitude da parte da
Igreja Romana, algo que será interessante manter em
mente para o resto deste texto.

Dado este carácter mítico da Cidade, não é surpreendente


que a Cidade nas Escrituras tenha um significado e um
simbolismo definido, e a sua existência esteja para além
do material. Na Cidade Bíblica encontra-se o mito do
progresso e a sua inerente rejeição de Deus. Segundo as
Escrituras, este espírito demoníaco é parte da ideia e do
significado da Cidade desde a sua primeira fundação. É
útil investigarmos a revelação Divina a este respeito, e
sabermos o que defendemos e porquê, reavaliarmos
aquilo que valorizamos e saber se é aquilo que Deus va-
loriza, sobretudo quando tanto se fala do fim da civili-
zação ou da necessidade de salvar a mesma, é essencial
saber o que está a cair e o que se pretende salvar. E ainda
mais importante, pois como já se disse anteriormente,
conhecimento que não nos leve a agir é fútil, entender a
perspectiva de Deus é essencial para que possamos saber
como agir nas presentes circunstâncias. A meu ver a úni-
ca acção sã é deixar a Cidade.

O que se segue é uma exegese amadora, não particular-


mente original ou intensiva, de textos Bíblicos. O leitor
terá de julgar por si mesmo a veracidade e exactidão da
análise e das conclusões tiradas.

345
A primeira cidade é construída por Caim em oposição
directa a Deus – e esta estabelece o precedente para todas
as cidades (na Escritura, e se formos crentes, fora dela
também). Depois de matar o seu irmão, Caim recebe uma
maldição, mas também lhe é oferecida protecção por
Deus. Mas num momento decisivo, ele rejeita a protecção
divina, e a sua rejeição toma a forma da construção de
uma cidade. A cidade que ele constrói chama-se Enoque
– o mesmo nome do seu filho primogénito – nome que
significa “inauguração”. Isto é significativo por duas
razões: primeiro, Caim considera a cidade como o seu
legado, comparável ao seu filho primogénito, e note-se
que a importância do filho primogénito era incompara-
velmente maior do que é presentemente; e segundo, o
que Caim inaugura é um mundo à parte de Deus, uma
protecção feita por ele próprio para rivalizar com a pro-
tecção de Deus, um lugar à parte que pode sobreviver
por si só sem a necessidade de Deus – a inauguração em
oposição à Criação, a oposição artificial ao natural.

A sua fundação da cidade leva à expansão: numerosas


outras cidades são construídas pelos seus descendentes,
todas centradas no mito do progresso, na invenção e no
desenvolvimento, para se afastarem de Deus – para esca-
par à maldição de Deus, mas mais importante ainda, para
escapar à misericórdia e protecção Divina. Eles podem
proteger-se a si próprios. Esta espiral é ao mesmo tempo
ascendente e descendente, muito semelhante à nossa:
ascendente para mais e mais invenção, maravilha, capa-

346
cidade técnica e força; e descendente em termos de
iniquidade, imoralidade, pecado. E, em particular, vio-
lência. Devido a esta espiral descontrolada de iniquidade,
Deus envia o dilúvio, salvando Noé e a sua família.

A próxima paragem lógica na nossa investigação é natu-


ralmente Ninrode (nome que significa ‘rebelião’) e a To-
rre de Babel, mas antes disso há algo bastante significati-
vo que se enquadra, uma vez mais, no padrão estabeleci-
do por Caim. Noé tem três filhos, Sem, Cam e Jafé, e há
um episódio em que ele se embebeda e Cam o vê bêbado
e nu, e em vez de o ajudar, vai e conta aos seus irmãos.
Os seus irmãos vêm então com um manto, andando para
trás para não verem o seu pai nu, e cobrem-no. Depois de
dormir, Noé amaldiçoa então a descendência de Cam por
sua causa, por não prestar o devido respeito ao seu pai, e
por expor a sua nudez, em vez de a cobrir. E a maldição é
que a descendência de Noé será escrava da descendência
dos outros irmãos.

Isto é interessante porque Ninrode vem da descendência


de Cam, e está assim sob a maldição. Mas é-nos dito que
Ninrode «começou a ser poderoso na terra» e é numa
província dentro do seu reino (Sinar) que decidem cons-
truir a Torre de Babel. Não era suposto, sendo descen-
dente de Cam, ser escravo? Não se pode ser escravo e
poderoso ao mesmo tempo. Aqui vemos de novo o pa-
drão iniciado por Caim, de escapar à maldição através da

347
construção de cidades, e uma afronta directa ao decreto
paternal.

Decidem então construir a Torre, mas como? «”Vinde,


façamos tijolos, e cozamo-los com fogo”, e eles tinham tijolos
em vez de pedras, e betume em vez de argamassa“». Note-se o
contraste dado: tijolos em vez de pedras, e betume em
vez de argamassa. Em vez do natural, o fabricado, em
vez da singularidade dada por Deus (cada pedra é dife-
rente), a uniformidade feita pelo homem (cada tijolo é
como todos os outros tijolos). Não só o seu próprio edifí-
cio é uma afronta a Deus, mas os próprios blocos de cons-
trução indicam a mentalidade dos construtores. E é um
facto que tal edifício, tal feito, não pode ser alcançado
com as pedras irregulares e a argamassa comparativa-
mente mais fraca – precisa da eficiência da tecnologia, do
fácil e igualmente reprodutível.

Todos se concentram na própria torre, mas a torre é ape-


nas um pormenor, um corolário: «”Vinde, vamos construir
uma cidade, e uma torre cujo topo esteja nos céus; façamos um
nome para nós próprios, para que não nos dispersemos pela face
de toda a terra“». Primeiro vem a cidade, o meio através
do qual eles podem então construir a torre e fazer um
nome para si próprios. E o seu objectivo declarado é evi-
tar serem “dispersos”, ou seja, rejeitam o campo, querem
a concentração, o mundo autónomo da cidade, onde po-
dem confiar nos seus próprios esforços, sem precisar de
Deus.

