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Resumo: Trabalho e meio ambiente urbano na percepção dos representantes das associações
de catadores de resíduos sólidos de Natal/Brasil
Introdução
Outro fator que tem chamado a atenção ao tema resíduos sólidos urbanos é o drama social
vivido por quem sobrevive da coleta de materiais recicláveis, os denominados catadores de
lixo. Estes sujeitos procedem de diversos procesos de exclusão do campesinato devido a
concentração fundiária brasileira. Também são procedentes da exclusão urbana motivada pela
dificuldade da sociedade moderna em relacionarse com indivíduos como os catadores. A
exclusão urbana gera uma série de encadeamentos como a falta de emprego, déficit
habitacional, segregação cultural e, claro, violência urbana. Estes sujeitos, excluíduos,
utilizam como estratégia de sobrevivência a atividade da coleta, realizada em uma situação de
extrema precariedade, o que movimenta a economia política do lixo (Bursztyn, 2000).
A partir dos anos 1990 surgiram movimentos dos setores público e privado de resgate dos
catadores para o mundo formal, através da inserção destes sujeitos em programas de coleta
seletiva. Objetiva-se que estes sujeitos tenham melhores condições de trabalho, auferindo
ocupação e renda com a venda dos recicláveis para as indústrias de reciclagem.
Coincidentemente ao resgate aos excluídos, houve um fantástico incremento nos índices de
reciclagem no Brasil, com alguns materiais alcançando cifras de reciclagem de países
tradicionalmente reconhecidos por sua eficiência técnica nesse setor industrial (CEMPRE,
2006).
Outro detalhe que não deve passar despercebido são os generosos financiamentos públicos
concedidos à formação da nova estrutura de gestão dos serviços do lixo para os municípios
brasileiros. Esta política possui como argumento a resolução da problemática do lixo urbano
sob uma ótica multidisciplinar, ou seja, atacar ao mesmo tempo a questão ambiental,
econômica e social do problema do lixo. Propõe, portanto, a gestão compartilhada dos
serviços do lixo, com a participação do setor público monitorando o sistema, o setor privado
sendo financiado para a execução de alguns destes serviços, e os catadores como aspecto
social inserido nessa nova estrutura organizacional.
Do ponto de vista técnico-ambiental, incentiva-se que a população selecione seu lixo já que
assim menos resíduos seriam dispostos para tratamento. Isso elevaria a vida útil dos aterros
devido a menor quantidade de resíduos. Os restante dos resíduos que não puderem ser
separados ou serão incinerados nas modernas incineradoras que voltam ao mercado sob a
alegação de serem menos poluentes que as antigas, muito utilizadas nas décadas de 1970 e
1980; ou serão tratados pelas empresas contratadas para executar este serviço. O fator
econômico atua sob a égide da racionalidade já que o Estado contrata uma empresas privadas
para realizar algumas tarefas da cadeia dos serviços do lixo (transporte e tratamento final dos
resíduos).
Finalmente, e mais importante, o aspecto social. Com o apoio para a inclusão social de
catadores, o Estado atuaria no seu mitie, estando próximo ao social. O resgate social dos
catadores seria o elemento que melhor justifica o câmbio na gestão dos serviços do lixo, pois
arranca de uma estrutura falida e ineficiente para um modelo eficaz, aportado no tripé meio
ambiente, econômico e social. Segundo seus articuladores, o resgate não é somente
econômico, mas também, e sobretudo, social no sentido de dar uma dignidade aos catadores.
Natal, cidade do nordeste brasileiro está desde o ano de 2003 implantando uma nova estrutura
no gerenciamento dos seus resíduos urbanos. Financiada pelo Governo Federal com o projeto
de erradicação do antigo lixão do bairro de Cidade Nova (zona leste de Natal) e inclusão
social de catadores, a Prefeitura através do seu órgão competente, a Companhia de serviços
urbanos de Natal (URBANA), está desenvolvendo um modelo de gestão mista para os
serviços do lixo. O projeto prevé a extinção do lixão e correção sanitária da antiga área que
será utilizada como transbordo dos resíduos coletados na cidade, o que já ocorreu a essa
época, 2007. Também a contratação de uma empresa privada para realizar o serviço de
tratamento final dos resíduos, montando um aterro sanitário na cidade de Ceará-Mirim,
distante 25km de Natal.
