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co n tos de t r adi ção or al

Violência
contra a criança,
o idoso, a mulher
co l eção t em át i ca fa m í l ia pa ra na en se

1
g ove r n o d o e sta d o d o pa r a ná
ca r lo s m a s s a r at i n h o j u n i o r – gov e rnador

se c r e ta r ia d e e sta d o da ju sti ç a, famí lia e t rab alh o


n e y l e p r evo st – se c r e tá r io
a dayr ca b r a l f i l h o – d ir e to r ge ral
l et í c ia r e g i na h i l l en d o s r e is – coorde nadora
d o pro g r a m a fa m íl ia pa r a na e n se

e l a b o r aç ão e r e daç ão
g i s l ay n e av el a r m ato s

r e visão t é c n ic a
de n i s e k o p p z u g m a n – a sse ssora t é c n i c a
d o pro g r a m a fa m íl ia pa r a na e n se

co l a b o r a d o r
e v erto n d e o l i v e i r a – a sse ss or t é c n i co
d o pro g r a m a fa m íl ia pa r a na e n se

r e visão d e t e x to
vâ n ia a lv e s de s á

pro je to g r á f ico, d iag r a m aç ão e i l u st raçõe s


ca ro l i na m o r a es s a n ta na

20 1 9
co le ção temát i ca famí lia par anaen se
co n to s de t r adi ção or al

Violência
contra a criança,
o idoso, a mulher
Palavra do secretário

Para termos um Paraná cada vez mais justo, é fundamental inves-


tirmos no acompanhamento das famílias que vivem em situação de
vulnerabilidade e risco social.
Por isso, a Secretaria da Justiça, Família e Trabalho deseja apoiar os
profissionais que atuam diretamente com esta população, nos diversos
programas, projetos e ações concebidos para a redução da pobreza e
a melhoria na qualidade de vida. Como é o caso do Programa Família
Paranaense, que em suas diferentes modalidades hoje está presente
em todos os 399 municípios do nosso Estado, atendendo mais de 300
mil famílias e sendo continuamente ampliado e aprimorado, com ações
nos eixos da Assistência Social, Habitação, Educação, Saúde, Segurança
Alimentar e Trabalho.
Uma das novidades que trouxemos para nossos parceiros na execução
deste Programa é a presente Coleção Temática de Contos da Tradição
Oral. Ao mesmo tempo em que valoriza a sabedoria popular, ela apre-
senta ferramentas que levarão as famílias à reflexão, ao diálogo e ao
fortalecimento de seus vínculos familiares e comunitários.
Este material certamente irá incrementar ainda mais o trabalho desen-
volvido diariamente. É assim, juntos e com sensibilidade, que o Governo
do Estado e os municípios contribuirão para que cada família paranaense
construa uma nova história de vida, com oportunidades e compromisso.

Boa leitura e bom trabalho!

Ney Leprevost
Secretário de Estado da Justiça, Família e Trabalho
Apresentação

O acompanhamento familiar do Programa Família Paranaense con-


siste em um conjunto de ações articuladas com o objetivo de apoiar
as potencialidades de cada família e a sua autonomia, a fim de que ela
acesse integralmente a estrutura de oportunidades relativas à educa-
ção, saúde, trabalho e assistência social.

Uma das formas de proporcionar a autonomia e a cidadania é com o


desenvolvimento de um espaço para a reflexão sobre temas que fazem
parte da experiência cotidiana das famílias, e que estejam vinculados à
promoção de recursos como esperança, coragem, autonomia, empode-
ramento e persistência, entre outros.

Para tanto, ao longo do nosso trabalho junto aos municípios, iden-


tificamos a necessidade de criar um material pedagógico que dê
apoio técnico aos profissionais que estão à frente da execução do
acompanhamento familiar.

Devido às características da população atendida, o material deve dia-


logar com a família de forma a respeitar o seu contexto e repertório de
vida. Para tanto, elegemos como instrumento desta interlocução os
contos de tradição oral. Primeiro, pela facilidade com que são assi-
milados pelas culturas mais diversas. Em segundo lugar, devido à
abrangência de seus temas, como amor, desamor, abandono, perda,
coragem, justiça, desigualdade, esperança, etc, que se encontram
na base das experiências humanas. Além disso, por utilizar-se de
metáforas e de uma linguagem de imagens que é amplamente
acessível. Finalmente, por ter funções educativas e psicossociais.

A presente Coleção Temática foi pensada para somar-se aos recursos


utilizados pelos Comitês Locais do Programa Família Paranaense,
especialmente técnicos de CRAS e CREAS. Elaborada a partir da consul-
toria de Gislayne Avelar Matos – contadora de histórias, pesquisadora,
formadora e pioneira em storytelling no Brasil – consiste em Cadernos
Temáticos com contos relacionados à União, Resiliência, Confiança,
Persistência, Autoproteção e Autocuidado, e 1 Caderno Teórico com
todas as orientações sobre o trabalho com contos. Pode ser utilizada
nos encontros individuais e coletivos com famílias participantes do
acompanhamento familiar do Programa Família Paranaense, e em
outras ações desenvolvidas pelos equipamentos socioassistenciais.

Não poderia deixar de ressaltar a parceria do Estado do Paraná com o


Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que tem proporcio-
nado a concretização deste e de outros projetos do Programa Família
Paranaense. Nosso objetivo é subsidiar cada vez mais a prática do tra-
balho social com famílias, com recursos inovadores e qualificados, que
farão a diferença na vida das pessoas.

Letícia Regina Hillen dos Reis


Coordenadora Estadual do Programa Família Paranaense
Sumário

13 A raiva pode esconder


Caderno temático muita tristeza

Apresentação da metodologia 29
Brasinha
23
Tudo que começa em ira,
Introdução
acaba em tristeza
A violência é a força dos fracos
35
O rei e o falcão

41
Contos
A prancha
de pregos
Ouvir e escutar

25 Paciência e determinação
A disputa das
45
palavras
O pelo do Leão
A experiência tem valor A violência cometida com
um diz respeito a todos
52
Livrar-se dos velhos 95
A querela das
Não se ganha amor duas lagartixas
com violência

57
A lebre e o baobá 105
Produção criativa
Atitudes violentas podem Mosaico
causar danos irreparáveis

64 114
A árvore florida Referências

76
Pele de Asno
Caderno Temático

13
Apresentação da Metodologia

Famílias em situação de vulnerabilidade e risco social são


cotidianamente desafiadas por múltiplos problemas decor-
rentes da exclusão social. Com frequência, tais problemas são
severos e de longa duração. Os esforços que essas famílias
empreendem na busca de soluções, raramente apresentam
resultados substanciais que levem à superação das dificul-
dades e melhoria das condições de vida. A rota de pobreza e
exclusão é marcada por uma longa série de situações adversas
e expectativas frustradas, que frequentemente assumem uma
dimensão transgeracional, confirmando a crença nas impos-
sibilidades que marcam ad infinitum a família. O objetivo do
trabalho social com famílias é contribuir para o protagonismo,
autonomia, conquista de direitos e qualidade de vida dos

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usuários. Para tanto é necessário apostar, que mudanças são
possíveis, que transformações são viáveis. Em tal direção, a
prática envolvendo contos de tradição oral é irrefutável.
A simples escuta desses os contos pode promover mudanças no
ouvinte – as razões já foram explanadas no caderno teórico.
No entanto, entende-se que, para contemplar os objetivos do
trabalho social, relacionados acima, os benefícios dessa escuta
poderão ser verificados muito mais rapidamente se a reflexão
sobre a temática dos contos trabalhados for provocada.
Nesse sentido, foi elaborada uma metodologia cujo objetivo
central é instrumentalizar os profissionais de referência, para
utilizarem os contos visando seu máximo aproveitamento.
Os objetivos específicos foram, então:
— Elaborar um "Caderno Teórico" que contribua para a amplia-
ção dos conhecimentos dos profissionais sobre os contos de
tradição oral.
— Oferecer uma seleção de contos temáticos, de acordo com
as necessidades apontadas pelos profissionais de referên-
cia do programa.
— Propor um roteiro para o aprofundamento nos temas propos-
tos pelos contos selecionados.
— Relacionar pontos interessantes de serem abordados na “con-
versa" após a escuta dos contos, ou como preparo para sua escuta.
— Propor perguntas reflexivas ao final de cada conto, para aju-
dar os membros da família e/ou da comunidade a refletirem
sobre sua temática.
— Sugerir produções criativas em cada um dos cadernos temáticos.

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O Caderno Temático inicialmente introduzirá, de forma geral, os
temas propostos. Em seguida, serão apresentados os contos
que deverão ilustrar tais temas, e abordá-los por diversos
ângulos e níveis de complexidade. Vale observar que, um
único conto poderia ser elencado em diferentes cadernos
temáticos. Mas, por uma questão didática, eles foram coloca-
dos em um tema ou outro.

Roteiro da metodologia

1. Introdução
Breve explanação do tema central do caderno, que dará
subsídios ao profissional para sua abordagem na família
ou na comunidade.

2. Este conto adverte…


É uma explicação prévia e suscinta sobre o tipo de conto: estrutura
simples ou complexa. E sugestão de alguns itens importantes
que poderão ser levantados na temática de cada conto.

3. Apresentação do conto
Há contos de estrutura simples, que podem ser narrados sem
o apoio do texto escrito, pois não demandam grande esforço
de memorização. Outros, de estrutura mais complexa,

16
podem ser lidos pelo profissional que, não tendo uma forma-
ção específica na arte de contar histórias, poderá encontrar
dificuldades em memorizá-los. Entre esses, alguns requerem
uma leitura simbólica, para seu melhor aproveitamento. Tal
leitura será feita logo abaixo do conto.
Há símbolos que podem ter diferentes significados, a depender
da cultura ou da perspectiva de análise. Também podem
ter significados subjetivos, mas em sua grande maioria, o
caráter de universalidade na simbologia dos contos de tra-
dição oral é inegável. No caso da leitura feita aqui, ela busca
vincular o “universal" desses contos com as experiências
“particulares" de quem os ouve.

4. Sugestão de perguntas reflexivas


As perguntas reflexivas visam, sobretudo, inspirar.
Não se trata, portanto, de: “seguir à risca”. Caberá ao profissional
responsável pelo trabalho com a família/comunidade decidir
sobre cada uma das sugestões se perguntando:
— Como um exercício de reflexão, esta pergunta é aplicável da
forma como foi sugerida?
— Ela fará sentido neste contexto?
— Esta pergunta será útil apenas como um apoio ao profis-
sional para se propor uma "conversa" no grupo? Ou vale
colocá-la aos participantes?

O intuito dessas perguntas não é ativar conteúdos emocionais


que necessitariam de tratamento especializado, mas, sim,

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potencializar as conversas após a escuta de cada conto e
durante as produções criativas.

5. A conversa
A conversa será fundamental para a maior assimilação do
conto e de sua relação com a própria história.
A palavra tece os afetos e, por isso mesmo, abre espaços
internos para a sincronização de emoções entre os interlo-
cutores. Depois de falar sobre algo, o que se experimenta é
uma nova forma de relacionar com a situação vivida e ins-
crita na memória. A conversa coletiva tem a função de unir
os indivíduos de um mesmo grupo em torno de uma repre-
sentação, essa que foi tecida com as palavras de cada um.
A conversa após o conto, pode ter sua inspiração nas pergun-
tas reflexivas sugeridas ou partir de questões, tais como:
— O que há nesse conto que mais me chamou a atenção?
— Que atitudes dos personagens eu gostaria de comentar?
— O que há nesse conto que eu gostaria guardar na memó-
ria? Uma frase? Uma atitude de um personagem?

6. Produção Criativa
As produções criativas propõem outras linguagens para se
expressar, além do discurso oral. Elas são, também, uma outra
forma de explorar os temas trabalhados, pois nem sempre as
palavras bastam ou são o melhor meio de compreensão. Elas
ativam a imaginação sugerindo novos olhares e podem abrir
novos canais de comunicação com o grupo.

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As produções criativas não devem ser nem interpretadas e nem
avaliadas esteticamente, pois sua função é mediar a reflexão
e ação em diversos níveis.
Cada pessoa pode ser incentivada a falar livremente sobre sua
produção. Para o profissional, é importante ressaltar que,
tendo em vista a política de assistencia e de direitos, em todas
as produções ele poderá propor reflexões que reforcem o for-
talecimento do princípio da autodeterminação, ou seja, da
capacidade de se superar os problemas vivenciados, super-
dimensionando a perspectiva e as responsabilidades dos
indivíduos na superação de suas dificuldades, como propõe
Teixeira1.
1
TEIXEIRA,
(2013, pag. 131)
Ao final de cada produção temática uma conversa nesses termos
pode ser estimulada.
As produções criativas sugeridas não necessitam de um conheci-
mento prévio da linguagem artística e nem exigem nenhuma
habilidade específica. São construções simples, com a utiliza-
ção de materiais de fácil manuseio e acessíveis.
Elas podem ser realizadas da forma como foram sugeridas,
mas também podem servir como inspiração para que o pro-
fissional crie outras diferentes ou faça adaptações a essas,
apresentadas aqui.
Cada tema terá sua produção criativa com o passo a passo ao
final do caderno temático.

