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:\las m.IÍs ccrto tena sido (l!zc-lo de si r.rór.rio.

do c,.,critor, merecedor de todos os elogios


ter cri.tdo m.tis d
hem suc~·dida

do romo de' i~ta comercial, é mais um.t das f.tcetas que acabarn r.or
entroncar n.t su,t Obra - Fcrn.tndo

e1nprcsa ~ue, para a lém

outra~ coisa~ r.ouco lrterária~, c¡ucria editar c:l


literatur,t - a Oli~ir.o. Criou e editou . Quatro lh ros, dado~ ,i c•tamr.a

riics, r.rctendc é ·•r.rc,cntar ao público lcitor cssa f.ll'eta dcsconhccida


do nosso m.tior plll:t.t, cdirando maior r.arte do r.l.mo editori,tl g uc Prf/tÍt n
Pl'ssoa, antes dL· dar r.or terminad J. P. r >1 1\ 1 1H \ \1 \ H 1 1
c-.trondo ( Je, ido
Borto e Leal, Jitos "imorais"), dei)>oll ~Tokz prétiu. lmll.•t rt¡ o s t f>
P\fRI( IU 11 RR \R
Sej ,tm bcm-\ indos ao Editor Fer

2 16161 1
ISBN 978-972-665-651 -7

LU gll~ll~~~~ll liJiliJIJIJII Guimaráes


Dos escritores portugueses que Fernando
Pessoa tcnciona\ <1 editar cm tradu¡;iio inglesa
na sua editora Olisipo, Amero de Quema! foi
um dos primciros poetas <JUl' lera quando,
a o" , -in re ano,, a inda se cnnmrra' a intekc-
tualntctllc longc do uni,·c r'o lit~· rúriu !usó-
fono . Em Sctcmhro de 190!1, trés anos apó,
ter c·hcgado de Durban , a -.ua produc;ao e o
sc11 kqiR' ck lcitura~ <.:ircunst:rc\·iam-se pra-
ticamcnt•· ao inglés, lingua da sua cducou;au
escolar cm solo afrkano. Até •·ssc tllomenlO,
a literatura ponugues<l c·ra-lhc ainda quase
tksconhc·cid .t, niio parec·c·ndo ter represen-
tado um grande c,timlllo para a sua cria<;iio
poética. E prccisamcntc· .1 lcitura dos n·rsos
do autor ;u; oriano quc actha por alterar •·sta
r.·l.u,<io; inspir.tdo pdo-. seus sonetos, Pessoa
dc-.icJ..-,,· a tr.tdu t. i-los p.tr;t " lingua na qua!
.tindot ''-' ~l· nti ot 4..' 111 t.: ..tsa.

lmc·r,·-.,auo por difc·r.·ntc·s facetas de Quental,


o prnprio Pc·,so,t assinala a capacidade que
, -,te llttha dc tr.tzt·r c·moc;:io ao pcnsametllo-
LtLh.:to:ri-.tict tk uma poesía impossi\el de ser
tradlltitb , n1mn c·onsidcra\ a ser a de Ante ro
de Q11cnt.tl . 1··: 11csta linha l(lll' se inserent as
"'': ~uintl'S l· on~idcrastK~ ~ cc ..:idas por Pessoa,
.111os .tpi>s '' trathu;ao dos -.onews: «Como tra-
d11zir ht·m um Sflflc·to de Anthcro, scm desa-
PJl<IH' t·cr, pdo metws, a~¡11ella mw•ica suave, uma .. (; pa1a' , ..
roda,"" hu(ua\
tristc· c· pl·nc·tr.llllc, intima 'k lyrisnw, que é
p.trtc psychologi<:amelltl' da grandeza lyri<:a
dl· .\nthero?».
os
SONETOS COMPLETOS
DE
ANTERO DE QUENTAL
os
SONETOS COMPLETOS
DE
ANTERO DE QUENTAL

Com tradu<;áo parcial em língua inglesa


por Fernando Pessoa

PREFÁCIO AOS SONETOS COMPLETOS DE ANTERO DE QUENTAL


J. P Oliveira Martins
NOTA PRÉVIA, TRANSCRic;:óES E POSFÁCIO
Patricio Ferrari

~
T
Guimaráes
ÍNDICE

Nota Prévia · 9
Prefácio de]. P. O liveira Martins · 17

OS SO NET OS COMPLETOS DE ANTERO DE QUENTAL · 41


Índice dos Sonetos Completos · 163
Índice dos primeiros versos · 165

AP EN DICES

Recolha de documentos do espólio de Fernando Pessoa


relacionados com os sonetos de Antero de Quenral · 169
I . Listas de projectos com referencia atraduráo dos Sonetos
de Antero de Quental · 171
· Esboros do prefácio para a ediráo dos sonetos em ingles · 176
· Traduráo parcial em língua inglesa de sonetos
de Antero de Quental · 179
u · Reflexóes sobre Antero de Quental e o soneto · 243
· Bibliografia, citaróes e notas de leitura em torno
de Antero de Quental · 246
SEJA ORIGINAL!

DIGA NAO POSFÁCIO

«Aquela música suave, triste e penetrante»: os sonetos


ÁCÓPIA de Am ero de Quema] na tradw¡:áo de Fernando Pessoa · 25 1

A CÓpla Ilegal V
BI BLIOG RAFIA · 265
NOTAPRÉVIA

ApÓs mais de um século sobre a edi<;:áo princeps de Os Sonetos


Completos de Antero de Quental, publicada no Porto em 1886,
seguiram-se-lhe outras, a cargo de diversos editores e com
ligeiras diferens:as entre elas. Sendo que a maioria das edicyóes
dos sonetos foram póstumas, coloca-se-nos, na nossa tarefa
de editores, urna questáo incontornável: em qual delas basear
esta nossa edicyáo? Apenas nas que foram publicadas em vida
de Quental, em 1886 e 1890? Ou deveríamos antes apresentar
urna nova edi<;:áo que contemplasse as diferentes versóes em
vida e póstumas?
A nossa tarefa editorial tem contudo o deve r, antes de
mais, de seguir urna outra orienta<;:áo. Tendo em conside-
rac;:áo que a Editora Guimaráes se propos o projecto de
levar ao prelo um conjunto de livros que Fernando Pes-
soa tinha planeado publicar na sua empresa Olisipo, entre
os quais os sonetos de Antero de Quental traduzidos para
ingles pelo próprio Pessoa, a presente edi<;:áo náo poderia,
de forma alguma, perder de vista esta iniciativa pessoana.
Assim, a nossa decisáo recairia naturalmente sobre a edi<;:áo
que Pessoa, enguanto editor, tinha escolhido p ara o seu
projecto. Urna opc;:áo simples que, no entanto, nos obrigou
a conduzir o nosso trabalho em estreita proximidade com
a
o espólio de Fernando Pessoa (E3), guarda da Biblioteca

9
Nacional de Portugal (BNP), airida longe de estar total- mina<;áo exacta de qual foi a matriz que Pessoa utilizou já
mente publicado. requer (1 ) um conhecimemo exacto das pequenas diferen<;as
No plano editorial da O lisipo, redigido provavelmente entre estas edi<;óes e (2) um confronto deseas comas tradu-
entre 1921 e 1923 e onde Pessoa dactilografou mais de 50 <;óes realizadas por Pessoa.
títulos, encontramos "Sonnets of Quental" (BNP/E3, 137A- Existem algumas, poucas, diferenyas (essencialmente de pon-
-21, 22 e 24; Mega Ferreira, 1986: 159-161). Sem urna tuac;:áo e de ortografia) entre a l. a e a 2.a edic;:áo, sendo a «nova
referencia bibliográfica específica, este título nada nos revela edi~áO» identica a t.a. Pelo simples facto de ter sido publicada
sobre a edis;áo que Pessoa tinha considerado para levar a muito posteriormente arradu<;áo de Pessoa que, como veremos
cabo a sua tradus;áo. 1 Como proceder entáo? desenvolvido no Posfácio, foi iniciada por volta de 1908, a
Existem pelo menos dois documentos n o espólio de Fer- <<nova edis;áo» está excluída como possível fome da tradus;áo.
nando Pessoa que, a partida, n os apontam para a resposta: .Quanto aops;áo entre a }.a e a 2 .a edis;áo, apenas pequenos
os manuscritos das tradu<;óes parciais em língua inglesa dos detalhes da tradus;áo de Pessoa nos poderáo fornecer pistas.
sonetos de Antero de Q uental (BNP/E3, 75-25 a 75-55) e Contudo, o estudo comparativo dos documentos náo nos per-
urna referencia bibliográfica precisa- «Sonetos (2.a edi<;áo)» mite chegar a qualquer inferencia a este respeito. Se em duas
(BNP/E3, 113P 1-50v; Escritos sobre Génio e Loucura, 2006: ocasióes Pessoa parece seguir a }.a edis;áo em detrimento da
11, 985) - sob o cabe<;alho «Obras de Anthero». Datando, 2.a (no soneto «Nocturno», onde, no verso 14, a palavra 'noite'
porém, de um período posterior ao das tradu<;óes, esta aparece com maiúscula inicial e no soneto «Ü que diz a morte»,
última náo nos permite inferir com toda a certeza que Pes- cujos primeiros versos, contrariamente a2.a edis;áo, figuram
soa se baseou na 2.a edi<;áo. entre aspas, sendo ambas as ops;óes mantidas na tradu<;áo),
Pessoa assinalou cada urna das folhas que contem tradu- noutras duas ocasióes, Pessoa já parece ter trabalhado a partir
<;óes dos sonetos com o cabe<;alho <<A[ntero] de Q [uental] » da 2.a edic;:áo por manteras suas variantes relativamente a }.a
e a indica<;áo da respectiva página: urna informa<;áo que nos (no soneto «ldílio», cujo verso 4 termina com dois pontos, e
permite reduzir o leque de op<;óes a }.a, a 2.a e a dita <<nova náo com ponto e vírgula como acontece na l. a, e no soneto
edi<;áo», visto que partilham a mesma pagina<;áo. Urna deter- «Ü Inconsciente» que nas duas últimas estrofes apresenta aspas
-inexistentes na l. a edis;áo). Sendo, face a estas pistas contra-
1 Durante a vida de Pessoa (1888-1935), várias foram as edi~Yóes de ditórias, impossível apurar com seguran<;a a fome utilizada por
Os Sonetos Completos ele Antero de Qumtal todas das publicadas por J. P. Pessoa na sua traduc;:áo, acabámos contudo por nos inclinar
Oliveira Marrins (1.• ed.: 1886; 2.• ed.: 1890; 3.• ed. 1918; 4.• ed.: 1919
e a chamada «Nova edi ~YáO>> d e 1922, reimpressa em 1924 e 1933) (ej. para a 2.a edi<;áo, específicamente referenciada por Pessoa num
Marrins, 199 1: 32-33). documento já aqui mencionado (v. Apendice 11).

10 11
A onografia dos sonetos, assirn corno a do prefácio do seu fia original. Aos dois apendices segue-se um posfácio onde
editor, J. P. Oliveira Martins, foi actualizada. 2 No Apendice se analisa brevemente o prirneiro contacto de Pessoa com
I publicarnos algumas listas de projectos de Pessoa que, os sonetos de Quental e cerros recursos pessoanos aplicados
mais de urna década antes do ernpreendirnento Olisipo, nesta traduc;:áo.
anunciarn já a tradw;:áo dos sonetos. Sáo parte deste pri-
Patricio Ferrari
rneiro apendice dois textos inacabados (que provavelrnente
teriarn servido para a redaq:áo do prefácio da traduc;:áo dos
sonetos) e as 31 tradw;:óes parciais. No Apendice 11, repro-
duzirnos alguns textos que Pessoa escreveu sobre Quental
enquanto sonetista assim como diversas referencias biblio-
gráficas, citac;:óes e reflexóes de leitura de Pessoa relaciona-
das corn este autor. Salvo indicac;:áo, os textos e as traduc;:óes
aqui publicados sáo inéditos. 3 Náo acrescentarnos qualquer
tipo de pontuac;:áo nem colocamos as variantes caso exis-
tam. 4 Todos os documentos em portugues teráo a ortogra-

2 Sendo que na 2 .• ediyáo Oliveira Marcins reproduz o prefácio da 1.•,


alguns dos versos citados nesce prefácio acabam por ter urna poncuas;áo
diferente daquda adoptada nos poemas cal como aparecem na 2.• ediyáo.
Oprando por manter o prefácio inalterado, náo fizemos qualquer acerco.
No conjunco dos sonetos, apenas procedemos acorrecyáo de urna gralha:
no quarto soneto da série intitulada «Elogio da Morte», e asemelhans:a
do que aconceceu nas edis;óes subsequences em vida de Pessoa, substi-
tuimos a palavra <<derdadeira» por «derradeira» («Invocando-ce, amiga
derradeira ... >>).
3 As rradus;óes de Pessoa dos sonetos de Quental foram transcritas
pela primeira vez, com numerosas incorrecs;óes de diversa ordem (lexi-
cal, gramatical e de correspondencia de versos), por Maria Rosa Pereira
Bacisra. Cf Pessoa tradutor. Tese d e Mestrado em Literaturas Comparadas
Ponuguesa e Francesa apresencada a Faculdade de Ciencias Sociais e
Humanas da Universidade de Lisboa, Lisboa, [texto policopiado], 1990,
pp. A2-A62.
4 Salvo indicas;áo contrária, colocaremos sistemacicamente a última
variante deixada pelo tradutor.

12 13
Gastaríamos de exprimir o nosso reconhecimenro a Jeró-
nimo Pizarro pela ced encia d os textos e d as respectivas
transcris;óes integrad as no Apendice 11, bem como pelas
sugestóes nas passagens de difícilleitura; a José Carlos Sea-
bra Pereira com quem tivemos a oportunidad e de discutir
certas decisóes ediroriais; a Ana Maria Almeida Martins por
nos ter conduzido a recamos menos frequentados da obra
de Antero; e a Claudia J. Fischer pela sua atenta leitura desta
edic¡:áo e seus valiosos comentários.

15
PREFÁCIO

Escrevendo estas breves páginas a frente dos Sonetos de


Antero de Quental tenho a satisfac;:ao íntima de cumprir o
dever de tornar conhecida do público a figura talvez mais
característica do mundo literário portugm!s, e decerto aquela
sobre que a lenda mais tem trabalhado. Estou certo, absolu-
tamente certo, de que·este livro, embora sem eco no espírito
vulgar que faz reputac;:óes e dá popularidade, há-de encontrar
um acolhimento amoroso em todas as almas de eleic;:ao, e
durar enquanto houver corac;:óes aflitos, e enquanto se falar
a linguagem portuguesa.
Procurarei, no que vou dizer, guardar para mim aquilo que
ao público nao interessa: a viva amizade, a estreita comu-
nhao de sentimentos, o afecto quase fraterno que há perto de
vinte anos nos une, ao poeta e ao seu crítico de hoje, fazendo
da vida de ambos como que urna única alma, misturando
invariavelmente as nossas breves alegrías, muitas vezes as
nossa lágrimas, sempre as nossas dores e os nossos entusias-
mos ou o nosso desalento.
Discutindo em permanencia, discordando frequentemente,
ralhando a miúdo, zangando-nos as vezes e abrac;:ando-nos
sempre: assim tem decorrido para nós perto de vinte anos.
Mas o leitor é que nada tem que ver com esses casos par-
ticulares, nem com o abrac;:o final que trocámos no dia em

17
que primeiro nos conhecemos e que só terminará naquele É dessas crises que nasceram os seus versos, porque Antera
em que um de nós, ou ambos nós, formos descansar para de Quental náo faz versos a maneira dos literatos: nascem-lhe,
sempre sob meia dúzia de pás de terra fria. brotam-lhe da alma como solu<;:os e agonías. Mas, apesar disso,
é requintado e exigente como um artista: as suas lágrimas
háo-de ter o contorno de pérolas, os seus gemidos háo-de ser
musicais. As faculdades artísticas geradoras da estatuária e da
sinfonía sáo as que vibram na sua alma estética. A no<;:áo das
Eu náo conhe<;:o fisionomía mais difícil de desenhar, porque formas, das linhas e dos sons, possui-a num grau eminente:
nunca vi natureza mais complexamente bem dotada. Se fosse náo já assim a da cor nem a da composifáo. Aos quadros chama
possível desdobrar um homem, como quem desdobra os painéis com desdém, e por isso mesmo tem horror a descri<;:áo
fios de um cabo, Antera de Quental clava alma para urna e ao pitoresco. É artista, no que a arte contém de mais subjec-
família inteira. É sabidamente um poeta na mais elevada tivo. A sua poesia é escultural e hierática, e por isso fantástica.
expressáo da palavra; mas ao mesmo tempo é a inteligencia É exclusivamente psicológica e dantesca: náo pode pintar, nem
mais crítica, o instinto mais prático, a sagacidade mais lúcida, descrever: acha isso inferior e quase indigno.
que eu conhe<;:o. É um poeta que sen te, masé um raciocínio Os seus versos sáo sentidos, sáo vividos como nenhuns;
que pensa o que sente. Pensa o que sente; sente o que pensa. mas o sentir e o viver deste hornero é de urna natureza espe-
Inventa, e critica. Depois, por um movimento reflexo da cial que tem por fronteiras físicas as paredes do seu cranio,
inteligencia, dá corpo ao que criticou, e raciocina o que mas que náo tem fronteiras no mundo real, porque a sua
imaginou. - O seu temperamento apresenta um contraste imagina<;:áo paira librada nas asas de urna razáo especulativa
correlativo: é meigo com urna crian<;:a, sensitivo como urna para a qual náo há limites.
mulher nervosa, mas intermitentemente é duro e violento. O poeta é por isso um místico, e o crítico um filósofo.
É fraco, portanto? Náo. A vontade em obediencia a qual, e O misticismo e a metafísica, o sentimento e a razáo, a sen-
com esfor<;:o, se faz colérico, fá-lo também forre - desta for<;:a sibilidade e a vontade, o temperamento e a inteligencia,
persistente, raciocinada e na aparencia plácida, como a super- combatem-se, as vezes dilacerando-se. Eis aí a explica<;:áo
fície do mar em dias de bonan<;:a. O oceano, porém, é interior- desta poesia que. é o retrato vivo do hornero. O génio, esse
mente agitado pelo gulfstream quente e invisível: também as quid divinatório, que náo é honra para nenhuma criatura
vezes a placidez extrema da sua face encobre ondas de afli<;:áo possuir, porque só nos dá merecimento aquilo que ganhá-
que sobem até aos olhos e rebentam em lágrimas ardentes. mos a for<;:a de inteligencia e de vontade: o génio, que é urna
Sabe chorar, como todo o hornero digno da humanidade. faculdade táo acidental como a cor dos cabelos, ou o desenho

18 19
das feis;óes: o génio, que pode andar ligado a urna inteligencia rer. O núcleo da sua personaJidade, se a encararmos pelo
medíocre, mas que o náo anda no caso de Anteco de Quental lado praticamente humano, está na energía do seu querer
- é o predicado particular e a chave do enigma deste homem. moral, e náo na lucidez do seu pensamento; emboca tenha a
O génio pressupóe a intuis;áo de urna verdade visceral ou pretensáo de julgar que a sua vontade obedece sempre a sua
fundamental da natureza. Essa intuiyáo, essa aspirayáo absor- razáo. É verdade que dentro de si tem permanentemente
vente, é para o nosso poeta a síntese da verdade racional ou um espelho facetado que representa e critica as modalidades
positiva e do sentimento místico: urna poesia que exprima o do seu pensamento; mas, por isso m esmo, ve ou inventa
raciocínio, ou antes urna filosofia onde caibam todas as suas faces de mais as coisas, e também por vezes o cristal embacia.
visóes. O próprio do génio é querer realizar o irrealizável; O que nunca esmorece é a bondade luminosa da sua alma.
é ser quimérico, no sentido crítico da palavra, quando por É um homem fundamentalmente bom.
quimera entendemos urna verdade essencial que náo pode A complexidade do seu espírito dá-lhe urna variedade de apti-
todavía reduzir-se a fórmulas compreensíveis, ou urna coisa dóes singular. Conversador como poucos, fácil, esponclneo, ori-
cuja realidade se sente, sem se poder ver. ginal e sugestivo, irónico, humorista, espirituoso, descendo até
Dos aspectos q.uase inesgotavelmente variáveis desta sin- a própria charge, náo há ninguém como ele para soltar o carro
gular fisionomía de homem, desta mistura excepcional de da sua fantasía crítica na ladeira de urna tese, e, explorando-a
pensam entos e de temperamento num mesmo indivíduo, em todos os sentidos, arqultectar urna teoría. Os seus opúscu-
resulta porém um tipo de sinceridade e de rectidáo mais los em prosa (da melhor prosa portuguesa deste tempo) tem
singular ainda, porque mais facilmente podia resultar dela em geral este carácter. Sáo lógicos, sáo bem deduzidos - sem
um grande cínico. É sobretudo um estóico, sem deixar de serem suficientemente pensados. Sáo frutos da imaginayáo; sáo
ter bastante de céptico; é um místico, mas com urna forre conversas escritas, dessas conversas que durante horas seduzem
dose de ironía e humorismo; é um misantropo, quando náo os que o ouvem - porque é um charmeur.
é o homem do trato mais afável, da convivencia mais alegre; Ele próprio se embriaga, náo com as suas palavras, mas sim
é um pessimista, que todavía acha em geral tudo óptimo. com aquela teoría passageira que inventou ad hoc, e, quando
Intelectualmente é a fisionomía mais dúbia, complexa e con- alguém lhe objecta um pequeno senáo, todavía essencial ao
traditória por vezes; moralmente é o carácter mais inteiro e seu edifício lógico, resiste, defende-se, irrita-se as vezes, mas
m elhor que existe. A sua inteligencia encontra-se perma- por fim é ele próprio que, com um dito, desfaz toda a cons-
nentemente no estado de alguém que, querendo ir para um truyáo. Seria um orador, um jornalista de primeira ordem, se
sítio, resiste por náo querer ao mesmo tempo, sem todavía náo tomasse apenas a sério a sua missáo de poeta, ou antes
ter razóes bastantes para querer nem também para náo que- de filósofo.

20 21
Depois de rudo isto diráo pessoas pouco dadas ao estudo do que os problemas do pensamento, nem crises mais dolorosas do
animal hornero que Antero de Quemal é um assombro. Longe que as crises do semimemo. As agonías dilacerantes da morte
disso. A sua fors;a é a prodigalidade com que a natureza doto u com as ansias do estertor, os horrores mais inverosímeis dos cri-
o seu espírito: mas essa for<ya é urna fraqueza. Tem demasiada mes monstruosos, as aflis;óes m ais pungentes da saudade, as tris-
imaginayáo para ver bem, e por outro lado o raciocínio crítico tezas mais dolorosas da solidáo, as !utas do dever com a paixáo,
peia-lhe os voos luminosos da fantasía. Ve de mais para poder os &ritos do hornero arruinado, os ais da orfandade faminta . ..
a
ser activo, o u náo tem a energía corresponden te sua visáo. Se rudo, tudo, quanto no mundo pode haver de doloroso, desde a
a tivesse, seria verdadeiramente um assombro. A imaginayáo miséria até á prostituis;áo, desde o andrajo até ao veludo arras-
e a razáo, irredudveis nos cérebros humanos com as circun- tado pela imundície, desde o cardo que dilacera os pés até ao
volu<yóes limitadas que contero, sáo igualmente poderosas no punhal que rasga o corayáo: tudo isso é menos, do que a agonía
seu cérebro para que qualquer delas domine. Lutam em per- de um poeta vendo passar diante de si, em turbilháo medonho,
manencia, procurando entender-se, combinar-se, penetrar-se, as lúgubres· misérias do inundo. Todas as afliyóes tero o seu que
e, no desejo quimérico da síntese, desequilibram o hornero, de imaginativas, e por isso há apenas urna espécie de homens
atrofiando-lhe a energía activa. Ainda assim, felizes daqueles que náo sente: sáo os cínicos, esses que perderam os nervos da
cuja inércia desse um livro comparável a este! moralidade, os anestesiados do semi memo.
Mas é que as suas páginas foram escritas com sangue e lágri- Quando se é poeta como Antero de Quema!, a imaginayáo
m as! E dói ver a vida do mais belo espírito consumir-se em exacerbada vibra como as harpas que os gregos expunham as
agonías de urna alma em luta consigo mesmo! 5 O comum viras;óes da brisa nos ramos das árvores. Nenhum dedo lhes
da gente, ao ler as páginas deste volume dirá entáo: Quantas feria as cordas, e todavía tocavam! Nenhuma dessas desgrayas do
catástrofes, que desgras;as, este hornero sofreu!, que singular mundo feriu a harpa da vida do poeta; e todavía essa harpa geme
hostilidade do mundo para com urna criatura humana! - E e chora, solus;a e grita, porque pelas suas cordas passa o vento
todavía o mundo nunca lhe foi propriamente hostil, nenhuma agreste das ideias, passa o eco ululante do egoísmo dos homens,
desgras:a o acabrunhou; a sua vida tem corrido serena, plácida, aflitivo como os uivos de urna alcateia de lobos famintos.
e até para o geral da gente em condis;óes de felicidade.
É que o geral da gente náo sabe que as tempestades da ima-
ginayáo sáo as mais duras de passar! Náo há dores táo agudas 11
como as dores imaginárias. Náo há problemas mais difíceis do
Esta colec<yáo de Sonetos é, portamo, ao mesmo tempo bio-
5 Assim no original. gráfica e cíclica. Coma-nos as tempestades de um espírito; mas

22 23
essas tempestades náo sáo os quaisquer episódios particulares Ali, ó lírio dos celestes vales,
de urna vida de homem: sáo a refracc;:áo das agonías morais Tendo seu Jim, teráo o seu cornero,
do nosso tempo, vividas, porém, na imaginac;:áo de um poeta. Para náo mais jindar, nossos amores.
O primeiro período, de 1860-2, contém em embriáo todos
os sucessivos, da mesma forma que as flores incluem em si a E se ainda o día, a luz, o sol esposo amado, tem o condáo de
substancia dos frutos. Denuncia urna alma sensível, mas paten- 0 encher de entusiasmo, é mister desconfiar de um homem
teia já a preocupac;:áo metafísica na sua fase rudimentar de mais caprichoso do que todas as mulheres, porque
dúvida teológica, e apresenta uns assomos de tristeza que sáo
como os farrapos de nuvens quando velam intermitentemente Pedindo aforma, em váo, a ideia pura
o sol, deixando antever a tempestade para o dia seguime. Estes Tropero, em sombras, na matéria dura
primeiros sonetos sáo o balbuciar de urna crianc;:a. Romantica? E encontro a impeifeiráo de quanto existe.
De modo nenhum. Este poeta náo se filia em escolas, náo
obedece a correntes literárias: a sua poesía é exclusivamente Esta nota é mais constitucionalmente verdadeira. «Seja a
pessoal. Sucedía, porém, que nesse tempo já os nossos bar- terra degredo, o céu destino» diz num ponto: 6 e noutro:
dos classicamente romanticos tinham passado de moda; e a
Coimbra chegavam por vía de París os ecos do espírito novo, Minha alma, ó Deus, a outros céus aspira:
expresso nas obras de Michelet, de Quinet, de Vera-Hegel, etc. Se um momento a prendeu mortal beleza
Tudo isso fermentava no cérebro de Antero de Quental, mas É pela eterna pátria que suspira ...
a sua personalidade náo se deixava absorver pelo optimismo
que, depois dos romanticos, se espalhou na Europa, lírica- Náo acreditemos também demasiadamente nisto, porque
mente ingénuo no Ocidente afrancesado, sistematicameme Deus náo passa ainda de urna interrogac;:áo:
filosófico na Alemanha hegeliana. Schopenhauer, ninguém
o lía. Náo era moda. Pois foi essa corrente, dominante hoje, Pura essencia das lágrimas que choro
aquela em que o nosso poeta, espontaneamente, por um moví- E sonho dos meus sonhos! Se és verdade,
mento do seu temperamento, se achou levado. Aos dezoito ou Descobre-te, visáo, no céu ao menos!
vinte anos, ignorante ainda, mas inquieto e perscrutador, o
poeta que desdenha sinceramente da fama e da glória, ve no
eterno feminino de que nos fala Goethe a síntese da existencia.
Os seus amores já sáo fantásticos: só tem realidade no céu. 6 Assim no original.

