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Fundamentos Teóricos

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Concepção de ser humano,
educação e desenvolvimento

Juliana Campregher Pasqualini

A pedagogia histórico-crítica e a
psicologia histórico-cultural cons-
tituem expressões, no campo da edu-
mulações da pedagogia histórico-crítica
datam de 1979, num esforço que envol-
veu inicialmente alguns participantes
cação e da psicologia, do materialismo do grupo da Pós-Graduação em Educa-
histórico-dialético, matriz de pensa- ção da Pontifícia Universidade Católica
mento que tem em Karl Marx e Friedri- de São Paulo (PUC/SP), coordenado pelo
ch Engels seus fundadores. professor Dermeval Saviani (DELLA FON-
A pedagogia histórico-crítica tem TE, 2011). Desde então, ao longo de três
origem no cenário cultural, político e décadas, a construção dessa pedagogia
pedagógico de fins da década de 1970 vem contando com a colaboração de di-
no Brasil. Dermeval Saviani, professor versos pesquisadores, com destaque aos
emérito da Unicamp, é o grande fun- professores Newton Duarte e Lígia Már-
dador e principal representante dessa cia Martins, ambos docentes da Unesp
Escola, que já alcança mais de 30 anos lotados respectivamente nos campus de
de existência. Havia naquele momento Araraquara e Bauru.
histórico, conforme Saviani (2011), um Marca essa corrente pedagógica a
movimento de crítica à política educa- defesa da socialização, pela escola, do
cional e à pedagogia oficial do regime patrimônio cultural do gênero huma-
militar, que culminou na busca por al- no, isto é, da transmissão de conheci-
ternativas que permitissem compre- mentos científicos, artísticos e filosófi-
ender de forma crítica os problemas cos por meio de uma prática orientada
da educação brasileira e a natureza da por fins determinados de forma inten-
prática pedagógica. As primeiras for- cional e consciente. Seus postulados

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sustentam uma educação escolar que -la como produto das lutas travadas na
tem como perspectiva o pleno desen- União Soviética (URSS) desde a Revolu-
volvimento humano, promovendo a ção Socialista de 1917 até a década de
formação omnilateral dos indivíduos, 1930, ou seja, como um projeto coleti-
de modo que estes possam se tornar co- vo pós-revolucionário. A psicologia vi-
nhecedores da realidade concreta que gotskiana constitui um esforço de cons-
determina sua existência na sociedade trução de uma “nova psicologia”, num
de classes, bem como das possibilidades contexto em que todas as esferas da
de transformação consciente dessa re- vida social (economia, política, litera-
alidade (PASQUALINI; MAZZEU, 2008). tura, poesia, teatro) experimentavam
O nascimento da psicologia histó- grande efervescência e a ciência era
rico-cultural, por sua vez, remete ao chamada a contribuir para o enfrenta-
contexto da Rússia pós-revolucionária. mento dos grandes desafios de uma so-
Trata-se de uma vertente da ciência psi- ciedade em transformação.
cológica que nasceu no início do sécu- As bases filosóficas dessa nova psi-
lo XX na então União Soviética (URSS), cologia foram buscadas no método ma-
tendo como principais representantes terialista histórico-dialético. Vigotski
L. S. Vigotski, A. N. Leontiev e A. R. Lu- desejava apreender o método de Marx
ria. Compõem ainda esse grupo de pes- e, a partir dele, identificou os marcos
quisadores soviéticos, conhecido como metodológicos para a investigação
a Escola de Vigotski, autores como D. B. científica do psiquismo humano.
Elkonin, V. Davidov, entre outros. Nesse capítulo, serão apresenta-
dos os fundamentos teórico-filosófi-
cos da pedagogia histórico-crítica e da
O livro “Vygotski: a construção
psicologia histórico-cultural. Antes de
de uma psicologia marxista” de
adentrarmos ao estudo desses funda-
Silvana Calvo Tuleski, analisa o mentos, contudo, é importante refletir,
cenário social, cultural e político ainda que brevemente, a respeito da
em que se constituiu a Escola de articulação entre psicologia e pedago-
Vigotski e suas relações com o gia. Como afirmamos de partida, psi-
projeto coletivo de construção de cologia histórico-cultural e pedagogia
histórico-crítica compartilham as mes-
uma nova sociedade.
mas bases filosóficas e comungam um
mesmo posicionamento ético-político.
Como alerta Tuleski (2002), para Mas como psicologia e pedagogia se re-
compreender a obra de Vigotski e seus lacionam quando se trata de orientar a
colaboradores, é preciso contextualizá- prática pedagógica?

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VOCÊ SABIA?
Vigotski morreu precocemente em 1934, aos 38 anos, vítima de tuberculose. Com
a ascensão e consolidação do regime stalinista, a Escola de Vigotski se tornou alvo
de censura ideológica e retaliações, que culminaram com a proibição das obras de
Vigotski a partir de 1936, dois anos após sua morte. Algumas das obras de Vigotski
só voltariam a ser publicadas na Rússia mais de vinte anos depois.

Historicamente, a psicologia teve lugar de destaque na seara da


educação infantil, fundamentalmente porque o trabalho do profes-
sor de educação infantil era pensado como um acompanhamento do
desenvolvimento (supostamente) natural da criança. Nesse contex-
to, caberia ao trabalho educativo adaptar-se às fases ou estágios do
desenvolvimento natural do homem, de modo que o conhecimen-
to fornecido pela psicologia acerca de tais fases ou estágios adqui-
ria primazia sobre quaisquer outros. Vale lembrar que ao longo da
história da educação infantil, a psicologia do desenvolvimento se fez
presente menos como teoria científica consistente e mais como re-
ceituário de passos a serem seguidos para classificar os estágios de
desenvolvimento infantil (ARCE, 2002).
A psicologia, por si mesma, não é capaz de orientar a ação do-
cente. Psicologia e pedagogia constituem uma unidade que orien-
ta a prática pedagógica. O psicólogo russo S. L. Rubinstein, citado
por Davidov (1988), analisa as relações entre psicologia e pedagogia
afirmando que o que para uma é objeto, para a outra é condição.
Vejamos. O objeto de uma ciência é aquilo que ela investiga e que
define sua especificidade1. De acordo com Rubinstein, o objeto da
psicologia são as leis do desenvolvimento do psiquismo da criança.
Por sua vez, o objeto da pedagogia são as leis específicas da educação
e do ensino. Considerando a natureza histórico-cultural do desenvol-
vimento psíquico da criança, podemos dizer que o processo pedagó-
gico é condição para que esse desenvolvimento aconteça. Ao mesmo
tempo, considerando que os processos pedagógicos intervêm sobre
1
A proposição de objetivos e
diferentes níveis do desenvolvimento psíquico da criança, o conheci-
conteúdos de ensino na matriz
mento dos princípios que regem o desenvolvimento infantil é condi- curricular se orienta justamente
ção para seu planejamento. pela delimitação e conceitua-
Partindo dessa compreensão, serão apresentadas a seguir a con- ção do objeto de cada área do
cepção de homem e de educação no pensamento marxista, constituin- conhecimento.