19
Observação

É importante que se tome conhecimento de todo o material


do caderno temático antes de iniciar o trabalho.
O conhecimento prévio de todos os contos apresentados no
caderno temático, introduzido em Este conto adverte… e as per-
guntas reflexivas sugeridas ao final, ajudará o profissional em
seu planejamento com a família/comunidade.
O ideal é que se inicie sempre por um ou dois contos de estrutura
simples. Dois desses contos poderão ser contados na mesma
sessão, caso o profissional opte por isso. Os mais longos pode-
rão ser divididos em duas ou três sessões, por exemplo.
Fica a cargo do profissional escolher com qual dos contos poderá
abrir a temática com cada família.
Em relação às produções criativas, elas poderão ser desenvol-
vidas por etapas, ao longo do trabalho com o tema, como
sugerido, mas também poderão ser desenvolvidas em outros
formatos, caso o profissional opte por isso.

20
Material

1. Um caderno de capa dura, que seja bonito! Indicado para as


anotações que serão feitas como num diário de viagem.
2. Um lápis, uma caneta, uma borracha.
3. Uma caixa bonita, onde serão guardados o caderno e tam-
bém outras coisas confeccionadas ao longo do processo.
A caixa será comparada a um baú de tesouros.
Todo aprendizado é um tesouro e nessa caixa, será guardado o
aprendizado adquirido através dos contos.
Pode-se designar também um “guardião" da caixa que cuidará
dela até o próximo encontro, quando um novo “guardião"
poderá ser escolhido.
Há um aspecto simbólico importante na caixa, como baú de
tesouro; no caderno, como um diário de viagem e nas funções
de guardião e de escriba. Todos eles são metáforas que impri-
mem importância e solenidade ao ato de aprender sobre a
“arte de viver.”

A relação dos materiais usados nas produções criativas respec-


tivas a cada tema será colocada ao final de cada roteiro, no
passo a passo dos cadernos temáticos.

21
Introdução

"A violência é a força dos fracos". Não há dúvidas! E a punição


dos que a cometeram é o alívio daqueles que a sofreram. Mas
julgar e condenar é assunto para os juízes não para os educa-
dores. Esses "tomam pelas mãos" e apontam outros caminhos
que podem levar a mudanças de atitudes. Não quer dizer
que seguramente levem, mas sempre há uma possibilidade,
aí está a esperança. Portanto, abordar o tema da violência
com os grupos de trabalho – de qualquer tipo ou natureza
– mostrando-lhes, por meio da linguagem metafórica dos
contos, os ingredientes que, quando misturados podem ser
explosivos e resultar em ações e reações violentas é um bom
caminho, para trazer o tema à baila e refletir sobre ele. As
mudanças precisam acontecer nas duas pontas da situação
de violência: a ponta onde está aquele que a prática e a outra
ponta, onde está aquele que a sofre.
Neste caderno, alguns contos, tratando desse tema sob diversos
ângulos poderão orientar o técnico que, conhecedor da famí-
lia e onde "apertam os seus calos”, saberá escolher o conto que
melhor lhes convier. Começaremos pela violência que chega
pelas palavras incompreendidas e, passando por outras for-
mas de violência, chegaremos a uma das mais traumáticas, a
que envolve o incesto e o abuso sexual em ambiente familiar.

23
O conto a seguir adverte...

Ouvir e escutar não são a mesma coisa. Escutar é bem mais


que simplesmente ouvir, pressupõe um esforço para saber o
que a outra pessoa "quer dizer". Ouvir com o filtro dos próprios
condicionamentos, crenças e experiências e pretender impor
a própria forma de dizer e pensar, como verdade, dificulta a
compreensão da narrativa do outro. Escutar requer despren-
dimento e empatia para aceitar que existem variadas formas
de se lidar com uma mesma realidade. Pensar que “talvez" se
esteja buscando a mesma coisa é um ponto de partida útil para
se evitar desgastes e discussões que podem acabar mal. O conto
A disputa das palavras resume bem essa premissa e mostra o
quanto as disputas podem ser desnecessárias.

24
A disputa das palavras

Um homem doou uma moeda de prata a quatro pessoas.


Uma delas, um persa, disse:
— Com esta moeda, quero comprar angur.
O segundo, um árabe, exclamou:
— Que insensato, não vamos comprar angur, vamos comprar inab.
O terceiro era turco e disse:
— Esta moeda é minha também e não quero nem inab nem
angur, quero uzum.
— O quarto, um grego, não se conformou:
— Calem-se todos, com esta moeda compraremos israfil.
Começaram a brigar entre eles porque ignoravam o verdadeiro
sentido das palavras. Esbofetearam-se, insultaram-se, até
que um homem sábio chegou ali. Ele conhecia muitas lín-
guas e lhes disse:
— Dêem-me esta moeda e confiem em mim. Com ela comprarei
algo que satisfará a todos vocês.

25
Sem opção melhor, eles lhe entregaram a moeda. O homem
sábio foi ao mercado, comprou uma boa porção de uvas que
entregou aos quatro briguentos. Todos ficaram satisfeitos
vendo seu desejo realizado.
Ignorantes, eles não sabiam que todos desejavam a mesma coisa.
Angur, inab, israfil e uzum significam uva nesses idiomas.

A disputa das palavras 26


Sugestão de perguntas reflexivas

Vocês já tiveram a sensação de estarem falando outra língua,


tamanha a falta de entendimento do seu ouvinte?
Você já se deu conta de que muitas vezes depois de muito dispu-
tar chega-se à conclusão de que estão todos falando e desejando
as mesmas coisas?

27
O conto a seguir adverte...

A raiva pode esconder muita tristeza: é disso que trata o conto


Brasinha. É um conto com uma linguagem infantil para falar
às crianças sobre elas mesmas, mas é sem dúvida um recado a
ser dado aos adultos responsáveis por elas. Esse conto pode ser
contado às famílias onde haja uma reclamação sobre o compor-
tamento agressivo de uma criança. Muitas vezes é a escola que
acende o alarme. Nesse caso, contar Brasinha pode fazer com que
toda a família se veja representada.

28
Brasinha

Era uma vez um peixinho chamado Brasinha. Vivia num mar


distante, não muito grande, mas cheinho de peixes.Morava com
seus pais. Papai-peixe e mamãe-peixe eram bastante severos.
Não se sabe por que, eles o impediam de fazer uma porção de coi-
sas. Talvez com medo de que se machucasse ou se perdesse.
Eles não lhe explicaram isso claramente, pois os pais-peixes
não falam muito. Não é à toa que se diz, às vezes:
— Mudo como um peixe!
Brasinha era repreendido por nadar, brincar, fazer barulho com a
boca e muitas vezes gritavam com ele, ou até pior.
Logo, ele passou a achar que nunca fazia nada de bom ou de
certo. Muitas vezes se perguntava se seus pais eram mesmo
“pais verdadeiros”, de tanto que os achava severos e não
pensava que talvez essa era a única forma que eles mesmos

29
aprenderam sobre como se deveria educar um peixinho.
E, assim, ele foi se tornando um peixinho muito triste.
Às vezes, sentia-se sobrando. Tinha medo demais, às vezes do
pai, às vezes da mãe. Esse medo escondia bem dentro dele.
Nunca o confessaria a ninguém. Além do mais, falar com
quem? Os outros peixes não pareciam se interessar!
Sabem o que Brasinha fazia quando chegava à escola? Rápido,
nadava na direção dos outros peixes, no pátio da escola e os
mordia, assim: cratch, cratch! Dava-lhes tapas nas costas com
as nadadeiras e com a cauda. Jogava água em seus olhos, para
que chorassem. – Eh! Os peixes também choram! A gente
não vê, porque as lágrimas se misturam com a água do mar.
Todos os outros peixes ficavam espantados ao ver Brasinha mor-
der e bater desse jeito e tinham medo dele. Era desse jeito que
funcionava dentro dele: tinha medo do pai e um pouco de
medo da mãe, então, fazia medo aos outros peixinhos.
Mas, bem no fundo, ele estava muito triste. A raiva apenas escon-
dia a tristeza. Se vocês soubessem como é triste a tristeza de
uma criancinha-peixe! É triste de tal maneira que, às vezes, a
água do mar até fica cinzenta.
Um dia, a mestra dos peixes se aproximou de Brasinha:
— Estou vendo como você bate nos outros peixinhos. Aliás, na
maioria das vezes, impedi você de fazer isso. Não quero que
seus colegas tenham medo do você. Tenho observado que
você está sempre cheio de raiva. Em alguns dias, uma grande
raiva, vermelhinha. Ontem a noite, antes de me deitar, pensei
em você, refleti bastante e, então, tive uma idéia: trouxe para

Brasinha 30
você uma caixa, onde poderá colocar toda a sua raiva. Todos
os peixinhos vão poder colocar sua raiva nessa caixa. Quando
você chegar de manhã, pode por a raiva na caixa e, de tarde,
se você quiser, pode pegá-la e levá-la para sua casa. Se você
quiser, pode deixar a raiva dormir aqui na escola. Na manhã
seguinte, ela estará descansada... Há outras caixas também,
uma para cada sentimento.
Brasinha olhou muito espantado para a mestra. Não sabia que
existiam caixas para a raiva, para o medo, para a tristeza, para
o amor e para a alegria... Aliás, nem sabia que as coisas que a
gente sente têm nomes...
Não disse nada, mas, no dia seguinte, chegou com uma conchi-
nha pequenina que encontrou no caminho da escola, bem no
fundo do mar.
Disse à mestra:
— Professora, eu queria colocar a minha tristeza desta manhã na
caixa da raiva.
A mestra, muito sábia, vivida, ao observar a concha, percebeu
que, pelo contrário, ela expressava mais tristeza do que raiva.
Ela sabia que as raivas são tristezas que não podem se expres-
sar de outra maneira. Assim, pediu licença para colocar a
conchinha dentro da caixa da tristeza.
Outras professoras das escolas de peixes também adotaram o
costume de apresentar caixas para acolher os sentimentos
dos alunos, para que não ficassem carregados, possuídos ou
poluídos, o dia inteiro, ruminando pensamentos ruins. Talvez
assim também poderia acontecer com as crianças humanas.

31
Por ora, assim termina a história do peixinho que carregava uma
raiva tão grande... Que poderia engolir o mar inteirinho – de
tanta tristeza que sentia.

Brasinha 32
Sugestão de perguntas reflexivas

Quando você é contrariado, quais os primeiros sinais que apare-


cem no seu corpo e na sua forma de agir? Como você reconhece a
raiva no seu corpo?
Que palavras você associa à raiva?
Propor uma conversa sobre a pergunta: Se a sua raiva tivesse
uma cor, uma forma, um cheiro, uma textura, como seria?
E sua tristeza, como seria?

33
Os dois contos a seguir advertem...

"Tudo que começa em ira, acaba em tristeza”, diz o ditado popu-


lar. O conto O rei e o falcão confirma o ditado. O que resulta de
atitudes ancoradas na ira é sempre nefasto e pode não haver volta
possível, como é no caso de situações extremas que podem levar à
morte. Aprender a dominar os próprios sentimentos é o caminho
das pessoas sábias. Quando se trata da ira e da raiva, aprender
a dominá-las não é fácil e para manter-se no melhor caminho, é
necessário não se esquecer dos efeitos que esses arroubos podem
provocar, como no conto A prancha de pregos.

34
O rei e o falcão

Genghis Khan foi um grande guerreiro. Conduziu seu exército


à China e à Pérsia e conquistou muitas terras. Em todos os
países falava-se de seus feitos ousados e dizia-se que desde
Alexandre, o Grande, não houvera rei igual.
Uma certa manhã, longe das guerras, saiu cedo de casa a fim de
passar o dia caçando na floresta. Muitos amigos foram com ele.
Todos estavam felizes carregando seus arcos e flechas em suas
montarias. Os cães os acompanhavam pela retaguarda.
As conversas, os gritos e as risadas retumbavam na floresta. Eles
esperavam abater muitos animais que trariam para casa ao
final do dia.
O rei levava ao punho seu falcão predileto, pois naquela época
essa ave era treinada para a caça. A uma ordem do dono, o pás-
saro alçava vôo e do alto vasculhava a floresta. Ao avistar um

35
cervo ou uma lebre, mergulhava velozmente sobre a presa,
qual uma flecha.
O dia inteiro Genghis Khan e seus caçadores cavalgaram pela flo-
resta. Não encontraram, porém, tanta caça quanto esperavam.
À tardinha, decidiram retornar. O rei estava habituado a cavalgar
pela floresta e conhecia todas as trilhas. Tendo o grupo esco-
lhido o caminho mais curto para casa, ele tomou uma estrada
mais longa que passava por um vale entre duas montanhas.
O dia fora quente, e o rei tinha sede. Seu falcão amestrado alçara
vôo deixando-o só. O pássaro saberia encontrar o caminho de
casa.
O rei prosseguia lentamente. Conhecia uma fonte de águas
límpidas em alguma paragem perto da trilha. Se ao menos
pudesse encontrá-la naquele momento! Mas os dias quentes
do verão haviam secado todos os córregos da montanha.
Mas eis que, para sua alegria, avistou um pouco de água escor-
rendo pela beira de uma pedra. Haveria de encontrar a fonte
logo acima. Na estação chuvosa, as águas corriam ligeiras
naquele ponto, mas agora gotejavam lentamente.
O rei apeou da montaria. Tirou do embornal um cálice de prata.
Começou a aparar as gotas que caiam lentamente da pedra.
A água demorava para encher o cálice; e o rei tinha tanta sede que
mal podia esperar. Finalmente seu cálice estava quase cheio.
Levou-o aos lábios e estava prestes a beber o primeiro gole.
De repente, um zunido cruzou os ares e o cálice foi derrubado de
suas mãos. A água derramou-se toda.
O rei procurou ver quem fizera aquilo. Fora seu falcão amestrado.