348
O padrão continua na história de Sodoma e Gomorra: a
cidade como um lugar de iniquidade, tão desprovido de
caridade e bondade que o único destino aceitável é a des-
truição. E Ló, a quem é permitido escapar, não era da
cidade, é um estrangeiro, um recém-chegado – e é consi-
derado como tal pelos habitantes da cidade («como se
atreve este estrangeiro a julgar as nossas acções?» – e nos nos-
sos tempos não ouvimos o mesmo coro sob uma forma
diferente: como é que o Cristão se atreve a julgar o cos-
mopolita?). Ló acaba por oferecer as suas próprias filhas
virgens aos sodomitas, para que não corrompessem os
anjos (o primeiro de uma série de más decisões), mas
mesmo assim, ao contrário dos restantes habitantes, ele
não é irreversivelmente corrompido pela cidade. Mas ele
deve fugir, deve deixar a cidade à sua destruição, e nunca
olhar para trás. Quando Ló diz à família (aos genros) que
Deus destruirá a cidade pela sua iniquidade irrepreensí-
vel e irredimível, a família pensa que ele está a gozar.
Quem já teve uma conversa parecida com a sua própria
família, reconhecerá a reacção.

Os anjos forçam então a sua mão, deixando os genros


para trás, e dizendo «“Salva a tua vida”. Não olhes para
trás. Nem deves permanecer em toda a região circundan-
te. Mas salva-te na montanha, para que não pereças tam-
bém”». No entanto, como muitos de nós, Ló ainda se aga-
rra à cidade. Ele não quer a montanha, tem medo, apesar
da protecção declarada de Deus: «”Não posso ser salvo na

349
montanha, talvez algum infortúnio se apodere de mim e eu
morra. Há uma certa cidade próxima, para a qual posso fugir; é
uma cidade pequena, e serei salvo nela. Não será uma cidade
modesta, e a minha alma não viverá?”». Não conseguimos
ouvir os pedidos semelhantes nos nossos próprios tem-
pos? “Vamos desligar-nos do sistema… mas só um boca-
dinho”.

Deus concede-lhe este desejo, mas apenas como solução


temporária. A sua libertação do pecado, o seu desapego
da cidade, só se pode realizar na montanha. E isto é im-
portante de compreender: o nosso desapego da cidade
tem de ser não apenas geográfico, mas espiritual, e no
nosso tempo a cidade, a sua existência espiritual, esten-
deu-se muito para além das fronteiras geográficas. A ci-
dade infecta até os lugares mais remotos: através da cul-
tura que é proporcionada instantaneamente através da
Internet, das cadeias de supermercados e das marcas
multinacionais, das autoestradas e dos comboios. A cida-
de estende os seus tentáculos, e a nossa remoção, embora
possa ter passos intermédios, tem de se esforçar pelo
desprendimento total, para subir a montanha e quebrar o
elo de ligação com o sistema, tanto espiritual como fisi-
camente – desprendimento dos limites da cidade, mas
também dos tentáculos da cidade, das ‘regiões circun-
dantes’ de Sodoma e Gomorra. A esposa de Ló é a repre-
sentação do que acontece se o nosso desapego não for
total, mesmo nas etapas intermédias, se nos tornarmos
confortáveis nessas etapas, como que olhando para trás

350
para a cidade com nostalgia, e assim nos tornássemos
uma pilha de sal. Mas também não devemos cometer o
erro contrário, de levar as coisas demasiado longe dema-
siado cedo, de pecar pelo lado do orgulho e pensar que
não fomos permanentemente afectados pela Cidade e
que podemos girar sem esforço 180 graus. Apesar de
Deus lhe garantir que a cidade mais pequena (Zoar) seria
segura por enquanto, Ló decide abandoná-la por medo (e
contra a garantia Divina) de que também ela seja des-
truída, e em vez disso vai imediatamente com as suas
duas filhas para uma caverna, impreparado. Neste caso, a
sua impreparação é, em particular, não encontrar novos
maridos para as filhas, e elas, invertendo o padrão dado
antes em que Ló as ofereceu para serem violadas pelos
sodomitas, agora acreditando erroneamente que são as
únicas pessoas que restam, embebedam-no e violam-no
para procriar, o que por sua vez resultará na fundação de
dois reinos vindos da descendência de cada uma das
filhas. Reinos, que, como sempre, são centrados em cida-
des.

Ao longo das Escrituras o padrão é sempre o mesmo,


como o é em toda a história humana. Moisés conduz os
Israelitas do Egipto avançado para o deserto. Todas as
cidades do Antigo Testamento ou são irredimíveis, cheias
de iniquidade desde o início, ou, apesar da sua iniquida-
de, recebem a graça de Deus – e depois esquecem-na, e
são aniquiladas e os Israelitas novamente dispersos: de
Caim à era dourada de Israel antes da vinda de Cristo, na

351
qual não havia mais Revelação ou Profecia, e que pode-
ríamos dizer que os tornou orgulhosos e os levou a rejei-
tar o Messias, há uma linha que liga todos estes eventos,
todas estas manifestações de rebelião contra Deus. E essa
linha é a Cidade.

