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Anais

II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR

CONSIDERAÇÕES SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE UM “BÁRBARO RITUAL” EM UMA CAPA


DA REVISTA O CRUZEIRO.

Jorge Luiz Romanello


Doutorado / UEL

Em primeiro de abril de 1961 1 , a capa da revista O Cruzeiro exibia em destaque a


foto uma jovem branca que posava ajoelhada, enquanto as mãos de duas outras pessoaa
– que não integram o quadro – espalham sangue de um animal sobre sua cabeça
completamente raspada. Acompanhada de um título bastante significativo: “Irma
Alvarez no bárbaro ritual da linha de Oxumaré” (ver figura 1)

(figura 1)

Tudo não passava de uma reportagem sensacionalista que, a pretexto de tratar


do lançamento do filme “Cavalo de Oxumaré” de Carlos Niemeyer, dirigido por Ruy
Guerra, focou o conteúdo da reportagem no ritual de iniciação no candomblé, a que
Irma Alvarez – uma famosa atriz Argentina radicada no Brasil – se submetera, em frente
às câmeras do cineasta.
Bastante significativo, e que mais nos importa no momento, é que a chamada da
capa em nenhum momento informa ao leitor que o objeto da reportagem é um filme.

1
1064
O Cruzeiro 1 de Abril de 1961. Foto sem autoria definida.

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Ainda que consideremos que parte do público leitor tivesse informações a esse
respeito, certamente para uma maioria dele – que tinha na própria revista o principal
meio de atualização semanal – tratava-se de um assunto religioso.
É razoável presumir que naquele contexto, a foto da capa junto á chamada
atraia pela cena de impacto, pelo fato de tratar-se de uma mulher, branca e atriz e pela
promessa de revelar informações sobre o candomblé, que naquela altura ainda tinha
seus rituais mais restritos aos iniciados, do que propriamente pelo interesse no filme, o
verdadeiro objeto da reportagem.
A capa funcionava assim como uma espécie de “nariz de cera”, na medida em
que produzia uma chamada dúbia que tanto servia para divulgar um filme temático,
quanto para tratar de um tema religioso. Em qualquer um dos casos, o apelo ao
sensacionalismo é flagrante.
A revista O Cruzeiro era sem sombras de dúvida o mais importantes veículo de
comunicação do Brasil na época. Seu público leitor era estimado em cerca de quatro
milhões de leitores. Apresentou-se desde o seu lançamento em 1928 como um veículo
moderno e naquele momento seu estilo, permanentemente inovador, quadrava
perfeitamente com os apelos modernizantes fartamente divulgados na década anterior.
Ao mesmo tempo é sabido que o corpo editorial da revista, capitaneado por David
Nasser, notabilizou-se por não ter qualquer tipo de compromisso com a verdade, e em
muitos momentos sequer mesmo com os fatos.
Para vários reporteres e editores, valia qualquer expediente para conseguir – ou
mesmo construir – um furo de reportagem 2 . O exagero era uma marca patente na
produção das matérias, que não raro eram inventadas, ou construídas sensacionalmente
a partir de informações de cartas de leitores.
Desde o início da década de 1940, a abordagens de temas culturais não é
novidade em O Cruzeiro e o grande artíficie destas reportagens foi Jean Manzon. O
fotógrafo realizou reportagens sobre variados temas, entre eles, os que mais se
repetiram, formando um núcleo central de trabalho foram: política, personalidades,
religião e realidade brasileira 3 . Este último pode ser dividido em natureza, tipos

2
Ver por exemplo: CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras criadas: David Nasser e o Cruzeiro. São Paulo: SENAC,
2001.
3
O tema índios teve uma importância estratégica em sua carreira e na própria história da moderna imprensa
brasileira, não tanto pelo número de reportagens que realizou sobre o assunto, mas principalmente pela 1065
contundência e repercussão das que fez.

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regionais, cidades, carnaval, futebol, além de retratar problemas sociais como imigração
e delinqüência juvenil, entre outros.

Na abordagem destes temas, os tipos brasileiros foram caracterizados de forma a


serem facilmente reconhecíveis, porque estereotipados. Para o sertanejo, unhas sujas e
as mãos calejadas apoiadas em um pedaço de pau, denotando uma tarefa árdua, ou pela
vestimenta, além de outros traços corporais típicos como no caso do gaúcho, ou ainda as
expressões e a integração com o entorno de um porto de pequenas embarcações à vela,
um vestido de renda e um cesto na cabeça, que ajudam a caracterizar uma baiana 4 :

Com isto, institui-se um discurso visual etnográfico superficial e fluido sobre o


Brasil e sobre o povo brasileiro. É possível identificar no período de 1954 a 1961 uma
superposição de discursos sobre a nação, alguns deles de vanguarda, outros herdados do
ideário nacionalista de Vargas, para não falar na presença dos labirínticos arquétipos
presentes na formação do Brasil colonial, que ocasionalmente reincidem nestas
abordagens.

