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FIGUEIREDO, Fábio Fonseca.

Trabalho e meio ambiente urbano na percepção dos


representantes das associações de catadores de resíduos sólidos de Natal, Brasil.
Territorio, ciudad, educación. Actas del Seminario Internacional de investigadores
brasileños en Europa. Barcelona, 9 y 10 de marzo de 2007.
<http://www.ub.es/geocrit/seminbrasil/psb-0807.htm> [ISBN 978-84-611-9113-0]

Trabalho e meio ambiente urbano na percepção dos representantes das associações de


catadores de resíduos sólidos de Natal/Brasili

Fábio Fonseca Figueiredo


Doutorando em Geografia Humana, Universidad de Barcelona/España
ffabiof@yahoo.com

Resumo: Trabalho e meio ambiente urbano na percepção dos representantes das associações
de catadores de resíduos sólidos de Natal/Brasil

Com entrevistas semi-abertas e observações do cotidiano dos catadores de lixo de Natal/Brasil


realizadas em setembro/2003, analisamos os depoimentos dos representantes das duas
associações de catadores no contexto da implantação do projeto de erradicação do lixão e
inclusão social de catadores, desenvolvido pela Prefeitura. Abordando as temáticas trabalho
dos catadores e meio ambiente, os resultados apontam que embora os discursos destes sujeitos
estejam fundamentados na conquista de benefícios trabalhistas para os associados, a lógica de
funcionamento das associações é da produtividade do trabalho, sem que hajam preocupações
enquanto as conseqüências disso para os catadores. A vertente ambiental urbana aparece
distorcida pelo discurso da lucratividade da atividade da coleta de materiais recicláveis, o que
faz do discurso em si contraditório. Por fim, embora sejam rivais, os representantes possuem
o mesmo ponto de vista sobre os assuntos tratados.

Palavras-chave: Resíduos sólidos; trabalho dos catadores; meio ambiente urbano.

Resumen: Trabajo y medio ambiente urbano el la percepción de los representantes de las


asociaciones de basureros de residuos sólidos en Natal/Brasil

A través de entrevistas semi-abiertas y observaciones del cotidiano de los basureros de


Natal/Brasil en septiembre/2003, analizamos las informaciones de los representantes de las
dos asociaciones de basureros en el contexto del proyecto de erradicación del vertedero
incontrolado y inclusión social de los basureros, desarrollado por el Ayuntamiento. Tratando
de cuestiones como trabajo de los basureros y medio ambiente urbano, los resultados señalan
que aunque el discurso de estos sujetos esté basado en la conquista de beneficios del trabajo
para los asociados, la lógica del funcionamiento de las asociaciones es la de productividad del
trabajo, sin preocuparse por las consecuencias de esto para los basureros. La vertiente
medioambiental urbana aparece distorsionada por el discurso de la ganancia de la actividad de
la recogida de los materiales reciclables, lo que hace el discurso en si contradictorio. Por fin,
aunque sean rivales, los representantes tienen la misma visión en cuanto a los asuntos
planteados.

Palabras-clave: Residuos sólidos; trabajo de los basureros; medio ambiente urbano.

Introdução

A problemática socioeconômica e ambiental originada pela elevada quantidade de lixo nas


cidades vem se constituido um dos grandes temas do debate ecológico no Brasil atualmente.
As diversas poluições geradas a partir da equivocada disposição final dos resíduos do lixo
provoca efeitos quase que imediato para os cidadanos, que reclama das autoridades públicas
soluções efetivas a este problema. Some-se a isso o interesse pela academia sobre o tema, o
que tem elevado a quantidade e qualidade da produção científica no últimos anos, bem como
as manifestações realizadas pelos movimentos ecologistas, e ainda a entrada do setor privado
no interesse das questões ambientais urbanos.

Outro fator que tem chamado a atenção ao tema resíduos sólidos urbanos é o drama social
vivido por quem sobrevive da coleta de materiais recicláveis, os denominados catadores de
lixo. Estes sujeitos procedem de diversos procesos de exclusão do campesinato devido a
concentração fundiária brasileira. Também são procedentes da exclusão urbana motivada pela
dificuldade da sociedade moderna em relacionarse com indivíduos como os catadores. A
exclusão urbana gera uma série de encadeamentos como a falta de emprego, déficit
habitacional, segregação cultural e, claro, violência urbana. Estes sujeitos, excluíduos,
utilizam como estratégia de sobrevivência a atividade da coleta, realizada em uma situação de
extrema precariedade, o que movimenta a economia política do lixo (Bursztyn, 2000).

A partir dos anos 1990 surgiram movimentos dos setores público e privado de resgate dos
catadores para o mundo formal, através da inserção destes sujeitos em programas de coleta
seletiva. Objetiva-se que estes sujeitos tenham melhores condições de trabalho, auferindo
ocupação e renda com a venda dos recicláveis para as indústrias de reciclagem.
Coincidentemente ao resgate aos excluídos, houve um fantástico incremento nos índices de
reciclagem no Brasil, com alguns materiais alcançando cifras de reciclagem de países
tradicionalmente reconhecidos por sua eficiência técnica nesse setor industrial (CEMPRE,
2006).
Outro detalhe que não deve passar despercebido são os generosos financiamentos públicos
concedidos à formação da nova estrutura de gestão dos serviços do lixo para os municípios
brasileiros. Esta política possui como argumento a resolução da problemática do lixo urbano
sob uma ótica multidisciplinar, ou seja, atacar ao mesmo tempo a questão ambiental,
econômica e social do problema do lixo. Propõe, portanto, a gestão compartilhada dos
serviços do lixo, com a participação do setor público monitorando o sistema, o setor privado
sendo financiado para a execução de alguns destes serviços, e os catadores como aspecto
social inserido nessa nova estrutura organizacional.

Do ponto de vista técnico-ambiental, incentiva-se que a população selecione seu lixo já que
assim menos resíduos seriam dispostos para tratamento. Isso elevaria a vida útil dos aterros
devido a menor quantidade de resíduos. Os restante dos resíduos que não puderem ser
separados ou serão incinerados nas modernas incineradoras que voltam ao mercado sob a
alegação de serem menos poluentes que as antigas, muito utilizadas nas décadas de 1970 e
1980; ou serão tratados pelas empresas contratadas para executar este serviço. O fator
econômico atua sob a égide da racionalidade já que o Estado contrata uma empresas privadas
para realizar algumas tarefas da cadeia dos serviços do lixo (transporte e tratamento final dos
resíduos).