O que é escrito, por exemplo, em Jeremias 19:4-15, apare-


ce repetidamente, em formas diferentes e com persona-
gens diferentes, mas o padrão é exactamente o mesmo. É
o mesmo quando Cristo fala contra as cidades, e é o
mesmo no nosso próprio tempo, quase palavra a palavra:
“Pois abandonaram-me, e tornaram este lugar estrangeiro, e
ofereceram libações nele a deuses estrangeiros, que nem eles,
nem os seus pais, nem os reis de Judá conheceram. E encheram
este lugar com o sangue dos inocentes. E construíram os luga-
res exaltados de Baal, para queimar os seus filhos com fogo co-
mo holocausto a Baal, algo que eu não instruí, nem entrou no
meu pensamento. (…)”Assim diz o Senhor dos Exércitos, o
Deus de Israel”: Eis que conduzirei sobre esta comunidade, e
sobre todas as suas cidades, todos os males que falei contra ela.
Pois endureceram os seus pescoços, para não darem ouvidos às
minhas palavras”».

Podemos não viver na Babilónia física, mas vivemos na


Babilónia espiritual, a derradeira cidade, aquilo que to-
das as cidades se esforçam por ser: forte, bela, orgulhosa
– mas também decadente, pecadora, violenta.

Todas as palavras de Deus para as cidades do Antigo

352
Testamento são extremamente duras. A cidade na Escri-
tura é o exemplo primordial da rebelião do homem – por
orgulho, claro – e também o lugar do avanço tecnológico,
tal como sempre foi e ainda é. A única forma de com-
preender as duras palavras de Deus contra as cidades
naqueles tempos antigos, onde as cidades ainda eram
uma mera extensão do campo, é que Deus está a avisar
não contra o que elas eram, porque eram apenas um
início, mas contra aquilo em que a cidade plenamente
desenvolvida se tornaria – aquilo que vemos agora. Mul-
tidões, ruído, poluição, distracção, degradação, imorali-
dade, alienação, violência. Deus estava a dar-nos uma
profecia sobre o produto final das nossas mãos: a metró-
pole, no seu culminar satânico.

E este julgamento não termina com a vinda de Cristo. Ele


continua a falar duramente, não das cidades, mas direc-
tamente às cidades, não às pessoas que nelas vivem, su-
blinhando assim o facto de que a Cidade tem um signifi-
cado e uma existência espiritual própria, como exemplo
supremo da separação do homem de Deus através dos
produtos das suas próprias mãos – o homem à sua
própria imagem, em vez do homem à imagem de Deus.

“Então Jesus começou a repreender as cidades em que a maioria


das Suas obras poderosas tinham sido feitas, porque elas não se
arrependeram: “Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Pois se as
obras poderosas que foram feitas em ti tivessem sido feitas em
Tiro e Sidon, já se teriam arrependido há muito tempo com

353
roupas de saco e cobrindo-se com cinzas. Mas digo-vos que será
mais tolerável para Tiro e Sidon no dia do juízo do que para
vós. E vós, Cafarnaum, que arrogas subir aos céus, sereis leva-
dos para o inferno; porque se as obras poderosas que foram fei-
tas em vós tivessem sido feitas em Sodoma, teria ela permaneci-
do até este dia. Mas eu digo-vos que será mais tolerável para a
terra de Sodoma no dia do juízo do que para vós. ”»

Parece claro nas palavras de Cristo que já no Seu tempo


houve uma intensificação da influência corruptora da
cidade, que esta já tinha evoluído para além do que era
no Antigo Testamento. Se Ele tivesse feito os milagres
nessas cidades mais antigas, elas teriam sido salvas. Mas
no tempo de Cristo a cidade tinha-se desenvolvido de-
masiado, nem mesmo os milagres de Deus funcionam
para persuadir os seus habitantes. E se isto se deu há
2000 anos atrás, quanto mais agora, quando temos co-
municação instantânea e vídeo de alta definição nos nos-
sos bolsos, explosões, máquinas poderosas, maravilhas
técnicas para todos os gostos e para todas as ocasiões?
Agora que a cidade contra a qual Deus falou está perto
de se realizar plenamente, tanto na sua grandeza como
na sua loucura, vemos que a única solução é seguir Cristo
para fora delas, para que possamos ouvir as Suas pala-
vras.

Pois as duras palavras de Cristo para a cidade só são pro-


feridas fora dela. Cristo fez as multidões segui-lo para
fora das cidades para oferecer os Seus ensinamentos –

354
porque dentro do mundo da técnica que a cidade repre-
senta, só as maravilhas, isto é, os milagres, podem rivali-
zar com as maravilhas técnicas. Assim, dentro da cidade,
Cristo faz todos os seus milagres. Não fala. Deus criou o
mundo através da Palavra, mas na cidade, criação do
homem para ser separado de Deus, a Palavra feita carne
não pode proferir quaisquer palavras, pois elas são inú-
teis. Apenas milagres – porque o homem foi sempre
mesmerizado pela magia, e no mundo de hoje é mesme-
rizado pela tecnologia, porque não sabe como ela funcio-
na, e como tal ela é, de certa forma, mágica. O homem
comum dos nossos dias olha para o smartphone da forma
como o homem antigo olhava para os feitiços. E, no en-
tanto, Cristo não tem sucesso contra a cidade nos seus
próprios termos, ele deve levar as pessoas para fora da
cidade para lhes poder falar. É notável que tantas pessoas
ainda pensem que podem ter sucesso onde Cristo falhou,
que pensem que possamos usar a Cidade e as suas estru-
turas para os propósitos de Deus, que podemos domar
este monstro. Não, a única opção apontada pelas Escritu-
ras é seguir Cristo para fora da Cidade.

