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Steven Best
Essa situação inicial mudou drasticamente em 1660, quando ainda mais escravos
africanos foram trazidos para as colônias, se deparando com a crescente necessidade por
trabalhos na lavoura. Conforme a escravidão se tornava crucial para a economia
capitalista e a economia de plantation organizada em torno do tabaco, açúcar e algodão,
colonos ingleses construiam uma ideologia racista para legitimar a subjulgação violenta
daqueles que são iguais a eles aos olhos de Deus e sobre os principios das leis naturais.
Sobrevivendo ao trauma da captura e a viagem miserável, homens, mulheres e crianças
africanas eram leiloados, marcados a ferro e vendidos para senhores de escravos, que
enriqueceram comercializando, reproduzindo e explorando os seus corpos. Sem
nenhuma consideração pelos laços sanguineos ou ligações emocionais, familias de
negros eram separadas. Despidos de seus direitos, dignidade e humanidade, esses
cidadãos africanos e seus milhões de descendentes americanos foram brutalizados no
sistema escravocrata mais perverso do planeta, cujo legado imundo continua a dominar e
envenenar os EUA.
Considerando que muitos negros lutaram ao lado dos britânicos, que lhes prometeram
liberdade, outros lutaram corajosamente ao lado dos patriotas e foram cruciais para sua
vitória. Quando a guerra terminou em 1783, as relações sociais e as visões raciais estavam
em grande fluxo: Dezenas de milhares de escravos fugiram para a Inglaterra, Canadá,
Flórida espanhola ou terras indígenas. Muitos senhores de escravos do Norte, que
abraçaram os valores igualitários da nação, independentemente da raça, libertaram seus
escravos. Em 1783, Massachusetts se tornou o primeiro estado a abolir a escravidão e de
1789 a 1830 todos os estados ao norte de Maryland gradualmente o fizeram também. Ao
mesmo tempo, no entanto, a escravidão criou raízes mais fortes nos estados do Sul, que
se tornanaram cada vez mais influentes econômica e politicamente.
A nova nação estava em uma encruzilhada moral decisiva, no que diz respeito à questão
escravocrata e ao verdadeiro significado de seus professos valores democráticos e
cristãos. A escravidão poderia acabar, aderindo a seus nobres valores, ou poderia
perpetuar um sistema perverso de escravidão e se tornando uma não democracia, mas
uma hipocrisia americana. Tragicamente, o imperativo do lucro triunfou sobre o
imperativo moral. Embora o Norte continuamente cedeu aos interesses escravocratas
sulistas, as duas culturas tomaram rumos diferentes, como placas tectônicas em
movimento. Em vez de se unirem como uma nação, honrando os valores progressistas
que os levaram à guerra, os EUA implodiram em contradições internas e em 1861
embarcaram em uma guerra sangrenta contra si mesmos.
O rugido do abolicionismo
Com a liberdade negada e a justiça traída, tanto os negros livres quanto os escravizados
intensificaram sua resistência à opressão branca. Cada vez mais, os opositores da
escravidão mudavam das táticas reformistas e moderadas para as demandas pela
abolição total e imediata do sistema escravocrata e, assim, na década de 1830, nascia o
movimento abolicionista..
Junto com a Revolução Haitiana de 22 de agosto de 1791, pela qual escravos negros se
insurgiram violentamente os invasores espanhóis e britânicos, para firmar o Haiti como
uma república negra livre, estas visões sobre a possibilidade de revoltas e violência
colocaram em pânico os proprietários de escravos dos EUA. Seus medos eram
justificados, pois os negros em todo o país tramavam e realizavam rebeliões,
conquistando com balas, facões ou com fogo a justiça que lhes era negada nos tribunais.
Enquanto rebeldes como Gabriel Prosser e Denmark Vesey foram traídos e executados
antes que pudessem organizar insurreições em grande escala, outros como Nat Turner e
John Brown (um cristão branco), derramaram o sangue de muitos proprietários de
escravos antes de serem capturados e executados pelo estado, e ressurgiram como heróis
populares inimigos da escravidão.