O rei e o falcão 36
O pássaro voou de um lado para o outro algumas vezes e acabou
pousando nas pedras, perto da fonte.
O rei pegou o cálice e tornou a recolher as gotas de água.
Desta vez não esperou tanto tempo. Quando estava pela metade
levou-o a boca. Mas antes que o cálice lhe tocasse os lábios, o
falcão deu outro mergulho derrubando o objeto.
Desta vez o rei começou a ficar zangado. Empreendeu mais uma
tentativa, e pela terceira vez o falcão o impediu de beber.
O rei ficou bastante irritado e gritou:
— Como te atreves a fazer isso? Se eu te pusesse minhas mãos, te
torceria o pescoço!
Mais uma vez, o rei encheu o cálice. Porém antes de levá-lo à
boca sacou da espada.
— Agora, Senhor Falcão, é a última vez – disse ele.
Mal acabara de dizer isso, o falcão mergulhou e derrubou-lhe o
cálice das mãos. O rei, que já esperava por isso, de um golpe
acertou o pássaro em pleno vôo. E logo o pobre falcão jazia
aos seus pés, sangrando até morrer.
— É o que mereces por teus caprichos – disse Genghis Khan.
Entretanto, ao procurar o cálice, encontrou-o caído entre duas
pedras, onde não conseguia alcançar.
— Mesmo assim, vou beber desta fonte – disse consigo mesmo.
E pôs-se a galgar a parede íngreme da rocha para chegar até o
lugar de onde a água escorria. A tarefa era árdua; e quanto
mais subia mais sua sede aumentava.

37
Por fim, atingiu o local. E havia, de fato, uma nascente; mas o
que era aquilo dentro da poça, ocupando-lhe quase todo o
espaço? Uma enorme serpente morta e das mais venenosas.
O rei parou. Esqueceu-se da sede. Pensou apenas no pobre pás-
saro morto ali no chão.
— O falcão salvou-me a vida – gritou. E o que fiz em troca? Era
meu melhor amigo, e eu o matei.
Desceu a escarpa. Tomou cuidadosamente o pássaro nas mãos
e o colocou no embornal. Subiu na montaria e partiu ligeiro,
dizendo consigo:
— Aprendi hoje uma triste lição, que é nunca fazer coisa alguma
quando estiver tomado pela raiva.

O rei e o falcão 38
Sugestão de perguntas reflexivas

O que levou o rei a matar o falcão foi a raiva que cega qualquer
um que esteja dominado por ela. A cegueira, nesse caso, fez o
rei se esquecer do quanto seu falcão era amigo e confiável. Mas
há muitas formas de se ficar cego pela raiva. Pela experiência de
vocês, que outras cegueiras a raiva pode produzir? E que consequ-
ências essas cegueiras podem ter?

39
A prancha de pregos

Havia um garotinho que tinha "mau gênio", como se costumava


dizer a respeito das pessoas que não sabem ter controle sobre si
mesmas. Seu pai lhe deu um saco cheio de pregos e lhe disse:
— Cada vez que perder a paciência bata um prego na cerca dos
fundos da casa.
No primeiro dia o garoto havia pregado trinta e sete pregos na
cerca. Porém, gradativamente o número foi decrescendo.
O garotinho descobriu que era mais fácil controlar seu gênio
do que pregar pregos na cerca.
Finalmente chegou o dia no qual o garoto não perdeu mais o
controle sobre seu "mal gênio”. Ele contou isso a seu pai, que
lhe sugeriu:
— Tire um prego da cerca por cada dia que tiver sido capaz de
controlar seu gênio.

41
Os dias foram passando até que finalmente o garoto pode con-
tar a seu pai que não havia mais pregos a serem retirados.
O pai pegou o garoto pela mão e o levou até a cerca e disse:
— Você fez bem meu filho, mas dê uma olhada na cerca. A cerca
nunca mais será a mesma. Quando você diz ou faz coisas com
ira, elas deixam uma cicatriz como esta. Você pode esfaquear
um homem e retirar a faca em seguida e não importa quantas
vezes você diga que sente muito, a ferida continuará ali. Uma
ferida verbal é tão má quanto uma física. Mantenha isto em
mente antes de se deixar dominar pela irar contra alguém.

A prancha de pregos 42
Sugestão de perguntas reflexivas

Esse pai mostrou o quanto ama seu filho com essa atitude, pois
o estava educando para a vida, e isso significa amor. O que é para
cada um de vocês educar e se autoeducar para a vida?

A paciência é um bom remédio contra a ira. Se você se der uma nota


para seu empenho em desenvolver a sua paciência, que nota será?

43
O conto a seguir adverte...

Paciência e determinação são um ótimo remédio para se lidar


com situações conflituosas que acabam em violência, seja pelas
palavras, seja pela passagem ao ato. Há momentos em que partir
para o confronto representa avançar limites perigosos e, sobre-
tudo no caso de mulheres que lidam com violência doméstica.
Nesses casos, sugerir à mulher, através do conto, que vá devagar
com o andor, pois o santo é de barro não significa calá-la, nem con-
firmar que deva se conformar, mas simplesmente que precisa
autoproteger-se. Se, nesse movimento, a relação mudar, tanto
melhor… Mas de toda forma, a paciência e a determinação para
mudar situações conflituosas não será em vão.

44
O pelo do leão

Numa aldeia entre as montanhas da Etiópia, um jovem rapaz


e uma jovem moça se conheceram, se apaixonaram e se casa-
ram como em qualquer outro lugar do mundo.
Mas o amor, como vocês sabem, pode nascer de quase nada e
morrer de quase tudo.
Por algum tempo, o jovem casal foi perfeitamente feliz. Mas um
dia, os problemas começaram, porque os dois viam, um no
outro, mais os erros que as qualidades.
Ele a acusava de gastar muito no mercado.
Ela o acusava de estar sempre atrasado.
Ele a acusava de demorar muito para se arrumar, quando saíam
juntos. Ela o acusava de ser um insensível aos esforços dela
para se fazer mais bonita.
Ele achava que ela falava demais.

45
Ela achava que ele era um desajeitado para as coisas do coração.
Enfim, não passava um dia sem que uma discussão tivesse
lugar naquela casa. Qualquer coisa era motivo para se
começar uma peleja.
Às vezes, ficavam bravos, gritavam impropérios e iam para a
cama de mal um do outro. E, mais que as palavras, os gestos
também foram ficando cada vez mais violentos.
Passado algum tempo, ela achou que já era o bastante e não
aguentaria viver para sempre num ringue. Foi, então, procu-
rar o sábio da aldeia. Além de ser o homem mais sábio entre
os aldeões, ele exercia também o papel de juiz e conhecia
muito de magia.
Lá chegando, ela disse:
— Vim aqui para pedir que faça meu divórcio.
— Mas, por quê? Não ama seu marido?
— A questão não é essa. Nós nos amamos como antes, mas as
coisas não vão bem. Ele se tornou completamente insurpotá-
vel, violento e eu não aguento mais.
— Entendo, disse o velho sábio e juiz, mas talvez eu possa ajudar.
Conheço um remédio mágico que poderá mudar essa situação e
vocês ficarão tão felizes, que nunca mais pensarão em divór-
cio. Você quer experimentá-Io?
— Mas é claro, senhor juiz. Dê-me o remédio, agora mesmo.
— Ah, não! Calma! Não é assim... Para preparar o remédio, eu
preciso de um fio da cauda do leão que vive nas montanhas e
vem beber água no rio. Você tem de trazer o pêlo, para que eu
prepare a poção.

O pelo do leão 46
— Mas, como vou conseguir isso? O leão vai me matar!
— Ah! Nisso não posso ajudá-Ia. Entendo muito de remédios e
poções, mas de leão, não entendo nada. Você terá de desco-
brir os meios para conseguir o pêlo.
A jovem esposa pensou longamente, mas ainda amava seu marido
e se uma poção pudesse consertar as coisas, teria de tentar.
Na manhã seguinte, ela foi ao rio e se escondeu atrás de uma
pedra. Pouco tempo depois, o leão apareceu para beber água.
Quando viu o leão, com aquelas patas enormes e quando ele
abriu a boca, mostrando os dentes afiados, ela quase des-
maiou. Então o leão deu um rugido e ela saiu correndo.
Na manhã seguinte, ela voltou ao rio, trazendo um saco de
carne fresca. Deixou a carne no capim à margem, a duzentos
metros do leão e ficou escondida atrás da pedra enquanto
ele comia. No dia seguinte, voltou e colocou outro pedaço
de carne, agora a cem metros do leão; no dia seguinte, a cin-
quenta metros, e, desta vez, não se escondeu enquanto ele
comia. Assim, a cada dia, chegava mais perto do leão, até que
começou a atirar-lhe a carne na boca.
Passados alguns dias, o leão veio comer em sua mão. Tremia
ao ver os dentes enormes rasgando a carne, mas tinha mais
amor pelo marido que medo do leão. Muito lentamente, ela
se abaixou e arrancou um fio do pêlo da cauda da fera.
Voltou correndo até o sábio chefe e juiz da aldeia.
— Olhe, trouxe-lhe o pêlo da cauda do leão!
Ele pegou o fio, examinou-o e constatou a legitimidade de sua origem.

47
— Foi muita coragem sua. Além disso, deve ter sido necessária
muita paciência, não foi?
— Ah, sim! Respondeu a mulher, orgulhosa de si mesma. Agora
pode me preparar a poção mágica!
O sábio olhou-a com ternura e jogou o pêlo na fogueira da lareira
e este foi consumido pelas chamas.
A mulher perdeu a fala. Ela não podia acreditar no que via.
— Não existe mágica, minha filha. Pelo menos, não em poções.
A verdadeira mágica você já conseguiu. Se pode domar um
leão com paciência e determinação, não será difícil repetir a
façanha com seu marido.

O pelo do leão 48
Sugestão de perguntas reflexivas

Para vocês qual é o principal motivo para se começar uma discór-


dia? Querer estar sempre com a razão, achar que o outro não diz
ou faz coisas que mereçam atenção, pensar que a discórdia faz a
relação mais animada? Ou qual outro motivo?

A paciência é considerada "a mãe de todas as virtudes” mas não é


fácil desenvolvê-la. Para vocês, qual é o fator que mais dificulta o
desenvolvimento da paciência?

Vocês consideram que a atitude da mulher desse conto foi funda-


mental para a mudança na relação deste casal? E acham que vale
a pena fazer esse esforço?

Vocês acham que só a mulher deve tomar a iniciativa de querer


mudar as coisas ou acham que isto deve ser uma responsabili-
dade do homem também?

49
O conto a seguir adverte...

A experiência tem valor. Há um ditado que diz: Tudo que não é dado
é perdido. As pessoas mais velhas, por terem vivido mais, tiveram
tempo para adquirir mais experiências com as situações que a
vida apresenta a todo ser humano. E é com as experiências vividas
que se tecem as histórias. Mas não significa que, apenas o fato
de se envelhecer pode transformar experiência em sabedoria.
Isso requer uma postura de aprendiz diante das circunstâncias
da vida. De toda forma, os mais velhos sempre têm muito a
ensinar aos mais jovens sobre a forma de se lidar tanto com os
sucessos, quanto com os fracassos. Com eles pode-se aprender:
o que fazer e o que não fazer; como ser e como não ser. “Numa
dessas manhãs muito frias dividi um mesmo táxi com um senhor
de mais ou menos setenta e cinco anos. Comentávamos sobre a
baixa temperatura na noite anterior e ele queixou-se de que mal
fechara os olhos. A velhice, dizia ele, é difícil, sentimos frio demais, o
corpo nos prega peças o tempo todo. A única vantagem que a idade traz é
a experiência, mas a experiência dos mais velhos não serve para nada nos
tempos de agora, então somos apenas um peso morto para os mais jovens.
Meu companheiro de táxi denunciava, mais que a exclusão que
sofrem os idosos na sociedade contemporânea, o desprezo que
1
Caderno de se tem pelo conhecimento adquirido com a experiência e que, se
Contos para as
bem aproveitado, transforma-se em sabedoria".1 No modelo de
Fases da Vida.
Convivendo mundo que estamos vivendo, os velhos sofrem muitos tipos de
com Arte: violências: do desprezo e indiferença, à indigência forçada e ao
Belo Horizonte, abandono. Isso por que, aparentemente, eles não tem mais nada
p. 7

50
a “dar”. O resultado é uma perda imensurável para as novas gera-
ções, que ficam privadas dos exemplos reais, que sempre podem
ser uma referência para a vida. O conto: Livrar-se dos velhos ilustra
muito bem essa questão e busca resgatar o valor dos mais velhos.

