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CONTRADIÇÕES E VARIANTES NOS MODELOS DE

DESENVOLVIMENTO DA SERRA DA CAPIVARA.

CAPITULO 1: A DINÂMICA LOCAL

1.1. O domínio da caatinga e o que a natureza impõe

Viver na caatinga por si só já é uma tarefa árdua e requer toda uma dinâmica

própria de um bioma complexo.

Lagoinha – Cel. José Dias Foto:Vânia Sanches

Para entendermos um pouco dessa dinâmica recorremos ao trabalho do Prof.

Ab’Saber (1999).

“Em 85% do seu espaço total, a região semi-árida brasileira se


estende por depressões interplanálticas, situadas entre maciços
antigos e chapadas eventuais,sob a forma de intermináveis
colinas sertanejas, esculpidas em xistos e gnaisses, com baixo
nível de decomposição química de rochas. Tais colinas, um
tanto monótonas e certamente muito rústicas, sulcadas por rios
e riachos intermitentes, estão sujeitas a climas quentes e
relativamente secos. Inverno seco e quase sem chuva, com
duração de cinco a oito meses, e verão chuvoso, com quatro a
sete meses de precipitações pluviais; irregulares no tempo e no
espaço, de forma que os índices que buscam medir médias de

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precipitação guardam alta dose de irrealidade, servindo como
mera referência genérica, para efeito de comparação com as
regiões úmidas e subúmidas do país (..) os terrenos que
constituem a região semi-árida nordestina, em áreas de
vertentes e interflúvios das colinas sertanejas, possuem uma
complexa associação regional de solos, totalmente diversa de
todos os outros conjuntos existentes no país. Sua especificidade
decorre da presença de solos igualmente distanciados, tanto dos
solos salinos típicos quanto dos excessivamente carbonáticos.
Por outro lado, raramente se aproximam das características dos
solos oxidados, que comportam concentrações de sesquióxidos
de ferro e alumina (oxissolos, latossolos). Estes últimos restritos
apenas às serras úmidas” (Ab’SABER, 1999:10-11).

Esse é o complexo bioma da caatinga, pois em seu interior existem vários

ecossistemas ainda pouco ou nada explorados.

Ocupa dentro do território nacional uma área de 700 mil km2.

Segundo Ab’Saber, sua principal particularidade é ser uma exceção no mundo

porque, com uma temperatura média alta com pouca chuva, é a região mais povoada

do mundo semi-árido da face da Terra, com uma população de 23 milhões de pessoas,

“entre os quais, quatro milhões de camponeses sem terra - marcados por uma relação

telúrica com a rusticidade física e ecológica dos sertões, sob uma estrutura agrária

particularmente perversa” (Ab’SABER, 1999:7).

Ainda, segundo o autor, nessa porção do nordeste há "(...) muito mais gente do

que as relações de produção ali imperantes podem suportar”. Esse adensamento

humano, atípico para uma região semi-árida, acentua a debilidade do seu ecossistema.

Os recursos florestais são, geralmente, os primeiros a serem explorados pelos

camponeses, assumindo importante papel no contexto econômico e social dessas

comunidades. Seus produtos constituem, além de fonte de energia primária, um

importante complemento de renda.

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É de fundamental importância para aqueles que se interessam pela problemática

nordestina, mais especificamente pelos sertanejos, o significado do conceito de espaço

regional da caatinga, pois

“o nível de interiorização do ambiente sertanejo atinge centenas


de quilômetros (em muitos casos, de 600 a 700 km), desde os
limites com a zona da mata até os sertões mais distantes, ou
desde a praia até o chamado alto sertão ou, ainda, desde o Rio
Grande do Norte até o sul-sudeste do Piauí. Em sua área
nuclear, o Nordeste semi-árido estende-se em seu eixo sul-norte
por um espaço que vai desde Poções e Milagres, no município
de Amargosa (BA), até o extremo noroeste do Ceará, atingindo
a costa em largos setores tanto desse estado quanto do Rio
Grande do Norte” (Ab’SABER, 1999:14).

A principal área de extensão do Nordeste semi-árido situa-se em depressões

interplanálticas, onde os altos sertões típicos são todos aqueles que de alguma forma se

encontram embutidos entre chapadas ou largos desvãos de maciços antigos no Ceará,

Paraíba, Pernambuco/Bahia, médio/inferior São Francisco e sul-sudeste do Piauí, onde

se localiza a microrregião de São Raimundo Nonato.