Outras vozes influentes incitaram militância e ação direta sem violência. William Lloyd
Garrison, um servo branco contratado, deu início a um importante boletim abolicionista,
The Liberator [o Libertador], em 1º de janeiro de 1831, que durou trinta e cinco anos. Contra
aqueles que pedem mudanças lentas, graduais e moderadas, Garrison alegou: “Eu não
desejo pensar, falar ou escrever com moderação... Diga a um homem cuja casa está em
chamas para dar um alarme moderado; diga-lhe para resgatar moderadamente sua
esposa das mãos do estuprador; diga à mãe para libertar moderadamente seu filho que
está caído no fogo; mas não me incite à usar moderação em uma causa como esta! ''
Depois que a Guerra Civil terminou em 1865, o Congresso aprovou as Décima Terceira,
Décima Quarta e Décima Quinta Emendas, banindo assim a escravidão e exigindo
tratamento igual para negros e brancos. No final da década de 1880, os negros em todo o
país eram formalmente “livres”, mas na realidade continuaram presos em sistemas
racistas de violência, exploração e pobreza. Apesar dos avanços durante o breve Período
de Reconstrução, os Estados Unidos reconstituíram a discriminação racista de novas
maneiras assustadoras. À medida que os EUA se tornaram um sistema de apartheid
organizado em torno das leis de segregação de Jim Crow, a violência contra os negros
aumentou dramaticamente por meio de linchamento públicos e da Ku Klux Klan.
Somente após as lutas pelos direitos civis das décadas de 1950 e 1960 e a Lei dos Direitos
Civis de 1964 a brutalidade diminuiu, os muros do apartheid caíram e um progresso social
significativo se tornou possível.
O Novo Abolicionismo
Falamos de libertação animal da mesma forma que a libertação humana. Não se pode
“escravizar”, “dominar” ou “explorar” objetos físicos, e eles também não podem ser
“libertados”, “soltos” ou “emancipados”. Esses termos se aplicam apenas a formas de vida
orgânicas que são sencientes - a seres que podem experimentar prazer e dor, felicidade
ou sofrimento. Independentemente das diferenças de espécie e das tentativas arbitrárias
de privilegiar as capacidades humanas da razão e da linguagem sobre as qualidades
únicas da vida animal, os animais humanos e não humanos compartilham as mesmas
capacidades evolutivas de alegria ou sofrimento e, nesse sentido, são essencialmente
idênticos ou iguais.
Fundamentalmente, a ética exige que ninguém cause sofrimento a outro ser ou impeça a
liberdade e a qualidade de vida de outrem, a menos que haja alguma razão válida e
convincente para fazê-lo (por exemplo, autodefesa). De acordo com toda a volumosa
literatura científica sobre a complexidade das emoções, inteligência e vida social dos
animais, a capacidade de um ser para a senciência é uma condição necessária e
suficiente para ter direitos básicos.
Dessa forma, assim como os animais podem ser escravizados, eles também podem ser
libertados; na verdade, onde os animais são escravizados, os humanos sem dúvida têm o
dever de libertá-los. Respondendo a este chamado de consciência e dever, grupos de
libertação animal surgiram em todo o mundo com o objetivo de libertar animais
escravizados dos sistemas de exploração, atacando e desmantelando a base econômica e
material da opressão e desafiando a antiga mentalidade de que os animais existem como
recursos, propriedade ou servos para os humanos..
Sequestrar negros de seu ambiente nativo e de sua terra natal, amarrando correntes em
seus calcanhares, enviá-los em porões de navios para cruzar oceanos por semanas ou
meses sem se importar com seu sofrimento, marcando sua pele com ferros em brasa
para marcá-los como propriedade, leiloando-os como servos, separando membros da
família que choram em desespero, criando-os para o serviço e trabalho, explorando-os
para o lucro, espancando-os em acessos de ódio e raiva e matando-os em grande escala -
todos esses horrores e incontáveis outros infligidos aos escravos negros começaram com
o exploração de animais. Desenvolvido pela tecnologia e impulsionado pelos imperativos
de lucro capitalista, a indiscrivelmente cruel violação das emoções, sentimentos, mentes e
corpos dos animais continua hoje com a tortura e o assasinato de bilhões de animaisem
fazendas de peles, fazendas industriais, matadouros,laboratórios de pesquisa e outros
ambientes aterrorizantes.
Já é tempo de questionar não somente o crime de tratar um negro, judeu ou qualquer
outra vítima humana de violência “como um animal”; em vez disso, devemos também
analisar a suposição inquestionável de que é aceitável explorar e aterrorizar os animais.
Enquanto a mentalidade racista cria uma hierarquia de superior / inferior com base na cor
da pele, a mentalidade especista rebaixa e objetifica os animais ao dicotomizar a
continuidade evolutiva em vida humana e não humana. Assim como o racismo se origina
de uma odiosa supremacia branca, o especismo provém de uma violenta supremacia
humana, a saber, a crença arrogante de que os humanos têm o direito natural ou
concedido por Deus de usar animais para qualquer propósito que planejem.
