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JADE PERCASSI

Educação Popular e Movimentos Populares:

Emancipação e mudança de cultura política através de participação e autogestão.

Dissertação apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para a


obtenção do título de Mestre em Educação.

Área de concentração: Sociologia da Educação

Orientador: Prof. Dr. Celso de Rui Beisiegel

São Paulo 2008


RESUMO

PERCASSI, Jade. Educação Popular e Movimentos Populares: emancipação e mudança de


cultura política através de participação e autogestão. 2008. Dissertação de Mestrado. Faculdade
de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

Pretendemos com este trabalho contribuir para a investigação do papel

desempenhado hoje pela educação popular nos processos de militância e

participação nos movimentos populares, e sua possível repercussão sobre a cultura

política dos sujeitos pertencentes aos coletivos estudados. Procuramos para isso

identificar a importância atribuída à educação pelos movimentos populares em

suas propostas de atuação, as instâncias em que são desenvolvidas as atividades

de educação/formação, quem são e como atuam os agentes educadores e,

finalmente, qual a percepção desse processo por parte dos participantes das bases

dos movimentos. Escolhemos como estudos de caso o Assentamento Comuna da

Terra Dom Tomás Balduíno e o Mutirão Paulo Freire, comunidades da base do

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Regional Grande São Paulo) e da

União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (Movimento Leste 1). Para a

análise sobre as opções metodológicas adotadas, inserimos na discussão os

pressupostos políticos pedagógicos de atuação do Movimento de Economia

Solidária.
Palavras-chave: educação popular, movimentos populares, autogestão,
emancipação, participação política, cultura política.
1.1 Apresentação do Primeiro caso: O Assentamento Comuna da Terra Dom Tomás
Balduíno

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra foi criado formalmente

em 1984, com a participação de trabalhadores rurais de doze estados em que já se

desenvolviam ações coletivas de luta pela terra.

Ao longo do processo de constituição do movimento a nível nacional, a

questão da educação foi tomando proporções maiores, passando por três

momentos: a mobilização das famílias pelo direito à educação escolar, o diálogo

com as escolas para construir uma proposta pedagógica que desse conta das

especificidades das pessoas em situação de militância e, por fim, a incorporação da

educação à dinâmica do movimento, com o compromisso e a pretensão de formar

as pessoas que integram o movimento com princípios e valores diferentes das

escolas tradicionais, entendendo o movimento como uma experiência formativa,

com práticas educativas cotidianas compreendidas em muitas dimensões para

além dos momentos e espaços tidos tradicionalmente como educativos. A proposta

educativa do movimento se desdobra em todos os setores, mas nos ateremos

especialmente a três deles: a Frente de Massas, responsável pelo recrutamento de

novos integrantes, o setor de Formação, que visa à formação dos quadros da

militância, e o setor de Educação, que atua nos acampamentos e assentamentos

no campo da educação infantil e de jovens e adultos.


No estado de São Paulo há cerca de quatro mil famílias em acampamentos

e quase 10 mil famílias nos 130 assentamentos, distribuídos entre as 10 Regionais.

A Regional Grande São Paulo é formada hoje por cinco espaços: dois

assentamentos - Dom Tomás Balduíno, em Franco da Rocha, e Irmã Alberta, em

Perus – os acampamentos Dom Pedro Casaldáliga, em Cajamar, e Dom Helder

Câmara, em Jandira, em processo de regularização, e o acampamento Che

Guevara, em processo de ocupação.

O Assentamento Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno, oficialmente

intitulado pelos órgãos públicos como Fazenda São Roque, está localizado no

município de Franco da Rocha, no bairro Serra dos Cristais. A Fazenda tem como

titular de domínio o Governo do Estado de São Paulo, que em 21 de julho de 2003

transferiu a administração do Imóvel para a Secretaria de Justiça e Defesa da

Cidadania, com destino à Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo

“José Gomes da Silva” - ITESP.

A área total do assentamento é de 619,1456 ha, constituída

respectivamente por 317,7409 ha de mata (51% da área total), 100,1777 ha com

área de reflorestamento (16,1% da área total), 142,8928 ha de pastagens

(23,07% da área total) e 51,5271 ha com eucalipto/ macega (8,32% da área

total). A circulação dentro do assentamento se dá por meio dos 8 km de estradas


de terra abertas pelo ITESP com a largura de 3 m, em parte alargadas para 6 m.

A área é acessada pela Rodovia Anhanguera, para quem vem de São Paulo,

tomando-se a saída do km 38 no distrito de Jordanésia (Cajamar) no sentido

Francisco Morato/ Caieiras (estrada de Campo Limpo Paulista). Percorrendo-se

cerca de 8 km encontra-se a porteira do assentamento Dom Tomás Balduíno,

vizinho aos presídios de Franco da Rocha 1 e 2.

Após 7 ocupações de terra e os respectivos processos de despejo, foi

regularizado como assentamento em Franco da Rocha em 2003. Um amplo

processo de discussão levou à divisão dos lotes por consenso, sem sorteios ou

votações, seguido de nova luta para garantir condições para que as famílias

permanecessem na terra, como subsídio de sementes e poços para abastecimento,

e o crédito para construção das casas. O projeto de habitação foi elaborado

participativamente, durante o período de dezembro de 2004 a dezembro de 2005,

pelo grupo interdisciplinar de extensão universitária “Comuna da Terra”, da

Universidade de São Paulo, sob orientação do Professor Reginaldo Ronconi. Desde

então, recebe apoio técnico do Itesp para o setor de produção, e a assessoria da

Usina – centro de trabalhos para o ambiente habitado para a adaptação do projeto

e execução das casas.

A comunidade do Assentamento Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno é


formada por 63 famílias oriundas de 6 núcleos de base, hoje distribuídas

geograficamente em três núcleos de lotes: Núcleo Roxo, com 13 famílias; Núcleo

Verde, com 28 famílias; Núcleo Vermelho, com 22 famílias. As famílias são

compostas atualmente por 39 mulheres e 68 homens adultos, e 95 crianças; 39

meninas e 56 meninos.

Há cerca de um ano e meio, a semana do assentamento está dividida entre

os dias de produzir e os dias de construir. Uma pessoa de cada família contribui

com o trabalho mutirante para construção das casas em seu núcleo e cuida da

produção de seu lote, além de participar das empreitadas coletivas de produção. A

ciranda e a cozinha comunitária, nas proximidades da sede social do

assentamento, são utilizadas atualmente somente em dias de assembléia,

festividades ou outras atividades que demandam a participação de todos.


2.1 Análise do Primeiro caso: Assentamento Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno

2.1.1 Pressupostos Políticos e Pedagógicos do Movimento

Historicamente, o MST constituiu duas matrizes pedagógicas: a pedagogia

da luta, combinando a luta pela terra e pela reforma agrária, à luta pela

transformação do país - uma pedagogia da organização coletiva, com vistas à

organização para a luta, num primeiro momento, e a um modo de vida

diferenciado, conforme a luta avança - e a pedagogia da terra, propondo o

aprendizado da relação com a terra, de produzir seu sustento através dela, no

reencontro. Permeando estas matrizes encontramos a preocupação com a

memória coletiva e o fortalecimento simbólico da luta do movimento, e o cultivo de

valores como a solidariedade, em todos os processos de formação e educação

desenvolvidos intencionalmente.

Vejamos os parágrafos iniciais das orientações aos militantes que seriam

coordenadores dos grupos de discussão do Encontro Estadual:

“Na atual conjuntura faz-se necessário aprofundar nossa compreensão

acerca de alguns temas, que para o avanço da Reforma Agrária e das

transformações sociais são fundamentais:

Aprimorar nosso entendimento sobre a caracterização do capitalismo no

campo, compreendendo a relação desse objetivo de provocar no conjunto


do Movimento o debate em torno das ações e táticas para enfrentar os

desafios que se colocam a partir de nossa interpretação.

Aprofundar nossa compreensão sobre o caráter da luta de classes neste

início de século a partir do debate da construção do poder popular. Esta

reflexão nos remete a considerar as contradições que se colocam para toda

a classe trabalhadora e como elas se manifestam no seio da sociedade.”

(Retirado da cartilha elaborada para o Encontro Estadual de 2006)

Os objetivos gerais do encontro aqui apresentados – aprimoramento da

compreensão sobre a caracterização do capitalismo no campo, o caráter da luta de

classes e o debate sobre a construção do poder popular – remetem aos conteúdos

mais amplos a serem abordados nos grupos de discussão, deixando clara a

orientação política crítica ao sistema vigente, e manifesta a intenção de que o

mesmo seja combatido por aqueles que fazem parte do movimento.

Na parte destinada à metodologia, encontramos orientações claras aos

coordenadores de núcleo:

“- iniciar com boas vindas e promover a apresentação entre os/as

participantes,

- introduzir o assunto, esclarecendo sobre os objetivos que devem dar

rumo ao debate,
- lembrar que o coordenador/a tem o papel de animar o debate, mas não

deve ficar falando o tempo todo,

- propor um tempo para as intervenções e estimular que as pessoas

participem ao máximo (...)”

(Retirado da cartilha elaborada para o Encontro Estadual de 2006)

Podemos notar uma preocupação com a postura dos coordenadores,

que não deve ser de transmissão de conhecimentos acumulados pelo movimento,

mas de estímulo da discussão sobre os temas apresentados, e para isso precisam

estar dispostos a escutar os demais participantes, mas encorajá-los a manifestar

suas idéias. A orientação à promoção da apresentação de todos nos sugere a

valorização de cada participante como indivíduo, com seu nome e sua história,

contribuindo para um coletivo maior.


2.1.2 Conversas com Agentes Educadores da Regional Grande São Paulo

Tendo por base os pressupostos declarados pelo movimento, conversamos

com dois integrantes do Setor de Formação da Regional Grande São Paulo, que à

época estavam participando das discussões para avaliação e planejamento do

Trabalho de Base. Solicitei-lhes que contassem um pouco do que estava sendo

feito do ponto de vista da educação popular nos espaços da Regional, e suas

expectativas, enquanto agentes educadores.

“Para o MST a educação está em todos os espaços. O acampamento é um

espaço de educação e formação (...) A preocupação com a formação está

presente, seja nas atividades de cada setor, seja nas reuniões, nas

ocupações. Todos os espaços de formação passam por uma idéia de que

somos todos educadores populares.

(...) Não se deve chamar as famílias para lutar por um pedaço de terra.

Precisamos fazer uma preparação no sentido de entender o que é o MST,

como é a organização coletiva; discutir diversos assuntos – o agronegócio,

a reforma agrária.(...) A prática metodológica acaba sendo a divisão de

tarefas; quando os setores têm atividades que necessitam mais formação,

são convidadas entidades que trabalham com educação popular para

participar. Os encontros, por exemplo, são realizados como todos os


espaços seguindo a divisão por núcleos, ou seja, grandes plenárias

seguidas de discussões em grupos menores, com coordenação e relatoria

(...) No acampamento, a mística é muito usada como comunicação

simbólica do que é o MST, quais são suas lutas... (...) Depois, tem

momentos de reunir todo mundo e convidar uma pessoa para falar sobre

um assunto. E tem a própria estruturação da coordenação do

acampamento (...) Essa formação se concretiza quando a comunidade que

se forma no assentamento consegue construir formas coletivas de gestão

de algum dos espaços, seja de produção, de educação...” Melina Rangel

Nesta fala podemos identificar a responsabilidade atribuída a todas as

lideranças, de atuar como educadores todo o tempo, bem como a preocupação de

trabalhar na disseminação de certos conteúdos de uma forma específica: a partir

da organização e da discussão coletivas. Coloca a questão de apresentar o

movimento enquanto organização para um fim político maior do que a forma de se

satisfazer a necessidade da terá. Há, também, uma indicação do papel das

entidades parceiras, de contribuir para a formação, e aponta para as expectativas

em relação ao êxito desta formação: de que na organização do assentamento se

construam formas coletivas de gestão dos espaços.

“A gente tem claro que a formação não se dá apenas nos espaços de


estudo, mas na vivência da estrutura organizativa do movimento nas

diferentes instâncias: nos núcleos de família, nos setores, na coordenação

do espaço, na coordenação regional. Ao mesmo tempo, as pessoas estão

fazendo diferentes cursos, o desafio está em fazer essa articulação entre

os conhecimentos das diferentes pessoas dos diferentes setores e nos

diferentes espaços. Isso se junta pela prática, além do estudo; para pensar

as ações de luta, de produção, da educação, coletivamente. Tudo depende

do momento em que está o processo do grupo. (...) Como a gente

relaciona o processo que se está vivendo com as lutas mais amplas, tem

que fazer essa ponte o tempo todo. [O formador] precisa perceber o que

está acontecendo, isso é o fundamental para potencializar os espaços.”