Outro aspecto é a participação dos catadores de lixo no programas de coleta seletiva


desenvolvidos pelas municipalidades brasileiras. Como maneira de resgatar estes sujeitos da
marginalidade da ocupação, as Prefeituras montam estratégias de coleta seletiva, seduzindo a
população para que participe já que assim estaria ajudando os catadores devido ao aumento na
geração de renda destes sujeitos, com a venda dos materiais recicláveis.

Finalmente, e mais importante, o aspecto social. Com o apoio para a inclusão social de
catadores, o Estado atuaria no seu mitie, estando próximo ao social. O resgate social dos
catadores seria o elemento que melhor justifica o câmbio na gestão dos serviços do lixo, pois
arranca de uma estrutura falida e ineficiente para um modelo eficaz, aportado no tripé meio
ambiente, econômico e social. Segundo seus articuladores, o resgate não é somente
econômico, mas também, e sobretudo, social no sentido de dar uma dignidade aos catadores.

Natal/Brasil, adentrando no foco da investigação empírica

Natal, cidade do nordeste brasileiro está desde o ano de 2003 implantando uma nova estrutura
no gerenciamento dos seus resíduos urbanos. Financiada pelo Governo Federal com o projeto
de erradicação do antigo lixão do bairro de Cidade Nova (zona leste de Natal) e inclusão
social de catadores, a Prefeitura através do seu órgão competente, a Companhia de serviços
urbanos de Natal (URBANA), está desenvolvendo um modelo de gestão mista para os
serviços do lixo. O projeto prevé a extinção do lixão e correção sanitária da antiga área que
será utilizada como transbordo dos resíduos coletados na cidade, o que já ocorreu a essa
época, 2007. Também a contratação de uma empresa privada para realizar o serviço de
tratamento final dos resíduos, montando um aterro sanitário na cidade de Ceará-Mirim,
distante 25km de Natal.

Porém, do atual projeto o que mais tem merecido atenção refere-se ao aspecto social, com a
inclusão dos catadores no programa de coleta seletiva da cidade. Aclamado pelos defensores
da nova estrutura como um modelo exitôso no que tange a inclusão social por abarcar a quase
totalidade dos catadores do antigo lixão do bairro de Cidade Nova, surgem alguma arestas que
merecem ser analisadas em respeito a maneira como e que tipo de inclusão está ocorrendo
com esses sujeitos.

Nesse trabalho, analisamos os depoimentos de dois representantes de associações existentes


no período da implantanção do novo projeto em Natal. Com entrevistas semi-abertas
realizadas no mês de setembro de 2003, gravadas, encontramos nas falas dos sujeitos
indicações e elementos de como seria a propalada inclusão social dos catadores. Partindo de
duas questões centrais, o trabalho dos catadores e o meio ambiente urbano, confrontamos as
informações cedidas pelos sujeitos com a observação do cotidiano das associações, que
realizamos no período das entrevistas, registrando as informações no caderno de notas.

As associações localizavam-se na área do antigo lixão, a Associação de Catadores de


Materiais Recicláveis (ASCAMAR), fundada em 1999 contava com 45 associados e possuía a
concessão da URBANA para utilizar a usina de triagem de resíduos montada na área do lixão
desde 1988. A Associação de Agentes Trabalhadores da Reciclagem e Compostagem do
Aterro Sanitário (ASTRAS) havía sido fundada legalmente em 2003, todavia seus membros
ainda coletavam seus resíduos como catadores autônomos, ou seja, realizavam o trabalho para
si mesmo, sem distribuir os rendimentos da venda dos recicláveis com os demais membros da
associação.
O que é trabalho para o representante da ASCAMAR

O representante da ASCAMAR relatou-nos que inicialmente a intenção era montar uma


cooperativa de catadores. Entretanto, em virtude do elevado custo das expensas cartoriais, a
solução mais viável foi montar uma associação de catadores:

Quando a gente foi programar a organização dos catadores, a primeira intenção


era que fosse uma cooperativa, mas só que como cooperativa, o custo seria muito
alto. (...) Então eu fui dar uma lidinha e vi que montar uma associação era muito
mais fácil. Onde a gente montaria um grupo de quinze a vinte catadores e
elaborava o estatuto. (...) E foi instituído a ASCAMAR no dia 17/04/1999.
(REPRESENTANTE DA ASCAMAR)

Tentando compreender o entendimento do entrevistado acerca do trabalho dos catadores


associados, perguntamos quais as vantagens e desvantagens de se organizar um grupo como
aquele, formado por catadores de materiais recicláveis, em uma associação. A princípio,
ficamos chocados com a resposta inicial de que não havia qualquer vantagem se organizar o
grupo de catadores em uma associação. Por outro lado, eram inúmeras as desvantagens de
uma organização associativa, citando-as em seguida:

As desvantages que a gente encontra na associação é o sistema de organização,


ele é muito frágil. Dado a ressocialização dos catadores, a gente não tem tanto
poder de mando de organização, de cobrança, como seria em um sistema de
cooperativa. Quer dizer, a responsabilidade deles, os associados, é muito menor
quanto a associação, de que quanto a cooperativa. (...) Mas a gente espera que
com o sistema de organização da cooperativa, qualquer problemática que a gente
ainda tenha com alguns, por motivo fútil, ou não quer fazer o serviço que foi
destinado a fazer, a gente vai elaborar um regimento interno que faça com que a
punição para o catador que trabalha na usina seja mais severa, pra poder
melhorar as condições de trabalho. (REPRESENTANTE DA ASCAMAR)

Se bem compreendemos, o fato de a ASCAMAR ser uma entidade organizada em regime


associativo ocasiona dois aspectos negativos: um é o sentimento descomprometido do catador
com a associação. Agindo de maneira irresponsável, ora trabalhando de forma desatenta, ora
faltando ao trabalho, sem que houvesse justificativa aceitável, o catador põe em risco a
produtividade do trabalho e a conseqüente renda global dos catadores devido aos possíveis
prejuízos causados por ele assumir essa postura frente à associação.