51
Livrar-se dos velhos

Havia num lugar bem distante daqui e há muito tempo


atrás, um estranho costume. Esse costume era o de levar os
velhos para o alto de uma montanha gelada no inverno, com
pouca comida e pouco agasalho para que ficassem espe-
rando que a morte viesse buscá-los o mais breve possível.
As pessoas diziam que isso era necessário porque já não
tinham força para trabalhar e a comida era muita pouca
naquele lugar, as condições eram difíceis. Então, como os
velhos já tinham vivido muito tempo, podiam deixar sua
parte da comida para os mais jovens. Assim tinha sido sem-
pre e assim continuaria sendo, diziam os habitantes desse
lugar. Os pais nunca sabiam quando seus filhos os levariam
para esperar a morte na montanha gelada e por isso assim
que os primeiros sinais da velhice chegavam, eles começavam

52
a se entristecer. Angustiados, esperavam pelo dia em que
deveriam se despedir dos netos, das pessoas queridas, dos
animais de estimação, de suas coisinhas, para subir a mon-
tanha. Mas quando chegou a hora de levar seu pai, um filho
que era muito amoroso e afeiçoado ao pai decidiu que não
cumpriria o costume. Ele esconderia seu pai no sótão da casa
de modo que ninguém saberia que tinha burlado a lei do
lugar. Assim o tempo foi passando e todos os dias, depois do
trabalho ele ia encontrar o velho pai no sótão. Cuidava dele,
alimentava-o e ouvia seus conselhos. Acontece que um tirano
assumiu o comando daquele lugar. Ele era cruel e exigia dos
habitantes o impossível. Um dia, enquanto cavalgava, obser-
vou um moinho de vento cujas asas não se moviam. Furioso,
chamou o moleiro e perguntou:
— Por que esse moinho não roda?
— Porque não há vento, respondeu o moleiro.
— Um moinho de vento é feito para rodar! Eu exijo que ele rode!
Dêem um jeito! Eu voltarei amanhã e pobres de todos vocês
se não tiverem obedecido minhas ordens e colocado todos os
moinhos para rodar.
O moleiro ficou desesperado pois sabia do que era capaz aquele
tirano. Ele foi comunicar a ordem aos outros habitantes,
mas ninguém sabia como resolver o problema. Entre todos,
ali reunidos, estava o filho que guardara seu pai. Ele não se
abalou com a ordem e foi logo procurar o pai e pediu a ele
uma ajuda para resolver a questão. Depois de ter recebido o
conselho do velho pai, tomou a frente da assembléia e disse:

53
— Não se preocupem, pois amanhã, quando o tirano chegar eu
responderei a ele.
Na manhã seguinte o tirano voltou. Os moinhos continuavam sem
rodar. Ele mandou que todos se reunissem na praça e gritou:
— Será que vocês não compreenderam minhas ordens? Nesse
momento o rapaz tomou a frente e respondeu:
— Mas claro, excelência, compreendemos muito bem.
— E então?
— Então demos a ordem aos moinhos.
— E então?
— Então os moinhos, depois de nos escutarem, responderam:
— Estamos prontos a obedecer, mas vocês deverão dizer à Sua
Excelência, que é mais poderoso que nós, que ordene ao
vento de se levantar. Justamente todos nós já nos preparáva-
mos para ir ao encontro de Vossa Excelência pedir isso.
O tirano ficou sem reação e não teve resposta, mas depois desse
dia sofreu uma grande transformação, pois começou a per-
ceber que não tinha poder sobre todas as coisas e se tornou
mais humilde.
Quanto ao rapaz, as pessoas ficaram impressionadas com sua
astúcia e quiseram saber como ele tivera essa idéia. Ele então
confessou que fora instruído por seu velho pai que estava
escondido no sótão havia muito tempo. Todos se comoveram
com a atitutide do rapaz e decidiram que a partir daquele
dia nunca mais mandariam seus velhos morrerem na mon-
tanha gelada, pois afinal, se já não tinham mais força para
trabalhar, tinham sabedoria de sobra para orientá-los nos
momentos difíceis.

Livrar-se dos velhos 54


Sugestão de perguntas reflexivas

Caso haja pessoas mais velhas na família, essa é uma boa opor-
tunidade para dar a elas a palavra. Pedir que contem aos mais
jovens coisas importantes que lhes aconteceram, o que aprende-
ram nessas ocasiões e o que poderia ter sido útil a eles. Exemplo:
O que o (a) senhor (a) poderia transmitir como um aprendizado
importante sobre: perdas e ganhos, encontros e desencontros etc.
e que acredita ser um legado para seus filhos e netos?
Aos mais jovens a pergunta poderia ser:
O que cada um de vocês pode reconhecer como um presente
muito positivo que recebeu de seus “velhos" como uma herança
de sabedoria de vida?

55
O conto a seguir adverte...

Não se ganha amor com violência. O conto A lebre e o baobá mostra


que os efeitos da violência podem ser indeléveis para quem a sofre
e, quem a provoca, nada ganha com isso. Ao contrário, a gentileza
faz com que os corações se abram generosamente.

56
A lebre e o baobá

A lebre andou durante um longo tempo debaixo de um sol


escaldante. Estava exausta. Quando avistou um majestoso
baobá, nem acreditou. Foi ao seu encontro e se jogou sobre
suas grandes raízes.
Protegida, a lebre ficou debaixo dos grandes galhos sentindo
o frescor da sombra que reconfortou seu corpo ardente.
Relaxou e agradecida disse:
— Como é boa a sua sombra, Baobá. Muito obrigado. É uma bên-
ção poder ficar sob a proteção de seus grandes galhos.
O baobá não estava acostumado a ouvir palavras tão gentis.
Enternecido, fez um movimento tranquilo com seus galhos
e uma aragem refrescou, ainda mais, o ar em torno da lebre.
Mais uma vez, ela agradeceu ao baobá:

57
— Como é bom este ventinho, amigo Baobá! Mas não posso
dizer o mesmo dos seus frutos que estão altos e eu não con-
sigo pegá-los.
O baobá ficou sensibilizado e deixou cair um dos seus saborosos
frutos bem próximo da lebre, que o achou delicioso. O baobá
ficou feliz com isso, pois já estava afeiçoado a ela.
A lebre, mais uma vez, conversou com o baobá:
— Que pena, Baobá, eu não ter acesso ao seu coração! Seria tão bom.
O baobá, enternecido com a meiguice da lebre, abriu o seu
imenso coração. Dentro dele havia um tesouro - jóias e moe-
das de grande valor - ali escondido por um ladrão.
A lebre, que era um macho de sua espécie, agradecendo muito
ao baobá, levou parte daquele tesouro como presente para
sua esposa, a senhora lebre. Ela ficou encantada com todas
aquelas belezas. Enfeitou-se com algumas das jóias e saiu
para desfilar na praça. Vaidosa, queria que todos a vissem e
quando alguém lhe perguntava como ela conseguira aquela
riqueza, respondia toda satisfeita:
— Foi meu marido que me presenteou.
A hiena roeu-se de inveja. Correu até a casa do senhor lebre e
este contou-lhe onde havia conseguido tal maravilha e toda a
sua conversa com o baobá.
Imediatamente, a hiena foi até o baobá e disse a ele o mesmo que
o senhor lebre tinha dito. O baobá não estava acostumado
com animais ou pessoas falando com ele. Satisfeito, abriu
novamente seu coração. A hiena entrou de qualquer jeito
para dentro dele e com suas garras arranhou de tal forma

A lebre e o baobá 58
o baobá que este ficou muito ferido, sangrando. Assustado,
fechou seu coração e a hiena saiu com dificuldades e sem
nada conseguir levar dos tesouros ocultos ali.
Desde então, o Baobá, desiludido, não abriu mais o seu cora-
ção para ninguém.

59
Sugestão de perguntas reflexivas:

Que sentimentos moveram a lebre e fizeram com que ela


recebesse tanta generosidade do Baobá? E que sentimentos
moveram a hiena e resultaram na desilusão do Baobá que fechou
seu coração? O que vocês acham?

Mais cedo ou mais tarde, todos nós podemos encontrar alguém


que haja conosco como uma “hiena”. Isto significa estar no mundo.
Quando acontece, ou, se acontece, podemos fechar o coração
pelo medo de sermos novamente feridos (as) ou podemos acre-
ditar que sempre é possível superar. Alguém aqui já passou por
uma experiência como a do Baobá? como você se sentiu? Como
você superou? Se você mantém fechado seu coração, o que pode
fazer para acreditar e confiar novamente? Quem teve experiên-
cias assim? Gostaria de compartilhar?

A lebre e o baobá 60
Os dois contos a seguir advertem...

Atitudes violentas podem causar danos irreparáveis.


A violência pode ser nefasta não apenas para quem sofreu
a ação, mas também para quem a realizou e sofrerá as con-
sequências pelo ato. Este é o caso no conto A árvore florida
que se utiliza da bela metáfora de uma árvore florida e ferida
para descrever a relação de um jovem marido com sua esposa.
Os gestos bruscos e desatentos, a violência que mutila fisica-
mente e cuja origem está na dificuldade de ouvir e ver o outro
em suas necessidades. Orientar-se apenas por desejos egoístas e
auto-centrados, fazendo do outro um simples objeto, causará o
mal para quem sofre a ação, mas o causador pode não sair ileso.
Algo nele o perturba e por mais que tente esquecer ou ignorar, não
poderá recuperar-se a não ser que reconheça verdadeiramente
o mal que causou a outrem. Esse processo requer o auto perdão
sincero e o desejo de reparação do ato. Isso feito, pode ser possível
recomeçar, não necessariamente a relação ferida, mas a forma de
se estar na vida. Este conto pode ser trabalhado em situações onde
haja questões de abuso e estrupo. Ele coloca em relação o que é
de natureza delicada com o que é de natureza grosseira. Por ser
bastante sutil, pode abordar essas situações tomando uma grande
distância emocional.
O segundo conto Pele de Asno é tão conhecido quanto necessário
em muitos contextos. Ele trata de incesto e aponta o caminho
para se livrar dele. O incesto é uma forma de violência das mais
cruéis, pois compromete a sexualidade com um trauma que

62
pode durar para sempre se não for cuidado. A sexualidade está
ligada ao desejo de vida, pois é uma energia criadora em si. Uma
criança está plenamente aberta para confiar nos adultos que a
rodeiam e que dela devem cuidar. Romper essa confiança pelo
incesto é das situações mais dolorosas a serem enfrentadas.
É disso que trata Pele de Asno.
Ambos os contos têm uma estrutura mais complexa e, diferen-
temente dos contos anteriormente apresentados, cujo gênero
do discurso oral é de cunho pedagógico e linguagem direta –
contos de ensinamento, contos filosóficos, contos de exemplo–,
A árvore florida e Pele de asno exigem uma leitura de seu conteúdo sim-
bólico para que o profissional tenha mais recursos e possa melhor
explorá-los. Esta leitura será feita ao final de cada um deles.

63
A árvore florida

Em um vilarejo da Índia, vivia uma mulher muito rica, com


seus dois filhos: um menino e uma menina. No mesmo vila-
rejo, vivia uma mulher pobre, que trabalhava dia e noite para
sustentar suas duas filhas.
Um dia, a filha mais nova da mulher pobre teve uma idéia que
considerou brilhante:
— Mana, – disse à mais velha – nossa mãe não pode continuar
assim. Eu quero ajudá-la. Eu vou me transformar numa árvore
florida. Você apanha as flores, vai ao mercado e as vende por
um bom dinheiro.
A irmã mais velha ficou um pouco confusa com aquela idéia
e perguntou:
— Mas... como você vai ser capaz de fazer isso acontecer?

64
— Você vai ver. Tudo o que precisa fazer é ir até a cisterna, encher
dois cântaros de água bem limpa, e depois me encontrar no
jardim.
A mais velha assim fez e quando reencontrou sua irmã, que a
esperava assentada ao sol, recebeu dela as instruções:
— Preste muita atenção. Jogue a água do primeiro cântaro sobre
todo o meu corpo. Eu me tornarei uma árvore cheia de flores.
Você deverá, delicadamente, apanhar uma a uma, tomando
cuidado para não quebrar os caules e os galhos, nem rasgar
uma folha sequer. Depois, jogue na árvore a água do segundo
cântaro e eu voltarei à minha forma humana.
Assim fez a irmã. Ao receber aquela água pura e límpida, imediata-
mente o corpo da mais jovem se transformou numa linda árvore,
com uma floração extraordinária, de delicados e pequenos
cachos de flores perfumadas, de um azul muito suave.
Cuidadosamente, a irmã mais velha colheu cada cachinho, sem
quebrar, conforme o trato, os caules e as folhas. Após encher
um cesto, jogou a água do segundo cântaro na irmã-árvore,
que imediatamente voltou à sua forma humana, tirando os
respingos de água que permaneceram em seu cabelo, e foi
logo dizendo:
— Agora é hora de ir ao mercado e vender as flores.
De longe já se ouvia a irmã mais velha alardeando sua oferta:
flores, flores, quem quer comprar flores?
Foi justamente quando passavam por ali a mulher rica do vila-
rejo com sua filha. O cheiro das flores azuis tomava conta do

65
lugar e a menina, encantada, pediu à mãe que lhe comprasse
todos os buquês.
Na casa da família pobre, agora havia moedas por toda a mesa.
Enquanto na casa da família rica havia um jovem completa-
mente seduzido pela beleza das flores. Ele nunca havia visto
maravilha como aquela e logo quis saber de tudo: que tipo
de flores eram essas, onde cresciam, de que tipo de árvore
vinham. Pela irmã, ficou sabendo da história, e com tanta
curiosidade acabou ganhando uma noite mal dormida, pois
não parava de pensar naquelas flores magníficas.
Obviamente, o dia mal amanheceu, o jovem rapaz partiu para
o mercado. Ele comprou todo o cesto de flores azuis e não
contente acompanhou secretamente a vendedora de flores
até sua pobre casa. Escondendo-se num canto qualquer,
esperou para ver de perto a árvore que não abandonava sua
imaginação.
Como estava um pouco cansado, adormeceu e só acordou na
manhã seguinte, quando, muito surpreso, pôde ver com
seus próprios olhos, o ritual de transformação, em que a irmã
mais velha transformava a mais nova na árvore florida de
azul. Enquanto observava maravilhado o milagre, o jovem
prometeu secretamente a si mesmo que tornaria aquela
extraordinária mulher, sua esposa.
Voltando para casa contou à sua mãe o que presenciara e anun-
ciou seu desejo de casar-se com a jovem. A mãe, que não
recusava nada a seu filho, concordou.