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do as bases da teoria do desenvolvimen- determinados pela herança genética
to infantil da Escola de Vigotski que será da espécie, nós, humanos, nos consti-
apresentada nos capítulos seguintes, tuímos fundamentalmente a partir da
bem como da matriz curricular e das di- herança social, cultural.
retrizes para a organização do trabalho O homem é um ser que transforma
pedagógico que compõem essa propos- a natureza e produz os meios para sa-
ta pedagógica. tisfazer suas necessidades. É certo que
as diversas espécies animais modificam
1.1 Concepção de ser humano e o ambiente em que vivem: transportam
desenvolvimento galhos e folhas, cavam buracos, trans-
portam sementes etc. Primatas supe-
O materialismo histórico-dialético
riores como os chimpanzés até mesmo
nos ensina a compreender o homem
usam gravetos para capturar formigas
como um ser histórico e social, ao mes-
e cupins. Os animais utilizam aquilo
mo tempo “produto” e “produtor”
que a natureza oferece. Mas o homem,
da sociedade. Um pressuposto funda-
diferentemente, a transforma com in-
mental do pensamento marxista é a
tencionalidade. É bastante conhecido o
ideia do salto ontológico representa-
trecho em que Marx aponta a diferença
do pelo surgimento da espécie huma-
entre a abelha e o arquiteto:
na. Isso significa que o homem, sem
deixar de ser animal, diferencia-se dos Uma aranha executa operações seme-
animais de modo radical, por tratar-se, lhantes às do tecelão, e a abelha supe-
essencialmente, de um ser social. Te- ra mais de um arquiteto ao construir
mos muitos exemplos de animais gre- sua colmeia. Mas o que distingue o
gários, que vivem em bandos, como os pior arquiteto da melhor abelha é que
elefantes ou macacos. Mas o ser huma- ele fixará na mente sua construção an-
no não é apenas um animal gregário, tes de transformá-la em realidade. No
que vive junto com seus pares. Não se final do processo do trabalho, aparece
trata simplesmente de viver com ou- um resultado que já existia antes ideal-
tros humanos, como lobos vivem jun- mente na imaginação do trabalhador.
to de outros lobos: as relações com Ele não transforma apenas o material
outros homens nos constituem, são sobre o qual opera: ele imprime ao
formadoras do nosso ser, constroem material o projeto que tinha conscien-
nossa humanidade, nosso psiquismo temente em mira, o qual constitui a lei
e nossa personalidade. Isso porque, determinante do seu modo de operar
diferentemente dos animais que têm e ao qual tem de subordinar sua vonta-
seus comportamentos grandemente de. (MARX, 1985, p.149-150)

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O homem modifica a matéria natu- za ativa e intencionalmente os meios


ral, imputando a ela características hu- de sua subsistência. Ao fazer isso ele
manas. Ao se construir uma machadi- inicia o processo de transformação da
nha, por exemplo, a madeira e a pedra natureza, criando um mundo humano
deixam de ser meros objetos dados pela (o mundo da cultura).
natureza para se transformarem em
O interessante é que não só a ma-
um objeto social, com função e signifi-
téria natural é transformada nesse pro-
cado atribuídos pelo homem. Esse ob-
cesso, mas também o próprio homem. A
jeto contém propriedades determina-
atividade de trabalho modifica o obje-
das, não previamente existentes, mas
to e ao mesmo tempo o sujeito, pois ao
que foram produzidas pela atividade
transformar a natureza de forma ativa
humana. Esse processo pelo qual o ho-
e intencional o homem desenvolve no-
mem transforma a natureza é chamado
vas capacidades e habilidades e adqui-
trabalho. Como explica Saviani (2005,
re conhecimento. Além disso, o proces-
p. 11), o trabalho conduziu o homem
so e o produto do trabalho não somen-
à criação de um mundo propriamente
te satisfazem necessidades, mas criam
humano, o mundo da cultura:
novas necessidades, que impulsionam
Com efeito, sabe-se que, diferente- o homem a engajar-se novamente na
mente dos outros animais, que se atividade de trabalho. Olhando para a
adaptam à realidade natural tendo a história humana, podemos facilmente
sua existência garantida naturalmente, perceber o quanto novas necessidades
o homem necessita produzir continua- foram sendo produzidas, nos afastan-
mente sua própria existência. Para tan- do radicalmente do jugo das necessida-
to, em lugar de se adaptar à natureza, des puramente biológicas.
ele tem que adaptar a natureza a si, O produto do trabalho humano
isto é, transformá-la. E isto é feito pelo configura uma objetivação. Na medida
trabalho. Portanto, o que diferencia o em que o homem produz um objeto,
homem dos outros animais é o traba- “deposita” nele um pouco de si: suas
lho. E o trabalho se instaura a partir do ideias, conhecimentos, capacidades
momento em que seu agente anteci- e habilidades. Como explica Leontiev
pa mentalmente a finalidade da ação. (1978), “no decurso da atividade dos
Consequentemente, o trabalho não é homens, as suas aptidões, os seus co-
qualquer tipo da atividade, mas uma nhecimentos e o seu saber-fazer cris-
ação adequada a finalidades. É, pois, talizam-se de certa maneira nos seus
uma ação intencional. Para sobreviver produtos (materiais, intelectuais, ide-
o homem necessita extrair da nature- ais)” (p. 265). Portanto, historicamente

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as faculdades humanas foram sendo depositadas ou cristalizadas nos
objetos produzidos pelos homens. Esse processo é bastante nítido
quando analisamos os instrumentos produzidos pelo homem, desde
a machadinha até o computador:

O instrumento é o produto da cultura material que leva em si, da ma-


neira mais evidente e mais material, os traços característicos da criação
humana. Não é apenas um objeto de uma forma determinada (...).
O instrumento é ao mesmo tempo um objeto social no qual estão
incorporadas e fixadas as operações de trabalho historicamente
elaboradas. (LEONTIEV, 1978, p.268)

Os instrumentos e objetos da cultura contêm em si, portanto, ativi-


dade humana materializada: tornam-se suporte permanente de ope-
rações historicamente desenvolvidas pelos homens. Dizemos que a ati-
vidade humana está objetivada no instrumento. Com isso, as faculda-
des humanas corporificam-se nas objetivações da cultura, tornando-se
socialmente disponíveis para apropriação por outros homens.
É importante ter clareza de que quando falamos em objetivações
da cultura, referimo-nos não só a objetos materiais, mas também
ideais. O conhecimento científico é uma objetivação da cultura. Um
2
O conceito de objetivação
conceito, uma poesia, um quadro, uma melodia, uma parlenda: são
é fundamental para com-
todos exemplos de objetivações humanas2.
preendermos a tarefa da
educação escolar que, em
última instância, tem a res-
Uma das características que distingue os instrumentos
ponsabilidade de garantir o
acesso da criança às objeti- humanos dos proto-instrumentos utilizados por certos
vações humanas no campo animais é o conteúdo social e ideal objetivado nas ferramentas
da Ciência, da Filosofia, da produzidas pelo homem: “Sabe-se, por exemplo, que o símio
Arte, da Cultura Corporal. A
aprende a servir-se de um pau para puxar um fruto para si. Mas
elaboração da matriz curri-
estas operações não se fixam nos ‘instrumentos’ dos animais
cular é, nesse sentido, o pro-
cesso pelo qual se elegem as e estes ‘instrumentos’ não se tornam suportes permanentes
objetivações humanas que dessas operações. Logo que o pau tenha desempenhado a sua
devem ser apresentadas e função às mãos do símio, torna-se um objeto indiferente para
transmitidas às novas gera-
ele.” (LEONTIEV, 1978, p. 268-9)
ções a cada etapa da educa-
ção escolar.

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As objetivações da cultura são a no está fora dos indivíduos, e não den-


fonte das capacidades psíquicas verda- tro! As condições sob as quais nos de-
deiramente humanas. Vygotski e Luria senvolvemos são, portanto, decisivas.
(1996) explicam que a cultura originou Mas que “conquistas” e “capacida-
novas formas de conduta não progra- des” são essas que apenas a cultura é
madas pelo aparato biológico da espé- capaz de transmitir? Essa pergunta re-
cie humana, ou seja, ela modificou o flete uma preocupação que orientou
funcionamento “natural” de nosso psi- as investigações e proposições de Vi-
quismo, edificando novos níveis no sis- gotski no campo da psicologia: o que
tema do comportamento humano. Isso diferencia o psiquismo humano do
significa que a cultura supera e trans- psiquismo animal?
forma (sem eliminar) as determinações Para esse autor, o estudo dos proces-
naturais da conduta humana. Por essa sos psíquicos superiores especificamen-
razão, Saviani (2005) afirma que a na- te humanos constitui, por excelência,
tureza humana não é dada ao homem, o objeto de estudo da psicologia: “A
mas é por ele produzida sobre a base psicologia busca aquelas formas espe-
de sua natureza orgânica, como se o cificamente humanas de determinismo,
mundo da cultura forjasse no homem de regulação da conduta, que não po-
uma segunda natureza. dem ser simplesmente identificadas de
A cultura é, portanto, uma forma de modo algum com a determinação do
fixar e transmitir as conquistas huma- comportamento animal ou reduzidas a
nas que não podem se fixar no aparato ela.” (VYGOTSKI, 1995, p. 89). Vigotski
biológico do homem, ou seja, que não não deixa dúvidas quanto à primazia
provocam alterações anatômicas e fi- da dimensão social sobre a natural na
siológicas que possam ser transmitidas explicação do comportamento huma-
hereditariamente. Isso significa que a no: “É a sociedade e não a natureza a
transmissão das conquistas humanas se que deve figurar em primeiro plano
dá por meio dos fenômenos externos da como o fator determinante na conduta
cultura material e intelectual, nos quais do homem.” (p.89). Isso porque, como
está fixada ou depositada a atividade vimos, a cultura permitiu historicamen-
humana historicamente desenvolvida. te ao homem superar a determinação
Essa é uma ideia de grande impor- natural de sua conduta.
tância: se as capacidades verdadei- Nossa espécie possui um cérebro
ramente humanas são objetivadas e que tem como característica funda-
transmitidas por meio dos objetos da mental a plasticidade, produto da sele-
cultura e das práticas culturais, a verda- ção natural que culminou com o apare-
deira fonte do desenvolvimento huma- cimento do homo sapiens (lembrando