O segundo aspecto negativo e não menos nocivo é a limitação do poder de mando dos
gestores da associação perante os demais membros do grupo. Impossibilitados legalmente de
poder ditar ordens aos associados, não resta outra alternativa para os gestores senão contar
com a colaboração dos catadores para que encarem a associação com a devida seriedade.
As dificuldades citadas em gerenciar o cotidiano da associação fazem com que haja interesse
explicito por parte do representante da ASCAMAR em modificar a estrutura organizacional
vigente. Para esse gestor, sob o julgo de uma cooperativa, ocorriam duas mudanças
fundamentais no que tange à organização dos catadores. A primeira é o desenvolvimento do
senso de responsabilidade do catador para com a entidade, mais comprometido na cooperativa
do que na associação devido a possibilidade de se mudar as leis do estatuto. A segunda diz
respeito à possibilidade de punição para o catador que viesse a descumprir com o regimento
interno e/ou não se empenhasse, de maneira satisfatória na sua concepção, na execução das
tarefas.

Analisando pormenorizadamente o último parágrafo do depoimento, fazemos ressalvas a


alguns aspectos mencionados por entendermos que há contradição quando confrontados o
relato do entrevistado com a realidade observada. Interpretando o que foi dito, se a
ASCAMAR passasse de associação para cooperativa, as condições de trabalho dos catadores
associados melhorariam pois haverá rígido regimento interno com a intenção de punir com
severidade o catador que se tornasse problemático para o grupo. Em síntese, existiria a
relação direta na qual a causa é a criação e posterior cumprimento do regimento interno de
caráter punitivo; e o efeito da medida se estabelecia na melhoria das condições de trabalho dos
catadores da cooperativa.

Dito isso, vejamos até que ponto os argumentos da relação causa-efeito podem ser aceitos!
Caso a ASCAMAR viesse a se tornar uma cooperativa, essa modificação não surtia qualquer
efeito prático para as condições de trabalho dos catadores, já que as tarefas executadas não
sofriam qualquer mudança significativa. Torna-se óbvio imaginar que a situação do catador
frente ao trabalho permanece a mesma, sem melhorias, tampouco pioras. É factual que as
condições de trabalho em atividade qualquer tende a melhorar, à medida que as tarefas
executadas priorizam o fator humano, respeitando as capacidades e necessidades individuais e
coletivas.

Respaldado na teoria marxiana, é impensável a convivência harmoniosa entre o trabalho e o


indivíduo dada as condições de reprodução do capital. O fato de estarmos no bojo do modo de
produção capitalista, o qual se reproduz justamente através da expropriação do trabalho
alheio, impede a conciliação entre trabalho e capital, que por origem são categorias
antagônicas (Marx, 1996).
Retomando a discussão da questão da punição no trabalho, a história da humanidade
demonstra fartamente que jamais houve exemplo no qual a punição engendrasse a melhoria
das condições de trabalho, em qualquer modo de produção. Se a relação fosse verdadeira, por
exemplo, o trabalho escravo, nas sociedades escravocratas, tinha sido realizado em condições
satisfatórias. Para Ribeiro (1995), os castigos pedagógicos aplicados semanalmente aos
escravos dos engenhos do Brasil Colônia não responderam aos objetivos propostos já que,
mesmo assim, os negros fugiam das senzalas. Na metáfora do autor, os açoites e os castigos
impostos aos escravos constituíam mais moinhos de gastar gente (op. cit.: 106) do que tornar
os escravos dóceis.

Nas sociedades contemporâneas, cresce o interesse, principalmente no meio acadêmico


(Moura, 2003), em se investigar o estresse sofrido pelos trabalhadores, motivado por pressões
no trabalho e as conseqüentes punições. As punições impostas atuam de maneira contrária ao
que pensa o representante da ASCAMAR dado que, ao invés de fazer com que o trabalhador
eleve a produtividade, amedronta-o e faz precárias ainda mais suas condições de trabalho.

É evidente que o termo punição empregado pelo representante da ASCAMAR não significa
castigar fisicamente os catadores associados, proposição absolutamente inimaginável. No
entanto, o termo pressupõe que, caso a associação venha a se tornar uma cooperativa, o
comando da entidade pretende gerenciar o trabalho dos catadores com bastante rigor, algo
típico de uma corporação empresarial que objetiva a produtividade do trabalho tendo como
conseqüência os elevados níveis de estresse dos funcionários, levando a rotatividade no
trabalho do quadro de funcionários.

Existe o interesse explicito por parte da ASCAMAR em elevar a produtividade do trabalho


dos associados, haja vista que o rendimento da associação está condicionado à venda dos
materiais separados na esteira da usina de triagem. Respaldado na lógica de funcionamento da
associação, como organizada atualmente, não há qualquer contradição quanto à pretensão.
Inclusive, quando as duas associações convergem no sentido de que devia existir, em Natal,
coleta seletiva eficaz, está implícita a idéia de que a quantidade de materiais recicláveis
passíveis de serem coletados aumenta substancialmente, o que implica aumento da renda dos
catadores.

Visando manter a produtividade do trabalho dos catadores associados em patamar elevado,


foi-nos relatado que uma das estratégias adotadas pela ASCAMAR é a de não mais recrutar
mulheres para a associação. Por entender que o tipo de trabalho, na usina de triagem demanda
excessiva força física e por considerar pouco provável que a mulher execute de maneira
satisfatória as mesmas tarefas do homem, os gestores da ASCAMAR limitaram a quantidade
de mulheres ao patamar de 30%, impedindo a entrada de novas associadas:

Hoje você pode ver que nós temos mais mulheres na esteira do que homem, no
quantitativo. A gente deu uma parada porque tem muito serviço braçal e as vezes
os meninos que trabalham nos carrinhos e que trabalham na caçamba não podem
vir, ou por algum problema foram suspensos, a gente não pode colocar uma
mulher no lugar deles. Agora a gente parou, a gente não recebe mais mulheres. Se
tiver algum catador saindo dessa estrutura, a gente vai colocar homem porque a
gente já tá com a cota de mais de 30% de mulheres na usina, e a problemática é
que o serviço da usina é muito pesado, é empurrar carrinho, puxar lixo na
caçamba, carregar peso, aí fica mais difícil. Então, é por isso que a gente adotou
que agora a média vai ser essa de 30% e não extrapolar o percentual de mulheres.
(REPRESENTANTE DA ASCAMAR)

Observamos que as tarefas dos associados da ASCAMAR, no parque de triagem, realmente


requeriam o uso intensivo de força física. Também constatamos que, ao menos
aparentemente, os catadores e catadoras eram indivíduos subnutridos, haja vista a reduzida
estatura corpórea. Baseando-se em observações preliminares, trabalho realizado com uso de
força física e indivíduos subnutridos para executar as tarefas, podíamos supor que o homem
estava mais capacitado fisicamente do que a mulher, no traquejo das atividades demandadas
pelo trabalho.