A árvore florida 66
Foi assim que o jovem voltou à casa da mulher pobre e pediu sua
filha mais nova em casamento. Por sua vez, a mulher pobre
não sentiu que podia recusar o desejo de um jovem de tão
boa estirpe e deu-lhe seu consentimento de fazer a corte à
sua filha. Não demorou muito para que a jovem pobre que
tinha o poder de se transformar em árvore florida se tornasse
a esposa do jovem bem-nascido.
Na noite do casamento, o rapaz pediu à noiva que lhe concedesse
a honra de presenteá-lo com sua transformação em árvore de
flores azuis. De início ela ficou surpresa e sentiu medo, pois
jamais desconfiara que alguém além de sua irmã comparti-
lhasse do segredo. Mas acabou por aceitar o pedido e advertiu:
— Farei isso, mas com a garantia de que você irá cumprir, em deta-
lhes, as instruções que te darei. Primeiro, traga dois cântaros
de água fresca. Depois te explicarei os passos seguintes.
Feito isso, a jovem prosseguiu, pedindo ao seu marido que
tomasse muito cuidado para não quebrar os caules e não ras-
gar as folhas, enquanto colhesse os cachos de flor.
Mas o jovem rapaz estava tão ávido para presenciar aquele
mágico processo que não ouviu atentamente as palavras
da jovem esposa. Quando viu sua mulher se transformar na
árvore mais maravilhosa que conhecera em sua vida, sofre-
gamente começou a arrancar as flores. Em sua pressa, rasgou
folhas e quebrou caules e galhos. Ao jogar a água do segundo
cântaro, que lhe garantiria ter a forma humana de sua mulher
de volta, adivinhem? A jovem não tinha nem mãos, nem pés.
E ainda mais: perdera o dom da fala.

67
Aterrorizado com o que provocara, o jovem rapaz saiu correndo,
deixando para trás sua esposa. E vagou, sem rumo, por muitas
terras. Sua barba cresceu e se misturou com seus bigodes, que
se enroscaram até o chão, dando-lhe a aparência de um louco.
Passado um bom tempo, ele foi se recuperando, a ponto de ter a
coragem para retornar à casa de sua sogra. No jardim, viu a
irmã mais velha pondo para secar no varal o seu sari de algo-
dão. Aproximou-se dela e lhe disse humildemente:
— Irmã, fiz uma coisa terrível.
— O quê? – Respondeu ela.
Calmamente o jovem lhe contou tudo: desde o dia que se escon-
dera no jardim e presenciara pela primeira vez o segredo da
transformação, até o resultado provocado na noite do casa-
mento. A jovem escutou atentamente. Percebeu tristeza em
seus olhos e tremor em suas mãos. Havia no rapaz um sincero
desejo de perdoar-se e uma verdadeira compreensão de todo o
ocorrido. Sem repreendê-lo e sem hesitar, ela disse:
— Vamos até ela.
— Será que poderemos ajudar... a reparar o erro? – Replicou ele,
apreensivo.
— O que a gente pode fazer é somente tentar, respondeu.
Juntos, se dirigiram até a casa rica, onde encontraram sua esposa
mutilada assentada num canto de seu quarto.
A irmã mais velha foi até a cisterna, trazendo dois cântaros de água.
— Jogue a água do primeiro cântaro - pediu ela ao jovem - e
quando ela se tornar árvore, observe atentamente cada parte.
Onde tiver um galho ou caule quebrado, ate-o de alguma

A árvore florida 68
forma. Onde a folha estiver rasgada, costure-a como puder.
Depois de jogar a água do segundo cântaro, vejamos o que
acontecerá.
Desta vez o jovem não só ouviu, mas escutou calmamente,
absorvendo o significado de cada palavra.
Assim, jogou carinhosamente a água do primeiro cântaro em
sua mulher. Agora, ali, diante dele estava a árvore, com seus
galhos, caules e folhas mutilados e feridos. Mas sua sin-
cera intenção de mudar a situação concedeu-lhe cuidado e
paciência, movimentos atentos, calmos e gentis. Depois de
consertar cada folha e cada galho, jogou a água do segundo
cântaro sobre a árvore.
Agora, diante dele, ressurgia sua jovem esposa, inteiramente
perfeita. O jovem, emocionado, sentindo uma enorme gra-
tidão, se colocou de joelhos, agradeceu aos céus e beijou os
olhos de sua esposa. A irmã mais velha, enternecida, correu
até ela e se abraçaram por um longo tempo, numa cumpli-
cidade muda.

69
Leitura simbólica

Este é um conto iniciático. Um conto iniciático busca levar ao


conhecimento de si mesmo, das forças que agem e se movimen-
tam no interior de cada indivíduo. Seria, "a grosso modo", o que
Jung chamará de: processo de individuação nos contos. Mas é
importante observar que um conto iniciático pode ser lido em
diferentes camadas. Assim, eles podem responder a questões
sociais, às de costumes e também às questões relacionais, como
foi feito acima. Abaixo, proponho uma leitura iniciática, para
apresentar aos profissionais essa forma de abordar tais contos.

1. O núcleo inteiramente feminino: mãe e duas filhas é pobre. A


pobreza, nos contos, não se refere ao aspecto material apenas, ela
pode estar relacionada à pobreza espiritual também. Nos dois
casos a situação de pobreza requer alguma reparação. Quando
relacionada ao mundo interno, o mundo espiritual, o que se
busca é o alimento para o espírito. Pois é da fome da alma que se
trata. A mãe da história é pobre materialmente e, por isso mesmo,
trabalha excessivamente.

2. A filha mais jovem deseja reparar essa situação. Ela é movida


pela compaixão. A compaixão começa pela empatia à dor do
outro, provocando sofrimento e desejo de reparação. Para os
budistas a compaixão significa "expansão do coração" e é dire-
cionada a todos os seres viventes, sejam eles do reino vegetal ou

A árvore florida 70
animal. Trata-se da compreensão profunda de que todos somos
elos numa mesma corrente, a da vida.

3. A jovem, movida pela compaixão (expansão do coração)


passará por uma metamorfose: É mulher, é árvore, é flor.
As metarmorfoses falam de processos de transformação.
A condição de pobreza é o que impulsionará a transformação da
filha mais jovem. A pobreza é feita de necessidades e são justa-
mente essas necessidades que poderão despertar a força; expor
as capacidades intrínsecas, mas ainda adormecidas e promover
o desenvolvimento de habilidades e competências. A jovem, em
processo de metamorfose tem controle de seu estado, pois esco-
lheu o caminho da auto transformação em benefício de outrem,
no caso, sua mãe.

4. Ela escolhe estar mulher ou árvore florida e é nessa condição


que pode exercer sua função reparadora da situação precária da
mãe. Mas também é por "estar árvore" a produzir as mais belas
flores azuis, que sofrerá mutilações .

5. O outro núcleo da história é rico e nele está o polo masculino.


O que encanta o jovem rico, bem nascido, é a delicadeza das flores
azuis e perfumadas que sua irmã compra no mercado. O contato
com essas flores provoca nele aquilo que os místicos chamam de
vertigem do paraíso perdido, de nostalgia da essência. E ele tudo
fará para chegar à origem do que lhe provoca tal sentimento.
Assim, descobrirá a jovem e sua metamorfose. Ela é a expressão

71
da beleza, da nobreza, da sutileza que são, em realidade, a essência
do feminino genuíno, enquanto princípio criador.

6. Ele terá de unir-se à mulher-árvore. Numa linguagem bem


simplória e corriqueira, ela é o seu: "outro lado da laranja”, o lado
ausente que o fará pleno, inteiro. Mas ele não está pronto para
lidar com a sutileza, ele é rude e por isso mesmo irá mutilá-la,
não por que deseje isso, mas por que não desenvolveu ainda os
requisitos necessários para merecê-la. Ele é violento e a violên-
cia é antagonista da compaixão. A forma descuidada, os gestos
bruscos com os quais ele colhe as flores da mulher-árvore muti-
lando-a, expõe o que está na base da violência: O egoísmo que
desconhece a existência do outro. Se o objeto não satisfaz ime-
diatamente os desejos egoístas ele é descartado.

7. Mas vamos observar que esse jovem já fora tocado pela beleza
que lhe chegou pelos sentidos: o perfume e o azul delicado das
flores. É pela força da beleza que ele será resgatado, pois a beleza é
mais forte que a violência. A violência, na verdade, é fraca. O que faz
com que ela cresça é a ausência de beleza.

8. Começa, então, aí o caminho de transformação do jovem, sua


metamorfose. Ele pareceu estar louco até decidir voltar e reparar
o ato impulsivo. Ele é tocado por compaixão pela esposa ferida e
por isso quer torná-la novamente mulher e árvore inteira e florida.
Só ele pode fazer isso, mas o faz com a ajuda da cunhada.

A árvore florida 72
9. Vemos aqui uma alusão à cumplicidade do feminino.
É necessário que as três mulheres estejam numa interrelação para
que as coisas aconteçam. A mãe que expõe a necessidade, a irmã
mais velha que cumpre o ritual, ou seja, faz o que é necessário
para que a transformação se dê e a mais jovem que será depositá-
ria dos efeitos dessa ação conjunta. São os aspectos do feminino
aí representados, que unidos, podem produzir algo “mágico”. O
que está na base desta “magia” é: nada mais, nada menos, que a
intenção de mudar uma situação.

10. A harmonia perdida se restabelece. Dito de outra forma,


as duas partes da mesma laranja estão novamente unidas. Ao
estado doloroso da separação, sucede o estado da unidade. Para
Jung realiza-se o casamento alquímico quando princípios mascu-
lino e feminino se unem.

73
Sugestão de perguntas reflexivas:

O tema: "compaixão e violência” é importante neste conto,


então pode se propor uma reflexão que ajude a perceber que
o sentimento da compaixão é próprio da condição humana e
todos podemos experimentá-lo. Da mesma forma, a violência,
também faz parte da condição humana, mas podemos focar não
na violência e, sim, em seu antídoto: a beleza. Pode se propor as
seguintes reflexões:

Quais as dificuldades que pessoas ao seu redor vivem e que se


você pudesse, gostaria de solucionar? Por quê?

Se te falam, ou se você vê uma cena na qual um animal é mal-


tratado, como você se sente? A compaixão é um sentimento que
podemos experimentar por todos os seres vivos.

O que você considera como beleza que possa estimular seus sen-
tidos? O que você gostaria de fazer para colocar mais beleza em
sua vida?

A árvore florida 74
Pele de asno

Era uma vez um rei, o maior sobre a terra, amável na paz e


terrível na guerra, não havia outro que se comparasse a ele.
A sua adorável esposa, companheira fiel, era terna e de uma
beleza rara. Seu marido se sentia mais feliz por ser seu esposo
do que por ser rei.
Desta união nasceu uma filha, com tantas virtudes que o rei se
consolava de não ter filhos homens para sucedê-lo no trono.
No seu vasto e abastado palácio, tudo era magnífico e havia
muitos cortesãos e empregados. Nas suas cavalariças havia
cavalos de todos os portes, cobertos de belas capas bordadas
com fios de ouro. Todavia, o que mais surpreendia toda a
gente ao entrar, era que no lugar mais alto, um grande asno
exibia suas enormes orelhas. Esse animal esquisito gerava
estranheza, mas suas virtudes explicavam seu lugar de honra

76
no palácio. É que, por algum capricho da natureza, esse asno
nunca fazia estercos, e sim belas moedas de ouro que todas
as manhãs eram recolhidas.
Ora, o céu – que por vezes se cansa de fazer os homens contentes,
que sempre junta às suas graças alguma desgraça, tal como
a chuva ao dia mais ensolarado – permitiu que uma severa
doença subitamente atacasse os dias radiosos da rainha.
Por todos os lados se buscava socorro, porém nem os médicos
mais estudados nem os charlatães da moda puderam ajudar,
nem todos juntos puderam parar a febre que aumentava
sem cessar. Chegada a sua hora, a rainha chamou por seu
esposo e disse:
— Deixe-me fazer um último pedido, se algum dia tiveres von-
tade de se casar novamente, quando eu já não estiver aqui…
— Ah – disse o rei –, esses questionamentos são em vão, nunca
na minha vida eu desejarei tal coisa, fique tranquila.
— Eu acredito – respondeu a rainha - no grande e eterno amor
que você tem por mim, contudo preciso que prometa que só
se casará novamente se encontrar uma mulher mais bela e
perfeita que eu.
A confiança da rainha no seu charme era tão grande que a fazia
acreditar que tal mulher não pudesse existir, portanto o rei
jamais se casaria novamente, depois de prometer-lhe isso.
O rei jurou tudo o que a rainha queria e ela morreu em seus bra-
ços. Jamais um marido ficou tão triste e chorou tanto. Mas ao
fim de alguns meses ele quis começar uma nova escolha, mas
a escolha não era fácil, era preciso ser fiel à promessa de que

77
a nova noiva deveria ser mais atraente e cheia de qualidades
que a falecida.
Nem na corte repleta de belas mulheres, nem no campo, nem na
cidade, nem nos reinos ao redor aonde se foi procurar, pude-
ram encontrar tal noiva.
Só a jovem princesa era mais bela e possuía mais atrativos que
a falecida rainha, sua mãe. Logo o rei, seu pai, se deu conta
disso e ardendo de um amor extremo, concluiu que devia
desposar a própria filha. Mas a jovem princesa, triste de ouvir
falar de tal amor, lamentava-se e chorava noite e dia. Com a
alma em agonia, ela foi ao encontro da madrinha bondosa,
muito experiente e que já sabia da conversa que corria pelo
reino de que o rei queria se casar com a própria filha.
— Sei o que a traz aqui – disse a madrinha ao ver a princesa.
Sei a profunda tristeza de seu coração, mas ao meu lado não
precisa se preocupar mais. Nada poderá prejudicá-la, con-
tanto que siga os meus conselhos. É verdade que seu pai quer
desposá-la, escutar o seu pedido desvairado seria um grande
erro, mas é possível recusá-lo. Peça a ele um vestido que seja
da cor do Tempo. Apesar de todo o seu poder e de toda a sua
riqueza, o rei jamais poderá realizar essa promessa.
A princesa foi trêmula fazer seu pedido ao pai apaixonado.
Imediatamente o rei chamou os costureiros mais importantes e
disse-lhes que se não fizessem, sem demora, um vestido da
cor do Tempo seriam enforcados.

