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Cecchetto, F., de Oliveira Muniz, J., & de Araujo Monteiro, R. Envolvido (A) - Com o Crime.
Cecchetto, F., de Oliveira Muniz, J., & de Araujo Monteiro, R. Envolvido (A) - Com o Crime.
ENVOLVIDO(A)-COM O CRIME:
tramas e manobras de controle,
vigilância e punição
Fatima Cecchetto1
Jacqueline Muniz2
& Rodrigo Monteiro3
1
Cientista Social, doutora em Saúde Coletiva, pesquisadora do Ins-
tituto Oswaldo Cruz, Professora do programa de Pós-Graduação da
Escola Nacional de Saúde Pública (FIOCRUZ). E-mail: face.fiocruz@
gmail.com.
2
Doutora em Ciência Política. Professora Adjunta do Departamento
de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF). In-
tegrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). E-mail: ja-
cquelinedeoliveira.muniz@gmail.com.
3
Doutor em Saúde Coletiva, Professor Adjunto de Sociologia do De-
partamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense
(UFF). Coordenador do Laboratório de Pesquisa e Ensino de Ciências
Sociais (LAPECS E-mail: rodearmo@yahoo.com.br.
IÊ
Revista de Estudos Empíricos em Direito
S Etnografias sobre justiça e Brazilian Journal of Empirical Legal Studies
S
criminalidade em perspectiva 109
O
vol. 7, nº 2, jun 2020, p. 108-140
D
Fatima Cecchetto
Jacqueline Muniz
& Rodrigo Monteiro
Keywords
Youth, involvement, social control,
surveillance, social vulnerability.
Abstract
A divisão em Zona Sul e Zona Norte9 serve que a acusação de envolvido-com circuns-
como uma referência para os deslocamen- creve. Desvela-se o funcionamento de sua
tos físicos e simbólicos dos sujeitos pela ci- engrenagem classificatória como um em-
dade. O Complexo do Alemão, conjunto de preendimento moral, anunciando os seus
favelas localizado na Zona Norte, é populoso meios de funcionamento, os seus modos de
e menos aparelhado em termos urbanísti- manejo diante das finalidades que lhe con-
cos e sociais. O morro do Falet, por sua vez, ferem serventias. Na terceira parte, “Entre
está situado em uma região central, é me- o merecimento e o envolvimento: vítimas,
nos povoado e próximo a bairros com maior suas produções e seus empreendimentos”,
acesso a equipamentos sociais de turismo e discute-se a associação entre juventudes e
lazer. Um ponto de contato entre essas loca- vulnerabilidades e as suas possíveis impli-
lidades seria o fato de terem sido implanta- cações no reforço de estereótipos negativos
das entre 2011 e 2012, as UPP - Unidades de sobre jovens pobres. O medo de morrer, o
Polícia Pacificadora, cujos dramas e tramas medo de sobrar e outros medos constituem
foram rememorados nos encontros. o foco da reflexão, lançando luz sob a cons-
trução moral da vítima empreendedora de
O artigo está estruturado em quatro par-
seu próprio resgate social como uma alter-
tes, incluindo esta introdução. A primeira,
nativa de cura para alguns frente à possibili-
“Hipervigilância, supercontrole: a produ-
dade de eliminação para muitos.
ção da desconfiança multilateral”, inicia-se
com um denso relato etnográfico sobre a 2. HIPERVIGILÂNCIA, SUPERCONTROLE:
chegada ao campo. A partir deste percurso A PRODUÇÃO DA DESCONFIANÇA
busca-se problematizar o caráter multidi- MULTILATERAL
mensional, itinerante e difuso dos contro-
Final de tarde. Uma missão: “tirar favela”.10
les e das vigilâncias, pondo em evidência a
Um desafio: corrida com obstáculos. Uma
constituição horizontal e vertical de cercas e
disposição: ouvir sucessivas recusas do
as manobras realizadas pelos sujeitos para
UBER e de taxistas. Um alerta: “Cuidado!
reafirmarem ou romperem suas fronteiras.
Este destino está em uma área com maior
Revela-se, ainda, políticas de sentido orien-
risco de crime”.11 Uma novidade: navega-
tadas pelas representações do medo que
dores para dispositivos móveis previnem
alimentam a memória social relacionada
o usuário de “por a sua vida em risco sem
com o território-favela. São colocadas sob
merecer”, “entrando errado na comunida-
escrutínio as engrenagens que movimen-
de”. Uma justificativa mais do que recebida:
tam as dinâmicas de suspeição nas narrati-
“o aplicativo está mandando não subir não”.
vas sobre os favelados.
Uma frustração: mais uma corrida cancela-
Na segunda parte, “Caminhos de suspeição da! Já na quarta tentativa, entre dedos cruza-
e descaminhos da sociabilidade: rotas, des- dos e mensagens trocadas no WhatsApp so-
vios e fugas”, o eixo fundamental é a eco- bre a dificuldade de chegar, tem-se, enfim,
nomia política do ser, ficar ou estar envolvi- o aceite do motorista do 99 Taxi: “é perigoso,
10
Tirar e medir favela se referem a modos distintos de circulação na
do. Descreve-se a dinâmica da produção de favela e são usados por moradores, traficantes e policiais.
11
A identificação de áreas de risco no Rio de Janeiro, por meio do na-
controles estendidos e de vigilâncias difusas vegador Waze, teve início nas Olimpíadas de 2016. Correspondem a
9
Esta divisão, geográfica e simbólica, situa os indivíduos em um ethos regiões sob domínios armados ou onde há notícias de tiroteios en-
específico. Do local onde se mora deduz-se uma posição socioeco- tre estes grupos e destes com a PM (polícia militar). A “área de risco”
nômica na hierarquia social. No Rio de Janeiro, tem-se a associação aparece como uma realidade dada e cujos conteúdos que a definem
entre Zona Sul-riqueza e Zona Norte-pobreza. aparecem naturalizados.
mas te levo lá”. Partiu Santa Teresa. Partiu, de lembranças anunciadas em formato de
destino, Morro do Falet. Rio de Janeiro. lead de jornal: “corpo de motorista do Uber
foi encontrado na favela”; “guerra de facções
Comunidade a dentro inaugura-se um si-
deixou 8 mortos aqui”; “turista italiano foi
lêncio pontuado pelos PM (policiais milita-
assassinado deste lado ao entrar por enga-
res) com fuzis na divisa do morro, entreme-
no”. Chamadas de capa saltavam em fila da
ado por interjeições e falas monossilábicas.
sua boca e faziam um coreográfico looping
Percurso acima feito sob tensão: será que vai
de ameaças sobre nossas cabeças. Repeti-
dar para entrar e sair? O que vem pela fren-
ções, em voz gutural e solene, emprestavam
te? Confronto armado? Bala perdida? Blitz
dramaticidade aos enunciados. E, mais, lhes
policial? Barreira do tráfico? A reputação
conferiam um estatuto de verdade, reper-
partilhada sobre o território-favela revela-se,
cussiva e trágica, tão bastante de si que não
na sua generalidade, por meio de imagens
se deixaria relativizar pelos fatos e contextos
negativas que tomam a mente de imediato
que lhe deram causa. Uma aflição em ritmo
e em modo disparo. Cliques sucessivos de
crescente transbordava a cada ruela vira-
uma memória social que se faz desiludida
da, reverberando a convicção de que o GPS
para melhor servir à gestão pragmática do
“joga você, sem querer, lá para dentro da fa-
desengano (Pollak, 1989; Nora, 1993; Muniz
vela”. Mas, como se tratava de querer mes-
& Mello, 2015). Um efeito de cálculo para
mo está lá em uma delas, o Falet, toda aten-
manejar com um presente em desencan-
ção voltou-se para achar o Instituto Nando é
to, percebido como se estivesse sob ataque
Vida o mais rápido possível e, desta manei-
contínuo do imprevisto. Um presente, refém
ra, encerrar de vez a corrida da agonia.
da provisoriedade que emerge da violência
vista “por quem não é daqui” como subter- Chegamos sãos e salvos ao local de encon-
rânea e latente, e que se acredita sedimen- tro com os jovens. Resultado mais provável,
tar o vulnerável chão da favela. Violência porém, menos rendoso à economia política
concebida como ontológica e atávica, iden- da insegurança, fundamentada na dissemi-
tificada desde o seu embrião, lá na própria nação de ameaças difusas, que serve a pro-
sociabilidade dos jovens subalternos, no pagação de ondas de agravamento do te-
DNA das comunidades populares, tão ao mor (Taussig,1993; Muniz, 2013). Este modo
agrado de uma sociologia evolucionária, de repercutido de se constituir um discurso de
senso comum.12 “Isto aí não tem conserto” verdade põe em operação a conversão da
dizia o rap do motorista que seguia ritmado chance objetiva de vitimização em perigo
pelo apontar com o queixo os sinais dos pe- simbólico que retroalimenta o medo e faz
rigos identificados na paisagem periférica. propagar ameaças difusas. Tem-se que um
“Toda favela é assim”, a chapa esquenta de dado acontecimento é revestido por suces-
uma hora para outra, fazendo o morro tre- sivas camadas de notícias que encobrem o
mer com abalos de sua gente incontida e cálculo probabilístico do risco por uma con-
com as cismas dos seus donos ressabiados. tabilidade de juízos morais tomados como
“Aqui não dá para vacilar”, advertia o moto- universais e que vaticinam a magnitude do
rista acionando o que seja o passado vivido, perigo enunciado. Isto se dá pela repetição
plantado de fora e situado ao longe, através sucessiva de sínteses conclusivas apartadas
A essas visões contrapõem-se conceitos e argumentos desenvolvi-
12 das evidências e dos contextos que as fun-
dos por Silva (2004), Zaluar (2004) e Misse (2011).
ciais ver Magnani (1998), Frúgoli (2006), Agier (2011) e Augé (2012).