Fazendo uma reflexão, imaginamos ser este o entendimento do representante da ASCAMAR,


no que se refere à maneira como o trabalho é organizado no parque de triagem dos resíduos
sólidos. Se estivermos corretos na análise e levando em conta que a produtividade do
trabalho, visando ao aumento dos rendimentos dos catadores é pano de fundo da questão, há
certa coerência em se limitar a entrada de mulheres na associação.

Todavia, mesmo admitindo a hipótese de que o entrevistado forneceu as informações apoiado


em vasta experiência acumulada, ao longo dos mais de cinco anos de existência da
ASCAMAR, passamos a discordar de alguns dos aspectos supracitados por considerarmos
incoerentes, quando os confrontamos com as observações. Existem outros aspectos que,
citados despretensiosamente, podiam ensejar discriminação ao trabalho feminino.

A primeira incoerência se refere à quantidade de mulheres na usina no dia da realização da


entrevista. Embora relatado que, naquele dia a quantidade de catadoras superava a de
catadores, verificamos que havia apenas quatro mulheres para o universo de quatorze
catadores ao longo da esteira mecânica, ou seja, 29%. O percentual, ao menos em termos de
quantificação estatística, não pode ser considerado, sob qualquer hipótese, maioria.
Contestamos também a afirmativa de que o trabalho na usina deve ser realizado
majoritariamente por homens, por entendermos que não é o uso da força física em si, mas a
maneira como o trabalho é organizado que determina maior ou menor quantidade de força na
execução das tarefas. Observando o funcionamento da usina de triagem, tivemos a impressão
de que algumas tarefas dos catadores podiam ser reordenadas de tal forma a privilegiar o
encaminhamento da atividade em detrimento do uso da força física. Se assim o fosse, muito
provavelmente catadores e catadoras estavam em igualdade de condições para desempenhar
quaisquer atividades.

Outro aspecto que merece ser discutido trata da capacidade física do homem de carregar peso
como pré-requisito para a escolha de novos associados. Agindo dessa maneira, a ASCAMAR
adota critério de seleção diferente do que havia acertado com a URBANA para ter acesso à
exploração econômica da usina de triagem dos resíduos sólidos.

Segundo relatos dos catadores avulsos e associados da ASTRAS, o critério para selecionar os
catadores anteriormente combinado entre ASCAMAR e URBANA é outro: o que se pautava,
no tempo de trabalho do catador ou catadora na área do lixão, de tal modo que os catadores
mais antigos, na área, tinham prioridade em participar na associação. Os catadores também
acusam a ASCAMAR de ser formada por familiares e amigos dos representantes. Não
sabemos até onde considerar essa informação, no entanto, nas observações, vimos que vários
associados mantinham algum grau de parentesco com os gestores da associação. Se nossa
observação estiver correta, há nepotismo na entidade.

Nesse contexto, limitar em 30% a quantidade de mulheres, nos quadros da ASCAMAR pode
ser interpretado como discriminação ao trabalho feminino, haja vista não tratar-se de divisão
de tarefas entre catador e catadora, o que a teoria econômica apropriadamente denomina
divisão sexual do trabalho. Para a mulher catadora, com anos de sobrevivência no lixão, essa
limitação significa a castração de direito adquirido no momento do acordo firmado entre
ASCAMAR e URBANA, para que a associação tivesse o monopólio sobre a usina de de
triagem que, na realidade, pertence à Prefeitura do Natal.

Por fim, vale o registro que a mesma prática discriminatória, em virtude da masculinização da
catação dos catadores avulsos de cima do lixão, tem se repetido na ASCAMAR. Pensamos
que, se a associação tenciona agregar os catadores visando defender a categoria, não devia
fazer distinção por sexo para aceitar os integrantes.
Analisando a questão, temos que não seria interessante para a mulher ter os mesmos direitos
que os homens catadores, todavia, o quadro que apresenta demonstra a opressão ao gênero
feminino. Posicionamo-nos contrário a atividade da catação, no entanto, somo menos
favoráveis ainda a discriminação da mulher nessa atividade já tão precária. Some-se a isso que
a variável produtividade não podia sobrepor aos interesses coletivos de participação dos
associados da entidade.

ASTRAS e suas palavras carregadas de significados

O discurso do representante da ASTRAS para os catadores visando angariar a


representatividade da classe, tem se notabilizado pela defesa dos interesses da categoria, vez
que a associação é formada por verdadeiros catadores. Definindo-se como entidade social, o
representante dessa entidade percebe a relevância da associação para a sociedade natalense
pregando o seguinte discurso:

Esse trabalho na coleta ele tá sendo participativo com a URBANA, com entrevistas
nos hotéis. Agora a porta-a-porta [tipo de coleta seletiva] a URBANA está se
ingressando de ir na casa das pessoa, com entrevistas sobre a coleta seletiva, e
totalmente tá tendo a minha participação porque eu tô sempre pedindo pras
pessoas adotar a coleta seletiva. (REPRESENTANTE DA ASTRAS)

O trecho pressupõe que a ASTRAS, além dos interesses imediatos, a defesa dos interesses dos
associados, está consciente quanto à responsabilidade ambiental perante a sociedade
natalense, no sentido da melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, entendendo que, para
isso, a preservação do meio ambiente se constitui no fator primordial. Desse modo, a
associação coloca-se à disposição da URBANA e da sociedade natalense, não medindo
esforços em auxiliar a Companhia para que o projeto de erradicação do lixão de Natal seja de
fato implantado.