Na porção semi-árida está localizada

“a mais importante massa de camponeses residentes do Brasil,


distribuídos pelas faixas de transição climática (agrestes), os
pequenos celeiros de produção agrícola (brejos) e as grandes
extensões de pecuária pobre e extensiva. Mais do que qualquer
outro contingente demográfico do nosso interior, esta
população forma um povo e uma cultura amarrados à
rusticidade da vida econômica e social nas caatingas.
Encontramos uma centenária cultura popular de raízes
lingüísticas centradas em fundamentos ibéricos e aperfeiçoadas
ao calor das forças telúricas e ameríndias, em um ambiente
físico e humano que não reservou lugar para os fracos e
acomodados” (Ab’SABER, 1999: 24-25).

Como ignorar a sabedoria do homem do sertão que entende os sinais que

anunciam chuvas observando as formigas, os sapos, e as nuvens? O conhecimento das

potencialidades produtivas de cada pequeno espaço desses sertões vai desde as

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vazantes do leito dos rios até os altos secos e pedregosos das colinas sertanejas. Mas

muitos desses homens não têm nada de seu, a não ser a esperança e a força do seu

trabalho.

Viver abaixo da linha da pobreza incide exatamente sobre a parcela constituída

por todos os tipos de trabalhadores sem-terra. Esta frágil posição do principal

segmento da força de trabalho dos sertões –

“identificado como a maior reserva de mão-de-obra braçal das


Américas - cria uma aura de sobreviventes para todos os
componentes de uma sociedade constituída de vaqueiros e
camponeses” (Ab’SABER, 1999:26)

As adversidades que compõem o sertão transformaram essa região em grande

fornecedora de mão-de-obra barata para as outras regiões do Brasil. Na região da Serra

da Capivara não é diferente, pois é uma prática comum ainda hoje os homens irem

para a região de Serrana, no interior de São Paulo, na época do corte de cana, trabalhar

nas usinas de álcool. Outro destino muito procurado pelos sertanejos dessa região são

as cidades satélites de Brasília. Eles vão em busca de alguma oportunidade de trabalho,

principalmente na construção civil.

Entretanto, muitos resistem e continuam em suas ressequidas terras. Manter

esse contingente humano no seu lugar de origem, com um padrão de vida digno, é o

discurso dominante nas ações que tem por objetivo promover o desenvolvimento da

região do Parque Nacional Serra da Capivara.

1.2. A População

1.2.1. Caracterização Geral

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O povoamento da região da Serra da Capivara se originou principalmente dos

distritos de Jaicós e Jerumenha, que faziam parte do Distrito Eclesiástico – Confusões

desde 1832, tendo sido transferidos para Jenipapo em 1836.

No final do século XIX, início do século XX, as pessoas construíram suas casas

na confluência do baixão “vereda” com o rio Piauí, que formava um baixio de boas

proporções, com excelentes terras aluviônicas para lavoura e pastagens e contava,

ainda, com um abundante lençol de água potável subterrâneo muito próximo.

As construções prosseguiram sem atentarem para o fato de que além de muito

úmido, o solo era cercado por águas paradas durante o inverno e sujeito às inundações

nas grandes enchentes. Foi assim que em várias oportunidades o local foi vítima de

grandes inundações, arrastando uma quarta parte das casas e provocando outros tantos

desabamentos, além de estragos de ruas, onde canoas improvisadas transportavam

pessoas, mercadorias, utensílios para as partes mais altas que não tinham sido atingidas

pelas águas.

A história da colonização nessa região ainda é bastante incipiente, tanto em

termos de historiografia quanto em testemunhos mal conservados ou mesmo

destruídos.

A arqueologia fornece mais dados e informações sobre os habitantes da pré-

história, do que a história sobre as gerações seguintes.

O elo se dá com a colonização das terras em meados do século XVII até

começo do século XIX, quando a região era densamente habitada por uma população

nativa que ocupava o mesmo espaço dos pré-históricos.

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Os registros do começo do extermínio indígena são do século XVIII, com a

colonização das terras pelos homens brancos, companheiros do “desbravador”

Domingos Afonso Mafrense, que chegou a formar na região mais de 50 fazendas.

Com a sua morte, passaram-nas aos jesuítas, interessados em catequizar os

índios. Também foram chegando à região foragidos da justiça e aventureiros, ambos

interessados em ocupar a terra com roçados típicos da fazenda familiar, tornando-se

posseiros.

Por volta da década de 20 do século XIX, deu-se início uma verdadeira guerra,

que durou 8 anos, quando “sua majestade, o senhor D. João”, confiou a tarefa de

expulsar e se apoderar das terras dos Pimenteiras, a José Dias Soares, além de resgatar

seu sobrinho, José Dias - o Brabo.