24 25
As !utas infantis deste primeiro período para saber se Deus Meu pobre amigo, como foi amarga esta época! Outros sofre-
é ou náo é verdade, bastam, em si mesmo 7 e no próprio ram também, outros penaram iguais dores, sem conseguirem
modo por que estáo expressas, para nos mostrar que o poeta porém estrangular os monstros que defendem os áditos do
náo saiu ainda das esferas da representas;áo elementar dos templo da Sabedoria. Heine e Espronceda, Nerval e Baudelaire
seres, para a esfera compreensiva das abstracs;óes racionais. viveram vidas inteiras nesse estado de ironía e de sarcasmo, de
Os sonetos desta primeira série desenrolam-se no terreno da desespero e de raiva, de orgia e de abatimento, de fiíria e de
fantasmagoría transcendente. O tras;o mais seguro de todos atonía, que para ti representam quatro anos apenas!
e o mais significativo está oeste verso: Mas é que náo havia em nenhum desses homens a semente
de abstracs;áo que se descobre no Palácio da Véntura:
Que sempre o mal pior é ter nascido.
Abrem-se as portas d'ouro, com fragor . ..
A segunda série tem a data de 1862-6. Psicologicamente é Mas dentro ázcontro só, cheio de dor,
a menos original, artísticamente é a mais brilhante. O Sonho Silencio e escuridáo - e nada mais!
oriental, o Idílio, o Palácio da Véntura, sáo obras-primas, até
de colorido. Talvez por isso mesmo que o estado de espírito Os romanticos, mais ou menos satanistas ou satanizados,
do poeta o náo obrigava a tirar tanto de si, e porque nesta ficavam-se por aquí. Achando apenas silencio e escuridáo onde
época viveu mais aleí da natureza; talvez por isso mesmo tinham sonhado venturas, ou davam em bebedos como Espron-
a sentiu e pintou melhor nas suas cores, nas suas imagens. ceda, ou suicidavam-se como Nerval, ou faziam-se cínicos, a
A nebulosa do primeiro período comes;ava a resolver-se maneira de Baudelaire, cultivando com amor as Flores do Mal.
numa tragédia mental, que urnas vezes tem os sonhos dos De 1864 a 74, nesses dez anos em que a tempestade cami-
que mastigam haxixe, outras vezes fúrias de desespero, iro- nha, ve-se a onda negra da desolas;áo espraiar-se; ve-se o
nías como punhais e gritos lancinantes: «silencio e a escuridáo», que antes surgiam como surpresas
m edonhas, ganharem um lugar apropriado, embora emi-
Se nada há que me aquera esta frieza, nente, no regime das coisas; ve-se o espírito do filósofo reagir
Se estou cheio de fe! e de tristeza, sobre o temperamento do poeta, e tornar-se sistema o que
É de crer que só eu seja o culpado. até aí era fiíria. Bom prenúncio.
Nesta época Amero de Quental é niilista como filósofo,
anarquista como político; é tudo o que for negativo, é tudo
7 Assim no original. o que for excessivo; e é-o de um modo táo terminante, táo

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dogmático e táo afirmativo, que por isso mesmo hesitamos de urna feliz expressáo espanhola) meteu-se dentro de si,
em crer na consciencia com que o é. Da sinceridade náo a sós consigo, apelou para as energías do seu instinto de
é lícito duvidar, mas contra a segurans;a d epóe a própria homem, e foi isso o que !he inspirou o belo Hino a Razáo.
violencia. A nevrose contemporinea, que produzira nele a Porém na luta entre o temperamento de estóico e a ima-
terceira época, dá de si ainda a quarta; mas se pode galgar a ginas;áo metafísica, o seu espírito atribulado náo conseguiu
saltos por entre a floresta incendiada que devorou e consu- manter o equilíbrio, porque as suas exigencias de crítico
miu os satanicos, náo poderá também sair da estepe lúgubre e fiiósofo (alimentadas agora p or leituras variadíssimas e
onde apodrecem os pessimistas, embriagados na negas;áo profundas) contrariavam ou contradiziam as suas visóes de
universal, sem se lembrarem de que sáo contraditórios no poeta. A maneira que a inteligencia se !he cultivava, que o
próprio facto de pregarem o que quer que seja? saber !he crescia, que a experiencia o educava com mais de
Ora a isto responde esta própria série, porque, ao lado um caso doloroso ou apenas triste - apurava-se-lhe a imagi-
dos sonetos crepuscularmente desolados, levantam-se como na<;:áo até ao ponto de ·ver claramente o que para o comum
auroras os sonetos estóicos. Para curar o poeta da vertigem dos espíritos sáo apenas conceps;óes do entendimento abs-
satinica serviu-lhe a metafísica pessimista; para o curar tracto. A sua poesía despe-se entáo de acessórios: náo há
mais tarde dessa metafísica, servir-lhe-á a reacs;áo do sen- quase urna imagem; há apenas linhas, mas essas linhas de
cimento moral sobre a razáo especulativa. Quando pede estátuas incorpóreas tem urna nitidez dantesca.
Mais luz, quando chama ao sol «0 claro sol amigo dos O seu pessim ismo torna-se sistemático: é urna filosofia
heróis», quando define a Ideia acabando po r estes versos inteira, a que corresponde, como expressáo sentimental, a
diamantinos: i~onia transcendente. Na Disputa em Família, D eus responde
aos ateus:
A Ideia, o Sumo bem, o Vérbo, a Essencia
Só se revela aos homens e as naróes Muito antes de nascerem vossos país
No céu incorruptível da Consciencia! Dum barro vil, ridículas crianras,
Sabia eu tudo isso ... e muito mais!
sentimo-nos bem distantes das fantasmagorías do princípio
e das loucuras da viagem, que todavía o poeta náo terminou No Inconsciente, este herói metafísico, diz assim:
ainda.
Lutando furioso contra a desilusáo, caindo esmagado pelo Chamam-me Deus há mais de dez mil anos.. .
aniquilamento, Antero de Quental ensimismou-se (para usar Mas eu por mim náo sei como me chamo.

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Na Divina Comédia os homens queixam-se aos deuses do e fariam mal a muita gente. Destruiu-os, pois, com aquela
que sofrem, invectivando-os pelos terem criado: violencia própria de um carácter intermitentemente meigo
e frenético como o de urna mulher. Desse naufrágio onde se
Mas os deuses, com voz inda mais triste perderam verdadeiras obras-primas, salvei eu as poesías que
Dizem: - Homens! porque é que nos criastes? váo no fim desee ensaio; 8 e salvei-as porque as possuía entre
os originais remetidos em cartas, e mais de urna vez como
Como se ve, houve um progresso. No período anterior a texto de noticias do estado do seu espírito, ou cartas rimadas.
negac;áo era violenta e terminante; agora tem como expressáo Que espécie de paz era porém essa em que o seu coras;áo
a ironía que é urna das formas conhecidas do saber, e urna descansava? Era o Nirvana:
das linguagens da verdade. Eis aí o que a reacs;áo moral
conseguiu, acompanhada pelo esclarecimento da razáo, da E quando o pensamento, assim absorto,
inteligencia e do conhecimento. O antigo poeta satanico, Emerge a ooto desse mundo morto
transformado em um niilista, vemo-lo agora na pele de um E torna a olhar as cousas naturais,
pessimista sistemático, sorrindo já bondosamente, coma iro-
nía nesses próprios lábios que, primeiro cobertos de espuma, A befa luz da vida, ampla, infinita
depois nos apareciam brancos de agonías. Só ve com tédio em tudo quanto jita
Náo tinha eu razáo para chamar cíclica a esta colecs;áo de A ilusáo e o vazio universais.
sonetos? Náo tem sido este o movimento das ideias, a evo-
lus;áo do pensamento criador na segunda metade do nosso O Nirvana é o céu do budismo, a religiáo mais filosófica e
século? menos fantasmagórica inventada pelos homens. É por este
Quando escreveu o primeiro soneto da quarta série (1880-4) motivo que o budismo atrai hoje em día todos os espíritos
a um tempo racionalistas e místicos, desta época em tudo
]á sossega, depois de tanta !uta, semelhante aalexandrina, menos no volume do saber posi-
]á me descansa em paz o corafáO ... tivo que já se náo compadece com muitas das teorías sobre

8 Trata-se dos poemas «Os cacivos», «Os vencidos», «Encre sombras»,


Antero de Quental resolveu destruir todas as suas poesías «Hino da manhá» e «A fada negra», náo incluídos na prcseme ediyáo.
lúgubres. Sentía remorsos por alguma vez ter estado numa dis- A' nossa decisáo baseia-se, mais urna vez, no trabalho de Fernando Pes-
soa editor-tradutor. No seu espólio náo encomramos nenhum esboyo de
posis;áo de animo que agora considerava com horror. Enten- traduyáo desees poemas. lsto leva-nos a conjccturar que, pelo menos na
día que esses versos tétricos náo podiam consolar ninguém, ediyáo dos sonetos, estes poemas náo ti nham sido contemplados.

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que os neoplatónicos especulavam. A teoría da Substancia morte, idealizada agora e tornada luminosa e apetecível por
levou-os a eles a urna conceps;áo do Ser que produziu o mito essa idealizas;áo.
do Verbo cristáo, encarnado popularmente em Jesus Cristo. Leiam-se os dois sonetos Redenráo, talvez os mais belos
Ora hoje rudo isso vale apenas como documento histórico, de todo o livro, e compreender-se-á melhor o que fica dito.
e, por paradoxal que isto pares;a, o Náo-Ser é, segundo a Leia-se o Elogio da Marte
metafísica contemporanea, a essencia de rudo o que existe.
O Absoluto é o Nada. O Universo, a realidade inteira, sáo Dormirei no teu seio inalterável
modalidades, aspectos fugitivos, que só se tornam verdades Na comunháo da paz universal,
racionais quando nos aparecem despidas de todos os aciden- Marte libertadora e inviolável!
tes. E como é pelos acidentes apenas que n6s, distinguindo-as,
as conhecemos, a realidade verdadeiramente e em si é Nada. e ver-se-á quanto estamos longe do desespero trágico de
Religiosamente, Nada é igual a Nirvana; e o budismo é a outros anós. A tempes.tade acalmou.
única religiáo que atingiu esta conclusáo, sumária do pen-
samento científico moderno. O Nirvana é esse estado em Na esfera do invisível do intangível
que os seres, despindo-se de rodas as suas modalidades e aci- Sobre desertas, vácuo, soledade,
dentes, de todas as condis;óes de realidade, condis;óes que os Voa e paira o espírito impassível
limitam distinguindo-os entre si, adquirem a náo-realidade
_(o náo-contingente) e com ela a existencia absoluta e a abso- presidindo aevolu<;:áo dos seres (v. o soneto Evolufáo) desde
luta liberdade. Essa liberdade é o tipo e a essencia da vida a rocha até ao homem, evolu<;:áo que seria absolutamente
espiritual; e o Nirvana, puro Náo-Ser para a inteligencia, inexpressiva se náo tivesse um destino, um fim, um ideal.
é, para o sentimento moral, o símbolo e o veículo de roda A teoría do progresso indefinido é, com efeito, racional-
a perfeis;áo e virtude: radicalmente negativo na esfera da mente absurda. Esse destino, para os neo-budistas, é o Nada
razáo, é, na esfera do sentimento, absolutamente afirmativo. transcendente; esse ideal é a Liberdade. A existencia está
O pessimismo torna-se desta forma um optimismo gigan- pois consagrada racionalmente: falta consagrá-la sentimen-
tesco; toda a inércia é condenada, e o sistema das coisas, talmente. Falta ainda ao sistema um medianeiro: é o Amor.
agitando-se, movendo-se na direc<;:áo do aniquilamento final,
move-se e agita-se no sentido de urna liberdade evolutiva- Porém o cora[áo, Jeito valente
mente progressiva até atingir a plenirude. O Universo é urna Na escala da tortura repetida,
grande vida que tem, no termo, o termo de todas as vidas - a E no uso do penar tornado crente,

32 33
Respondeu: Desta altura vejo o Amor! cogitac;:óes, o cristianismo, como directo herdeiro do hele-
Viver náo foi em váo, se isto a vida, nismo, há-de eternamente satisfazer melhor os cépticos e os
Nem foi demais o desengano e a dor. naturalistas, cujo número é e foi sempre infinitamente maior,
entre os europeus.
O Universo está pois construído e santificado na mente do «Um helenismo coroado por um budismo» eis a fórmula
poeta e na razáo do filósofo. Oir-se-á portanto que a quimera com que mais de urna vez Antera de Quental me tem expri-
de que a princípio falámos ficou desvendada, o problema mido o seu pensamento - a sua quimera! Quimera, digo,
resolvido, conciliada a visáo com a razáo, e que nos náo resta porque a coroa náo nos pode assentar na cabec;:a, sob pena
mais do que fazermo-nos todos budistas? Suprema ilusáo! de a crivar de espinhos e de a deixar escorrendo sangue. Fun-
Creia-o embora o poeta: eu, como crítico, observando que o dar o princípio da acc;:áo na inércia sistemática, a realidade
pensamentG humano, desde que existe e trabalha, progride no náo-ser, a vida no aniquilamento, só é praticamente
sempre, com efeito, mas progride em trc~s estradas paralelas aceitável para o comtim de homens quando acreditem na
que, por serem paralelas, nunca podem encontrar-se, atrevo- metempsicose, dogma táo infantilmente mítico do budismo
-me a afirmar a irredutibilidade do misticismo, racional ou como v. g. o inferno do cristianismo. Ao cristianismo, porém,
imaginativamente concebido, e do naturalismo, ponderada tirando-se-lhe rudo quanto a imaginac;:áo semita deu para a
ou orgiacarnente realizado. Atrevo-me a dizer que estes dois sua formac;:áo, fica ainda o helenismo, isto é, um idealismo
feitios ou temperamentos sáo constitucionais do espírito mais ou menos panteísta e urna teoría moral- coisas que eu
humano, e que da coexistencia necessária deles resulta um náo afirmo que resistam a urna análise rigorosamente lógica,
terceiro - o céptico, o crítico, o que provém da comparac;:áo por isso mesmo que todo o nosso conhecimento racional
de ambos, e por isso náo tem cor, nem é afirmativo; dando- das coisas assenta apenas sobre axiomas do senso comum -
-se melhor com a natureza do que coma fantasmagoria, pre- ao passo que, em se tirando a metempsicose ao budismo, o
ferindo a harmonía mais ou menos equilibrada, ou mais ou budismo reduz-se a urna névoa de abstracc;:óes.
menos claudicante do helenismo, a orgía desenfreada dos Pobre humanidade, se se visse condenada á coroac;:áo
orientais; considerando a existencia como um compromisso, budista! Nós europeus, incapazes de nos sujeitarmos ao
o dever como urna condic;:áo da vida, mas também a fraqueza regime da contemplac;:áo inerte, sofreríamos as agonías, expe-
como urna condic;:áo dos homens. Estes tres temperamentos rimentaríamos as aflic;:óes do poeta que, tendo no peito um
sáo correspondentes a tipos eternos e irredutíveis da cons- corac;:áo activo, tem na cabec;:a urna imaginac;:áo mística, e,
ciencia humana; e, se o budismo é a melhor religiáo para para obedecer ao pensamento, tortura o corac;:áo, sem poder
um místico do século XIX, saturado de ciencia e derreado de também esmagá-lo sob o mando da inteligencia.

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Deste cruel estado vemos documentos que atestam a trans- avista, fundida a ponto de náo distinguir urna árvore de
formac;:áo sofrida pela ironía dos períodos anteriores. Que urn casal, nem um rio de um vale sem curso de água? Pois
nome se há-de dar ao sentimento que inspira os sonetos sucede assim nas campinas da história do pensamento
A Virgem Santíssima e o Na máo de Deus que fecha o volume? Eu humano, quando as olhamos das cumeadas luminosas da
por mim chamarei humorismo transcendente a essa liga íntima crítica. Veem-se as coisas na sua essencia, náo importam
da piedade e da ironia, e declaro que nunca vi coisa parecida os acidentes. O fetiche que o selvagem adora, a imagem
posta em verso. Em prosa, há mais de um período de Renan perante a qual se prostra o comum dos crentes, o arqui-
inspirado por um espírito semelhante, embora menos agudo. tecto universal dos pensadores livres, e finalmente esse quid
inominado a que a filosofia moderna chamou Inconsciente
O visáo, visáo triste e piedosa! - ·tuda isso é igualmente Deus: somente é Deus percebido
Pita-me assim calada, assim chorosa, pela imaginac;:áo infantil, Deus percebido pela inteligen-
E deixa-me sonhar a vida inteira! cia vulgar; Deus percébido pelo saber incipiente, e Deus
finalmente incompreendido, mas sentido, pela sabedoria.
A visáo é a Virgem Santíssima, e a poesia é táo sincera, táo E todas essas modalidades de urna mesma impressáo, rece-
verdadeira, táo cheia de piedade e unc;:áo, que eu sei de mais bida e representada de forma diversa, consoante a natureza
de um livro de rezas ande andam cópias escritas. e o estado de educac;:áo dos homens, sáo igualmente verda-
deiras, igualmente santas e igualmente humorísticas, para
Dorme o teu sono, corafáo liberto, aquele que tem corac;:áo para sentir as coisas por dentro, e
Dorme na máo de Deus eternamente! olhos para as ver de fora - objectivamente, como os ale-
máes dizem, e nós diremos críticamente.
U m monge cristáo escreveria isto. E Antero de Quental Eis aí a suprema liberdade do espírito, o Nirvana apenas
nem é cristáo, nem ere em Deus, nem na Virgem, segundo intelectual, a que eu prefiro chamar impassibilidade subjec-
o sentido ordinário da palavra crer. tiva: um estado que permite compreender todas as coisas,
Blasfemar era bom noutros tempos; para a ironía também analisando-as e classificando-as, sem todavía nos transmitir
a idade passou; finalmente para o exercício literário nunca se essa espécie de frialdade de corac;:áo, própria dos naturalis-
inclinou a pena que o poeta molhou sempre no seu sangue. tas quando estudam urna rocha, urna planta ou um animal.
Como explicar, pois, o fenómeno? O filósofo, impassível ao analisar e classificar os fenómenos
Por acaso subiu já o leitor ao cume de um monte sufi- do espírito humano, h á-de misturar ao sorriso que pro-
cientemente alto para que toda a paisagem lhe aparecesse vocam todas as vaidades e ilusóes, o amor que merecem

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todos os sentimentos ingénuos e fundamentalmente bons; lli
há-de aliar a compreensáo da nulidade extrínseca das coisas,
a compreensáo da sua excelencia intrínseca; exigindo que Quem diante desees versos náo sentir elevar-se-lhe o espírito,
o homem seja activo, porque a actividade é boa por ser como numa orac¡:áo, aquela espécie de Deus que é compatível
indispensável a saúde do espírito, embora os objectos da com o seu temperamento ou com o estado de educac¡:áo do
actividade sejam as mais das vezes írritos e nulos, quando seu .p ensamento, é por que tem dentro do peito, no lugar do
considerados em si próprios e isoladamente. corac¡:áo, um seixo polido e frio. Quem, no meio do lidar da
E eis aí as razóes porque eu n áo so u budista ... n em vida, roc¡:ando os brac¡:os pelas arestas cortantes que a eric¡:am
Amero de Quenral o é, embora julgue se-lo. A evoluc;:áo de ángulos, pausar o olhar da alma sobre um destes sonetos
dolorosa que terminou como seu último soneto, esta longa e·náo sentir o que os sequiosos sentem ao encontrarem um
e tempestuosa viagem através do mar tenebroso da fantasía arroio de água límpida, é porque tem a alma feita apenas de
metafísica, parece ter concluído. A idade, calvez, acima de egoísmo. Quem, emergindo dos montóes de papelada que as
rudo, trouxe ao espírito do poeta urna paz iluminada de imprensas vomitam diariamente, deitar os olhos sobre estas
bondade e sabedoria, e como a sua alma é sá e a sua inte- páginas, e náo sentir o deslumbramenro que os diamantes
ligencia firme e sempre activa, é mais que provável q ue o produzem, é porque a sua vista se embaciou com o exame
declinar da vida de Antera de Quental enriquec¡:a o pecúlio dos livros grosseiros em todo o sentido, e a sua língua perdeu
por sinal bem pobre da filosofia portuguesa com aigum o hábito de faJar portugues.
trabalho táo digno de se conservar na memória dos tempos, Um dos nossos mais queridos amigos, um dos que conhe-
como estes Sonetos que sáo as amargas flores de urna moci- cem de perro Anteco de Quenral- e somente o conhece
dade. Esse trabalho, porém, náo será um catecismo budista, quem com ele viveu largo tempo na inrimidade- interroga-
náo pode ser nenhuma revelac¡:áo milagrosa do verdadeiro -me geralmente deste modo: «E santo Antera, como vai?»
sistema, porque a sabedoria nos dizque toda a pretensáo Di-lo com a convicc¡:áo queme dos artistas, mas eu, que
de Verdade é ilusória, pois sendo nós, a nossa inteligencia, o náo sou, tenho a por embargos, porque a santidade náo
os nossos pensamentos, simples e fugitivas contingencias, é planta adequad a ao clima do nosso tempo. Exige urna
é loucura pensar que jamais possamos definir o Absoluto. porc¡:áo de sentimento ingénuo que já náo há nos ares que
Cada qua! sente-o a seu modo, segundo o seu tempera- respiramos.
mento; e sábio é aquele que se limita a registar as relac¡:óes · A vida contemplativa, porém, a vida asceta inclusivamente:
das coisas. essa virtude austera para consigo, tolerante para com rudo
e para com todos; esse observar constante de si próprio e o

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dispensar de um sorriso sempr~ bom, emboca indiferente
com frequencia, aos que alguma vez o rodeiam; a caridade,
o amor, a abnega¡¡:áo, as tenta¡¡:óes, as crises, as lágrimas, as
afli¡¡:óes, as dúvidas cruciantes e as dores angustiosas: rudo o 1860- 1862
que, reunido, forma urna alma mística - tudo isso mora na
alma deste poeta arrebatada pela visáo inextinguível do Bem.

Só no meu corafáO, que sondo e mefO,


Náo sei que voz, que eu mesmo desconhefO,
Em segredo protesta e afirma o Bem.

E para nada faltar a este místico, anacronicamente perdido


no meio do burburinho de urn século activo até ademencia,
tem tarnbém urna fé ardente - urna fé budista. Somente o
seu Deus, Deus sern vontade, sem inteligencia e sem cons-
ciencia, é, para nós outros, a quem sáo vedados os mistérios
da metafísica budista, igual a coisa nenhuma.
Este homem, fundamentalmente bom, se tivesse vivido
no século VI ou no século XIII, seria urn dos companheiros
de S. Bento ou de S. Francisco de Assis. No século XIX é urn
excentrico, mas desse feitio de excentricidade que é indis-
pensável, porque a todos os tempos foram indispensáveis os
hereges, a que hoje se chama dissidemes.
Oliveira Martins

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IGNOTO DEO

Que beleza mortal se te assemelha,


Ó sonhada visáo desta alma ardente,
Que reflectes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?