Entre 1951 e 1961, o candomblé e a umbanda foram tema de pelo menos seis
reportagens, o que é bastante significativo se considerarmos que a construção de
Brasília produziu apenas cinco em O Cruzeiro.

Nelas o tema recebia enfoques diferenciados que variavam de abordagens


antropológicas e objeto de estudos do folclore brasileiro, caso de polícia, objeto de
estudos da psicanálise e outros. Enquanto manifestações da religiosidade popular eram
geralmente caracterizadas como parte de uma cultura ingênua ou atrasada.

Talvez a mais importante delas, dadas suas implicações, de autoria de José


Medeiros e do repórter Arlindo Silva, intitulada foi veiculada em 1951 intitulada “A noiva
dos deuses sanguinários” 5 . Apresentando-se de maneira a poder ser percebida como um
ponto de intersecção mais claro entre a questão étnica e a questão religiosa, a
reportagem “revelação” tratava do ritual de iniciação de jovens no candomblé.

Republicada em forma de livro em 1957 esta reportagem – longamente analisada


por Fernando de Tacca 6 – deixa claro o desejo dos autores de etnografar o afro-

4
COSTA, Helouise. Palco de uma história desejada: o retrato do Brasil por Jean Manzon. In Fotografia:
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 1997, p.160
5
O Cruzeiro de 15/11/1951.
6
TACCA. Fernando de. Candomblé: Imagens do sagrado. In: Campos - Revista de Antropologia Social, 03, 1066
edição especial da IV Reunião de Antropologia do Mercosul. p. 147-164.

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brasileiro, por meio da documentação fotográfica do ritual de iniciação de um grupo de


jovens em um terreiro do candomblé da Bahia 7 .

A reportagem foi uma espécie de resposta de Medeiros a um trabalho sobre o


mesmo tema publicada na francesa Paris Match, alguns meses antes, e considerada pelo
fotógrafo como emissora de uma visão distorcida do candomblé baiano. A “resposta
brasileira”, por sua vez, apresenta fotos sensacionalistas de grande impacto – tais como
garotas de cabeça raspada, encharcadas de sangue de animais e do próprio sangue das
iniciadas, submetidas a cortes de navalha, entre outras do gênero. A reportagem
repercutiu largamente no Brasil, tornando-se mais uma das referências de arrojo e do
vanguardismo de O Cruzeiro, sempre disposta a “[...] mostrar o Brasil para o Brasil.” 8

A escolha pelo estudo de uma capa, deu-se em função de que neste espaço ser
utilizado pelas revistas para veicular sínteses comunicativas de conteúdo, era o primeiro
contato com o leitor e ajudava a vender a revista, atuando ainda de várias outras
formas.
Segundo Ana Cristina Teodoro da Silva, “A utilização de estereótipos corporais,
de cores em seu sentido mais didático, de tipos e símbolos de fácil é ágil leitura fazem
da capa um atrativo fugaz, de rápida duração. Com isso é reforçada a busca por sínteses
“eficazes”, que digam muito em pouco espaço e em pouco tempo. O acúmulo de
informação seduz, oferecendo agilidade e síntese”.
Os elementos constitutivos da capa são: a foto manchete que ocupa cerca de 65%
do espaço da capa e o título da manchete “Irma Alvarez participa do Bárbaro Ritual da
Linha de Oxumaré.’
O tìtulo da revista – o cruzeiro em vermelho, e que ocupa cerca de 15% do espaço
mas vem sobreposto a foto manchete.
Uma faixa retangular lateral em cor rosa escuro, em que se anunciam os outros
assuntos contidos naquela edição David Nasser: Lupion pior que 10 Geadas; FOME, Mais
uma sensacional reportagem sobre as causas do fenômeno: Julião e suas Ligas
Camponesas e ainda as seguintes chamadas: Exclusivo: JOFRE: A foto oficial; Jânio New

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Ainda segundo Fernando de TACCA, a reportagem foi muito polêmica pois levantou clamores de intelectuais
como Pierre Verger e outros do campo da antropologia, entendida enquanto um ato invasivo que expôs
indevidamente as jovens e a mãe de santo envolvidas no ritual, que acabaram marginalizadas dentro da
religião.
8
Conforme expressão utilizada por Helouise COSTA, a afirmação - complementada em nota – explica que a
intenção de mostrar o “Brasil para o Brasil” tem como substrato, o propósito do repórter fotográfico
moderno de explicar o homem para o homem e o homem para ele mesmo, através da fotografia. Aprenda a 1067
ver as coisas: fotojornalismo e modernidade na revista O Cruzeiro 1992,.p 99.