Contudo, ele devia evitar o derramamento de sangue. Mas o famoso “cel. José

Dias” teve a base da sua empreitada na guerra e extermínio ou escravização dos índios.

As terras usurpadas dos nativos foram distribuídas entre familiares, amigos e

companheiros de guerra e transformaram-se em várias fazendas de gado e roçados de

lavoura. Os sesmeiros e posseiros vão se tornando os “donos” do lugar, estabelecendo

uma nova organização social.

A pecuária extensiva predominou do final do século XVIII a meados do XIX,

abastecendo com as caravanas de boiadas os estados da Bahia, Pernambuco e Ceará,

com quem mantinham comércio de produtos derivados do leite, como a manteiga de

nata e o requeijão.

Devido às dificuldades de transporte, às secas constantes e à pequena produção

agrícola, além do desconhecimento de métodos de armazenagem, o desenvolvimento

econômico da região foi lento. Formou-se uma sociedade rústica de fazendeiros até

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1890, quando a maniçoba tornou-se um produto rentável, perdurando até as primeiras

décadas do século XX.

Como a pecuária extensiva, a maniçoba era extrativa e, em pouco tempo, os

maniçobais foram explorados à exaustão.

O desmatamento, somado às dificuldades climáticas, mudou as características

ambientais da região da época pré-histórica, quando a fauna e flora eram abundantes.

Em decorrência desse processo de colonização, hoje encontramos a região

habitada, em grande parte, por uma população que vive abaixo das necessidades

básicas, considerando saúde, educação e infra-estrutura de moradia como o índice

mínimo de qualidade de vida.

Ainda hoje as principais atividades produtivas da região são a agricultura de

sequeiro, o criatório de pequeno e médio porte e o comércio varejista.

O turismo vem crescendo, mas ainda é uma atividade potencial.

Na agricultura de sequeiro, destacam-se como principais produtos o feijão e o

milho, voltados para a subsistência, e o cultivo do caju, para comércio da castanha.

A produção agrícola, exceção feita ao caju, de modo geral apresenta baixa

produtividade, em função da sensibilidade dos produtos às secas freqüentes e do baixo

nível tecnológico. No caso do caju, o beneficiamento da castanha, que possibilita um

maior valor agregado ao produto, é feito fora da região. As demais culturas têm pouca

expressão.

A produção extrativa caiu muito, em função das campanhas de preservação da

área do Parque, mas a extração da lenha ainda é significativa na região, mesmo sendo

considerada uma atividade ilegal.

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A pecuária de médio porte constitui a principal atividade produtiva voltada para

o mercado. O rebanho de caprinos e ovinos predomina em toda a região, que se

caracteriza pela prática do criatório extensivo, sem nenhuma técnica apropriada de

manejo. O animal é vendido “em pé”, ou seja, vivo. A pele é comercializada pelo

açougue a um intermediário da região.

A estrutura fundiária sobre a qual estas atividades são exercidas é caracterizada

pela predominância de micro e pequenas propriedades rurais. Observamos que 60%

são imóveis abaixo do módulo fiscal da região (70 ha), com uma área média de 30 ha.

Outros 31% são pequenos produtores de até 140 ha, perfazendo um total de

91% dos imóveis, ocupando 38% das terras, o equivalente à área de apenas 15 outros

imóveis presentes na região. Isto significa que 15 fazendeiros distribuem entre si a

mesma quantidade de terras que é utilizada por 1.018 pequenos produtores. (IBGE,

2007)

Observamos ainda, que 83% da área total dos imóveis se encontram ociosa, o

que predomina nas grandes propriedades. No período que antecede à criação do

parque, o quadro não era muito diferente.

Entretanto, vamos aprofundar a questão da caracterização da população tendo

como base o trabalho de mestrado da profª Emília Pietrafesa de Godói, que estudou a

memória do trabalho dessa população, e nos forneceu um importante relato de resgate

da cultura local.

1.2.2. A posse da terra antes do Parque

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Para tratar do período que antecede à criação do Parque Nacional Serra da

Capivara (PNSC), utilizaremos o estudo de GODOI (1999) sobre a região, onde a

autora trata da ocupação e reprodução camponesa no sertão do Piauí, num momento

em que os camponeses, sentindo a pressão sobre seu território, ativam sua memória

coletiva.

Contudo, aqui, vamos nos ater aos elementos que possam nos dar um quadro de

qual era o modo de vida existente na região antes da criação do PNSC.