Porém, do atual projeto o que mais tem merecido atenção refere-se ao aspecto social, com a
inclusão dos catadores no programa de coleta seletiva da cidade. Aclamado pelos defensores
da nova estrutura como um modelo exitôso no que tange a inclusão social por abarcar a quase
totalidade dos catadores do antigo lixão do bairro de Cidade Nova, surgem alguma arestas que
merecem ser analisadas em respeito a maneira como e que tipo de inclusão está ocorrendo
com esses sujeitos.
O segundo aspecto negativo e não menos nocivo é a limitação do poder de mando dos
gestores da associação perante os demais membros do grupo. Impossibilitados legalmente de
poder ditar ordens aos associados, não resta outra alternativa para os gestores senão contar
com a colaboração dos catadores para que encarem a associação com a devida seriedade.
As dificuldades citadas em gerenciar o cotidiano da associação fazem com que haja interesse
explicito por parte do representante da ASCAMAR em modificar a estrutura organizacional
vigente. Para esse gestor, sob o julgo de uma cooperativa, ocorriam duas mudanças
fundamentais no que tange à organização dos catadores. A primeira é o desenvolvimento do
senso de responsabilidade do catador para com a entidade, mais comprometido na cooperativa
do que na associação devido a possibilidade de se mudar as leis do estatuto. A segunda diz
respeito à possibilidade de punição para o catador que viesse a descumprir com o regimento
interno e/ou não se empenhasse, de maneira satisfatória na sua concepção, na execução das
tarefas.
Dito isso, vejamos até que ponto os argumentos da relação causa-efeito podem ser aceitos!
Caso a ASCAMAR viesse a se tornar uma cooperativa, essa modificação não surtia qualquer
efeito prático para as condições de trabalho dos catadores, já que as tarefas executadas não
sofriam qualquer mudança significativa. Torna-se óbvio imaginar que a situação do catador
frente ao trabalho permanece a mesma, sem melhorias, tampouco pioras. É factual que as
condições de trabalho em atividade qualquer tende a melhorar, à medida que as tarefas
executadas priorizam o fator humano, respeitando as capacidades e necessidades individuais e
coletivas.
É evidente que o termo punição empregado pelo representante da ASCAMAR não significa
castigar fisicamente os catadores associados, proposição absolutamente inimaginável. No
entanto, o termo pressupõe que, caso a associação venha a se tornar uma cooperativa, o
comando da entidade pretende gerenciar o trabalho dos catadores com bastante rigor, algo
típico de uma corporação empresarial que objetiva a produtividade do trabalho tendo como
conseqüência os elevados níveis de estresse dos funcionários, levando a rotatividade no
trabalho do quadro de funcionários.
Hoje você pode ver que nós temos mais mulheres na esteira do que homem, no
quantitativo. A gente deu uma parada porque tem muito serviço braçal e as vezes
os meninos que trabalham nos carrinhos e que trabalham na caçamba não podem
vir, ou por algum problema foram suspensos, a gente não pode colocar uma
mulher no lugar deles. Agora a gente parou, a gente não recebe mais mulheres. Se
tiver algum catador saindo dessa estrutura, a gente vai colocar homem porque a
gente já tá com a cota de mais de 30% de mulheres na usina, e a problemática é
que o serviço da usina é muito pesado, é empurrar carrinho, puxar lixo na
caçamba, carregar peso, aí fica mais difícil. Então, é por isso que a gente adotou
que agora a média vai ser essa de 30% e não extrapolar o percentual de mulheres.
