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Título do capítulo
SOCIAIS NO BRASIL
DOI -
Volume -
Série -
Cidade Rio de Janeiro
Editora Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
Ano 2019
Edição -
ISBN 978-85-7811-353-7
DOI -
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CAPÍTULO 1
1 INTRODUÇÃO
Como tema que acompanhou desde sempre a história das ciências sociais, a
desigualdade social foi e continua sendo definida de maneira muito variada,
dependendo dos propósitos analíticos e políticos de quem define. No final do
século XX, as abordagens neoclássicas alcançaram especial relevância tanto no campo
disciplinar da economia quanto nas principais organizações internacionais, como as
agências de desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU) e o World
Bank. Nesses contextos, privilegiou-se uma definição específica de desigualdades,
que ainda hoje continua muito influente no âmbito das agências internacionais
e públicas. Segundo ela, desigualdades sociais referem-se às diferenças observadas
nas chances individuais de acesso e posse de bens socialmente valorizados. Assim,
as diferenças individuais de renda, estudadas dentro das fronteiras nacionais e
medidas na maior parte dos casos pelo índice de Gini, tornaram-se a forma, por
excelência, de abordá-las.
Essa definição restrita do que são desigualdades apresenta vantagens práticas
na medida em que oferece uma base mensurável para comparações entre indivíduos
e sociedades nacionais. No entanto, não leva adequadamente em conta outras
dimensões cruciais, captadas por conceituações mais complexas. Objeções recentes
a essa definição podem ser classificadas em quatro grupos distintos, conforme o
aspecto específico privilegiado, a saber: i) desigualdades de quê; ii) desigualdades
entre quem; iii) desigualdades quando; e iv) desigualdades onde.
As mudanças observadas nas últimas décadas na América Latina, nos países
dirigidos por governos de esquerda ou de centro-esquerda – a chamada maré rosa –,
representam um contexto privilegiado para analisar a evolução das desigualdades a
partir das ampliações do seu conceito, segundo estas quatro dimensões.2
1. Professor no Instituto de Estudos Latino-Americanos e no Instituto de Sociologia da Freie Universität Berlin (Alemanha).
2. Normalmente, o ciclo de domínio da centro-esquerda na América Latina, em seu conjunto, é referido na literatura
como pink tide – ou maré rosa – e compreende os seguintes países e períodos: Argentina (2003-2015), Bolívia
(desde 2006), Brasil (2003-2015), Chile (2006-2010, 2014-2018), Equador (2007-2017), El Salvador (2009-2019),
Nicarágua (desde 2007), Paraguai (2008-2012), Peru (2011-2016), Uruguai (desde 2005) e Venezuela (desde 1999).
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na implementação de políticas públicas
2 DESIGUALDADES E INTERDEPENDÊNCIAS
convencional, são também decisivas para determinar as distâncias nas condições de vida
dos diferentes grupos sociais: as assimetrias de poder e as desigualdades socioecológicas.
As desigualdades de poder podem ser definidas como as diferentes possibilidades
que indivíduos ou grupos têm de exercer influência nas decisões que afetam
suas trajetórias e convicções pessoais, materializando-se, ainda, na distribuição
assimétrica dos direitos políticos e sociais. As assimetrias de poder apresentam
obviamente um vínculo claro com as desigualdades socioeconômicas. Todavia, elas
mostram uma outra dimensão que não está refletida na posição socioeconômica
individual – trata-se das desigualdades relacionadas ao nível de prevalência dos
direitos de cidadania e esquemas de proteção social.
Sociedades que dispõem de um estado de bem-estar forte e amplo, capaz
de oferecer bons serviços públicos de educação, saúde ou transporte, contribuem
enormemente para diminuir o impacto das desigualdades socioeconômicas sobre
as condições de vida existentes. Isto é, ainda que tenham nível de renda distintos,
cidadãos de uma sociedade com um estado de bem-estar consolidado podem ter
condições de vida similares (Kreckel, 2004; Therborn, 2013). Em contraste, os
Estados que investem pouco em políticas sociais ou concentram suas políticas nas
transferências de renda para os pobres contribuem pouco para reduzir as disparidades
entre as condições concretas de vida de seus cidadãos (Lavinas, 2013).
As desigualdades socioecológicas, por sua vez, referem-se às diferenças de acesso
a bens ambientais, como água potável, ar limpo, parques etc., e às possibilidades
desigualmente distribuídas para a proteção contra riscos ambientais, como desastres
naturais e perigos produzidos pela ação humana (poluição, irradiação etc.). Como os
bens ambientais são amplamente mercantilizados nas sociedades contemporâneas e
os riscos ambientais podem também ser externalizados e até mesmo exportados, as
desigualdades socioecológicas não são um produto linear da distribuição geográfica
“natural” desses bens e riscos ambientais. Pelo contrário: estudos recentes neste
campo defendem a ideia de um “nexo coconstitutivo” entre natureza e sociedade,
de sorte que a forma como a natureza “é produzida, conhecida, apropriada,
representada e transformada socialmente é uma das variáveis que explicam as
desigualdades sociais” (Dietz, 2017, p. 84, tradução nossa).