Iniciaremos a construção desse cenário pelos dados da ocupação fundiária. Nos

anos setenta ainda não havia ocorrido o desmembramento dos municípios, e a maior

parte das terras que mais tarde constituiria o Parque Nacional Serra da Capivara

pertencia ao município de São Raimundo Nonato.

São Raimundo Nonato localiza-se no sudeste do Piauí e faz parte da

microrregião que leva o seu nome. À época estudada pela autora, o município contava

com uma população de 57.721 habitantes e era como continua sendo, eminentemente

rural, com sua principal atividade econômica focada na agricultura.

A fonte de pesquisa articulada aos dados empíricos levou a autora a constatar

que a condição legal dos produtores sobre a terra era a de que

“95,3% da extensão total da área, medida em hectares, estão


nas mãos de proprietários, isto é, daqueles que possuem o
título de propriedade através da compra ou herança, e apenas
4,7% da área total estão nas mãos de ocupantes, entendendo-se
por esta categoria aqueles que não possuem a propriedade
jurídica da terra, mas possuem sua posse de ocupação.
Importante ressaltar que, embora uma pequena porcentagem da
extensão total da área esteja nas mãos de ocupantes, como
vimos acima, é nela que se concentra a maioria dos
estabelecimentos econômicos” (GODOI, 1999:42)

Iremos encontrar as raízes para tal situação no fato de que a maior concentração

de terra abriga o menor número de estabelecimentos na história do lugar.

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Desde o século XVII, ainda sob a égide do sistema de sesmarias, deu-se início

o estabelecimento na região dos grandes latifúndios e com eles “o antagonismo entre o

posseiro obstinado e o sesmeiro, este habitante das cidades, muitas vezes na Bahia,

tendo suas terras trabalhadas por terceiros – agregados ou foreiros (Porto, 1955)”

(GODOI, 1999:43)

No caso do povoamento do Piauí, os registros históricos atestam que nos

séculos XVII e XVIII, a forma predominante de ocupação eram as fazendas de

criatório, desprezando a atividade agrícola.

Entretanto, aqui nos interessa destacar as diferenças entre os termos fazenda,

sítio e posse, para que entendamos mais à frente essas noções dentro da dinâmica local.

Tais termos são visivelmente descritivos, como aponta GODOI

“[...] comportam um sentido comumente aceito e descrevem


formas diferenciadas de ocupação das terras e de apropriação
da natureza pelo homem. Podemos deduzir o conteúdo
descritivo de tais referências a partir do uso local que ainda se
faz delas. É uso corrente na região de fazendas as propriedades
pecuárias e menos comum, mas também presente, sua utilização
para designar propriedades de grande extensão; já sítio é
reservado para áreas destinadas ao cultivo, podendo comportar
a criação de miunça (bode e cabra). Quanto à última referência
mencionada, precisamos nos ater mais atentamente. A noção de
posse tem recebido atenção especial dos estudos voltados para
a ocupação camponesa da terra, desde aqueles que vêem na
posse a expressão de uma lógica especificamente camponesa
de apropriação e uso da terra prévia à penetração
capitalista no campo” (1999:45.Grifos da autora)

No caso da região em questão, após debate sobre a noção de posse, a autora nos

propõe a existência de uma “economia moral” (GODOI, 1999:49) que orientava os

direitos relativos à ocupação da terra, legitimada pela descendência e residência, onde

a serra cortando as terras é um elemento diferenciador.

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A necessidade de subir a serra, ultrapassando os limites da fazenda, pode ser

explicada pela atividade extrativista da maniçoba, que dominou a economia da região,

principalmente no período de 1897-1913.

Seu apogeu foi motivado pelos altos preços da borracha no mercado

internacional, intimamente ligado ao crescimento das indústrias automobilística e

elétrica. Essa atividade econômica declinou com a concorrência asiática.1

Esse subir a serra contribuiu para que a origem dos direitos sobre a terra se

associasse ao pertencimento de um tronco familiar. É regra na região a identificação da

pessoa pelo seu tronco familiar, bem como a identificação da propriedade, ou seja,

“o princípio da ascendência comum converge com o princípio dos direitos sobre a

terra” (GODOI, 1999:58)

1.2.3. O viver na terra

Para além das fronteiras físicas das fazendas, quando subiram a serra, os

moradores da região também avançavam nas fronteiras sociais, pois, segundo GODOI

“os limites deste grupo não são dados exclusivamente pela área
territorial da primitiva fazenda, mas por um elemento
simultaneamente de ordem histórica e simbólica, ou seja, o
partilhar de uma história primordial e paradigmática: a origem
da “grande família”. (1999:88)

Nesse sentido, veremos que os espaços são “desdobrados em quatro domínios

fundamentais: a casa, a roça, o muro e o quintal” (GODOI. 1999:88. grifos).

