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As Vozes Do Mundo Um Breve Panorama
As Vozes Do Mundo Um Breve Panorama
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1 O projeto dirigido pelo etnomusicólogo Hugo Zemp gerou um CD triplo Les Voix du Monde, Une Anthologie
des Expressions Vocales produzido em 1996 cujo conteúdo foi extraído do material das expedições sonoras
promovidas pelos dois institutos. Alguns exemplos musicais presentes no CD podem ser ouvidos no
Youtube gratuitamente (indicados nas referências NR deste artigo quando existente) e também no site da
Indiana University (http://www.cs.indiana.edu/rhythmsp/archive_promo.html).
guturalidade. “A voz escapa às apreensões parciais das várias disciplinas e técnicas que dela
se ocupam: fonética, literatura oral, acústica musical, canto, etnomusicologia,
fonoaudiologia e psicanálise”, explica Elisabeth Travassos (2008), em seu importante artigo
Objeto fugidio: voz e musicologias. E Zumthor complementa o pensamento da etnomusicóloga:
A ciência da voz passa por perguntas muito difíceis: como classificá-la? Como
descrevê-la? Como situá-la? Como distinguir o racional do emocional? Como definir os
aspectos subjetivos, se eles são relativos?
Escolhi trechos de algumas expressões vocais2 que mostram a diversidade e
algumas conexões entre cultura e voz.
O canto aspirado do homem do Burundi nos mostra uma voz semifalada que usa a
respiração como recurso timbrístico. Fica na fronteira entre o suspirado, o falado e o
cantado e está completamente sincronizada com a harpa inanga, que dá um importante
apoio rítmico. É uma performance para entretenimento de poucas pessoas da corte real.
Em geral, os temas são relacionados a fatos históricos, épicos pastorais contados de forma
moralizante ou bem-humorada. Pertence à categoria „Voz Mesclada com Respiração‟, que
também contempla outros exemplos como o canto dos tuaregues do deserto do Marrocos
2 Alguns exemplos musicais presentes no CD podem ser ouvidos gratuitamente no Youtube (indicados nas
referências NR deste artigo, quando existem) e também no site da Indiana University
(http://www.cs.indiana.edu/rhythmsp/archive_promo.html).
3 Faixa 13 do CD Burundi: musiques traditionelles. Ocora Radio France, 1988, C559003.
e os cantos de cura de Madagascar, cuja hiperventilação leva ao transe. Não é possível
afirmar categoricamente que esse tipo de técnica está relacionado apenas ao transe ou às
práticas xamânicas de cura, mas é aí que mais se as observa, pois, mais do que projetar o
som externamente, a função da respiração forçada seria a de criar um estado mental
alterado, dando subsídios para uma interação com os espíritos que porventura venham.
O canto difônico é uma técnica vocal centro-asiática que toma como base um som
fundamental (harmônico 1) que gera melodias usando os harmônicos ultra-agudos. Essa
técnica – também conhecida como overtone – explora os harmônicos modificando o
formato da boca e a posição da língua com vogais que se alternam. O som que excita essa
emissão pode ser externo (como a gaita de boca [jews harp], ou um arco, ou até mesmo um
inseto!) ou interno, usando, neste caso, as próprias cordas vocais, como fazem os cantores
da Mongólia, da Sibéria, de Tuva e também do povo Xhosa, na África. O exemplo que
ouvimos é de Tuva, um minúsculo país da Ásia Central, encravado entre a Rússia e a
Mongólia, onde o gênero musical khoomei (pronuncia-se “kulmei”) significa literalmente
“garganta”. Antes restrita às montanhas centro-asiáticas – e proibida pelo governo
soviético –, essa técnica milenar ganhou o mundo e é utilizada por muitos grupos de
música tradicional e até de rock tuvano (como o grupo Huun Huur Tu 4) que se apresentam
em festivais. Em outros países europeus, algumas pessoas têm desenvolvido o canto
difônico como terapia ou como um recurso extra na performance.5 O etnomusicólogo
vietnamita Tran Quang Hai pesquisou diversas formas do canto difônico no mundo e
adquiriu uma extraordinária habilidade a reproduzir essas diferentes técnicas, que podem
ser vistas em diversos vídeos no Youtube em que ele usa um aparelho (sonagram) que
Na maioria dos casos, esse recurso está relacionado ao religare, palavra latina que
significa “religação” [com o divino], relação dos seres humanos com o que eles consideram
sagrado, espiritual, santo ou divino.
Ouçamos três exemplos que fundem o canto e a fala de diferentes formas: uma
recitação corânica, uma declamação do texto indiano Rig Veda e um excerto de um sermão
de uma reverenda estadunidense. Entre eles, há um ponto comum: a função religiosa. E
apenas isso, pois os resultados sonoras são completamente diferentes.
Recitação corânica
6 http://www.youtube.com/watch?v=uFJQfe0UVHE&feature=related
apresenta recursos potentes, pois, antigamente, esses oradores ficavam nas torres das
mesquitas e tinham que ser ouvidos por toda a cidade sem o auxílio de amplificadores. No
entanto, para os muçulmanos, o qira’ah é uma apenas oração, e não música. A palavra é a
essência plena que dá significados aos mandamentos de Alá. O significado literal da palavra
qira’ah é “leitura”, mesmo porque o Islã, na sua origem, condena o uso da música nas
cerimônias religiosas (Bohlman, 2002, p. 56). Já o termo “música” (musiqa), na história da
música árabe, está relacionado ao mundo externo e pagão, onde são utilizados
instrumentos musicais, marcando uma distinção entre a música estritamente vocal profana
(ghina‟) e a instrumental, para entretenimento das pessoas.7 O que soa como música para
ouvidos ocidentais é inquestionavelmente secundário para efeitos de projeção do texto e da
expressão religiosa no contexto muçulmano (Bohlman, 2002, p. 57).