Pele de asno 78
O segundo dia ainda não raiara e já lhe traziam o vestido dese-
jado: o mais belo azul-celeste, rodeado por grandes nuvens
de ouro, de uma cor diáfana.
A princesa, cheia de tristeza, não soube o que dizer ou como fugir
ao seu compromisso. Foi novamente encontrar a madrinha
que lhe disse:
— Princesa, peça-lhe um vestido mais brilhante e menos comum,
que seja da cor da Lua. Isso ele não lhe dará.
Mal a princesa lhe fez o seu pedido, o rei disse ao bordador:
— Que a própria lua não tenha mais esplendor que o vestido que
em quatro dias, sem falta, vocês devem me trazer.
O rico vestido foi entregue na data marcada, tal como o rei havia
exigido.
Nos céus a própria lua era menos pomposa que o vestido de prata.
A princesa, admirando o vestido, estava prestes a consentir, no
entanto, inspirada pela madrinha, que agora já ficava a seu
lado, disse ao rei apaixonado:
— Só ficarei contente quando tiver um vestido ainda mais bri-
lhante e de cor tão viva quanto o Sol.
O rei, que a amava de um amor arrebatador, mandou vir ime-
diatamente um rico ourives e encomendou-lhe que fizesse
o vestido de um tecido soberbo de ouro e de diamantes,
dizendo-lhe que se ele não o satisfizesse convenientemente,
faria-o morrer no meio de mil tormentos.
O habilidoso artesão trouxe a preciosa obra antes de
a semana terminar.

79
Era um vestido tão belo, vivo e radiante que o próprio sol não possuía
brilho mais intenso. A princesa, confusa com esses presentes
não sabia mais o que responder ao seu pai, o rei. Mas depressa a
madrinha a tomou pela mão e lhe disse ao ouvido:
— Não hesite. Afinal, todos esses presentes não são de tão
grande maravilha. O rei tem aquele asno que ele adora e que
produz moedas de ouro. Peça a pele desse raro animal, sendo
essa a fonte de toda a sua fortuna, isso certamente não lhe
será dado. Embora a madrinha fosse muito sábia, ela igno-
rava que o amor impetuoso pouco se importa com ouro e
prata, desde que possa satisfazer-se.
Mal a pele do asno foi solicitada, já foi entregue à princesa que assus-
tou-se terrivelmente e queixou-se amargamente de sua sorte.
A madrinha chegou e explicou que quando se procura o bem
nada se deve recear e orientou a princesa a deixar que o rei
acreditasse que ela estava totalmente disposta a sujeitar-se a
esse casamento cruel.
Mas ao mesmo tempo ela deveria partir sozinha e bem disfar-
çada para algum estado longínquo a fim de evitar um mal tão
certo e próximo.
— Eis aqui – prosseguiu ela – um saco onde vamos colocar todos
os seus vestidos, o seu espelho e artigos de toalete, assim
como os seus rubis e diamantes. Dou-lhe ainda um talismã
que irá protegê-la. E para se tornar irreconhecível, a pele de
asno será um disfarce perfeito. Esconda-se bem dentro da
pele, que ninguém acreditará, sendo tão feia, poder esconder
algo tão precioso dentro deste saco.

Pele de asno 80
Mal a princesa saiu assim disfarçada, o rei que se aprontava para
a celebração do feliz casamento, no frescor da manhã, ficou
sabendo do súbito desaparecimento da princesinha. Não
houve casa, caminho ou viela que não fosse revistado pron-
tamente. Mas foi em vão tanta agitação, pois ninguém podia
adivinhar o que acontecera à princesa. Espalhou-se por todos
os lados a notícia de que não haveria bodas, nem baile e nem
doces de festa.
Neste ínterim, a princesinha seguia o seu caminho com o rosto
completamente sujo e cheio de gordura. A todos os andantes
ela estendia a mão e tentava arranjar um lugar onde pudesse
morar e trabalhar como empregada, porém todas as pessoas,
vendo-a com tão mau aspecto e tão asquerosa, não queriam
escutar nem recolher em casa uma criatura tão imunda.
Ela andou bem longe, muito longe e ainda mais longe.
Enfim, chegou a uma granja onde se precisava de uma serviçal
que lavasse trapos sujos e a pocilga dos porcos. Instalaram-na
num canto, ao fundo da cozinha, onde os criados, muito inso-
lentes, não faziam outra coisa senão zangar, contradizer e
ralhar com ela. Perseguiam-na sob todos os pretextos, já não
sabiam mais que peça lhe pregar e era o alvo cotidiano de
todos os deboches.
Aos domingos, tinha um pouco mais de descanso. Havendo
cumprido as suas tarefas de manhã, entrava no quarto e,
atrás da porta fechada, desencardia-se, abria o saco e se arru-
mava só para não se esquecer do quanto era bela.

81
Diante de seu grande espelho, contente e satisfeita, se vestia ora
com o vestido de Lua, ora com aquele no qual brilhava o fogo
do Sol, ora com o belo vestido azul que todo o azul-celeste
não conseguia igualar. Gostava de se ver assim jovem e cem
vezes mais elegante do que qualquer outra, tal prazer ampa-
rava-a e permitia-lhe chegar ao domingo seguinte.
Mas naquela rica granja havia uma criação de aves para um rei
poderoso e magnânimo. Havia galinhas da Índia, galinhas
-d’água, galinhas-d’angola, patos da Guiné e mil outros pás-
saros, quase todos diferentes entre si. Era um lugar muito
prazeroso onde o filho do rei vinha frequentemente repousar
com os senhores da corte, bebendo água fresca, quando vol-
tavam da caça. Ele era belo e forte e também muito educado
e de modos refinados como convém a um príncipe.
Pele de Asno viu-o de bem longe com ternura e a ousadia fez
com que ela percebesse, sob sua imundice e andrajos, que
ainda batia em seu peito um coração de princesa e pensou
com seus botões:
"Mas que porte majestoso ele tem, ainda que despretensioso!
E como é amável, que bem-aventurada será a jovem a quem
ele entregar o seu coração! Eu estaria mais bem vestida com
um vestido sem valor, com o qual ele me tivesse honrado, do
que com todos aqueles que tenho."
Um dia o príncipe, andando sem destino de paragem em para-
gem pela granja, passou numa área obscura onde ficava o
humilde aposento de Pele de Asno. Por acaso pôs um olho
no buraco da fechadura. Sendo dia de festa, ela tinha se

Pele de asno 82
enfeitado ricamente com seus diamantes e se vestido com
um de seus esplêndidos vestidos, embora soubesse que não
poderia ir à festa.
Contemplando-a, o príncipe ficou à mercê de seus desejos e
tal foi seu deslumbramento que mal conseguia retomar
o fôlego ao olhá-la. Independentemente do vestido e das
jóias, a beleza da face, o seu belo perfil, a sua frescura juve-
nil, deixaram-no cem vezes mais fascinado. Mas um certo
ar de grandeza, mais ainda, um pudor modesto e ajuizado
que ela expressava apoderaram-se de todo o seu coração.
No calor do fogo da paixão, ele esteve três vezes para derru-
bar a porta. Mas, crendo ver uma divindade, por três vezes,
o seu braço se deteve por respeito.
De volta ao palácio, isolou-se pensativo, lá suspirava noite e dia.
Não queria mais ir ao baile, embora fosse carnaval. Detestava
a caça, detestava a comédia, já não tinha apetite e tudo lhe
fazia mal ao coração, sendo o fundo de sua doença uma triste
lembrança daquela jovem que ele imaginava ser uma divin-
dade. Ele indagou sobre quem era aquela admirável ninfa
que vivia em um recinto, ao fundo de uma área tenebrosa,
onde nada se vislumbrava em pleno dia.
— É Pele de Asno – disseram-lhe –, que nada tem de ninfa
nem de bela.
Chamam-na assim por causa da pele que traz sobre os ombros,
é verdadeiro remédio para destruir qualquer amor, dado ser
em suma o animal mais feio que se possa ver a seguir do lobo.

83
Podiam falar, ele não acreditava, os traços que o amor inscreveu
em sua alma estavam ainda presentes na sua memória e não
podiam ser apagados.
Entretanto, a rainha, de quem ele era filho único, chorava e se deses-
perava enquanto tentava em vão que ele declarasse a causa do
seu mal. Ele gemeu, chorou, suspirou e nada disse. Apenas que
queria que Pele de Asno lhe fizesse um bolo com as próprias
mãos. A mãe não entendia o que o filho queria dizer:
— Ora, minha senhora! – disseram-lhe os empregados da cozi-
nha -– Essa Pele de Asno é uma toupeira, ainda mais feia e
repelente que a mais suja servente.
— Não importa – exclamou a rainha –, é preciso satisfazer o
príncipe que está muito doente. É nisso apenas que deve-
mos todos pensar.
A mãe o amava tanto que lhe teria dado ouro para comer
se ele quisesse.
Assim Pele de Asno pegou a farinha que havia mandado peneirar
de propósito para obter uma massa mais fina, o sal, a man-
teiga e ovos frescos. E trancou-se no quarto para fazer bem o
seu bolo. Primeiro lavou as mãos, os braços e o rosto. Colocou
um suntuoso avental e iniciou os preparos. Dizem que por ter
trabalhado às pressas caiu na massa um dos seus anéis de
grande valor. Mas aqueles que supostamente conhecem bem
essa história asseguram que ela o colocou lá de propósito,
pois como toda mulher, era muito perceptiva e por isso sabia
que o príncipe a tinha olhado pelo buraco da fechadura e ela
justamente usava esse anel.

Pele de asno 84
Jamais ninguém assou um bolo tão delicioso. E o príncipe por
pouco não engolia o anel, tal era a sua fome gulosa. Quando
viu o diamante da joia, assim como o estreito círculo de ouro
que marcava a forma do dedo, o seu coração foi acometido
por uma alegria incrível, guardou o anel instantaneamente
na sua cabeceira. Dado o seu mal aumentar, os sagazes e
experientes médicos vendo-o emagrecer a cada dia, julgaram
pela sua grande ciência que ele estava doente de amor. Como
o casamento, por mais que o censurem, é a melhor das curas
para tal doença, decidiram casá-lo. Ele respondeu:
— Estou de acordo, desde que me deem em casamento a pessoa
a quem este anel servir no dedo.
Foi grande a surpresa do rei e da rainha perante este pedido
peculiar, mas ele estava tão mal que não ousaram dizer não. E
assim começou a busca daquela a quem o anel deveria servir,
independentemente do sangue ou posição. Não havia jovem
que não quisesse experimentar o anel. As oportunistas viram
aí sua grande chance e arranjavam um meio de tornar os
dedos bem finos. Uma delas, seguindo um capricho grotesco,
raspou o dedo como se fosse uma beterraba. Outra cortou
um pedaço e apertou o dedo, crendo assim diminuí-lo. Outra
ainda, usando certa poção para apequená-lo, descamou a
pele. Enfim, não houve nada a que as damas não recorressem
para fazer o dedo se ajustar ao anel. O teste foi inaugurado
pelas jovens princesas, as marquesas e as duquesas. Mas
seus dedos, embora delicados, eram muito encorpados e
não entravam. Também as condessas, as baronesas e demais

85
pessoas nobres apresentaram a mão. Em seguida vieram as
jovens mais pobres, algumas muito formosas, cujos belos
e pequenos dedos pareceram por vezes ajustarem-se ao
anel. Mas este, sempre demasiado pequeno ou demasiado
redondo, recusava todas com o mesmo desdém. Foi preciso
chegar, enfim, às criadas, cozinheiras, servas rústicas e guar-
dadoras de perus, numa palavra todos os dedos, cujas mãos
vermelhas e escuras vinham tão cheias de esperança experi-
mentaram o anel. Finalmente pensou-se ter concluído, já que
faltava apenas a pobre Pele de Asno lá no fundo da cozinha.
Mas como acreditar que o céu a destinasse a reinar?
O príncipe disse:
— E por que não? Façam-na vir.
Todos desataram a rir, escarnecendo:
— O que pretende ele trazendo esta molambenta aqui?
Mas quando ela tirou dos ombros a pele asquerosa, apresentou
uma mãozinha delicada e o seu dedo deslizou sem dificul-
dade pelo anel, a corte caiu numa surpresa absurda.
Queriam levá-la imediatamente ao rei, mas ela pediu que antes
de aparecer perante seu amo e senhor lhe dessem tempo de
pôr outro vestido. Na verdade, todos se preparavam para rir
desse vestido. Mas quando ela voltou e atravessou as salas
com a sua roupa suntuosa, cujas ricas belezas nunca haviam
sido igualadas, então o seu charme e graça divinamente res-
saltados por seus cabelos enfeitados com rubis e diamantes
que faiscavam à luz dos seus olhos ternos e sua postura de
majestade ao caminhar, encantaram a todos.