Pedro Soares

O segundo entrevistado reforça a idéia do ambiente formador, na vivência

das práticas nas estruturas organizativas do movimento. Evidencia o desafio da

articulação entre os diferentes conhecimentos, seja entre os saberes dos diferentes

setores ou a relação entre o que se está vivendo num espaço específico e a

dimensão mais ampla da luta do movimento. Sobre a atribuição dos agentes

educadores, coloca a necessidade da busca por compreender o momento do grupo

com o qual se relaciona, sinal da disposição para uma postura dialógica para com
aqueles que estão nas bases do movimento.
2.1.3 As instâncias educativas do MST na Regional Grande São Paulo

Entre as instâncias consideradas pelo movimento como educativas, levando

em conta o conceito da educação como eixo que perpassa a estrutura

organizativa, selecionamos alguns excertos dos nossos diários de campo que

descrevem o Encontro Estadual, o Encontro da Regional Grande São Paulo, a

Ocupação, o Acampamento e o Assentamento.

O Encontro Estadual

“O encontro começou com uma vigília na praça da Sé, em São Paulo,

numa mística de repúdio aos dez anos do massacre de Eldorado dos

Carajás. Seguimos de manhã para um ginásio em Osasco, onde seriam

desenvolvidas as atividades. A plenária inicial reafirmava os objetivos do

encontro, e deu orientações sobre sua dinâmica, insistindo na necessidade

da participação de todos para que tudo corresse da melhor maneira

possível; vieram cerca de 400 pessoas, de 68 núcleos do estado, incluindo

assentamentos, acampamentos e núcleos de base. De cada grupo, foram

destacadas pessoas responsáveis pela colaboração na limpeza,

alimentação, comunicação, saúde, segurança, cultura (místicas e noites

culturais) e educação (ciranda). Neste primeiro dia, o tema era relacionado

à questão fundiária e ao avanço do agrobusiness. Houve uma mesa, com


lideranças nacionais e estaduais, apresentando algumas das reflexões

acumuladas pelo movimento. Após o almoço, todos se dividiram em

núcleos de 30 a 40 pessoas para discussão. Uma pessoa de cada núcleo

ficou responsável pela relatoria, e participou da reunião de sistematização

geral, que deu origem ao documento com os pontos levantados na plenária

de encerramento, no final da tarde. À noite, o grupo de teatro Filhos da

Mãe Terra, do Assentamento Carlos Lamarca, apresentou a peça Esses

Santos Latifúndios, com forte apelo emocional e uma nítida preparação

técnica brechtiana. Houve um debate após a apresentação, mas não

ficamos no alojamento, pois não viemos preparadas para a queda de

temperatura que se deu ao cair da noite.

O tema do dia seguinte foi a construção do poder popular, e seguiu a

mesma estrutura: mesa com falas das lideranças pela manhã, grupos de

discussão à tarde; reunião da comissão de sistematização, apresentação de

propostas e pontos levantados pelos grupos, encerramento. Cheguei após

a mística de abertura, a tempo de encaminhar minha filha para a ciranda

com as outras crianças, para poder circular mais tranqüilamente pelo

encontro. Pude notar dificuldades de alguns dos coordenadores de núcleo

para animar as discussões. Embora todos os grupos estivessem dispostos


em círculos e houvesse tempo suficiente para que as pessoas pudessem

falar, em algumas rodas as primeiras considerações eram mais

reafirmações de bandeiras políticas do movimento do que tentativas de se

debater mesmo sobre o tema proposto, e os coordenadores e

coordenadoras precisavam driblar um pouco essa tendência, incentivando

outras pessoas a colocar suas posições. Chamou-me a atenção a fala de

um jovem, da regional de Campinas/Limeira, que, indignado com a

aparente desatenção de alguns dos companheiros de seu grupo, dizia em

altos brados: “Como vocês acham que nossos pais conseguiram ser

assentados? Entrando cada um na hora que queria? Claro que não, eles

tiveram que se organizar!!!” Conversei também com uma coordenadora de

núcleo, que afirmou ser essa iniciativa – a de convidar para o Encontro

Estadual não somente as lideranças regionais, mas integrantes dos

espaços da base do movimento, reflexo de uma discussão mais ampla

sobre o papel da formação, mas que nessas primeiras experiências estão

ainda se adaptando, tanto às diferenças operacionais como de abordagem

dos conteúdos. Nessa noite, assisti à apresentação da peça Em Pedaços,

do grupo Engenho Teatral, tratando de temas como o consumismo, o

desemprego e a falta de perspectivas para a juventude da periferia. As


reações do público foram surpreendentes, levando em consideração a

linguagem adotada – um espetáculo sem cenário, com figurino único,

baseado principalmente nos diálogos e linguagem corporal. Mais tarde,

constituiu-se uma roda de samba, e depois de escutar e cantar algumas

músicas, viemos embora.”

(diário de campo de 2006)

O Encontro da Regional Grande São Paulo

“O dia começa com uma mística sobre o assassinato de um militante,

quando chegamos o boneco que representa o corpo está lá, estendido no

chão. A conversa é iniciada com uma abertura singela; Tiaraju (cientista

social e educador da Usina) toca e canta a canção Sólo le pido a Dios. As

quase cem pessoas dispostas em círculos concêntricos na plenária

improvisada aos poucos vão soltando suas vozes. Há representantes de

todos os espaços da regional: coordenadores e coordenadoras dos

assentamentos, acampamentos e núcleos de base, além dos amigos e

amigas do movimento, como somos chamados. Há membros de sindicatos

e de coletivos políticos, militantes partidários, estudantes, técnicos,

convidados a contribuir para o debate. Uma preleção é feita por Delweck

Mateus, da direção estadual. Sua fala, longa, porém muito articulada,


discorre sobre a necessidade de se realizar a aliança entre os trabalhadores

do campo e da cidade, e de não perder de vista que a luta pelo

desenvolvimento econômico e social não pode ser levada adiante seguindo

a lógica da acumulação capitalista. Muito tranqüilamente são feitas

inscrições e as pessoas fazem uso da fala para comentar, discordar,

complementar as idéias apresentadas. Ao final de duas rodadas de

intervenções (mais ou menos 20 pessoas) Delweck retoma a palavra, para

fazer um encerramento da atividade. Reflete sobre as reais possibilidades

de se fazer política hoje, e ressalta que o projeto de sociedade que

estamos construindo precisa buscar novos referenciais das formas de viver,

de produzir, de conviver, de se relacionar do ponto de vista social e

cultural.

Os representantes dos espaços fazem uma rodada de informes,

atualizando a situação de cada assentamento, acampamento e núcleo de

base. Os representantes da primeira Comuna Urbana, em Jandira, acenam

para essa experiência como uma nova perspectiva para os trabalhos de

base. Ao final, todos somos convidados para a inauguração do Centro de

Formação, em Jarinu. Almoçamos todos juntos, ao redor da cozinha

comunitária.”
(diário de campo de 2007)

A Ocupação

“O chamado para esta atividade veio com uma semana de antecedência

para alguns; para outros, a decisão parece ter sido tomada há apenas

algumas horas. Serão realizadas outras ocupações em diversas regiões do

estado; esta será na Grande São Paulo, mas apenas um grupo de

dirigentes sabe em que área e mesmo, o município. Cheguei no último

trem com meu companheiro e minha filha, fui apresentada a uma das

coordenadoras que nos indicou a fila para a alimentação. Descansamos um

pouco, espremidos num colchão no chão, e conversamos com alguns

estudantes que vieram apoiar e participar da ocupação. É madrugada, e as

famílias reunidas em núcleos no salão do Brás recebem as últimas

orientações. São lembradas dos motivos pelos quais estão lutando; da

interpretação tendenciosa das leis que protegem propriedades que não

estão cumprindo sua função social, do direito a uma vida digna, da

possibilidade de uma nova história. Palavras de ordem são evocadas aos

sussurros antes da dispersão. O coração bate muito forte, sinto uma

vontade muito grande de chorar. As pessoas seguem para os ônibus

carregando colchões, panelas, malas, crianças, bandeiras. O caminho é


percorrido quase todo em silêncio. Paramos em um assentamento para

encontrar outros ônibus e retomamos a viagem.

Na chegada ao local escolhido para a ocupação, os coordenadores que

viajaram em cada ônibus descem e vão para a porteira que será

transposta. Sinto que se instaura um clima de ansiedade, sabemos que os

próximos instantes serão decisivos. Aos poucos somos chamados a descer

também, e numa fila mais ou menos organizada vamos entrando no que

um dia foi uma fazenda, formando um aglomerado numa pequena

elevação de terra de onde observamos o nascer do sol. Quando a última

pessoa se aproxima, um dos coordenadores chama a atenção de todos,

enquanto alguns companheiros preparam o mastro com a bandeira do

movimento. A primeira fala celebra o êxito da ação e a luta do movimento,

parabenizando a todos pela participação, e comunica a nomeação deste

novo acampamento. As palavras de ordem são repetidas por todos em

altos brados. As falas que se seguem são operacionais; são dadas

orientações para que as pessoas se agrupem em torno das coordenações

de cada setor para começar os trabalhos, há muito por fazer. Uma equipe

é formada para fazer o reconhecimento da área, enquanto os demais

aguardam instruções, sentados em grupos de mais ou menos dez pessoas.


O retorno, após quase uma hora, determina o início de uma nova etapa. O

local escolhido para montar o acampamento é no entorno da antiga sede,

onde há um reservatório de água limpa. Fomos todos para lá. Um arrepio

de indignação me percorre a espinha: a casa enorme está em ruínas,

abandonada. Ao lado dela, uma área de serviço edificada com cozinha e

banheiros, em espaço coberto provavelmente destinado à churrasqueira, e

do outro, uma grande piscina de concreto, vazia. Fica no alto de uma

ribanceira, e boa parte dos homens formam uma enorme fila

acompanhando o declive para realizar o transporte dos objetos trazidos

nos ônibus morro acima. Outra parte deles vai preparar o terreno para o

estaqueamento que servirá de base para os barracos de lona - que

precisam estar firmes, pois não sabemos por quanto tempo abrigarão as

famílias. Também são homens os membros da segurança, que se

posicionam em locais estratégicos para identificar a aproximação de

estranhos ou da polícia. As mulheres por sua vez assumem a frente de

alimentação, com a contribuição de alguns homens, além de se dividirem

para cuidar das crianças. Montam também um postinho para eventuais

atendimentos de saúde ou primeiros socorros. Por estar com uma criança

pequena, sou escalada para a equipe que vai cuidar dos bebês de até dois
anos. Esticamos lençóis e cobertores no chão para que possam se

movimentar e compartilhamos os alimentos trazidos; frutas, biscoitos de

polvilho, água, leite. As crianças de dois a sete fazem atividades com outra

comissão, do setor de educação, enquanto as maiores ajudam e aprendem

nas atividades que estão sendo desenvolvidas pelos adultos. Passamos

assim a primeira metade do dia, trabalhando, conversando, e por muitas

vezes, cantando.

Chega a hora do almoço. A imensa comissão de alimentação prepara para

servir. Forma-se uma fila, priorizando pessoas com dificuldade de

locomoção, os mais velhos e as mulheres com crianças de colo. Há

mandioca, arroz e peixe em grandes panelões, aos quais nos dirigimos com

os talheres, pratos ou recipientes trazidos por cada um. Um padre e uma

freira que vieram participar da ocupação proferem algumas palavras sobre

a justiça dos homens ter deturpado a justiça de Deus e abençoam a nossa

refeição. Comemos, descansamos, e aos poucos todos retomam suas

funções. Os coordenadores e coordenadoras se reúnem para fazer um

balanço da ação e pensar sobre os próximos passos.

Ao cair da tarde, uma nova assembléia é convocada. São propostos os

revezamentos de alguns postos e funções, e apresentadas informações


sobre as condições da área e perspectivas de negociação. Quando

anoitece, recebemos a visita da polícia. São duas viaturas apenas, vieram

conferir a informação de que a terra havia sido ocupada; conversam com a

coordenação e vão embora. A expectativa de que possa ocorrer uma

reintegração de posse na manhã seguinte passa fazer parte das conversas

deste momento em diante. A coordenação orienta todos a se prepararem

tanto para a resistência quanto para uma eventual retirada, salientando

sempre que embora a luta seja muito importante não é da intenção do

movimento submeter as pessoas a riscos desnecessários. Alguns ônibus

são disponibilizados para levar de volta a São Paulo os apoiadores,

chegamos em casa, sujos e exaustos, por volta de meia-noite.”