O mUndo é grande - e esta ansia me aconselha


A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
Mas a ara só lhe encontro . .. nua e velha . . .

Náo é mortal o que eu em ti adoro.


Que és tu aquí? olhar de piedade,
Gota de mel em ta~ de venenos ...

Pura essencia das lágrimas que choro


E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visáo, no céu ao menos!

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LAMENTO AM . C.

U m dilúvio de luz caí da montanha: Pos-te Deus sobre a fronte a máo piedosa:
Eis o dia! eis o sol! o esposo amado! O que fada o poeta e o soldado
Onde há por toda a terra um só cuidado Volveu a ti o olhar, de amor velado,
Que náo dissipe a luz que o mundo banha? E disse-te: «vai, filha, se formosa!»

Flor a custo medrada em erma penha, E tu, descendo.na onda harmoniosa,


Revoleo mar ou golfo congelado, Pousaste oeste solo angustiado,
Aonde há ser de Deus táo olvidado Estrela envolta num claráo sagrado,
Para quem paz e alívio o céu náo tenha? Do teu límpido olhar na luz radiosa . ..

Deus é Pai! Pai de toda a criatura: Mas eu .. . posso eu acaso merecer-te?


E a todo o ser o seu amor assiste: Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado,
De seus filhos o mal sempre é lembrado ... Anjo! deu-te o Senhor um mundo aparte.

Ah! se Deus a seus filhos dá ventura E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
N esta hora santa ... e eu só posso ser triste . .. Sem poder mais... a mimo que me há dado?
Serei filho, mas filho abandonado! Voz, que te cante, e urna alma para amar-te!

44 45
A
SANTOS VALENTE TORMENTO DO IDEAL

Estreita é do prazer na vida a tas:a: Conheci a Beleza que náo marre


Largo, como o oceano é largo e fundo, E fiquei triste. Como quem da serra
E como ele em venturas infecundo, Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
O cálix amargoso da desgras;a. E o mar, ve tuda, a maior nau ou torre,

E contudo nossa alma, quando passa M inguar, fundir-se, sob a luz que jorre;
Incerta peregrina, pelo mundo, Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Prazer só pede a vida, amor fecundo, Perder a cor, bem como a nuvem que erra
É com essa esperans;a que se abras;a. Ao por do sol e sobre o mar discorre.

É leí de Deus este aspirar imenso ... Pedindo aforma, em váo, a ideia pura,
E contudo a ilusáo impós a vida, Tropes;o, em sombras, na matéria dura,
E manda buscar luz e dá-nos treva! E enconrro a imperfeis;áo de quanto existe.

Ah! se Deus acendeu um foco intenso Recebi o baptismo dos poetas,


De amor e dor em nós, na ardente lida, E assentado entre as formas incompletas
Porque a miragem cría ... ou porque a leva? Para sempre fiquei pálido e triste.

46 47
A
ASPIRAC,:AO FLÓRIDO TELES

Meus dias váo correndo vagarosos Se comparo poder ou ouro ou fama,


Sem prazer e sem dor, e até parece Venturas que em si t<!m oculto o dano,
Que o foco interior já desfalece Com aqueJe outro afecto soberano,
E vacila com raios duvidosos. Que amor se diz e é luz de pura chama,

É bela a vida e os anos sáo formosos, Vejo que sáo bem como arteira dama,
E nunca ao peito amante o amor falece ... Que sob honesto riso esconde o engano,
Mas, se a beleza aqui nos aparece, E o que as segue, como homem leviano
Logo outra lembra de mais puros gows. Que por um váo prazer deixa quem o ama.

Minh' alma, ó Deus! a outros céus aspira: Nasce do orgulho aqueJe estéril gow
Se um momento a prendeu mortal beleza, E a glória dele é cousa fraudulenta,
É pela eterna pátria que suspira ... Como quem na vaidade tem a palma:

Porém do pressentir dá-me a certeza, Tem na paixáo seu brilho mais formoso
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira, E das paixóes também sorne-o a tormenta .. .
Eu sempre bendirei esta tristeza! Mas a glória do amor ... essa vem d'alma!

48 49
SALMO AM.C.

Esperemos em Deus! Ele há tomado No céu, se existe um céu para quem chora,
Em suas máos a massa inerte e fria Céu, para as mágoas de quem sofre tanto ...
Da matéria impotente e, num só dia, Se é lá do amor o foco, puro e santo,
Luz, movimento, ae<¡:áo, tudo lhe há dado. Chama que brilha, mas que náo devora ...

Ele, ao mais pobre de alma, há tributado NO céu, se umá alma nesse espa~o mora,
Desvelo e amor: ele conduz avia Que a prece escura e enxuga o nosso pranto ...
Segura quem lhe foge e se extravia, Se há Pai, que estenda sobre nós o manto
Quem pela noite andava desgarrado. Do amor piedoso ... que eu náo sinto agora ...

E a mim, que aspiro a ele, a miro, que o amo, No céu, ó virgem! findaráo meus males:
Que anseio por mais vida e maior brilho, Hei-de lá renascer, eu que pare~o
Há-de negar-me o termo deste anseio? Aqui ter só nascido para dores.

Buscou quem o náo quis: e a mim, que o chamo, Ali, ó lírio dos celestes vales!
Há-de fugir-me, como a ingrato filho? Tendo seu fim, teráo o seu come~o,
Ó D eus, meu pai e abrigo! espero! ... eu creio! Para náo mais findar, nossos amores.

50 51
A A
JOÁO DE DEUS ALBERTO TELES

Se é lei, que rege o escuro pensamento, Só! - Ao ermita sozinho na montanha


Ser vá toda a pesquisa da verdade, Visita-o Deus e dá-lhe confianya:
Em vez da luz achar a escuridade, No mar, o nauta, que o tufáo balanya,
Ser urna queda nova cada invento: Espera um sopro amigo que o céu tenha ...

É lei também, embora cru tormento, Só! ..:.. Mas quem se assentou em riba estranha,
Buscar, sempre buscar a claridade, Longe dos seus, lá tem inda a lembranya;
E só ter como certa realidade E Deus deixa-lhe ao menos a esperanya
O que nos mostra claro o entendimento. Aoque anoite soluya em erma penha . ..

O que há-de a alma escolher, em tanto engano? Só! - Náo o é quem na dor, quem nos cansayos,
Se urna hora ere de fé, logo duvida: Tem um la<¡:o que o prenda a este fadário,
Se procura, só acha ... o desatino! Urna crenya, um desejo ... e inda um cuidado ...

Só Deus pode acudir em tanto dano: Mas cruzar, com desdém, inertes brayos,
Esperemos a luz duma outra vida, Mas passar, entre turbas, solitário,
Seja a terra degredo, o céu destino. Isto é ser só, é ser abandonado!

52 53
A
J. FELIX DOS SANTOS AM. C.

Sempre o futuro, sempre! e o presente Porque descres, mulher, do amor, da vida?


Nunca! Que seja esta hora em que se existe Porque esse Hermon transformas em Calvário?
De incerteza e de dor sempre a mais triste, Porque deixas que, aos poucos, do sudário
E só farte o desejo um bem ausente! Te apene o seio a dobra humedecida?

Ai! que importa o futuro, se inclemente Que visáo te fugiu, que assim perdida
Essa hora, em que a esperan<¡:a nos consiste, Buscas em váo neste ermo solitário?
Chega ... é presente . . . e só ador assiste? .. . Que signo obscuro de cruel fadário
Assim, qual é a esperanya que náo mente? Te faz trazer a fronte ao cháo pendida?

Desventura o u delírio? ... O que procuro, Nenhum! intacto o bem em ti assiste:


Se me foge, é miragem enganosa, Deus, em penhor, te deu a formosura:
Se me espera, p ior, espectro impuro ... Benc;:áos te manda o céu em cada hora.

Assim a vida passa vagarosa: E descres do viver? . .. E eu, pobre e triste,


O presente, a aspirar sempre ao futuro: Que só no teu olhar leio a ventura,
O futuro, urna sombra mentirosa. Se tu descres, em que hei-de eu crer agora?

54 55
A A
ALBERTO SAMPAIO GERMANO MEIRELES

Náo me faJes de glória: é outro o altar Só males sáo reais, só dor existe:
Onde queimo piedoso o meu incenso, Prazeres só os gera a fantasía:
E animado de fogo mais intenso, Em nada, um imaginar, o bem consiste,
De fé mais viva, vou sacrificar. Anda o mal em cada hora e instante e dia.

A glória! pois que há nela que adorar? Se buscamos .o que é, o que devia
Fumo, que sobre o abismo anda suspenso ... Por natureza ser náo nos assiste;
Que vislumbre nos dá do amor imenso? Se fiamos num bem, que a mente cria,
Esse amor que ventura faz gozar? Que ourro remédio há aí senáo ser triste?

Há outro mais perfeito, único eterno, Oh! quem tanto pudera que passasse
Farol entre ondas tormentosas firme, A vida em sonhos só, e nada vira ...
De imoto brilho, poderoso e terno ... Mas, no que se náo vé, labor perdido!

Só esse hei-de buscar, e confundir-me Quem fora táo di toso que olvidasse ...
Na esséncia do amor puro, sempiterno ... Mas nem seu mal com ele entáo dormira,
Quero só nesse fogo consumir-me! Que sempre o mal pior é ter nascido!

56 57
AM . C. ADAMICOS

N áo busco nesta vida glória ou fama: Em váo lutamos. Como névoa baya,
Das turbas que me importa o váo ruído? A incerteza das cousas nos envolve.
Hoje, deus ... e amanhá, já esquecido Nossa alma, em quanto cria, em quanto volve,
Como esquece o claráo de extin ta chama! Nas suas próprias redes se embara¡¡:a.

Foco incerto, que a luz já mal derrama, O pensamento,' que mil planos traya,
Tal é essa ventura: eco perdido, É vapor que se esvai e se dissolve;
Quanto mais se chamou, mais escondido E a vontade ambiciosa, que resolve,
Ficou inerte e mudo avoz que o chama. Como onda entre rochedos se espeda¡¡:a.

Dessa coroa é cada flor um engano, Filhos do Amor, nossa alma é como um hino
É miragem em nuvem ilusória, A luz, aliberdade, ao bem fecundo,
É mote váo de fabuloso arcano. Prece e clamor dum pressentir divino;

Mas coroa-me tu; na fronte inglória Mas num deserto só, árido e fundo,
Cinge-me tu o lo uro soberano . .. Ecoam nossas vozes, que o Destino
Verás, verás entáo se amo essa glória! Paira mudo e impassível sobre o mundo.

58 59
A UM CRUCIFIXO DESESPERAN<;:A

Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros bra<;:os Vai-te na asa negra da desgra¡;:a,
E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó creme, Pensamento de amor, sombra duma hora,
O horizonte futuro e viste, em tua mente, Que abracei com delírio, vai-te, embora,
Um alvor ideal banhar esses espa<;:os! Como nuvem que o vento impele .. . e passa.

Porque morreu sem eco o eco de teus passos, Que arrojemos de nós quem mais se abra¡;:a,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente? Com mais ansia, a nossa alma! e quem devora
Morreste . .. ah! dorme em paz! náo volvas, que descrem e Dessa alma o sangue, com que mais vigora,
Arrojaras de novo acampa os membros lassos ... Como amigo comungue a mesma ta¡;:a!

Agora, como entáo, na mesma terra erma, Que seja sonho apenas a esperan¡;:a,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma, Enquanto a dor eternamente assiste,
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário ... E só engane nunca a desventura!

E ago ra, como entáo, viras o mundo exangue, Se em silencio sofrer fora vingan<;:a! ...
E ouviras perguntar- de que serviu o sangue Envolve-te em ti mesma, ó alma triste,
Com que cegaste, ó C risto, as urzes do Calvário? - Talvez sem esperan<;:a haja ventura!

60 61
BEATRICE 1862- 1866

Depois que día a día, aos poucos desmaiando,


Se foi a nuvem d' o uro ideal que eu vira erguida;
Depois que vi descer, baixar no céu da vida
Cada estrela e fiquei nas trevas laborando:

Depois que sobre o peito os brac;:os apenando


Achei o vácuo só, e tive a luz sumida
Sem ver já onde olhar, e em todo vi perdida
A flor do meu jardim, que eu mais andei regando:

Retirei os meus pés da senda dos abrolhos,


Virei-me a outro céu, nem ergo já meus olhos
Senao aestrela ideal, que a luz d'amor contém ...

Náo temas pois - Oh vem! o céu é puro, e calma


E silenciosa a terra, e doce o mar, e a alma . . .
A alma! nao a ves tu? mulher, mulher! oh vem!

62
AMOR VIVO

Amar! mas dum amor que tenha vida ...


Náo sejam sempre tímidos harpejos,
Náo sejam só delírios e desejos
Duma douda cabes;a escandecida ...

Amor que viv~ e brilhe! luz fundida


Que penetre o meu ser - e náo só beijos
Dados no ar - delírios e desejos -
Mas amor ... dos amores que tem vida ...

Sim, vivo e quente! e já a luz do dia


Náo virá dissipá-lo nos m eus bras;os
Como névoa da vaga fantasia ...

a
Nem murchará do sol chama erguida ...
Pois que podemos astros dos espas;os
Contra uns débeis amores ... se tem vida?

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VISITA PEQUEN INA

Adornou o meu quarto a flor do cardo, Eu bem sei que te chamam pequenina
Perfwnei-o de almíscar recendente; E ténue como o véu solto na dan<;a,
Vesti-me com a púrpura fulgente, Que és no juízo apenas a crianra,
Ensaiando meus cantos, como um bardo: Pouco mais, nos vestidos, que a menina .. .

Ungi as máos e a face com o nardo Que és o regato de água mansa e fina,
C rescido nos jardins do Oriente, A folhinha do til que se balan~a,
A receber com pompa, dignamente, O peito que em correndo logo cansa,
Misteriosa visita a quem aguardo. A fronte que ao sofrer logo se inclina ...

Mas que filha de reis, que anjo ou que fada Mas, filha, lá nos montes onde andei,
Era essa que assim a mim desda, Tanto me enchi de angústia e de receio
Do meu casebre ahúmida pousada? ... Ouvindo do infinito os fundos ecos,

Nem princesas, nem fadas. Era, flor, Que náo quero imperar nem já ser rei
Era a tua lembran~a que baria Senáo tendo meus reinos em teu seio
As portas de ouro e luz do meu amor! E súbditos, crian~a, em teus bonecos!

66 67
A SULAMITA SONHO ORIENTAL

Ego dormio, et cor meum vigilat.


CÁNTICO DOS CÁNTICOS
Sonho-me as vezes rei, nalguma ilha,
Quem anda lá por fora, pela vinha, Muito longe, nos mares do Oriente,
Na sombra do luar meio encoberro, Onde a noite é balsamica e fulgente
Subtil nos passos e espreitando incerto, E a lua cheia sobre as águas brilha ...
Com brando respirar de criancinha?
O aroma da nÍ.agnólia e da baunilha
Um sonho me acordou ... náo sei que tinha ... Paira no ar diáfano e dormente ...
Pareceu-me semi-lo aqui táo peno .. . Lambe a orla dos bosques, vagamente,
Seja alta noite, seja num deserto, O mar com finas ondas de escumilha . . .
Quem ama até em sonhos adivinha ...
E enquanto eu na varanda de marfim
Mo<;as da minha terra, ao meu amado Me encosto, absorto num cismar sem fim,
Correi, dizei-lhe que eu dormia agora, Tu, meu amor, divagas ao luar,
Mas que pode ir contente e descansado,
Do profundo jardim pelas clareiras,
Pois se táo cedo adormeci, conforme Ou descansas debaixo das palmeiras,
É meu costume, olhai, dormia embora, Tendo aos pés um leáo familiar.
Porque o meu cora<;áo é que náo darme ...

68 69
QUINZEANOS IDÍLIO

Eu amo a vasta sombra das montanhas, Quando nós vamos ambos, de máos dadas,
Que estendem sobre os largos continentes Colher nos vales lírios e boninas,
Os seus bras:os de rocha negra, ingentes, E galgamos dum fólego as colinas
Bem como bras:os colossais de aranhas. Dos rocios da noite inda orvalhadas:

Dali o nosso olhar ve táo estranhas Ou, vendo o m~, das ermas cumeadas,
Cousas, por esse céu! e táo ardentes Contemplamos as nuvens vespertinas,
Visóes, lá nesse mar de ondas trementes! Que parecem fantásticas ruínas
E as estrelas, dali, ve-as tamanhas! Ao longe, no horironte, amontoadas:

Amo a grandeza misteriosa e vasta ... Quantas vezes, de súbito, emudeces!


A grande ideia, como a flor e o vis:o Náo sei que luz no teu olhar flutua;
Da árvore colossal que nos domina ... Sinto tremer-te a máo, e empalideces . . .

Mas tu, crians:a, se tu boa . .. e basta: O vento e o mar murmuram oras:óes,


Sabe amar e sorrir . .. é pouco isso? E a poesía das cousas se insinua
Mas a ti só te q uero pequenina! Lenta e amorosa em nossos coras:óes.

70 71

L
NOCTURNO SONHO

Espírito que passas, quando o vento Sonhei - nem sempre o sonho é cousa vá -
Adormece no mar e surge a lua, Que um vento me levava arrebatado,
Filho esquivo da noite que flutua, Através desse espa<;o constelado
Tu só entendes bem o meu tormento . . . Onde urna aurora eterna ri lous;á ...

Como um canto longínquo - triste e lento - As estrelas, que guardarn a manhá,


Que voga e subtilmente se insinua, Ao verem-me passar triste e calado,
Sobre o meu corac;:áo, que tumultua, Olhavarn-me e diziam com cuidado:
Tu vertes pouco a pouco o esquecimento . .. Onde está, pobre amigo, a nossa irm á?

A ti confio o sonho em que me leva Mas eu baixava os olhos, receoso


Um instinto de luz, rompendo a treva, Que traíssem as grandes mágoas minhas,
Buscando, entre visóes, o eterno Bem. E passava furtivo e silencioso,

E tu entendes o meu mal sem nome, Nem ousava contar-lhes, as estrelas,


A febre de Ideal, que me consome, Contar as cuas puras irmázinhas
Tu só, Génio da noite, e mais ninguém! Quanto és falsa, meu bem, e indigna delas!

72 73
AMARITUDO ABNEGA<;:AO

Só por ti, astro ainda e sempre oculto, Chovam lírios e rosas no teu colo!
Sombra do Amor e sonho da Verdade, Chovam hinos de glória na tua alma!
Divago eu pelo mundo e em ansiedade Hinos de glória e adorac;:áo e calma,
Meu próprio corac;:áo em mim sepulto. Meu amor, minha pomba e meu consolo!

De templo em templo, em váo, levo o meu culto, De-te estrelas ~ céu, flores o solo,
Levo as flores duma íntima piedade. Cantos e aroma o ar e sombra a palma,
Vejo os votos da minha mocidade E quando surge a lua e o mar se acalma,
Receberem somente escárnio e insulto. Sonhos sem fim seu preguic;:oso rolo!

A beira do caminho me assentei ... E nem sequer te lembres de que eu choro ...
Escutarei passar o agreste vento, Esquece até, esquece, que te adoro .. .
Exclamando: assim passe quanto amei!- . E ao passares por mim, sem que me olhes,

Oh minh'alma, que creste na virtude! Possam das minhas lágrimas cruéis


O que será velhice e desalento, Nascer sob os teus pés flores fiéis,
Se isto se chama aurora e juventude? Que pises distraída ou rindo esfolhes!

74 75
APARIC::ÁO ACORDANDO

Um dia, meu amor (e talvez cedo, Em sonho, as vezes, se o sonhar quebranta


Que já sinto estalar-me o coras;áo!) Este meu váo sofrer, esta agonía,
Recordarás com dor e compaixáo Como sobe cantando a cotovia,
As ternas juras que te fiz a medo ... Para o céu a minh'alma sobe e canta.

Entáo, da casta alcova no segredo, Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,


Da lamparina ao trémulo claráo, Que ao mundo traz piedosa mais um dia ...
Ante ti surgirei, espectro váo, Canta o enlevo das cousas, a alegria
Larva fugida ao sepulcral degredo ... Que as penetra de amor e as alevanta ...

E tu, meu anjo, ao ver-me, entre gemidos Mas, de repente, um vento húmido e frio
E aRitos ais, estenderás os brayos Sopra sobre o meu sonho: um calafrio
Tentando segurar-te aos meus vestidos .. . Me acorda. - A noite é negra e muda: a dor

- «Üuve! espera!» - Mas eu, sem te escurar, Cá vela, comodantes, ao meu lado .. .
Fugirei, como um sonho, aos teus abrayos Os meus cantos de luz, anjo adorado,
E como fumo sumir-me-ei no ar! Sáo sonho só, e sonho o meu amor!

76 77
MÁE ... NA CAPELA

Máe- que adormente este viver dorido, Na capela, perdida entre a folhagem ,
E me vele esta noite de tal frio, O Cristo, lá no fundo agonizava ...
E com as máos piedosas ate o fio Oh! como íntimamente se casava
Do meu pobre existir, meio partido ... Com minha dor a dor daquela imagem!

Que me leve consigo, adormecido, Filhos ambos do amor, igual miragem


Ao passar pelo sítio mais sombrio ... Nos ros;ou pela fronte, que escaldava ...
Me banhe e lave a alma lá no rio Igual trais;áo, que o afecto mascarava,
Da clara luz do seu olhar querido ... Nos deu suplício as máos da vilanagem . . .

Eu clava o meu orgulho de homem - clava E agora, ali, enquanto da floresta


Minha estéril ciencia, sem receio, A sombra se infiltrava lenta e mesta,
E em débil criancinha me tornava, Vencidos ambos, mártires do Fado,

Descuidada, feliz, dócil também, Fitávamo-nos mudos - dor igual! -


Se eu pudesse dormir sobre o teu seio, Nem, dos dois, saberei dizer-vos qual
Se tu fosses, querida, a minha máe! Mais pálido, mais triste e m ais cansado ...

78 79
VELUTUMBRA MEA CULPA

Fumo e cisma. Os castelos do horizonte Náo duvido que o mundo no seu eixo
a
Erguem-se, tarde, e crescem, de mil cores, Gire suspenso e valva em harmonia;
E ora espalham no céu vivos ardores, Que o hornero suba e vá da noite ao dia,
Ora fumam, vulcóes de estranho monte ... E a homem vá subindo insecto e seixo.

Depois, que formas vagas vem defronte, Náo chamo a Deus tirano, nem me queixo,
Que parecem sonhar loucos amores? Nem chamo ao céu da vida noite fria:
Almas que váo, por entre luz e horrores, Náo chamo aexistencia hora sombría;
Passando a barca desse aéreo Aqueronte .. . Acaso, a ordem; nem a lei desleixo.

Apago o meu charuto quando apagas A Natureza é minha máe ainda ...
Teu facho, oh sol. .. ficamos todos sós ... É minha máe ... Ah, se eu aface linda
É nesta solidáo que me consumo! Náo sei sorrir; se estou desesperado;

Oh nuvens do Ocidente, oh causas vagas, Se nada há que me aquec:;:a esta frieza;


Bem vos entendo a cor, pois, como a vós, Se estou cheio de fel e de tristeza ...
Beleza e altura se me váo em fumo! É de crer que só eu seja o culpado!

80 81
O PALÁCIO DA VENTURA JURA

Sonho que sou um cavaleiro andante. Pelas rugas da fronte que medita ...
Por desertos, por sóis, por noite escura, Pelo olhar que interroga- e nao ve nada ...
Paladino do amor, busco anelante Pela miséria e pela mao gelada
O palácio encantado da Ventura! Que apaga a estrela que nossa alma fita . ..

Mas já desmaio, exausto e vacilante, Pelo estertor d~ chama que crepita


Quebrada a espada já, rota a armadura ... No último arranco duma luz minguada ...
E eis que súbito o avisto, fulgurante Pelo grito feroz da abandonada
Na sua pompa e aérea formosura! Que um momento de amante fez maldita ...

Com grandes golpes bato aporta e brado: Por quanto há de fatal, que quanto há misto
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado ... De sombra e de pavor sob urna lousa .. .
Abrí-vos, portas d' ouro, ante meus ais! Oh pomba meiga, pomba da esperans;a!

Abrem-se as portas d' o uro, com fragor ... Eu to juro, menina, tenho visto
Mas dentro encontro só, cheio de dor, Cousas terríveis - mas jamais vi cousa
Silencio e escuridáo - e nada mais! Mais feroz do que um riso de crians;a!

82 83
IDEAL ENQUANTO OUTROS COMBATEM

Aquela, que eu adoro, náo é feita Empunhasse eu a espada dos valentes!


De lírios nem de rosas purpurinas, Impelisse-me a acc;:áo, embriagado,
Náo tem as formas languidas, divinas Por esses campos onde a Marte e o Fado
Da antiga Vénus de cintura estreita ... Dáo a leí aos reis trémulos e as gentes!

Náo é a Circe, cuja máo suspeita Respirariam meus pulmóes contentes


Compóe filtros mortais entre ruínas, O arde fogo do circo ensanguentado ...
Nema Amazona, que se agarra as erinas Ou caíra radioso, amortalhado
Dum corcel e combate satisfeita ... Na fulva luz dos gládios reluzentes!

A mim mesmo pergunto, e náo atino Já náo vería dissipar-se a aurora


Com o nome que de a essa visáo, De meus inúteis anos, sem urna hora
Que ora amostra ora esconde o meu destino ... Viver mais que de sonhos e ansiedade!

É como urna miragem que entrevejo, Já náo veria em minhas máos piedosas
Ideal, que nasceu na solidáo, Desfolhar-se, urna a urna, as tristes rosas
Nuvem, sonho impalpável do Desejo ... Desta pálida e estéril mocidade!