De fato, nas conversas informais que mantivemos, com este sujeito, estava presente o apelo à
sensibilização e conscientização ambiental dos moradores do entorno da área do lixão.
Contudo tal postura diante da temática ambiental restringia-se à separação dos materiais
recicláveis do lixo doméstico, que segundo o representante da associação, devia ser realizada
inicialmente pela própria população, pré-ciclando seus resíduos.

Embora haja apelo ambiental, este ocorre de maneira parcial pois, em nenhum momento foi
comentado o destino final do lixo orgânico, composto basicamente de restos de alimentos.
Conforme a literatura sobre a temática ambiental (Calderoni, 2003; Pereira Neto, 1996), mais
de 60% dos resíduos produzidos pela população de baixa renda brasileira, como a das
adjacências do lixão, são de origem orgânica, o que sugere que as ações políticas ambientais
para essas populações deviam ser voltadas primeiramente para a minimização desse resíduo, o
que implicaria um melhor aproveitamento do alimento para esse estrato populacional de baixa
renda.

Neste sentido, entendemos que a preocupação com o meio ambiente não deva ser restrita à
separação de materiais recicláveis pela população, haja vista que o lixo orgânico embora nao
seja tão poluente quanto o lixo inerte, polui, além de poder ser aproveitado de maneira
satisfatória. A fala do representante da ASTRAS se presta mais ao aumento da quantidade de
materiais recicláveis, o que eleva a renda dos catadores associados, do que propriamente à
defesa das causas ambientais.

Perguntado sobre as perspectivas da atividade da catação com a construção do aterro sanitário


de Natal e a implementação da coleta seletiva na cidade, o representante da ASTRAS está
convicto de que a quantidade de materiais reciclados aumenta na mesma proporção da
efetividade da coleta seletiva:

Não queremo expulsar nenhum daqui de dentro [refere-se aos catadores do lixão],
queremo que todos fiquem porque o que vai pro aterro é depois que a mercadoria
é tirada, o reciclado é tirado de todo o lixão, a mercadoria todinha que se chama o
reciclado, que passa a ser o reciclador. Essa mercadoria vai ficar todinha, quer
dizer que não deve ser bulido na renda de Cidade Nova e Felipe Camarão [bairro
vizinho ao do lixão]. A situação deve melhorar se o reciclado ficou aqui que é que
gera a renda, não existe mudança nenhuma.

Tentando explicitar o que acarreta para os catadores, a implantação do projeto, o representante


da ASTRAS exprime o desejo de que haja aumento no rendimento dos catadores com a
erradicação do lixão pois, conforme demonstramos anteriormente, a área do lixão é utilizada
como unidade de transbordo dos materiais recicláveis coletados seletivamente nos bairros da
cidade. Logo, as perspectivas são animadoras quanto à reestruturação daquela área.

Confrontando os resultados obtidos em face das perguntas, identificamos alguns contra-


sensos entre a postura declaradamente ambientalista do representante da ASTRAS e seu
entendimento sobre a dinâmica da atividade da catação dos resíduos do lixo. Tentando
desvelar a imbricada relação feita pelo gestor da ASTRAS, entre meio ambiente e economia,
tecemos a seguir análises dessa relação.

Tratando da contextualização da temática ambiental, do ponto de vista técnico-ambiental a


reciclagem dos resíduos sólidos é indicada quando esgotadas as possibilidades de redução
e/ou reutilização do lixo, ou seja, a noção de resíduos mínimos (Novais, 2001). A reciclagem
constitui uma prática ambientalmente satisfatória, haja vista que diminui a quantidade de
resíduos a ser dispostos ao destino final. Além de ser uma atividade econômica, fomentadora
de investimentos no setor industrial, gera ocupação e renda para os catadores de lixo
(Calderoni, 2003).

A catação dos resíduos sólidos é uma ocupação econômica, essencialmente precária, no que
tange ao trabalho dos catadores. Tida como atividade informal, a catação é realizada em
péssimas condições de trabalho, o que submete os catadores ao contato direto com o lixo.
Somem-se a isso os possíveis traumas psicológicos devido à discriminação social das pessoas
que sobrevivem dessa atividade (Bursztyn & Araújo, 1997).

Estávamos sendo parciais, se afirmássemos que é interesse da ASTRAS que os catadores


continuem trabalhando em condições subumanas e que a exploração do trabalho se acentue.
Quando entrevistado pede que as pessoas façam a coleta seletiva nas residências, está
vislumbrando o aumento nos rendimentos dos catadores, pois há mais materiais recicláveis a
ser comercializado. Agindo desta maneira, o represente da associação está coerente com o
pensamento inicial, gerar rendas crescentes para seus associados da ASTRAS.

No entanto, aproximando nossas especulações teóricas da realidade natalense, temos que,


conscientemente ou não, quem faz apologia à coleta seletiva para posterior reciclagem dos
resíduos sólidos, está contribuindo fortemente para a acentuação da expropriação do trabalho
dos catadores. Sendo assim, a coleta seletiva implica contribuir para a perpetuação do quadro
precário do catador, desta vez não no sentido da execução da tarefa mas por realizar um
trabalho que sequer deveria existir no contexto atual de modernidade e evolução da sociedade.

Tem-se outra fala carregada de significados quando o entrevistado comenta a organização do


trabalho que pretende implantar a partir do momento de funcionamento efetivo da associação.
Neste comentário, o representante da ASTRAS é enfático em afirmar que a sua administração
“será e deverá ser caracterizada pelo rigor”. Explorando um pouco mais o significado do
termo utilizado, rigor, ele nos relatou que, na sua concepção, os catadores associados devem
trabalhar sério, “a começar por não mais se chamarem por apelidos e sim pelo próprio nome
de batismo”.

É nosso entendimento que no termo rigor, há alguns significados. O primeiro, explicitamente


perceptível, refere-se ao senso de profissionalismo que o representante da ASTRAS deseja
que haja entre os associados, a começar pelo tratamento pessoal. Descobrimos posteriormente
que, mais do que uma maneira de organização do trabalho dos catadores, a opção pelo
profissionalismo alimenta a rivalidade com a ASCAMAR por ser uma fonte de crítica à
gestão da associação concorrente.