(diário de campo de 2004)

O Acampamento

“Deve haver cerca de cem barracos. A diferença de uma ocupação informal

típica (como a da maioria das favelas) é nítida; os barracos estão

organizados em núcleos, quase simétricos. Em cada núcleo de famílias,

uma ou duas pessoas exercem a função de coordenadores, participando de

reuniões ora trazendo questões dos núcleos para serem discutidas, ora

levando pautas para serem discutidas simultaneamente em todos os


núcleos. Além disso, em cada núcleo se replicam os setores: uma pessoa é

responsável pela educação, outra pela cultura, outra pela saúde, e assim

por diante. Todos os dias, há reunião de algum dos setores, e quase todos

os dias reúnem-se os coordenadores de núcleo que compõem a

coordenação do acampamento. Uma verdadeira colméia, eu diria. Por

enquanto, sem a certeza de que o assentamento seja oficializado nesta

área, não há grandes avanços nas iniciativas de produção. Há debates

teóricos, sobre a intenção de realizar uma produção livre de agrotóxicos,

mas a própria alimentação dos acampados depende ainda de doações,

obtidas principalmente com entidades ligadas à igreja, através da Regional.

Há doações de remédios e roupas também, embora menos freqüentes. As

crianças “sem-terrinha” são reunidas para recreação e algumas atividades

de educação na ciranda, inclusive a contação de histórias, momento em

que lhes é explicado sobre a luta dos pais; investe-se na criação de sua

identidade com o movimento.”

(diário de campo de 2004)

O Assentamento

“Tão perto, e tão longe! Apesar de ter vindo de trem para o Município de

Franco da Rocha, descido do ônibus circular na estrada e de avistar daqui


o presídio, estamos na roça. O sol escaldante não perdoa, a distância que

devo cobrir de uma casa à outra me faz lembrar da força que essa gente

tem (seu Euclides tinha razão). Núcleo Vermelho, depois o Roxo, mais à

frente o Verde... ”

(diário de campo de 2005)

“Visita ao assentamento. Estudantes da Universidade de São Paulo e

os professores Maria Lucia Refinetti, João Whitaker e Minoru, da Faculdade

de Arquitetura e Urbanismo, como parte da programação do III Seminário

de Extensão Movimentos Populares e Universidade. Maria nos recebe de

braços abertos, logo fazemos um circulo na plenária. Ela conta um pouco

da história do assentamento, desde a primeira ocupação em 2001. Conta

sobre o projeto das Comunas da Terra, sistematizado por Delweck no

curso Realidade Brasileira, e como as propostas estão sendo

experimentadas no assentamento: a divisão por núcleos, os lotes coletivos,

a ênfase na agroecologia. Fala também sobre a produção, que ainda está

começando, e das iniciativas de projetos de formação nesse setor, em

parceria com o Itesp. Alguns dos estudantes presentes, que participaram

do projeto de extensão Comuna da Terra, contam sobre a experiência da

elaboração do projeto participativo da habitação, e das dificuldades


enfrentadas pelo movimento para conseguir o financiamento. Saímos do

espaço da plenária para uma caminhada pelo assentamento. No caminho,

mais histórias: sobre a dificuldade de se obter água, a necessidade de

corrigir o solo, os obstáculos ao encaminhamento das famílias para os

serviços de saúde e de educação públicas. Terminamos a visita na estufa,

onde foram desenvolvidos alguns dos cursos; em breve poderemos

adquirir morangos orgânicos.”

(diário de campo de 2006)

“Assembléia. Pauta: discutir o funcionamento da obra das casas, que

será executada em regime de mutirão. Presentes a equipe da Usina, Júlia e

Carol (arquitetas que fizeram parte do projeto de extensão para o projeto

de habitação), a coordenação do assentamento e demais famílias

assentadas. O hino do movimento é entoado, dando início às atividades.

Bia (arquiteta da Usina) retoma um pouco do que foi discutido na

assembléia passada: foram apresentadas as experiências dos mutirões

urbanos e do assentamento Fazenda Pirituba, de Itapeva, acompanhadas

pela Usina, e apontadas algumas das questões sobre as quais precisamos

conversar hoje. Pedro (arquiteto da Usina) relembra também alguns dos

pontos que, apresentados pela coordenação, foram aprovados em


consenso com todos: serão 4 dias de trabalho mutirante, sendo que cada

família deverá trabalhar pelo menos 2 dias em seu núcleo; haverá uma

brigada permanente, remunerada com ajuda de custo, formada por

assentados que já tenham experiência na construção civil, para executar

frentes de trabalho específicas. Carol e Bia apresentam a proposta para

roteiro das discussões. As pessoas se dividem em 6 grupos para responder

às questões:

1. Como será o trabalho no mutirão?

2. Como inicia o dia de trabalho?

3. como serão executadas as tarefas?

4. Como será o almoço? Onde?

5. Onde ficarão as ferramentas?

6. Quem deve participar da brigada permanente?

7. Quem é da brigada participará do mutirão?

8. Como serão feitas as compras?

9. Como será a distribuição dos materiais?

10. Como garantir a participação de todos?

À tarde, um representante de cada grupo apresentou um resumo das

discussões, e as propostas apresentadas foram sistematizadas para serem


submetidas à aprovação de todos. As propostas aprovadas, lidas ao final

do encontro, deram origem ao Regulamento de Obras do mutirão para

construção das casas.”

(diário de campo de 2006)

“Reunião de Coordenação. Presentes a equipe da Usina e os seis

coordenadores do assentamento, três homens e três mulheres. Dispostos

num círculo na plenária da sede social, iniciam a discussão do

planejamento. Os coordenadores fizeram um levantamento da situação das

casas contendo o estágio da obra, a quantidade de materiais utilizados e

estocados, quais os mutirantes e brigadistas responsáveis e em que dias

trabalharam no último período. Marcelinho e Luciana (arquiteta)

elaboraram planilhas a partir destes dados. Apresentam cópias impressas

para todos, e após a leitura e esclarecimentos item por item, inicia-se a

discussão. Após a avaliação da situação das obras e do financiamento,

parte-se para os encaminhamentos necessários.

Luciana e Maria ressaltam que é preciso criar um entendimento comum do

que significam esses valores para criar os argumentos de negociação com

o órgão financiador, para planejar o próximo cronograma e principalmente,

para preparar o material para a assembléia.


São tomadas decisões também sobre o quanto será aberto a respeito de

conflitos internos. Rosely e Mirela colocam a necessidade de tentar resolver

os conflitos internamente, primeiro, através de conversas nos núcleos e

conversas diretas com a coordenação em último caso, submeter à

assembléia.

No momento seguinte, formam-se três trios, com um(a) arquiteto(a) e dois

coordenadores(as) para preparar os materiais para as discussões com as

famílias.”

(diário de campo de 2006)

“Reunião de Brigada. São 10 brigadistas, dispostos num semi-círculo na

plenária da sede social. Bia (arquiteta da Usina) pendura cartazes na

parede formando um painel que fará as vezes de lousa. Propõe que façam

a conta de medição dos trabalhos conjuntamente. Numa coluna, escreve

os nomes de todos os que trabalharam no período. Na segunda, conforme

os próprios brigadistas vão falando, anota as metas planejadas, em dias ou

em metros. Na terceira coluna cada um diz o quanto cumpriu em relação

ao planejado, enquanto os demais consentem com interjeições de

aprovação ou corrigem os dados.

Por fim, um dos coordenadores apresenta os valores previstos pelo


financiamento para remuneração do período, e a arquiteta vai fazendo em

voz alta e escrevendo na lousa improvisada as contas do quanto isso

representa para cada um, segundo o trabalho realizado. Os brigadistas vão

acompanhando as contas e comentando. Ao fim, são considerados justos

os procedimentos e os resultados da medição.”

(diário de campo de 2007)

“Reunião do Núcleo Roxo. 7 das 13 famílias estão presentes, sentadas

em círculo no barraco que eventualmente abriga as atividades com as

crianças da ciranda. Alguém pergunta: quem vai coordenar a reunião?

Silêncio. Outra pessoa propõe que se reveja a pauta. Aos poucos, vão

levantando questões, completando a frase que o outro começou.

Por fim, Jorge toma a iniciativa de ler a pauta montada a partir desta

rodada de conversa: como está o Núcleo Roxo, a organicidade das frentes

de trabalho, a coordenação das obras da construção das casas nesse

núcleo.

Jorge: então, todo mundo vai falar, dar sua opinião, pra tentarmos resolver

os problemas.

Mirela: o núcleo está sem coordenador, isso dificulta muitas coisas. Como

vamos organizar o trabalho mutirante?


Ernando: tem gente que acha que basta assentar dois blocos para ser

coordenador.

Josué: mas eu não pedi para ser coordenador!

Mirela: a coordenação está num outro momento, o coordenador precisa

saber organizar os dias e as casas do trabalho dos mutirantes, e ter

controle dos materiais e ferramentas.

Divaldo : o coordenador pode ser qualquer pessoa, mas eu mesmo tenho

um temperamento que não é bom para conversar com as pessoas.

Paulo: a primeira coisa é o acompanhamento geral da obra. Se eu faço o

meu trabalho direito, quero que os outros também cumpram. As pessoas

que começaram largaram a minha casa.

Ernando: (agitado) não fui eu que decidi começar nem largar sua casa.

Josué: Paulo, sobre isso, vai conversar com a USINA!

Zé Irmão: concordo com Josué.

Paulo: não adianta ter um bom coordenador se as pessoas não fazem seu

trabalho.

Jade: todas as pessoas têm condições de contribuir com alguma tarefa.

Jacira: eu não estou na obra não é porque não quero, mas devido ao

problema do meu filho, William. Não quero que ninguém tenha pena de
mim. A luta para conseguir as casas foi de todo mundo.

Piná: eu posso até participar, não tenho problema com isso; eu posso fazer

almoço pras pessoas solteiras, dobrar ferro, o que eu puder fazer em casa

eu faço de boa. Mas todas as segundas eu tenho médico. Eu abri mão de

entrar com a ação porque vi que ia com isso prejudicar os companheiros.

Mas não fui eu quem pediu pros meninos terminarem a minha casa, foram

eles que se articularam.

Mirela: Piná fez bem, as coisas têm que ser resolvidas entre nós.

Jorge: calma, gente. A intenção é de que todas as casas sejam

construídas.

Divaldo: a questão da Piná e da Jacira a gente entende e respeita. Mas e

as pessoas que não estão aqui? A comunidade não acaba na casa, ela é

pro resto da vida! O Josué, como coordenador, não consegue agir sozinho.

Josué: é tarefa difícil, mas como vocês me indicaram, eu vou me

comprometer. Vou começar a fazer uma varredura, visitar as pessoas que

estão faltando, e chamar reunião de planejamento na semana. A cachaça é

uma doença que se cura conversando.

Divaldo: a maior parte das pessoas que está faltando não está aqui hoje.

Pai Veio se comprometeu a trabalhar 7 dias e depois não aconteceu. A


ausência demonstra falta de interesse, por isso a gente deve continuar

primeiro nas casas de quem está trabalhando.

Mirela apresenta o planejamento das próximas semanas, e discute-se o

cronograma elaborado pela coordenação e pela assessoria. Por fim, cada

um repete para si e para os outros as suas atribuições para o período.”

(diário de campo de 2007)

“Dia de obra. A primeira abóbada a gente nunca esquece. Entre todas as

tipologias elaboradas pelo projeto de extensão e reformuladas pela equipe

da Usina, a casa em abóbada certamente representa o maior desafio,

técnico, cultural e de execução. Chegamos pela manhã no assentamento,

tomamos café com o mestre de obras que fez um relato sobre o que

estava acontecendo em cada núcleo, quem estava em qual casa,

trabalhando em que frentes. Seguimos para o núcleo roxo, e Carlinhos já

tinha içado as partes da forma para cima da laje da casa do Divaldo. Subi

com Bia, Lu (arquitetas da Usina) e Julia (arquiteta do projeto de extensão,

hoje militante do movimento) para ajudá-los a montar. João Marcos

(arquiteto da Usina) estudou um jeito de fazermos menos força e ter mais

segurança, montamos a forma deitada e a pusemos de pé usando cordas.

Além de Carlinhos e Divaldo, outros assentados vieram ajudar: serra um


pedacinho, lixa pra encaixar, solda onde arrebitou; puxa daqui, levanta

dali, grita... Depois do almoço, com a forma montada, Lelê e Nenê

(pedreiros contratados) começaram a assentar a primeira fiada de blocos,

que foram sendo preenchidos com massa por uma equipe. A cada três

fiadas, um dia para curar e arrastar a forma. Foram 15 dias para cobrir a

casa, e nesse ritmo em breve teremos uma data para inauguração de

todas as casas...”

(diário de campo de 2008)


2.1.4 Conversas com assentados/as da Comuna da Terra Dom Tomás

Balduíno

Antes de tudo, uma breve auto-apresentação das pessoas entrevistadas.

Meu nome é Maria, tenho 36 anos e

nasci no estado do Paraná. Sou

casada, tenho um filho, e estou no

movimento há seis anos.

Meu nome é Jacira, tenho 31 anos, e seis

filhos. Durante esse período de luta eu tive

muitas vitórias.

Meu nome é Carlos Pires, a idade 39 anos. Hoje agricultor. Antes, não.