84 85
DESPONDENCY DAS UNNENNBARE

D eixá-la ir, a ave, a quem roubaram Oh quimera, que passas embalada


Ninho e filhos e tudo, sem piedade ... Na onda dos meus sonhos dolorosos,
Que a leve o ar sem fim da soledade E roc¡:as co'os vestidos vaporosos
Ondeas asas partidas a levaram ... A minha fronte pálida e cansada!

Deixá-la ir a vela, que arrojaram Leva-te o ar d~ noite sossegada ...


Os tufóes pelo mar, na escuridade, Pergunto em váo, com olhos ansiosos,
Quando a noite surgiu da imensidade, Que nome é que te dáo os ven turosos
Quando os ven tos do Sul se levantaram ... No teu país, misteriosa fada!

Deixá-la ir, a alma lastimosa, Mas que destino o meu! e que luz bac¡:a
Que perdeu fé e paz e confians:a, A desta aurora, igual ado sol pasto,
A mane queda, amane silenciosa... Quando só nuvem lívida esvoac¡:a!

Deixá-la ir, a nota desprendida Que nem a noite urna ilusáo consinta!
Dum canto extremo ... e a última esperans:a . .. Que só de longe e em sonhos te pressinta ...
E a vida .. . e o amor ... deixá-la ir, a vida! E nem em sonhos possa ver-te o rosto!

86 87
METEMPSICOSE UMAAMIGA

Ardentes filhas do prazer, dizei-me! Aqueles, que eu amei, náo sei que vento
Vossos sonhos quais sáo, depois da orgía? Os dispersou no mundo, que os náo vejo . . .
Acaso nunca a imagem fugidia Estendo os brac;:os e nas trevas beijo
Do que fostes, em vós se agita e freme? Visóes que a noite evoca o sentimento ...

Noutra vida e outra esfera, aonde geme Outros me cau~am mais cruel tormento
Outro vento, e se acende um outro día, Que a saudade dos mortos ... que eu invejo ...
Que carpo tínheis? que matéria fria Passam por mim, mas como que tem pejo
Vossa alma incendiou, com fogo estreme? Da minha soledade e abatimento!

Vós fostes nas florestas bravas feras, Daquela primavera venturosa


Arrastando, leoas ou panteras, Náo resta urna flor só, urna só rosa ...
De dentadas de amor um carpo exangue ... Tudo o vento varreu, queimou o gelo!

Mordei pois esta carne palpitante, Tu só foste fiel- tu, comodantes,


Feras feítas de gaze flutuante . . . Inda volves teus olhos radiantes ...
Lobas! leoas! sim, bebei meu sangue! Para ver o meu mal ... e escarnece-lo!

88 89
A UMAMULHER VOZ DO OUTONO

Para tristezas, para dor nasceste. Ouve tu, meu cansado coras;áo,
Podía a sorte por-te o bers;o estreito O que te diz a voz da Natureza:
Nalgum palácio e ao pé de régio leito, - «Mais te valera, nu e sem defesa,
Em vez deste areal onde cresceste: Ter nascido em aspérrima soidáo,

Podía abrir-te as flores - com que veste Tet gemido, ainda infante, sobre o cháo
As ricas e as felizes - nesse peito; Frío e cruel da mais cruel devesa,
Fazer-te .. . o que a Fortuna há sempre feíto ... Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Terias sempre a sorte que tiveste! Como embalou, no bers;o da Ilusáo!

Tinhas de ser assim ... Teus olhos fitos, Mais valera a tua alma visionária
Que náo sáo deste mundo e onde eu leio Silenciosa e triste ter passado
Uns mistérios táo tristes e infinitos, Por entre o mundo hostil e a turba vária,

Tua voz rara e esse ar vago e esquecido, (Sem ver urna só flor, das mil, que amaste)
Tudo me diz a mim, e assim o creio, Com ódio e raiva e dor ... que ter sonhado
Que para isto só tinhas nascido! Os sonhos ideais que tu sonhaste!» -

90 91
SEPULTURA ROMÁNTICA 1864- 1874

Ali, ande o mar quebra, num cacháo


Rugidor e monótono, e os ventas
Erguem pelo areal os seus lamentos,
Ali se há-de enterrar meu coras;áo.

Queimem-no os sóis da adusta solidáo


Na fornalha do estío, em dias lentos:
Depois, no inverno, os sopros violentos
Lhe revolvam em torno o árido cháo ...

Até que se desfas;a e, já tornado


Em impalpável pó, seja levado
Nos turbilhóes que o vento levantar ...

Com suas lutas, seu cansado anseio,


Seu louco amor, dissolva-se no seio
Desse infecundo, desse amargo mar!

92
A IDEIA

Pois que os deuses antigos e os antigos


Divinos sonhos por esse ar se somem,
E aluz do altar da fé, em Templo ou Dólmen,
A apagaram os ventos inimigos;

Pois que o Sinai se enubla e os seus pascigos,


Secos a míngua de água, se consomem,
E os profetas d ' outrora todos dormem
Esquecidos, em terra sem abrigos;

Pois que o céu se fechou e já náo desee


Na escada de Jacob (na de Jesus!)
Um só anjo, que aceite a nossa prece;

É que o lírio da Fé já náo renasce:


Deus tapou com a máo a sua luz
E ante os homens velou a sua face!

95
II III

Pálido Cristo, oh condutor divino! Fors:a é pois ir buscar outro caminho!


A custo agora a tua máo táo doce Lans:ar o arco de outra nova ponte
Incerta nos conduz, como se fosse Por onde a alma passe - e um alto monte
Teu grande coras:áo perdendo o tino . .. Aonde se abra a luz o nosso ninho.

A palavra sagrada do Destino Se nos negam aqui o páo e o vinho,


Na boca dos oráculos secou-se: Avante! é largo, imenso esse horiwnte .. .
A luz da sars:a ardente dissipou-se Náo, náo se fecha o mundo! e além, defronte,
Ante os olhos do vago peregrino! E em toda a parte há luz, vida e carinho!

Ante os olhos dos homens - porque o mundo Avante! os mortos ficaráo sepultos ...
Desprendido rolou das máos de Deus, Mas os vivos que sigam, sacudindo
Como urna cruz das máos dum moribundo! Como o pó da estrada os velhos cultos!

Porque já se náo le seu nome escrito Doce e brando era o seio de Jesus ...
Entre os astros ... e os astros, como ateus, Que importa? havemos de passar, seguindo,
Já náo querem mais lei que o infinito! Se além do seio dele houver mais luz!

96 97
IV V

Conquista pois sozinho o teu futuro, Mas a Ideia quemé? quem foi que a viu,
Já que os celestes guias te háo deixado, Jamais, a essa encoberta peregrina?
Sobre urna terra ignota abandonado, Quem lhe beijou a sua máo divina?
H omero - proscrito rei - mendigo escuro! Com seu olhar de amor quem se vestiu?

Se náo tens que esperar do céu (táo puro, Pálida imagem, que a água de algum río,
Mas táo cruel!) e o cora<;:áo magoado Reflectindo, levou ... incerta e fina
Sentes já de ilusóes desenganado, Luz, que mal bruxuleia pequenina ...
Das ilusóes do amigo amor perjuro; Nuvem, que trouxe o ar, e o ar sumiu ...

Ergue-te, entáo, na majestade estóica Estendei, estendei-lhe os vossos brayos,


Duma vontade solitária e altiva, Magros da febre dum sonhar profundo,
Num esfor<;:o supremo de alma heróica! Vós todos que a seguís nesses espa<;:os!

Faze um templo dos muros da cadeia, E entamo, oh alma triste, alma chorosa, 1
Prendendo a imensidade eterna e viva
No círculo de luz da tua Ideia!
Tu náo tens outra amante em todo o mundo
Mais que essa fria virgem desdenhosa!
¡
98 99
'
VI VII

Outra amante náo há! náo há na vida Oh! o noivado bárbaro! o noivado
Sombra a cobrir melhor nossa cabec;a, Sublime! aonde os céus, os céus ingentes,
Nem bálsamo mais doce, que adorme¡;:a Seráo leito de amor, tendo pendentes
Em nós a antiga, a secular ferida! Os astros por da'cel e cortinado!

Quer fuja esquiva, ou se ofere¡;:a erguida, As bodas do Desejo, embriagado


Como quem sabe amar e amar confessa, De ventura afina!! visóes ferventes
Quer nas nuvens se esconda ou apare¡;:a, De quem nos bra¡;:os vai de ideais ardentes
Será sempre ela a esposa prometida! Por espa¡;:os sem termo arrebatado!

Nossos desejos para ti, oh fria, Lá, por onde se perde a fantasía
Se erguem, bem como os bra¡;:os do proscrito No sonho da beleza; lá, aonde
Para as bandas da pátria, noite e día. A noite tem mais luz que o nosso dia;

Podes fugir ... nossa alma, delirante, Lá, no seio da eterna claridade,
Seguir-te-á através do infinito, Aonde Deus a humana VOZ responde;
Até voltar contigo, triunfante! É que te havemos de abra¡;:ar, Verdade!

100 101
A UM CRUCIFIXO

Lendo, passados 12 anos, o soneto da parte l.' que temo mesmo título

VIII Náo se perdeu teu sangue generoso,


Nem padeceste em váo, q uem quer que foste,
Lá! Mas aonde é la'? - Espera, Plebeu amigo, que amarrado ao poste
Corac¡:áo indomado! o céu, que anseia Morreste como vil e faccioso.
A alma fiel, o céu , o céu da Ideia,
Em váo o buscas nessa imensa esfera! Des~e sangue maldito e ignominioso
Surgiu armada urna invencível hoste .. .
O espac¡:o é mudo: a imensidade austera Paz aos homens e guerra aos deuses! - pos-te
D e balde noite e dia incendeia ... Em váo sobre um altar o vulgo ocioso ...
Em nenhum astro, em nenhum sol se alteia
A rosa ideal da eterna primavera! Do pobre que protesta foste a imagem:
Um povo em ti comeqa, um homem novo:
O Paraíso e o templo da Verdade, De ti data essa trágica linhagem .
Oh mundos, astros, sóis, constelac¡:óes!
Nenhum de vós o tem na imensidade ... Por isso nós, a Plebe, ao pensar nisto,
Lembraremos, herdeiros desse povo,
A ldeia, o sumo Bem, o Verbo, a Essencia, Que entre nossos avós se com a Cristo.
Só se revela aos homens e as nac¡:óes
No céu incorruptível da Consciencia!

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DIÁLOGO MAIS LUZ!

(A Guilherme de Azeved o)

A cruz dizia a terra onde assentava, Amem a noite os m agros crapulosos,


Ao vale obscuro, ao monte áspero e mudo: E os que sonham com virgens impossíveis,
-Que és tu, abismo e jaula, aonde tudo E os que inclinam, m udos e impassíveis,
Vive na dor e em !uta cega e brava? A borda dos abismos silenciosos . . .

Sempre em trabalho, condenada escrava, Tú, lua, com teus raios vaporosos,
Que fazes tu de grande e bom, contudo? Cobre-os, tapa-os e torna-os insensíveis,
Resignada, és só lodo informe e rudo; Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis,
Revoltosa, és só fogo e hórrida lava ... Como·aos longos cuidados dolorosos!

Mas a mim náo há alta e livre serra Eu amarei a santa madrugada,


Que me possa igualar! .. amor, firmeza, E o meio-dia, em vida refervendo,
Sou eu só: sou a paz, tu és a guerra! E a tarde rumorosa e repousada.

So u o espírito, a luz!... tu és tristeza, Viva e trabalhe em plena luz: depois,


Oh lodo escuro e vil! - Porém a terra Seja-me dado ainda ver, morrendo,
Respondeu: Cruz, eu sou a Natureza! O claro sol, amigo dos heróis!

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TESE E ANTÍTESE

11

Já náo sei o que vale a nova ideia, N um céu intemerato e cristalino


Quando a vejo nas ruas desgrenhada, Pode habitar talvez um Deus distante,
Torva no aspecto, aluz da barricada, Vendo passar em sonho cambiante
Como bacante após lúbrica ceia ... O Ser, como espectáculo divino.

Sanguinolento o olhar se lhe incendeia; Mas o hornero, na terra onde o destino


Respira fumo e fogo embriagada: O lans;ou, vive e agita-se incessante:
A deusa de alma vasta e sossegada Enche o ar da terra o seu pulmáo possante . . .
Ei-la presa das fúrias de M edeia! Cá da terra blasfema ou ergue um hino ...

Um século irritado e truculento A ideia encarna em peitos que palpitam:


Chama aepilepsia pensamento, O seu pulsar sáo chamas que crepitam,
Verbo ao estampido de pelouro e obus ... Paixóes ardentes como vivos sóis!

Mas a ideia é num mundo inalterável, Combatei pois na terra árida e bruta,
N um cristalino céu, que vive estável. . . Té que a revolva o remoinhar da luta,
Tu, pensamento, náo és fogo, és luz! Té que a fecunde o sangue dos heróis!

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JUSTITIA MATER PALAVRAS DUM CERTO MORTO

N as florestas solenes há o culto Há mil anos, e mais, que aquí estou morto,
Da eterna, íntima fon;:a primitiva: Posto sobre um rochedo achuva e ao vento:
Na serra, o grito audaz da alma cativa, Náo há como eu espectro macilento,
Do corac;:áo, em seu combate inulto: Nem mais disforme que eu nenhum aborto .. .

No espac;:o constelado passa o vulto Só o espírito vive: "vela absorto


Do inominado Alguém, que os sóis aviva: Num fixo, inexorável pensamento:
No mar ouve-se a voz grave e aflitiva «Morto, enterrado em vida!» o meu tormento
Dum Deus que luta, poderoso e inculto. É isto só .. ; do resto náo me importo . ..

Mas nas negras cidades, onde solta Que viví sei-o eu bem ... mas foi um dia,
Se ergue, de sangue madida, a revolta, Um dia só - no outro, a Idolatría
Como incendio que um vento bravo atic;:a, Deu-me um altar e um culto . .. ai! adoraram-me.

Há mais alta missáo, mais alta glória: Como se eu fosse alguém! como se a Vida
o a
combater, grande luz da história, Podesse ser alguém! - logo em seguida
Os combates eternos da Justic;:a! Disseram que era um Deus ... e amortalharam-me!

108 109
A UM POETA HINO A RAZÁO

Surge et ambula!

Tu, que dormes, espírito sereno, Razáo, irmá do Amor e da Jusric;a,


Posto asombra dos cedros seculares, Mais urna vez escura a minha prece.
Como um levita asombra dos altares, É a voz dum corac;áo que te apetece,
Longe da luta e do fragor terreno, Duma alma livre, só a ti submissa.

Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno, Por ti é que a poeira movedic;a


Afugentou as larvas tumulares .. . De astros e sóis e mundos permanece;
Para surgir do seio desses mares, E é por ti que a virtude prevalece.
U!U mundo novo espera só um aceno ... E a flor do heroísmo medra e vic;a.

Escura! é a grande voz das multidóes! Por ti, na arena trágica, as nac;óes
Sáo teus irmáos, que se erguem! sáo canc;óes ... Buscam a liberdade, entre claróes;
Mas de guerra ... e sáo vozes de rebate! E os que olham o futuro e cismam, mudos,

Ergue-te, pois, soldado do Futuro, Por ti, podem sofrer e n áo se abatem,


E dos raios de luz do sonho puro, Máe de filhos robustos, que combatem
Sonhador, faze espada de combate! Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

110 111
1874- 1880
HOMO

Nenhum de vós ao cerco me conhece,


Astros do espayo, ramos do arvoredo,
Nenhum adivinhou o meu segredo,
Nenhum inrerpretou a minha preceo oo

Ninguém sabe quem souo oo e mais, parece


Que há dez mil anos já, neste degredo,
Me ve passar o mar, ve-me o rochedo
E me contempla a aurora que alvoreceo oo

Sou um parto da Terra monstruoso;


Do húmus primitivo e tenebroso
Gerayáo casual, sem pai nem máeo oo

Misto infeliz de trevas e de brilho,


Sou calvez Satanás; - calvez um filho
Bastardo de Jeová;- talvez ninguém!

115
DISPUTA EM FAMÍLIA

Dixit imipiem in corde suo: non est Deus

II

Sai das nuvens, levanta afronte e escura Mas o velho tirano solitário,
O que dizem teus filhos rebelados, De cora~áo austero e endurecido,
Velho Jeová de longa barba hirsuta, Que um día, de enjoado ou distraído,
Solitário em teus Céus acastelados: Deixou matar seu filho no Calvário,

«- Cessou o império enfim da for~a bruta! Sorriu com rir estranho, ouvindo o vário
Náo sofreremos mais, emancipados, Tumultuoso coro e alarido
O tirano, de máo tenaz e astuta, Do povo insipiente, que, atrevido,
Que mil anos nos trouxe arrebanhados! Erguía a voz em grita ao seu sacrário:

«Enquanto tu dormías impassível, «- Vanitas vanitatum! (disse). É cerro


Topámos no caminho a liberdade Que o homem váo medita mil mudan~,
Que nos sorriu com gesto indefinível. .. Sem achar mais do que erro e desacerto.

~~Já provámos os frutos da verdade ... «Muito ames de nascerem vossos país
6 Deus grande, 6 Deus forte, ó Deus terrível, Dum barro vil, ridículas crian~,
Náo passas duma vá banalidade! -» Sabia eu rudo isso .. . e muito mais! - »

116 117
MORS LIBERATRIX O INCONSCIENTE

(A Bulháo Paro)

N a tua máo, sombrio cavaleiro, O Espectro familiar que anda comigo,


Cavaleiro vestido de armas pretas, Sem que pudesse ai nda ver-lhe o rosto,
Brilha urna espada feíta de cometas, Que urnas vezes encaro com desgosto
Que rasga a escuridáo, como um luzeiro. E outras muitas ansioso espreito e sigo,

Caminhas no teu curso aventureiro, É um espectro ~udo, grave, amigo,


Todo envolto na noite que projectas . .. Que parece a conversas mal disposto ...
Só o gládio de luz com fulvas betas Ante esse vulto, ascético e composto
Emerge do sinistro n evoeiro. Mil vezes abro a boca ... e nada digo.

- «Se esta espada que empunho é coruscante, Só urna vez ousei interrogá-lo:
(Responde o negro cavaleiro-andante) «Quem és (lhe perguntei com grande abalo)
É porque esta é a espada da Verdade. Fantasma a quem odeio e a quem amo?»

Firo mas salvo ... Prostro e desbarato, - «Teus irmáos (respondeu) os váos humanos,
Mas consolo . . . Subverto, mas resgato ... Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos .. .
E, sendo a Morte, sou a Liberdade.» Mas eu por mim náo sei como me chamo . . . »

11 8 119
MORS-AMOR ESTOICISMO

(A Luiz de Magalháes) (A Manuel Duane de Almeida)

Esse negro corcel, cujas passadas Tu que náo eres, nem amas, nem esperas,
Escuto em sonhos, quando a sombra desee, Espírito de eterna nega~áo,
E, passando a galope, me aparece Teu hálito gelou-me o cora~áo
Da noite nas fantásticas estradas, E destro~ou-me da alma as primaveras ...

Donde vem ele? Que regióes sagradas Atravessando regióes austeras,


E terríveis cruzou, que assim parece C heias de noite e cava escuridáo,
Tenebroso e sublime, e lhe estremece Como num sonho mau, só oi~o um náo,
Náo sei que horror nas erinas agitadas? Que eternamente ecoa entre as esferas . ..

Um cavaleiro de expressáo potente, -Porque suspiras, porque te lamentas,


Formidável, mas plácido, no porte, Cobarde coras;áo? Debalde intentas
Vestido de armadura reluzente, Opor aSorce a queixa do egoísmo ...

Cavalga a fera estranha sem temor: Deixa aos tímidos, deixa aos sonhadores
E o corcel negro diz: «Eu sou a Morte!» A esperan~a vá, seus váos fulgores . . .
Responde o cavaleiro: «Eu sou o Amor!» Sabe tu encarar sereno o abismo!

120 121
ANIMA MEA DIVINA COMÉDIA

(Ao Dr. José Falcáo)

Estava a Marte ali, em pé, diante, Erguendo os bra¡;:os para o céu distante
Sim, diante de mim, como serpente E apostrofando os deuses invisíveis,
Que dormisse na estrada e de repente Os homens clamam: - «Deuses impassíveis,
Se erguesse sob os pés do caminhante. A quem serve o destino triunfante,

Era de ver a fúnebre bacante! Porque é que nos criastes?! lncessante


Que torvo olhar! que gesto de demente! Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
E eu disse-lhe: «Que buscas, impudente, Dor, pecado, ilusáo, lutas horríveis,
Loba faminta, pelo mundo errante?» Num turbilháo cruel e delirante ...

- «Náo temas, respondeu (e urna ironia Pois náo era melhor na paz clemente
Sinistramente estranha, atroz e calma, Do nada e do que ainda náo existe,
Lhe torceu cruelmente a boca fria). Ter ficado a dormir eternamente?

Eu rtáo busco o teu corpo ... Era um troféu Porque é que para a dor nos evocastes?»
Glorioso de mais ... Busco a tua alma.»- Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Respondi-lhe: <<A minha alma já morreu!» Dizem: - «Homens! porque é que nos criastes?»

123
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ESPIRITUALISMO

II

Como um vento de morte e de ruína, Dorme entre os gelos, flor imaculada!


A Dúvida soprou sobre o Universo. Luta, pedindo um último daráo
Fez-se noite de súbito, imerso Aos sóis que ruem pela imensidáo,
O mundo em densa e álgida neblina. Ai-rastando u~a auréola apagada ...

Nem astro já reluz, nem ave trina, Em váo! Do abismo a boca escancarada
Nem flor sorri no seu aéreo berc;:o. Chama por ti na gélida arnplidáo ...
Um veneno subtil, vago, disperso, Sobe do poc;:o eterno, em turbilháo,
Empec;:onhou a criac;:áo divina. A treva primitiva conglobada ...

E, no meio da noite monstruosa, Tu morrerás também. Um ai supremo,


Do silencio glacial, que paira e estende Na noite universal que envolve o mundo,
O seu sudário, donde a morte pende, Há-de ecoar, e teu perfume extremo

Só urna flor humilde, misteriosa, No vácuo eterno se esvairá disperso,


Como um vago protesto da existencia, Como o alento final dum moribundo,
Desabrocha no fundo da Consciencia. Como o .último suspiro do Universo.

124 125
O CONVERTIDO ESPECTROS

(A Gon~ves Crespo)

Entre os filhos dum século maldito Espectros que velais, enquanto a custo
Tomei também lugar na ímpia mesa, Adorme<;:o um momento, e que inclinados
Onde, sob o folgar, geme a tristeza Sobre os meus sonos curtos e cansados
Duma ansia impotente de infinito. Me encheis as noites de agonía e susto! . ..

Como os outros, cuspi no altar avito Deque me vale a mim ser puro e justo,
U m rir feíto de fel e de impureza ... E entre combates sempre renovados
Mas, um día, abalou-se-me a firmeza, Disputar día a día a máo dos Fados
Deu-me um rebate o cora<;:áo contrito! Urna parcela do saber augusto,

Erma, cheia de tédio e de quebranto, Se a minh' alma há-de ver, sobre si fitos,
Rompendo os diques ao represo pranto, Sempre esses olhos trágicos, malditos!
Virou-se para Deus minha alma triste! Se até dormindo, com angústia imensa,

Amortalhei na fé o pensamento, Bem os sinto verter sobre o meu leito,


E achei a paz na inércia e esquecimento ... Urna a urna verter sobre o meu peito
Só me falta saber se Deus existe! As lágrimas geladas da descren<;:a!

126 127
A V IRGEM SANTÍSSIMA NOX
Cheia tÚ Grafa, Máe tÚ Misericórdia (A Fernando Leal)

Num sonho todo feito de incerteza, Noite, váo para ti meus pensamentos,
De nocturna e indizível ansiedade, Quando olho e vejo, aluz cruel do día,
É que eu vi teu olhar de piedade Tanto estérillutar, tanta agonia,
E (mais que piedade) de tristeza ... E inúteis tantos ásperos tormentos . ..

Náo era o vulgar brilho da beleza, Tu, ao menos, abafas os lamentos,


Nem o ardor banal da mocidade, Que se exalam da trágica enxovia .. .
Era outra luz, era outra suavidade O eterno Mal, que ruge e desvaría,
Que até nem sei se as há na natureza ... Em ti descansa e esquece, alguns momentos ...

Um místico sofrer ... urna ventura Oh! antes tu também adormecesses


Feita só do perdáo, só da ternura Por urna vez, e eterna, inalterável,
E da paz da nossa hora derradeira ... Caindo sobre o mundo, te esquecesses,

Ó visáo, visáo triste e piedosa! E ele, o mundo, sem mais lutar nem ver,
Fita-me assim calada, assim chorosa .. . Dormisse no teu seio inviolável,
E deixa-me sonhar a vida inteira! Noite sem termo, noite do Náo-ser!

128 129
EM VIAGEM QUIA JETERNUS

(A Joaquim de Araújo)

Pelo caminho estreito, aonde a custo Náo morreste, por mais que o brade agente
Se encontra urna só flor, ou ave, ou fonte, Urna orgulhosa e vá filosofia . ..
Mas só bruta aridez de áspero monte Náo se sacode assim táo facilmente
E os sóis e a febre do areal adusto, O jugo da divina tiranía!

Pelo caminho estrei to entrei sem susto Clamam em váo, e esse triunfo ingente
E sem susto encarei, vendo-os defronte, Com que a Razáo- coitada!- se inebria,
Fantasmas que surgiam do horizonte É nova forma, apenas, mais pungente,
A acometer meu cora<¡:áo robusto .. . Da tua eterna, trágica ironía.