Pele de asno 86
Por comparação, empalideceram os encantos das damas da
corte e dos seus ornamentos.
Rodeado pela alegria e barulho de toda a assembleia, o bom rei
estava fora de si ao descobrir na sua nora tantos atrativos, a
rainha estava atordoada e o príncipe com a alma preenchida
de mil prazeres.
Imediatamente, cada um tomou as medidas necessárias ao
casamento. O rei convidou todos os reis da vizinhança, os
quais diversamente ornados com paramentos brilhantes dei-
xaram os seus estados para estarem presentes nesse grande
dia. Chegaram de todos os cantos do mundo em exuberantes
trajes de festa na corte. Nenhum rei apareceu com tanto
esplendor como o pai da noiva.
Outrora apaixonado por ela, o tempo havia purificado o fogo
abrasador que consumira sua alma. Já havia banido qualquer
desejo criminoso de consumar o casamento e o sexo com sua
própria filha menina e o pouco que restava na sua alma dessa
odiosa chama, só tornava mais vivo o seu amor paternal.
E assim que a viu disse:
— Bendito seja o céu que permite que eu te reveja, minha filha
querida – disse ele, chorando de alegria e correndo para bei-
já-la ternamente como um pai afetuoso.
O futuro esposo ficou muito contente em saber que se tornava o
genro de um rei tão poderoso.
Nesse momento chegou a madrinha, que contou à corte toda a
história e assim acabou de elevar Pele de Asno à glória.

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Leitura simbólica

Assim como o conto anterior, Pele de Asno também merece uma


leitura à parte, para seu conteúdo simbólico. Este tipo de conto,
quando tem sua estrutura quebrada ou seu conteúdo arquetípico
alterado, perde sua função. Estar atenta (o) a isso preserva a fun-
ção iniciática do conto.

1. Começamos pelo rei da história, ele era o maior sobre a terra,


tinha grande poder e tudo que o desejo exige estava ao alcance
de suas mãos. A vida lhe parecia perfeita e até a filha tinha tantas
virtudes que ele "se consolava de não ter filhos homens”. O lugar
da mulher, na visão do rei, fica claro aqui. Outro elemento impor-
tante de ser analisado neste conto é a existência de um asno bem
estranho e fonte de toda riqueza do rei.

2. O Asno é um animal cheio de simbolismos, mas vamos focar


sobre um dos elementos apenas: “quando o asno surge investido
de um aspecto solene e ritual, costuma ser mensageiro de morte
ou aparecer em revelação de um falecimento, como destruídor
2
Dicionário do tempo de uma vida.” 2 Esse é o caso do asno neste conto.
de símbolos.
Juan-Eduardi
Cirlot.
3. Mas tudo pode mudar nesta vida. O rei perde sua rainha e isso
São Paulo: lhe causa grande sofrimento. Todo seu poder não é bastante para
Ed. Moraes, que tenha controle sobre tudo e todas as coisas como pensava.
1984, p. 106

Pele de asno 88
4. A rainha, antes de morrer, faz o rei prometer-lhe algo difícil
de ser cumprido. Só se casar novamente com uma mulher que a
superasse em tudo. Ela quer mantê-lo preso a ela, mesmo depois
de sua morte.

5. A rainha, sem se dar conta, coloca sua filha em risco e con-


tribui com a situação do incesto que iria se desenhar, pois não
existia mulher que se comparasse a ela, somente sua filha que,
vindo dela, poderia superá-la. Mas com a própria filha ele não
poderia se casar.

6. Promessa feita não significa promessa cumprida quando o


instinto fala mais alto. E o rei, habituado a ter seus desejos rea-
lizados, muito certamente é um homem movido pelo instinto.
Vemos isso na descrição inicial que reforça seu poder. Ele não
poupará a filha, ainda menina, se seu desejo assim o conduzir.

7. A madrinha entra na história. Ela representa a sensatez do


adulto atento e responsável. É uma mulher vivida e experiente
e por isso sabe o mal que essa aventura do rei causaria à jovem
princesa, uma criança inocente, ainda. Violar a inocência de uma
criança é gravíssimo, pois representa a quebra da confiança no
futuro, na vida.

8. A madrinha faz um alerta quando, diante de um belo ves-


tido a princesinha fraqueja e pensa em ceder ao desejo do pai.
Ela adverte-a para não se encantar com os agrados que ele lhe

89
oferece: “Não hesite. Afinal todos esses presentes não são tão
grande maravilha.”

A madrinha desempenha um papel fundamental também por


alimentar nela a confiança: “quando se procura o bem, nada se
deve recear." Por fim, a madrinha a orienta a pedir a pele do asno
provedor de riquezas. E essa lhe é dada. Assim, ela interrompe o
ciclo de morte que já ocorreu com a rainha e que poderá ocorrer
com a princesa, pois o incesto tem o efeito de uma morte no nível
emocional psíquico.

9. A princesa terá de abrir mão de tudo: sua casa, seus amigos,


seu conforto, para se livrar da tormenta que lhe espreita. Terá de
deixar o conforto do conhecido pelo descohecido e isso a ame-
dronta. Mas essa é a unica forma de se proteger.

10. O casamento teria acontecido, não fosse a fuga da noivinha.


E os convidados teriam comparecido para festejar. Nenhum deles
ousaria contrariar o rei tão poderoso, denunciando o crime que
estava por acontecer. Por medo? Por achar que não deveriam se
intrometer em assuntos de família?

11. Nos momentos de desalento, coberta de sujeira e guarda-


dora de porcos, ela se limpa e enfeita para não se esquecer "quem
é.” Quando o sofrimento é grande, o importante é não se esquecer
de si mesma.

Pele de asno 90
12. O encontro com o príncipe após tantos sofrimentos e o
recomeço de uma nova vida ao lado de um jovem da sua idade
e da sua estirpe são finalmente a confirmação do que profetizara
sua madrinha: “quando se procura o bem nada se deve recear”.

13. Ela começou sua vida de mulher adulta com o homem


que escolheu e sua sexualidade será despertada da melhor
forma. A própria vida se encarrega de colocar as coisas no bom
lugar, se pudermos esperar com paciência. A princesa esperou. A
oportunidade chegou através da doença do príncipe e ela soube
aproveitar essa chance.

14. O pai também teve a chance de regenerar, não por esforço


próprio, mas pela escolha da filha em não ceder aos desejos dele.
E assim, tudo se colocou novamente em harmonia.

Este é um conto do tipo circular. Ele começa com o reino numa


“aparente" harmonia, ela se quebra e será finalmente restaurada,
mas agora, verdadeiramente.

91
Sugestão de perguntas reflexivas:

Esse conto suscita uma boa conversa sobre:


Que paralelos podemos encontrar entre esse rei e homens que,
nos dias de hoje, agem dessa forma? Como eles demonstram
poder? Como eles seduzem? O que se pode aprender sobre esse
tipo de personalidade doentia, tomando como base este conto?

O que se pode aprender com as atitudes da madrinha e da princesa?

O que precisa ser memorizado nessa história?


Sugiro: “quando se procura o bem nada se deve recear”
O que cada pessoa gostaria de memorizar deste conto?
Como o convidados deveriam se comportar? O que você acha?
O que se deve fazer com o que se vê, escuta ou assiste?
Qualquer um pode fazer o papel da madrinha?

Pele de asno 92
O conto a seguir adverte...

A violência cometida com um diz respeito a todos e não considerar


isto pode ser grave. O conto africano A querela das lagartixas afirma
essa verdade e mostra as formas de reagir daqueles que não que-
rem se envolver. Também expõe os possíveis motivos, no caso as
fraquesas, dos que agem assim. Trata-se de uma fábula, pois os
protagonistas são animais que encarnam as fraquezas humanas
para ensinar algo. Além de fábula pode ser considerado também
um conto exemplar ou conto de exemplo. Esse gênero do discurso
oral é muito frequente na tradição africana.

94
A querela das
duas lagartixas

No tempo em que todas as criaturas sobre a terra podiam


se compreender, havia um homem que vivia numa pequena
aldeia, com sua velha mãe. Eles tinham alguns animais:
um cão, um galo, um bode, um boi e um cavalo que viviam
soltos em seu quintal. Um dia o homem precisou fazer uma
viagem e teria que deixar sua velha mãe que não andava
muito bem de saúde.
— Fique tranquila minha mãe, eu não devo me demorar mais
que cinco ou seis dias.
Antes de partir, ele chamou o cão e disse:
— Durante minha ausência, você será o guardião da casa.
Sente-se aqui, na soleira da porta de entrada. Fique atento
a tudo que acontecer dentro e fora da casa e não deixe seu
posto por nada, se algo acontecer dentro da casa, chame o

95
galo, o bode, o boi e o cavalo para que eles se encarreguem de
resolver a questão, você compreendeu bem?
— Sim patrão! – Disse o cão, abanando o rabo e esfregando o
focinho nas pernas do homem para receber um carinho.
Dois dias após a partida, ainda bem cedo na manhã, o cão ouviu
um barulho estranho que vinha do quarto da velha mãe de
seu patrão. Ela ainda dormia embaixo de um mosquiteiro
e em sua mesinha de cabeceira uma lamparina clareava o
quarto com sua chama. O Galo estava ciscando bem à frente
da porta. O cão chamou:
— Galo! galo!
— O que você quer cão?
— Há um barulho vindo do quarto da velha mãe de nosso patrão,
eu vi que são duas lagartixas penduradas no teto do quarto
brigando por uma mosca morta. Eu te peço galo, vá dizer às
lagartixas que parem com essa luta.
Indignado com o pedido do cão, o galo, com sua crista tremu-
lando respondeu:
— Como assim cão? Você pede a mim, o rei de todas as galinhas
da vizinhança, eu o encarregado de anunciar todos os dias a
chegada do sol, você pensa que eu deveria me ocupar de uma
briga de lagartixas?
— A mãe de nosso patrão está doente, insistiu o cão. O barulho
que fazem essas lagartixas pode incomodá-la. E, além disso,
não existem pequenas querelas como não existem pequenos
incêndios. Não sabemos no que isso pode dar.
— Pois então vá você, separar a querela das lagartixas!

A querela das 96
duas lagartixas
— Eu não posso, o patrão ordenou que eu não saísse da soleira
da porta por nada.
— Problema seu, eu nada tenho a ver com isso. Aliás, por que iria
me preocupar com uma querela de lagartixas?
E balançando as penas de seu rabo o galo continuou a ciscar. O bode,
barbudo como um patriarca, veio passando em frente à porta.
— Bode! bode! Chamou o cão.
— O que você quer, cão? – Perguntou o bode.
— Você poderia apartar a querela de duas lagartixas no quarto
da nossa patroa?
— Quem você pensa que eu sou, galo? - Respondeu o bode. Eu,
o senhor supremo de todas as cabras, quando nem mesmo o
galo quis se ocupar disso, eu me ocuparia? Se essa briga inco-
moda, vá você mesmo separar as lagartixas.
— Recebi a ordem de nosso patrão de não deixar por nada esta
porta durante sua ausência.
— Pois então fique à porta, mas me deixe em paz e deixe as
lagartixas se resolverem. Tudo que pode acontecer a elas é
caírem e se esborracharem no chão e será bem feito! Nunca
uma guerra de lagartixas incomodou a ninguém! Uma que-
rela de lagartixas… realmente era só o que me faltava!
E empinando sua barbicha, o bode se afastou. Durante esse
tempo as duas lagartixas continuaram a se agredir, se morder
e se estapear com as patas furiosas. Inquieto, o cão chamou o
boi que ruminava tranquilamente em seu canto:
— Boi! Boi!

97
— O que você quer, cão? – Mugiu o boi, incomodado por ter sido
tirado dos seus sonhos de ruminante.
— Duas lagartixas estão se batendo no quarto de nossa patroa,
você poderia separá-las? Não existe pequena querela.
Ninguém sabe o que pode acontecer…
— Uma querela de lagartixas? – murgiu sarcástico o boi. Você
quer que eu, boi, o mais forte e o mais antigo dos animais
desta casa. Eu?… você quer que eu me ocupe de uma querela
de lagartixas? Nenhuma palavra a mais, cão! De um só golpe
com meus chifres eu trespasso seu ventre!
O cão abaixou suas orelhas e calou-se. As lagartixas continua-
vam mais furiosas ainda. Vendo passar o cavalo, o cão fez sua
última tentativa:
— Cavalo! cavalo!
— O que é cão?
— Você poderia por favor ir até o quarto da nossa patroa sepa-
rar as lagartixas que estão brigando no teto por uma mosca
morta? Como você sabe, não existe pequena querela...
— Realmente cão, relinchou o cavalo, você me conhece bem pouco
para ter me chamado. Quando o galo, o bode e o boi se recu-
saram a uma tarefa tão ridícula, você quer que eu faça isso.
Eu?… O mais nobre dos animais, um puro sangue consagrado
exclusivamente às corridas, você quer que eu me ocupe disso?
Por que você pensa que uma querela entre lagartixas por uma
mosca morta me diz respeito? Vá você se ocupar disso!
— Eu não posso, disse o cão, eu recebi ordens de não deixar
meu posto.