Vamos fazer uma comparação, que se do que aquele que um barômetro seria ca-
um dos envolvidos na investigação da paz de medir. A pressão da atmosfera era
Lava Jato for surpreendido com bandi- de outra natureza: a experimentação de um
do, vai dizer que não é nada demais, sim- estado de vigília continuado entre os que
plesmente um encontro para tomar um por lá vivem e circulam. O céu apresentava-
café e nada acontecerá, mas se o mesmo -se como um teto de chumbo rebaixado. E
acontecer com algum deles ou qualquer o chão parecia se levantar com erupções de
outro morador de comunidade, o desen- um subterrâneo de práticas ilegais e clan-
rolar será bem diferente provavelmente destinas. Negócios mais ou menos tolera-
terminando na cadeia. [Moça do Comple- dos pelos guardiões da Pena e da Espada do
xo do Alemão] Estado, mais ou menos visíveis aos olhos da
sociedade. E que chegam à superfície como
Outra lição importante para os jovens de
um magma composto de traição, vingança,
favela entrevistados é saber lidar com um
acertos de contas, alianças, patrocínio de
ambiente atravessado por desconfianças
eventos, promoção de festejos, ofertas de
recíprocas e, por sua vez, por suspeições
agrados e outros tipos de “fechamento”.14
maximizadas. Na comunidade há uma
Um clima de ressaca física e moral sinaliza-
multiplicação dos olhos que tudo veem, de
va que, de véspera, ocorrera, como de hábi-
cabeças que de todos sabem e de línguas
to, a combinação da fúria de alguma provo-
autorizadas a falar muito, mas de alguns
cação armada com o som de alguma festa
poucos mortais.
ao pulsar do “batidão” do funk. Tudo junto e
As idas ao Complexo do Alemão e ao Falet misturado nos relatos do dia seguinte: gen-
aconteceram em alto verão. Um calor inten- te disposta a guerrear, gente marcada para
so e sem tréguas podia ser sentido. Como morrer, gente querendo só curtir, coisas de
de costume, em dias muito quentes, não matar, coisas de beber, coisas de comer, coi-
havia muitas pessoas caminhando pelas sas para dançar, coisas para resenhar. Disse
ruas, becos e vielas próximos ao trajeto que um jovem do Falet: “Aqui é um lugar que
fizemos para chegar aos pontos de encon- pode está o tiroteio que for que a gente se
tro. E, claro, não há nada de extraordinário sente seguro”.
ou de exótico nisto. Nunca esteve em cartaz,
Como se diz no jargão popular, “o ar esta-
no mundo real, aquela imagem folclórica
va muito carregado” e “pisava-se em ovos”.
de favela animada com gente pobre e feliz,
Poucas pessoas se arriscavam ao sol e ao re-
colocando seus hábitos e costumes em exi-
ceio para “medir favela” de lá para cá e de
bição para passantes e turistas (Freire-Me-
cá para lá. Seguindo para o nosso destino
deiros, 2009).
avistam-se silhuetas deslizando em slow
Como sabido por qualquer carioca, as almas motion por trás das cortinas, vultos passan-
residentes no Rio de Janeiro, familiarizadas do em fragmentos pelos vidros canelados
com temperaturas elevadas, adquirem a dos basculantes. Um sistema de alarme
prática de procurar sombra e água fresca com olhos mágicos detecta: “gente de fora
na rua, no trabalho ou em casa. Porém, o subindo”. Percebe-se a presença dispersa
peso do ar sobre as nossas cabeças, espe- de vigilantes ocultos em estado de atenção.
14
Fechamento é uma expressão usada pelos jovens cariocas que de-
cialmente no Alemão, parecia muito maior signa alguma forma de aliança, de acordo entre partes, o reconheci-
mento de uma parceria.
Portas, janelas e cortinas cerradas apontam estilo do Programa Big Brother.16 Porém,
para a primeira linha de manutenção do ar com uma delicada e problemática questão:
refrigerado, um alívio de primeira necessi- morador de favela se faz observável sem seu
dade propiciado, em boa medida, pelo gato prévio consentimento. A autorização para
de luz.15 Portas, janelas e cortinas entreaber- sentir em conjunto lhe é imposta por cons-
tas indicam a primeira linha de defesa da trangimentos como as formas de ocupação
privacidade, da reserva dos dados pessoais urbana e de dominação ali existentes.
e da vida privada, ali em situação continua-
Como não se vê envolvido? Assiste-se a uma
da de escassez.
teatralidade elevada ao seu exagero até nas
No interior das favelas, a habilidade de um atitudes mais simples, de somenos impor-
mortal para gerenciar a sua exposição e o tância. Tem-se a impressão de que o recurso
acesso dos outros à informação sobre si à encenação exasperada de si mesmo serve
pode corresponder à difícil e delicada arte como uma escaramuça na administração
de autopoliciamento. Para muitos, o sim- dos conflitos diante de um expectador-cen-
ples estender do braço em uma janela ou na sor à espreita de um vacilo. Qualquer vacilo
laje pode alcançar o interior da casa do vizi- que sirva como alegação moral para aplicar
nho. E com uma curta mirada, até mesmo alguma punição ao morador de favela por
desinteressada, enquadra-se a intimidade apenas “ser cria da comunidade”. Esta ence-
alheia no sofá da sala ou na cama de casal. nação aprisiona as expectativas do outro ao
É preciso se esforçar bastante para não ficar estereótipo desenhado, produzindo algu-
sabendo o que acontece ao lado e ao redor. ma distância protetora entre a personagem
Do contrário, acaba-se como plateia diária querida como mais verdadeira e a encena-
da vida cotidiana da vizinhança, tornando- ção de seu papel como menos real.
-se, de alguma maneira, afetado, enredado
Nas favelas visitadas, não se tem como ex-
e, por fim, envolvido-com, querendo ou não,
perimentar plenamente, com tão curta
com o que acontece na favela para dentro.
distância física e moral, o anonimato cos-
E isto vai das desavenças domésticas, pas-
mopolita no espaço público e a discrição
sando pelo que acontece nas festas e come-
polida no espaço privado. Ambos creditados
morações, chegando até os movimentos do
ao comportamento civilizado vindo de fora
tráfico e às operações da polícia.
(Elias, 1994). Exatamente entre um e outro,
Se o ar parece denso, o espaço parece muito tem-se uma mistura do que é privado e do
mais condensado, mais estreito e totalmen- que é comum. Sua manobra é particulari-
te sob alcance de um olhar estrito. Tudo zada, caso a caso, segundo um código de
isto, um convite à curiosidade bisbilhoteira conduta, ali operado, que dá conta do que
e a gerência da vida pessoal de antemão deve ser segredado e do que se pode expli-
devassada. Como não estar “envolvido”? A citar. Na favela, tudo se viu ou ouviu dizer.
possibilidade sempre aberta de exposição Mas as frases sobre o que se sabe são es-
do que se passa porta para dentro e para trategicamente ditas de maneira a revelar
fora, aponta para uma invasão em 360o, um sem se comprometer. Caminha-se na corda
avançar sobre os limites do outro em 3D, no bamba das circunstâncias, do que é contin-
Big Brother é um Reality Show, criado para a TV Holandesa. O nome
16
15
Este recurso, chamado de ‘bypass’ ou gato de energia, se espalhou foi inspirado no livro 1984 de George Orwell. No Brasil, é exibido pela
por toda cidade. No caso dos espaços populares, opera com o apoio e Rede Globo. Ver: http://gshow.globo.com/realities/bbb/. Última con-
a autorização do tráfico de drogas ou da milícia. sulta em 30/03/2019.
gente, por meio do uso cauteloso e relativi- mochila? Quem é o chefe do tráfico? Jogo
zado da categoria “depende”. Depende do de abordagens para marcar e fazer não es-
que se fala, para quem se fala, de quem se quecer quem tem o mando, quem está no
fala, do lugar onde se fala, do momento para controle da situação. Aprende-se a ter um
se falar. Enfim, “tudo tem um depende”, um cuidado com a palavra. Um tipo de cuidado
calcular milimétrico e exaustivo, para tentar voltado para se preservar protegendo, mes-
seguir à risca o traçado fugaz das cercas, e mo que a contragosto, os autores da ação
podem ser várias, que circunscrevem os li- de censura, ou melhor, da caçada à palavra
mites do que pode ser conversado. autorizada (Bourdieu, 2008). Quem são? Os
governantes dos silêncios de fala que exer-
Observa-se o acionamento de retóricas
cem o recurso da coerção armada sobre a
defensivas constituídas sob um clima de
linguagem das palavras e dos corpos, um
ameaças estendidas que estão no ar, vindas
tipo de manobra tática para reafirmar seu
de toda parte como rumores e disseminada
domínio e que contam com olheiros vin-
por toda gente como boatos (Elias & Scot-
dos de dentro das comunidades populares.