É importante mencionar que o demónio tenta Cristo pre-


cisamente com as tentações do mundo moderno –o que
ele deve oferecer às pessoas para que elas O sigam: Con-
forto, Espectáculo e Poder. Mas Cristo rejeita a tentação –
ainda que (ou precisamente porque) ele sabe que terá
êxito através das maravilhas oferecidas pelo demónio.
Mas se Ele usasse estes meios para levar as pessoas até

355
Ele, elas não adorariam a Ele, mas às coisas em si – tal
como o “evangelho da prosperidade” faz no nosso tem-
po, mas também a adoração da ciência e da tecnologia, e
todos os benefícios terrenos que trazem, apesar do seu
custo espiritual. Não, Cristo deve sofrer e morrer, e ven-
cer o mundo através do sofrimento e da morte. Qualquer
outra coisa, o paraíso na terra, é obra de forças malignas.

E aqui devemos voltar a Caim, ao seu objectivo inicial na


construção da primeira cidade, de prover à sua própria
segurança. Deus plantou um Jardim, não construiu uma
cidade. A cidade é a resposta do homem ao jardim de
Deus. Cada religião, desde a mais primitiva até à mais
complexa, tem uma concepção desta origem e do regres-
so a esse paraíso original, ao jardim original, um regresso
à natureza pura. O Cristianismo, no entanto, não nos fala
de um regresso. Chegamos ao Apocalipse e vemos como
Deus através do Seu amor irá rever os Seus próprios pla-
nos para nós, e incorporar a nossa criação da cidade no
Seu reino – não será apenas um Jardim como era no
início, Deus tomará para si a nossa criação da cidade,
transformando a Babilónia em Jerusalém.

Mas só depois da sua destruição terrena, e apenas nos


Seus termos. E essa é a chave. Qualquer tentativa de re-
denção da Cidade pela mão humana, quando ela é um
produto da rebelião humana contra Deus, é fútil e votada
ao fracasso. Os reformadores acabarão corrompidos ou
destruídos, como a história do Ocidente desde a queda

356
do Império Romano demonstra. Nenhuma das estruturas
da Cidade existe para servir o Bem, e quando assim o
parece estamos na melhor das hipóteses num período
transitório, em que as trevas se reorganizam pela calada –
e na pior, é precisamente nesse momento, que acabamos
por corromper e trair os princípios que tentámos defen-
der. E por isso de certa forma é extremamente benéfico
que as forças do mal se revelem tão claramente, pois as-
sim já não é possível manter a ilusão. Se na Idade Média
era possível achar que a Cidade podia estar do lado de
Deus, os séculos mostraram-nos quão errónea era essa
consideração, e quão corruptora é a sua influência mes-
mo, ou especialmente, para os defensores do Bem. Será
por isso assim tão estranho que a Igreja Romana, tendo
tomado as rédeas do que restava do Império, tenha usa-
do a palavra pagão (cujo significado original, como vi-
mos, era camponês) para designar os seus inimigos? Um
detalhe significativo na história do seu erro fatal – o erro
de querer tomar a Cidade para servir a Deus, quando
Cristo nos havia mostrado que tal caminho era votado ao
fracasso, até para Ele, e quanto mais para nós.
Até ao triunfo Divino final, rejeitar a Cidade, física e espi-
ritualmente, deve ser o objectivo de todos os Cristãos,
não apenas para a nossa segurança física, mas sobretudo
para a nossa saúde espiritual.

***

357
«Desejo que, nestes tempos conturbados, nesta atmosfera dele-
téria em que vivemos nas cidades, vós retorneis à terra assim
que possível. A terra é saudável, a terra ensina a conhecer
Deus, a terra reaproxima de Deus, ela equilibra os tempera-
mentos, os caracteres, ela incentiva as crianças ao trabalho. E
se necessário, vós próprios fareis a escola dos vossos filhos. Se
as escolas corrompem os vossos filhos, o que vão fazer? Entre-
gá-los aos corruptores? Àqueles que ensinam práticas sexuais
abomináveis na escola? Às escolas “católicas” de religiosos e
religiosas onde o pecado é ensinado, sem mais nem menos? Na
prática, ao ensinar isso às crianças, eles corrompem-nas desde
cedo. E vós aceitais isso? É impossível! Melhor será que os vos-
sos filhos sejam pobres, melhor será que os vossos filhos vivam
longe de toda esta ciência aparente do mundo, mas que sejam
bons filhos, filhos cristãos, filhos católicos, filhos que amem a
sua santa religião, que amem rezar e que amem trabalhar, que
amem a natureza que o bom Deus fez.»

Arcebispo Marcel Lefebvre.

358
A Civilização e as suas consequências

A história é escrita pelos vencedores. Este truísmo é fa-


moso, e com boa razão. É inevitável que os vencedores se
pintem a eles mesmos como virtuosos, e aos vencidos
como perversos. Não é incomum que os vencedores, os
que ficaram e escreveram a história, atribuam títulos que
justifiquem a sua salvífica intervenção à era que a prece-
deu, como por exemplo, a ‘idade das trevas’; e igualmen-
te, à era nascida da sua intervenção, um nome glorioso,
como ‘renascença’. Clarificar, ou dar nuance, a estas eras
torna-se então muito complicado. Se a certa altura ‘renas-
cemos’ é porque estávamos antes mortos. E se antes está-
vamos nas trevas, é porque agora estamos iluminados. A
narrativa justifica-se a si mesma pelos próprios nomes.