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que essa seleção, a partir de determinado ponto, foi influenciada e condicionada
pelo próprio processo de trabalho e pelas formas primitivas de cultura de nossas
espécies ancestrais). Segundo Valeria Mukhina (1996), “a extraordinária plastici-
dade, a capacidade de aprender, é uma das qualidades mais importantes do cére-
bro humano e que o diferencia do cérebro animal” (p.39). A autora explica que
o cérebro animal já tem, no momento do nascimento, grande parte de sua subs-
tância cerebral “ocupada”, pois nela já estão inscritos os mecanismos inatos de
comportamento, ou seja, as formas de comportamento transmitidas por herança
genética. Por essa razão, mesmo que um determinado animal, como um gato,
por exemplo, seja criado longe de outros de sua espécie, ele manifestará os com-
portamentos tipicamente felinos. O mesmo vale para cachorros e outros animais
domésticos criados em ambiente humano.
Já na espécie humana, ocorre um processo muito diferente. Existem na lite-
ratura diversos relatos das chamadas “crianças selvagens”. Victor de Aveyron é
talvez um dos mais famosos e bem documentados: ele foi encontrado em janeiro
de 1799, com aproximadamente 11 anos de idade, nos bosques de um povoado
na França. O comportamento de Victor assemelhava-se mais ao de um animal do
que propriamente ao de um ser humano, exibindo agressividade e até mesmo
emitindo grunhidos estridentes e incompreensíveis. Submetido a um minucioso
exame médico, não foram encontradas anormalidades no garoto. Isso sugere que
sua conduta se explica essencialmente pelo isolamento social. A ausência de con-
vívio com outros humanos impediu que Victor desenvolvesse qualidades psíquicas
marcadamente humanas.
Podemos perceber, assim, que aquilo que nos constitui como humanos não se
transmite geneticamente, mas socialmente. Nesse sentido, o pensamento marxis-
ta assume como pressuposto a ideia de que homem não é naturalmente humano,
ou seja, o aparato biológico da espécie não é suficiente para garantir nossa hu-
manidade. Quando nascemos, somos “candidatos” à humanidade. Por essa razão,
toda criança precisa passar pelo processo de humanização.

PARA SABER MAIS:

LEITE, Luci B.; GALVÃO, Izabel (Orgs.). A Educação de um Selvagem. São Pau-
lo: Editora Cortez, 2000.
O garoto selvagem. Direção: François Truffaut. França, 1970.

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Crianças selvagens

Leia trecho de uma reportagem publicada pela Revista Aventuras na HISTÓRIA


“Humanos criados como animais: Coração selvagem”, por Flávia Ribeiro, 01/02/2006
O primeiro registro de uma criança selvagem data de 1344: um menino-lobo achado na
região de Hesse, na Alemanha, citado pelo filósofo francês Jean-Jacques Rousseau no
Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Mas o
fenômeno tem ocorrências recentes. Um exemplo é o russo Andrei Tolstyk, abandonado
aos 3 meses e criado por cães. Foi descoberto numa parte remota da Sibéria em 2004, aos 7
anos, andando de quatro, latindo e cheirando tudo o que via.
Cada caso novo de criança selvagem bota um pedaço de lenha na fogueira de uma das
mais persistentes questões da ciência: existe uma natureza humana? “O homem não nasce
humano. Ele possui, sim, a capacidade de tornar-se humano. Aprender a falar uma língua,
por exemplo, é uma exclusividade humana que só se realiza com o contato com outros
que falem”, diz Luci Banks-Leite, professora de Educação da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). “Nem mesmo a postura bípede se desenvolve se alguém não der
a mão antes.” Nas histórias de vida dessas crianças, dois fatores saltam logo aos olhos:
primeiro, sua impressionante capacidade de sobreviver nas condições mais adversas:
enfrentando frio, calor e, muitas vezes, o ataque de animais. Depois, o árduo caminho
que percorrem ao ser educadas para que saiam da condição de selvagens e se tornem
“civilizadas”. O isolamento, entretanto, costuma deixar marcas profundas em todas elas.
“Algumas perdas são irreversíveis”, diz Luci. (...)

Disponível no endereço: http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/humanos-criados-


como-animais-coracao-selvagem-434572.shtml

No processo de humanização, a criança precisa se apropriar do patrimônio cul-


tural humano-genérico, ou seja, daquilo que foi produzido historicamente pelo
gênero humano, desde a linguagem oral até os equipamentos de tecnologia, dos
objetos triviais do cotidiano às obras de arte, das brincadeiras e parlendas à ética,
política e filosofia. O conjunto das conquistas histórico-culturais humanas abarca
habilidades e funções psicológicas não naturais, não garantidas pelo aparato bio-
lógico, dentre as quais Vigotski inclui o pensamento abstrato e a memória volun-
tária. O pensamento abstrato não é, para o autor, uma capacidade natural que se
manifesta à medida que o cérebro matura. Ele demonstrou com suas pesquisas que
o próprio desenvolvimento dessa e de outras funções do psiquismo depende de

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processos educativos e sociais. Isso signi- de sua “ativação” a partir de informa-
fica que o pensamento abstrato, assim ções recebidas do ambiente. Mukhina
como as demais funções superiores, não (1996, p. 42) nos lembra que “a ciên-
se desenvolve plenamente se não forem cia já demonstrou que os setores do
garantidas as condições sociais e educa- cérebro que não são exercitados in-
cionais adequadas. terrompem seu desenvolvimento nor-
O aparato biológico de nossa espé- mal e chegam a se atrofiar. Isso ocorre
cie possibilita um desenvolvimento psí- sobretudo nas etapas precoces do de-
quico altamente complexo, mas tal fun- senvolvimento”. Por essa razão, não é
cionamento não está garantido ou for- possível pensarmos em um desenvol-
mado a priori. Como explica Mukhina vimento biológico que percorre seu
(1996, p. 41), as propriedades naturais próprio caminho, paralelamente ao
do organismo criança não criam capa- desenvolvimento social e cultural.
cidades psíquicas, embora constituam Como explica Martins (2013), Vigot-
condições necessárias para sua forma- ski postulou a existência de duas linhas
ção. A autora ilustra essa tese com o de desenvolvimento: o desenvolvi-
exemplo da audição fonemática (capa- mento biológico e o desenvolvimento
cidade de diferenciar e reconhecer os cultural. O autor explica que os planos
sons da linguagem falada): biológico e social não são independen-
tes nem são substituídos um pelo ou-
A criança recebe da natureza o apa-
tro, mas se desenvolvem simultânea e
relho auditivo e os correspondentes
conjuntamente, estabelecendo entre si
setores do sistema nervoso prepara-
intercorrelações e intercomunicações.
dos para diferenciar os sons da lingua-
O que existe, portanto, é uma unida-
gem. Mas o próprio ouvido linguístico
de, em que o desenvolvimento cultural
só se desenvolve no processo de assi-
subordina e condiciona os processos or-
milação de uma determinada língua,
gânicos, dando-lhes direção. Vale notar
sob a orientação do adulto, com a
que não há harmonia entre natureza e
particularidade de que o ouvido lin-
cultura, mas transformação e modifica-
guístico acaba adaptado às particula-
ção das inclinações naturais mediante
ridades da língua materna.
o processo de apropriação da cultura:
Assim, é mediante o processo de “o desenvolvimento infantil radica no
assimilação da experiência social que entrelaçamento dos processos naturais
vão se constituindo sistemas funcio- e culturais, mais precisamente, nas con-
nais no cérebro da criança. O próprio tradições que são geradas entre eles”
desenvolvimento do cérebro depende (MARTINS, 2013, p. 79).