son, 2000). Cansaço e ironia misturam-se
Poder de ordenação sobre o que pode ser
ao ter que depor, mais uma vez e de novo,
dito pelo poder das armas que dobram as
sobre as mesmas questões para os mesmos
línguas e silenciam condutas. “Disseram aí
interrogadores, os PMs da proximidade in-
que foram eles”. Eles quem? PM ou bandi-
desejada por eles próprios e pelos morado-
do? Frases com sujeitos ocultos e indeter-
res da favela (Muniz & Mello, 2015).
minados buscam afastar o risco iminente
Eu ia de moto e aí veio a viatura e parou de se ver confundido com um delator. Mas
na minha frente e já veio atrás de mim, podem trazer para mais perto a acusação,
apontando a arma e falando encosta aí, sempre presente, de ser “envolvido” com o
tá vindo da onde? Tá indo pra onde? Es- crime. Daí frases construídas sob censura,
tou indo para casa agora e ele: “Ah tá” e supostos “papos retos” que mais parecem
olhou na minha cara [Rapaz do Falet] acrobacias linguísticas, da “arte de falar e
não dizer”.
A batalha de palavras entre interrogado (fa-
velado) e interrogador (polícia), constitui-se P: ESSES QUE MORRERAM ERAM MORA-
por uma gincana discursiva, sabidamente DORES?
cínica e arriscada, onde o sujeito perseguido
R: Todos moradores. Foi no mesmo dia,
liberta-se de sua situação de caça, matan-
mas não foi no mesmo momento.
do as charadas sobre sua perseguição. Nela
espera-se que os suspeitos de sempre – ou P: QUAL FOI A EXPLICAÇÃO QUE ELES
“freios de camburão” – reproduzam panto- DERAM?
mimas indicando subserviência, formas de
R: Não tem explicação.
deferência que reiteram o lugar autoritá-
rio de autoridade e respostas ensaiadas do P: PORQUE ELES MORRERAM?
tipo bypass para o mesmo repertório bati-
R: Porque eles quiseram matar.
do, há muito repetido, de perguntas. Está
indo para onde? Está vindo de onde? Está P: ELES PODERIAM SER CHAMADOS DE
fazendo o que aqui? O que você tem aí na “ENVOLVIDOS”?
“Aqui a gente sabe quem é envolvido ou adesões, e que podem vir a serem trazidas
não”. O X9 foi lá em casa, me filmou. Ele como evidências de algum “envolvimento”.
não é porra nenhuma”. [Rapazes e moças
Meu irmão que é trabalhador e hones-
do Complexo do Alemão]
to está passando na rua próximo a um
No mundo concreto, os deslocamentos bandido, caso meu irmão o cumprimen-
dentro e fora da favela são marcados pela te e nesse momento passar a polícia ou
experimentação de uma ameaça amplia- algum “X9” tirar foto e mandar para as
da com total cobertura em 4G. Sobressal- autoridades policiais, meu irmão já será
tos, suor frio, coração acelerado pontuam o considerado bandido também”. [Rapaz
medo de acontecer preso em uma cerca ou do Complexo do Alemão]
impossibilitado de conseguir dela escapar.
A tríade de direitos que ambicionam cir-
Sensações de claustrofobia e de agorafobia
cunscrever a privacidade no mundo virtu-
misturam-se numa realidade exposta a so-
al não se realiza no asfalto e muito menos
brevigilância internalizada entre iguais. Fa-
nas favelas. Direitos de não ser violado, de
velas em um regime político de ordem con-
não ser registrado e de não ser reconheci-
tinuada de exceção (Agamben, 2015).
do ou ter seus registros pessoais publica-
Tem-se a impressão de que os círculos de dos subordinam-se as exigências políticas
confiança entre os jovens de favela estão por cada vez mais controle e às demandas
mais estreitos a ponto de poderem passar morais cada vez mais discriminatórias por
despercebidos pelas porosidades, atalhos proteção. Falet e Alemão com seus selfies:
abertos nas cercas também construídas por Sorriam, vocês estão sendo vigiados!
seu próprio mundo. Restritos aos microes-
3. CAMINHOS DE SUSPEIÇÃO E
paços das relações familiares e das poucas
DESCAMINHOS DA SOCIABILIDADE:
amizades construídas pela participação nos
ROTAS, DESVIOS E FUGAS
projetos sociais, ampliam sua relação com
o mundo e seu próprio mundo pelas redes Você tem medo do quê? Medo do filminho
sociais. Eles são parte dos “nativos digitais” enquanto passava perto da boca ou de uma
ou da “geração smartphone”.17 Conectados guarnição da PM. Medo da gravação de voz
com o que acontece dentro e fora da co- enquanto dava um cumprimento forçado
munidade, eles “têm o mundo na palma da ao pessoal do movimento ou respondia a
mão” como ressaltam as propagandas das uma indagação do policial. Medo da foto
tecnologias móveis. Eles têm os olhares de enquanto fumava um baseado ou zoava no
seus perfis, vídeos, fotos, mensagens, grava- caminho do baile funk. Muitos medos, vá-
ções de voz a seu favor. Como testemunhas rios receios para se ocupar em um tempo
de seu próprio mundo tornam-se realidades de conexões virtuais e de vigilância líquida
reveladas de sua existência transfronteira. (Baumman, 2014). Imagine se isto viralizar
Eles também têm seus registros em nuvens na internet ou cair no smartphone errado?
contra si. Repertório de materialidades, in- E se for parar nas mãos armadas dos donos
dícios de suas trajetórias, que se fazem pro- do morro, dos PM ou dos X9? Como man-
vas de suas itinerâncias, pertencimentos e ter-se conectado e não deixar rastros de si?
A Geração Smartphone, chamada de “Geração Z” ou “nativos digi-
Experimenta-se o receio do registro, da me-
17
“prova” contra um, alguns ou vários deles, ouve dizer que o “meio onde vivem” faz dos
os jovens de favela, no Rio de Janeiro. Afinal, jovens pobres “bandidos natos” ou vulnerá-
fiscalizar o conteúdo das conversas no Wha- veis com um suscetível “pé na criminalida-
tsApp tem aparecido no relato de jovens da de”. Em defesa da sociedade, o que importa
periferia como a mais nova modalidade de é apreender, isto é, aprender a saber aprisio-
vigilância dos “meninos” do tráfico que inva- nar os indivíduos aqui e ali, em seus próprios
dem e dos “homens” da polícia que ocupam. movimentos, deslocando-os, fazendo-os cir-
Entre invasões e ocupações, reproduz-se o cular por entre paradas ou confinamentos
pedágio a ser pago: deixa eu ver, está falando provisórios e sob os radares situacionais de
o que e com quem aí? É parte do exercício de controle social.
conviver na comunidade, viver com alguma
A categoria envolvido-com opera como
dose de desconfiança em relação a quem é
uma válvula distribuidora de sentidos ne-
de fora, mas também com quem é de den-
gociados cuja eficácia simbólica está em
tro. Isto corresponde a uma gestão cotidiana
adequar-se a cada situação concreta vivida,
e diferenciada de riscos cuja principal chave
de acordo com cada sujeito, conforme cada
interpretativa é o medo de ser identificado
situação e segundo cada lugar. A sua elas-
como envolvido-com o crime.
ticidade e flexibilidade permite tanto iden-
Envolvido: um modo de estar, ficar ou ser? tificar traços específicos quanto reconhecer
Uma forma de (re)produzir cercas e pedágios padrões comuns entre os indivíduos, suas
sociais móveis. Funciona como um disposi- interações, intenções e trajetos. Revela uma
tivo itinerante de incriminação. Promete, no engrenagem classificatória dinâmica que
imediato de seu acionamento, oferecer con- se mostra transversal a todos os segmen-
forto emocional e proteção moral àqueles tos sociais e que parece adequar-se a toda
situados como estabelecidos (Becker, 2008), sorte de moralidades relativas à produção
ao definir uma linha de justificação causal de controle e de justiça, desde aquelas que
entre o passado, o presente e o futuro dos apoiam sua persecução em provas técnicas
sujeitos apreendidos em sua rede classifica- até aquelas que emprestam materialidade
tória. Esta é uma categoria acusatória a ser- aos seus juízos morais. Trata-se de uma ex-
viço da produção de controles estendidos e pressão, cujo rendimento classificatório é
de vigilâncias difusas, cuja virtude primeira tão persuasivo que caiu no gosto do senso
é ir cada vez mais além em sua disposição comum. Envolvido-com tem sido aciona-
classificatória: envolvido pode ser um efei- do, nos mais diversos ambientes e contex-
to passageiro, um estado, uma etapa, uma to sociais, para antecipar o julgamento das
condição, um destino. E pode muito mais, personagens dos mundos político e empre-
uma vez que busca avançar da intenção ex- sarial relacionadas aos escândalos de cor-
pressa e consciente até o desejo implícito e rupção política e relatadas nas estratégias
inconsciente dos indivíduos sob incrimina- de comunicação social da Policia Federal,
ção. Caminha-se do que seja uma reação da Justiça e da Corte Suprema.18 É, também,
natural do instinto até o que seja uma ma- acionada para predizer e justificar o juízo
nifestação cultural da vontade, oferecendo final desejado para as personagens cotidia-
18
A aprovação da Lei 12.850/2013 que normatiza a “colaboração pre-
matizes que se encaixem em cada situação miada”, mais conhecida como delação premiada, e seus modos de
emprego, ajudaram na consolidação da ideia de envolvimentos que
em que a categoria é acionada. Por isso, se levariam à necessidade de maximizar os mecanismos de controle,
correção e punição.