Meu nome é Mauro Evangelista, tenho 47 anos. Acredito que comecei a viver de novo há
cinco anos, vai fazer seis. Justamente quando eu conheci o MST.

Meu nome é Piná, tenho 41 anos. Vivo hoje pelo MST, por uma questão de sobrevivência.
A primeira questão colocada foi sobre a decisão de ingresso no

movimento.

Peço para cada um que se lembre de como estava sua vida naquele

momento, para buscar a motivação da escolha, e as expectativas iniciais em

relação ao movimento.

“Eu participava do grupo de jovens da igreja lá da região sul, onde eu

morava, no Capão Redondo. Então, na animação missionária eu conheci a

Fraternidade Povo da Rua. Aí pela Fraternidade a gente ia à noite fazer

visitas. Mas eu não podia, porque eu trabalhava de dia e estudava à noite,

na faculdade. Eu fiz um ano de faculdade e fui convidada a trabalhar na

Fraternidade, numa casa de crianças filhas de portadores de HIV e alguns

moradores de rua, que estavam participando do Movimento Sem Terra.

Então a gente fazia uma reunião a cada quinze dias ou uma vez por mês,

depois começamos a fazer assembléias no salão. Quando aumentou o

número de pessoas a gente passou a fazer na praça lá do Brás, perto do

metrô. Aí foi que nós decidimos fazer a ocupação.(...) a gente ainda tinha

uma dúvida, se a gente ia ser do movimento do MST, ou ia ser do MTST,

trabalhando com assentamento rururbano. Ali era muito mais para urbano

do que pra rural,e tinha as duas militâncias trabalhando juntas, do MST e


do MTST. (...) Mas depois que a gente ocupou, a gente conversou, e fez a

opção pelo MST mesmo. Com os discursos feitos pelo Delweck [Mateus],

pelo Gilmar Mauro, sobre a questão da Comuna da Terra, que seriam

assentamentos menores, na cidade.

(...) quando surgiu a necessidade de decidir se a gente ia ser assentado no

Dom Tomás, a Regional já tinha mais dois acampamentos, o Irmã Alberta

e o Dom Pedro. Então, a gente sentou com toda a direção regional daquela

época e as pessoas foram fazendo sua opção. Inclusive havia a opção de

não ser assentado naquele momento e deixar para outra oportunidade.

Como a gente já estava constituindo a família, fez a opção de vir para o

Dom Tomás. Quando eu entrei para o movimento não estava nos meus

planos ser assentada. A minha intenção era militar mesmo, pelo projeto de

educação... Podia até vir a ser assentada, porque minha mãe e meu irmão,

através do movimento de moradia, já tinham casa. Naturalmente, aos

quase trinta anos, eu tinha que ter meu espaço, mas não tinha urgência. Aí

a partir do Gabriel [filho], a gente fez a opção por ser assentado aqui. A

gente poderia tentar ir pra cidade, procurar emprego lá fora, ficar só na

militância... Mas a gente quer que ele seja criado nesse espaço, com

saúde, longe da violência. Lá fora a gente vê que as pessoas vivem


amontoadas, sem saúde, a própria questão da alimentação.

(...)É claro que o meu processo, vindo solteira, da casa da mãe, é diferente

do processo de uma pessoa que veio com sua família, que está dando uma

virada para dentro do movimento. A família muitas vezes muda por

necessidade. Tinha um diferencial, entre pessoas que estavam vindo por

acreditar no movimento, fazendo essa opção pelo movimento, e outras que

foram para o movimento por falta de opção. Por estar na rua,

desempregada, ver a família passar necessidade. (...)É claro, que a partir

do momento que ela começa a participar e a estudar e entender o

movimento, ela também faz uma opção pelo movimento. Mas num

primeiro momento ela chega ali por uma necessidade.” Maria

O relato de Maria nos permite depreender aspectos relevantes sobre o

processo de ingresso no movimento. O primeiro diz respeito à relação, senão da

igreja católica diretamente, de entidades por ela subsidiadas para assistir à

população de baixa renda, em especial famílias em situação de rua, com a

organização dessa mesma população em torno de suas necessidades – primeiro

passo para a tomada de consciência de que problemas coletivos têm maiores

chances de serem resolvidos coletivamente. Em segundo lugar, nos coloca que a

decisão de ingressar no movimento pode ser coletiva, de pessoas articuladas


previamente e que se agregam ao movimento como grupo. Além disso, seu caso

tem duas especificidades que merecem atenção: o fato de sua opção pessoal de

entrar para o movimento ter como motivação a militância, que ela mesma

distingue da motivação da maioria das famílias, e um ambiente formador no

sentido desta mesma militância, através do exemplo de seus familiares. Por fim,

nos indica uma percepção de que entre as famílias que se aproximam do

movimento num momento de necessidade, as que permanecem são aquelas que

fazem uma opção pelo projeto do movimento, após conhecê-lo.

“Eu cheguei ao movimento através de uma colega minha. Eu saí de casa

aos 26 anos, com duas crianças. Morava em Jandira com meus parentes,

porque tinha separado do meu marido, e tal. Mas aí não deu mais certo

com meus irmãos, e um dia, não me lembro a data, eram quatro horas da

manhã e eu me levantei e saí de casa com os documentos e as crianças.

Mais nada. Passei uma semana na rua. Parecia que eu tinha perdido um

parafuso, não sei bem o que eu estava procurando. Eu fui parar até no

programa do Ratinho, eu estava tão atordoada. Aí chegou uma senhora e

me disse que para eu não passar a noite com as crianças na rua, tinha um

lugar que se chamava albergue. Até então eu nem sabia que isso existia,

porque nunca tinha precisado. Então ela nos levou lá, estava cheio, mas o
pessoal nos encaminhou pra outro. Fiquei lá uma semana. Já não

agüentava aquela situação, sair as cinco da manhã pra rua com as crianças

sem saber mesmo pra onde ia. Encontrei minha amiga por acaso, ela disse

que conhecia um lugar que levava as pessoas que estavam na rua pra

morar não sei onde, ela estava bem desinformada. Quando ela falou que

era o Sem Terra eu disse que não ia, porque eu tinha visto pela televisão

que esses Sem Terra roubavam a terra dos outros e começava a guerra

dos fazendeiros com eles. Eu pensei “morre muita gente, ainda mais com

duas crianças, eu não vou.” Mas depois que ela saiu eu fiquei pensando. O

que eu ia fazer da vida, com as crianças, se eu não podia voltar pra casa

dos meus parentes, nem queria voltar com meu marido... Aí ela tinha me

dado o endereço, era no Brás a secretaria. Eu fui lá, fiz a ficha. Logo que

eu fiz a ficha eles não me deixaram sair mais com as crianças. Tinha

ciranda, a Maria é quem coordenava, e minhas crianças ficaram lá fazendo

atividade com ela, e Deus é tão bom que no dia seguinte já era a

ocupação.” Jacira

Neste depoimento temos um exemplo extremo do que Maria chamou de

entrar por necessidade. Não apenas Jacira se encontrava numa situação de não ter

para onde ir e não saber o que buscava; tinha uma imagem sobre o movimento
que a fazia não querer ingressar. A falta de opção fez com que, entre voltar para a

família e encarar o que para ela representava o perigo, escolhesse a segunda

alternativa.

“Antes eu morava na divisa de Franco da Rocha com Francisco Morato.

Trabalhava de bico, porque as firmas não me aceitavam mais, por causa

da idade. Casado havia pouco tempo tinha perdido a esposa, porque além

da falta de serviço tive a fraqueza de começar a beber exageradamente.

Se alguém me chamava na rua eu já não respondia, nem olhava, porque já

tinha perdido minha dignidade, eu achava que já não era mais ninguém.

Acordava de manhã e ia pra porta do bar. Os bares começaram a não

vender mais pra mim porque eu não tinha como pagar. Eu concordava com

eles, claro, então ficava por ali pra fazer um bico, uma limpeza pra poder

beber, que o vício já tinha tomado conta. Era difícil ver minha filha, porque

cada vez que resolvia ir, era através da bebida. Concordo com a mãe dela,

eu tinha que ir sóbrio, não bêbado. Hoje eu entendo isso, mas na época

não era capaz. Quis brigar com ela, com meu sogro... Minha vida estava

assim, quando um belo dia o pessoal do MST passou fazendo um chamado

pra um acampamento. Eu estava num bar jogando dominó quando eles

passaram numa Brasília amarela com autofalante. Meu irmão pegou uns
panfletos e me chamou pra ir junto. Era no dia seguinte, ele foi e eu não,

voltei pro bar. Era uma vida de mendigo, sem perspectiva nenhuma.

Desempregado, morava num barraco desde que saímos da casa do

Jaraguá porque não dava mais pra pagar o aluguel. E o que eu conhecia

do MST era o que muita gente conhece hoje, que a mídia passa, só

mentiras. Mas meu irmão foi na primeira reunião, na casa da Betânia, e

voltou com a revista Sem Terra e o jornal Brasil de Fato. Aí eu tive

curiosidade, porque vi a foto de um senhor e uma frase escrita assim:

“Cada vez mais eu tenho a certeza de que o MST é o lugar onde a pessoa

tem direito a uma vida digna.” Era um senhor do Pontal do Paranapanema,

de idade, eu fiquei encucado. Então no domingo meu irmão me chamou

pra assembléia, eu nem sabia o que era uma assembléia, mas resolvi ir só

pra ele parar de me encher. Aí, cada vez que eles falavam, dava mais

vontade de prestar atenção. Se tivesse alguém perto de mim falando, eu

pedia silêncio, porque queria ouvir. Desde ali eu comecei a resgatar a

minha dignidade. Fiz meu cadastro ali na hora, e quinze dias depois estava

na ocupação do Irmã Alberta. Eu nasci de novo. Meu lote, eu nem pensava

em escolher. E não escolhi. Eu pensei que tendo essa possibilidade,

qualquer lugar estaria bom. Eu só queria ter uma terra, poder trabalhar e
não ter patrão, dignidade para minha família.” Mauro

O caso de Mauro é um clássico dos dias atuais: como milhares de outros

trabalhadores, foi dispensado sem ter assegurados seus direitos trabalhistas, e não

mais absorvido pelo mercado de trabalho, sob pretexto da idade e da falta de

qualificação. A dificuldade de encontrar meios de subsistência que leva tantos ao

desespero, em muitos casos, resulta na tentativa de alheamento da realidade

através do uso abusivo do álcool e de outras substâncias, como ele nos relata. A

alternativa colocada pelo movimento teve para ele um papel educativo desde o

início; a partir da leitura das publicações e da participação nas primeiras reuniões,

sua escolha se deu com base na percepção de que poderia reconstruir sua vida, de

forma mais estável – em suas palavras, sem patrão e com dignidade.

“O que me trouxe até a terra foi o amor por animais. A gente morava na

cidade e eu sempre tive cavalo, nunca me apartei. Meus irmãos

compravam moto velha e eu trocava de cavalo. Chegou um certo ponto em

que eu fui morar no Mato Grosso, devido a uma separação da minha

família, e depois chegando no Pontal do Paranapanema eu me deparei com

um monte de movimentos, um monte de assentamentos. E a gente

convivia dentro dos assentamentos, morava às vezes, e passou a conhecer

um pouco da luta.
(...) definitivamente, [entrei para o movimento] sim; foi aqui. Eu tive

acesso ao movimento antes, conheci toda a direção que fazia o trabalho de

base no Pontal, mas nunca antes cheguei a participar de uma ocupação e

ficar na ocupação. Meu sonho não era ficar lá, eu queria ver se a família

que eu construí lá ia dar certo mesmo, aqueles quatro anos junto, daí vim

embora pra São Paulo. Eu tinha [uma boa noção do que era a luta],

porque na região do Pontal eu tenho dois tios assentados, dois primos, e

meu sogro e minha sogra são assentados também. Mas participar da luta

mesmo eu nunca tinha participado. Eu só vim quando soube que era aqui

na região de Franco da Rocha, eu fui criado aqui, desde meses de idade...

e talvez desse a sorte de conseguir acampamento e terra aqui. Eu vim pra

São Paulo e fiz o cadastro. Mas primeiro eu soube que iria para Polvilho,

baixou aquela tristeza. Mas fui, na esperança da terra. Eu lembro a notícia

melhor da minha vida foi quando me disseram “surgiu uma vaga em

Franco, você quer ir? Depende de você”.Ah... eu disse que dependia só da

condução para levar os plásticos com minhas coisinhas.

Então, a pessoa procura o movimento e já tem uma aptidão, ou um amor

pela terra, um sonho que ela tinha de quando ficasse mais velha comprar

um sitiozinho, um casal de cabritos, uma vaquinha de leite... (...)No meu


caso, entrar pro movimento não foi totalmente para “ser Sem Terra”, foi

porque a terra que eu conseguiria não daria pra levar adiante esse sonho.