Permitam-me resumir os argumentos desenvolvidos até este ponto. Pesquisar
as desigualdades a partir de uma ótica interdependente requer, em primeiro lugar,
uma mudança de perspectiva, de maneira a estender a investigação das desigualdades
de oportunidades para as de posições ou resultados. Em segundo lugar, implica
um conceito multidimensional de desigualdade capaz de contemplar, de forma
consistente e coerente, as desigualdades socioeconômicas, socioecológicas e de poder.
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na implementação de políticas públicas
7. Conforme a economista do desenvolvimento Frances Stewart (2010), as desigualdades existentes são a soma
das desigualdades verticais, que dizem respeito ao lugar dos indivíduos na estrutura social, e das desigualdades
horizontais, que afetam os indivíduos enquanto parte de um grupo definido por adscrições de gênero, raça, etnicidade
etc. A abordagem das desigualdades verticais/horizontais tem inspirado pesquisas empíricas relevantes, que iluminam
o papel das categorizações sociais para definir as desigualdades sociais – ver, por exemplo, o agudo estudo sobre o
caso peruano de Thorp e Paredes (2010).
8. São comuns as traduções da expressão original de Tilly, categorical inequalities, tanto para o português como para
o espanhol, como desigualdades categóricas. A despeito da semelhança fonética, a expressão categórica carrega
no português e no espanhol o sentido de absoluto, irremediável, e não a conotação de próprio ou derivado de uma
categoria – daí a preferência aqui pelo adjetivo categorial/categoriais.
Desigualdades, Interdependência e Políticas Sociais no Brasil | 59
Com essas objeções, não se quer, naturalmente, dizer que noções como
desigualdades categoriais ou horizontais são analiticamente inúteis. Pelo contrário,
esses conceitos permanecem fundamentais porque indicam a importância das
adscrições na estabilização dos padrões de desigualdade. O que se pretende enfatizar
aqui é que a consideração do impacto das distintas categorizações sociais sobre as
desigualdades requer matizes e gradações ausentes nos trabalhos pioneiros de Tilly
ou Stewart. Nesse contexto, são muito bem-vindas contribuições mais recentes,
provindas da pesquisa sobre interseccionalidade, que mostraram de maneira
convincente que as posições nas estruturas sociais sempre derivam de interações
complexas de categorizações de raça, gênero, classe etc.
Há duas novidades importantes na nova geração de estudos sobre
interseccionalidade, como aqueles desenvolvidos por Anthias (2013; 2016).
Diferentemente dos primeiros estudos que cunharam a expressão interseccionalidade,
surgidos no final dos anos 1980 (Crenshaw, 1989), os mais recentes investigam
as categorizações relativas a raça, etnicidade etc. não como dadas, mas dedicam-se
a entender o processo de construção e mobilização dessas categorias no âmbito
institucional e das relações cotidianas.9 Além disso, trabalhos que estudam a
interseccionalidade nos contextos de imigração introduzem a categoria nacionalidade
ou cidadania como marca adscritiva, permitindo entender a face de Janus dos
direitos da cidadania – os quais, ao mesmo tempo que podem promover a redução
das desigualdades no plano nacional, reforçam as desigualdades no plano global, ao
garantir que os mecanismos de redistribuição de bem-estar e riqueza não extrapolem
as fronteiras nacionais (Boatcă e Roth, 2016).
9. Jelin (2017) mostra que, na América Latina, as interseções entre etnicidade e classe, raça e classe ou sexo/gênero
e classe já vinham sendo estudadas desde os anos 1950, por meio de autoras e autores como Rodolfo Stavenhagen,
Florestan Fernandes ou Heleith Saffioti. As condições desiguais de circulação do conhecimento acadêmico não permitiram,
contudo, que esses predecessores ganhassem a mesma visibilidade internacional conferida aos importantes debates
sobre interseccionalidade iniciados pelas feministas negras estadunidenses a partir de final dos anos 1980.