nuada. A sua dimensão restritiva estaria na ção deslizamentos entre os estados provisó-
intenção criminosa, sendo esta finalidade o rio (“estar envolvido”), momentâneo (“ficar”
aspecto que fundamenta a seletividade do envolvido) ou permanente (“ser envolvido”).
olhar dos mecanismos de controle e vigilân- Movimentos que transitam pelas noções de
cia. Em termos práticos, qualificar uma inte- “vulnerável”, “suspeito” e “bandido”, e que
ração como criminosa depende do arbítrio são manejadas a cada novo e próximo en-
de quem define, do seu poder de nomear contro com a polícia.
diante do campo de ameaças, desconfian-
Inventariar e reinventar posições na cena
ças e suspeições em que se encontra ins-
interativa é o modo pelo qual os jovens
crito. A fronteira com o que possa ser reco-
de favela, em contínuo estado de alerta,
nhecido como uma arbitrariedade é tênue,
manobram os significados expressos nos
e tende a deslocar-se conforme as bargan-
acionamentos da categoria envolvido-com
has do sentido de autoridade e das formas
dentro e fora de seus locais de moradia.
de seu exercício. Em termos instrumentais,
Essa tomada de posição pode ser sintetiza-
o substituto pragmático do tipo penal “as-
da como uma economia política do envol-
sociação criminosa”, no presente das prá-
vimento, um modo operativo transversal e
ticas policiais, é o “envolvimento” que varia
manifesto nas situações vividas mais diver-
quanto à sua natureza e grau para também
sas, que circunscreve um conjunto de tá-
ser abrangente. Pode-se, então, dizer que
ticas de como se manter a salvo de acusa-
a construção social do envolvido é um em-
ções, seja pelo excesso de proximidade ou
preendimento moral da lei equacionada,
de distância das cercas que os envolvem. De
caso a caso, no asfalto e na favela, ponde-
que lado estão? De que lado não estar ago-
rado pelas distintas razões que nos atraves-
ra? Estes questionamentos desvelam uma
sam: as razões etária, de cor, de gênero, de
averiguação rotineira de credenciais, uma
classe, de renda e as que mais servirem para
lista exaustiva de auto-verificação. No traje-
desigualar os desiguais.
to casa-trabalho-casa, no uso do transpor-
Cada vez mais onipresente nas representa- te alternativo, na procura por emprego, na
ções sobre as causas e consequências das volta da escola, no recôndito das interações
“violências” e da “criminalidade”, o cons- afetivos-sexuais é preciso apresentar-se e
tructo envolvimento explora as ambigui- representar-se como não envolvido. O que
dades, o lusco-fusco das interações e dos pode ajudar a aliviar a condição de morador
marcadores sociais, produzindo simulta- de favela quando abordado pela PM? Portar
neamente, enquadramentos fugidios e es- uma bíblia? Trajar uma camisa de projeto
tanques. Pode ser compreendido como um esportivo? Usar roupas e acessórios modes-
novo modo de rotulação que recicla as ideo- tos que não destoem da condição de pobre
logias sobre as classes perigosas (Chalhoub, honesto? Ter o corpo e a cor de pele “cer-
1996) e a juventude pobre. Estar ou ser en- tos”? Tudo isto na esperança de ser capaz
volvido pode aparecer como um momento de manejar a constante suspeição que paira
passageiro ou uma identidade substantiva, sob suas cabeças.
permitindo a proliferação de gradações que
Saltam das línguas dos jovens entrevistados
vivificam estereótipos e preconceitos con-
do Falet e do Alemão, em tons de revolta,
forme o sujeito e a situação. Põe em circula-
humor, resignação e deboche, uma espé-
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manobras de controle, vigilância e punição
Fatima Cecchetto
Jacqueline Muniz
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Uma das estratégias fundamentais para os de denúncia contra os maus usos e abu-
jovens de favela em fuga da pecha de en- sos da autoridade policial tomou conta da
volvido-com é tentar abrir uma fenda nas conversa com os jovens entrevistados. Mo-
malhas do controle policial. É a polícia que, mentos-catarse que funcionavam como
a cada abordagem, a cada tomada de ter- testemunhos-verdade, e serviam como
ritório, reforça sua posição de fiscal das re- contraponto às tentativas de fuga do con-
gras do seu próprio jogo e do jogo de sus- tato com a polícia. E esta, na sua “doutrina
tentação do status quo. É a polícia que, mais tático-operacional” e na realidade sensível
imediatamente, faz saber, faz lembrar que de suas práticas, corresponde a muitas po-
há pedágios a serem pagos para entrar, lícias em uma só PM. Para os jovens tem-se,
permanecer ou sair dos mundos sociais. na favela, a oferta de um cardápio exclusivo
Diga-me onde anda, com quem fala e o de meios desmedidos de força que não se
que faz, e te ditarei quem és! Esta alegoria interessariam por fazer policiamento osten-
sintetiza a percepção que os jovens do Falet sivo, mas apenas por na ordem do dia uma
e do Alemão têm do tipo de controle que a “repressão amadora e mau intencionada”.
polícia exerce sobre eles. O poder (delega- Tem-se a PM da operação policial, a PM do
do) de polícia é vivido ali, na expectativa de choque, a PM do caveirão, a PM da ronda,
sua presença, na sua chegada e na forma a PM do forjado, a PM da UPP. Esta última,
concreta de sua ação, como o poder (auto- agora também reconhecida como a “PM da
nomizado) do policial que, mais uma vez e decepção”, porque nela se creditava a espe-
de novo, barra para averiguação, os mesmos rança na mudança para melhor de um pa-
jovens de sempre. drão de atuação policial nas favelas.
Falar da polícia é falar, com muita mágoa Ainda que jovens entrevistados reconhe-
e algum humor cáustico, dos constantes çam níveis diferenciados de violências física
levantes de muros e de como ultrapassá- e simbólica nas formas de atuação das várias
-los, abrindo pequenas brechas, com me- PM direcionadas para as favelas, eles identi-
nor dano possível. Os PM, ou simplesmen- ficam um ponto em comum entre elas que
te “eles”, aparecem na linguagem figurada seria a discriminação socioespacial e o pre-
dos jovens como a cerca das cercas que, conceito racial. Uma caracterização das PM
“surgem do nada”, de uma hora para outra, que se aproxima da imagem criada por Cae-
em todo e em qualquer lugar, para fazer o tano Veloso na música Haiti.20 Quase pretos
trabalho deles: atemorizar a favela, tratando e quase brancos, dando porrada em quase
todo mundo como bandido, sem distinção. brancos e quase pretos que, de tão pobres,
são vistos e tratados todos como pretos.
“Os PM já têm o conceito de que os mo-
radores das comunidades do complexo “Sofremos preconceito por sermos de co-
são bandidos e “mulher é piranha”. Este munidade. As formas de se expressar se-
estigma não se limita as UPPs. Todos os jam na forma de se vestir falar também
policiais do Rio de Janeiro enxergam os influenciam na discriminação”. [Moça do
moradores de comunidade como bandi- Falet]
dos”[Rapaz do Complexo do Alemão]. 20
“Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos/Dando porra-
da na nuca de malandros pretos/De ladrões mulatos e outros quase
brancos/Tratados como pretos/Só pra mostrar aos outros quase pre-
Em alguns momentos, um tom acalorado tos/(E são quase todos pretos)/Como é que pretos, pobres e mula-
tos/E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”
A sociologia da polícia construída pelos jo- licado que estabelece alianças de ocasião
vens moradores da favela lança mão de no- entre jovens e os conduz a ter que elaborar
ções saídas das teorias sociais do desvio, do uma espécie de cartografia dos lados para
crime e da violência. Ao tratarem do modus poderem transitar pelas cancelas da PM e
operandi das PM, por exemplo, eles acionam dos traficantes. Esta se traduz em diversas
uma lista recorrente de expressões como manobras realizadas pelos territórios físicos
estigma, rotulação, etiqueta, estereótipo, e simbólicos na busca pela medida da ade-
discriminação. Uma operação de apropria- quada distância para dentro. Entre os mora-
ção simbólica tanto das representações que dores da favela, revela-se o cálculo estraté-
se fazem presentes nos discursos que ambi- gico sobre os modos de fazer ver ao outro a
cionam hegemonia de sentido, quanto das sua inscrição. Estes procedimentos de regu-
categorias que se pretendem analíticas na lação e remanejamento operados pelos jo-
narrativa crítica das ciências sociais. Revela- vens exigem sagacidade para negociar bre-
-se uma política de sentido que se beneficia chas, diante da percepção de uma acusação
da reflexividade para transformar o que se latente de colaboração com um inimigo da
inaugura como uma retórica de acusação vez, polícia, milícia ou a facção: olhou? Cum-
em uma tática discursiva de defesa. Um ex- primentou? Xnovou!21
pediente de tomada de assalto por dentro
Porém, qualquer que seja o lado, o da PM
da linguagem, como agradaria a Foucault
ou o do tráfico, o envolvido-com parece
(1998), revelando resistência onde há poder.