E aqui, o que a gente conseguiu é mais até do que eu dou conta. Vou ter

que lidar com pequenos animais pra poder não estar carpindo, que o

animal faz sua parte também na produção. Eu acho que se a questão fosse

só a moradia não segurava não. É a questão do plantar.” Carlinhos

A história de Carlinhos representa a concretização de um sonho de retorno à

terra, da qual sua família, como tantas outras que vieram para a periferia das

grandes cidades em busca de uma vida menos sofrida, se desprendeu em

determinado momento. Deixa claro que no momento de sua entrada para o

movimento sua expectativa não estava voltada à construção de uma identidade,

mas sim, à conquista da terra.

“Eu morava em cortiço, em São Paulo. Conheci o Movimento Sem Terra

porque participava do movimento dos moradores de rua portadores do

vírus HIV, que naquela época era chamado de peste gay. As pessoas eram

jogadas na rua porque a família não queria. Então foi desenvolvida pela

irmã Maria e pelo Padre Julio Lancelotti e outras pessoas da igreja, para

servir comida a essas pessoas, jantar, café da manhã, roupas; e devolver a

auto-estima a essas pessoas. Então com o tempo foram surgindo os


contatos com o Movimento Sem Teto e com o Movimento Sem Terra. Eu

me adaptei ao MST porque tendo a minha terra eu posso trabalhar nela,

plantar, e ser digna de mim. Porque no Movimento Sem Teto eu ia

conseguir minha casa e aí ia ter patrão, ia ter que bater ponto, levantar de

madrugada. Bem, eu estava na Fraternidade Povo da Rua, na rua Campos

Salles, no Brás. Eu trabalhava com pessoas de rua, numa época em que

ninguém dava chance para quem tinha AIDS. (...) Menina, [a decisão de

entrar pro movimento] foi uma coisa de repente. Eu participava de várias

reuniões e não acreditava. E chegou um dia, sete de setembro de 2001,

todas aquelas pessoas foram para o Brás, porque ia ter a primeira

ocupação. E eu resolvi, foi um impulso, não foi planejado não. Chegou na

minha mente: “chegou a sua hora”, e eu fui, pra realidade da vida.” Piná

Embora sua decisão de entrar para o movimento não tenha sido planejada,

a participação de Pina nas atividades e reuniões da Fraternidade nos leva a crer

que já havia por parte dela uma predisposição para a atuação coletiva. A

comparação entre a vida que levava no centro da cidade e a possibilidade

apresentada pelo movimento de se sustentar a partir de sua terra parece ter sido o

fundamento de sua escolha final.


O segundo eixo das entrevistas abordava a questão da educação

popular em si, procurando perceber de que formas as pessoas se sentiram

fazendo parte de um projeto de mudança, de valores e de cultura política, durante

suas trajetórias. As perguntas variaram pouco, sempre enfocando o entendimento

dos interlocutores sobre as ações de que participaram e suas percepções de

aprendizados proporcionados a partir da participação nas instâncias do movimento.

“(...)Antes das assembléias, a gente fez quatro meses só de estudo. A

gente fazia duas horas de formação quase todos os dias, e daí ia fazer o

trabalho de base, o trabalho de militância, de chamar as famílias para as

reuniões. A gente fez um estudo muito intensivo. Então tinha esse

entendimento no sentido de leitura, de estudo. Antes da ocupação nós

fizemos mais de seis meses de formação. Aí no dia mesmo... é um dia que

eu nunca vou esquecer, eu nunca tinha visto tanta gente junta num

mesmo espaço.

(...) Eu nunca tinha participado de uma ocupação, eu não tinha noção do

que era. Eu falei para minha mãe que ia acampar, mas não disse que era

uma ocupação do movimento. Acampar, pra ela, era pegar a barraca e ir

pra perto de uma cachoeira, eu fazia isso antes com o grupo da juventude.

Aí depois que eu contei que era. Até então a gente estudava, militava e tal,
mas todo dia eu voltava pra casa da minha mãe. A partir do momento da

ocupação eu passei a morar no acampamento. Que era a nossa intenção

dentro do movimento. Não era levar as pessoas a acampar e depois ficar

voltando pra casa, ficar no bem bom e o pessoal sofrendo no espaço.

Porque se você não está acampado você não tem noção do que é a

dificuldade. Você vai dar um apoio, é diferente. Quando você acampa

mesmo, passa por todo o processo junto com todas as famílias que estão

ali.

(...) Assim que a gente ocupou a terra, a gente fazia formação nos

núcleos. Então cada núcleo tinha o seu dia de estudo. Cada núcleo tirava

um coordenador, e os coordenadores se reuniam todos os dias às sete da

manhã, antes de tomar café. Fazia o estudo, depois ia tomar café, depois

ia cada coordenador fazer a formação no seu núcleo. Eram em geral dois

por núcleo, a gente tentava seguir a orientação do movimento de que

fosse um homem e uma mulher. Nem sempre era possível, porque no

início eram mais homens que mulheres.

A gente aprendeu muito. A gente vai mudando, as famílias vão mudando,

isso vai não só para o assentamento, mas para a regional e para o

movimento como um todo. Principalmente, a gente viu que o que às vezes


funciona num espaço, não serve para outro; são questões históricas.

Então, a gente experimentou várias formas diferentes de trabalhar. As

famílias cresceram muito, continuam participando, mas é claro que não é o

mesmo ritmo de quando era um acampamento. Como é no movimento

como um todo, a gente entra com uma garra e um objetivo específico, e

depois de conquistar o assentamento precisa redefinir seus objetivos.

(...) Hoje tem várias pessoas que vieram da base, desta situação de

necessidade, que entraram para a militância do movimento mesmo;

poderiam entrar no lote e ir cuidar de sua vida, mas estão trabalhando

pelo movimento. E tem pessoas que estão trabalhando apenas nos seus

lotes, que era esse o significado e a busca da sua vida. Outras pessoas vão

além disso, porque entendem que podem ajudar outras a terem as

mesmas condições que elas conseguiram. (...)O movimento fez sua parte,

de apresentar outras formas e possibilidades, mas para ela às vezes a

participação no movimento foi apenas uma maneira de conseguir uma

terra, num momento de desespero. E você tem também o caso contrário,

de pessoas que entraram num momento de desespero, não tinham clareza

do projeto do movimento e passaram por formação, e hoje são dirigentes.”

Maria
Maria nos conta da riqueza e da diferença de aprender o que significa o

movimento na prática. Faz um contraponto entre a experiência de apoiar o

movimento, coordenar os estudos e participar de fato do começo ao fim da luta

das famílias, até chegar ela mesmo a ser assentada. Do ponto de vista da

coordenação, avalia a necessidade de redefinição dos objetivos após a conquista

da terra, e tem como possibilidades, para si e para as demais famílias, continuar

na militância ou passar a empreender esforços para a consolidação do

assentamento.

“Não deu tempo [de me inteirar do que aquilo significava]. Eu sofri muito.

Eu chorava muito, porque olhava em volta, todo mundo tenso, estranho,

às vezes soltava um palavrão e eu não tinha o costume... era monstruoso.

Me deu um desespero e eu quis ir embora. Eu tive muito medo. Mas aí a

Luciana e a Juliana, que eram dirigentes na época, conversaram muito

comigo e me pediram que eu tivesse calma e paciência, que tudo ia dar

certo. Aí eu conheci a dona Bete, que me convenceu de que o que eu

estava fazendo era certo. Depois de alguns meses de acampamento, muita

dificuldade, me deu vontade de ir embora de novo. Tudo a gente dependia

de doação, como para algumas coisas ainda hoje é assim, a criança pedia

uma fruta, esta daqui pedia um iogurte e chorava... e eu chorava junto,


porque de onde que ira tirar? Eu sempre trabalhei. Nunca dependi de

homem pra me sustentar.

(...)A partir daquele momento eu disse “o que eu puder fazer pelos meus

filhos e pelos filhos dos demais, eu vou fazer”. Daí eu comecei a trabalhar

na ciranda também, no acampamento. E tudo o que eu fazia pelos meus,

eu fazia pelos dos outros. A gente ia pedir contribuições em nome de todas

as crianças, dividia certinho com todo mundo. Eu tive medo na hora, e até

me arrependi de ter ido, mas hoje eu falo pras pessoas: “Quem quiser ir,

vá”. É muito difícil; não vou enganar ninguém. Por causa dos hábitos, dos

costumes que você tem na cidade. Ficar no escuro, imagina? Eu nunca

tinha precisado de vela pra iluminar, aqui a gente usava aquelas

lamparinas, sabe? Eu morria de medo. Mas a cada dia que passa, eu só

tenho que agradecer, porque depois de todo aquele sofrimento, tudo

aquilo que passei, hoje em dia eu estou aqui com a minha vitória. (...) Foi

tudo aqui. Eu nunca tinha participado de nada coletivo, tudo era individual.

A gente foi criada assim, nesse costume. Eu fui criada não pelos meus

pais, mas pelos meus padrinhos, e era assim cada um por si e Deus por

todos. Nunca tinha esse negócio, se comprasse uma coisa para si era só

seu, não tinha que dividir com ninguém. Agora meus filhos eu crio de
forma diferente. Tudo o que tiver, é pra dividir entre eles e com os outros

também. Mas eu não fui criada assim. Eu aprendi tudo aqui.

(...)Eu participei de vários grupos de estudo. Primeiro de tudo, tem o do

acampamento, pra gente se inteirar da organização. Pra poder conviver

com as pessoas. Porque na cidade ninguém precisa saber disso não, se

você está na sua casa e eu na minha tanto faz, né. Então tinha esse

estudo, com a cartilha, vinha a irmã Maria, a irmã Luiza, o Naveen, a

Rosely, eles se dividiam pra ensinar e conversar com a gente sobre viver

em grupo...

(...)No começo, quando a gente foi para o acampamento, logo que eu

ganhei o William a minha irmã ficou um tempo comigo. Só que ela não

agüentou aquela vida. Ela dizia que era tudo migalha, que era muito

sacrificado, e ela foi embora. Mas eles [a família] não gostam, dizem que

eu não tenho necessidade nem precisão de estar aqui. Eles não entendem

o que eu estou fazendo aqui... mas eu sei o que eu estou fazendo aqui.

Todo mundo tem o direito de lutar por aquilo que quer. Se tiver um

objetivo, que almeja, Deus dá oportunidade a todos por que a gente vai

jogar fora? Graças a Deus eu tenho lutado e tenho conseguido tudo o que

eu quero.
Meus filhos são seis: Isaac Pablo, mora na Bahia, estava com minha mãe

desde que eu vim para São Paulo, agora está com a outra avó, (...) a

Isabela, que tem dez anos, o Patrick com sete, o William com cinco, o

Mateus com três e a Ana Clara com um ano e meio. O William teve aquele

acidente com soda [ingestão acidental de soda cáustica], e porque eu tive

que correr muito com ele, médico, hospital, o Mateus acabou ficando com

uma família de amigos em Jundiaí. Por isso eu sofri muito quando

engravidei dela [Clara], eu fiquei me achando muito irresponsável, porque

eu não estava dando conta de cuidar dele direito... Mas sabe Deus, né. O

William melhorou bastante desde que começou a ter contato com a bebê.

(...). Ele tem saúde; tem esses aparelhos, mas na hora certa também vai

poder tirar. (mostrando) Por aqui ele respira, esse fio é uma guia que

dilata o esôfago, e tem a sonda no estômago pra se alimentar. Tenho

dificuldades com a alimentação dele, porque mudam as dietas, mas as

pessoas me ajudam. Ele monta nas cabras, faz arte com os cachorros,

sobe nas árvores, dá cada susto na gente... Eu achava que ele não ia

poder brincar, se movimentar desse jeito. O Ernandes é meu companheiro

desde então, tem pouco mais de dois anos que a gente está junto, ele é

pai da Ana. Hoje em dia eu faço o máximo para criar meus filhos da
melhor maneira possível. Eu mudei muito depois que eu vim pro

movimento. E eu mudei pra melhor, não foi pra pior, graças a Deus.”Jacira

Neste trecho da entrevista, percebemos a mudança drástica da postura de

Jacira ao longo de sua trajetória no movimento. Sua descrição das dificuldades

pelas quais passou nos revela aspectos que em geral não são levados em conta na

abordagem das experiências nos movimentos populares: o medo, a vergonha, a

vontade de desistir, as privações que antecedem muitas vezes as conquistas. Ela

atribui ao movimento seu aprendizado do modo de vida coletivo, pois foi criada na

cidade e com outros valores, e a consciência de que todas as pessoas têm direito a

lutar por aquilo que desejam. E a Deus a sua persistência e a força para cuidar de

seus filhos e dos filhos das companheiras.

“Eu não conheço a fundo outros movimentos sociais, mas se há um

movimento que te traz de novo a vida, é o MST. Eu aprendi muito.