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Prova de que a dimensão social supera, subordina e dirige o desenvolvimento puramente


orgânico é o fato de que crianças que nascem com graves lesões cerebrais podem, mediante
oportunidades sociais e educacionais adequadas, desenvolver capacidades culturais
altamente complexas. Confira o trecho de uma reportagem publicada na Revista VEJA em 21
de dezembro de 2011:

A vida sem a metade do cérebro, por Gabriela Carelli

O brasiliense Hendrew Gomes, hoje com 17 anos, nasceu com metade da massa encefálica
normal. As maiores lacunas estão nos lobos frontal, temporal e parietal, nas áreas responsáveis
pela fala, pela leitura, pelo cálculo e pelos movimentos do lado direito do corpo. Aos 3 meses,
os médicos o consideraram um caso perdido. O prognóstico era apressado. Hendrew leva uma
vida normal de adolescente. Está um pouco atrasado nos estudos — cursa a 7ª série do ensino
fundamental enquanto os jovens de sua idade normalmente estão terminando o ensino
médio. Aluno esforçado, tira boas notas em matemática, disciplina na qual supostamente
ele não teria condições biológicas de aprendizado. Também é um músico exímio. Compõe
canções, toca bateria e cavaquinho. Sua evolução não é um milagre, mas o resultado do
tratamento neurológico iniciado quando ele linha 8 anos.
O que os profissionais chefiados pela neurocientista Lúcia Braga, da Rede Sarah de Hospitais
de Reabilitação, em Brasília, fizeram foi estimular os neurónios vizinhos às lacunas para
que passassem a exercer as funções relacionadas às áreas ausentes. As técnicas utilizadas
para despertar outras regiões do cérebro incluíram fisioterapia, aprendizado com o uso do
computador, aulas de cálculo e música. Os primeiros resultados positivos puderam ser percebidos
em seis meses. Apesar de a massa encefálica de Hendrew não ter aumentado de volume, a
substituição de função permitiu a ele uma vida normal. As terapias neurológicas capazes de
promover melhoras tão espetaculares são produto de um avanço recente na compreensão do
cérebro. O que se comprovou foi a plasticidade cerebral, nome dado à capacidade desse órgão de
adaptar sua estrutura e sua fisiologia durante toda a vida. “O cérebro não deve ser comparado a
uma máquina, como se fez no passado. A melhor analogia é com cimento molhado, uma massa
plástica com a capacidade de se rearranjar em casos de lesão ou trauma, ou em resposta ao
pensamento, às experiências e à influência do ambiente”, disse a VEJA o psiquiatra canadense
Norman Doidge, da Universidade Columbia e autor do livro O Cérebro que Se Transforma, que
será lançado no mês que vem no Brasil. (...)

51
1.2 O processo de apropriação da cul- dade de pintura, conquistando a neces-
tura e o desenvolvimento humano sária coordenação de movimentos e a
capacidade de uso intencional do ins-
A fonte do desenvolvimento psí- trumento visando à aplicação de tinta
quico humano é a experiência social, em um determinado suporte.
a partir da qual os indivíduos se apro-
priam do patrimônio cultural humano.
O psicólogo Alexis Leontiev analisa o O termo atividade representa aqui
processo de apropriação da cultura des- uma categoria teórica, que será
tacando três características: seu caráter mais abordada no próximo capítulo.
ativo, sua natureza mediada e sua pro-
Como conceito científico, seu
priedade de formar no homem novas
significado difere de sua acepção no
funções psíquicas (não-naturais).
O processo de apropriação é “re-
senso comum e em outras teorias.
sultado de uma atividade efetiva do Atividade é um processo que se
indivíduo em relação aos objetos e fe- constitui de uma cadeia de ações,
nômenos do mundo circundante criado voltadas a determinados fins, os
pelo desenvolvimento da cultura hu- quais, encadeados, atendem ao
mana.” (LEONTIEV, 1978, p.271). Isso
motivo que impulsiona a atividade
significa que a apropriação das objeti-
(sendo que o motivo reflete uma
vações da cultura se realiza mediante
a atividade da criança: na atividade e
necessidade humana e identifica o
pela atividade. Mas para isso não ser- objeto que a satisfaz). Atividade não
ve qualquer atividade. Não basta que a é, portanto, sinônimo de ação ou de
criança interaja com o objeto. É preciso simplesmente “fazer alguma coisa”.
que ela realize o que Leontiev chamou
de atividade adequada, ou seja, aquela
que contém os traços essenciais da ati- Num primeiro momento, o conta-
vidade encarnada no objeto. Em outras to com os objetos é exploratório e o
palavras, o indivíduo deve reproduzir uso que a criança deles faz é indiscri-
em sua atividade as operações motoras minado, ou seja, realiza movimentos
(e/ou cognitivas) incorporadas no obje- próprios à utilização de outros objetos
to. Para que a criança domine o uso de com os quais ela já tem familiaridade.
um instrumento da cultura como, por Esse contato exploratório é, sem dúvi-
exemplo, um pincel, é preciso que ela da, necessário e importante, mas não
utilize esse objeto como parte da ativi- suficiente. Num segundo momento, a

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Fundamentos Teóricos

criança apropria-se das ações e opera- Trata-se de uma reglete, acompa-


ções específicas pertinentes à utilização nhada de uma punção, instrumentos
do pincel. Para que isso aconteça, se faz para escrita Braille. Nosso domínio des-
necessária a mediação de outrem. ses instrumentos dependeria, decisiva-
Isso nos conduz à segunda caracte- mente, da mediação de outras pessoas
rística apontada por Leontiev. O adul- dispostas a nos transmitirem os conhe-
to apresenta-se para a criança como o cimentos, habilidades e processos psí-
portador dos modos socialmente de- quicos necessários à sua utilização. O
senvolvidos de ação com os objetos. Ele mesmo é válido para objetivações hu-
apresenta modelos de ação que serão manas em outras esferas da cultura,
reproduzidos pela criança e orienta a incluindo instrumentos musicais, equi-
utilização do objeto, por meio de ins- pamentos esportivos, conceitos cientí-
truções, muitas vezes corrigindo os mo- ficos, e assim por diante. É preciso que
vimentos da criança até que ela adqui- alguém nos revele as propriedades do
ra domínio sobre o instrumento. Essa objeto que não somos capazes de per-
mediação se faz fundamental porque, ceber imediatamente; que nos explique
embora os objetos contenham ativida- os mecanismos que regulam seu funcio-
de humana cristalizada e materializa- namento; que indique os movimentos
da, o contato imediato com o objeto necessários para correta utilização do
não revela para a criança qual é a ati- instrumento. Isso significa que o pro-
vidade adequada. Não só para a crian- cesso de apropriação da cultura tem,
ça, mas também para nós adultos isso por excelência, um caráter educativo:
acontece com relativa frequência! Ob-
As aquisições do desenvolvimento his-
serve a figura 1. Você domina as ações e
tórico das aptidões humanas não são
operações necessárias para utilizar esse
simplesmente dadas aos homens nos
instrumento da cultura? Conhece ao
fenômenos da cultura material e es-
menos sua função social?
piritual que os encarnam, mas são aí
apenas postas. Para se apropriar des-
tes resultados, para fazer deles as suas
aptidões, “os órgãos da sua individua-
lidade”, a criança, o ser humano, deve
entrar em relação com os fenômenos
do mundo circundante através doutros
homens, isto é, num processo de co-
Figura 1: Exemplo de instrumento da municação com eles. Assim, a criança
cultura. Fonte: Imagem capturada em  
aprende a atividade adequada. Pela
www.assistiva.mct.gov.br.