também ser “o cara que não colabora”, que
Uma estratégia de manipulação da identi-
nada ou pouco tem a informar, e que ma-
dade deteriorada, como compreenderia Go-
nobra bem com os indícios, o que faz dele
ffman (1998), demonstrando a existência do
um “abusado” por escapulir das cercas. Do
poder dos fracos.
lado de lá da ordem pública da PM das ope-
Por fim, a incorporação e uso de alegorias rações policiais, quem passa perto do crime
que apontam para práticas discriminatórias, do lado dele está. Do lado de cá das ordens
excludentes e desiguais correspondem a um do “tráfico”, quem passa muito longe do
aprendizado realizado pelos jovens quando movimento, com algum dos seus inimigos
de suas inserções no mundo dos projetos está. Sob este recorte, o controle armado da
sociais. Este léxico está nas linguagens au- PM e do tráfico, por meios distintos, parti-
torizadas, falada e escrita, dos operadores lha de uma mesma lógica que é a de produ-
sociais. É parte da textualidade das políticas zir envolvimentos que promovam alianças,
sociais e da contextualização de seus conte- mesmo que forçadas, as quais possam con-
údos voltados para a favela. Tratam-se, an- tribuir para a estabilização de seu poder no
tes, de palavras-ação que emprestam visibi- território-favela.
lidade a causas, registram um processo de
A cartografia dos lados para onde olhar (ou
luta e de construção de legitimidade para
não) e se mover (ou não) implica em trafegar,
o seu ingresso na agenda pública. Consti-
em várias direções, da maior ou menor pro-
tuem assim, uma forma de socialização po-
ximidade. Envolve tensões entre estes polos
lítica no manejo das rotulações.
e dilemas nas escolhas do tipo de distancia-
As experiências com a rotulação de envol- mento possível a ser representado diante
vido-com emergem em um interjogo de- 21
Construção verbal da expressão X9, e cujo sentido é denunciar.
2011; Reis, 2011). O reconhecimento de uma garantir uma estagnação consolidada para
“dívida social” com a juventude pobre apon- aqueles muitos conscientizados de que não
tava para uma mudança valorativa que se conseguiriam subir na vida, os conforma-
fez acompanhar da ampliação da gramática dos. Aqueles sujeitos pobres que nem se si-
do controle sobre aqueles sujeitos identifi- tuam como estabelecidos (Elias & Scotson,
cados como expostos a riscos sociais. Antes 2000), nem são reconhecidos como outsi-
os jovens da periferia social figuravam, na ders (Becker, 2008). A expectativa civiliza-
agenda pública, apenas como um crimino- tória era conter a máquina e desmobilizar a
so potencial ou uma fonte de ameaças a re- revolta (Zaluar, 1985) latente das comunida-
querer terapias coercitivas. Porém, no tempo des populares. Inauguram-se outros modos
do discurso do “resgate social” observou-se de controle, indiretos, em atenção aos fins
a reinscrição destes jovens como indivíduos de uma política vista como empoderadora
ameaçados, socialmente “vulneráveis”, que e participativa. Agora, a juventude teria voz
teriam a chance de terapias inclusivas me- e vez. Agora, jovens de favela passariam a
diante sua disposição para “mudar de vida”. empresariar o percurso de um destino para
Sob a égide da narrativa da inclusão para eles concedido, já anunciado: ser um “jovem
reduzir as desigualdades sociais, as políticas de projeto”, o único responsável por seu su-
para a juventude deveriam exceder o acesso cesso esforçado ou seu fracasso por mérito
universal à educação formal pela oferta de
O projeto foi sendo apresentado como a
um cardápio de práticas reeducadoras que
grande oportunidade aberta para os mais
se estendem do esporte à cultura, passan-
necessitados, aquela que pode produzir
do pela orientação ao mercado de trabalho.
“esperança de um futuro melhor”. Um hori-
Nas periferias, subúrbios e favelas, tornou-se
zonte no qual se ofertam tutelas pedagógi-
lugar comum entre as juventudes, ativistas,
cas para o comportamento desejável e cer-
políticos e mídias locais, acionar a expressão
tificações das boas condutas aprendidas.
“jovem de projeto” como um referencial de
Num mundo preenchido pela retórica da
adesão a um novo universo: o do asfalto em
ausência, o projeto social é visto como um
sua missão civilizatória.
dos poucos atrativos na política de escassez
Diversificados e diferenciados em estilos, fabricada para a favela. A frase que sintetiza
objetivos e características, os projetos so- essa percepção da missão dos projetos é a
ciais tornam-se refúgio físico e simbólico que alude ao fato de que os projetos esta-
para tentar escapar das acusações de den- riam “suprindo uma demanda do Estado”
tro e de fora das favelas de ser, estar ou fi- como afirmou, uma operadora de seguran-
car envolvido com o crime. Ambicionava- ça de Campos:
-se criar meios de inclusão afirmativa para
O projeto era uma forma de tirar... era
destravar as portas da estratificação social.
a fuga, porque na comunidade só tem
Tratava-se não apenas de trazer “melhorias
“boca de fumo” ou igreja - não tem ou-
para a comunidade”, mas de buscar “me-
tra coisa. Então eu vejo os projetos sociais
lhorar” o favelado, qualificando-o como um
como uma fuga, uma socialização, um
gerente de si mesmo. Intentava-se possibi-
entretenimento, porque não tem uma
litar a mobilidade ascendente para alguns
aula de violão. Eu acho que programa
mais esforçados, os exemplos de sucesso, e
social, qualquer um já ajuda até porque
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na ausência do Estado alguém tem que cresceu e deu rumo na vida. Porque o M
fazer alguma coisa. O que você está falan- [um adolescente], ele tá desde novinho
do eu concordo porque além do dinheiro aqui. Ele não sabia ler, depois que ele veio
tem a alimentação pra cá o resultado dele na escola surpre-
endeu. Hoje ele tá fazendo programação
Ora em oposição, ora em aliança com as de-
que é um desafio para o professor, mas
nominações religiosas (Vital, 2015), preten-
ele está conseguindo. Ele superou até as
dia “disputar cada menino e cada menina
notas dele na escola. Ele sofreu bullying...
com o tráfico de drogas”: êxito esperado na
Um professor tacou um apagador nele,
formação de cidadãos adequados, modes-
porque o professor fez uma pergunta que
tos ou ambiciosos. Seu chamariz era consti-
ele não sabia responder. Isso foi horrível,
tuir-se como locus do lazer, de “preparação
mas o que a gente faz aqui? Uma coisa
para a vida” e, em especial, de poder conhe-
que eu acho importante nos projetos so-
cer e fazer novos amigos livres das armadi-
ciais são as rodas de diálogos que a gente
lhas da suspeição. Ali se prometia vivenciar
tem com nossos jovens pra ele falar dele,
espaços de aprendizado mais horizontaliza-
pra ele falar dos sentimentos dele.
do, com maior flexibilidade em conteúdos,
aspectos didáticos e capacidade de mode- Imaginar e construir rotas de fuga para além
lação às demandas de seus públicos e clien- da condição socioeconômica e da origem
telas (Gohn, 2010). favelada, aprender a manejar válvulas de es-
cape de desvantagens sociais, produzir ou
Para além da busca pelo lúdico, do jogar pelo
encontrar porosidades nas distintas barrei-
jogar, os projetos também são percebidos
ras que se apresentam em seus percursos
pelos jovens de favela entrevistados, como
sociais, têm requerido dos jovens de favela
espaços onde se produz e se reproduz ca-
que se reinventem como patrocinadores de
pital social (Bourdieu, 2014; Araujo 2003). O
si mesmos.