Mostraram que a gente tinha direito à terra, ao trabalho e a uma vida

digna. Primeiro, só de eu estar hoje conversando com você; se fosse

antes, só porque você tem uma instrução maior, eu respondia duas

palavras e olhe lá. Hoje em dia, eu dialogo com qualquer pessoa, sem

medo de errar, sem medo de falar alguma bobagem. Antigamente eu

escolhia as palavras pra dizer: sim senhor, não senhor. Eu nunca vou te
chamar de senhora, você é companheira! Porque quem muda esse mundo

são companheiros, não é doutor. Eu aprendi isso na prática, logo no

primeiro dia de acampamento. Os dirigentes deixaram em aberto para as

próprias pessoas indicarem coordenador, eu sequer sabia o que era

coordenador, quarta série incompleta, eu conhecia só o que tinha vivido

nas obras e nas fábricas por aí. Se alguém falasse de política ou religião

pra mim, estava chamando pra briga. Hoje eu sei que é super importante a

gente discutir. Eu tive um aprendizado de vida que faculdade nenhuma dá

pras pessoas. Acho que as pessoas depois que se formam, talvez depois de

uns dez ou quinze anos é que vão saber o que é viver. Aprendi a respeitar

os outros, se você tem defeito eu também tenho. Pra que me entendam,

eu preciso primeiro entender, as opiniões, as diferenças, as falhas. E a cor,

né, que cor de roupa que vai vestir a gente escolhe, mas a cor da pele

não! Por isso que hoje eu posso dizer que sou um homem, não abaixo a

cabeça pra ninguém.

Outra coisa que aprendi foi a dividir, compartilhar. Antigamente, se eu

tivesse um quilo de sal e alguém me pedisse um pouco, eu daria uma

colherzinha, era isso o que eu conhecia. Hoje eu digo: vamos dividir meio a

meio, vamos dar mais pra quem precisa de mais. Aprendi que a dor de
cabeça do companheiro é a mesma que a minha. Porque lá fora, o que o

outro passa, o que o outro sente, não é problema seu. Hoje se um

companheiro me diz que eu sou feio, eu agradeço. Pra falar a verdade, só

com tempo e paciência pra entender a minha história, de como eu era e no

que me tornei. Porque eu comecei do meio, e antes, era um jovem que

tinha de tudo. Se aprontava e meu pai me batia, eu não chorava, porque

ele tinha razão. E o MST me ensinou isso, porque se fosse lá fora, eu

brigaria muito.

(...) Também fiz alguns cursos, passei seis meses na Escola Nacional

Florestan Fernandes, na construção e estudando um pouco de cada coisa.

Não me aperfeiçoei, mas freqüentei aulas sobre agronomia e outros temas.

Algumas pessoas seguiram carreira, mas eu queria mesmo aprender

algumas coisas que eu pudesse aplicar aqui, e passar para as outras

pessoas. Eu já tenho uma certa idade, então se eu aprendo um pouco

sobre cada coisa, já é suficiente para mim.

(...)Eu penso que todo mundo aprendeu, mas tem aqueles que não usam o

que aprenderam. Acho que todos aprenderam o valor do companheirismo,

mas depois dos lotes demarcados e agora, depois da construção das casas,

alguns deixaram o companheirismo de lado. Eu acho que ele fica lá dentro,


mas a gente tem quinhentos anos de educação no individualismo e na

ganância pra lutar contra, não é fácil. Eu mesmo em certas horas paro e

penso que posso estar sendo egoísta. Tem horas que a gente esquece,

mas aos poucos muda... Eu acredito que mudei 99 por cento. Antes, era

primeiro eu, e dou pra você se sobrar. Hoje, nem primeiro eu nem primeiro

você; primeiro nós, que vamos dividir.

(...)Pra te falar a verdade, hoje eu até gostaria que ela [a formação no

movimento] fosse mais rígida (risos). Tudo num assentamento depende

da formação. Quando a gente estava acampado, duas vezes por semana

tinha formação. Eu fui coordenador de núcleo de famílias, e cobrava de

mim mesmo pra poder cobrar dos outros. Se alguém perguntava para que

estudar, eu dizia: “você sabe como o Lula é presidente hoje? Quando ele

veio para São Paulo, voltou a estudar.” Eu falava brincando, mas depois de

uma certa idade, se a gente deixa livre demais a pessoa nunca que pega

num livro, porque já perdeu o hábito. Então eu acho que quem está

coordenando formação e educação pode investir um pouquinho mais na

cobrança de que as pessoas participem dos estudos. Eu só tinha a quarta

série, estudei e fiz as provas de eliminação de matérias, só engasguei um

pouquinho na matemática, porque o meu português mesmo já mudou


muito, você não me conheceu no passado... Então eu penso que o MST

investe muito na nossa formação, na educação, e se às vezes parece que

está forçando é porque um pai só força seu filho a comer porque quer que

ele cresça forte e com saúde.

Eu acreditava que a violência se combate com violência. E pra mim é um

ditado burro. Não é pra dar o outro lado pra bater, é só não devolver.

Devolver com palavras. Hoje eu entendo que a palavra machuca mais do

que um tapa. Mesmo que a pessoa seja ignorante, e na hora não entenda

ou não reconheça, depois ela vai deitar a cabeça no travesseiro e vai

pensar. Eu sei porque eu era assim, quando errava, insistia no erro,

inventava desculpas, nunca reconhecia. E agora se uma pessoa que eu

conheço perceber que eu estou errado e não me falar, eu vou é ficar de

mal com ela. É o que eu digo, o MST só não mudou a minha cor e o meu

tamanho.

Aumentou a minha clareza das coisas. A minha visão da sociedade, quando

eu estava na pior, era de que a culpa era dos governantes, que não davam

emprego. E a sociedade quando dava uma oportunidade era um enorme

favor. Porque a burguesia faz isso, sustenta por exemplo uma entidade

com distribuição de cestas básicas pra ter aquelas pessoas na palma da


mão, se elas não fizerem o que os donos querem a cesta não vai estar

garantida. Isso está claro pra nós. O patrão te dá um aumento miserável

no ano da eleição ao mesmo tempo em que te bate nas costas e lembra

que o candidato que ele apóia é fulano de tal. Fora que você tem serventia

dos dezoito aos trinta anos, se você não tem um curso superior, porque o

patrão explora, suga suas energias e depois te descarta. Imagina, cinco

anos atrás, se alguém falasse mal do meu patrão? Eu defendia com unhas

e dentes, era meu protetor...(risos) E a cultura, também. Em vez de ficar

escutando um monte de lixo que a mídia de massa empurra pra gente, a

gente conhece coisas lindas, de música e tudo...” Mauro

Nesta fala podemos observar o processo de resgate da dignidade, atribuído

ao movimento pelo entrevistado. Aponta para as mudanças de valores, como o

respeito à diferença e a solidariedade, e a retomada dos estudos, a partir de sua

participação nos cursos e espaços do movimento, além de sua visão da sociedade.

“Na época eu tinha ido sozinho pra luta, fiquei na educação, no respeito.

Porque não consegue a terra também você com cachaça, ou você porque é

solteiro querer atrapalhar a família dos outros... Porque todo mundo nota.

Não precisa dar porrada para atrapalhar; de você falar, de você olhar,

assediar... tudo atrapalha. Tem que entender que existe um corpo de


coordenação, de direção, que não são traidores, não são pessoas que

estragam a vida e a família dos outros, a gente tem que seguir aquele

ritmo. Eu me comportei bem.

Ah, e a solidariedade. Tem que ter o coração bom, você vê o outro lá se

lascando, sem ninguém te pedir você vai lá e ajuda. Porque tem trinta

olhando ele se ferrar sozinho, mas vão ter trinta pra olhar você ajudando

ele também. Não liga para o que os outros vão falar, se você está a fim de

conseguir o seu cantinho, não entra em conversa errada. Inventa uma

moda e sai. Se tem um tumulto, uma confusão, e já separaram, nada de

chegar lá; cuide da sua vida que não tem coisa melhor.

Quem tem problema com álcool, esses negócios, tem tudo o que precisa

para largar. Está no meio do mato, dentro de uma fazenda, longe de

boteco e dos amigos que puxam pra bebida... É a hora de falar não. Não

adianta eu ou você falar pra ele, se ele não disser “eu não quero”.

Os valores aqui são muito importantes. Que nem o companheiro falou,

acontece um problema na vida, acabou ficando três ou quatro anos preso,

as pessoas falam... Aqui se apaga o passado. O que você era lá fora já foi,

aqui dentro tem respeito e você vai ser respeitado. Isso é um lado ótimo,

mesmo. Você é respeitado, sua auto-estima sobe; quando você é de


confiança uma vez é pra sempre. Você pega a chave de tudo, e todo

mundo confia em você, porque você também é dono de tudo porque tudo

é coletivo. Eu posso tomar uma atitude aqui pra consertar o salão, pegar

mais dois ou três e subir lá, duvido quem vai me pedir pra descer. No

fazer, todo mundo é dono pra te apoiar, no desmanchar, todo mundo é

dono pra te proibir.

Precisa ver: eu não sou engenheiro nem sou arquiteto, não sou nada, sou

a bem dizer apenas um operário sem formação, mas estava numa

discussão sobre o salão da plenária aqui e minha opinião ganhou. Olha só

que lindo. Eu sou da opinião de que a arquibancada tinha que ficar virada

para cá. Ah, mas aí o palco ia ficar embaixo. No capitalismo o palco tem

que ser alto, mas aqui ninguém é melhor do que ninguém! E deu certo.

Você pode procurar por aí, quase não tem palco mais baixo do que a

platéia, a não ser em cinema. E aí já está o respeito, né. Mas nem todo

mundo pratica a igualdade cem por cento...

Todo mundo teve acesso [a esse aprendizado]. E o acesso é livre. Quando

se forma um coletivo de estudo, todo mundo que quiser pode fazer parte.

Não vão só os mais bonitinhos, não; vai tanto o mais estudado como o

analfabeto. Faz um pacote só, que ele aprende! Porque não é um diploma
que vai dizer que você sabe mais, vai ser o seu aprendizado. Se você for

um aluno dez, dez pra você. Mas se você foi um aluno nove, dez também,

porque você certamente trouxe alguma contribuição, que vai te ajudar no

lote, que vai ajudar o próximo.

(...) Quando a gente entra no movimento, tem que entender que o que

você sabe, o que aprende, é pra todos. Eu acho que uma coisa que eu

aprendi só tem valor se eu conseguir ensinar alguém. Porque saber só pra

você não é saber. Esse saber é de todos! As abelhas mesmo, a gente era

uma galera, trinta e seis, e eu praticamente fiquei de professor. Assumi, e

agora o Marcelinho também já pegou duas caixas, outro dia o Minduim

estava lá parado, pra baixo, eu falei ‘pega duas caixas vazias que eu vou

levar uns enxames pra você.’ E deu certo, porque anima mesmo. E quem

quiser mais eu levo. Porque eu já fui e continuo sendo levado também.”

Carlinhos

O depoimento de Carlinhos nos mostra como o processo de reelaboração

do passado contribui para a construção de uma nova imagem das pessoas na

comunidade em formação. Nos remete ao papel desempenhado pela coordenação

nesse processo, tanto através do exemplo como na atenção dispensada às

dificuldades enfrentadas pelas famílias, trazendo-as como questões a serem


tratadas coletivamente, e não como problemas pessoais. Traz à tona a importância

de colocar as opiniões, e a possibilidade de ser ouvido, num espaço de discussão

em que os saberes dialogam e as decisões são tomadas de forma coletiva.

“Só conhecia o movimento pela televisão, que dizia que o MST era ladrão

de terra... Hoje eu sei que ladrão de terra é a própria sociedade. Porque a

terra, Deus deixou para todos! Não para apenas cinco ou seis pessoas. Eles

acham que são os donos, mas não são...

(...) Graças ao Movimento Sem Terra, eu fiz curso de Comunicação, vivo

uma vida digna. Tenho minha casa sendo construída, com cinco mil reais

do Incra e treze mil da Caixa Econômica Federal. Uso essa energia,

providenciada pelo presidente Lula, que ficou oito anos engavetada pelo

presidente Fernando Henrique, que dizia que ficava caro levar a luz para

todos, e hoje qualquer pobre pode ter. Isso é dignidade. Mas precisa

ainda ter muita gente que tenha coragem, sabe, feito na França, de

paralisar o país. As pessoas acham que se paralisar o país vão perder os

empregos. Não! Vamos paralisar mesmo! Quem sofre não é você, quem

sofre é o país. Aí eles vão ver que o pessoal está acordado. Hoje nós não

temos uma saúde pública boa, nós vivemos à mercê... pra ter uma saúde

boa tem que pagar. E a minha história se confunde com a história de


lutadores. Uma luta travada contra o governo, contra sociedade rica, e até

com a polícia, que é pau mandado deles.