Quem sois vós, peregrinos singulares? Náo, náo morreste, espectro! o Pensamento
Dor, Tédio, Desenganos e Pesares .. . Como dantes te encara, e és o tormento
Atrás deles a Morte espreita ainda .. . De quantos sobre os livros desfalecem.

Conhes;o-vos. Meus guias derradeiros E os que folgam na orgía ímpia e devassa


Sereis vós. Silenciosos companheiros, Ai! quantas vezes, ao erguer a tas;a,
Bem-vindos, pois, e tu, Morte, bem-vinda! Param, e estremecendo, empalidecem!

130 131
NO TURBILHÁO IGNOTUS

(A Jaime Batalha Reis) (A Salomáo Sáraga)

No meu sonho desfilam as visóes, Onde te escondes? Eis que em váo clamamos,
Espectros dos meus próprios pensamentos, Suspirando e erguendo as máos em váo!
Como um bando levado pelos vemos, Já a voz enrouquece e o cora~áo
Arrebatado em vastos turbilhóes ... Está cansado- e já desesperamos ...

Numa espiral, de estranhas contorsóes, e


Por céu, por mar terras procuramos
E donde saem gritos e lamentos, O Espíriro que enche a solidáo,
Vejo-os passar, em grupos nevoentos, E só a própria voz na imensidáo
Distingo-lhes, a espa~os, as fei~óes ... Fatigada nos volve ... e náo te achamos!

- Fantasmas de mim mesmo e da minha alma, Céus e terra, damai, aonde? aonde? -
Que me fitais com formidável calma, Mas o espírito amigo só responde,
Levados na onda turva do escarcéu, Em tom de grande tédio e pesar:

Quem sois vós, meus irmáos e meus algozes? - Náo vos queixeis, ó filhos da ansiedade,
Quem sois, visóes misérrimas e atrozes? Que eu mesmo, desde toda a eternidade,
Ai de mim! ai de mim! e quem so u eu?!. . . Também me busco a mim ... sem me encontrar!

132 133
NO CIRCO N IRVANA

(A Joáo de Deus) (A Guerra Junqueiro)

Muito longe daqui, nem eu sei quando, P ara além do Universo luminoso,
Nem onde era esse mundo, em que eu vivía . . . Cheio de formas, de rumor, de lida,
Mas táo longe ... que até dizer podía De for<¡:as, de desejos e de vida,
Que enquanto lá andei, andei sonhando ... Abre-se como um vácuo tenebroso.

Porque era rudo ali aéreo e brando, A onda desse m ar tumultuoso


E lúcida a existencia amanhecia ... Vem ali expiar, esmaecida . ..
E eu ... leve como a luz .. . até que um dia Numa imobilidade indefinida
U m vento me romou, e vi m rolando ... Termina ali o ser, inerte, ocioso ...

Caí e achei-me, de repente, envolto E quando o pensamento, assim absorto,


Em luta bestial, na arena fera, Emerge a custo desse mundo morto
Onde um bruto furor bramia solto. E torna a olhar as cousas naturais,

Sentí um monstro em mim nascer nessa hora, A bela luz da vida, ampla, infinita,
E achei-me de improviso feíto fera ... Só ve com tédio, em rudo quanto fita,
- É assim que rujo entre leóes agora! A ilusáo e o vazio universais.

134 135

lt
CONSULTA VISAO

(A Alberto Sampaio) (A ]. M.~ de Q ueiroz)

Chamei em volta do meu frio leito Eu vi o Amor - mas nos seus olhos bas:os
As memórias melhores de outra idade, Nada sorria já: só fixo e lento
Formas vagas, que as noites, com piedade, Morava agora ali um pensamento
Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito .. . D e dor sem trégua e de íntimos cansas:os.

E disse-lhes:- No mundo imenso e estreito Pairava, com¿ espectro, nos espas:os,


Valia a pena, acaso, em ansiedade Todo envolto num nimbo pardacento ...
Ter nascido? dizei-mo com verdade, Na atitude convulsa do tormento,
Pobres memórias que eu ao seio estreito ... Torda e retorcía os magros bras:os . ..

Mas elas perturbaram-se - coitadas! E arrancava das asas destros:adas


E empalideceram, contristadas, A urna e urna as penas maculadas,
Ainda a mais feliz, a mais serena ... Soltando a espas:os um solus:o fundo,

E cada urna delas, lentamente, Solus:o de ódio e raiva impenitentes ...


Com um sorriso mórbido, pungente, E do fantasma as lágrimas ardenres
Me respondeu: - Náo, náo valia a pena! Caíam lentamente sobre o mundo!

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1880- 1884
TRANSCENDENTALISMO

(A J. P. Oliveira Martins)

Já sossega, depois de tanta luta,


Já me descansa em paz o corac;:áo.
Caí na conta, en6m, de quanto é váo
O bem que ao Mundo e aSorte se disputa.

Penetrando, coÍn fronte náo enxuta,


No sacrário do templo da Ilusáo,
Só encontrei, com dor e confusáo,
Trevas e pó, urna matéria bruta ...

Nao é no vasto mundo - por imenso


Que ele parec;:a anossa mocidade -
Que a alma sacia o seu desejo intenso ...

Na esfera do invisível, do intangível,


Sobre desertos, vácuo, soledade,
Voa e paira o espírito impassível!

141
EVOLUC,::ÁO ELOGIO DA MORTE

(A Sanros Valenre) Morrer é ser iniciado.


ANTOLOGIA GRECA
Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,
Tronco o u ramo na incógnita floresta .. .
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo ... Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com forya, e acordo em susto.
Rugi, fera talvez, buscando abrigo Como se o esmágassem de repente,
Na caverna que ensombra urze e giesta; Assim me pára o cora<;áo robusto.
Ou, monstro primitivo, erguí a testa
No limoso paul, glauco pascigo ... Náo que de larvas me povoe a mente
Esse vácuo nocturno, mudo e augusto,
Hoje sou homem - e na sombra enorme Ou forceje a razáo porque afugente
Vejo, a meus pés, a escada multiforme, Algum remorso, com que encara a custo ...
Que desee, em espirais, na imensidade .. .
Nem fantasmas nocturnos visionários,
Interrogo o infinito e as vezes choro .. . Nem desfilar de espectros mortuários,
Mas, estendendo as máos no vácuo, adoro Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte ...
E aspiro unicamente aliberdade.
Nada! o fundo dum pos;o, húmido e momo,
Um muro de silencio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcrais da Morte.

142 143
II III

Na floresta dos sonhos, día a día, Eu náo sei quem tu és - mas náo procuro
Se interna meu dorido pensamento. (Talé a minha confianc;:a) devassá-lo.
Nas regióes do vago esquecimento Basta sentir-té ao pé de mim, no escuro,
Me conduz, passo a passo, a fantasía. Entre as formas da noite com quem falo.

Atravesso, no escuro, a névoa fria Através do silencio frío e obscuro


Dum mundo estranho, que povoa o vento, Teus passos vou seguindo, e, sem abalo,
E meu queixoso e incerto sentimento No cairel dos abismos do Futuro
Só das visóes da noite se confia. Me inclino a tua voz, para sondá-lo.

Que místicos desejos me enlouquecem? Por ti me engolfo no nocturno mundo


Do Nirvana os abismos aparecem Das visóes da regiáo inominada,
A meus olhos, na muda imensidade! A ver se fixo o teu olhar profundo ...

Nesta viagem pelo ermo espac;:o, Fixá-lo, compreende-lo, basta urna hora,
Só busco o teu encontro e o teu abrac;:o, Funérea Beatriz de máo gelada ...
Morte! irmá do Amor e da Verdade! Mas única Beatriz consoladora!

144 145
IV V

Longo tempo ignorei (mas que cegueira Que nome te darei, austera imagem,
Me trazia este espírito enublado!) Que avisto já num angulo da estrada,
Quem fosses tu, que andavas a meu lado, Quando me desmaiava a alma prostrada
Noite e dia, impassível companheira .. . Do cansas:o e do tédio da viagem?

Muitas vezes é cerro, na canseira, Em teus olhos ve a turba urna voragem,


No tédio extremo dum viver magoado, Cobre o rosto e recua apavorada .. .
Para ti levantei o olhar tu rbado, Mas eu confio em ti, sombra velada,
Invocando-te, amiga derradeira ... E cuido perceber rua linguagem .. .

Mas náo te amava entáo nem conhecia: Mais claros vejo, a cada passo, escritos,
Meu pensamenco inerte nada lia Filha da noite, os lemas do Ideal,
Sobre essa m uda fronte, austera e calma. Nos teus olhos profundos sempre fitos .. .

Luz íntima, afina! alumiou-me .. . Dormirei no teu seio inalterável,


Filha do mesmo pai, já sei teu nome, Na comunháo da paz universal,
Morte, irmá coeterna da minha alma! Morre libertadora e inviolável!

146 147
CON TEMPLA<;AO

(A Francisco Machado de Faria e Maia)

Sonho de olhos abertos, carninhando


VI Nao entre as formas já e as aparencias,
Mas vendo a face imóvel das essencias,
Só quem teme o Nao-ser é que se assusta Entre ideias e espíritos pairando ...
Com teu vasto silencio morruário,
Noite sem fim, espac¡:o solitário, Qu~ é o mundo ante mim? fumo ondeando,
Noite da Morre, tenebrosa e augusta ... Visóes sem ser, fragmentos de existencias ...
Urna névoa de enganos e impotencias
Eu nao: minh' alma humilde mas robusta Sobre vácuo insondável rastejando ...
Entra creme em teu átrio funerário:
Para os mais és um vácuo cinerário, E d' entre a névoa e a sombra universais
A mim sorri-me a tua face adusta. Só me chega um murmúrio, feito de ais . . .
É a queixa, o profundíssimo gemido
A mim seduz-me a paz santa e inefável
E o silencio sem par do Inalterável, Das cousas, que procuram cegamente
Que envolve o eterno amor no eterno luto. Na sua noite e dolorosamente
Outra luz, outro fim só pressentido ...
Talvez seja pecado procurar-te,
Mas nao sonhar contigo e adorar-te,
Nao-ser, que és o Ser único absoluto.

14 8 149
LACRIMJE RERUM REDEN<;:AO

(A Tommazzo Cannizzaro) (A Ex. m• Snr.' D. Celeste C. B. R.)

Noite, irmá da Razáo e irmá da Morte,


Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado, Vozes do mar, das árvores, do vento!
Confidente e intérprete da Sorte! Quando as vezes, num sonho doloroso,
Me embala o vosso can to poderoso,
Aonde váo teus sóis, como coorte Eu julgo iguaÍ ao meu vosso tormento ...
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o hornero porque vaga desolado Verbo crepuscular e íntimo alento
E em váo busca a certeza, que o conforte? Das cousas mudas; salmo misterioso;
Náo serás tu, queixume vaporoso,
Mas, na pompa de imenso funeral, O suspiro do mundo e o seu lamento?
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas . .. Um espírito habita a imensidade:
Urna ansia cruel de liberdade
É rudo, em torno a mim, dúvida e luto; Agita e abala as formas fugitivas.
E, perdido num sonho imenso, escuro
O suspiro das cousas tenebrosas . .. E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha ...
Almas irmás da minha, almas cativas!

150 151
VOZ INTERIOR

(A Joáo de Deus)

II Embebido num sonho doloroso,


Que atravessam fantásticos claróes,
Náo choreis, ventos, árvores e mares, Troper;:ando num povo de visóes,
Coro antigo de vozes rumorosas, Se agita meu pensar tumultuoso ...
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas cumulares . .. Com um bramir de mar tempestuoso
Que até aos céus arroja os seus cachóes,
Da sombra das visóes crepusculares Através duma luz de exalar;:óes,
Rompendo, um dia, surgireis radiosas Rodeia-me o Universo monstruoso ...
Desse sonho e essas ansias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares ... Um ai sem termo, um trágico gemido
Ecoa sem cessar ao meu ouvido,
Almas no limbo ainda da existencia, Com horrível, monótono vaivém ...
Acordareis um dia na Consciencia,
E pairando, já puro pensamento, Só no meu corar;:áo, que sondo e mer;:o,
Náo sei que voz, que eu mesmo desconheryo,
Vereis as Formas, filhas da Ilusáo, Em segredo protesta e afirma o Beml
Cair desfeitas, como um sonho váo .. .
E acabará por fim vosso tormento.

152 153
LUTA LOGOS

Fluxo e refluxo ecerno ... (Ao Sr. D. Nicolas Salmeron)


]OÁO DE OEUS
Tu, que eu náo vejo, e estás ao pé de mim
Dorme a noite encostada nas colinas. E, o que é mais, dentro em mim - que me rodeias
Como um sonho de paz e esquecimento Com um nimbo de afectos e de ideias,
Desponta a lua. Adormeceu o vento, Que sáo o meu princípio, meio e fim ...
Adormeceram vales e campinas ...
Que estranho ser es tu (se és ser) que assim
Mas a mim, cheia de atracs;óes divinas, Me arrebatas contigo e me passeias
Dá-me a noite rebate ao pensamento. Em regióes inominadas, cheias
Sinto em volta de mim, tropel nevoento, De encanto e de pavor ... de náo e sim ...
Os Destinos e as Almas peregrinas!
És um reflexo apenas da minha alma,
lnsondável problema! ... Apavorado E em vez de te encarar com fronte calma
Recua o pensamento! ... E já prostrado Sobressalto-me ao ver-te, e,tremo e exoro-te ...
E estúpido afors;a de fadiga,
Falo-te, calas ... calo, e vens atento ...
Pito inconsciente as sombras visionárias, És um pai, um irmáo, e é um tormento
Enquanto pelas praias solitárias Ter-te a meu lado ... és um tirano, e adoro-te!
Ecoa, 6 mar, a tua voz amiga.

154 155
COM OS MORTOS OCEANO NOX

(A A. de Azevedo Castello Branco)

O s que amei, onde estáo? idos, dispersos, Junto do mar, que erguía gravemente
Arrascados no giro dos tufóes, A trágica voz rouca, enquanto o vento
Levados, como em sonho, entre visóes, Passava como o voo dum pensamento
Na fuga, no ruir dos universos .. . Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

E eu mesmo, com os pés também imersos Juni:o do mar s~ntei-me tristemente,


Na corrente e a merce dos turbilhóes, Olhando o céu pesado e nevoento,
Só vejo espuma lívida, em cachóes, E interroguei, cismando, esse lamento
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos ... Que saía das cousas, vagamente ...

Mas se paro um momento, se consigo Que inquieto desejo vos tortura,


Fechar os olhos, sinto-os a meu lado Seres elementares, forc;:a obscura?
De novo, esses que amei: vivem comigo, Em volta de que ideia gravitais? -

Vejo-os, ouc;:o-os e ouvem-me também, Mas na imensa extensáo, onde se esconde


Juntos no antigo amor, no amor sagrado, O Inconsciente imortal, só me responde
Na comunháo ideal do eterno Bem. Um bramido, um queixume, e nada mais ...

156 157
COMUNHAO SOLEMNIA YERBA

(Ao Sr. Joáo Lobo de Moura)

Reprimirei meu pranto! ... Considera Disse ao meu corac;:áo: Olha por quantos
Quantos, minh'alma, antes de nós vagaram, Caminhos váos andámos! Considera
Quantos as máos incertas levantaram Agora, desta altura fria e austera,
Sob este mesmo céu de luz austera! ... Os ermos que regaram nossos prantos ...

- Luz marta! amarga a própria primavera! - Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
Mas seus pacientes corac;:óes lutaram, E noite, onde foi luz de primavera!
Cremes só por instinto, e se apoiaram Olha a teus pés o mundo e desespera,
Na obscura e heróica fé, que os retempera .. . Semeador de sombras e quebrantos!

E sou eu mais do que eles? igual fado Porém o corac;:áo, feito valente
Me prende alei de ignotas multidóes. - Na escala da tortura repetida,
Seguirei meu caminho confiado, E no uso do penar tornado creme,

Entre esses vultos mudos, mas amigos, Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Na humilde fé de obscuras gerac;:óes, Viver náo foi em váo, se é isto a vida,
Na comunháo dos nossos país amigos. Nem foi demais o desengano e a dor.

158 159
O QUE DIZ A MORTE NA MÁO DE DEUS

(A Ex. m• Sr.• D. Victoria de O. M.)

«Deixai-os vir a mim, os que lidaram; Na máo de D eus, na sua máo direita,
D eixai-os vira mim, os que padecem; Descansou a.final meu corac¡:áo.
E os que cheios de mágoa e tédio encaram Do palácio encantado da Ilusáo
As próprias obras vás, de que escarnecem ... Desci a passo e passo a escada estreita.

Em mim, os Sofrimentos que náo saram, Como as Rores.mortais, com que se enfeita
Paixáo, Dúvida e Mal, se desvanecem. A ignorancia infantil, despojo váo,
As torrentes da Dor, que nunca param, Depus do Ideal e da Paixáo
Como num mar, em mim desaparecem.» - A forma transitória e imperfeita.

Assim a Morte diz. Verbo velado, Como crianc¡:a, em lóbrega jornada,


Silencioso intérprete sagrado Que a máe leva no colo agasalhada
Das cousas invisíveis, muda e fria, E atravessa, sorrindo vagamente,

É, na sua mudez, mais retumbante Selvas, mares, areias do deserto . ..


Que o clamoroso mar; mais rutilante, Dorme o teu sono, corac¡:áo liberto,
Na sua noite, do que a luz do dia. Dorme na máo de Deus eternamente!

160 16 1
ÍNDICE DOS SONETOS COMPLETOS

Abnegayáo · 75 Diálogo · 104


Acordando · 77 Disputa em Família
Ad Amicos · 59 (I-II) . 11 6
Alberto Sampaio (A) 56 Divina Comédia · 123
Alberto Te!es (A) · 53 Elogio da Morte (I-VI) 143
Amaritud o · 7 4 Enquanto Outros
Amiga (Urna) · 89 Combatem · 85
Amor Vivo · 65 Espectros · 127
Anima Mea · 122 Espiritualismo (I-II) · 124
Aparh;:áo · 76 Estoicismo · 121
Aspira<;:áo · 48 Evolu<;:áo · 142
Beatrice · 62 Flórido Teles (A) · 49
Capela (Na) · 79 Germano Meireles (A) 57
Circo (No) · 134 Hino aRazáo · 111
Com os Morros · 156 Horno · 11 5
Comunháo · 158 Ideal · 84
Consulta · 136 Ideia (A) (I-VIII) · 95
Contempla<;:áo · 149 Idílio . 7 1
Convertido (O) · l26 Ignoto Deo · 43
Crucifixo (A um) · 60 lgnotus · 133
Crucifixo (A um) · 103 Inconsciente (0) · 119
Desesperan<;:a · 6 1 J. Felix dos Santos (A) · 54
Despondency · 86 Joáo de D eus (A) · 52

163
Jura · 83 Quinze Anos · 70
Justitia Mater · 108 Redenc;áo (I-II) · 151
Lacrim;e Rerum · 150 Salmo · 50
Lamento · 44 Santos Valente (A) · 46 ÍNDICE DOS PRIMEIROS VERSOS
Logos · 155 Sepultura Romantica · 92
Luta · 154 Solemnia Verba 159
M. C. (A) 45 Sonho · 73 A cruz dizia a terra onde assentava, · 104
M. C. (A) 51 Sonho Oriental · 69 Adornou o meu quarto a flor do cardo, · 66
M. C. (A) 55 Sulamita (A) · 68 Ali, onde o mar quebra, num cacháo · 92
M. C. (A) 58 Tese e Antítese (I-II) · 106 Altas horas da noite, o Inconsciente · 143
Mais Luz! 105 Tormento do Ideal · 47 Amar! mas dum amor que tenha vida... · 65
Máe ... · 78 Transcendentalismo · 141 Amem a noite os magros crapulosos, · 105
Máo de Deus (Na) · 161 Turbilháo (No) · 132 Aquela, que eu adoro, náo é feita · 84
Mea C ulpa · 81 Unnennbare (Das) · 87 Aqueles, que eu amei, náo sei que vento · 89
Metempsicose · 88 Viagem (Em) · 130 Ardentes filhas do prazer, dizei-me! 88
Mors-Amor · 120 Virgem Santíssima (A) · 128 Chamei em volra do meu frio leito · 136
Mors Liberatrix · 118 Visáo · 137 Chovam lírios e rosas no teu colo! · 75
Mulher (A urna) · 90 Visita · 66 Como um vento de morte e de ruína, · 124
Nirvana · 135 Velut Umbra · 80 Conheci a Beleza que náo morre · 47
Nocturno 72 Voz Interior · 153 Conquista pois sozinho o teu futuro, · 98
Nox · 129 Voz do Outono · 91 Deixai-os vira mim, os que lidaram; · 160
Oceano Nox · 157 Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram · 86
Palácio da Ventura (O) · 82 Depois que dia a dia, aos poucos desmaiando, 62
Palavras dum Ceno Disse ao meu coras:áo: Olha por quantos · 159
Morro · 109 Dorme a noite encostada nas colinas. · 154
Pequenina · 67 Dorme entre os gelos, Aor imaculada! · 125
Poeta (A um) · 1·10 Em sonho, as vezes, se o sonhar quebranta · 77
Que Oiz a Morte (O) · 160 Em váo lutamos. Como névoa bas:a, · 59
Quia lEternus · 131 Embebido num sonho doloroso, · 153

164 165
Empunhasse eu a espada dos valentes! · 85 Na floresta dos sonhos, dia a dia, . 144
Entre os filhos dum século maldito · 126 Na máo de Deus, na sua máo direita, . 161
Erguendo os bra~os para o céu distante . 123 Na tua máo, sombrio cavaleiro, . 118
Espectros que velais, enguanto a custo · 127 Náo busco nesta vida glória ou fama: . 58
Esperemos em Deus! Ele há tomado · 50 Náo choreis, vemos, árvores e mares, . 152
Espírito que passas, quando o vento . 72 Náo duvido que o mundo no seu eixo . 8 1
Esse negro corcel, cujas passadas · 120 Náo me fales de glória: é outro o altar . 56
Estava a Morte ali, em pé, diante, · 122 Náo morreste, por mais que o brade agente . 131
Estreita é do prazer na vida a ta~a: · 46 N áo se perdeu teu sangue generoso, . 103
Eu amo a vasta sombra das montanhas, 70 Nas florestas solenes há o culto . 108
Eu bem sei que te chamam pequenina . 67 Nenhum de vós ao cerro me conhece, . 11 5
Eu náo sei quem tu és- mas náo procuro · 145 No céu, se existe i.tm céu para quem chora, . 51
Eu vi o Amor- mas nos seus olhos ba~os · 137 No meu sonho desfilam as visóes, . 132
For~a é pois ir buscar outro caminho! · 97 Noite, irmá da Razáo e irmá da Morre, · 150
Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo amigo, · 142 Noite, váo para ti meus pensamentos, . 129
Fumo e cismo. Os castelos do horiwnte . 80 Num céu intemerata e cristalino · 107
Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros bra<;:os · 60 Num sonho todo feíto de incerteza, . 128
Há mil anos, e mais, que aqui estou morro, · 109 O Espectro familiar que anda comigo, 119
Já náo sei o que vale a nova ideia, · 106 Oh quimera, que passas embalada · 87
Já sossega, depois de tanta luta, · 141 Oh! o noivado bárbaro! o noivado · 101
Junto do mar, que erguía gravemente · 157 Onde te escondes? Eis que em váo clamamos, . 133
Lá! Mas aonde é la? - Espera, · 102 O s que amei, onde estáo? idos, dispersos, . 156
Longo tempo ignorei {mas que cegueira 146 Outra amante náo há! náo há na vida . 100
Máe- que adormente este viver dorido, 78 Ouve tu, meu cansado cora~áo, · 91
Mas a Ideia quem é? quem foi que a viu, · 99 Pálido Cristo, oh condutor divino! . 96
Mas o velho tirano solitário, · 117 Para além do Universo luminoso, · 135
Meus dias váo correndo vagarosos · 48 Para tristezas, para dor nasceste. . 90
Muito longe daqui, nem eu sei quando, . 134 Pelas rugas da fronte que medita... . 83
N a capela, perdida entre a folhagem, · 79 Pelo caminho estrei to, aonde a custo . 130

166 167
Pois que os deuses amigos e os a.ntigos · 95
Porque descres, mulher, do amor, da vida? · 55
Pos-te Deus sobre a fronte a máo piedosa: · 45
Quando nós vamos ambos, de máos dadas, · 71 APENDICES AOS SONETOS COMPLETOS
Que beleza mortal se te assemelha, · 43 DE ANTERO DE QUENTAL
Que nome te darei, austera imagem, · 147
Quem anda lá por fora, pela vinha, · 68
Razáo, irmá do Amor e d a Justis;a, · 111
Reprimirei meu pranto! ... Considera · 158
Sai das nuvens, levanta afronte e escura · 116
Se comparo poder ou ouro ou fama, · 49 Para além dos colchetes que servem para desenvolver abre-
Se é leí, que rege o escuro pensamento, · 52 viaturas, pbdem ocorrér quatro símbolos que, tal como na
Sempre o futuro, sempre! e o presente · 54 Edis;áo Crítica de Fernando Pessoa coordenada por lvo Cas-
Só males sáo reais, só dor existe: · 57 tro, tem os seguintes significados:
Só por ti, astro ainda e sempre oculto, · 74
Só quem teme o Náo-ser é que se assusta · 148 O espas;o deixado em branco pelo autorlrradutor
Só! - Ao ermita sozinho na montanha · 53 * leitura conjecturada
Sonhei - nem sempre o sonho é cousa vá- · 73 11 lis;áo dubirada pelo autorltradutor
Sonho de olhos abertos, caminhando · 149 t palavra ilegível
Sonho que sou um cavaleiro andante. · 82
Sonho-me as vezes rei, nalguma ilha, · 69
Tu, que dormes, espírito sereno, · 110
Tu que náo eres, nem amas, nem esperas, · 121
Tu, que eu náo vejo, e estás ao pé de mim · 155
U m dia, meu, amor (e talvez cedo, · 76
U m dilúvio de luz caí da montanha: · 44
Vai-te na asa negra da desgras;a, . · 61
Vozes do mar, das árvores, do vento! · 151

168
APENDIC E I

LISTAS D E PROJECTOS COM R E FERENC IA A T RADU<;:ÁO


DOS SO NETOS DE ANTE RO DE Q UENTAL:

1 [48C-5'J9 [1908]

Charles james Search.


in 1.: Charles Search.
supposed to be born in 1886 and [therefore] 10 to be two
years older than Alexander.
To be precise, born on che 18th April 1886.