Não pretendo discordar dessa sabedoria ancestral, pois é


obviamente verdadeira, mas apenas adicionar ao seu en-
tendimento. A meu ver, a frase é demasiado limitada e
tem uma sabedoria muito mais profunda, e a sua apli-
cação mais vasta. Pois se encurtarmos a frase diz-nos
muito mais: a história é escrita. E logo, seguindo a lógica
da que é escrita pelos vencedores, torna-se óbvio que
quem a escreve vai sempre ser a favor dos mecanismos
que permitem que seja escrita. Porque razão iriam os
Romanos, que se dedicaram tanto a escrever como a con-
quistar, não glorificar as suas conquistas, e denegrir os

359
conquistados? Dos conquistados não reza a história, so-
bretudo dos que não se dedicaram também eles a es-
crevê-la, mas apenas a vivê-la, como pobres selvagens.
Nada, ou quase nada, saberíamos dos Lusitanos, fora os
artefactos que sobreviveram, se os Romanos não nos ti-
vessem dito quão pobres e selváticos eram (e, sejamos
justos para os Romanos, quão corajosos e hábeis eram os
seus opositores na arte da guerrilha). E, naturalmente,
podemos confiar totalmente nas suas descrições pois
nunca se lembrariam de mentir ou exagerar, por mais
absurdas e impensáveis que sejam as descrições, como
aquelas que dizem que os nossos antepassados arremes-
savam os seus bebés contra os soldados Romanos. Estes
selvagens não só não tinham qualquer respeito pela sua
descendência, como não eram sequer espertos o suficien-
te para entender que bebés são armas fracas contra exér-
citos organizados. Ou assim nos conta a história – escrita,
por alguém, e neste caso foi pelos Romanos, contra os
que a não escreveram, os Lusitanos.

E porque não haveriam os conquistadores de denegrir os


conquistados como amputados, insuficientes, primitivos
– especialmente se estes não fossem dar contas contrárias
às dos conquistadores, por não se dedicarem à escrita?
Porque não justificar a sua violência desta forma? Porque
não os pintar, a eles e a outros, como bárbaros a precisar
de ser civilizados?

360
Aí está a palavra: civilizados. Civilização. Hoje, e há mui-
to tempo, civilização tornou-se sinónimo de bom. E como
não? Os civilizados dedicam-se à escrita, e como tal, es-
crevem que ser civilizado é bom. Porque haveria a civili-
zação de argumentar contra si mesma?

E quem, no seu perfeito juízo, iria questionar a sabedoria


dos civilizados? Afinal de contas, não temos dedos para
contar as suas glórias: da Arte à Literatura, da Arquitec-
tura à Lei, da Ciência à Tecnologia. As partes menos boas
varrem-se para debaixo do tapete – afinal, todos os meios
são bons quando os fins são nobres. E se se atingir os fins,
então os meios justificam-se a si mesmos. Não vêem os
maravilhosos produtos da Civilização? Para quê falar no
preço dos mesmos. Olhem, e maravilhem-se.

Como civilizados que somos, no entanto, temos de insis-


tir numa definição. Encontrar uma que seja precisa é mais
complicado do que pensávamos. A maioria dos dicio-
nários Portugueses definem ‘civilização’ tão largamente
que a definição é inútil, ou então tão parcialmente que
voltamos à situação descrita acima, em que civilizado é
sinónimo de bom. Por exemplo, um dos dicionários ofe-
rece estas definições:

1. conjunto das instituições, técnicas, costumes, crenças, etc.,


que caracterizam uma sociedade ou um grupo de sociedades
determinadas

361
2. conjunto dos conhecimentos e realizações das sociedades hu-
manas mais evoluídas, marcadas pelo desenvolvimento intelec-
tual, económico e tecnológico
A primeira definição é tão vaga que não se distingue uma
civilização de qualquer cultura não-civilizada. Todas as
sociedades têm instituições, técnicas, costumes e crenças
– e se essa é a definição de civilização, então todas as so-
ciedades são civilizadas, da vila tribal ao gigante império.
Claramente, não é uma definição útil. Isto é, sobre as es-
truturas e implicações especificas da Civilização, o que a
distingue de outros tipos de sociedade, não nos diz nada.

A segunda definição oferece uma nova categoria, de so-


ciedades ‘mais evoluídas’, marcadas por ‘desenvolvimen-
to’. Mas isto, apesar de mais específico, continua a ser
terrivelmente vago, pois somos levados a questionar aí as
definições de ‘evoluído’ e ‘desenvolvimento’. Pesquisan-
do em Inglês, conseguimos encontrar um pouco mais de
especificidade, ajudando também a definir o que se en-
tende por essas outras palavras auxiliares.

A definição, com tradução minha, é a seguinte: um estado


de desenvolvimento intelectual, cultural e material avançado
numa sociedade humana, marcado por progresso nas artes e
nas ciências, pelo uso extensivo de registos, incluindo a escrita,
e o aparecimento de instituições sociais e políticas complexas.
Claro que continuamos com o grave problema, pois so-
mos atirados de volta para as definições de ‘avançado’,

362
‘desenvolvimento’, ‘progresso’ e ‘complexidade’. Mas, ali
no meio, encontramos pelo menos uma coisa verdadei-
ramente específica – o uso extensivo de registos, incluin-
do a escrita. Assim já podemos distinguir entre as socie-
dades civilizadas e as outras. E voltamos ao problema
inicial, de que a história é escrita por quem a escreve, re-
gistada por quem a regista. E como tal, há uma parciali-
dade inescapável nos próprios registos.

Através desta definição podemos então começar a pensar


nas implicações da civilização. Pensemos, por exemplo,
naquilo que é necessário para que uma parte da popu-
lação se dedique a registar, extensivamente, os feitos,
eventos, leis e regulações da sua sociedade. Em culturas
não-Civilizadas que tinham escrita, ela era usada sobre-
tudo, ou exclusivamente, para codificar mitos e histórias,
ou seja, o seu uso era extremamente limitado e finito.
Mas para uma actividade especializada, e ainda para
mais extensiva, as pessoas que se dedicam a ela não po-
dem, pelo menos na maioria do tempo, dedicar-se a ou-
tra. É por isso necessário que outros lhes providenciem
alimento, roupa e habitação. E é deduzível que os que
providenciam o alimento não providenciam a roupa e a
habitação, e vice-versa, tendo em conta que estão a pro-
duzir para outrem, e não apenas para si e a sua família, é
expectável que se dediquem exclusivamente a ela, isto é,
se especializem na produção de um produto, em vez de
vários necessários à sobrevivência. Como tal, cada um

363
destes necessita também que lhe providenciem as outras
coisas que ele próprio não produz. É também deduzível
que os que providenciam os materiais necessários para
fazer roupa e habitação, também tenham eles de ser pro-
videnciados com alimento, roupa e habitação. Quem di-
ria que para rabiscar umas simples linhas a favor do im-
pério, fosse necessária tanta complexidade e organi-
zação?