Outra interpretação se relaciona à firmeza com que as decisões são tomadas pela gerência.
Embora o significado não esteja claro, tivemos a impressão de que, na fala do representante,
ecoava certo ar de prepotência ao se referir ao cargo que possui na ASTRAS. A nosso ver,
esse gestor se considera o único capaz de conduzir a associação, dado que realmente tem a
compreensão da problemática do lixo em Natal, bem como da situação de extrema
precariedade vivida pelos catadores do lixão.

Se correta a intuição, o administrar com rigor pode significar, para o catador associado à
ASTRAS, acatar as determinações da gerência, devendo ser excluído do grupo quando não se
enquadrar ao trabalho da associação. Na prática, possível comportamento autoritário do
representante não deve diferir da intenção do seu suposto rival da ASCAMAR, de constituir
uma cooperativa com rígido regimento interno de caráter punitivo para os membros que não
se adequarem às ordenações propostas.

À guisa das análises

Tomando por base o embate entre os representantes das duas associações, algumas
indagações se fazem necessárias. Partindo do referencial comum de que a catação de
materiais recicláveis constitui atividade econômica lucrativa, não podemos dissociar a
rivalidade entre os gestores da ASCAMAR e ASTRAS, da variável econômica, questão
central da análise. Ainda mais, com a possibilidade real de financiamento do Governo
Federal, através do projeto de erradicação do lixão que está sendo implantado na cidade de
Natal.

Mesmo reconhecendo a importância das lideranças das associações para a comunidade que
vive do lixo, grosso modo, a impressão inicial que temos é de que a luta pela
representatividade assume conotação de caráter pessoal. No entanto, embora o interesse dos
representantes das associações seja apresentar-se como entidade representativa dos catadores,
os argumentos utilizados denotam estar em jogo a manutenção do poder econômico por parte
da ASCAMAR; a sobreposição econômica da ASTRAS em relação à concorrente.

Pela teoria, entendemos que a rivalidade entre os dois representantes das entidades de
catadores é algo nocivo para os ideais da categoria. Marx & Engels (1981:26), ao discorrerem
sobre a precariedade nas condições de trabalho dos operários ingleses do século XIX,
admitem que os trabalhadores, para reverter a situação, “deveriam se unir em sindicatos
contra os burgueses; fundar associações permanentes para eventuais choques”. Assim. a
postura conflituosa ensejada pelos representantes da ASCAMAR e ASTRAS, por mais que
possa angariar benefícios, de parte a parte, conduz impreterivelmente ao enfraquecimento dos
ideais dos catadores. Os gestores não estão percebendo que, com a disputa, a solução para a
problemática dos catadores de lixo vai se tornando algo cada vez mais distante.

Nesse sentido, perde relevância a acusação do representante da ASTRAS de que a


ASCAMAR teve mais de cinco anos para abordar, de maneira satisfatória, a problemática dos
catadores do lixão, não fazendo por que sempre estiveram preocupados com os interesses
particulares. Da mesma maneira, os interesses de gestores da ASTRAS, em alguns momentos,
não devem se sobrepor ao ideal coletivo da associação.

Possível explicação para o atual contexto que permeia a relação conflituosa entre esses
sujeitos talvez seja a forma como as duas entidades surgiram. A ASCAMAR e a ASTRAS
foram fundadas com o incentivo dado URBANA, o que não as enquadra como movimentos
sociais de classe. Elementos, como a excessiva valorização do quotidiano, amplamente
difundida pelos representantes, enfraquecem o ideal do movimento que, em teoria, devia ser a
luta contra o sistema que o fez surgir. Neste sentido, concordamos com Santos (1995:261) ao
afirmar que os movimentos sociais são locais de tempo e espaço, “a fixação momentânea da
globalização da luta é também uma fixação localizada e é por isso que o quotidiano deixa de
ser uma fase menor ou hábito descartável para passar a ser o campo privilegiado de luta por
um mundo e uma vida melhores”.

Em relação à URBANA, tem atribuído a si o papel de contornar a rivalidade entre os


representantes das associações. Agindo dessa forma, a Companhia ganha tempo para enfrentar
a problemática social que envolve os catadores do lixão, haja vista que, no momento, é
praticamente impossível qualquer ação governamental. Em síntese, a URBANA encontra-se
em posição favorável, eximindo-se da responsabilidade de possível fracasso do projeto de
erradicação do lixão. O argumento é que se os próprios catadores, maiores interessados pelo
sucesso da intervenção, que deviam atuar coletivamente, em função do objetivo comum,
digladiam entre si, como a Companhia pode efetivar as ações do projeto sem a colaboração
das duas entidades.

Outro ponto que merece destaque, na análise, é a coleta seletiva, que, nesse momento, outubro
de 2004, está sendo implantada em alguns bairros da cidade. Toda companhia de limpeza,
pública, privada ou de economia mista, como a URBANA, tem a pretensão de desenvolver
essa coleta. A modalidade de coleta é requerida por contemplar paralelamente duas questões
primordiais quando se trata de lixo urbano: a vertente ambiental e a de cunho econômico.

Em relação ao meio ambiente, a coleta seletiva reduz sensivelmente a quantidade de lixo que
tem como destino final o novo aterro sanitário pois os materiais recicláveis serem desviados
pelos catadores antes da coleta oficial. A coleta seletiva e posterior reciclagem dos materiais
previamente separados constituem em práticas ambientalmente corretas de manejo e
disposição do lixo.

Quanto à questão econômica, a coleta seletiva pode proporcionar, à URBANA, substancial


redução nos custos com os serviços do lixo. A primeira redução evidencia-se no transporte,
uma vez que a diminuição na quantidade de lixo coletado nas ruas implica menores custos de
transporte do material, até o aterro sanitário, construído na cidade de Ceará-Mirim, a 25km de
Natal.