Eu aprendi a viver em coletivo. Aprendi a dividir o que se tem, por pouco

que seja. A coletividade e o companheirismo fazem parte, saber dividir as

panelas, dividir o teto, as roupas. Saber que o que tem pode ser

compartilhado, não ficar guardando as coisas enquanto o outro não tem

nada, e depois jogar fora. Saber conversar igualmente com todos aqueles

que estão diante de você. Fazer a sua participação, isso é a influência do

movimento sobre a nossa vida.

(...) Creio que todos aprenderam a expressar sua posição e a partilhar o

que têm. Eu mesma, sempre tratei as pessoas sem fazer diferença, sempre

tratei a todos da mesma maneira. Já comigo, fizeram muitas; fui

discriminada por ser homossexual, por ser travesti, mas eu aprendi a viver

com a discriminação. Agora, aqui dentro, não. As pessoas estranharam no

começo, mas aprenderam a me respeitar do jeito que eu sou. Tem gente

que hoje vem à minha casa se aconselhar comigo, pela experiência de vida

que eu tenho.

(...)Pra você ver como as coisas mudam, minha filha.” Piná

Piná passou a identificar a sua luta pessoal com a história dos lutadores e
lutadores do povo. A canalizar sua indignação, politicamente. Percebemos que,

através do movimento, passou a entender a questão fundiária de outra maneira, e

a valorizar a solidariedade e um espaço no qual é respeitada "como ela é."


O segundo eixo das questões, apresentado nas páginas anteriores, teve como

desdobramento reflexões sobre o aprendizado gerado especificamente sobre a

questão da produção, segundo eixo da matriz pedagógica do movimento, que nos

auxilia a compreender o processo da educação popular em suas diferentes

instâncias. Apresentamos, pois, algumas das falas acerca do tema.

“Eu e o Marcelo sempre tivemos mais dificuldade com a questão de

conciliar a militância e cuidar do lote. Não dá pra fazer as duas coisas. O

pessoal diz que nosso lote está abandonado. A gente já plantou bastante

coisa, mas não dá tempo de deixar o lote limpinho. Está sendo um

aprendizado. A gente estuda muito a questão da produção, o Marcelo já

sabia algumas coisas, os avós dele lidavam com uva, faziam vinho... Mas

eu mesma não tinha nenhuma ligação com o plantio, apesar de o meu pai

ser agricultor. Em todos os lugares que a gente morou sempre teve uma

horta, um milho, mas eu mesma não tinha uma ligação com a agricultura.

(...)A gente sempre estudou agroecologia, os princípios. De respeito à

natureza, de não plantar só um tipo de cultura, não trabalhar com

agrotóxicos...tudo isso vem sendo trabalhado desde o movimento, tanto na

militância quanto por parte das famílias. E o Marcelo se aprofundou porque

ele fez o curso. As famílias no geral tiveram acesso a alguns cursos, logo
de início tiveram alguns projetos e alguns não deram certo. A gente já

sabia qual era o potencial do assentamento: pequenos animais, hortas e

fruticultura. O Itesp fez um estudo de viabilidade da área, mas nunca

discutiu isso com as famílias. Hoje a gente está cobrando isso, porque as

famílias precisam produzir, e elas precisam saber o que este solo produz

melhor. Várias famílias estão produzindo hoje, muito mais por um esforço

próprio e do movimento do que do Itesp, que seria responsável por essa

parte mais técnica. A gente teve um técnico muito bom do movimento, o

Pelé, e antes dele houve outros, que foram orientando as famílias. Teve o

curso de compostagem, em parceira com o Ceagesp, da importância do

adubo. O Itesp trouxe a questão de como trabalhar com a questão das

galinhas...mas as famílias não gostaram muito da postura do Itesp, que

parecia mais desencorajar, dizer que seria impossível trabalhar com certos

tipos de cultura. Eles exigiam muita coisa que as famílias não tinham

condições. E aí elas já trazem consigo a sua sabedoria popular, né. Minha

família criava cabra, eu sempre tive porcos, nunca teve essas frescuras... E

estão criando. Mas ao mesmo tempo, a gente sabe que é necessário: a

sabedoria popular tem que estar ligada com as questões técnicas. Muita

coisa pode ser detectada e trabalhada a partir do momento que você toma
determinados cuidados. Tem que respeitar a sabedoria popular sem abrir

mão da assistência técnica. Eu vejo que muitas famílias mudaram seus

projetos. No começo muitos queriam criar galinhas. Aí começaram a criar

galinha e ter dificuldades. Não plantou milho aí teve que comprar ração. Aí

a galinha ficou doente...aí deixou a galinha solta no quintal veio o bicho do

vizinho vem e mata...Então muitos viram o investimento, de comprar as

galinhas e os pintinhos, ir por água abaixo. Outros fizeram projetos de

criação das cabras. Teve uma pessoa que bancou as primeiras cabras para

a comunidade, que era voltado para as famílias que tinham crianças...

Ainda tem famílias com cabras, mas têm dificuldades. Faltam condições

para criar, para produzir. Pra produzir determinada cultura, precisa

conhecer a cultura e as condições do solo pra saber adubar na quantidade

certa. Às vezes a família faz o projeto, investe, planta, e aquilo não dá,

porque o solo não condiz... aí, tenta de novo, ou desiste daquele projeto e

parte para outro.

(...)no núcleo verde, tem uma terra judiada pelo eucalipto mas ao mesmo

tempo uma terra boa. Eles plantam milho, plantam mandioca, feijão, e dá

muito bem. Eles fizeram muito uso do adubo da Ceagesp. Onde o

caminhão chegava e despejava o adubo, eles conseguiram fazer uma


correção do solo mais imediata. Não totalmente, porque leva cerca de dez

anos para se corrigir a acidez do solo, né. Muita gente não mexeu no

adubo, e aí começou a ver que o próprio adubo começou a produzir: veio

semente disso e daquilo e começou a brotar sozinho. Aí eles começaram a

ver que aquilo era bom e começaram a utilizar. A plantação de maracujá

veio da adubação! Duas ou três famílias que plantaram bastante maracujá

colheram muito bem... mas não conseguiram vender. Aqui no vermelho o

projeto dos morangos é recente, a gente também começou com milho,

mandioca, feijão e horta, mas as hortas não vingaram pela irregularidade

da água. E as frutíferas, o pessoal não investiu porque não tinha projeto

para comprar as mudas. A gente plantou aquilo que um ou outro

conseguiu a semente e a gente mesmo fez as mudas. Agora com o

Fomento 2, que é projeto de produção, nós compramos as frutíferas e

tivemos um projeto de estufa.

A região é muito boa pra isso, né. Limeira, Jarinu, tem as uvas e os

morangos...agora tem também a rubimel, que é ameixa com figo. Por ser

uma região montanhosa, é uma boa opção. Tem também aqueles que

estão com pequenos animais, e alguns com animais de grande porte, que

o assentamento não comporta. Mas algumas famílias têm esse sonho, e


estão tentando.” Maria

Ao fazer um apanhado do que se está produzindo no assentamento, Maria nos

revela muitos dos conhecimentos construídos na relação com a terra. Do projeto

de sua família de aprofundamento sobre a agroecologia ao diagnóstico sobre o

solo, e a constatação da necessidade de planejamento coletivo, percebemos a

propriedade com que trata os assuntos, estudados e vividos nos últimos anos. Nos

dá também uma idéia de como os saberes prévios das famílias assentadas

dialogam – ou não – com os saberes dos técnicos designados para fazer o

acompanhamento da produção, e das dificuldades enfrentadas pelos assentados

para produzir regularmente e com qualidade.

“[a parte do plantar] foi novo, mas não foi. Sabe que eu até os seis anos

morava na roça com meus pais, só que fui viver na cidade porque não

tinha escola pra estudar. Quando minha madrinha me falava que eu tinha

que me formar professora pra voltar no lugar onde meus pais moravam,

eu falava “pelo amor de Deus, nunca que eu piso lá de volta”. E lá era no

meio do mato, pra chegar na cidade era muito pior do que aqui o acesso.

Eu sempre disse que nunca iria pro mato, e nunca eu aprendi a plantar.

Quando minha mãe levava meus irmãos buscar lenha, que ia ensinar a

plantar, eu saía correndo.


(...)E eu aprendi tudo aqui. Hoje em dia eu não vou dizer que eu estou

craque, mas eu sei plantar minhas coisas. Eu planto horta de alface, de

legumes, abóbora, feijão, milho. Eu nunca tinha pego numa enxada. Quem

me ensinou a carpir foi Luciana, e eu aprendi a carpir melhor do que certos

homens que tem por aí. Não tenho nenhuma dificuldade, não. Quando eu

tiro pra fazer essas coisas, eu não quero nem sair de lá. Quero ficar

roçando, limpando, plantando... foi uma transformação. Hoje em dia eu

não tenho mais mãe, mas se ela ainda estivesse viva, ela não ia acreditar.

Meu pai mesmo não acredita que eu estou no meio do mato. 'Do jeito que

você era...só vendo pra crer', ele fala.” Jacira

De volta às origens, acompanhamos no relato de Jacira a forma pela qual se

reaproxima da terra e do plantar através das companheiras, e aos poucos toma

para si mais este saber.

“As pessoas que chegam a ser assentadas e vão pra frente é porque têm

amor à natureza. Ela tem que ter um pouco de amor já, senão ela não

agüenta, ela não consegue. Se ela não pegar amor pela terra, se não

estudar uma planta, se ela não for pra esse lado, ela não

consegue...porque o capitalismo rouba a pessoa de volta pra cidade. É

árduo, é duro, mas o amor compensa. Você planta uma árvore hoje, dali a
pouco você vê uma florzinha. Mais um pouco, uma goiabinha. Minha

primeira goiabeira deu duas goiabas só, mas para quem esperou ela

crescer dois anos e meio, é como se estivesse carregada de goiaba!

Porque o que o movimento tem de muito lindo é que antes você até sabe

que a planta precisa de um adubo. Mas qual? Em que quantidade? O

movimento deu estudo, de técnicas, de agronomia; a distância de uma

planta para outra pra não atingir, qual casa com qual... O processo do

movimento é resgatar o agricultor que existe em você. Fora a luta, né?

Mas a parte boa, depois de conseguir a terra, é tudo que vem junto. A

semente, patrimônio da humanidade. A gente passa a entender. Porque se

toda semente do mundo cai na mão do Bush, já viu! Ele faz guerra por

água, por petróleo... Então ele faz guerra de fome no país que está

dominado. E isso são coisas que você é leigo na cidade.

Na cidade você pega um facão e sai roçando no meio da mata pra ir

pescar. Aqui, você vê, Deus me livre sair com o facão pra abrir o caminho

porque precisa de água. Primeiro procura um caminho que já tem pisado,

desvia e faz um caminho maior pra não degradar. Isso aí eu tomei muita

consciência, porque não tinha.

A questão da abelha. Hoje eu pego uma caixa de abelha e levo pra São
Paulo, pra tudo que é lugar. Mas eu queimava um pneu, que é super

tóxico, o cheiro da borracha entrava até no mel, e matava todas as

abelhas! Imagina? Então o movimento te faz resgatar o planeta terra,

porque te faz entender que você é dono; te joga uma responsabilidade,

uma culpa se estragar.

Eu acho muito lindo, se todo mundo pegasse essa parte da preservação

que o movimento faz, seria ótimo para o nosso país, para todos os países,

pra humanidade. Teve muita gente que quando chegou aqui reclamava “ai,

quanto bicho”, se for pegar hoje, alguém souber que outro matou um

bicho fica uma jararaca!

Bom, e existem dificuldades na cidade que aqui você não passa. Não

adianta comparar, você leva uma vida de ouro no sítio. É muito gostoso,

você acaba de tirar a abobrinha e já está cozinhando, é demais. Comer

sem agrotóxico, orgânico mesmo, nem se fala. Saber que você nunca pôs

veneno nas coisas que come. Porque [na cidade] todo mundo é ignorante

do que come.

Eu tinha noção assim, no arroz, porque anos atrás encontrei pedaços de

vela. Eu não sei se é lubrificante, das máquinas, eu sei é que foi uma das

coisas no alimento que eu achei e me gravou até hoje. Fora as coisas que
a gente sabe que tem, mas não vê. Mas cem por cento agrotóxico, como

é, eu não fazia idéia antes não. A questão da banana mesmo: o pessoal

ensina a reutilizar a casca da banana... essa nossa daqui dá pra reutilizar,

mas o resto é carbureto puro! Eles fecham as bananas num quarto, acende

um carbureto e deixa queimar. Aquilo penetra na banana, onde já se viu

em 24 horas as bananas ficarem amarelas? Pra mim, isso é crime, e

deveria ter uma punição. Mas não tem! Quem faz isso são os grandes

agricultores, que são fortes. Não dá.