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na implementação de políticas públicas
QUADRO 1
Pesquisa contemporânea sobre desigualdades: abordagens e características
Abordagem Abordagem do
Abordagem Desigualdades
convencional Abordagem etnográfica sistema-mundo
Abordagem/ transnacional entrelaçadas
(exemplo: (exemplo: Ystanes e (exemplo:
Dimensões (exemplo: Faist, Rede
López-Calva e Strønen, 2017) Korzeniewicz e
Pries e Weiss) desiguALdades.net
Lustig, 2010) Moran, 2009)
Contextos
Regiões mundiais: Espaços
Unidade de análise relacionais: regimes
Nacional Local centro, periferia, transnacionais/
ou observação e configurações de
semiperiferia plurilocais
desigualdade
Riqueza, poder, Riqueza, poder,
Desigualdades
Renda interações, formas Renda, poder Renda, poder desigualdades
em foco
de vida socioecológicas
Classe, Interdependências
Eixos de Estratos de renda Classe, raça, gênero,
Classe nacionalidade, entre diversos eixos
desigualdade (decil, quintil etc.) etnicidade, redes sociais
redes sociais de desigualdade
Sincrônica/
Temporalidade Sincrônica Sincrônica/diacrônica Diacrônica Sincrônica
diacrônica
Elaboração do autor.
criadas em 2003: uma para políticas voltadas para mulheres – Secretaria Nacional
de Políticas para Mulheres (SEPM) – e outra para as de promoção da igualdade
racial – Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR).
Como mostrado alhures (Costa, 2015), a maioria das medidas implementadas
concentra-se no combate à discriminação, que é apenas um entre vários mecanismos
que atuam na reprodução de assimetrias raciais e de gênero. Além disso, as medidas
adotadas atingem apenas um pequeno fragmento de brasileiros negros e mulheres.
O programa de cotas introduzido nas universidades federais do Brasil em 2012 é
um desses casos.
Como se sabe, o programa reserva 50% de todas as vagas em instituições
federais de ensino superior para alunos egressos de escolas públicas recrutados de
acordo com a proporção dos distintos grupos de raça ou cor (brancos; indígenas;
e negros e pardos, tomados em conjunto), na respectiva região. Não obstante,
quando se leva em conta que em 2016 apenas aproximadamente 2 milhões de
todos os 8,2 milhões de estudantes de graduação no Brasil estavam matriculados
em instituições federais (INEP, 2018) – e também considerando que negros e
indígenas representam cerca de 51% e 0,5% do total da população brasileira –, está
claro que o programa de cotas federais, em sua vigência plena, distribuirá apenas
cerca de 515 mil vagas em universidades de acordo com critérios raciais/étnicos.
Portanto, mesmo que os egressos dos programas de cotas na universidade
lograrem obter boas colocações no mercado de trabalho, tais programas, devido
ao seu desenho, beneficiam um grupo relativamente pequeno entre os mais de
100 milhões de negros e 800 mil indígenas que vivem no Brasil. Por isso, seu
impacto sobre as desigualdades socioeconômicas entre indígenas, negros e brancos
no país será mínimo.
Segundo seus adversários, o programa de cotas também contribui
para a racialização das relações cotidianas, pois os beneficiários são obrigados a
reconhecer-se segundo categorias etnorraciais, apesar de a sociedade brasileira ser
caracterizada pela existência de um sistema poroso de classificação de cores, não
por uma oposição dicotômica entre negros e brancos.
Defensores das cotas, por sua vez, contra-argumentam de forma convincente
que, diferentemente da autorrepresentação ainda dominante da nação brasileira,
aquela de um país mestiço, sem grandes divisões etnorraciais, negros e brancos
vivem cotidianos marcados pela segregação racial e social. Nesse contexto, políticas
como as de cotas, em vez de separarem, promovem a coexistência inter-racial em
uma sociedade racialmente segregada (Costa, 2017b).
A apresentação de argumentos críticos ao programa de cotas não tem aqui o
sentido de deslegitimá-lo, mas de qualificar seus efeitos. A intenção é mostrar que
Desigualdades, Interdependência e Políticas Sociais no Brasil | 67
12. Entre 2001 e 2012, o número de automóveis em circulação no Brasil mais que duplicou, passando de 24,5 milhões a
50,2 milhões, enquanto o número de motocicletas quase quintuplicou – de 4,5 milhões para 19,9 milhões (Observatório
das Metrópoles, 2013). Conforme os números apurados pelo pagamento do seguro obrigatório de danos pessoais causados
por veículos automotores de vias terrestres (DPVAT), em 2002, houve, aproximadamente, 37 mil casos envolvendo vítimas
fatais e 16 mil vítimas com invalidez permanente em acidentes de trânsito. Em 2015, foram 42 mil vítimas fatais e 516 mil
vítimas com invalidez permanente (Associação Brasileira de Prevenção dos Acidentes de Trânsito, 2018). Este crescimento
astronômico do número de vítimas de acidentes foi motivado, sobretudo, pelos acidentes com motociclistas e pedestres,
ou seja, os participantes do trânsito pertencentes aos estratos de menor renda.
Desigualdades, Interdependência e Políticas Sociais no Brasil | 71
REFERÊNCIAS
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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
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