Mas não ficamos por aqui. Porque os registos não se


fazem do ar, e por isso é também necessário providenciar
materiais em quantidades suficientes que permitam tais
registos, e cada um desses materiais é diferente (fazer
tinta é completamente distinto de fazer papel ou perga-
minho), e como tal, a própria produção desses materiais é
conseguida pela alocação de trabalho para essas activi-
dades (trabalhadores que também precisam de comida,
roupa e casa). E tal como acima, a produção desses pro-
dutos, que não são obtidos, sobretudo em larga escala,
directamente a partir de matérias primas, mas de trans-
formação, precisa de outros materiais e outras pessoas
que os providenciem. E também eles precisam de comi-
da, roupa e casa.

Convém aqui relembrar que, por um lado, não é a escrita


em si (ou a música, ou a arquitectura, ou qualquer outra
das coisas boas que são associadas com a civilização) que
determina a existência de civilização, mas o seu uso ex-

364
tensivo, a sua sistematização, um nível de complexidade
e especialização que requer uma organização social, eco-
nómica e política que desliga uma grande parte da popu-
lação das necessidades básicas da vida humana. As tribos
Germânicas (os bárbaros assim designados pelos civili-
zados Romanos), por exemplo, tinham escrita, simples-
mente não a usavam extensivamente – usavam-na, como
referido acima, sobretudo para registar os seus mitos, e
como os mitos não mudam, a sua actividade escrita não
era extensiva. E não a usando extensivamente, a organi-
zação e complexidade descrita acima é desnecessária e o
nível de especialização requerido muito menor – isto é,
não estamos na presença de uma Civilização, mas sim-
plesmente de uma sociedade. A sua divisão em tribos,
em vez de uma entidade política unificada, aponta para a
mesma conclusão.

A palavra Civilização tem origem no latim Civitas, que


significa Cidade. E a Cidade, vista de um ponto de vista
puramente materialista, tem as suas próprias impli-
cações. A primeira, e mais profunda, é a de se definir por
densidade populacional – e em especial, uma densidade
que necessite a importação das necessidades básicas da
vida, isto é, comida, roupa e habitação. Não é difícil então
ver a conexão: a Cidade é onde as pessoas que não pro-
duzem as necessidades básicas da vida se dedicam a ou-
tras actividades. Como as suas actividades (não só a es-
crita, mas também o comércio e a política, que se tornam

365
necessários quando as necessidades básicas são importa-
das) são, num sentido muito estrito, nem produtivas nem
transformativas, mas ‘intelectuais’, não requerem o es-
paço físico necessário para a transformação, e ainda me-
nos para a produção, que as necessidades básicas reque-
rem. E como tal, a Cidade é sempre um amontoado de
gentes, vivendo umas sobre as outras, e todas elas de-
pendentes desse sistema chamado Civilização.

Embora a nossa civilização tenha levado todas estas ten-


dências a um extremo, elas existem em todas as civili-
zações dignas desse nome desde que elas existem. Este
modo de vida citadino, necessário para sustentar as acti-
vidades dignas de uma civilização, é, pois, indissociável
da própria civilização. Mas se a Civilização precisa das
cidades, e as cidades precisam de importar as necessida-
des básicas da vida, então é fácil de ver como a Civili-
zação é, em si mesma, insustentável. Os recursos ne-
cessários à sua existência estão fora de si, e como tal é
necessário pôr as populações não-citadinas (não-
civilizadas) a trabalhar para a Civilização, a produzir
aquilo que a Civilização não produz para que ela possa
produzir aquilo que é desenhada para produzir. Isto nem
sempre, ou quase nunca, é um processo pacífico. Em
primeiro lugar, não é pacífico para o mundo natural, en-
tendido como o mundo que não é humano ou directa-
mente ligado ao bem-estar humano. O surgimento de
todas as Cidades implica a desflorestação e, pelo menos,

366
a conversão de algumas das terras circundantes em quin-
tas de agricultura e pecuária intensiva – actividades em si
mesmas destrutivas da terra e que não seriam necessárias
caso não houvesse uma população citadina para alimen-
tar e vestir. E em segundo lugar, o processo não é pacífico
para todas as pessoas que têm o azar de viver nas ime-
diações da Cidade, pois em vez de trabalharem para a
sua sobrevivência, serão recrutadas, em geral pela força,
para o sustento dos urbanos.

O que significa que a Cidade está sempre em expansão, e


que essa expansão é dupla: por um lado a população ur-
bana cresce, e como tal requer mais e mais recursos vin-
dos de fora; e como requer mais recursos vindos de fora,
subjuga mais populações e mais floresta, colocando-as ao
seu serviço e criando mais potenciais urbanos que depois
necessitarão de mais expansão, num ciclo vicioso. Quan-
do os Europeus chegaram ao que, 500 anos antes, haviam
sido cidades Maya, encontraram enormes estruturas ro-
deadas, ou até trespassadas, por floresta densa. Tal flo-
resta, no auge da Civilização Maya, havia sido dizimada,
e se os Europeus encontraram floresta densa e fértil é
simplesmente porque a Civilização já tinha caído há cin-
co séculos. E uma das causas da sua queda foi, precisa-
mente, a desflorestação progressiva que a expansão das
Cidades tornou necessária para a sua continuação. No
Médio Oriente, pela escala e número das civilizações que

367
lá surgiram, a desertificação persiste até hoje – e na Eu-
ropa começa a sentir-se.