53
sua função, este processo é, portanto, operações motoras. No caso
um processo de educação” (p.272, do homem, a relação é inversa:
grifos nossos)
é a mão que se subordina ao
A apropriação da cultura é, por- instrumento, mediante um processo
tanto, um processo ativo por parte do de reorganização dos movimentos
sujeito e que demanda a mediação do naturais (LEONTIEV, 1978)
outro: a atividade adequada forma-se
na criança mediante a imitação do mo-
delo ou atendimento das instruções Pensemos no processo de apropria-
do professor. O terceiro traço essencial ção de um instrumento da cultura rela-
desse processo é que ele tem como ca- tivamente simples: uma escova de ca-
racterística fundamental a formação belo. Os primeiros contatos da criança
de novas funções psíquicas e capaci- com esse objeto serão, como vimos, ex-
dades no indivíduo: “a apropriação de ploratórios: ela vai examinar a escova,
um objeto gera na atividade e na cons- balançar, bater, dependendo da idade
ciência do homem novas necessidades poderá mordê-la. Trata-se de um uso
e novas forças, faculdades e capacida- indiscriminado dos objetos, momento
des” (LEONTIEV, 1978). À medida que em que a criança utiliza as operações
nos apropriamos das objetivações da e ações que já domina para manusear
cultura, as faculdades e capacidades o novo objeto, independentemente de
nelas incorporadas tornam-se, utili- seu conteúdo social. Começamos então
zando uma expressão de Marx, órgãos a ensiná-la a utilizar esse instrumento,
da nossa individualidade. apresentando modelos e instruções,
convidando-a a aprender. Para domi-
nar o uso desse objeto, a criança precisa
Outra característica que distingue ser capaz de agarrá-lo com a mão com
os instrumentos humanos dos força suficiente e realizar movimentos
proto instrumentos utilizados coordenados com o braço, sendo capaz
por determinadas espécies é que de executar, avaliar e replanejar seus
movimentos. Isso pode nos parecer tri-
os objetos naturais empregados
vial, mas trata-se de um aprendizado
pelos animais estão subordinados
complexo! Nesse processo, a criança
aos movimentos naturais pré- reorganiza seus movimentos, subor-
programados da espécie. Por dinando-os às exigências de utilização
essa razão, os “instrumentos” do instrumento. Formam-se na criança
não formam nos animais novas novas operações motoras e cognitivas.

54 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

Saviani (2005) nos revela que esse centração da atenção exigida para re-
processo tem relação com o problema alizar a sincronia desses movimentos
da liberdade. Quando a criança alcança absorve todas as energias. Por isso o
o domínio do uso do objeto, forma-se aprendiz não é livre ao dirigir. No limi-
nela uma disposição permanente para te, eu diria mesmo que ele é escravo
essa ação, que passa a fazer parte de dos atos que tem que praticar. Ele não
seu repertório, compondo sua segunda os domina, mas, ao contrário, é do-
natureza, tornando-a, portanto, capaz minado por eles. A liberdade só será
de exercer livremente determinada ati- atingida quando os atos forem domi-
vidade. O fundador da pedagogia his- nados. E isto ocorre no momento em
tórico-crítica enfatiza a importância da que os mecanismos forem fixados.
repetição e da automatização para que Portanto, por paradoxal que pareça, é
isso seja alcançado, e assim ilustra e ex- exatamente quando se atinge o nível
plica esse processo: em que os atos são praticados auto-
maticamente que se ganha condições
Assim, por exemplo, para se aprender
de exercer, com liberdade, a atividade
a dirigir um automóvel é preciso repe-
que compreende os referidos atos.
tir constantemente os mesmos atos
Então, a atenção liberta-se, não sendo
até se familiarizar com eles. Depois já
mais necessário tematizar cada ato.
não será necessário a repetição cons-
Nesse momento, é possível não ape-
tante. Mesmo se esporadicamente,
nas dirigir livremente, mas também
praticam-se esses atos com desenvol-
ser criativo no exercício dessa ativida-
tura, com facilidade. Entretanto, no
de. (SAVIANI, 2005, p.19).
processo de aprendizagem, tais atos,
aparentemente simples, exigiam ra- Vemos, assim, que a aprendizagem
zoável concentração e esforço até forma novas capacidades e habilidades
que fossem fixados e passassem a ser nos indivíduos mediante a apropriação
exercidos, por assim dizer, automati- da atividade humana fixada nos obje-
camente. Por exemplo, para se mudar tos e instrumentos da cultura e nos mo-
a marcha com o carro em movimento, dos sociais de sua utilização. O mesmo
é necessário acionar a alavanca com movimento ilustrado pela análise da
a mão direita sem se descuidar do vo- aprendizagem do uso da escova de ca-
lante, que será controlado com a mão belo e do processo de aprender a dirigir
esquerda, ao mesmo tempo que se se dá com relação às demais objetiva-
pressiona a embreagem com o pé es- ções da cultura humana.
querdo e, concomitantemente, retira- Pensemos, por exemplo, em um
se o pé direito do acelerador. A con- instrumento musical. Quantas novas

55
capacidades (não naturais) precisamos produto da história humana; assim sen-
desenvolver para dominar um instru- do, o desenvolvimento subjetivo dessas
mento! Mas sem dúvida mais desafia- capacidades, em cada indivíduo singu-
dor é perceber que o mesmo processo lar, depende da riqueza de seu mundo
se dá em relação às objetivações ideais objetivo, isto é, das oportunidades de
(não-materiais) da cultura. apropriação das objetivações humanas
Podemos estabelecer um paralelo que materializam essa sensibilidade
entre a transformação em nossos atos historicamente conquistada pelo ho-
motores (e psíquicos) que ocorre quan- mem, que não nos é dada pela nature-
do aprendemos a tocar um instrumen- za biológica.
to musical e a transformação que ocor- Essas capacidades de que falamos
re em nosso pensamento quando nos não existem a priori dentro de nós, mas
apropriamos do conhecimento cientí- são formadas como resultado do esfor-
fico. O conhecimento provoca revolu- ço de apropriação da atividade huma-
ções em nosso pensamento, formando na incorporada nas objetivações da cul-
novas operações mentais, novas capa- tura. Quando passamos a dominá-las,
cidades psíquicas, a medida em que os elas passam a ser constitutivas do nosso
conceitos exigem novos movimentos ser, convertem-se, como vimos, em ór-
de nosso pensamento. Assim como os gãos da nossa individualidade.
movimentos de nossa mão se reorgani-
A principal característica do processo
zam para sermos capazes de tocar um
de apropriação ou de ‘aquisição’ que
instrumento, os movimentos de nosso
descrevemos é, portanto, criar no
pensamento se reorganizam e se com-
homem aptidões novas, funções
plexificam na medida em que apren-
novas. É nisso que se diferencia do
demos novos conceitos e relações. O
processo de aprendizagem dos ani-
mesmo vale para a arte literária: as
mais. Enquanto este último é resulta-
imagens criadas pela literatura provo-
do de uma adaptação individual do
cam novos movimentos e operações
comportamento genérico a condições
afetivo-cognitivas em nosso psiquismo.
de existência complexas e mutantes, a
As obras de arte em geral desenvolvem
assimilação no homem é um processo
nossa sensibilidade, refinam nossa per-
de reprodução, nas propriedades do
cepção, aguçam nosso senso estético. E
indivíduo, das propriedades e aptidões
assim por diante. Marx já nos dizia que
historicamente formadas da espécie
a humanização dos sentidos – a sensibi-
humana. (LEONTIEV, 1978, p.270)
lidade do ouvido musical, o olhar que
reconhece a beleza das formas – é um