(REPRESENTANTE DA ASCAMAR)
Outro aspecto que merece ser discutido trata da capacidade física do homem de carregar peso
como pré-requisito para a escolha de novos associados. Agindo dessa maneira, a ASCAMAR
adota critério de seleção diferente do que havia acertado com a URBANA para ter acesso à
exploração econômica da usina de triagem dos resíduos sólidos.
Segundo relatos dos catadores avulsos e associados da ASTRAS, o critério para selecionar os
catadores anteriormente combinado entre ASCAMAR e URBANA é outro: o que se pautava,
no tempo de trabalho do catador ou catadora na área do lixão, de tal modo que os catadores
mais antigos, na área, tinham prioridade em participar na associação. Os catadores também
acusam a ASCAMAR de ser formada por familiares e amigos dos representantes. Não
sabemos até onde considerar essa informação, no entanto, nas observações, vimos que vários
associados mantinham algum grau de parentesco com os gestores da associação. Se nossa
observação estiver correta, há nepotismo na entidade.
Nesse contexto, limitar em 30% a quantidade de mulheres, nos quadros da ASCAMAR pode
ser interpretado como discriminação ao trabalho feminino, haja vista não tratar-se de divisão
de tarefas entre catador e catadora, o que a teoria econômica apropriadamente denomina
divisão sexual do trabalho. Para a mulher catadora, com anos de sobrevivência no lixão, essa
limitação significa a castração de direito adquirido no momento do acordo firmado entre
ASCAMAR e URBANA, para que a associação tivesse o monopólio sobre a usina de de
triagem que, na realidade, pertence à Prefeitura do Natal.
Por fim, vale o registro que a mesma prática discriminatória, em virtude da masculinização da
catação dos catadores avulsos de cima do lixão, tem se repetido na ASCAMAR. Pensamos
que, se a associação tenciona agregar os catadores visando defender a categoria, não devia
fazer distinção por sexo para aceitar os integrantes.
Analisando a questão, temos que não seria interessante para a mulher ter os mesmos direitos
que os homens catadores, todavia, o quadro que apresenta demonstra a opressão ao gênero
feminino. Posicionamo-nos contrário a atividade da catação, no entanto, somo menos
favoráveis ainda a discriminação da mulher nessa atividade já tão precária. Some-se a isso que
a variável produtividade não podia sobrepor aos interesses coletivos de participação dos
associados da entidade.
Esse trabalho na coleta ele tá sendo participativo com a URBANA, com entrevistas
nos hotéis. Agora a porta-a-porta [tipo de coleta seletiva] a URBANA está se
ingressando de ir na casa das pessoa, com entrevistas sobre a coleta seletiva, e
totalmente tá tendo a minha participação porque eu tô sempre pedindo pras
pessoas adotar a coleta seletiva. (REPRESENTANTE DA ASTRAS)
O trecho pressupõe que a ASTRAS, além dos interesses imediatos, a defesa dos interesses dos
associados, está consciente quanto à responsabilidade ambiental perante a sociedade
natalense, no sentido da melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, entendendo que, para
isso, a preservação do meio ambiente se constitui no fator primordial. Desse modo, a
associação coloca-se à disposição da URBANA e da sociedade natalense, não medindo
esforços em auxiliar a Companhia para que o projeto de erradicação do lixão de Natal seja de
fato implantado.
De fato, nas conversas informais que mantivemos, com este sujeito, estava presente o apelo à
sensibilização e conscientização ambiental dos moradores do entorno da área do lixão.
Contudo tal postura diante da temática ambiental restringia-se à separação dos materiais
recicláveis do lixo doméstico, que segundo o representante da associação, devia ser realizada
inicialmente pela própria população, pré-ciclando seus resíduos.
Embora haja apelo ambiental, este ocorre de maneira parcial pois, em nenhum momento foi
comentado o destino final do lixo orgânico, composto basicamente de restos de alimentos.