É, pois, ponto assente que a Cidade e a Civilização, fe-


nómenos indissociáveis, são insustentáveis e dependem
da violência para a sua perpetuação. Essa violência pode
ser directa, como era em larga medida na Antiguidade,
subjugando populações através de exércitos; ou então é
violência indirecta, sob a forma de pressão legal ou eco-
nómica sobre o campo, integrando o campo e os campes-
tres no sistema, e tornando as suas actividades insepará-
veis do processo civilizacional. No nosso tempo, e desde
a Revolução Industrial, este processo foi aperfeiçoado e
retirando a independência do campo, não só política ou
administrativamente, mas pela técnica. A técnica, mais
do que a lei ou o sistema económico, tornou o campo es-
cravo da Civilização. Introduzindo os desenvolvimentos
civilizacionais – como a electricidade, os motores, a cana-
lização, mas também a sua cultura e entretenimento – a
Cidade subjugou o campo como nunca antes tinha feito,
e tornou-o por sua vez, e pela primeira vez, dependente
da Cidade. O camponês antes era coagido pela força das
armas a providenciar comida aos urbanos, agora é coagi-
do pelo mercado a vender o seu produto para poder
comprar os materiais necessários para que possa conti-
nuar a produzir. A violência não só é ainda uma parte
indispensável do sistema, mas tornou-se inescapável, ao
mesmo tempo que é mais escondida e disfarçada, mais

368
complexa e elegante – será que podemos dizer, uma vio-
lência mais civilizada?

E assim o nosso sistema, a Civilização Industrial, que é


hoje global, é não só a mais violenta e mais expansiva
Civilização que já existiu, certamente no seu alcance, mas
precisamente por isso, também a mais insustentável. E o
seu colapso, inevitável, será o mais cataclísmico colapso
da história humana. Pois apesar da nossa civilização ter
conseguido, através da tecnologia industrial e por en-
quanto, fugir às pressões naturais que levaram as civili-
zações antigas à sua natural destruição, não é certo (ou
expectável) que consiga fugir para sempre, e por outro
lado, quanto mais longa e profunda é essa fuga, mais
inevitável e profundo será o seu colapso.

Investigando as várias Civilizações que existiram e colap-


saram (pois, sendo insustentáveis, esse é o seu destino
natural), descobrimos o mesmo padrão em todas: por
muito díspares que fossem as suas culturas, por mais dis-
tintas as suas geografias, os seus climas e as suas gentes,
as histórias das suas quedas são incrivelmente semelhan-
tes, e se naturalmente as quedas são devidas a combi-
nações de factores dada a complexidade das sociedades,
esses factores acabam por ser sempre os mesmos.

O primeiro factor, e possivelmente o principal, que põe


em moção todos os outros é a devastação do meio natu-

369
ral, que sustenta a vida não só da Civilização, mas tam-
bém a vida da qual a Civilização depende. Quando essa
devastação atinge um determinado nível, resultante da
expansão urbana, os sistemas naturais que permitem a
manutenção da vida começam a desaparecer, a integri-
dade (e com ela a fertilidade) do solo diminui ou extin-
gue-se, dada a ausência de floresta a seca ou as cheias (e
em geral ambas em épocas diferentes) começam a ser
frequentes, afectando a produção de alimentos pois torna
a agricultura e pecuária intensiva mais difícil ou impos-
sível e como tal colocando ainda mais pressão para ex-
pandir essas actividades ainda mais para áreas ainda flo-
restadas, aumentando o impacto. Outro ciclo vicioso: a
exploração desregrada do meio natural torna necessária
ainda mais exploração para manter a população corrente.
O resultado é a fome e a doença – e com a fome e a
doença vem o conflicto e a desintegração dos sistemas
sociais e hierarquias. Com a disrupção do abastecimento
alimentar, todas as profissões e especializações urbanas
se tornam supérfluas, e a sua manutenção impossível –
palácios deixam de ser construídos, estátuas deixam de
ser esculpidas, registos deixam de ser feitos e leis deixam
de ser aplicadas. Por sua vez essa desintegração coloca
todos os que dependiam para o seu sustento desses sis-
temas e hierarquias numa posição em que a sua lealdade
ao sistema já não traz qualquer benefício, dando-lhe mais
um golpe e acelerando ainda mais o colapso da ordem
que reinara outrora, pondo a nu a insustentabilidade do
sistema e sublinhando, por fim, que toda a sofisticação

370
civilizacional era afinal mantida através do trabalho dos
bárbaros campestres.

Dada a dependência da Civilização de estruturas e pro-


dução exterior a si, e em larga medida dependente de
trocas, e logo de moeda, o papel das classes mercantes e
monetárias, torna-se maior. O uso de moeda torna-se in-
dispensável à vida citadina, e com isso a usura torna-se
parte integrante e indispensável do sistema civilizacional.
A depreciação da moeda, também, leva a uma cada vez
maior pressão sobre o mercado que sustenta a Civili-
zação, e eventualmente, são as classes mercantes e mone-
tárias que na realidade a controlam. Segue-se uma inevi-
tável corrupção e burocratização dos sistemas legais e
políticos.