Task: solely that of translation. May write the prefaces to his


translations if these do not involve analysis, etc., when they
will be written by Alexander.

9 Cota do espólio de Fernando Pessoa (E3) a guard a da Biblioteca


Nacional de Portugal (BNP) . Cada um dos documemos publicados na
nossa edi<¡:áo (éditos. e/ou inédims) seráo acompanhados da respectiva
cota e, caso se encontrar publicado, da referencia d a sua primeira edir;:áo.
Neste caso trata-se de um plano editorial divulgado pela primeira vr:z. em
Pessoa por Conhecer (Lopes, 1990: 11, 196- 197). Para a edi<¡:áo crítica deste
documento ver Cadernos, tomo li [201 0]. Sobre este empreendimento ini-
cialmente atribuído a Charles James Search, ver Pizarro (2007: 110-1 12).
1O Em lugar de escrever a palavra • therefore~ Pessoa utiliza o símbolo :.

171
Sonnets as Anthero's on God.
B[inet]-Sanglé - etc.
Translations to be undertaken:

l. Espronceda's "Student of Salamanca."


2. A[nthero] de Quental's "Complete Sonnets." 3 [481-30] [1910-1911?] 11
(together with pessimistic pieces-? -).
3. Cauto Guerreiro's "Epigrams." l . Sobre a reforma orthographica.
4. Sonnets (chosen) of Camoens. 2. A Oligarchia das Bestas.
5. G[uerra] Junqueiro - Choice. 3, Fim de Outomno.
6. E[s;a] de Queiroz's "The Mandarim." 4. Decline and Fall, etc.
7. "Sorne Sonnets frorn Portugal" 5. A Coroa<¡:áo de J[orge] Quinto.
(excluding those separately translated). 6. O Triurnpho do rad[icalismo] inglez, sociologicarnente
8. H[enrique] Rosa's Poems (Sorne) . considerado.
9. Almeida-Garret - Choice. 7. A Irlanda.
8. Do principio monarchico na Europa (or, a chapter in Da
D[itadura] á R[epublica]) Other perhaps.
9. A theoria do governo cornrnercial.

Books.
The Great Sociological Symposium
l . Sonnets of Anthero de Quental
2. Portuguese Sonnets.
3. Portuguese Verse. Eng[lish], French, German, Sp[anish], Port[uguese], ltal[ian]

11 Existe u m plano, datável de 1911 , de seis livros de poesías de


Little Sonnet-Sequence to be published in Lisbon: Anteco de Quental, um deles sendo os «Sonetos (c. c[om] variantes)»
(48B-65'; Pizarro, 2007: 133) . Para o fac-simile deste plano ver Almeida
(2008: 67) . Para consulcar urna edic;:áo dos sonetos de Quenral com
Mors Dei - Sorne 20-40 variantes, ver Júdice (2000).

172 173
[30v] The Doctrine ofTransits.

l. Agua Estagnada. 10/- per reg[ular] post to G[reat] Britain


2. Sonnets written in hope, and others.
3. The Duke ofParma.
A ~tionalist /Ciassic/
The Mat[hematical] Prin[ciples] ofJo[sé] Anastacio da Cunha
l. Espronceda: Estudiante ...
2. A[nthero] de Quental: Sonnets ...
3. Modern French poets. 100 Sonnets of Camoens.

4 [90 1-1] [1917?] Anthero de Quental: Sonnets

Raphael Baldaya:

l. The Foundations of Astrology.


(a) The elements (data.)
(b) The nativity horoscope in general.
(e) The progressed h[orosco]pe in general.

JI. Mundane Astrology


(a) Generalities.
(b) National horoscopes.
(e) The horoscope of a nation (Portugal)

174 175
ESBO<::OS DO PREFACIO PARA A EDI<::AO
DOS SONETOS EM INGLES
¡,_4~1~ ~

5 [143-83] 12 [circa 1908]


2. . ~~~
---- 7---... hcwc~ ~

J.t#~~ ~
Our end in translating this book is no other than attemp-
ting to lay before English readers the sonnets of the greatest
sonnet-writer of the pas t cenrury.
The expression "greatest sonnet-writer" is per[83v] haps not
good. Ir seems to indicare a poet whose artistic, sculprural
handling of the sonnet was O
Yet we said "greatest", not "best" poet who wrote the great-
est sonnets 0 13

lno l
6 [14D-22] [circa 1908]

Sorne sonnet-writers of che 19'h cenrury are perhaps greater


artists of the sonnet, better sculptors of the sonnet, if so we
may speak.

12 Este documento, referido coma cota [133-83] e com algumas defi-


ciencias de transcricyáo, foi revelado pela primeira ve:z. por Maria Rosa
Pereira Baptista (1990: 95).
13 Existe outro apomamemo que, embora redigida num tipo de
suporte diferenre, poderia ser considerado como parte da série de reAexóes
mais desenvolvidas e que teriam servido para a versáo final do prefácio:
<<Anthero's sonnets require in the reader an un usual dose of philosophic
inruition and of capacity ro grasp the subclest spiritual and idealistic con-
Fig. l. Urna das primeiras listas de projecros de livros onde figura a rraduc¡:áo
ceptions» (BNP/E3, 14D-21 ';Escritos sobre Ginio e Loucura, 2006: l, 439).
em língua inglesa dos soneros de Q uenral (BNP/E3, 4982-65•).

176
Fig. 3. Tradu<táo parcial do soneto «Lamento»
Fig. 2. Esbo~o do pref.ício para a rradu<táo dos sonetos de Quema!
(BNP/E3, 74-25).
(BNP/E3, 14'-83).

\
---
,-/&. &:.

Fig. 5. Tradu ~o parcial do soneto •Ü Con vertl"do»


(BNP/E3, 74-5 1).
Fig. 4. Tradu ~o parcial do sonero «Das U nnennbare»
(BNP/E3, 74-46).
;14~ H-38
~, ~ ,.,.._:¡(;::;- / 7 ,..__(·' ~~'~
L-_71· -r-~

~,_~
/U-/"- ~· ~ E -.....:..._~ -

Fig. 6. Tradu~áo parcial do sonero • Evol u~o»


(BNP/E3, 74-36). Fig. 7. Tradu~o parcial do quano soneto da série •Elogio da Marte>>
(BNP/E3, 74-38).
Rossetti said that the thing in a sonnet is the "fundamental
brain-work" contained. This is amusing, rhough true, it is
amusing because this is true of al! poems and not of sonnets
alone. We reproduce rhe expression here, however, because
it aids us in 0 14
In the sonnets of Anthero de Quenral we find a perfect
o of form ro idea, and chis renders their proper translation
impossible.
He was not what we cal! an artist, that is, he did not write
carefully, or creare carefully. H e wrote spontaneously O but
so artistic, so O was his mind that O 15
[22vl Rossetti said that Shakespeare's sonnets were greater than
all [because] 16 they were written by Shakespeare O
This is an amusing bit of nonsense. Rossetti seems to think
~ - ~ ~ -:#-;~ that these great poets are as high mountains in an absolute
/t-4- ,é ~~ 1- ~ .~ ~
¿:;u ~-- ,· ~ ~- / ,.. .~~6
14 Rossetti, em cana a Thomas Henry Hall Caine, escreve: «l would not

fÍt-:._, ~ , ~o~ be too anxious, were I you, about anyrhing, in choice of sonnets, except
the brains and the music [... ] Ir would not be at all found that my best
/4. ~1)4-. "'-. sonnets are always in the mere form which I think the best. The question
with me is regulated by what I have to say [.. .] You have much too great
}1:¡. '-. /k_ t....J ¡j ¡J ~--;? / a habit of speaking of a special octave, sestette, or line. Conception, my
boy, FUNDAMENTAL BRAINWORK, that is what makes the difference in all art.
Work your metal as much as you like, but first take care that ir is gold and
worrh working. A Shakespearean sonnet is better than the most perfect in
form because Shakespeare wrore iD> (Hall Caine, 1882: 248-249). D evo
\ , .... 1 .. 't·,..
esta referencia a Jerónimo Pizarra. Existe ourro pequeno texto redigido no
t. ......... -
mesmo tipo de papel, onde, utilizando esta fórmula de Rossetti, Pessoa
'""- ·· - •\"-t 'J:¡¡!
escreve: «No sonnets are as his "d eep-brained sonnets". We say so, and we
are sure we have not attained complerely the significance of sorne of the
Fig. 8. Tradu~áo parcial do soneto «N a Máo de Deus» sónnets» (BNP/E3, I 4D-1 8v; Escritos sobre Génio e Loucura, 2006: I, 438).
(BNP/E3, 74-44) . 15 Este parágrafo e o anterior foram inicialmente publicados po r
Almeida (2008: 57-58).
16 Em lugar de escrever a palavra <<because» Pessoa utiliza o símbolo ·:

177
sense, that are very high to-day and are very high to-morrow, TRADUc;Ao PARCIAL EM LÍNGUA DE SONETOS
and are only very high, without changing the altitude. DE ANTERO DE QUENTAL
Not so. There are no great poets in so absolute a sense; there
are great individual of poets and in proportion as those great Por FERNANDO PESSOA
mountains are great we call the poet great. Shakespeare has
sorne sonnets which are mere nothings, undoubtedly small.
Anthero de Q[uental] seems, however, to have written
only upon inspiration 0 17

Nota do editor
No cabe~talho de cada urna das tradu~tóes, encontramos a referencia
<<A[ntero] Q [uental]>> e a página do soneto rraduzido; o título nunca é
referido. Tratando-se de tradu~tóes ]acunares, Pessoa inseriu, por vezes,
o número do verso em quesráo. Embora acompanhemos as tradu~tóes
do respectivo original, decidimos indicar, sistematicamenre, o número
correspondenre a cada um dos versos traduzidos. No caso de a estrofe se
encontrar traduzida na íntegra, indicar-se-á só o número respectivo ao
primeiro e ao último .verso. Em algumas das tradu~tóes o rradutor anotou
urna série de palavras a fim de serem contempladas como possibilidade de
rima. Num destes casos, Pessoa acrescentou mesmo um comentário sobre
17 Existem outros dois pequenos textos (dos quais o primeiro foi redi- lim dos versos de Amero. Optámos por reproduzir todas estas marcas
gido no mesmo tipo de suporte que o documento BNP/E3, 14D-18) deixadas por Pessoa. Para cada urna das rradu~tóes, e sempre em nora de
que dizem respeito a Q uema] enquanto homem de génio (cf BNP/E3, rodapé, indicar-se-á a respectiva cora de arquivo do espólio pessoano (E3),
14D-19 e 14D-20; Escritos sobre Génio e Loucura, 2006: 1, 438 e 439). aguarda da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP).

178 179
LAMENTO

U m dilúvio de luz cai da montanha: A flow of light O


Eis o dia! eis o sol! o esposo amado! Behold che day! the sun! che husband dear
Onde há por toda a terra um só cuidado Where over che whole earth is there a care
Que náo dissipe a luz que o mundo banha? 4 Not of the light that che world O

Flor a custo medrada em erma penha, 5 Flower O


Revoleo mar ou golfo congelado,
Aonde há ser de Deus táo olvidado 7 Where is there being so forgot[ten] of God
Para quem paz e alívio o céu náo tenha? 8 For whom the sky has no peace and no /balm/.

D eus é Pai! Pai de toda a criatura:


E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado ...

Ah! se D eus a seus filhos dá ventura


Nesta hora santa ... e eu só posso ser triste ...
Serei filho, mas filho abandonado! 14 A son I may be, but a /forlorn/ son. 18

18 (Biblioteca Nacional de Portugal!Espólio número 3, documento


74-25). Doravan te referida da seguinte maneira: (BNP/E3, [documento)).

180 181
A M. C.

Pos-te Deus sobre a fronte a máo piedosa: God laid upon chy brow D :
O que fada o poeta e o soldado He that doth fate che warrior and the bard
Volveu a ti o olhar, de amor velado, Turned his glance upon thee D
E disse-te: «Vai, filha, se formosa!)) fair be then
be fai r.
E tu, descendo na onda harmoniosa,
Pousaste neste solo angustiado,
Estrela envolta num claráo sagrado,
Do teu límpido olhar na luz radiosa .. .

Mas eu ... posso eu acaso merecer-te? 9 But I ... can 1 perchance D merit thee?
Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado, God gave chee, woman, what /forbidden / is
Anjo! deu-te o Senhor um mundo aparte. 11 Angel! a world [a]part 19 the Lord did D thee

E a mim, a quem deu olhos para ver-ce, 12 And unto me, whom he gave eyes to see
Sem poder mais ... a mimo que me há dado? Thy beaury, no more powerful what /gave he/
Voz, que te cante, e urna alma para amar-te! 14 A voice co sing thee anda soul to love thee! 20

19 No original le-se «part», o que parece ser um lapso de Pessoa.


20 (BNP/ E3, 7 4-26)

182 183
TORMENTO DO IDEAL

Conheci a Beleza que náo marre 1 knew the Loveliness that doth not die
E fiquei triste. Como quem da serra And /11 became sad. As he who from the mount
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra The highest i:here be, seeing beneath him /still/
E o mar, ve tudo, a maior nau ou torre, 4 The earth, sea, sees al!, the largest ship or O

Minguar, fundir-se, soba luz que jorre;


Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra 7 o like the cloud that O
Ao por do sol e sobre o mar discorre. 8 At sunset that over the sea doth fly

Pedindo aforma, em váo, a ideia pura,


Trope<¡:o, em sombras, na matéria dura,
E encontro a imperfei<¡:áo de quanto existe.

Recebi o baptismo dos poetas, , 12 The baptism of poets O


E assentado entre as formas incompletas And seated o amidst incomplete forms
Para sempre fiquei pálido e triste. 14 For ever 1 remained pale and sad 2 1

21 (BNP/E3, 74-27).

184 185
AM. C.

No céu, se existe um céu para quem chora, In heav' n, if there be heaven for them that weep
Céu, para as mágoas de quem sofre tanto . .. Heaven for the woes of them that suffer so
Se é lá do amor o foco, puro e santo, If there o glow
Chama que brilha, mas que náo devora ... 4 ls but a flame that shines O

No céu, se urna alma nesse espa<;o mora, 5 In heaven, if a soul in that space keeps
Que a prece escura e enxuga o nosso pranto ... That hears our prayer and O
Se há Pai, que estenda sobre nós o manto lf there be a Father that o' er us doth throw
Do amor piedoso ... que eu náo sinto agora ... s The cloak of pitying love that O

No céu, ó virgem! findaráo meus males: 9 In heaven, oh maiden! my sorrows O


22
Hei-de lá renascer, eu que pare<;o 10 1 will be born again there, 1 that seem
Aquí ter só nascido para dores.

Ali, ó lírio dos celestes vales!


Tendo seu fim, teráo o seu come<;o,
Para náo mais findar, nossos amores.

22 (BNP/E3, 74-28).

186 187
IDÍLIO

Quando nós vamos ambos, de máos dadas, When hand in hand o we two
Colher nos vales lírios e boninas, To gather lilies, daisies in the dales
E galgamos dum fólego as colinas ohills
Dos rocios da noite inda orvalhadas: 4 Not unabandoned yet of the night dew:

Ou, vendo o mar, das ermas cumeadas, 5 Orn


Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas: 8 Piled one over one the far horiwn

Quantas vezes, de súbito, emudeces! 9 How many times, sudden thy voice doth fail
Náo sei que luz no teu olhar flutua; I know not what lighr in thine eyes floats, O;
Sinto tremer-te a máo, e empalideces ... 11 I feel thy hand to tremble, thy front pale ...

O vento e o mar murmuram ora~óes, 12 From wind and sea a deep orison starts
E a poesía das causas se insinua And the poesy of things doth glide
Lenta e amorosa em nossos corayóes. 14 Slowly and amorously into our hearts. 23

23 (BNP/E3, 74-29).

188 189
NOCTURNO

Espírito que passas, quando o vento


Adormece no mar e surge a lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento .. .

Como um canto longínquo - triste e lento -


Que voga e subtilmente se insinua,
Sobre o meu coras;áo, que tumultua,
Tu vertes pouco a pouco o esquecimento ...

A ti confio o sonho em que me leva 9 1 D to thee the dream that is one bearing
Um instinto de luz, rompendo atreva, An instinct of light, the darkness tearing,
Buscando, entre visóes, o eterno Bem. 11 Seeking, visions among, eternal Good.

E tu entendes o meu mal sem nome, 12 And thou dost understand my nameless iJl
A febre de Ideal, que me consome, The fever of Ideal D
Tu só, Génio da noite, e mais ninguém! 14 Thou alone, Genius ofNight, and o 24

24 (BNP/E3, 74-30)

190 19 1
NA CAPELA

Na capela, perdida entre a folhagem, In the chapel arnong the foliage lost
O Cristo, lá no fundo agonizava ... The Christ O
Oh! como íntimamente se casava Oh how intimately did mate
Com minha dor a dor daquela imagem! 4 My sore with the so re of that o

Filhos ambos do amor, igual miragem 5 Sons oflove both, an equal O


Nos ro<;ou pela fronte, que escaldava ...
Igual trai<;áo, que o afecto mascarava,
Nos deu suplício as máos da vilanagem ...

E agora, ali, enquanto da floresta


A sombra se infiltrava lenta e mesta,
Vencidos ambos, mártires do Fado, 11 Martyrs of fate, both o conquered,

Fitávamo-nos mudos- dor igual! - 12 We looked mute one at the other- equal woe-
Nem, dos dois, saberei dizer-vos qual Nor could I say o which of the two
Mais pálido, mais triste e mais cansado ... 14 More pale, more sorrowful, more wearied. 25

25 (BNP/E3, 74-3 1).

192 193
O PALÁCIO DA VENTURA

Sonho que sou um cavaleiro andante. 1 dream 1 am a knight errant. Deserts through
Por desertas, por sóis, por noite escura, Through suns and through o
Paladino do amor, busco andante A paladio of love, o 1 seek
O palácio encantado da Ventura! 4 The enchanted palace of o

Mas já desmaio, exausto e vacilante,


Quebrada a espada já, rota a armadura ...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato aporta e brado: 9 With *mighty /blows/ 1 D and D
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado ... 1 am the Wanderer, the Disinherited
Abri-vos, portas d' o uro, ante meus ais! 11 Open, oh doors of gold, my moans /befare/

Abrem~se as portas d' ouro, com fragor ... 12 The doors of gold then open with D din
Mas dentro encontro só, cheio de dor, D 1 find within
Silencio e escuridáo - e nada mais! 14 Silence and darkness /there/- and nothing more26

26 (BNP/E3, 74-32).

194 195
DESPONDENCY

D eixá-la ir, a ave, a quem roubaram Let her go, - her the little bird whose nest
Ninho e filhos e tudo, sem piedade ... And litcle sons and all pitilessly
Que a leve o ar sem fim da soledade Have been stolen, let the endless air D
Ondeas assas partidas a levaram ... 4 There where her broken wings will bear her best

D eixá-la ir a vela, que arrojaram 5 Let it go - it, the sail that at the West
O s tufóes pelo mar, na escuridade, Flung in the mighty darkness o' er the sea,
Quando a noite surgiu da imensidade, When night arose out of immensity
Quando os ventos do Sul se levantaram ... 8 And the winds of the South woke on its breast

Deixá-la ir, a alma lastimosa, 9 Let her go - her, the soul with D breath
Que perdeu fé e paz e confians;a, That has lose faith and peace D did stop
A mone queda, amorte silenciosa . .. 11 To th e still death, unto the silent death

Deixá-la ir, a nota desprendida 12 Let it go - it the last note of the strife
Dum canto extremo ... e a última esperans;a ... Of a last song_. .. and the last hope
E a vida ... e o amor ... deixá-la ir, a vida! 14 And life and love ... aye let it go too, HfeY

27 Publicado pela primeira ve:z, com algumas diferen~as de transcri~áo,


em Pessoa inédito (1993: 225). (BN P/E3, 74-33).

196 197
DAS UNNENNBARE

Oh quimera, que passas embalada Oh /child of dream/ that dost pass by rocked in 1 airy 1

Na onda dos meus sonhos dolorosos, The wave of my o


E ro<;:as co'os vestidos vaporosos And touchest with thy o dresses /passing/ me
A minha fronte pálida e cansada! 4 My pallid front and weariedly serene! 1 weary 1

Leva-te o ar da noite sossegada ... 5 The air of the calm night o


Pergunto em váo, coro olhos ansiosos, In vain 1 ask with eyes of anxiety
Que nome é que te dáo os venturosos What name is it that happy ones give thee
No teu pais, misteriosa fada! 8 In thy counrry28 0 29 1 fairy. 1

Mas que destino o meu! e que luz ba<;:a


a
A desta aurora, igual do sol posto,
Quando só nuvem lívida esvoa<;:a!

Que nem a noite urna ilusáo consinta!


Que só de longe e em sonhos te pressinra ...
E nem em sonhos possa ver-te o rosto!

. 28 N este caso ná~ inserimos a variante (•own native la nd• colocada por
cu~a de «C~Untry>>) Ja que Pessoa náo alrerou o possessivo •thy>>. Em ingles
anr~go, uti!Jza-se thme em lugar de thy antes de som vocálico. A tirulo de
exemplo, ver a rradus;áo dos sonetos «Idílio>>e «Quia :erernus>>.
29 (BNP/E3, 74-46).

198 199
HOMO

Nenhum de vós ao certo me conhece, N oc one of ye for sure o


Astros do espac;:o, ramos do arvoredo, Ye scars of space, ye branches of the crees
Nenhum adivinhou o meu segredo, Not one has guessed my secret O
Nenhum imerpretou a minha prece ... 4 Not one has interpreted my prayer.

Ninguém sabe quem sou ... e mais, parece 5 No one knows who 1 am ... and more o
Que há dez mil anos já, neste degredo,
M e ve passar o mar, ve-me o rochedo
E me contempla a aurora que alvorece ...

Sou um parto da Terra monstruoso; 9 I am a monstrous thing born of the earth


Do húmus primitivo e tenebroso Of the primitive and dark humus a birth
Gerac;:áo casual, sem pai nem máe ... 11 Fatherless, mocherless, a birth of chance

Misto infeliz de trevas e de brilho, 12 Unhappy O


Sou calvez Satanás; - calvez um filho 1 am Sacan perchance; a bascard son
Bastardo de Jeová; - calvez ninguém! 14 Perchance ofJehovah, no one perchance. 30

30 (BNP/E3, 74-47).

200 201
O INCONSCIENTE

O Espectro familiar que anda comigo, The familiar spectre that with me
Sem que pudesse ainda ver-lhe o rosto, Walks, though 1 ne' er its countenance could behold
Que urnas vezes encaro com desgosto That sometimes 1 do face with O
E outras muitas ansioso espreito e sigo, 4 And often watch and follow anxiously

É um espectro mudo, grave, antigo, 5 ls a mute spectre, grave, o


Que parece a conversas mal disposto ... That seems o
Ante esse vulto, ascético e composto Before that O ascetic and cold
Mil vezes abro a boca ... e nada digo. 8 A thousand times 1 open my mouth o

Só urna vez ousei interrogá-lo: 9 But once to question him O did dare
~~Quem és (lhe perguntei com grande abalo) "Who art thou (asked 1 with a O fear)
Fantasma a quem odeio e a quem amo?» 11 Spectre 1 !ove and hate with anguished bliss

- «Teus irmáos (respondeu) os váos humanos, 12 "Thy brothers (he replied) the vain mankind
Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos ... Through ten thousand years have called me God
Mas eu por mim náo sei como me chamo ... » 14 But 1 myself know not what my name is. 3!

31 (BNP/E3, 74-48 e 49).

202 203
DIVINA COMÉDIA

(Ao Dr. José Falcáo)

Erguendo os brac;:os para o céu distante Oto the distant sky


E apostrofando os deuses invisíveis, And O to the gods invisible
Os homens clamam: - «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque é que nos criastes?! lncessante


Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusáo, lutas horríveis, 7 Pain, sin, illusion dreadful combats fall
Num turbilháo cruel e delirante ...

Pois náo era melhor na paz clemente 9 Were it not better in the o peace
Do nada e do que ainda náo existe, Of nothingness and of what yet is not
Ter ficado a dormir eternamente? 11 To have remained asleep without cease.

Porque é que para a dor nos evocastes?» 12 Why unto pain did ye o us?"
Mas os deuses, com voz inda mais triste, But the gods yet sadder o
Dizem: - «Homens! porque é que nos criastes?» 14 O "Men O and why did ye create us? 32

32 (BNP/E3, 74-50).