56 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

Podemos compreender, assim, que que nos faz humanos não se transmite
a fonte de desenvolvimento das capa- biologicamente mas socialmente, nossa
cidades humanas são as objetivações própria humanidade precisa ser produ-
da cultura e as práticas culturais histo- zida, construída. É justamente essa a ta-
ricamente produzidos pelos homens. refa da educação.
A apropriação da cultura se confunde Assim sendo, o trabalho educativo
com o próprio processo de humaniza- deve ter como horizonte a universaliza-
ção dos indivíduos, que é realizado pe- ção das máximas possibilidades geradas
los processos educativos. pelo processo histórico de desenvolvi-
Cabe notar, à luz dessa teoria, que mento do gênero humano a todos os in-
as possibilidades de desenvolvimento divíduos (PASQUALINI; MAZZEU, 2008).
e a qualidade das mediações propor- A função social da escola deve ser, nes-
cionadas aos indivíduos dependem das se sentido, a socialização do patrimônio
condições sociais de vida e educação a cultural humano-genérico, ou ainda, a
que estão submetidos, as quais, em nos- transmissão do saber historicamente sis-
sa sociedade, organizam-se de forma tematizado pelo conjunto dos homens.
radicalmente desigual e injusta. Essa A escola cumpre sua função quando
constatação coloca em tela a importân- garante que a riqueza do patrimônio
cia dos processos educativos e a função cultural da humanidade se converta em
social da escola em nossa sociedade. patrimônio de cada criança, ampliando
suas possibilidades de inserção e objeti-
1.3 Concepção de educação vação na realidade social.
Ao mesmo tempo que advogamos
Fundamentada na concepção de que a função social da escola é a trans-
homem como ser histórico-cultural, a missão do saber sistematizado, é preciso
pedagogia histórico-crítica define o que tenhamos clareza que na sociedade
trabalho educativo como: capitalista a escola é permeada por con-
tradições. Vivemos em uma sociedade
“o ato de produzir, direta e intencio-
marcada pela desigualdade estrutural
nalmente, em cada indivíduo singular,
(e não acidental) entre os homens e é
a humanidade que é produzida his-
nessa sociedade que está situada a esco-
tórica e coletivamente pelo conjunto
la. Falamos, portanto, de uma institui-
dos homens” (SAVIANI, 2005, p.13).
ção inserida na complexa trama social
Como nos lembra Saviani (2005), fundada na exploração e na dominação
o que não é garantido pela natureza que caracterizam o capitalismo e que
tem que ser produzido historicamente colabora de forma decisiva para a repro-
pelos homens. Se, como vimos, aquilo dução desse sistema social: “a escola é

57
determinada socialmente; a sociedade ciada da força de trabalho, tendo
em que vivemos, fundada no modo de como objetivos a instrução técnica
produção capitalista, é dividida em clas- para os interesses da produção e o
ses com interesses opostos; portanto, a desenvolvimento do “assujeitamen-
escola sofre a determinação do conflito to” dos indivíduos às relações de ex-
de interesses que caracteriza a socieda- ploração. Para a classe trabalhadora, a
de” (SAVIANI, 1987, p.35). Logo, faz-se escola cumpre a função da formação
necessário desvelar a função de repro- igualitária das forças produtivas, lu-
dução da ideologia e transmissão de va- tando pela educação técnica e cien-
lores que concorrem para a manutenção tífica, aliada à produção da rebeldia
da ordem social injusta e excludente em frente às injustiças. Essas duas posi-
que vivemos desempenhada pela esco- ções antagônicas, em nossa interpre-
la, bem como seu papel de conformação tação, sintetizam a luta de classes que
da mão-de-obra (PASQUALINI; MAZ- se expressa no campo da educação
ZEU, 2008). Autores conhecidos como escolar. (grifos nossos).
crítico-reprodutivistas têm feito essa de-
Reconhecendo a determinação so-
núncia de modo bastante contundente.
cial da escola, a pedagogia histórico-
Dermeval Saviani (1987) reafirma a
crítica busca afirmar uma concepção
importante contribuição do crítico-re-
pedagógica que se posicione em favor
produtivismo ao desmascarar os deter-
dos interesses da classe trabalhadora,
minantes materiais que condicionam a
tendo como horizonte a superação das
instituição escolar e desconstruir o po-
relações de exploração e dominação
der ilusório de harmonização social atri-
entre os homens.
buído à escola por teorias não críticas
Ao pensar a escola a serviço da
no campo da educação. Por outro lado,
transformação social, a pedagogia
considerando o caráter contraditório
histórico-crítica empenha-se na defe-
da realidade, afirma a possibilidade de
sa da especificidade dessa instituição,
uma teoria pedagógica que capte criti-
isto é, de sua função especificamen-
camente a escola como um instrumento
te educativa, ligada à transmissão do
capaz de contribuir para a transforma-
saber sistematizado historicamente
ção da sociedade. Abrantes (2011, p.
acumulado. Na sociedade capitalista,
27-28) assim sintetiza a contradição ine-
o acesso ao conhecimento não é ga-
rente à escola na sociedade capitalista,
rantido a todas as pessoas, ao contrá-
colocando-a como espaço de disputa:
rio, é objeto de apropriação privada,
Para a classe do capital, a escola cum- privilégio de minorias. Quem atua nas
pre a função da formação diferen- redes públicas de ensino de nosso país

58 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

vivencia essa realidade cotidianamen- determinações que condicionam sua


te: o contato com as famílias trabalha- existência, capazes de compreender “os
doras revela de forma gritante o quan- limites e problemas da atual forma hu-
to aqueles submetidos à exclusão sócio- mana de produzir a existência” (ABRAN-
-econômica são também usurpados do TES, 2011, p. 21) e que se assumam como
direito à apropriação do conhecimen- sujeitos da história individual e coletiva.
to sistematizado, fato que tem impli- A concretização da finalidade do
cações profundas na vida das pessoas. trabalho educativo proposta pela pe-
O esvaziamento da formação docente dagogia histórico-crítica implica dois
na contemporaneidade é também um aspectos. O primeiro refere-se à iden-
reflexo desse fenômeno: o próprio tificação dos elementos culturais que
professor, como trabalhador, se vê ali- precisam ser assimilados pelos indiví-
jado do direito ao acesso e apropria- duos em seu processo de humaniza-
ção do conhecimento humano em suas ção. O segundo diz respeito à desco-
formas mais elevadas. berta das formas mais adequadas para
Diante desse cenário, a pedagogia transmitir esses elementos culturais e
histórico-crítica defende que é justa- garantir sua apropriação, ou seja, diz
mente pela democratização da cultura respeito à “organização dos meios
letrada e do saber científico que a es- (conteúdos, espaço, tempo e procedi-
cola pode contribuir para a transforma- mentos) através dos quais, progressi-
ção social. Isso porque, como afirmava vamente, cada indivíduo singular rea-
o professor Dermeval Saviani já na dé- lize, na forma de segunda natureza, a
cada de 1970: sem dominar aquilo que humanidade produzida historicamen-
os dominantes dominam, os domina- te” (SAVIANI, 2005, p. 14).
dos não chegam a se libertar da domi- Dediquemo-nos a analisar demora-
nação. Assim, nas palavras de Nereide damente esses dois aspectos. A identifi-
Saviani (1998, p. 58): “a escola deve per- cação dos elementos culturais a serem
mitir que os dominados tenham acesso transmitidos às novas gerações como
aos conhecimentos monopolizados condição para sua humanização refere-
pelos dominantes e os utilizem como se ao problema do conteúdo do ensino.
arma não só para entender a realidade Trata-se da decisão pedagógica orien-
mas também para transformá-la”. tada a responder a pergunta: o que en-
Trata-se, portanto, de uma corrente sinar? Esse problema diz respeito, por-
pedagógica que vislumbra a formação tanto, ao currículo escolar.
de homens e mulheres conscientes da Conforme Duarte et al. (2012), a
realidade concreta em que vivem e das discussão sobre os conhecimentos que