Conforme a literatura sobre a temática ambiental (Calderoni, 2003; Pereira Neto, 1996), mais
de 60% dos resíduos produzidos pela população de baixa renda brasileira, como a das
adjacências do lixão, são de origem orgânica, o que sugere que as ações políticas ambientais
para essas populações deviam ser voltadas primeiramente para a minimização desse resíduo, o
que implicaria um melhor aproveitamento do alimento para esse estrato populacional de baixa
renda.
Neste sentido, entendemos que a preocupação com o meio ambiente não deva ser restrita à
separação de materiais recicláveis pela população, haja vista que o lixo orgânico embora nao
seja tão poluente quanto o lixo inerte, polui, além de poder ser aproveitado de maneira
satisfatória. A fala do representante da ASTRAS se presta mais ao aumento da quantidade de
materiais recicláveis, o que eleva a renda dos catadores associados, do que propriamente à
defesa das causas ambientais.
Não queremo expulsar nenhum daqui de dentro [refere-se aos catadores do lixão],
queremo que todos fiquem porque o que vai pro aterro é depois que a mercadoria
é tirada, o reciclado é tirado de todo o lixão, a mercadoria todinha que se chama o
reciclado, que passa a ser o reciclador. Essa mercadoria vai ficar todinha, quer
dizer que não deve ser bulido na renda de Cidade Nova e Felipe Camarão [bairro
vizinho ao do lixão]. A situação deve melhorar se o reciclado ficou aqui que é que
gera a renda, não existe mudança nenhuma.
A catação dos resíduos sólidos é uma ocupação econômica, essencialmente precária, no que
tange ao trabalho dos catadores. Tida como atividade informal, a catação é realizada em
péssimas condições de trabalho, o que submete os catadores ao contato direto com o lixo.
Somem-se a isso os possíveis traumas psicológicos devido à discriminação social das pessoas
que sobrevivem dessa atividade (Bursztyn & Araújo, 1997).
Outra interpretação se relaciona à firmeza com que as decisões são tomadas pela gerência.
Embora o significado não esteja claro, tivemos a impressão de que, na fala do representante,
ecoava certo ar de prepotência ao se referir ao cargo que possui na ASTRAS. A nosso ver,
esse gestor se considera o único capaz de conduzir a associação, dado que realmente tem a
compreensão da problemática do lixo em Natal, bem como da situação de extrema
precariedade vivida pelos catadores do lixão.
Se correta a intuição, o administrar com rigor pode significar, para o catador associado à
ASTRAS, acatar as determinações da gerência, devendo ser excluído do grupo quando não se
enquadrar ao trabalho da associação. Na prática, possível comportamento autoritário do
representante não deve diferir da intenção do seu suposto rival da ASCAMAR, de constituir
uma cooperativa com rígido regimento interno de caráter punitivo para os membros que não
se adequarem às ordenações propostas.
Tomando por base o embate entre os representantes das duas associações, algumas
indagações se fazem necessárias. Partindo do referencial comum de que a catação de
materiais recicláveis constitui atividade econômica lucrativa, não podemos dissociar a
rivalidade entre os gestores da ASCAMAR e ASTRAS, da variável econômica, questão
central da análise. Ainda mais, com a possibilidade real de financiamento do Governo
Federal, através do projeto de erradicação do lixão que está sendo implantado na cidade de
Natal.
Mesmo reconhecendo a importância das lideranças das associações para a comunidade que
vive do lixo, grosso modo, a impressão inicial que temos é de que a luta pela
representatividade assume conotação de caráter pessoal. No entanto, embora o interesse dos
representantes das associações seja apresentar-se como entidade representativa dos catadores,
os argumentos utilizados denotam estar em jogo a manutenção do poder econômico por parte
da ASCAMAR; a sobreposição econômica da ASTRAS em relação à concorrente.