lugar onde se tem acesso a meios e se apre-
ende modos de tentar escapar das cercas Sabe-se que projeto social não é propria-
erguidas a cada suspeita de envolvimento mente um projeto de sociedade ainda que
com o crime. É ali, no mundo vivido do pro- por este se oriente. No primeiro há vagas
jeto, que se lapida a manha, compartilha-se concretas para alguns, no segundo há uma
alguns macetes e obtém-se senhas, mes- visão de mundo inclusiva para todos. Tão
mo que provisórias, que viabilizem desblo- logo ingressam no mundo do projeto, os jo-
queios e travessias sociais. É ali, no mundo vens percebem que para permanecerem é
prometido pelo projeto, que se desenvolve preciso demonstrar “interesse e muita for-
a capacidade performática para encontrar ça de vontade”. É preciso renovar votos de
poros e ultrapassar fronteiras simbólicas e adesão a uma narrativa de superação que
materiais. Nina uma gestora de ONG que se tem como mote o autoinvestimento que
classifica como uma empreendedora social, se sobrevaloriza na proporção das vicissi-
percebe esta qualidade intrínseca de sua tudes anunciadas. É preciso adquirir um
atividade de resgate social: projeto de vida por meio do qual ofertam-
-se testemunhos de que se está “agarran-
Aqui [ONG] tem uma coisa legal. A gente
do a oportunidade” salvadora recebida e
tem criança que cresceu aqui dentro, que
“fazendo a sua parte” exatamente porque
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se “passa necessidade”. Jovens de projeto caos das vidas em favela, apontando pos-
vão se construindo como empreendedores, sibilidades. Por outro, tal rota também não
tendo o projeto como meio, mas cercados oferece garantia absoluta, moratória ou livre
pela escassez, pela precariedade, nas mais trânsito. Não é um passaporte vermelho que
variadas instituições ordenadoras da vida livra os jovens entrevistados da reapresen-
social: educação, saúde, segurança, traba- tação sucessiva de referências pessoais para
lho. Constituem-se como vítimas empreen- compensar os referenciais sociais estigma-
dedoras compromissadas em transformar a tizados. Passar em revista na vigilância do
sua carência social fundante em abundân- shopping, na checagem da busca por em-
cia individual de oportunidades de progres- prego e com constrangimento nas aborda-
so. Tem-se a obrigação de “dar certo”, mas gens policiais. Fragmentos de relatos sobre
de um certo jeito. o check-in list policial:
Tal empreendedor é tratado nos meios jor- paralelas ou fora do alcance das incursões
nalísticos e no senso comum como alguém do “caveirão”23. No cálculo efetuado nas idas
que se salvou ou foi salvo por projetos so- e vindas do mundo da favela, trata-se me-
ciais. Em geral, projetos esportivos e cultu- nos de buscar a situação de passageiro de
rais que eduquem para obedecer às regras, uma nova condição social, e mais de conse-
isto é, para aprender a disputar o acesso aos guir permanecer em uma rota social sem
direitos sociais e civis, a competir no mer- destino traçado, repleta de obstáculos, pe-
cado e a se comportar socialmente para dágios e pistas falsas. Ser jovem de projeto
vencer na vida. Num deserto de instituições é também estar sozinho em uma corrida
básicas, jovens pobres são chamados e se sem suportes, mas com barreiras e oficiais
chamam a construir a si mesmos como ví- de fronteiras.
timas empreendedoras de sua reabilitação
Observa-se o realce político dado aos discur-
social. Por meio de seus itinerários sociais,
sos que valorizam mais o comportamento
negociam a captura e a propaganda da es-
individual em sua gramática de superação
sência do discurso de redenção pelo pró-
e de autodeterminação e menos o impac-
prio sacrifício. Uma performance discursiva
to das estruturas sociais na trajetória dos
análoga à do self made man que anima as
indivíduos. Neste tipo de narrativa contábil
biografias de grandes homens de negócio.
e individualista, acredita-se que as condi-
Tudo isto com uma indelicada ressalva. A ví-
cionantes sociais seriam por natureza ne-
tima empreendedora se produz a partir dos
gativas, funcionando como amarras às am-
significados da escassez que se reconstrói.
bições individuais ou inibidores do sonho
Não apenas a partir do ingresso no mercado
neoliberal pensado como comum entre po-
(motoristas de Uber, microempreendedores
bres e ricos. Se a categorização de vulnerá-
individuais e terceirizados em geral), mas
vel social traria o reconhecimento da socie-
diante da precariedade do próprio trabalho
dade de que é preciso contribuir “dando um
obtido e da insuficiência de ofertas de segu-
empurrãozinho”, a identificação como víti-
rança pública, de educação e de saúde que
ma empreendedora apontaria para a res-
se têm acesso.
ponsabilização individual, a obrigação mo-
Empreender pode significar a um moto- ral de fazer acontecer. Busca-se dar vida e
rista do Uber acionar um tipo de racionali- construir provas constantes ao “você pode”
zação cotidiana que considera a vedação à e ao “você consegue”, desde que com mui-
possibilidade de adoecer. Este gerente de to esforço, a fim de seguir dando sentido ao
si se transforma em um condutor de uma quadro de precariedade e escassez em que
rede transnacional de trabalho precarizado, se vive, ou talvez se deseja, nas favelas. Essa
posta em funcionamento por um aplicati- tônica individualizante é explícita no discur-
vo que territorializa os percursos e dester- so que segue:
ritorializa a relação entre prestador de ser-
Esse trabalho que eu já fiz, faço é uma
viço e empresa. Já para o jovem de projeto,
coisa muito fechada, minha, do trabalho,
empreender implica em mover-se entre as
do respeito que esse jovem criou comi-
precariedades das condições de vida, viven- 23
Um carro blindado que conduz vários indivíduos, utilizado pela PM
para incursões sobretudo nas favelas. Faz parte da família de blinda-
ciando formas diferenciadas de desterro e dos, terrestres e aéreos, em uso sob a justificativa da proliferação de
armas de longo alcance por grupos criminosos. Seu nome origina-se
de insulamento. Corresponde a navegar nas do emblema do BOPE – Batalhão de Operações Especiais – que traz
uma faca cravada numa caveira.
go. Não é um projeto social, é um projeto esses meninos” ou ainda “a mãe é ausen-
meu de vida, de ver aquele jovem e poder te, o pai é drogado, se ele ficar na rua fará
dar o direito dele ser o que ele quiser ser. carreira no tráfico, um irmão já se foi”. A fala
E graças a Deus são jovens que a gente de Nina, autoproclamada operadora do res-
está conseguindo mostrar o outro lado. gate social, serve como uma ilustração da
Eu nunca sofri nenhuma represália do força moral corretiva e da expectativa de as-
tráfico por tirar algum jovem do tráfico. cendência moral depositadas nos projetos
Porque hoje principalmente quantos jo- sociais e seus condutores.
vens eu recebo aqui que não quer mais
Hoje a oferta é matar ou morrer. O tráfi-
estar ali, que quer entrar no mercado de
co tá assim. Eu estou com uma mãe aqui
trabalho. A vida do tráfico já não é mais
que queria que eu fizesse com o filho o
como era antigamente. Jovem que já foi
que ninguém consegue. Ele ama ser tra-
de tráfico aqui sempre acolhi, acolho, se
ficante, ele só tem 15 anos. Ele foi aluno do
ele vem pra cá com boa intenção, nunca
XXXX, mas ele foi expulso de três escolas
vieram com más intenções (gestora do
que ele estudou, não conseguiu concluir
Complexo do Alemão).
o estudo e ele disse pra mãe dele que
Pode-se dizer que o jovem vulnerável se ele ama ser traficante. Ele sai pra roubar.
coloca em uma situação ainda embrioná- Agora parou né, mas ele trafica, ele usa
ria de envolvimento com o crime e que, por drogas, ele trabalha na boca. O pai tem
isto mesmo, apresenta-se como um estágio condição financeira, o pai queria montar
anterior da vítima empreendedora. Situa- um bar pra ele e ele não quer. E ela acha
-se, por um lado, como uma pessoa carente que se eu conversar com ele, ele vai me
como todos de sua origem socioeconômica. atender. Então quem trabalha com base
É inscrito, por outro lado, como um ser hu- comunitária tem uma ligação muito for-
mano “diferenciado”, como poucos, com o te com a comunidade. Você fica marcado
qual se reconhece uma dívida social porque como você é a solução. (gestora de ONG
nele identifica-se um investimento com ex- do Complexo do Alemão)
pectativa de retorno. Digno de um voto de
Para dentro do mundo dos jovens de proje-
confiança, o jovem de projeto é percebido
to, as pressões se dão para resistir às tenta-
como aquele que conseguiu demonstrar
ções do consumo que podem ser realizadas
que faz jus a uma “oportunidade” na vida
ao obter uma posição no crime-negócio. Po-
para mostrar o seu potencial. Assim, de
rém, com uma arriscada contrapartida: se
quando em vez, merece um crédito já que
ver envolvido-com, seja pelo carimbo dado
estaria disposto a competir com outros de
pelo tráfico, seja pelo registro feito pela po-
mesma condição pelas “chances de salva-
lícia. Mas, ao mesmo tempo, ser jovem é po-
ção”. Estas oportunidades, por sua vez, pre-
der ir ao “baile de favela”, perambular por aí
cisam ser mobilizadas para dar voz e vez às
com seus ornamentos: tênis, bonés, smar-
pressões externas que são internalizadas,
tphones, shorts, chapinhas, esmaltes, bijus,
assim como as regras mais básicas do co-
correntes, headsets. Tudo de marca, por
mer, do vestir e do falar. É nesta ordem dis-
óbvio. E, ainda, um pouco mais para poder
cursiva que emerge a corrente expressão,
zoar e estar “suave”: o baseado, a vodca, a
“alguém tem que fazer alguma coisa por
skol beat que animam viagens e festas.