204 205
O CONVERTIDO

(A Gon~ves Crespo)

Entre os filhos dum século maldito Among the children of a cursed age
Tomei também lugar na ímpia mesa, 1 also in the impious cable sat
Onde, sob o folgar, geme a tristeza Where, 'neath the joying moans the sadness that
Duma ansia impotente de infinito. 4 An impotent ache for infinite things doth rage

Como os outros, cuspi no altar avito 5 Like the others a spit full of gall and rage
U m rir feito de fel e de impureza ... Upon the altar o 1 too spat
Mas, um dia, abalou-se-me a firmeza, But one day all my firmness O
Deu-me um rebate o coras;áo contrito! s And my remorseful heart o

Erma, cheia de tédio e de quebranto, 9 1Arid/ and full of D and of spleen


Rompendo os diques ao represo pranto, Opening the dykes unto its tears held-in
Virou-se para Deus minha alma triste! 11 My sad soul turned to God D

Amortalhei na fé o pensamento, 12 1 shrouded in faith my thought and found


E achei a paz na inércia e esquecimento .. . Peace in forgetfulness ando profound ...
Só me falta saber se Deus existe! 14 One thing remains: to know if God exists! 33

33 (BNP/E3, 74-51).

206 207
AVIRGEM SANTÍSSIMA
Cheia de Gra;a, Máe de Misericórdia

Num sonho todo feíto de incerteza,


De nocturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza .. .

Náo era o vulgar brilho da beleza,


Nem o ardor banal da mocidade,
Era outra luz, era outra suavidade
Que até nem sei se as há na natureza .. .

U m místico sofrer . .. urna ventura 9 A mystic suffering, a happiness


Feíta só do perdáo, só da ternura Made but of pardon, but of tenderness
E da paz da nossa hora derradeira .. . 11 Andofo

Ó visáo, visáo triste e piedosa! 12 Oh vision, vision sad and o 34


Fita-me assim calada, assim chorosa ...
E deixa-me sonhar a vida inteira!

34 (BNP/E3, 74-44v).

208 209
QUIA JETERNUS

(A Joaquim de Araújo)

Náo morreste, por mais que o brade agente Thou art not dead, however much ro us
Urna orgulhosa e vá filosofia ... A proud and vain philosophy it may cry
Náo se sacode assim táo facilmente Not with such ease, not so o chus
O jugo da divina tirania! 4· The yoke of divine tyranny made fly

C lamam em váo, e esse triunfo ingente 5 They shout in vai~, and that triumph luminous
Com que a Razáo - coitada! - se inebria, W ith which Reason - O! - drunken doth lie
É nova forma, apenas, mais pungente, Is but a new form, bitterer O
Da tua eterna, trágica ironia. 8 Of thine eterna!, tragic irony.

Náo, náo morreste, espectro! o Pensamento 9 No thou art not dead, spectre! As before
Como dances te encara, e és o tormento Thought looks upon thy face, thou torture hoax
De quantos sobre os livros desfalecem. 11 Of all who on books /fill their thoughts/ and fail

E os que folgam na orgia ímpia e devassa 12 And they who joy in the wild orgic sup
Ai! quantas vezes, ao erguer a ta<;a, Alas! how many times O cup
Param, e estremecendo, empalidecem! 14 Sadly stop and, shivering, grow pale! 35

35 (BNP/E3, 74-52).

210 2 11
NO TURBILHAO

(A Jaime Batalha Reis)

No meu sonho desfilam as visóes, In my dream D visions are unfurled


Espectros dos meus próprios pensamentos, Spectres of mine own thoughts D
Como um bando levado pelos ventos, Like a D
Arrebatado em vastos turbilhóes . .. 4 Swept far away and in D whirled.

Numa espiral, de estranhas contorsóes, 5 In a spiral of strange contortions curled


E donde saem gritos e lamentos, D loud
Vejo-os passar, em grupos nevoentos, 1 see them pass in groups D cloud
Oistingo-lhes, a espac¡:os, as feic¡:óes ... 8 And now and then their features D

- Fantasmas de mim mesmo e da minha alma, 9 - Phantoms of mine own self and of my soul
Que me fitais com formidável calma, That stare at me with calmness dread and /cold/
Levados na onda turva do escarcéu, Borne on the D wave passing by

Quem sois vós, meus irmáos e meus algozes? 12 Who are ye, oh ye brothers and my hell?
Quem sois, visóes misérrimas e atrozes? Who are ye, visions D and terrible?
Ai de mim! ai de mim! e quem so u eu?! ... 14 Woe is me! Woe is me! And who am 1? 36

36 (BNP/E3, 74-53).

212 213
IGNOTUS

(A Salomáo Sáraga)

Onde te escondes? Eis que em váo clamamos,


Suspirando e erguendo as máos em váo!
Já a voz enrouquece e o cora~áo
Está cansado - e já desesperamos . . .

Por céu, por mar e terras procuramos


O Espírito que enche a solidáo,
E só a própria voz na imensidáo
Fatigada nos volve ... e náo te achamos!

Céus e terra, clamai, aonde? aonde? -


Mas o espírito antigo só responde,
Em tom de grande tédio e pesar:

- Náo vos queixeis, ó filhos da ansiedade, - Complain not, children of anxiety


Que eu mesmo, desde toda a eternidade, 1 also, since O eternity
Também me busco a mim . . . sem me encontrar! Do seek myself- and have not found me yet. 37

37 (BNP/E3, 74-54).

214 215
NO CIRCO

(A Joáo d e Deus)

Muito longe daqui, nem eu sei quando, Far, very far from here, when I do not know
Nem onde era esse mundo, em que eu vivía ... Nor where that world was where I then O
Mas táo longe ... que até dizer podia But so faro
Que enquanto lá andei, andei sonhando ... 4 That while in it, O go

Porque era tudo ali aéreo e brando, 5 [BecauseP 8 everything air-like and slow
E lúcida a existencia amanhecia ... Was there and brightest O
E eu ... leve como a luz... até que um dia And I o till on a day
U m vento me tomou, e vim rolando ... 8 A wind did take me o 39

Caí e achei-me, de repente, envolto


Em luta bestial, na arena fera,
Onde um bruto furor bramia soleo.

Senti uin monstro em mim nascer nessa hora,


E achei-me de improviso feito fera ...
- É assim que rujo entre leóes agora!

38 Em lugar de escrever a palavra «because» Pessoa utiliza o símbolo·:


39 (BNP/E3, 74-55).

216 217
NIRVANA

(A Guerra Junqueiro)

Para além do Universo luminoso, Beyond rhe luminous D Universe


Cheio de formas, de rumor, de !ida, Full of forms, full of murmur and of strife
De for~as, de desejos e de vida, Of forces, of desires and of life
Abre-se como um vácuo tenebroso. 4 Opened is like to a D void.

A onda desse mar tumultuoso 5 The wave of thar tumultuous sea


Vem ali expiar, esmaecida ...
N uma imobilidade indefinida
Termina ali o ser, inerte, ocioso ...

E quando o pensamenro, assim absorto, 9 And when thought, chus o buried


Emerge a cusro desse mundo morto o from rhat /vague/ world dead
E torna a olhar as cousas naturais, 11 And looks upon on natural things O ,

A bela luz da vida, ampla, infinita, 12 By the fine lighr of life, O infinite,
Só ve com rédio, em rudo quanto fira, Ir seeth with o in all that hirs rhe sight
40
A ilusáo e o vazio universais. 14 The universal dream and emptiness.

40 (BNP/E3, 74-34).

218 21 9
TRANSCENDENTALISMO

(A]. P. Oliveira Marrins)

Já sossega, depois de tanta !uta, It quiets clown after so much fight


Já me descansa em paz o corac;:áo. It O to peace - my heart
Caí na coma, enfim, de quanto é váo I found at last how 'tis a vain delusion
O bem que ao Mundo e aSorte se disputa. 4 The good as from the world and *fate would tear.

Penetrando, com fronte náo enxuta, 5 O with brow not unwet O


No sacrário do templo da Ilusáo, Sanctuary of the temple oflllusion
Só encontrei, com dor e confusáo, I did but find, with pain and with confusion,
Trevas e pó, urna matéria bruta ... 8 Darkness and dust, cold and brute matter- there

Náo é no vasto mundo - por imenso 9 'Tis not in the vast world - howe' er immense
Que ele pareya anossa mocidade - Ir may seem to our youth's imaging crude-
Que a alma sacia o seu desejo intenso ... 11 That che soul satiates its desire in tense ...

Na esfera do invisível, do intangível,


Sobre desertos, vácuo, soledade, 13 Over deserts, o solitude41
Voa e paira o espírito impassível!

41 (BNP/E3, 74-35).

220 221
EVOLU<;AO

(A Santos Valente)

Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo amigo, I was rock once and was in the world old
Tronco ou ramo na incógnita floresta ... In the forest unknown branch or trunk -
Onda, espumei, quebrando-me na aresta A wav~ I foamed breaking me D
Do granito, antiquíssimo inimigo .. . 4 Against granice, ancient foe and D cold.

Rugi, fera calvez, buscando abrigo 5 I roared, a wild-beast haply, seeking hold
Na caverna que ensombra urze e giesta; A lair i' th' D
Ou, monstro primitivo, ergui a testa 7 Or, a primitive monster D
No limoso paul, glauco pascigo .. .

Hoje sou homem - e na sombra enorme 9 To-day 1 am a man D


Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desee, em espirais, na imensidade ... LL That goes in spirals to immensity

Interrogo o infinito e as vezes choro ... 12 The infinite 1 question and I weep
Mas, estendendo as máos no vácuo, adoro 13 Sometimes, but o 42
E aspiro unicamente aliberdade.

41 (BNP/E3, 74-36).

222 223
ELOGIO DA MORTE

Morrer é ser iniciado.


ANTOLOGIA GREGA

11

Na floresta dos sonhos, dia a dia, 1. In the forest of dreaming, day by day,
Se interna meu dorido pensamento. My aching thought o
Nas regióes do vago esquecimento 3 In the regions. of vague forgetfulness
Me conduz, passo a passo, a fantasia.

Atravesso, no escuro, a névoa fria 5 In the darkness 1 cross the o


Dum mundo estranho, que povoa o vento, Of a strange world, o peopled by the wind
E meu queixoso e incerto sentimento And my plaintful and O and undefined
Só das visóes da noite se confia. 8 In the visions of night o

Que místicos desejos me enlouquecem? 9 What mystical desires madden me here


Do Nirvana os abismos aparecem The abyss ofNirvana do appear
A meus olhos, na muda imensidade! JI In mute immensity to mine eyes showeth

Nesra viagem pelo ermo espac;:o, 12 In this voyage across O empty space
Só busco o teu encontro e o teu abrac;:o, 1 seek but to meet thee, but thy embrace
Morte! irmá do Amor e da Verdade! 14 D eath, the sister of Love and ofTruth! 43

43 (BNP/E3, 74-37).

224 225
IV

Longo tempo ignorei (mas que cegueira


Me trazia este espírito enublado!)
Quem fosses tu, que andavas a meu lado,
Noite e dia, impassível companheira ...

Muitas vezes é cerco, na canseira,


No rédio extremo dum viver magoado,
Para ti levantei o olhar turbado,
Invocando-te, amiga verdadeira ...

Mas náo te amava entáo nem conhecia: 9 1 did not love thee then nor did
Meu pensamento inerte nada lía 1 know thee. My inert rhought nothing read
Sobre essa muda fronte, austera e calma. 11 Over that mure front, ausrere and calm, D

Luz íntima, afinal alumiou-me ... 12 An inward light showed me o flame (show)
Filha do mesmo pai, já sei teu nome, Daughter ofthe same farher, I now know thy name (know)
Morte, irmá coeterna da minha alma! 14 Death, coeternal sister of my soul! 44 jexrraordi~ary depthl
~f expresswn J
44 (BNP/E3, 74-38).

226 227
V

Que nome te darei, austera imagem, What name, image austere, shall 1 thee give
Que avisto já num angulo da estrada, That in an angk of the road o
Quando me desmaiava a alma prostrada 3 When already my o
Do cansas:o e do tédio da viagem?

Em teus olhos ve a turba urna voragem, 5 In thine eyes doth the crowd a D perceive
Cobre o costo e recua apavorada ... And it covers its face and o
Mas eu confio em ti, sombra velada, But 1, veiled shadow, D
E cuido perceber tua linguagem ... 8 And thar 1 O thy language do believe .. . 45

Mais claros vejo, a cada passo, escritos,


Filha da noite, os lemas do Ideal,
Nos teus olhos profundos sempre fitos .. .

Dormirei no reu seio inalterável,


Na comunháo da paz universal,
Morte libertadora e inviolável!

45 (BNP/E3, 74-39).

228 229
VI

Só quem teme o Náo-ser é que se assusta 1- He but that fears Not-Being doth distrust
Com teu vasto silencio mortuário, And from thy vast silence where D eath stays
Noite sem fim, espac;:o solitário, Night without ending, solitary space
Noite da Morte, tenebrosa e augusta ... 4 Night of Death, o and august . ..

Eu náo: minh'alma humilde mas robusta 5 Not I: my spirit humble but robust
Entra creme em teu átrio funerário: Enters with faith thy funerary place:
Para os mais és um vácuo cinerário, For others thou art a o emptiness face
A mim sorri-me a tua face adusta. 8 To me thine t and thy smile 1 trust. race
embrace
A mim seduz-me a paz santa e inefável 9 Me doth charm th'ineffable and holy peace, grace.
E o silencio sem par do lnalterável, Silence of the Inalterable, /peerless/ trace
Que envolve o eterno amor no eterno luto. 11 That endless love with endless woe o

Talvez seja pecado procurar-te, 12 Perchance a sin it may be to seek for thee
Mas náo sonhar contigo e adorar-te, But not to dream of thee, not to adore thee,
Náo-ser, que éso Ser único absoluto. 14 Not-Being, only Being absolure.46

46 (BNP/E3, _7~-40). Publicado pela primeira vez, com algumas dlfe-


rens;as de transcns;ao, em Pessoa Inédito (1993: 224).

230 23 1
CONTEMPLA<;:AO

(A Francisco Machado de Paria e Maia)

Sonho de olhos abertos, caminhando I dream with open eyes, walking among
Náo entre as formas já e as aparencias, Not forms now, nor among appearances
Mas vendo a face imóvel das essencias, But seeing the unchanging face of essences
Entre ideias e espíritos pairando ... 4 Among ideas and spirits o hung ...

Que é o mundo ante mim? fumo ondeando, 5 What is the world O smoke-waves flung
Visóes sem ser, fragmentos de existencias ... Visions without being o
Urna névoa de enganos e impotencias A mist of errors, of impotencies
Sobre vácuo insondável rastejando . . . 8 Over a O vacuum trailed and /slung -/

E d' entre a névoa e a sombra universais 9 And from the mist o


Só me chega um murmúrio, feito de ais ... Only a murmur reaches among all moans,
É a queixa, o profundíssimo gemido 11 'Tis the complaint, the groan comes from the heart

Das cousas, que procuram cegamente 12 Of things, that blindly seek and blindly strain
Na sua noite e dolorosamente In their night with O of pain
Outra luz, outro fim só pressentido ... 14 Another light, an end but o 47

47 (BNP/E3, 74-4 1).

232 233
LACRIMJE RERUM

(A Tommazw Cannizzaro)

Noite, irmá da Razáo e irmá da Morte, Night, oh sister of Reason and of Death
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte! 4 Confident and interpreter of Fate.

Aonde váo teus sóis, como coorte


De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o hornero porque vaga desolado
E em váo busca a certeza, que o conforte?

Mas, na pompa de imenso funeral,


Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas ...

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto; 12 All around me is mourning and doubt
E, perdido num sonho imenso, escuro And lost, in a dream immense,
O suspiro das cousas tenebrosas ... 14 I listen to the sigh of night things. 48

48 (BNP/E3, 74-42). No documento (BNP/E3, 74-24) encontramos


a seguinte anota~áo, e que surge da tradu~o do último verso do soneto
«Lacrimae Rerum.,: «Soulful sigh ofUnknown (or night) things 1 (trans.
A[nrhero] Q[uenral]).,,

234 235
REDEN<;:AO

(A Ex.m• Snr.• D. Celeste C. B. R.)

II

Náo choreis, ventos, árvores e mares,


Coro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares ...

Da sombra das visóes crepusculares


Rompendo, um dia, surgireis radiosas
Desse sonho e essas ansias afronrosas,
Que exprimem vossas queixas singulares ...

Almas no limbo ainda da existéncia,


Acordareis um dia na Consciéncia,
E pairando, já puro pensamenro,

Vereis as Formas, filhas da Ilusáo, 12 Thou shalt see the Forms, daughters of what doth seem
Cair desfeitas, como um sonho váo ... FallO like one vain dream 49
E acabará por fim vosso tormento.

49 (BNP/E3, 74-44v).

236 237
O QUE DIZ A MORTE

«Deixai-os vir a mim, os que lidaram; Lec them come to me, they who toil an' dare
Deixai-os vira mim, os que padecem; Lec them come to me, they who suffer /here/
E os que cheios de mágoa e tédio encaram And they who weary and sorrowing look upon
As próprias obras vás, de que escarnecem . . . 4 They 50 own vain O at which they sneer

Em mim, os Sofrimentos que náo saram, 5 In me che sufferings that o


Paixáo, Dúvida e Mal, se desvanecem. Passion and Doubt and Evil O
As torrentes da Dor, que nunca param, Pain 'o torrents that cease not to run
Como num mar, em mim desaparecem.» - 8 As in a seá in me do disappear. 51

Assim a Morte diz. Verbo velado,


Silencioso intérprete sagrado
Das causas invisíveis, muda e fria,

É, na sua mudez, mais retumbante


Que o clamoroso mar; mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia.

50 Trata-se de um lapso gramatical. No original le-se claramente


«They» em lugar de •Their».
51 (BNP/E3, 74-43).

238 239
NA MAO DE DEUS

(Á Ex.= Sr. a D. Victoria de O. M.)

Na máo de Deus, na sua máo direita, In che hand of God, in his right D
Descansou afina! meu corac;:áo. My heart at last could find its repose
Do palácio encantado da Ilusáo Of che enchanted palace o
Desci a passo e passo a escada estreita. 4 · The narrow staircase 1 did step by step

Como as flores mortais, com que se enfeita 5 Like /che/ mortal flowers wich which itself doch drape
A ignorancia infantil, despojo váo, Childish ignorance, a vain remnant of my own
Depus do Ideal e da Paixáo Of Ideal and passion 1 laid clown
A forma transitória e imperfeita. · 8 The transitory and imperfect shape.

Como crianc;:a, em lobrega jornada, 9 Like a child in a journey O


Que a máe leva no colo agasalhada That che mother bears warm against her brease
E atravessa, sorrindo vagamente, 11 And crosses, vaguely smiling, in sleepily glee

Selvas, mares, areias do deserto ... 12 Wild Plains, seas, desert sands D .. .
Darme o teu sono, corac;:áo liberto, Sleep through thy sleep oh o
Dorme na máo de Deus eternamente! 14 Sleep in the hand of God eternally!5 2

52 (BNP/E3, 74-44). Náo transcrevemos o que parece ser a primeira


versáo dos versos 11 a 14 (ej. BN P/E3, 74-45).

240 241
APENDICE II

REFLEXOES SOBRE ANTERO DE QUENTAL


EO SONETO:

7 [140-25'] [circa 1908]

É preciso ler e reler Amhero, fixar bem a dolorosa e profunda


justeza dos epitheros, pegar o em cada termo O
Aqui, por ex[emplo], e vae ao acaso, em *desalento, O

o e de íntimos cansaros. 53

O que náo perderemos se nos esquecermos de medir o adjec-


tivo "intimo" em toda a sua dolorosa significas;áo.

De o dor e de intimos cansas;os!

53 Trata-se do quarto verso do soneto «Visáo»: «De dor sem trégua e


de íntimos cansa~os>>. A referencia a este verso neste documento fo i citada
pela primeira vez por Berrini (1985: 22).

243
8 [W-3'] [círca 1908] náo tem 56 a vida, como sonetos, que tem 57 os de Bocage- um
movimemo rhythmico que domina todos os versos, fechando-
Sonetistas -se perfeitamente no ultimo. O soneto pode ter grande perfei-
s;áo de forma sem ter um córte, como soneto, m(ui]to perfeito.
Nenhum d'elles (Shakesp[eare] e Anthero) busca o estylo. Sáo exemplos os sonetos de Heredia 58 , a que falta quasi com-
Ambos obtem a perfeis;áo, cada um no seu genero, pela per- pletamente o córte do soneto, tenham as rimas como tenham.
feita expressáo d'uma inspiras;áo completa, levando, em ser Dos sonetos terminados em parelha ha exemplos esplendi-
completa, a condis;áo da expressáo perfeita. dos na lingua ingleza /e mesmo na franceza/. Em portuguez
Náo se podem comparar, porque sáo completamente diversos. (estamo-nos referindo ao córte do soneto) ternos (e lingua
O maior arranco de imaginayáo náo nos póde fazer conceber aJguma possue soneto com córte táo perfeito para acabat em
um Shakesp[eare] escrevendo (ou pensando) os sonetos como parelhas) o "Ao Cahir das Folhas" de Antonio N obre:
os deAnthero, ouA[mhero] o como os de Shakespeare. 54 Citar 59
[76v)
56 Assim no original.
57 Assim no original.
9 [144-76]5 5 [post 1908] 58 José-Maria de Heredia (1842- 1905) foi um escritor cubano de
língua francesa, reputado pelos seus sonetos já antes d e estes terem sido
levados ao prelo, em 1893, no volume Les trophées (onde também foram
O Soneto. inseridos alguns poemas longos). Este livro encontra-se entre os volu-
mes da biblioteca particular de Fernando Pessoa albergada, na sua quase
totalidade, na Casa Fernando Pessoa (CFP) (if. Oeuvres de ]osé-Maria de
Ninguem - a náo ser Milton - teve táo perfeito como Bocage o Heredia. Les Trophées, Paris, Alphonse Lemerre éd., [1895] (CFP, 8-620
corte do soneto. Os sonetos de Anthero ou de Shakespeare sáo LMR). A reflexáo sobre Heredia pode ter surgido durante a leitura do
maiores - muito maiores, na verdade; mas analyzando-os bem, livro de Aubrey Fitz Gerald Bell, o qua! também fez parte da sua colw,:áo
particular (if. Studies in Portuguese Literature, Oxford, B.H. Blackwell,
1914, pp. 191-197 [p. 195] . (CFP, 8-36). D evo a localizac,:áo desta última
54 Existe um apontamento so!to onde Pessoa, embora afirmando que referencia aleitura do artigo d e George Monteiro (2007). A assinatura
«OS sonetos de Shakespeare náo sáo superiores aos de Anthero», duvida que inscrita na folha de guarda d o livro («Fernando PessÓa>>) indica que o
os sonetos do autor porrugues sejam superiores aos do escritor ingles (BNP/ volume foi adquirido ames do mes de Setembro de 19 16. Sobre a biblio-
/E3, 14D-30'; Escritos sobre Génio e Loucura, 2006: 1, 439). Para um escudo teca particular de Fernando Pessoa ver Pizarro, Ferrari, Cardiello (2010).
sobre alguns d os escritos de Pessoa em torno de Quema! e Shakespeare ver 59 Escrito em O utubro de 1895, este soneto foi publicado postuma-
Almeida (2008). N urna carta a Carolina Michat'iis, datada de 7 de Ágosto de mente em Despedidas (190 2): «Pudessem suas máos cobrir meu rosto, 1
188 5, Antero menciona o nome de Shakespeare entre os sonetistas que, na Fechar-me os olhos e compor-me o Jeito, 1 Q uando, sequinho, as máos
sua juventude, terá lido no original (if. Quema!, 2009: II, 478-481 [479]). em cruz no ·peito, 1 Eu me for viajar para o Sol-posto. 11 De modo que
· 55 Algumas frases desta reflexáo sobre o soneto foram publicadas pela me fa<;:a bom encosto, 1 O travesseiro comporá com jeito. 1 E eu táo feliz!
primeira vez por Berrini (1985: 22). por náo estar afeito, 1 Hei-de sorrir, Senhor! quase com gosto. // Até com

244 245
N urna cerca rapidez- J. Obras poeticas
o eis no que consiste essa inanalizavel cousa a que chama- p.VI-VII =poesías náo incluidas nos Raios de E[xtincta] Luz.
mos o c6rte do soneto. A quem tiver bem apurado o semi- VIII = algumas idem
mento do rhythmo poetico náo lhe cusrará a perceber se é
mau ou bom o corte d'um soneto qualquer. "Das artes plasticas desdenhava ... "
Ol[iveira] Martins, In Miemoriam]- 63. 61
Eis um soneto de Bocage -longe de ser dos melhores. Esco-
lho um onde a idea e o sentimento sáo melhores, e O para Urna obra que a Renascenra tema fazer: focar, synthetisar,
melhor sobresahir o rhythmo do corte: - todos os esfon;:os passados portuguezes, por em evidencia
(CLI)-? o c6rte náo é perfeito. Sanches, /Verney/, O - trazer para a evidencia os esquecidos
modernos- Moniz Ba.J:reto, O. Synthetisar obras dispersas,
Compare-se o seguinte soneto de José Anastacio como a de Anthero.
m[ui]to melhor, mas m[ui]to inferior puramente no c6rte:
(Soneto de ][osé] A[nastacio]) A[nthero] de Q [uental] 18/4/1842
a 1119/1891

BIBLIOGRAFIA, CITA<;:úES E NOTAS EM TORNO


DE ANTERO DE QUENTAL:

... "ella (a vida de Anthero) servirá de exemplo, como urna


10 [14D-37'] sociedade no mais fundo grau de abatimento pode produ-
zir um sublime cultor do ideal..." (Alberto Sampaio no In
Sobre a Bibliographia de Anthero: 60

gosto sim! Que faz quem vive 1 Órfáo de mimos, viúvo de esperans;as, 1 61 «Das artes plasticas, desdenhava; e esta maneira de sentir esthetica,
Solteiro de venturas, que náo tive? // Assim, irei d ormir comas crians:as origem de torturas sem fim: crises em que, descreme sempre, ou da capa-
1 Quase como das, quase sem pecados ... 1 E acabaráo enfim os meus cidade própria, ou do alcance das obras produzidas, concluía destruindo
cuidados.• (Nobre, 1985: 14). poemas, como desmanchava systemas, era causa de affiic;:óes pungentes».
60 Trata-se do «Ensaio de Bibliographia Anteriana>>compilado por ]. P. Oliveira Martins, •O mal d o século•, in In Memoriam (1896: 63).
Joaquim de Araújo entre 1893 e 1896 (In Memoriam, 1896: I-XCVI 62 Publicado pela primeira vez em Escritos sobre Génio e Loucura (2006: 11,
[VI-VIII]). 687 e 985).