Pela teoria, entendemos que a rivalidade entre os dois representantes das entidades de
catadores é algo nocivo para os ideais da categoria. Marx & Engels (1981:26), ao discorrerem
sobre a precariedade nas condições de trabalho dos operários ingleses do século XIX,
admitem que os trabalhadores, para reverter a situação, “deveriam se unir em sindicatos
contra os burgueses; fundar associações permanentes para eventuais choques”. Assim. a
postura conflituosa ensejada pelos representantes da ASCAMAR e ASTRAS, por mais que
possa angariar benefícios, de parte a parte, conduz impreterivelmente ao enfraquecimento dos
ideais dos catadores. Os gestores não estão percebendo que, com a disputa, a solução para a
problemática dos catadores de lixo vai se tornando algo cada vez mais distante.
Possível explicação para o atual contexto que permeia a relação conflituosa entre esses
sujeitos talvez seja a forma como as duas entidades surgiram. A ASCAMAR e a ASTRAS
foram fundadas com o incentivo dado URBANA, o que não as enquadra como movimentos
sociais de classe. Elementos, como a excessiva valorização do quotidiano, amplamente
difundida pelos representantes, enfraquecem o ideal do movimento que, em teoria, devia ser a
luta contra o sistema que o fez surgir. Neste sentido, concordamos com Santos (1995:261) ao
afirmar que os movimentos sociais são locais de tempo e espaço, “a fixação momentânea da
globalização da luta é também uma fixação localizada e é por isso que o quotidiano deixa de
ser uma fase menor ou hábito descartável para passar a ser o campo privilegiado de luta por
um mundo e uma vida melhores”.
Outro ponto que merece destaque, na análise, é a coleta seletiva, que, nesse momento, outubro
de 2004, está sendo implantada em alguns bairros da cidade. Toda companhia de limpeza,
pública, privada ou de economia mista, como a URBANA, tem a pretensão de desenvolver
essa coleta. A modalidade de coleta é requerida por contemplar paralelamente duas questões
primordiais quando se trata de lixo urbano: a vertente ambiental e a de cunho econômico.
Em relação ao meio ambiente, a coleta seletiva reduz sensivelmente a quantidade de lixo que
tem como destino final o novo aterro sanitário pois os materiais recicláveis serem desviados
pelos catadores antes da coleta oficial. A coleta seletiva e posterior reciclagem dos materiais
previamente separados constituem em práticas ambientalmente corretas de manejo e
disposição do lixo.
Outra substancial redução nos valores monetários da coleta seletiva refere-se aos serviços de
tratamento do lixo. Em aterro sanitário, antes de acondicionado, em definitivo no meio
ambiente, o lixo passa por processos técnicos visando poluir o mínimo possível o local de
destinação final. Desse modo, na relação direta com a quantidade de lixo, os custos de
operação diminuem. No que tange aos gastos com pessoal, a eficácia da coleta seletiva traz
vantagens adicionais para a URBANA pois tira a responsabilidade no serviço de coleta. O
lixo coletado pelos associados da ASCAMAR e ASTRAS reduz a quantidade de garis
contratados pela Companhia.
Com isso, não estamos nos posicionando de forma contrária ao projeto de erradicação do
lixão de Natal, tampouco à implementação da coleta seletiva. Particularmente,
compartilhamos as práticas de coleta seletiva e reciclagem de resíduos desde que atendam às
exigências técnico-ambientais de manejo do lixo, conforme a Agenda 21, documento ímpar
no trato das questões ambientais do planeta (Novais, 2000). Todavia é perceptível e factual
que a utilização de entidades de catadores, na coleta, implica em uma forma velada de
terceirização dos serviços. Além das vantagens da terceirização, como a diminuição dos
custos de mão-de-obra para a empresa, no caso, há agravante que é a desnecessidade de se
formalizar o contrato entre a URBANA e as associações envolvidas.
Nestas condições, o empenho pelo sucesso da coleta seletiva, em Natal, está para além das
questões ambientais. A nosso ver, implica a redução dos custos dos serviços do lixo para a
URBANA, pela contratação das associações de catadores sem que haja a necessidade de
contrato formal.