Rig Veda
Mito contado por Iawakedi - Faixa 6 do CD do livro Why Suyá Sing (Seeger)
Ouvindo o mito Suyá14 do Xingu contado por Iawakedi e gravado pelo antropólogo
e etnomusicólogo Anthony Seeger, deparamos um misto entre canto e fala com uma
cadência sonora peculiar. Seeger descreve com detalhes os gêneros vocais dos Suyá e seus
diferentes aspectos. Um deles, a narrativa mítica, ganha sílabas alongadas que garantem ao
fraseado um efeito especial, além de proporcionar um contorno melódico. A performance
de Iawakedi apresenta formas arcaicas da fala a que o tom de voz e o fraseado cadenciado
de cantores/narradores experientes garantem uma boa audiência.
One of the obvious differences among genres is the phrasing. As speech
forms (kapérni) become more and more public, the phrases become
longer and more regular – hence the name “slow speech” (kapérni
kahrido). In addition to their length, the oratorical phrases are more
melodic than everyday speech. Subject changes are also marked by
lengthening a syllable, providing a cadence (Seeger, 2004, p. 48).
Faixa 2 do CD Ballads and Festivals in Rumania, Collection CNRS; Musée de l´Homme, Le chant du monde
13
15 Também conhecido como Mang‟anja, o Maravi (Nyanja) é um povo do sul do Malawi que vive
principalmente em Chikwawa, no vale do rio Shire (N.A.).
16 Faixa 1 do CD B Opeka Nyimbo. Musiker-Komponisten aus dem südlichen Malawi, gravado por Gerhard Kubik,
1980. Museum Collection Berlin, MC15 e também faixa 33 do CD 1 Les Voix du Monde, Une Anthologie des
Expressions Vocales. Le Chant du Monde e Harmonia Mundi, Alemanha, 1996.
Esses exemplos mostram o quanto a voz se molda às necessidades da expressão
humana, seja ela coletiva ou individual, e como a criatividade e o ambiente conduzem a
possibilidades variadas.
Ornamentação
17O mawwal é um termo genérico que designa vários tipos de poemas em dialetos que podem ser declamados
ou cantados. É costume preceder o texto com uma melodia improvisada sobre expressões que sempre se
repetem. Há mawwal políticos, de amor feliz, de sofrimento, outros com narrativas longas que fazem parte
tanto do repertório erudito ou rural. É comum também o jogo de palavras codificadas que fazem a alegria da
plateia ao tentar decifrá-los (Lagrange).
18 “A ornamentação é um vocabulário, um conjunto de técnicas de emissão sonora, vocal ou
instrumental, de jogos de timbre, de ritmo, de recheio do fraseado, de recarga sonora formando
motivos utilizáveis à vontade” (Lagrange, 1997, p. 97.
Dhrupad – Gundecha Brothers Dhrupad vocal performance
(http://youtu.be/Y5DOy3qkeDU)
19 O termo dhrupad é a junção de duas palavras em sânscrito: dhruva (fixo) e pada (palavras ou poema)
(http://spicmacay.com/articles/dhrupad). Fixo, por se tratar da forma vocal mais antiga e “pura” da Índia e
por sua grande austeridade. Dos templos, o dhrupad foi parar nas ruas, cantado pelos menestréis errantes, e
nas cortes reais, até chegar às salas de concerto. A apresentação do dhrupad segue três momentos: o alap
(elaboração do raga), o jor (variações vocais sobre uma base rítmica) e o jhala (vocalização acelerada). Há eno
site http://www.dhrupad.info/, a música está em http://www.myspace.com/dhrupad1.
20 No Youtube, há vários vídeos com o professor da Indiana University School of Music Andrew Dawson,
trompetista e estudioso do didjeridoo australiano. Ele explica as diferentes formas de tocar trompete: como
produzir o som básico, fazer a respiração circular, criar padrões rítmicos, mudar as notas e tocar determinadas
canções com a boca e os lábios (http://youtu.be/HBaiiL17ai0; http://youtu.be/tOZPPlPvgfo;
http://youtu.be/b8pFwSCEbAQ).
21 Ver vídeo Aka Peoples Music, Indigenous Africa, Hindewhu Flute/voice (http://youtu.be/TCmC8MK1z1k).
Polifonia vocal dos pigmeus na floresta da África Central
22 Arom Simcha gravou os pigmeus Babenzelé numa savana do Norte nos anos 1960, revelando ao mundo
europeu uma forma de fazer música até então nunca ouvida. Louis Sarno e Bernie Krause também fizeram
gravações importantes da música dos pigmeus nos anos 1990 (N.A.).
23 De acordo com o dicionário Oxford, yodel é derivada da palavra alemã jodeln, que designa uma forma de
25O nome do grupo é uma homenagem a Michelangelo “Mialinu” Pira, antropólogo e estudioso da cultura de
Bitti na Sardenha.
Bibliografia
ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. Belo Horizonte: Villa Rica, 1965.
BOHLMAN, 2002. World Music. A very short introduction. New York: Oxford, 2002
FARUQI, Lois Ibsen al. An annotated glossary of arabic musical terms. Connecticut,
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FARMER, Henry George. A history of arabian music (to the 13th century). London:
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HERR, Martha. “Um modelo para interpretação de canção brasileira nas visões de Mário
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Disponível em:
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em: 8 ago. 2011.
KARPF, Anne. The human voice the story of a remarkable talent. London:
Bloomsbury Publishing, 2006.
SARNO, Louis. Bayaka The extraordinary Music of Babanzele Pygmies. New York:
Ellipsis Arts, 1995 1 livro e 1 CD.