Outra substancial redução nos valores monetários da coleta seletiva refere-se aos serviços de
tratamento do lixo. Em aterro sanitário, antes de acondicionado, em definitivo no meio
ambiente, o lixo passa por processos técnicos visando poluir o mínimo possível o local de
destinação final. Desse modo, na relação direta com a quantidade de lixo, os custos de
operação diminuem. No que tange aos gastos com pessoal, a eficácia da coleta seletiva traz
vantagens adicionais para a URBANA pois tira a responsabilidade no serviço de coleta. O
lixo coletado pelos associados da ASCAMAR e ASTRAS reduz a quantidade de garis
contratados pela Companhia.

Para compreender a análise deveremos retomar a meta primordial do projeto de erradicação


do lixão, ou seja, prover qualificação profissional para o catador visando formá-lo como
profissional da reciclagem. Por essa meta, à medida que a coleta seletiva for obtendo sucesso
e o catador das associações auferindo renda, na mesma proporção, a URBANA sai de cena,
assumindo apenas o papel de gerenciador dos serviços de limpeza pública da cidade.

Com isso, não estamos nos posicionando de forma contrária ao projeto de erradicação do
lixão de Natal, tampouco à implementação da coleta seletiva. Particularmente,
compartilhamos as práticas de coleta seletiva e reciclagem de resíduos desde que atendam às
exigências técnico-ambientais de manejo do lixo, conforme a Agenda 21, documento ímpar
no trato das questões ambientais do planeta (Novais, 2000). Todavia é perceptível e factual
que a utilização de entidades de catadores, na coleta, implica em uma forma velada de
terceirização dos serviços. Além das vantagens da terceirização, como a diminuição dos
custos de mão-de-obra para a empresa, no caso, há agravante que é a desnecessidade de se
formalizar o contrato entre a URBANA e as associações envolvidas.

Nestas condições, o empenho pelo sucesso da coleta seletiva, em Natal, está para além das
questões ambientais. A nosso ver, implica a redução dos custos dos serviços do lixo para a
URBANA, pela contratação das associações de catadores sem que haja a necessidade de
contrato formal.

Do ponto de vista da ressocialização dos catadores do lixão, conforme Bursztyn & Araújo
(1997), ações como as desenvolvidas pela URBANA caracterizam-se por amenizar o
problema social, em primeiro momento. Contudo, à medida da efetivação, as ações denotam o
fenômeno da exclusão de excluídos. O fato de projetos, como o implantado em Natal, ser ação
isolada desperta o interesse de migrantes, perambulantes de rua, enfim, de excluídos, de uma
maneira geral, de reivindicarem participação por atenderem os mesmo critérios dos demais.

A demanda crescente pela participação faz com que o órgão gestor crie barreiras à entrada,
uma vez que o inchaço devido ao aumento de participantes põe em risco a continuidade do
projeto. Assim, a principal ação do projeto, inclusão de populações excluídas, perde
relevância já que os excluídos se tornam ameaça em potencial à efetividade do mesmo.

Pelo que podemos observar, não é intenção dos órgãos governamentais envolvidos na
erradicação do lixão de Natal eliminar a catação. Pelo contrário, as ações desenvolvidas
potencializam a demanda para a migração das pessoas de baixa renda e qualificação
profissional para aquela atividade.

Não é absurdo imaginar que o sucesso da coleta seletiva faz surgir atritos entre os catadores
da ASCAMAR e ASTRAS, participantes do projeto, e os catadores de rua, pelo fato destes
últimos exigirem participação, alegando estar há mais tempo catando lixo nas ruas da cidade.
E o que é mais grave é que o argumento uma vez utilizado é convincente. Neste sentido, o que
fazer, qualificar os catadores de rua e colocá-los à frente da coleta de lixo na cidade, ou
promover a exclusão destes sujeitos.

E quanto ao catador, responsável direto pelo que está acontecendo em Natal, no que se refere
à limpeza da cidade? Alheio às disputas entre os representantes das duas associações, o
catador do lixão, associado ou avulso, está preocupado em separar a maior quantidade
possível de materiais recicláveis do lixo para poder vender e, com isso, realizar sua estratégia
de sobrevivência.
É evidente que o catador percebe que, de alguma forma, o seu entorno é modificado. Técnicos
da Fundação Zerbini, funcionários da URBANA, conversas entre eles próprios, enfim, o
contexto que se molda, tudo indica que há mudança significativa na vida desses sujeitos. Para
o catador, a expectativa é de que as condições de trabalho e de vida sejam melhoradas em
pouco tempo, tendo em vista a precariedade em que se encontram. Essas condições podem ser
explicadas, em primeiro momento, pelo aumento da quantidade de materiais recicláveis,
elevando a renda.

Analisando a precária situação de trabalho e de vida dos catadores da forma como


presenciamos, somos tentados a concordar com a reflexão de Escorel (2000) sobre a luta pela
sobrevivência dos excluídos sociais modernos. Para a autora, “o fenômeno da exclusão releva
tanto a distinção que há entre viver e sobreviver quanto o grau de dificuldade encontrados
por uns e por outros para permanecerem vivos”, e, finalizando, “eis que surgem, então,
pessoas que sobrevivem de teimosas” (p.: 145).

O sentimento humanitário leva a crer que a intervenção da Fundação Zerbini e URBANA,


junto aos catadores lixão, é algo imprescindível. Estando em cima do lixo, assim como os
catadores, vimos a disputa pela coleta do melhor lixo. Pior, vimos a disputa entre catadores e
animais pelo melhor lixo. Em dado momento, as cenas estarrecedoras causaram náuseas, não
de nojo por estamos em cima de toneladas de lixo com sol a pino e fedentina insuportável,
mas por vermos o tênue limite que separa, no momento, o homem, ser pensante, do animal
irracional.

Por outro lado, criticamos o projeto de erradicação do lixão da forma como está sendo
montado. Assim, entendemos que seu sucesso está em banir a atividade da coleta de lixo.
Infelizmente, a tendência dos fatos leva à situação contrária, com a institucionalização da
coleta do lixo como ocupação e trabalho.

Os defensores da formalização dessa atividade argumentam que o interesse parte dos próprios
catadores, bastando para isso a leitura do documento do I Congresso latino americano de
catadores e catadoras de material reciclável, ou a consulta a textos do movimento nacional de
catadores de materiais recicláveis. Em Natal, uma rápida conversa com qualquer catador
comprova a máxima de que, apesar dos percalços, o catador quer continuar catando lixo no
lixão.