59
devam fazer parte dos currículos escolares está entre as principais ta-
refas dos educadores e pesquisadores que trabalham na perspectiva
histórico-crítica, uma vez que se compreende a apropriação ativa do
conhecimento como fonte do desenvolvimento do pensamento e das
demais funções psíquicas humanas: “(...) há que se identificar quais
conhecimentos podem produzir, nos vários momentos do desenvol-
vimento pessoal, a humanização do indivíduo (...)” (p.3957). Com re-
lação a esse aspecto, Saviani (2003) alerta para a necessidade de se
distinguir entre o essencial e o acessório na escola, evitando o risco
de apagamento da fronteira entre o que é nuclear e o que é secundá-
rio, entre as atividades necessárias que concretizam a razão de ser da
escola e aquilo que é complementar.3
Tendo em vista essas considerações, a pedagogia histórico-crítica
indica dois princípios para orientar a tarefa de seleção de conteúdos
de ensino. O primeiro é o critério do clássico (SAVIANI, 2005). O se-
gundo são as esferas não cotidianas de objetivação do gênero huma-
no (DUARTE, 1996).
A noção de “clássico” é reivindicada por Saviani (2005) como de
grande importância para a pedagogia. Segundo o autor, “o clássico
não se confunde com o tradicional e também não se opõe, neces-
sariamente, ao moderno e muito menos ao atual. O clássico é aqui-
lo que se firmou como fundamental, como essencial.” (p.13). Ainda
segundo o autor, “clássico, em verdade, é o que resistiu ao tempo”
(p.18), ou seja, é o conhecimento que se mostrou, historicamente, re-
levante para a elucidação e o enfrentamento dos problemas, dramas
e dilemas da existência humana e, portanto, relevante para o desen-
volvimento humano dos indivíduos das novas gerações.
3
A elaboração da matriz curri-
cular que compõe a segunda
parte desse documento cor-
responde, justamente, a um “Do ponto de vista prático, trata-se de retomar vigorosamente
esforço de identificação dos a luta contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento
conhecimentos e habilidades
do ensino das camadas populares. Lutar contra a marginalidade
centrais ou nucleares que de-
vem ser transmitidos à criança através da escola significa engajar-se no esforço para garantir
na educação infantil tendo em
aos trabalhadores um ensino da melhor qualidade possível nas
vista a promoção do desenvol-
vimento infantil em suas máxi- condições históricas atuais. (SAVIANI, 1987, p. 36).
mas possibilidades.

60 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

Duarte (1996) defende a tese de que a educação escolar deve de-


sempenhar, na formação dos indivíduos, a função de mediação entre
a vida cotidiana e as esferas não-cotidianas de objetivação do gêne-
ro humano, especialmente a ciência e a arte. O autor argumenta que
uma prática pedagógica escolar voltada ao pleno desenvolvimento
humano não visa fundamentalmente satisfazer as necessidades já
dadas pela vida cotidiana, “(...) mas produzir no aluno necessidades
de tipo superior, que não surgem espontaneamente, e sim pela apro-
priação dos conteúdos das esferas de objetivação genérica para si.”
(p.58). Ao produzir novas necessidades e novas capacidades nos in-
divíduos, o processo de apropriação das objetivações genéricas para
si requalifica a própria relação do aluno com sua vida cotidiana. Do
ponto de vista da prática pedagógica, isso significa que as esferas
não cotidianas de objetivação é que devem fornecer as referências
para a elaboração dos currículos escolares, bem como para a orga-
nização do processo de ensino4. Na educação infantil, considerando
a importância que as aprendizagens relativas à vida cotidiana têm
nesse momento do desenvolvimento, o cotidiano deve ser a porta de
entrada para o não cotidiano.
Por fim, cabe esclarecer que o problema da seleção dos conteú-
dos de ensino não pode ser enfrentada senão na unidade conteúdo-
forma, o que nos conduz ao segundo aspecto indicado por Saviani
(2005): a descoberta das formas mais adequadas para transmitir os
elementos culturais necessários à humanização dos indivíduos. Isso
significa afirmar que responder à pergunta “o que ensinar?” implica
necessariamente ter clareza sobre “como ensinar?”.
Martins (2013) ressalta que a ênfase conferida pela pedagogia
histórico-crítica aos conhecimentos clássicos, historicamente siste-
matizados, é acompanhada da proposição de uma organização se-
quencial pela qual esses conhecimentos se convertem em saberes
escolares a serem diretamente disponibilizados à aprendizagem dos
alunos. Nesse sentido, o conteúdo do ensino e a forma de ensinar 4
Para um entendimento apro-
fundado dessa complexa teori-
são decisões pedagógicas que devem necessariamente considerar o
zação, recomendamos o estu-
destinatário do ato educativo, ou seja, a criança a quem se ensina.
do do livro “Educação escolar,
Martins (2013, p. 297) sintetiza essa ideia formulando o princípio teoria do cotidiano e a Escola
da tríade forma-conteúdo-destinatário como exigência primeira do de Vigotski” (DUARTE, 1996).

61
planejamento do ensino. De acordo marcada por um funcionamento
com a autora, “nenhum desses ele- predominantemente espontâneo,
mentos, esvaziados das conexões que
pragmático e irrefletido, as esferas
os vinculam, pode, de fato, orientar o
não cotidianas de objetivação
trabalho pedagógico”.
humana exigem do homem uma
relação consciente e refletida com
O conceito de esferas não sua própria atividade.
cotidianas de objetivação foi
proposto pela filósofa Agnes
Heller. Em sua análise, no Exploremos um pouco as relações
curso do processo histórico de entre esses elementos. O conteúdo que
desenvolvimento do gênero se pretende transmitir deverá ser assi-
milado por um sujeito determinado,
humano, foi possível o surgimento
a criança. Assim sendo, não é possível
da diferenciação entre a esfera
selecionar conteúdos de ensino des-
das objetivações genéricas para considerando quem é a criança a quem
si e a esfera das objetivações estamos ensinando, ou seja, sem com-
genéricas para si. Como explica preender as possibilidades de assimila-
Duarte (1996, p.32-3), “as ção do conteúdo pela criança em dado
objetivações genéricas em- momento de seu desenvolvimento. É
preciso conhecer a criança!
si formam a base da vida
Mas o que significa conhecer a
cotidiana e são constituídas
criança? Quais aspectos se mostram re-
pelos objetos, pela linguagem levantes para que criança e conteúdo
e pelos usos e costumes. As possam entrar em relação? Trata-se de
objetivações genéricas para si uma tarefa altamente complexa e de-
formam a base dos âmbitos safiadora. Em primeiro lugar, é preciso
não cotidianos da atividade diagnosticar o “estado atual” de de-
senvolvimento de nossas crianças. Para
social e são constituídas pela
tanto, é necessário conhecer o funcio-
ciência, pela arte, pela filosofia,
namento psíquico e comportamental
pela moral e pela política.” próprio de seu período atual do desen-
Em linhas gerais, podemos volvimento: quais são as características
afirmar que, diferentemente da esperadas? quais as qualidades do psi-
esfera da vida cotidiana, que é quismo infantil e como a criança se re-

62 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

laciona com o mundo nesse período do as características atuais do psiquismo


desenvolvimento psíquico? da criança e seu devir. É fácil perceber
Ao mesmo tempo, o momento atu- que a forma de ensinar uma criança
al do desenvolvimento precisa ser com- na primeira infância é bastante dife-
preendido como parte ou momento de rente da forma de ensinar uma criança
um processo, ou seja, é preciso conhecer na transição à idade escolar, uma vez
o percurso do desenvolvimento, captar que seu psiquismo vai continuamen-
seu movimento, sua lógica interna. Em te conquistando novas capacidades e
outras palavras, é preciso conhecer as ampliando sua possibilidade de cap-
conquistas essenciais de cada momen- tação da realidade e de realização de
to desse processo e o horizonte de de- atividades mais complexas em termos
senvolvimento que se apresenta a cada de estrutura e conteúdo. Mas se à pri-
momento e se renova e amplia conti- meira vista é fácil perceber que existe
nuamente. Isso implica conhecer as leis diferença, compreender teoricamente
gerais (universais) que regem o desen- qual é essa diferença exige um processo
volvimento psíquico, mas também as de análise mais aprofundado. Que tipo
circunstâncias particulares de desen- de tarefa deve ser proposto à criança
volvimento de nossos alunos. Munidos na primeira infância e na transição ao
desse conhecimento, somos capazes de ensino fundamental? O que muda na
avaliar o quanto nossas crianças concre- forma de ensinar? E por que muda?
tas já alcançaram aquilo que é esperado Em verdade, é extremamente com-
para esse momento em termos do de- plexa e desafiadora a tarefa de definir
senvolvimento psíquico e no que preci- qual a melhor forma de ensinar deter-
sam avançar. “Esse conhecimento sobre minado conteúdo para determinado
a criança orienta a seleção do conteúdo grupo de crianças. Além do conheci-
de ensino pelo professor, na medida em mento cientifico sobre o desenvolvi-
que permite identificar e avaliar qual mento infantil, coloca-se a necessida-
conteúdo pode promover o desenvolvi- de de compreensão teórica do conte-
mento psíquico a cada momento (o que údo de ensino por parte do professor.
ensinar).” (PASQUALINI, 2010, p.135). É preciso que o professor compre-
Além disso, conhecer o desenvolvi- enda conceitualmente o conteúdo a
mento infantil é condição para delinear ser ensinado, ou seja, que compreenda
a forma de ensinar (como ensinar), ou sua lógica interna, para que seja capaz
seja, quais encaminhamentos metodo- de organizar o percurso necessário
lógicos são adequados para esse perío- para apropriação do conteúdo me-
do do desenvolvimento considerando diante uma ação pedagógica sequen-