246 247
Memoriam. A[nthero] de Q[uental] p. 9)- Very questiona- Moniz Barrero, Revista de Portugal. Vol. l. (1889) p. 26-28
ble. Urna sociedade etc. náo pode produzir O
... "Organizac¡:áo complexa mas em que predominam os dotes
p. 10. et seq. - descripc¡:áo rapida mas util de Coimbra em poeticos, o auctor dos Sonetos ficará sobretudo como um
1858 etc. evocador de visóes e um expressor de sentimentos. N'esse
vasto mundo de visóes e sentimentos que se offerece a um
Odes Modernas "em fins de 1863 estava completo" - ("náo poeta, elle escolheu as visóes mais sublimes e os sentimentos
obstam 2 pec¡:as). 63 mais nobres. A superioridade da sua poesia deriva da gran-
deza da sua alma. O proprio d' essa alma é náo ser impressio-
nada senáo pelas grandes coisas e náo se deixar mover senáo
pelos grandes interesses. O Universo na sua totalidade e na
Obras de Anthero. direcc¡:áo final do seu movimento, o Homem e o seu destino,
a funcc¡:áo espiritual dos pensadores e dos poetas contraposta
Raios de Extincta Luz. á esterilidade rotineira do sacerdocio tradicional, a magna
Ocles Modernas (3.'. ed). lucta da Egreja catholica com o Espirito moderno, o estertor
Sonetos (2.a. edic¡:áo). d'um Passado que agonisa e o vagido victorioso d'um Porvir
Primaveras Romanticas - 1871. que rompe da entranha fendida do seculo, eis as inspirac¡:óes
das Odes Modernas. E essas inspirac¡:óes náo sáo um pretexto
V. In Memoriam A[nthero] de Q[uental] 65 para as tiradas convencionaes d'uma estreia ambiciosa. Sáo
problemas que o poeta encara com urna commoc¡:áo e um
abalo de todo o seu ser, que formula ou resolve com um
12 [140-27'] accento de sinceridade unica. É que a sua imaginac¡:áo é
metaphysica, isto é, preoccupada com a representac¡:áo total
Re: Anthero do Universo."66

63 As passagens citadas foram exuaídas do ensaio de Alberto Sampaio


(«Recordayóes», in In Memoriam, 1896: 9-13 [9, 10 e 13]). Sobre esta
resenha, ver a carca enviada a Luís de Magalháes com daca de 22 de Feve-
reiro de 1892 (cj. Marrins, 200 1: 87). 66 Guilherme Moniz Barrero <<A linerarura porrugueza contempora-
64 Os primeiros quarro tírulos encomram-se ciscados. nea», &vista tÚ Portugal, (Es;a_ de Queiroz, Director), vol. I, Porro, Lugan
65 Sobre a génese do In Memoriam, ver Martins (2001). & Genelioux, 1889, pp. 26-27.

248 249
13 [14D-32') 67

O s poetas sáo: visuaes (V[ictor] Hugo) ou auditivos (Anthero).


«AQUELA MÚSICA SUAVE, TRISTE
E PENETRANTE»:
Ao contrario de Gautier, para elle o mundo ma-
terial náo existe. •A noc;áo das fórmas, das li-
nhas e dos sons possue-a num gráo eminente»,
Os sonetos de Antero de Quental
disse o maravilhoso escritór que prefaciou os na tradufáO de Fernando Pessoa
Sonc/os; tal vez náo tanto quanto ás linhas e ás
fórmas: o som sim, e a musica é a su a arte, 1
porisso que é essencialmente interior e subje-
ctiva, a arte mais distanciada das fórmas e das
imagens, relacionada com os elementos simples,
primitÍ\'OS e fundamentaes da vida pslchica.
Víctor Hu¡;o, por cxemplo, via tudo, os sen-
timentos e os sons apparcciam-lhe como objc-
ctos:
ti la \-oix qui cltanlail
S'iltinl commt un oiuau st post;

Nos ptnsiu
S'tnvoltnl un momtnl sur lturs ailts bltssits.
Puis rtlombtnl 1011dain;

António Sérgio, Notas sobre os Sonetos e as Tmdindas Geraes da Philosophia tÚ


Anthm> de Quenta/. Lisboa: Livraria Ferreira, 1909. (CFP, 8-502). (Pormenor
da p. 17).

6 7 Apontamento motivado pela leitura d e Sérgio (1 90 9: 17). Para


outras notas d e Pessoa sobre Antero escritas a partir d e leituras desee
livro ver Pizarro (2007: 133-136). Para outro documento com referencias
bibliográficas ver BN P/E3, 93A-29 e 29a.

250
He (Antero] can never lose his place among the
greater European poets of the nineteenth century.

Aubrey Fitz Gerald Bell,


Studíes in Portuguese Literatur¡,a

Ninguém parece lembrar-se da importancia que a leitura


dos sonetos de Antera de Quental exerceu sobre Fernando
Pessoa quando este ainda era um jovem aspirante a poeta.
Muito mais assinalado pela crítica literária pessoana tem sido
o efeito que criou em Pessoa a leitura da poesía de Almeida
Garrett, vínculo que podemos, em última instancia, atribuir
ao espírito mistificador do próprio Pessoa. Em 1908, tres
anos após o seu regresso da África do Sul e após mais de urna
década de leituras essencialmente inglesas, Pessoa- como
que seguindo urna necessidade visceral - incorporava a lío-
gua máe na sua escrita. Dados fornecidos pelo próprio Fer-
nando Pessoa levam o seu amigo Cortes-Rodrigues a escrever,
em 194 5, que «num impulso súbito, vindo da leitura das
Folhas Caídas e das Flores sem Fruto come<;:a. [Pessoa] a escre-
ver versos portugueses. Pensou, ao come<;:o, em escrever só
poesías inglesas. Foi a d itadura franquista que o colocou
dentro do patriotismo literário e come<;:ou entáo a desejar

68 Frase sublinhada por Pessoa neste volume, ainda presente na sua


biblioteca particular (1914: 197).

253
intensamente escrever em portugues, o que só aconteceu da sua avidez de projectos e de planos, existe um testemu-
em Setembro de 1908» (1945: 89). E, deste modo, urna nho datável de 1908 que bem pode indicar o livro ao qua!
história brevemente contada foi-se replicando, originando Pessoa se refere na nota acima referida: «.Mors Dei - Sorne
um dos principais lugares-comuns acerca da primeira forma- 20-40 1 sonnets as Anthero's on God» (v. fig. 1; documento
c;:áo literária portuguesa de Fernando Pessoa. Em 1951 , no 2, Apendice I). 69
seu clássico livro Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa No universo de cada urna das tres línguas nas quais Pessoa
' escreverá (ingles, frances e portugues), a presenc;:a de um
Jacinto do Prado Coelho salientaria os trac;:os melódicos que
este encontro deixara nalguns versos portugueses ortónimos mestre primordial parece incontornável. Nes ta altura da
(195 1: 27-28) . Mas se de urna coisa nos devemos abster, na vida de Pessoa, a leirura precederá portanto sempre a cria-
leitura e na crítica de Fernando Pessoa, é de aceitar os dados c;:áo. Quando Charles Robert Anon, a sua primeira figura
linear e isoladamente. Num manuscrito, datado de 5 de literária inglesa, redige, entre 1904 e 1905, as suas ocles
Setembro de 1908, Pessoa escreve: «Every day the papers em Durban, é John Milton quem !he serve de modelo; da
bring me news of facts that are humiliating, o to us, the mesma maneira, numa das aventuras em frances de Alexan-
Porruguese [ ... ] My solace is reading Antero de Quenral der Search, em meados de 1908, reremos momentos pastoris
[... ] I must write my book» (BNP/E3, 138A-6; Lopes, 1990: inspirados em cenos versos do poeta bretáo Auguste Brizeux.
II, 76-77). De narureza diarística, esta nota certamenre nos A passagem aproduc;:áo literária numa nova língua exigia-lhe
convida a reavaliar a hegemonía que a crítica tem concedido urna voz que o guiasse. E nos inícios da escrita em porrugues,
ao encontro de Pessoa com a poesía de Garrett. Mas mais versos ainda inéditos, datados de 7 de Oezembro de 1908 (ej.
do que isso, ela revela-nos a realidade a partir da qual Pessoa BNP/E3, 56-8), sáo também produto de um contacto inicial
comec;:ará - sobretudo desde essa altura- a urdir roda urna - dessa leitura famosa de Almeida Garrett. No enramo, em
literatura. É nesse mes de Setembro de 1908 que se envolve cada um dos exemplos mencionados até aquí, a referencia a
no que podemos denominar urna obra-enrre-línguas, náo qual Pessoa recorre está sempre na língua na qual acaba por
apenas porque continua a escrever em ingles e em frances produzir (i.e. os versos franceses de Auguste Brizeux levam
(língua utilizada já desde 1907), vindo a adicionar o por- Alexander Search a escrever em Frances, etc.). Já o que gerou
rugues, mas também porque comec;:a, pela primeira vez na a leirura dos sonetos de Anrero de Quenral é inédito em Pes-
sua vida literária, a escrever um livro de poesía numa língua soa. Nunca antes ele tinha !ido um poeta numa língua que o
a partir de versos !idos noutra. E é por este motivo que
a leitura de Quenral, realizada na mesma altura que a d e 69 Para melhor conceber a formao;:áo intelectual de Pessoa durante o
Garrett, náo deve - nem pode - ser negligenciada. Fruto período no qual nasce Mors Dei ver Pizarra (2007: 11 2).

254 255
inspirasse a produzir um livro d e versos ~outra língua. Desde olhamos atentamente para os sonetos fragmentários de Mors
o título Mors D ei (remetendo para dois sonetos de Quental, Dei- ainda inéditos - percebemos o papel que esta primeira
«Mors Liberatrix» e «Mors-Amon>), passando pelo assunto tradus:áo de um poeta portugues desempenhou para Pes-
(Deus), ao sub-género (soneto), constatamos o modo como soa. Nestes sonetos ingleses, nas várias refl.exóes literárias
Pessoa le e projecta, le e cria. Neste caso le em portugues e que publicamos nos dois apendices e nas tradus:óes que de
cría em ingles. Mas nada nele surge infundada ou isolada- seguida comentaremos brevemente, encontramos precisa-
mente. Um escrutínio cuidado dos papéis deixados por Pes- mente o que será urna das preocupas:óes centrais da poética
soa permite apurar que o plano, já aqui referido, indicando pessoana: o esculpir do verso. Nos versos concebidos para
a co-habita<;áo de dois projectos («sonnets of Anthero de Mors Dei encontramos algumas estrofes inacabadas com
Quental» e «Mors Dei»), se interliga indubitavelmente com grandes lacunas entre o início e o fim dos versos (por vezes
outro gesto fulcral de Pessoa: a tradus:áo em língua inglesa só com urna palavra em posis:áo de rima). Presume-se, assim,
dos sonetos de Antero. que na eserita de Mors Dei - da mesma maneira que na tra-
Quando confrontamos o suporte material no qual foi dus:áo- Pessoa é guiado náo só pelo conteúdo, mas também
escrita a nota do 5 de Setembro de 1908 e onde foram pela estrutura do verso, oeste caso decassilábica, e pelos seus
tras:ados alguns dos sonetos ingleses sob o cabes:alho Mors contornos (as rimas e os inícios de versos). É o que acontece
Dei, verificamos que é o mesmo. Neste mesmo papel Pessoa no seguinte exemplo de um soneto para Mors D ei, onde
traduzirá 30 (dos 31 )7° sonetos de Antero de Quental (v. Pessoa, já tendo inserido o início e o fim do primeiro verso,
Apendice I) , que nunca virá a publicar, e redigirá dois frag- deverá procurar urna palavra monossilábica para completar
mentos sobre a poesía de Quental que poderiam ter vindo o decassílabo: «Thou shakest me with that O voice and cold»
a servir para prefaciar a sua tradus:áo (v. fig. 2; documentos (BNP/E3, 49D 2 -65).
5 e 6, Apendice I). Por outras palavras, num mesmo espas:o Nos esbos:os que Pessoa deixa para prefaciar o livro de
temporal, Pessoa é escritor de sonetos («Mors Dei»), crítico tradus:óes dos sonetos de Quental deparamo-nos justamente
literário de sonetos, e tradutor de sonetos 71 • Mas só quando coma relevancia que a fo rma tem na génese e no desen-
volvimento da sua crias:áo poética. Urna das suas primeiras
70 No tocal, Pessoa traduziu 31 sonetos, dos quais quatro perten cem
asérie de seis sonetos intitulada «Elogio da Marte• e outro asérie de dois,
intitulada •Redencyáo». · indicac;áo deixada pelo próprio Pessoa no plano da O lisipo (c. 1921-1923)
71 Nesra altura, se nos guiarmos estritameme pelo plan o das tarefas de exclui qualquer tipo de atribuic;óes (nesta altura heteronímicas) no que
Charles James Search e pela nota acerca do papel do seu irmáo, Alexan der, diz respeito arraducyáo (if. BN P/E3, 137A-24; Mega Ferreira, 1986: 161).
enquanto p refaciador, náo deveríamos atribuir a Pessoa, anos mais tarde, Repare-se que, neste último plano, náo há indicac;óes sobre o prefácio nem
estas ú ltimas duas tarefas. Comudo , como o leitor p oderá apreciar, a sobre o autor do prefácio.

256 257
observa<;:óes, enquanto tradutor-prefaciador, é sobre «[the] lher urna palavra com sentido diferente em lugar de optar por
sculptural handling of the sonnet» que caracteriza a poesía urna tradu<;:áo literal. É o caso de (<Nirvana», onde a palavra
de Antero (v. documento 5, Apendice 1). E, no utro texto (dlusáo» é traduzida por (woid» (com urna sílaba) em lugar de
mais .desenvolvido, lemos: «In the sonnets of Anthero de (dllusion» (com tres sílabas) . Em (<Transcendentalismo», para
Quental we find a perfect o of form to idea, and this ren- perder urna sílaba, ternos o recurso a aférese (/Tis» em lugar
ders their proper translation impossible» (v. documento 6, de <dt is») e a síncope (((howe'er» em lugar de ((however») .
Apendice 1). Considerando Antero um poeta auditivo (v. (2) Como observamos no soneto (<Das Unnennbare», Pes-
documento 13, Apendice 11), Pessoa sabia que o seu grande soa come<;:a por escolher tres palavras em posi<;:áo de rima
desafio como tradutor residia precisamente na reconstru<;:áo (((airy», ((weary» e <(fairy>>) (v. fig. 4). No entanto, nenhuma
da passagem «perfeita d a forma a ideia», sem descurar a delas acaba por figurar no fim de cada um dos versos para os
natureza musical do poema anteriano. quais teriam sido cand_idatas. Na tradu<;:áo do primeiro dos
Assim, alguns dos parametros nos quais Pessoa terá sonetos intitulados (<A M. C.», por exemplo, encontramos
baseado a sua tradu<;:áo dos sonetos foram: (1 ) mantera duas op<;:óes q ue Pessoa deixa de parte para o quarto verso
quantidade silábica, (2) respeitar o esquema das rimas e (3) que acabará por nem sequer traduzir. Ambos os casos parti-
reproduzir as pausas (tanto a pausa dada pelo sentido como lham o facto seguinte: as palavras em posi<;:áo de rima, e que
a pausa gramatical). O primeiro soneto na ordem dos sone- se encontram dentro de urna caixa, foram sempre o início
tos traduzidos, «Lam ento» 72 (v. fig. 3), é um exemplo da da tradu<;:áo do verso em questáo. Existe outro caso q ue diz
observancia da totalidade destes parametros. Mas vejamos respeito a importancia outorgada a rima n áo menos digno
agora o modo com o ele aplicou os diferentes parametros em de ser mencionado. Trata-se da tradu<;:áo dos versos 11 e 14
diferentes sonetos: do soneto ((O inconsciente» (cf BNP/E3, 74-48), os quais,
(1) Na tradw;:áo do soneto ((Convertido» (v. fig. 5), a fim devendo rimar, seráo trabalhados num papel aparte. Urna
de ganhar urna sílaba, Pessoa acrescentará um acento grave terceira m an eira de trabalhar a rima- que se evidencia na
ao particípio passado do verbo curse (passando do monossí- sua arte de tradutor ao longo dos anos - é a que encontra-
labo cursed ao dissílabo cursed) . Mas nem sempre se trata de mos, por exemplo, no soneto ((Evolu<;:áo» (v. fig. 6). Aqui,
acrescentar acentos; por vezes, a necessidade de perder urna como nos sonetos que escreve para Mors Dei, Pessoa inicia
ou mais sílabas para obter o decassílabo o terá levado a esco- e acaba o verso, isto é, concebe inicialmente os contornos
do verso, deixando a concep<;:áo do centro para último lugar.
72 Na tradu yáo de Pessoa nunca sáo referidos os tÍtulos. Por essa razáo, (3) No que respeita as pausas do fim do verso (dadas pelo
referimo-nos sempre aos sonetos traduzidos pelo título original portugues. sentido) , Pessoa introduz altera<;:óes, traduzindo sempre

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um verso por um verso, só em poucos casos recorrendo ao tamento especial que excede o espac¡:o deste breve posfá-
enjambement sem este estar no original (v. versos 12-13 da cio. A título de exemplo poderíamos mencionar o fim de
traduc¡:áo do soneto «Evoluc¡:áo» ou o v. 1 da traduc¡:áo de «Ü Convertido», ande o tradutor, consciente de tratar-se de
«Ü Palácio da Ventura»). Por outras palavras, Pessoa tentará, um verso heróico (acento obrigatório na 6.• e na 10.• sílaba)
em geral, fazer urna tradw;:áo em que cada verso de Antero faz a seguinte leitura: «Só me falta saber se Deus existe!».
mantém a sua posic¡:áo- urna das excepc¡:óes sendo a primeira É provavelmente a atenc¡:áo dada aos acentos (marcados por
estrofe do soneto «Despondency». Um caso digno de aten- nós em negrito) que, no recurso a urna pausa gramatical (que
c¡:áo é «Horno» ande, substituindo o lugar de «perchance» servirá de cesura), terá levado Pessoa a dividir o verso em
por «bastard», na última estrofe, Pessoa cría urna pausa no dais compassos: «Üne thing remains: to know ifGod exists!».
verso 13 antes do fim do poema - pausa que náo sentimos Desta maneira, a versáo inglesa acaba por salientar formal-
no original mas que na traduc¡:áo dá relevo ao substantivo mente - e fá-lo mais do. que o original- a temática da dúvida
«bastard>>, o qual no original tinha ficado perdido no enjam- que tanto domina os poemas anterianos desse período.
bement do verso final. As pausas gramaticais sáo em geral Como depreendemos dos diferentes exemplos descritos,
mantidas, salvo em casos extremos ande Antero lanc¡:a urna constatamos que a coesáo estrutural foi central ao longo da
pergunta seguida de urna interjeic¡:áo e pontos de suspensáo traduc¡:áo de Pessoa - coesáo nunca isenta de sensibilidade
(v. o soneto «No Turbilháo>>) o u quando recorre de modo sonora. Numerosas seráo as subtilezas que Pessoa, com apenas
excessivo aos pontos de suspensáo. Em alguns casos o tra- 20 anos de idade, nos oferecerá neste seu primeiro empre-
dutor optará antes pelo travessáo (v. o soneto «lgnotus>>); endimento enquanro tradutor de língua portuguesa. E esta
noutros, náo só os substituirá como também os alterará de atenc¡:áo dada a métrica, as rimas, e as pausas surge de urn tra-
posic¡:áo para obter um cerco efeito. É o caso do 8. 0 verso balho do ritmo, intrínseco a sua consciencia de poeta-tradutor.
do soneto «Transcendentalismo>>: «Darkness and dust, cold Quando, no fim do soneto «Despondency», Pessoa insere o
and brute matter- there>>. Colocando o travessáo antes da advérbio «aye», inexistente na versáo original, fe-lo por razóes
palavra «there» (palavra que náo está no original), Pessoa de quamidade silábica, mas também a fim de criar urna pausa
produz urna pausa antes do fim do verso, remetendo assim que preservasse o ritmo ternário do verso de Antero. Con-
o leitor (através da pausa gerada) para o sentido global do tuda, a preocupac¡:áo de Pessoa náo será unicamente de ordem
soneto, o vazio. auditiva. Através desta sua inserc¡:áo, o tradutor reitera esse
A forma do verso é determinada pelas sílabas e a maneira imperativo com o qual abre cada estrofe, recriando mesmo
como elas sáo combinadas pelas pausas, pelas rimas - mas «a nota desprendida» referida no fim do soneto. O significado
também pelo acento. Este último ponto m erecería um tra- dos versos nunca vem em detrimento da sonoridade, havendo

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mesmo lugar a fórmulas semanticas felizes como, por exem- impossível de ser traduzida como considera ser a de Quental
plo, a traduc;:áo de <<humo ondeante» pela palavra composta (cf. Almeida, 2 008: 54-55) (v. documento 6, Apendice I).
«smoke-waves», no soneto <<Contemplac;:áo». É nesta mesma linha que se inserem as seguintes considera-
As traduyóes dos sonetos de Quental, inicialmente fazendo yóes tecidas por Pessoa alguns anos após estas suas traduyóes:
parte das tarefas de Charles James Search (v. documento 1, <<Como traduzir bem um soneto de Anthero, sem desappa-
Apendice I), náo se encontram assinadas nem nunca foram recer, pelo menos, aquella musica suave, triste e penetrante,
publicadas por Pessoa. Este projecto, mencionado em suces- intima de lyrismo, que é parte psychologicamente com-
sivos planos e em diversos momentos da sua vida (v. docu- ponente da grandeza lyrica de Anthero? [... ]A traducyáo
mentos 1-4, Apendice I) veio a ser contemplado na lista da de um poeta lyrico só serve para dar urna idéa do que elle
Olisipo (c. 1921/1923), com a indicac;:áo de Fernando Pessoa escreveu e sobre o que escreveu; o leitor d 'ella deve porém
como tradutor. O título («Sonnets ofQuental») permite-nos estar sempre premunido com urna certeza: a de que essa
depreender que se trataria de urna antología, cuja selecc;:áo traducc;:áo por boa que seja é ao mesmo tempo incompleta
final nos é desconhecida (BNP/E3, 137A-24; Mega Ferreira, e falsa» (BNP/E3, 19-1 OY; cf Páginas de Estética e de Teoría
1986: 161). Mas o facto é que, das poesías traduzidas, mais e Crítica Literárias, 1967: 341-342)_75
de metade correspondem aos dois últimos períodos73 da
criayáo de Quental (1874-1880 e 1880-1 884), quando as Patricio Ferrari
preocupayóes metafísicas ganham urna particular agudeza. Escoril, Junho 201 O
Pessoa interessou-se por diferentes facetas da obra do
poeta ayoriano (v. documentos 10 a 13, Apendice II) . Urna
delas foi, sem dúvida, essa capacidade de trazer emoc;:áo ao
pensamento74 que, segundo Pessoa, caracteriza urna poesia

73 Sobre a ordena<ráo dos sonetos, ver Pereira (1993).


74 No prefácio aos sonetos complecos de Quental, Oliveira Martins
refere-se nos seguintes termos: «É um poeta que sen te, mas é um racio-
cinio que pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa». D e facto, num
texto datável de 1908, Pessoa escreve: «[ .. .] his inspiration [Amero's] does
not go from his feeling ro his intellect , as in most poers it does, but from
intellect to sentiment. His poems are made of the Jirst thought, then the
thought is ftlt: then comes the expression» (BNP/E3, 14 D -18v; Escritos de Pessoa no seu poema sobre a ceifeira (•O que em mim sente stá pen-
sobre Génio e Loucura, 2006: I, 438). A descric;:áo da m aneira através da sando>>), publicado no n . 0 3 d a cevistaAthena em Dezembro de 1924 .
qual a expressáo artística surge em Anteco remete para um dos versos 75 Devo a localiza<ráo desre texto no espólio de Pessoa a Pauly Ellen Bothe.

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Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

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Guimaráes
é urna chancela

O S SO NETOS COM PLETOS DE ANTERO D E QUENTAL

Edis;áo © BABEL, 20 10

PREPÁCIO
J. P. Oliveira Martins
NOTA PRÉVI~ , TRANSCR I9ÓES E POSFÁC IO
Patricio Ferrari

CAPA
Joáo Borelho

REV ISÁO
Susana Tavares Pedro

Este livro foi composto com o tipo Adobe Garam ond


por Guidesign e impresso na Guide
para a G uimaráes em Novembro de 2010

ISBN
978-972-665-651-7

DE I'ÓS!TO LEGA L
315 84 1/10

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já foram inventadas. Nós somos do seculo d'inventar outra vez as
palavras que já foram inventadas.
Jost D! ALMAOA-NEGREIROS

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