(...)um aprende com o outro. Aqui não tem inveja, tem a gente querer

tocar o barco fazendo aquilo que deu certo. Tá vendo que o Carlinhos fez

uma coisa que deu certo, vamos lá ver como ele fez, e aplicar no outro lote

que vai dar certo também. Esse é o meu pensamento. Se deu certo pra

mim, pode dar certo pro outro, que a terra é a mesma; amanhã vai estar

com mais um pé de fruta que ele plantou. Mas às vezes tem gente que

cospe no prato que comeu, ele se escondeu um tempo debaixo da

bandeira, e depois voltou a ser o que era. Só não teve mudança o sujeito

que deu uma de onça morta pra chegar mais próximo do bicho! Pra mim

houve uma mudança, no jeito de ser e de pensar. Vou te falar a verdade:

eu na minha casa não tinha jeito de eu comer puro, não. Agora na luta,
devido às dificuldades de fazer um arroz, às vezes de trazer uma panela,

às vezes de achar uma lenha seca... hoje em dia, minha amiga, eu como

pão e pedra. Duas folhinhas, uma cenoura, pra mim é alimento. Se tem

arroz e feijão e está quente, desce. O capitalismo não permite isso pra

gente. A liberdade de hoje comer abóbora, se não comer bife. É mais

saudável, e é uma super economia no bolso da gente. Hoje vamos comer...

uma mandioca frita? (risos)” Carlinhos

Carlinhos já tinha o amor pela terra que julga ser necessário a todos que

chegam a ser assentados, já tinha a curiosidade, mas atribui ao movimento a

oportunidade de estudar e de conhecer as plantas. Além disso, a partir da

experiência do acampamento e de suas primeiras alegrias com a produção,

começa também a mudar seus hábitos alimentares, e a perceber o quanto essa

mudança tem relações com a saúde e com o sistema econômico.


O terceiro e último eixo das entrevistas tinha por objetivo verificar

as expectativas dos entrevistados com relação ao estabelecimento de um

modo de vida alicerçado nos valores apresentados por eles mesmos como

princípios integradores da comunidade, uma vez asseguradas a terra e as

casas, sua disposição para continuar participando das instâncias coletivas de

discussão e deliberação, e suas impressões sobre as tendências dos demais

companheiros num futuro próximo .

“Olha, há melhoras na qualidade de vida das pessoas pela própria

alimentação. O pessoal que planta mandioca por exemplo, não precisa

comprar pão. Quem tem horta não precisa ir lá fora pra comprar verduras

e legumes. No entanto a nossa maior dificuldade é fazer um planejamento

e produzir de acordo com esse planejamento. Então ainda não chegou no

ponto de dizer: olha, eu sobrevivo da terra e compro meu calçado com o

dinheiro da minha produção. Não dá pra dizer ainda que o assentamento

se sustenta. Algumas famílias fazem bicos lá fora, outras conseguem

escoar a produção de sua horta. Existe a intenção de que o escoamento, a

comercialização seja coletiva, e tem várias possibilidades, mas falta projeto

de produção. A gente tem a possibilidade de vender para as escolas

através da secretaria de educação, tem o Ceagesp, tem a Feira Móvel,


clubes de compras... falta produzir com planejamento, a produção ainda é

irregular. Não dá pra fechar um contrato com a secretaria de educação pra

fornecer verduras e depois faltar. Precisamos ter uma produção constante.

[Essa coletivização] já está se dando por pequenos grupos de famílias, por

afinidade de produção. Um exemplo são as uvas, algumas famílias estão

plantando e aprendendo juntas, como plantar e lidar com a uva, já estão

na segunda plantação. Vão aprender a fazer vinho, que é do interesse

delas também. Mas essas coisas vão se dando aos poucos, porque falta

investimento. Então as formas de se agrupar para o planejamento também

estão se definindo. O processo de comercialização a gente acredita que vai

mesmo ser coletivo, mas na produção nem tudo dá pra se fazer junto. Dois

terços da terra do assentamento são coletivos, por ser uma comuna da

terra, mas isso não quer dizer que vai se definir por uma única produção e

que todo mundo vai trabalhar lá junto. O processo da construção das casas

agora acabou contribuindo pra isso, alguns novos grupos de afinidade se

formaram, enquanto outros se desmancharam. Mas foi importante, porque

possibilitou que as pessoas de núcleos diferentes também convivessem.

Antes mesmo da construção por mutirão, no debate sobre as casas, as

famílias começaram a se conversar mais, saber dos sonhos uns dos outros,
e muitos que estavam só no seu lote individual passaram a trabalhar no

núcleo, discutir junto o que nós íamos fazer. Claro que tem problemas, às

vezes brigas, desavenças. Mas querendo ou não, tem convivência. Briga

com fulano num dia, mas precisa dele para construir junto no outro... aí

volta a falar com um e briga com outro, enfim. E aí amadurece. Eu acho

esse um processo bonito e rico. As pessoas vão aprendendo a lidar com as

qualidades e os limites do outro. Um é mais devagar, o outro é mais

paciente, outro é mais esquentado...

(...)Todo mundo sabe aqui que só conquistou a terra através da luta

coletiva. Mesmo aqueles que hoje estão mais afastados do movimento

sabem e defendem a importância da luta. Hoje se a gente convoca uma

assembléia do assentamento a participação depende muito da pauta. No

início das discussões sobre as casas, a gente teve cem por cento de

participação. Mas nós temos duas famílias que não entenderam, que não

concordaram com esse processo coletivo. Que depois que foram

assentadas abandonaram o coletivo. Tem diferenças de participação, então

tem aquelas que não se desligam porque entendem que só vão conseguir

as coisas se for no coletivo, através do movimento, mas não participam da

luta lá fora, participam das lutas pelo seu assentamento. Tem umas que
nem pelo assentamento, só pelo seu núcleo. Como em qualquer segmento

da sociedade, né, tem os que fazem a luta e os que, apoiando e não indo,

vão se beneficiar depois...

(...) é isso, você tem diferentes tipos de envolvimento. Tem aqueles que

entram para conseguir a terra e depois se desligam do movimento. Mas a

questão individual no país é muito forte, não é o movimento sozinho que

vai mudar isso. Mesmo com o processo de formação no movimento, as

pessoas foram criadas numa sociedade. Não é em dois ou três anos que a

gente vai mudar isso. Mesmo trabalhando no coletivo, nós fomos criados

numa sociedade capitalista, para sermos individualistas.(...) Se a gente não

entender que nós temos uma cultura que é formada na sociedade como

um todo, que aqui nós não somos uma ilha, aqui tem televisão... Aqui não

é Cuba, e mesmo em Cuba as coisas não acontecem assim, a gente sabe

que existem pessoas revoltadas querendo que o regime mude... A gente

dizer que a militância vai dar conta de pessoas que vivem num país

capitalista em que na televisão o jornal nacional é quem faz a formação é

ilusão, porque é muito desigual. Se as nossas crianças vão para a escola

normal, que não conhece a nossa realidade...Nada garante. Eu estou

fazendo a minha parte, estou dando mais opções para ele [filho], mas a
escolha é dele. Eu acho que essa formação pesa, mas as famílias têm o

poder de decisão. Eu mesma vou decidir se eu vou querer ou não.” Maria

“Hoje mesmo eu estava no orelhão fazendo uma ligação, teve uma

conversa, o companheiro despejou um monte de coisas... é difícil, depois

do desgaste no processo de construção das casas, pensar em fazer alguma

coisa com todo mundo junto. Vamos ver, vamos tentar, eu gosto muito de

trabalhar com as pessoas, nós participamos do grupo da estufa, os

pimentões estavam lindos! Foi muito bom. Acabou, mas não há de ser o

último, né?” Jacira

“Eu formei um pomar ecológico, com vinte espécies de frutas, cem por

cento orgânico. Estou passando adiante as mudas, para os companheiros.

Fiz recentemente um curso sobre caprinos, pretendo ter algumas

cabrinhas, mas só para o consumo; estou preparando um pasto, pra que

elas não passem fome como eu já passei.” Mauro

“Tem o Tonho da uva, lá de Jarinu, se ele balança o dedo eu vou

correndo, porque quero aprender a lidar com a uva. Então a coisa é assim,

e é assim que tem que ser. Agora conscientização cem por cento é

impossível. É até bom você analisar, porque a gente vive na riqueza hoje e

a pessoa ou não dá valor, ou não se tocou ainda. Que nem aquela pessoa
que não parava de reclamar, dizia que aqui não dava nada. Plantava o

chuchu e o chuchu nada... Aí foi no vizinho, ele falou que estava comendo

chuchu faz tempo! Veja a falta de comunicação. Foi ver, ele tinha plantado

o chuchu dentro de um toco podre de eucalipto, com um pouco de terra;

em seis meses tava dando chuchu lá em casa.

Olha, eu te digo que nessa época de chuva, se você for fazer uma coleta

do que tem de excedente lote por lote aqui no assentamento já dá um

caminhão. Porque pense: cem pés de mandioca dá pra passar o ano

tranqüilo, duzentos já é excedente... Galinha, se você tem cinco mais um

galo pra botar, são cinco ovos por dia. Vai, uma falha, são quatro ovos por

dia. Numa família com quatro pessoas, um dia come uma omelete; no

outro come abóbora, pronto, já é excedente. Se tiver dez galinhas, é

excedente os ovos, e é excedente a galinha, que você pode dispor dela. O

mel mesmo, depois do apiário escola implantado pelo Itesp, começamos a

produzir nos lotes. Fora outras coisas... A cana... pelo nível de idade aqui

no assentamento, dá pra dizer que é tudo excedente também (risos).

Sério, dá pra tirar um caminhão pipa de caldo de cana. E tem pimenta... a

gente não dá conta de comer o que dá num pé, imagine plantar cem pés

de pimenta. Então, já tem bastante coisa, mas a gente não tem tempo de
fazer a “arca de noé”, porque senão não faz uma coisa nem outra. Eu acho

que a gente tem que escolher três coisas pra trabalhar a terra, pra chegar

no auge da qualidade, na perfeição da coisa. Senão não consegue se expor

no mercado.

A disposição de fazer essa venda junto, ela existe e vai ser feita. Está em

andamento através de uma cooperativa, que vai abrir o mercado para a

gente comercializar, e vai retirar os produtos aqui. Fora isso os moradores

da região inteira são consumidores. Só falta a gente avisar. Falta a gente

fazer tipo uma boca de urna, em vez de buscar o voto a gente vai vender,

buscar o dinheiro na cidade. Se ficar com o produto aqui sem virar

mercadoria ele amadurece, dá semente, passa do ponto... e você não

vende. Porque o assentamento ainda não é conhecido. Os governos

querem mais é abafar, se for pra sair nos jornais da região é capaz de não

sair nem da gráfica. Pra gente fazer a coisa vai precisar muita divulgação e

organização interna.

(...)A gente está caminhando, tentando achar o caminho, vendo com o que

tem mais afinidade. Por enquanto, o cara consegue colocar a mandioca

dele no mercado a um real, o comprador pede mais que a sua não deu. É

a hora de chamar os vizinhos pra uma conversa: “eu vendi para um


colega, e ele quer mais”. Você está ajudando e tirando o seu. Eu tive isso

no fim de ano, tinha três porquinhos. Aí tira um para a família, dois para

vender. Vendi os dois. Pensa que não apareceram mais dois caras pra

comprar os porquinhos que eu já não tinha? Aí eu levo no meu vizinho, é o

mesmo preço, mesma qualidade. E essa questão do mesmo preço e

mesma qualidade já tem que conversar também, antes.

(...) Nós que estamos puxando abelha, eu, Marcelinho, Minduim, nosso

sonho é que realmente aconteça a casa do mel. Nós já estamos

trabalhando em conjunto. Ela só vai acontecer se a gente se unir pra ela

acontecer. Tem que haver essa união. Se você for parar pra pensar ela é

de todos. Os que quiserem revezar, pegou limpa, entrega limpa. E por aí

vai. A princípio, eu acho que se você pegasse e fizesse um monte de

estruturas e depois trouxesse os assentados, andava pra trás. As

estruturas elas tem que ir acontecendo conforme as pessoas vão se

formando, vão conquistando e vão... pegando amor pela coisa. Se arasse

todas as terras e desse pros cabras...eu acho que não é assim não. Ara

uma fita, aprende a plantar nessa fita, daí ara uma outra... degrau por

degrau.” Carlinhos

Tudo acontecendo ao mesmo tempo: a finalização das casas, o desafio da


subsistência, a elaboração de projetos para garantir o subsídio do fomento.

Embora com diferentes graus de envolvimento, com maior ou menor crença no

quanto as pessoas ainda terão disposição para concretizar a autosustentaçao do

assentamento de forma coletiva, a parte final das entrevistas nos leva a crer que a

terra foi preparada, e a semente, plantada. Talvez, seja questão de ter mão boa e

saber cuidar.

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