A querela 98
das lagartixas
— Pois muito bem, fique aí e nos deixa em paz! Jamais uma
guerra de lagartixas incomodou ninguém.
E, balançando a crina, o cavalo se afastou. Desamparado, sem
saber mais o que fazer, o cão se calou. Com as orelhas baixas,
o focinho entre as patas, ele olhou tristemente para o quintal,
onde cada um dos animais, repousava, passeava ou comia,
sem se preocupar com nada. Mas, eis que a duas lagartixas,
que disputavam ainda mais violentamente a mosca, se sol-
taram do teto e caíram sobre a lamparina de óleo. A chama
escorreu até o mosquiteiro que cobria a cama da velha
senhora e logo passou para a cama e tudo estava em chamas
num piscar de olhos. A velha mãe acordou com o fogo lhe
queimando e gritou por socorro. Os vizinhos vieram socorrê-la
carregando muitos baldes de água para apagar o fogo. Mas a
velha senhora já estava muito queimada. Ela respirava, mas
sua vida estava por um fio. O curandeiro da aldeia foi chamado.
Ele examinou-a e balançou a cabeça. Era grave. Naquela aldeia
as pessoas se curavam com plantas e outras coisas que não
eram como os remédios da cidade. O curandeiro mandou que
preparassem uma boa canja de galo para fortalecer a velha de
forma que ela pudesse resistir aos ferimentos.
— Justamente, tem um galo no quintal, vamos buscá-lo, disse
um dos vizinhos.

As pessoas se juntaram na caça ao galo e logo o agarraram pelos


pés. Quando o levavam para o sacrifício, passaram com ele
diante do cão e o galo disse:

99
— Ah cão! Se eu tivesse dado ouvidos e feito alguma coisa para
resolver o problema com as lagartixas! Como não quis me
envolver, agora vou a meu fim!
— É galo! disse o cão, como eu disse, não há pequena querela!
Feita a canja de galo, os ossos foram jogados para o cão que
pensou: pobre galo! Se tivesse usado da sua autoridade para
apartar a querela das lagartixas não estaria, hoje, sendo meu
almoço. Quanto à velha mãe, ela não resistiu e deu seu último
suspiro. Alguém então buscou o cavalo, selou-o e mandou
que um jovem rapaz, habituado às corridas de cavalo, o mon-
tasse e fosse rapidamente buscar o filho da velha senhora
para que ele providenciasse o funeral.
O jovem, feliz por montar em um puro sangue, partiu como uma
flecha, chicoteando o cavalo para que corresse mais e mais e
mais rapidamente. Ao final do dia, já sem forças, por tanto
galopar, o cavalo, montado pelo jovem chegou a aldeia vizi-
nha. Quando o filho da velha senhora recebeu a notícia, sem
pestanejar montou a garupa do cavalo e disse ao jovem:
— Vamos rápido!
Pobre puro sangue… se achava muito especial e nobre para se
ocupar de uma briga de lagartixas. Com os flancos muito
machucados, e colocando espuma pela boca ele parou em
frente a casa, depois de um dia e uma noite de galopes, seu
coração e seus pulmões não suportaram tanto esforço e ele
caiu ao lado do cão. Antes de dar seu último suspiro, ele disse:
— Ah, cão! Se ao menos eu tivesse te escutado, não estaria agora
indo ao meu fim.

A querela das 100


duas lagartixas
— Pois é, meu amigo, suspirou o cão, veja a triste consequência
de uma pequena querela de lagartixas.
O filho preparou o funeral de sua velha mãe. Mas havia nessa
aldeia um ritual que era o seguinte: Antes de enterrar um
defunto era preciso jogar na cova o sangue de um bode e
depois preparar sua carne para oferecer um bom guisado
aos amigos que viriam prestar suas condolências. Assim,
dois homens se encarregaram do ritual. Quando agarraram o
bode pelos chifres e o levaram para o sacrifício, passaram em
frente ao cão. O bode tristemente disse:
— Oh, cão! Como você tinha razão! se eu tivesse me preocupado
com a briga das lagartixas, hoje não estaria caminhando para
o sacrifício.
— É bem verdade meu amigo! Respondeu o cão, não existe
pequena querela e sempre há consequências.
Quarenta dias após o sepultamento, era tradição na aldeia que
todos se reunissem para uma cerimônia de despedida final
do defunto, pois acreditava-se que depois da morte a alma
ainda ficava quarenta dias presa às coisas da terra. Neste dia,
a família deveria oferecer um grande banquete e despedir-se
da alma que deveria partir de vez. O filho da velha mãe man-
dou sacrificar o boi para o churrasco.
— Ah cão! – disse o boi – Antes de morrer, se eu tivesse dado ouvi-
dos e me ocupado das lagartixas…
Cheio de pesar pelo destino do boi o cão deu um suspiro fundo.
Mais tarde, vieram trazer-lhe um bom pedaço de carne, que

101
ele saboreou enquanto pensava: Não há pequena querela
como não há pequenos incêndios!
E, foi assim, por causa de uma briga à toa, de duas lagartixas por
uma mosca morta, uma briguinha de nada, como diziam os
animais, que morreu a velha mãe, a casa incendiou e nossos
amigos, o galo, o bode, o cavalo e o boi foram sacrificados.
Apenas o fiel cão se salvou e recebeu sua recompensa, porque
ele sabia que não há pequenas querelas, como não há peque-
nos incêndios.

A querela das 102


duas lagartixas
Sugestão de perguntas reflexivas:

Algumas “desculpas" são usadas para justificar o silêncio


daqueles que, ao testemunharem um ato de violência, seja
contra criança, idoso, mulher ou outro homem, se mantém
“na sua”. Sobre isso costuma se dizer: "Briga de marido e mullher
ninguém mete a colher”, “Os pais têm direito de educar os filhos
como acharem melhor e ninguém tem nada com isso”, "Se apa-
nhou é por que provocou” etc…Será mesmo? O que vocês acham?

O que vocês aconselhariam a alguém que esteja passando por


uma situação assim e não sabe o que fazer?

103
Produção criativa

105
Mosaico

A Produção Criativa sugerida para o tema Violência é o mosaico.


Esta escolha se justifica pelo fato de que um mosaico é feito
de “cacos”, de pedaços, de algo que foi quebrado e será jun-
tado novamente.
A breve explicação sobre o mosaico, que vem a seguir, deverá
ser apresentada aos participantes apenas na última etapa de
sua confecção. O objetivo disso é inspirá-los para a produção
artística mas também para esclarecer sobre a relação que há
entre a produção e as experiências de vida.

O termo mosaico vem do grego – mouseîn – e está relacionado


às musas. As musas, na mitologia grega, eram filhas de
Mnemósine que significa memória. A elas era atribuída a
capacidade de inspirar a criação artística ou científica.
As experiências com a violência são como quebras, que permane-
cem presas na memória. A confiança que se tinha, a alegria, a
esperança, o amor… todo sentimento, toda idéia, todo projeto
de vida podem se transformar em “cacos", quando quebrados
pela violência de palavras e gestos.
Reajuntar esses “cacos do coração" não é fácil, pois será necessá-
rio voltar às memórias, guardadas no espaço que se destinou
às dores da alma, mas é possível. Através da confecção do
mosaico, pode-se conhecer o caminho que leva de volta à
continuidade da vida, de uma forma novamente confiante,

106
esperançosa, amorosa. Sendo inspirados (as) pelas musas
pode-se fazer um belo mosaico: Juntam-se cacos e os
organiza combinando as cores, as formas geométricas, os
materiais… Isso requer paciência e criatividade. Enquanto o
mosaico toma forma, pode-se ir colando, também, os cacos
do coração, por que não?

Material
— Uma média de 3 a 4 azulejos por pessoa. É necessário que
tenham a mesma espessura ou com pouca diferença.
— Um prato de cerâmica, mais ou menos do tamanho de um
prato de refeição, com bordas, para cada pessoa.
— Jogo de canetas coloridas para escrever em porcelana,
da marca Compactor, a ser utilizada por todos.
— Uma embalagem grande de cola cascorez para todos.

107
Mosaico I

Após o conto A disputa das palavras e a conversa proposta pelas


perguntas reflexivas, apresentar uma pilha de azulejos varia-
dos: diferentes cores e desenhos para que os participantes
possam escolher uns três ou quatro. Eles deverão ficar reser-
vados para continuação do trabalho posteriormente.
Deixá-los sem saber o que será feito com os azulejos ativa a
curiosidade e isso é muito positivo.

Material
— Azulejos de cores e estampas variadas. É importante que aja
mais azulejos coloridos que estampados para a composição
final do mosaico. De preferência que sejam diferentes, Uma
média de 3 a 4 por pessoa.

Mosaico II

Após o conto Brasinha e a conversa sobre a raiva e a tristeza


proposta nas sugestões de perguntas reflexivas, cada pes-
soa pega os azulejos que selecionou no encontro anterior e
desenha neles uma representação dos seus sentimentos de
raiva e tristeza. Formas e cores podem também representar
esses sentimentos, além de desenhos figurativos. Reservar os
azulejos para o próximo encontro.

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Material
— Os azulejos previamente escolhidos e canetas coloridas de
diversas cores, da marca compactor para cerâmica e vidro.
— As canetas podem ser usadas por todos. Um estojo pode ser
suficiente. Pedir a cada participante para trazer uma caixa de
sapato ou papelão no próximo encontro.

Mosaico III

Após os contos O rei e o falcão e A prancha de pregos, os partici-


pantes serão convidados a quebrarem os seus azulejos em
pedacinhos e guardarem agora os cacos.

Material
— Os azulejos e uns dois martelos que podem ser usados por
todos. Uma caixa para cada um guardar seus cacos e que já
foi pedida no encontro anterior.

109
Mosaico IV

Após o conto: O pelo do leão os participantes serão convidados


a misturarem todos os cacos numa mesma bacia ou caixa
maior. Depois de bastante misturados devem ser espalhados
em cima de uma mesa e cada um escolhe os cacos com os
quais irá montar seu mosaico.

Material
— Cacos de azulejos e uma bacia ou caixa maior para misturar
e um instrumento de madeira, uma ripa, ou luvas de couro
para quem fará a mistura não se cortar.

Mosaico V

Após o conto do A lebre e o Baobá e a conversa reflexiva, pedir a cada


um para escolher seus cacos dentre aqueles que podem repre-
sentar um sentimento experimentado com algum tipo de
violência. O caco poderá narrar a situação na primeira pessoa,
como se tivesse ganhado vida e agora conta sua história.

Material
— Os cacos que cada pessoa guardou em sua caixa

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Mosaico VI

Até aqui, fomos construindo delicadamente as bases para os


contos mais densos e as experiências mais dolorosas como as
abordadas nos contos A árvore florida e Pele de Asno.
Chegamos ao momento da confecção do mosaico. Antes de dar
o comando para terminarem a sua "obra de arte” é interes-
sante fazer a leitura explicativa, acima, sobre o mosaico de
forma a alimentar a poesia e a imaginação dos participantes.
Em seguida, dar as explicações.

1. Primeiro experimentam-se as várias formas possíveis de mon-


tar o mosaico. Vamos buscar a harmonia de cores e formas.
2. Quando já se estiver satisfeito (a) com a organização dos cacos
no prato de cerâmica, passar a cola em cada um e colar no prato.
3. Passar o rejunte entre as peças.
4. Passar um pano úmido para tirar os excessos de rejunte.
Deixar secar até o próximo encontro, quando todos farão a
exposição de sua “obra" e poderão falar sobre como foi para
cada um ter feito o seu mosaico. O que aprendeu?

A exposição pode ser feita após o conto A querela das lagartixas e


a conversa reflexiva. O profissional poderá explicar um pouco
sobre o motivo de terem sido misturados os cacos de todos no
início do trabalho; o objetivo é que não se esqueçam de que a
violência sofrida por uma pessoa pode doer em todas.

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Referências

A disputa das palavras


MATOS, Gislayne. Storytelling: contando histórias nas empresas – 51
histórias para 22 situações. Belo Horizonte: Casa Apoema, 2016.

Brasinha
LOBBY, Ted. Recontado por Cecília Caram, in: Caderno de Contos. Belo
Horizonte: Compilação do Projeto Convivendo com Arte, 1998.

O rei e o falcão
BENNETT, William. O livro das virtudes. São Paulo: Nova Fronteira,
1995.

A prancha de pregos
Sem nota bibliográfica, ouvido por Gislayne Matos e recontado.

O pelo do Leão
BENNETT, William. O livro das virtudes. São Paulo: Nova Fronteira,
1995.

Livrar-se dos velhos


MATOS, Gislayne Avelar. Belo Horizonte, 2019.

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A lebre e o baobá
Caderno de Contos para as fases da vida. Belo Horizonte: Compilação
do Projeto Convivendo com Arte, 2000.

A árvore florida
Caderno de Contos. Belo Horizonte: Compilação do Projeto
Convivendo com Arte, 1998. Recolhida do folclore hindu por jac-
queline MacLean, publicada em inglês na Storytelling Magazine
de julho/97, traduzida por Cecília Caram.

Pele de asno
PERRAULT, Charles. Contos de Perrault, Belo Horizonte: Editora
Itatiaia Limitada, 1985. Recontado por Gislayne Matos.

A querela das duas lagartixas


HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Il n’y a pas de petite querelle: nouveaux contes
de la savane. Paris: Stock, 2OOO. Tradução e reconto Gislayne Matos

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