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É preciso um cálculo permanente, em sinto- social. No entanto, tal é essa armadilha que
nia fina com cada circunstância vivida, que se acredita ver uma conduta isolada, genuí-
viabilize o autocontrole para não trocar a ca- na, renovadora, quando se pode constatar aí
misa do projeto que lhe diferencia e distin- uma característica dos tempos neoliberais.
gue no interior da favela. Há que aprender a Acionar a imaginação sociológica revelaria o
ter uma autogestão que não deixe escapar link entre os efeitos sentidos na vida pessoal
a bola do projeto das mãos pelas marcas do com as condições estruturais.
consumo vedado ao ‘jovem de projeto’. É
Se produzir como vítima e empreendedor
estratégico se autovigiar para se autopunir
requer estratégias que possibilitem mane-
diante do perigo do consumo ostentação. E
jar com uma identidade em transição con-
isto para não ser mais uma vítima em des-
tinuada. Sem saber para onde irão, ou qual
construção, aquela que volta casas no ta-
degrau alcançarão ou recuarão na mobili-
buleiro do banco imobiliário que, como em
dade social, os jovens de projeto precisam
quase todo investimento bancário, poderá
sinalizar uma predisposição básica em mas-
ter um baixo retorno ou, até mesmo, outras
carar as marcas mais latentes de sua origem
perdas.
já classificada como envolvida e que ainda é
O manejo dessa economia dos auto-inves- atravessada pelos riscos diversos de envolvi-
timentos é parte vital da racionalidade do mento em suas interações.
jovem de favela para tentar, primeiro, so-
Como janelas cuja abertura é variada e ma-
breviver e, depois, ascender. Quem sabe?
nipulada por diversos agentes, os projetos
Acionar o autocontrole, a autovigilância ou
sociais propõem novas alternativas, produ-
o autopoliciamento é uma exigência para
zem trocas que podem reorientar condutas
diminuir as chances de ter uma “vida matá-
sem retirar a etiqueta e o selo de origem.
vel”. Lá onde tem-se muitas mãos nervosas
Essas janelas promovem circuitos de mobi-
e acesso fácil aos objetos que cortam, ferem
lidade, projetam um respiro de esperança e
e matam, quem se controla, se vigia e se po-
produzem algum futuro. Ainda que não se
licia o faz em relação às expectativas proje-
configurem como espaço de moratória para
tadas por outros agentes de controle, vigi-
ameaças latentes de execução extrajudicial,
lância e policiamento. Opera-se de maneira
os projetos possibilitam aos seus jovens a
relacional e por posição, acionando meca-
fuga da pecha de “vida matável”. Para tanto,
nismos e ferramentas que, uma vez interna-
aprende-se, entre uma prática esportiva e
lizados, se armam seletivamente conforme
outra cultural, entre uma aula no cursinho e
a situação vivida.
uma confraternização, um código informal
É evidente que a vítima empreendedora é de conduta que coloca à disposição modos
parte de uma construção biográfica que de pensar e agir e, portanto, modas do ves-
traz consigo uma narrativa translocal sobre tir e do falar. Um gestor, com mestrado na
a produção do controle e que conta com área das ciências humanas, ele mesmo um
um forte apelo moral. Sua engenhosidade jovem de projeto da Maré, reforçou essas
está em simular o registro de um sujeito au- potencialidades das intervenções nos valo-
tônomo, isolado em uma disciplina asceta, res e representação locais que marcam as
desobrigado do outro, enfim, avulso e liber- trajetórias dos favelados.
to dos vínculos que lhe conferem existência
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Eu acho que o esporte tira sim a pessoa projetos buscam equipar seus inscritos com
da rua, tira sim, e faz com que ela tenha saberes e habilidades que os ajudem na sua
outra visão de mundo porque o mundo inserção na cidade formal. Isto se traduz em
que a gente vê nas Olimpíadas (...) meda- ser capaz de reapresentar-se sob um outro
lhas, você tira por aí os maiores medalhis- papel, o de um ser (des)envolvido ou em
tas do Brasil são quem? Pessoal do Pro- (des)envolvimento pela inserção em uma
grama, não é que o governo incentivou nova rede de relações, uma outra teia de
ninguém, claro que não. Então, assim, eu interdependências bem além da favela. As
vejo, porque eu sou cria de projeto social, competições em circuitos locais, nacionais
e acho que dá super certo sim. e internacionais de tae-kwon-do, jiu-jitsu,
futebol ou ginástica artística servem como
O projeto social passa a ser, então, o lugar de
ilustrações deste fazer crescer para se tornar
práticas que possam (des)envolver os envol-
mais forte, mais um na disputa por um lu-
vidos para dentro e para fora da favela. Para
gar no mercado.
dentro, o projeto social faz a distinção entre
os jovens, cria salvos condutos, mesmo que O (des)envolver do envolvido em um novo
provisórios, já que servem como moedas de envolvimento não se dá sem que sejam co-
negociação junto aos senhores das frontei- bradas sucessivas provas de conversão aos
ras – o traficante, o miliciano, o policial. E, novos padrões de desenvolvimento. Cabe
por tudo isso, reforça o capital político das repetir que estes testes de adesão não afian-
lideranças locais que ganham o status de çam garantias de que a etiqueta ‘de origem’
políticos do social. Para fora, o projeto social seja descartada em definitivo, e não passam
oferece um licenciamento maior para ir e recibo social de que um novo status preten-
vir, sobretudo porque sinaliza a adesão ao dido seja aceito. O envolvido desenvolvido
projeto civilizador do asfalto. Corresponde a está sujeito a ouvir, mediante a detecção de
um dos recursos considerados mais valiosos uma falha qualquer, que “só podia ser coisa
pelos jovens entrevistados já que aumenta de favelado”, uma frase típica que funciona
a sua mobilidade pela cidade e no acesso como uma descarga que devolve ao lugar
aos bens urbanos. social de procedência.
Eu acho legal o menino vir pra cá peque- Para dentro e para fora das favelas, a nova
nininho, ele percebe que tem outras re- etiqueta que os “empreendedores sociais
des, que tem outras coisas que ele pode de si” e os demais “jovens de projeto” (No-
fazer (gestor de projeto no Complexo da vaes, 2006) visam produzir não tem um
Maré). mapa de voo que possa emprestar alguma
previsibilidade ao destino pretendido. Como
Desenvolver para tornar-se descoberto, visí-
abandonar o lugar de “classe média de fave-
vel e sob controle. “Melhorar como pessoa”
la”, uma posição um pouco mais confortável
para expandir horizontes e progredir na
na corrida liberal a um lugar ao sol se não
vida. Os projetos sociais servem como um
há muitas garantias de que se pode mesmo
passaporte que renova a expectativas dos
entrar para a universidade via Exame Nacio-
jovens de favela de fazerem parte da vida
nal do Ensino Médio (ENEM)? Os caminhos
na cidade e de redesenharem sua trajetória
da menina que quer ser delegada federal e
nas idas e vindas pelo asfalto. Para tanto, os
do menino que gostaria de ser engenhei-
ENVOLVIDO(A)-COM O CRIME: tramas e
manobras de controle, vigilância e punição
Fatima Cecchetto
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ro da Petrobrás têm muitas pedras. Assim, provisoriedade dos acessos sociais em seu
os jovens precisam abandonar um endere- cotidiano. Este trava uma luta para inscrever
çamento social ou deixá-lo restrito a certas no devir a busca do futuro no presente. Já o
áreas, teias e contextos, sem que ainda sai- vida loka, um de seus antagonistas na fave-
bam qual etiqueta estarão vestindo mais la, experimenta o tempo no seu imediato, na
adiante. Jovens de projeto social colecionam intensidade do aqui e agora para a fruição
muitas camisas de seus projetos. Afinal, to- do que o momento pode oferecer diante de
das elas podem vir a servir como atestados uma realidade que se faz precária e perce-
de bons antecedentes que saciem apetites bida como provisória. Ele não quer extrair o
dos agentes do controle. futuro do seu presente, se deixa conduzir na
e pela deriva. O primeiro, propositado, pa-
Os percursos realizados não são caminhos
rece querer cumprir uma saga dramática,
lineares, naturais ou previsíveis, mas pressu-
com percalços, sofrimento, resignação e su-
põem obstáculos, interrupções e até mes-
peração. O segundo, desmesurado, parece
mo regressos. É a faculdade de Direito que
se propor a encenar uma sina trágica, com
precisa ser interrompida pela impossibilida-
desgovernos, excessos, extravagâncias e fa-
de do pagamento da mensalidade. É o cur-
talismo. Personagem dramático ou trágico:
sinho gratuito que não pode ser frequenta-
pode acontecer de um e outro sobrar ou
do sem que haja um nivelamento anterior
morrer. Em uma realidade de cercas itine-
a seus conteúdos, práticas e linguagens. É
rantes, sob medida para cada nova dúvida
a competição esportiva que pode ser aban-
de envolvimento com o crime, a distância
donada por falta de equipamentos pessoais.