Do ponto de vista da ressocialização dos catadores do lixão, conforme Bursztyn & Araújo
(1997), ações como as desenvolvidas pela URBANA caracterizam-se por amenizar o
problema social, em primeiro momento. Contudo, à medida da efetivação, as ações denotam o
fenômeno da exclusão de excluídos. O fato de projetos, como o implantado em Natal, ser ação
isolada desperta o interesse de migrantes, perambulantes de rua, enfim, de excluídos, de uma
maneira geral, de reivindicarem participação por atenderem os mesmo critérios dos demais.
A demanda crescente pela participação faz com que o órgão gestor crie barreiras à entrada,
uma vez que o inchaço devido ao aumento de participantes põe em risco a continuidade do
projeto. Assim, a principal ação do projeto, inclusão de populações excluídas, perde
relevância já que os excluídos se tornam ameaça em potencial à efetividade do mesmo.
Pelo que podemos observar, não é intenção dos órgãos governamentais envolvidos na
erradicação do lixão de Natal eliminar a catação. Pelo contrário, as ações desenvolvidas
potencializam a demanda para a migração das pessoas de baixa renda e qualificação
profissional para aquela atividade.
Não é absurdo imaginar que o sucesso da coleta seletiva faz surgir atritos entre os catadores
da ASCAMAR e ASTRAS, participantes do projeto, e os catadores de rua, pelo fato destes
últimos exigirem participação, alegando estar há mais tempo catando lixo nas ruas da cidade.
E o que é mais grave é que o argumento uma vez utilizado é convincente. Neste sentido, o que
fazer, qualificar os catadores de rua e colocá-los à frente da coleta de lixo na cidade, ou
promover a exclusão destes sujeitos.
E quanto ao catador, responsável direto pelo que está acontecendo em Natal, no que se refere
à limpeza da cidade? Alheio às disputas entre os representantes das duas associações, o
catador do lixão, associado ou avulso, está preocupado em separar a maior quantidade
possível de materiais recicláveis do lixo para poder vender e, com isso, realizar sua estratégia
de sobrevivência.
É evidente que o catador percebe que, de alguma forma, o seu entorno é modificado. Técnicos
da Fundação Zerbini, funcionários da URBANA, conversas entre eles próprios, enfim, o
contexto que se molda, tudo indica que há mudança significativa na vida desses sujeitos. Para
o catador, a expectativa é de que as condições de trabalho e de vida sejam melhoradas em
pouco tempo, tendo em vista a precariedade em que se encontram. Essas condições podem ser
explicadas, em primeiro momento, pelo aumento da quantidade de materiais recicláveis,
elevando a renda.
Por outro lado, criticamos o projeto de erradicação do lixão da forma como está sendo
montado. Assim, entendemos que seu sucesso está em banir a atividade da coleta de lixo.
Infelizmente, a tendência dos fatos leva à situação contrária, com a institucionalização da
coleta do lixo como ocupação e trabalho.
Os defensores da formalização dessa atividade argumentam que o interesse parte dos próprios
catadores, bastando para isso a leitura do documento do I Congresso latino americano de
catadores e catadoras de material reciclável, ou a consulta a textos do movimento nacional de
catadores de materiais recicláveis. Em Natal, uma rápida conversa com qualquer catador
comprova a máxima de que, apesar dos percalços, o catador quer continuar catando lixo no
lixão.
Exibe também o fracasso das políticas públicas, em Natal, vez que, conforme investigação
realizada por Costa (1983), no início da década de 1980, as pessoas sobreviviam da catação
dos resíduos do lixo, pelos mesmos motivos que os catadores de hoje. E ainda existem
catadores no lixão há mais de vinte anos, ou seja, passadas duas décadas do estudo inicial, a
Prefeitura e o Governo do Estado não conseguiram resolver questões relativas ao êxodo rural
de caráter expulsivo, à educação de qualidade extensiva a todos, assistência a populações em
situação de risco, enfim, não foram capazes de compensar as distorções sociais, fruto do
aumento da concentração e centralização de renda, em Natal e no Rio Grande do Norte.