Falando de mercados, a agricultura e sobretudo a pecuá-


ria intensiva são notórias por gerarem doenças contagio-
sas, seja pela contaminação de recursos hídricos ou pela
simples sobrelotação animal necessária. A sobrelotação
humana e a acumulação de lixo encontrada nas cidades
contribuem também para o surgimento do mesmo tipo
de doenças. As complexas rotas de comércio que alimen-
tam uma ou várias Civilizações tornam-se vectores per-
feitos para a transmissão das mesmas a várias popu-
lações – pelo que não é incomum que quando o processo
de colapso se inicia, não seja apenas uma civilização, mas
várias que estavam interligadas, que caem em catadupa

371
(como no colapso da Idade do Bronze, ou a queda do
Império Romano).

É importante salientar que a sobrevivência (sempre tem-


porária) da Civilização não é sinónimo da sobrevivência
da população original que lhe deu origem, nem da que a
sustenta. Na verdade, uma das tendências sempre repe-
tida na história das civilizações é, num grau maior ou
menor, a substituição da sua população por estrangeiros,
que permitam a sua constante expansão e perpetuação
depois de esgotada a população original. Isto porque
uma das também sempre observadas consequências da
Civilização é, primeiro, um aumento das taxas de fertili-
dade no período de expansão inicial, seguida de uma
descida abrupta das mesmas depois de atingido um certo
nível civilizacional. Graças aos registos mantidos por ci-
vilizações como a Grega e a Romana, sabemos que a po-
pulação das cidades, os civilizados, começam a certa al-
tura a estar mais interessados na ostentação e nos praze-
res da vida, e menos na procriação e manutenção de
famílias. Sabemos também que a promoção de ‘estilos de
vida’ alternativos e sexualidade desregrada pautam os
inícios dos fins das suas respectivas civilizações, e com
eles, a importação de estrangeiros para manter a máqui-
na a funcionar, pelo menos por um tempo. Mas se a Civi-
lização pensasse em sustentabilidade, não seria uma Ci-
vilização digna desse nome.

372
Se tudo isto soa familiar podemos pelo menos consolar-
nos com o facto de não termos de imaginar como se sen-
tiria um Ateniense, um Romano, um Egípcio ou um Ma-
ya, aquando da queda das suas respectivas civilizações.
Tudo o que temos de fazer é olhar em volta.

Todas as Civilizações caídas no passado seguem um pa-


drão: ou desaparecem do mapa completamente por ex-
tinção (geralmente reservado a lugares remotos), ou re-
vertem a formas pre-civilizacionais de pequenos grupos
(como após a queda do Império Romano) ou são absor-
vidas por outras civilizações (geralmente aquelas que
estavam em ascenção e no processo de transição para se
tornarem civilizações propriamente ditas aquando da
queda de uma mais antiga – como é o caso do Egipto an-
tigo, absorvido por várias outras civilizações, mais noto-
riamente pela de Roma). No nosso caso presente, duas
das soluções estão, à partida fora de questão: a extinção é
improvável, mesmo na eventualidade de uma guerra nu-
clear; a absorção é impossível porque a civilização indus-
trial é, na verdade, a única que existe, e cobre todo o glo-
bo. Se cair, não restará nenhuma outra civilização para a
absorver e integrar. Pelo que resta a reversão a formas de
vida pre-civilizacionais.

Claro que é discutível se um colapso acontecerá. Há


quem acredite que a nossa civilização conseguiu, através
da tecnologia, superar a insustentabilidade natural que

373
acompanha todas as civilizações e assim será capaz de se
perpetuar indefinidamente. Eu sou da opinião contrária.
Todas as civilizações se consideram acima dessa possibi-
lidade, e é precisamente no auge da sua arrogância que
começam a cair. Como nos diz famosamente o livro dos
Provérbios ‘a soberba precede a ruína’. E a nossa é uma
civilização soberba, palavra que curiosamente designa ao
mesmo tempo orgulho e grandiosidade. Ambas as coisas
estão inexoravelmente ligadas.

A civilização continuará a expandir, a subjugar e a des-


truir, pois é o seu curso natural. E dada a dimensão da
nossa, nunca antes vista, o jugo totalitário sobre tudo e
todos é o seu destino, pelo menos até ao seu colapso. Não
há uma via intermédia, há apenas duas opções: o totalita-
rismo, sobre os homens e sobre a terra, colocando-os am-
bos em perfeito e total serviço da máquina civilizacional;
ou o colapso. Ambas as opções absolutas nas suas impli-
cações.

Resta-nos então uma decisão sobre o que fazer em re-


lação a esta conclusão. Para este escriba, a rejeição da Ci-
vilização, e da Cidade que a simboliza e anima, é a única
que faz sentido. Um amigo mencionou recentemente
uma analogia com a qual gostaria de fechar estas refle-
xões: existe uma frase famosa segundo a qual a melhor
altura para plantar uma árvore foi há vinte anos, a se-
gunda melhor é agora; o mesmo se aplica ao acto de rejei-

374
tar a Civilização e a Cidade, viver uma vida mais sim-
ples, em harmonia com a natureza, a humana e a outra. O
ganho de um ponto de vista materialista (já que o ponto
de vista espiritual abordámos no texto anterior) é garan-
tido seja qual for o futuro que se realize: se o sistema im-
plementar o totalitarismo absoluto, ao menos durante
algum tempo, por mais mínimo que seja, aquele que vi-
ver fora ou o mais fora possível do sistema, será o último
a ser integrado, escravizado e aniquilado – é melhor ser
livre por pouco tempo do que por tempo nenhum, afinal
de contas; e se o sistema colapsar, serão as pessoas fora
das cidades, a viver uma vida mais simples e mais autó-
noma, que melhores chances terão de sobreviver e conti-
nuar.

***

«Procurai viver tranquilamente, tratando dos vossos assuntos e


trabalhando com as vossas próprias mãos como vos recomen-
dámos»

I Tessalonicenses, 4:11.

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