entre salvação e danação é atravessada pela
É a formação escolar que não segue ano a
correnteza do imponderável de um tiroteio
ano, pois pode ser preciso largar os estudos
não avisado ou de uma “bala achada”, mes-
e arrumar um trabalho, formal ou informal,
mo lá no mundo mais tranquilo e favorável
por conta da perda de um parente, víti-
do projeto social.
ma da violência. Experimenta-se tudo isso
como uma tensão que produz inseguranças Medo de morrer, medo de sobrar e ter “mui-
sobre a reprodução material e simbólica. Ao ta resistência para sobreviver”, mantendo-
mesmo tempo que os jovens de projeto se -se alerta à próxima desviância a ser feita
ocupam de apreender novos padrões de nas expectativas sociais de que haveria al-
sociabilidade, eles necessitam tomar cui- gum envolvimento com o crime. Mesmo
dado redobrado com a própria vida, ao al- quando o medo não se faz um conselheiro
cance da desconfiança dos mercadores da à moda de Leviatã, ele está lá na favela, con-
morte que disputam a favela. Eles também cretamente presente, a fazer lembrar dos
precisam manter-se vigilantes para resistir riscos que podem, a qualquer momento,
às pressões do imediatismo, do consumo transformar um pequeno ato em grandes
conspícuo e das teias cambiantes do envol- fatos consumados. Medos tangíveis. Medos
vimento com o crime. próximos, logo ali dentro da rotina. Dormir
e acordar com um bagulho desses: o medo
O jovem que se pretende (des)envolvido
de sair e não poder voltar para casa, o medo
tem como um de seus maiores desafios
de ter a casa invadida, o medo de não ser
tentar correr contra o tempo para cavar e
socorrido pelo SAMU, o medo de perder o
consolidar as oportunidades, superando a
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pouco que se tem, o medo de ter um pa- lidade no mundo do trabalho. Já o “medo
rente desaparecido, o medo de ser rotulado de morrer” reporta-se ao temor de ter uma
como um traíra. Muitos receios que pon- morte precoce provocada pela “violência ur-
tuam os deslocamentos dos jovens de fave- bana”.
la, medos sentidos de gente de dentro e do
Medo de sobrar e medo de morrer, com ins-
pessoal de fora. Medos que motivam cálcu-
crições distintas no imaginário social das
los sobre como manejar as tramas do envol-
juventudes, parecem trazer como lugar co-
vimento. Medo das consequências do jogo
mum à experimentação contemporânea e
acusatório: estar envolvido, ficar envolvido e
globalizada da exclusão e de suas expres-
ser envolvido.
sões de insegurança. Um e outro medo,
Assumir a condição de jovem de periferia ou num recorte mais estrutural, aponta para a
jovem de favela não é postura unívoca. Uma uma modernidade líquida, na qual torna-se
gama de estilos, jeitos de ser, de se produzir possível e rentável a fabricação de vidas des-
e se reproduzir estão a disposição e revelam perdiçadas, como gostaria Bauman (2005).
as juventudes, em seu plural, como um mo- Indivíduos cuja existência pode ser baratea-
saico em constante construção, reordena- da e tornada supérflua. Seja por uma dis-
mentos e recomposições. Os signos do ser plicência do progresso econômico que, de
jovem são também transfronteiras e rea- forma não planejada, produz baixas colate-
propriados em sua significação local. Estes rais. Seja por uma dispensa intencional da
deslocamentos entre o local e o global, e proteção da lei pelas agências públicas que
suas mimeses, se encontram estampados informam que certos sujeitos não seriam al-
nas estéticas e nas atitudes dos jovens de vos legítimos da seguridade social. Seja por
favelas que “estão ligados”, assim como os uma sanção dos atores da construção da or-
jovens do asfalto, aos anúncios virtuais dos dem que identificam que certos indivíduos
múltiplos mundos transmitidos pelas telas seriam irrecuperáveis. Vidas que podem ser
de seus smartphones. Os jovens da geração descartadas por alguma inadequação aos
digital vivenciam, em seus distintos modos requisitos das políticas públicas, às exigên-
significacionais, a angústia de estarem, ain- cias mutantes do mercado e as razões de
da que interinamente, unplugged, desa- segurança do Estado.
tentos ou desconectados de alguma rede
Se para as juventudes há diferenciações en-
social, algum grupo virtual de afinidade, al-
tre o “medo de sobrar” e o “medo de morrer”
guma zueira. Eles experimentam a ansieda-
(Novaes, 2006), para as juventudes de fave-
de de acontecerem “perdidos”, esquecidos
las, inseridas ou não em projetos sociais, tais
e invisíveis, mesmo que provisoriamente.
medos podem levar à promoção de diferen-
Mas, além disso, os jovens cariocas apontam tes estratégias de conduta diante do medo
o “desemprego” e a “violência” como os pro- de estudar e, ainda assim, não conseguir
blemas que mais os preocupam. E, sem re- emprego ou de não conseguir durar no tra-
servas, denunciam seus principais medos: o balho. A experiência dessas juventudes com
“medo do futuro” e o “medo de morrer”. Tal o trabalho é também associada à circulação
como revelado por Novaes (2006), o medo e à mobilidade pela cidade. Se os pequenos
do futuro aproxima-se do “medo de sobrar”, empreendimentos localizados no interior
de ficar de fora, de não ter serventia ou uti- das favelas têm pouca capacidade de sus-
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familiar em sua ascensão social, as demons- prestaram depoimento por homicídio qua-
trações circunstanciais de simpatia com lificado. Dois rapazes e uma menina, agora
os rapazes do tráfico e de reserva com os “mais uns na estatística”, elevaram o núme-
homens da polícia. Esta forma de manejar ro de mortes causadas por intervenção poli-
com os medos de sobrar e de morrer põe cial na cidade26.
em relevo a encenação de (des)envolvimen-
“O Rio mergulhado na guerra” é uma me-
tos como um modo de captar recursos para
táfora repisada sobre mais estes episódios
acreditar no futuro do presente vivido.
que desencadeiam disputas em torno de
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS seus sentidos. As mortes foram denomi-
nadas como “covardia”, mas não por todos
Maio de 2017. Momento de finalização da
e nem por muito tempo. Afinal, estar em
primeira fase do trabalho de campo. Dois
guerra contra o crime é viver excepcionali-
meses antes, um vídeo circulou no What-
dades como rotina e se deixar convencer de
sApp, mostrando a execução de dois rapa-
que é necessário um governo continuado
zes perto de uma escola municipal na Zona
de exceção para os outros de nós, lá longe
Norte do Rio25. Deitados no chão, um de-
nas “áreas conflagradas”, ali nas “comunida-
les ainda tentou se levantar antes de ser
des de risco”, enfim, nos territórios-favela.
alvejado mortalmente pelo policial. O ato
surpreendeu e embaralhou as vozes dos vi- Os rapazes mortos mobilizaram falas conde-
zinhos que filmavam a cena de uma jane- natórias sobre suas credenciais identitárias,
la indiscreta. Quanto pior a experiência do cuja potência de sua reverberação pode ser
real, maiores as possibilidades de edição sentida pela ausência de outros adjetivos
e disseminação virtuais. O cenário era de negativos sobre sua condição já suficiente
mais um confronto entre policiais militares de “bandidos”. Uma acusação totalizadora
e suspeitos que já tinha produzido uma víti- que funciona como chancela para a execu-
ma naquela manhã: Maria Eduarda, 13 anos, ção extrajudicial como ação policial consen-
baleada dentro da mesma escola enquanto tida, dada de forma explícita e informalmen-
corria dos tiros. A morte da adolescente cau- te. É claro, para aqueles categorizados como
sou revolta na internet por tratar-se de “um irrecuperáveis, sem chance de cura. Para os
inocente”. As mortes dos jovens, nem tanto. quais seria imperioso como terapia menos
Os seus marcadores sociais podiam indicar uma polícia ostensiva e mais uma polícia os-
algum “envolvimento com o crime”. Na dú- tentatória de seu poder beligerante.
vida, se são “marginais” ou não, os discursos
Duas vidas, alguma dor dos próximos e mui-
temerosos mantêm-se leais à engrenagem
tos likes de desconhecidos na rede social. As
do envolvido-com. Trazem à cena da lingua-
práticas de limpeza social fazem parte do
gem conjecturas sobre um passado ideali-
repertório do jogo publicitário e plebiscitá-
zado (“eles foram envolvidos”), um presente
rio das opiniões instantâneas em rede, esti-
ameaçado (eles podiam estar se envolven-
muladas a saírem do armário pelo agrava-
do) ou um futuro determinado (eles serão
mento intencional do temor feitos, no mais
envolvidos). Os policiais militares, flagrados
das vezes, por atores estatais. Estas são vis-
na execução, foram presos no mesmo dia e
tas como mais produtivas diante da “esca-
Ver:
25
http://extra.globo.com/casos-de-policia/pms-flagrados-exe- Sobre as taxas de vitimização letal de cidadãos e policiais no Rio de
26
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