63
ciada (PASQUALINI, 2010), de modo pela clareza dos elementos da cultura
que cada ação dominada pela criança que se pretende transmitir (conteúdo)
constitua um pré-requisito lógico para e pelo conhecimento científico sobre
a conquista posterior. quem é a criança.
Defendemos aqui a necessidade de
um exercício de análise do conteúdo a
ser ensinado como subsídio (ou condi- Quais são os pré-requisitos para a
ção) para o planejamento. É esse traba- apropriação do conteúdo? Quais
lho que permitirá ao professor definir as habilidades e conhecimentos
adequadamente as estratégias ou pro- envolvidos? O que é essencial e
cedimentos de ensino, selecionar os o que é secundário? Por onde
recursos necessários para que a apren-
começar? Qual o próximo passo?
dizagem se concretize e organizar a ati-
O que vem em seguida? Ao final
vidade da criança.
Caminhando para a finalização des- do trabalho, o que exatamente
sa reflexão sobre o trabalho educativo, se espera que a criança tenha
é importante lembrar que a tríade for- compreendido e que habilidades se
ma-conteúdo-destinatário se realiza espera que tenha dominado?
sob condições concretas determinadas.
As condições no interior das quais se
processa o trabalho educativo se refe- Apoiados em Saviani (2011), pode-
rem tanto a aspectos que podem ser mos concluir que é tarefa do profes-
alterados ou manejados pelo professor sor, como profissional da educação,
(como a disposição do mobiliário den- organizar sistematicamente o proces-
tro da sala de aula) quanto aspectos so ensino-aprendizagem das crianças
postos com os quais ele tem que lidar contemplando de forma intencional e
(como o horário de funcionamento da cientificamente fundamentada aquilo
escola, o número de crianças matricu- que é ensinado (conteúdo), a pessoa a
ladas na turma ou a disponibilidade de quem se ensina (destinatário), o modo
matérias pedagógicos e brinquedos). como se ensina (forma) e as condições
(PASQUALINI, 2010). Especialmente na (espaço-temporais, físicas e sociais) sob
educação infantil, as condições têm as quais se ensina.
impacto sobre o comportamento das Diante do exposto, fica claro que a
crianças e suas possibilidades de apren- pedagogia histórico-crítica compreen-
dizagem, de modo que o manejo (pos- de o professor como aquele que dirige
sível) das condições deve ser orientado o processo de ensino-aprendizagem

64 Fundamentos Teóricos
Fundamentos Teóricos

visando promover o desenvolvimen- senvolvimento infantil, que ignora o


to humano do aluno em suas máximas papel do processo educativo na própria
possibilidades. Esse posicionamento formação dos desejos, interesses e ne-
teórico-político ganha relevo em tem- cessidades da criança.
pos de declarada desvalorização e es- No arcabouço teórico da pedagogia
vaziamento do trabalho do professor, histórico-crítica entende-se que o pro-
como denunciado por Facci (2004). A fessor não pode ficar refém dos dese-
autora evidencia que o ideário peda- jos, interesses e necessidades imediatos
gógico contemporâneo é fortemente trazidos pela criança, sob pena de em-
contaminado pela descaracterização pobrecimento da experiência escolar.
do professor como um profissional que Mas ao mesmo tempo, o desejo, o inte-
está na escola para ensinar. Em nome resse, a necessidade são elementos fun-
de uma suposta centralidade da crian- damentais para o processo de apren-
ça no processo pedagógico, propõe-se dizagem. Isso porque a aprendizagem
que o professor não ensine, mas apenas é um fenômeno que envolve o sujeito
acompanhe, oriente, estimule, facilite, como um todo, ou seja, um processo
partilhe. Arce (2004, p. 160) considera afetivo-cognitivo, que mobiliza proces-
que, com isso, sos intelectivos em unidade com emo-
ções e sentimentos. Trata-se, então, de
(...) o professor sofre um violento pro-
instigar o desejo, provocar o interesse,
cesso de descaracterização, deixando
produzir a necessidade pelo novo:
de ensinar e reduzindo sua interferên-
cia na sala de aula a uma mera par- A pedagogia histórico-crítica pauta-se
ticipação. (...) Em lugar do professor no postulado de que novas necessi-
ensinando são colocadas (...) relações dades são formadas nos indivíduos a
de escuta e reciprocidade, pois o pro- partir da apropriação da cultura, ca-
fessor não mais dirige – ele segue: se- bendo à educação escolar a tarefa de
gue a criança, seus desejos, interesses produzir nos indivíduos novas necessi-
e necessidades. dades – carecimentos não-cotidianos
– e não ater-se ou limitar-se aos inte-
Nessa perspectiva, o processo edu-
resses e necessidades trazidos a priori
cativo junto à criança pequena acaba
pelo alunado. (PASQUALINI; MAZZEU,
convertendo-se em mero acompanha-
2008, p. 89-90).
mento do processo de desenvolvimento
infantil, como se esse desenvolvimento Cabe destacar que novas necessi-
se desse quase que espontaneamente. dades emergem na criança na depen-
Trata-se de uma naturalização do de- dência de um contexto que produza,

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objetivamente, a necessidades de no- da criança pela tarefa, oferecendo mo-
vas ações (SFORNI, 2004), ou seja, na delos, fazendo perguntas orientadoras,
dependência de como nós, adultos, or- convidando a criança a fazer compara-
ganizamos a atividade da criança. ções, introduzindo novas ferramentas
Na concepção histórico-crítica e his- (materiais e psíquicas), demandando
tórico-cultural, não é possível se pensar ações cada vez mais complexas, plane-
o papel do educador como alguém que jando conjuntamente as ações, e assim
apenas estimula e acompanha a crian- por diante. Na medida em que a criança
ça em seu desenvolvimento, mas sim avança no desenvolvimento de suas fun-
como aquele que ensina, entendendo ções psíquicas e do controle voluntário
o ato de ensinar como “a intervenção da conduta, novas possibilidades vão se
intencional e consciente do educador abrindo, incluindo preleções breves so-
que visa garantir a apropriação do pa- bre determinados temas.
trimônio humano-genérico pela crian- Vemos, assim, que a pedagogia his-
ça, promovendo, assim, seu desenvol- tórico-crítica volta-se para a formação
vimento psíquico.” (PASQUALINI, 2006, humana em sua totalidade. A apropria-
p. 193-4). Nesse sentido, “o professor ção do saber escolar não é algo restrito
[de educação infantil] é compreendido ao âmbito cognitivo, mas meio de de-
como alguém que transmite à criança senvolvimento da consciência crítica e
os resultados do desenvolvimento his- da personalidade dos indivíduos. Visan-
tórico, explicita os traços da atividade do oferecer subsídios para o trabalho
humana objetivada e cristalizada nos educativo orientado a esse horizonte,
objetos da cultura e organiza a ativida- abordaremos nos próximos capítulos
de da criança.” (p. 192). o desenvolvimento do psiquismo hu-
Nos diferentes segmentos educacio- mano na relação com o ensino escolar
nais, o ato de ensinar deverá ser condu- e uma análise histórico-cultural do pro-
zido considerando-se as especificidades blema dos períodos ou fases do desen-
do desenvolvimento infantil (quem é a volvimento infantil.
criança). Na educação infantil, o profes-
sor deve planejar e propor atividades e
orientar as ações das crianças durante
sua realização, orientando o olhar da
criança, chamando sua atenção para de-
terminados aspectos da realidade que
ela ainda não percebe por si mesma,
dando instruções, instigando o interesse

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Fundamentos Teóricos

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