Outro fator considerado diz respeito à subjetividade da catação. Para o catador, o lixão é seu
mundo, onde ele desenvolve as relações de convivência social. Logo, embora haja o
estranhamento do catador com a atividade, aquele é o seu mundo, melhorá-lo é seu desejo
premente.
Não é intenção definir que caminhos os catadores do lixão de Natal devam seguir. Contudo
viver do e no lixo não condiz com o homem, ser pensante, com capacidade de transformar a
natureza ao seu belprazer. A atividade da catação nos moldes como está sendo efetuada pelos
catadores do lixão confirma a análise desenvolvida por Escorel (2000:140-141), de que “a
exclusão reduz os indivíduos à condição de animal laborans, cuja única atividade é a sua
preservação biológica, e na qual estão impossibilitados do exercício pleno das
potencialidades da condição humana”.
Considerações parciais
Já se passaram quatro anos desde que a Prefeitura de Natal implantou o projeto de erradicação
do lixão do bairro de Cidade Nova e inclusão social dos catadores de lixo. Apesar desse
tempo, fazer um diagnóstico conclusivo em respeito ao direcionamento dessa interveção pode
ser precipitado haja vista a substancial mudança ocorrida no modelo de gestão dos serviços do
lixo na cidade.
Do ponto de vista técnico houve uma melhoria em todos os serviços do lixo da cidade
(limpeza, coleta, transporte e tratamento final), o que supõe êxito do projeto neste sentido. No
campo da coleta seletiva, as ações intensivas de educação ambiental faz com que parte da
população esteja participando da campanha, o que também pode ser considerado um fator
positivo ainda que seja somente uma pequena parcela que está aderindo a essa modalidade de
coleta. No que tange a inclusão dos catadores no programa de coleta seletiva, embora ainda
não tenha abarcado a totalidade destes sujeitos, as suas condições de trabalho passaram de
sub-humanas para aceitáveis.
Este cenário demostra, a princípio, que o projeto desenvolvido está no rumo correto no que se
refere a problemática do lixo em Natal. Todavia os encaminhamentos dados à gestão dos
serviços do lixo acenam que esta modalidade de gestão está lançada sobre a égide da
racionalidade econômica, ou seja, investir no que seja rentável. A cabo de hipóteses iniciais,
percebemos que o aspecto ambiental da questão está dirigida pela vertente econômica, com o
incentivo a separação dos resíduos e não a sua minimização.
A inclusão social dos catadores, sua inserção na economia política do lixo fere o discurso de
modernidade do próprio projeto, que prevê a mecanização das atividades de coleta e
tratamento final dos resíduos. Nestes sentido, vale investigar de que forma esta inclusão está
ocorrendo, seus limites e perspectivas e como os catadores se percebem nestes contexto.
Como manejar a demanda sempre crescente por sujeitos que se prezássemos por uma ética
ambiental justa, sequer deveriam existir. Também no âmbito das associações, que está
ocorrendo com esse processo de inclusão desde dentro do próprio movimento, isso porque
pelo que demonstramos ao longo do texto, está claro a formação de um caciquismos de classe
(Berthier, 2002), com o poder nas mãos dos representantes das associações. Vale portanto
entender os depoimentos dos representantes das associações no início da implantação do
projeto para se ter uma noção do que está ocorrendo atualmente e avançar na validação ou
refutação das hipóteses iniciais.
Referências
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em Brasília. Rio de Janeiro: Garamond, 1997. Parte I: Brasília capital.
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MARX, Karl. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Coleção Os Economistas.
MARX, Karl & ENGELS, Frederich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Global
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Referências eletrônicas
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BERTHIER, Héctor Castillo. Garbage, work and society. Resources, conservation &
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Com o apoio do Programa Alban, Programa de bolsas de alto nível da União Européia para estudantes da
América Latina, bolsa nº E05D057301BR.