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Look: O Cruzeiro surpreendeu o presidente JQ em trajes de trabalho no Palácio do


Planalto, destaca-se portanto a variedade de assuntos, todos com títulos
sensacionalistas.
A composição do título: “Irma Alvarez participa do Bárbaro Ritual da Linha de
Oxumaré.”, cria valores negativos uma vez que Bárbaro Ritual evoca falta de civilização,
qualidade de grosseiro, inculto, cruel, desumano, sanguinário 9 , pejorativos que por
consequencia se extendem, a OXUMARÉ entidade do candomblé, que assim se torna um
representante da barbárie de seus praticantes.
Aqui no caso a perspectiva que determina a produção da mensagem, é a defesa
de uma visão cultural eurocêntrica. Pois se alguns são bárbaros é porque outros são
civilizados e neste caso podemos deduzir que estes são os praticantes de uma
religiosidade culta, fina e humana. Por exclusão esta seria o cristianismo principalmente
o católico, – religião praticada pela maioria da população brasileira da época.
Apenas a título de comparação, se observarmos uma das capas que tratam da
religião católica veiculadas no mesmo ano, encontraremos sem dificuldades outras
mensagens 10 .

Nesta capa, a foto manchete mostra uma cena de um casamento, nela um casal
(provavelmente de famosos) encontra-se em frente a um padre, que pode ser
reconhecido pelas vestes típicas. O fotógrafo privilegia os noivos enquanto o padre de
costas, ela traja um tradicional vestido branco de noiva e ele enverga um impecável
terno azul escuro ou preto, toda cena é explicada em um box informativo presente no

9
Segundo a primeira das sete definições do dicionário do Aurélio. p.185 1068
10
O Cruzeiro de 22 de abril de 1961

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lado superior direito da capa c que contém o seguinte texto: Maria Clara Mariani e Sérgio
Lacerda, no momento culminante do casamento celebrado no Mosteiro de São Bento.
As roupas neste caso representam os símbolos tradicionalmente ligados aos
casamentos cristãos e ao mesmo tempo em que evocam um modelo de vestimenta
“civilizada” – principalmente no caso do terno – socialmente aceito como forma elegante
e mesmo fina em quase todo o ocidente.
Assim temos de um lado referências a um tipo de religiosidade popular associada
á população negra – ainda que flagrada em um instante de exotismo uma vez que trata-
se de uma atriz branca e famosa – tratada como Ritual de Bárbaros, conseqüentemente
podemos deduzir que seus praticantes são integrantes de uma cultura atrasada, que.em
última instância, são brasileiros atrasados. Ao passo que de outro temos um casal de
jovens brancos, que nesta comparação assumem o lugar de civilizados.
Era comum este tipo de reportagem vir associada a outras, que aproveitavam a
repercusão causada pela primeira. Neste caso a reportagem aparece descontextualizada
de outras do gênero, sugerindo mais uma “carona” sensacionalista propiciada pelo
lançamento do filme.
É importante considerar também os elementos contextuais envolvidos. No início
da década de 1960, havia um forte apelo pelo moderno na sociedade brasileira, o
desenvolvimentismo vivia seu auge, JK encerrava um governo marcado pelas realizações
espetaculares, a indústria automobilística havia se implantado de forma bastante
vigorosa no país ao mesmo tempo em que se construiu um complexo de milhares de
quilômetros de novas estradas, Brasília havia sido inaugurada poucos meses do fim de
seu mandato, a revista havia mudado a diagramação da capa a pouco tempo e é de se
considerar que em tal contexto tornava-se, tolerável senão necessário apelar para cenas
mais impactantes fora do tradicional estilo de uma mulher bonita, elegante e famosa nas
capas.
Além disso, é importante considerar também que no clima descrito, a distinção
entre modernidade e atraso, 11 dado seu caráter paradigmático – tantas vezes ressaltadas
no decorrer da década anterior – tendia a refletir-se em todas as instâncias da sociedade
e em todos os tipos de debate.

11
Ver mais sobre o assunto em Romanello. J. L. A natureza no discurso fotográfico da revista O Cruzeiro: 1069
paisagens e imaginários no Brasil desenvolvimentista. Assis, 2006.

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Referências bibliográficas

CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras criadas: David Nasser e o Cruzeiro. São Paulo: SENAC,
2001.

COSTA, Helouise. Aprenda a ver as coisas: fotojornalismo e modernidade na revista O


Cruzeiro. 1992. Dissertação (Mestrado}, ECA – Escola de Comunicação e Artes, USP –
Universidade de São Paulo, São Paulo.

______, Helouise. Palco de uma história desejada: o retrato do Brasil por Jean Manzon.
In Fotografia: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. IPHAN - Ministério da
Cultura. Rio de Janeiro 1997.

Romanello. J. L. A natureza no discurso fotográfico da revista O Cruzeiro: paisagens e


imaginários no Brasil desenvolvimentista. Assis, 2006. 200p. Tese (Doutorado em
História) Universidade Estadual Paulista.

SILVA. Ana Cristina Teodoro da. O tempo e as imagens de mídia: capas de revistas como
signo de um olhar contemporâneo. 2003. Tese (doutorado), UNESP, Campus de Assis.

TACCA. Fernando de. Candomblé: Imagens do sagrado. In: Campos - Revista de


Antropologia Social, 03, edição especial da IV Reunião de Antropologia do Mercosul. p.
147-164.

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