É claro que, assim que o Homo erectus começou a construir ferramentas há quase três
milhões de anos, os hominídeos tem matado e se apropriado de animais para obter força
de trabalho, comida, roupas e inúmeros outros recursos, e a exploração animal tem sido
crucial para as economias humanas. Mas quaisquer que sejam as razões legítimas que os
humanos tivessem para usar animais para sobreviver em sociedades passadas de caça e
coleta, economias de subsistência e outras culturas de baixa tecnologia, essas razões
agora estão obsoletas em um mundo moderno repleto de alternativas ao uso de animais
para alimentação, roupas e pesquisas médicas. Além disso, por mais importante que a
exploração de animais possa ser para as economias modernas, as desculpas utilitaristas
para escravizar animais são tão inválidas quanto os argumentos usados para justificar a
escravidão humana ou a experimentação com seres humanos em Auschwitz ou
Tuskegee. Os direitos superam os apelos utilitaristas: sua própria função é proteger os
indivíduos de serem apropriados por outrem ou para um "bem maior".
O Subterfúgio do Bem-estarismo
Não era incomum um racista argumentar que a escravidão era benéfica para os negros
ou que eles eram biologicamente incapazes de uma vida livre. Da mesma forma, os
empresários de fazendas industriais afirmam que porcos, bezerros e galinhas estão em
melhor situação em condições de confinamento total do que em seu habitat natural, já
que suas "necessidades são atendidas" em "ambientes controlados". Criadores de animais
e adestradores de circo afirmam que seus animais vivem melhor em confinamento do
que em ambientes selvagens, onde estão sujeitos a predadores e outros perigos.
Os verdadeiros obstáculos ao progresso moral não são os sociopatas que queimam gatos
vivos, pois eles são uma minoria extrema, cujas ações são quase unanimemente
consideradas bárbaras. A verdadeira barreira para a liberação animal é a orientação bem-
estarista e sua linguagem de "cuidado humano", "tratamento responsável" e "bondade e
respeito". Todas as instituições de exploração animal - incluindo as fazendas de peles e
abatedouros industriais - falam essa linguagem, e os animais sob seus “cuidados” são
rotineiramente torturados de maneiras horríveis. O bem-estarismo animal é traiçoeiro.
Isso leva as pessoas a pensar que os animais em cativeiro são saudáveis e felizes. Promove
a supremacia humana e tenta disfarçar o erro fundamental de explorar animais com a
linguagem ilusória de "bondade", "respeito" e "tratamento humano". Tentando mascarar e
higienizar o mal da opressão,o bem-estarismo altera a linguagem, corrompe o significado
e é fundamentalmente Orwelliano e enganoso.
Até o momento, não há Nat Turners e John Browns ativos no movimento de libertação
animal, mas eles podem estar prestes a aparecer e suas ações seriam mais que justas.
Também não estariam sem precedentes. De acordo com o evangelho da luta: sem justiça,
sem paz.
Assim como os abolicionistas do século XIX visavam despertar as pessoas para a grande
questão moral da época, os abolicionistas do século XXI se esforçam para esclarecer as
pessoas sobre a relevância e a importância do sofrimento e exploração animal. Assim
como os negros do passado levantaram questões fundamentais sobre o significado e os
valores modernos da "democracia" estadunidense, a discussão contemporânea sobre a
escravidão animal provoca um exame crítico da psique, humana danificada pela
violência, arrogância e alienação, e a necessidade urgente de uma nova ética e
sensibilidades, enraizadas no respeito por todas as formas de vida.
A libertação animal não é um conceito estranho ao mundo moderno; ao contrário, baseia-
se nos valores éticos e políticos mais progressistas que os ocidentais elaboraram nos
últimos duzentos anos - igualdade, democracia e direitos -, na medida que os levam em
sua conclusão lógica. Considerando que especialistas em ética como Arthur Kaplan
argumentam que os direitos são banalizados quando estendidos aos animais, é muito
mais acertado ver esse movimento como o resgate dos direitos de uma limitação
arbitrária e prejudicial de seu verdadeiro significado.
Com base no ímpeto, na consciência e nas conquistas dos abolicionistas e das sufragistas
do passado, a luta dos novos abolicionistas pode culminar em uma Declaração dos
Direitos (dos Animais). Isso envolveria uma emenda constitucional que proíbe a
exploração dos animais e a discriminação com base em espécies, reconhece os animais
como “pessoas” em um sentido substantivo e concede a eles os direitos relevantes e
necessários à sua existência - os direitos à vida, à liberdade e possuirem felicidade. Em
2002, a Alemanha deu o primeiro passo crucial nessa direção ao adicionar as palavras “e
animais” a uma cláusula de sua constituição que obriga o Estado a proteger a dignidade
dos humanos.
¹ Nome dado aos primeiros colonos puritanos que fundaram em 1620 a colonia de
Plymounth. (N. da E.)
² O autor se refere as armas utilizadas nos “abates humanitários”. Trata-se de uma pistola
que lança um projetil direto no cerebro dos animais (N. da E.)