É evidente que, com a institucionalização da profissão de catador de materiais recicláveis, os


profissionais têm a legislação para referendá-los, o que implica dizer que a atividade sairá da
informalidade. Há melhores condições de trabalho e eles estão propensos aos mesmos direitos
trabalhistas dos profissionais de outras áreas. Em síntese, a formalização da atividade dos
catadores proporciona-lhes benefícios. Entretanto legalizar a ocupação, que sequer devia
existir pelo fato de pessoas sobreviverem da coleta dos restos da sociedade, é algo que, a
nosso ver, demonstra a insuficiência do sistema econômico em incluir pessoas, o que
referenda contradição pois necessita dessas pessoas para se reproduzir. Ainda fere a ética
ambiental, na qual cada indivíduo deve ser responsável pelo lixo que produz e não delegar a
terceiros os danos do seu lixo.

Exibe também o fracasso das políticas públicas, em Natal, vez que, conforme investigação
realizada por Costa (1983), no início da década de 1980, as pessoas sobreviviam da catação
dos resíduos do lixo, pelos mesmos motivos que os catadores de hoje. E ainda existem
catadores no lixão há mais de vinte anos, ou seja, passadas duas décadas do estudo inicial, a
Prefeitura e o Governo do Estado não conseguiram resolver questões relativas ao êxodo rural
de caráter expulsivo, à educação de qualidade extensiva a todos, assistência a populações em
situação de risco, enfim, não foram capazes de compensar as distorções sociais, fruto do
aumento da concentração e centralização de renda, em Natal e no Rio Grande do Norte.

Por ingenuidade ou ignorância, os defensores da pseudocausa dos catadores não percebem


que a atividade da catação foi a estratégia encontrada pelo catador para poder sobreviver
minimamente. Sendo assim, a homologação dessa atividade torna-se, para o catador,
fundamental. É pueril pensarmos que o catador do lixão anseie pelo fim dessa atividade,
afinal, embora reconheça a dureza da ocupação, admite que pratica a coleta dos resíduos
devido a falta de condição e/ou opção de trabalho em outro ramo.

Outro fator considerado diz respeito à subjetividade da catação. Para o catador, o lixão é seu
mundo, onde ele desenvolve as relações de convivência social. Logo, embora haja o
estranhamento do catador com a atividade, aquele é o seu mundo, melhorá-lo é seu desejo
premente.

Não é intenção definir que caminhos os catadores do lixão de Natal devam seguir. Contudo
viver do e no lixo não condiz com o homem, ser pensante, com capacidade de transformar a
natureza ao seu belprazer. A atividade da catação nos moldes como está sendo efetuada pelos
catadores do lixão confirma a análise desenvolvida por Escorel (2000:140-141), de que “a
exclusão reduz os indivíduos à condição de animal laborans, cuja única atividade é a sua
preservação biológica, e na qual estão impossibilitados do exercício pleno das
potencialidades da condição humana”.

Considerações parciais

Já se passaram quatro anos desde que a Prefeitura de Natal implantou o projeto de erradicação
do lixão do bairro de Cidade Nova e inclusão social dos catadores de lixo. Apesar desse
tempo, fazer um diagnóstico conclusivo em respeito ao direcionamento dessa interveção pode
ser precipitado haja vista a substancial mudança ocorrida no modelo de gestão dos serviços do
lixo na cidade.

Do ponto de vista técnico houve uma melhoria em todos os serviços do lixo da cidade
(limpeza, coleta, transporte e tratamento final), o que supõe êxito do projeto neste sentido. No
campo da coleta seletiva, as ações intensivas de educação ambiental faz com que parte da
população esteja participando da campanha, o que também pode ser considerado um fator
positivo ainda que seja somente uma pequena parcela que está aderindo a essa modalidade de
coleta. No que tange a inclusão dos catadores no programa de coleta seletiva, embora ainda
não tenha abarcado a totalidade destes sujeitos, as suas condições de trabalho passaram de
sub-humanas para aceitáveis.

Este cenário demostra, a princípio, que o projeto desenvolvido está no rumo correto no que se
refere a problemática do lixo em Natal. Todavia os encaminhamentos dados à gestão dos
serviços do lixo acenam que esta modalidade de gestão está lançada sobre a égide da
racionalidade econômica, ou seja, investir no que seja rentável. A cabo de hipóteses iniciais,
percebemos que o aspecto ambiental da questão está dirigida pela vertente econômica, com o
incentivo a separação dos resíduos e não a sua minimização.

A inclusão social dos catadores, sua inserção na economia política do lixo fere o discurso de
modernidade do próprio projeto, que prevê a mecanização das atividades de coleta e
tratamento final dos resíduos. Nestes sentido, vale investigar de que forma esta inclusão está
ocorrendo, seus limites e perspectivas e como os catadores se percebem nestes contexto.
Como manejar a demanda sempre crescente por sujeitos que se prezássemos por uma ética
ambiental justa, sequer deveriam existir. Também no âmbito das associações, que está
ocorrendo com esse processo de inclusão desde dentro do próprio movimento, isso porque
pelo que demonstramos ao longo do texto, está claro a formação de um caciquismos de classe
(Berthier, 2002), com o poder nas mãos dos representantes das associações. Vale portanto
entender os depoimentos dos representantes das associações no início da implantação do
projeto para se ter uma noção do que está ocorrendo atualmente e avançar na validação ou
refutação das hipóteses iniciais.

Referências

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de rua. In: BURSZTYN, Marcel (org.). No meio da rua. Nômades, excluídos e viradores. Rio
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Comerciantes e Catadores de produtos do lixo em Cidade Nova. Natal: UFRN, 1983.
Dissertação apresentada ao Departamento de Ciências Sociais da UFRN, (mimeo).

ESCOREL, Sarah. Vivendo de teimosos. Moradores de rua da cidade do Rio de Janeiro. In:
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MARX, Karl. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Coleção Os Economistas.

MARX, Karl & ENGELS, Frederich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Global
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Referências eletrônicas

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BERTHIER, Héctor Castillo. Garbage, work and society. Resources, conservation &
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i
Com o apoio do Programa Alban, Programa de bolsas de alto nível da União Européia para estudantes da
América Latina, bolsa nº E05D057301BR.

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