A autora nos mostra que o muro e o quintal são dois espaços sempre contíguos

à casa de morada e podem ser pensados como domínios domésticos e, associados à


1
Para aprofundar o assunto ler QUEIROZ, T. de J.M. A importância da maniçoba na economia do
Piauí – 1900-1920. PPG em História do Brasil. Curitiba: UFPR, 1984.

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casa, formam uma unidade, mais pelo manejo das relações no interior dos mesmos do

que pela contigüidade física.

O que define, segundo a autora, as posições que homens e mulheres ocupam no

interior da unidade familiar, é o “ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico” e a

“fase no seu próprio ciclo populacional” 2, não obedecendo a nenhuma posição rígida.

Entretanto, é fato que o muro, o quintal e a casa são espaços marcadamente femininos,

ainda que não exclusivos.

Interior de Cel. José Dias. Foto: Matilde Braga

A inter-relação entre o masculino e o feminino também é notada na

adolescência, onde as mesmas tarefas são desempenhadas por meninos e meninas, sem

distinção.

Outra prática comum é a tomada para si de funções masculinas por parte das

mulheres, ocasionadas pela migração sazonal (maio a agosto), quando muitos homens

estão ausentes ou, ainda, pela diminuição da participação dos homens na unidade
2
FORTES, M. “Introduction”, in J.Goody (Ed), The Developmental cycle in domestic groups.
Cambridge, pp.1-4, 1969 . Citação da autora

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produtiva, em função da busca de trabalhos temporários para os períodos de seca,

quando o trabalho da roça não acontece.

Ela prossegue em sua análise mostrando que no âmbito da casa são atribuições

da mulher, seja mãe ou filha, a organização do consumo familiar e as atividades

propriamente domésticas.

De fevereiro ao final de abril, torna-se também uma atribuição feminina ir de

manhã pra roça colher o feijão para o consumo do dia, além de preparar uma refeição

extra, levada por volta das dez horas na roça para os homens que já se encontram no

trabalho do roçado desde as cinco horas da manhã.

O muro, via de regra, tem menos de uma tarefa (625 braças, sendo uma braça

aproximadamente 2,20 m) e abriga a criação de animais de pequeno porte como

porcos, galinhas e um pequeno pomar. O cuidado desse espaço também é destinado à

mulher.

O quintal tem a função de uma roça menor, aproximadamente duas tarefas,

onde se encontram algumas árvores frutíferas, cultivo de mandioca, abóbora, palma e,

às vezes, milho e feijão.

1.3. A chegada do Parque

Em 1962, o prefeito de São Raimundo Nonato (PI), em visita ao Museu

Paulista, descobriu que as garatujas dos caboclos que enfeitavam as paredes de muitas

roças tinham importância para a ciência e, voltando a São Raimundo Nonato, enviou as

fotos das “pinturas dos neguinhos” para a arqueóloga Niède Guidon, que ficaria

responsável por analisá-las.

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Detalhe de pintura rupestre. Foto: André Pessoa

Após a constatação de que os “neguinhos” eram pinturas rupestres numa

quantidade e com uma técnica ainda não conhecidas, a necessidade de estudá-las se

tornou urgente. Contudo, o golpe militar de 1964 atrasou esses planos.

Após várias tentativas sem sucesso, em função do alto grau de dificuldade de

acesso, em 1973, finalmente, Niède Guidon e a Missão Franco-Brasileira chegam, pela

primeira vez, na região de São Raimundo Nonato, constatando que as primeiras

impressões obtidas nos anos 60 não faziam jus ao tesouro arqueológico que se

escondia nas chapadas e paredões das serras.

Na primeira prospecção já foi possível dimensionar que aquela região deveria

ser objeto de estudos aprofundados, tanto ao nível cultural, pelos vestígios facilmente

encontrados da presença humana na região há milênios, como ao nível ambiental, pois

é uma área de predominância do bioma da caatinga, objeto ainda de poucos estudos, se

comparado aos outros biomas existentes no Brasil.

Constatada a necessidade de estudos, várias missões foram feitas na região,

iniciando uma trajetória de pesquisas, hoje conhecidas internacionalmente. Com o

avanço das pesquisas, surgiu entre os pesquisadores a necessidade de iniciativas que

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preservassem tanto o patrimônio cultural quanto o patrimônio natural encontrados.

Entre elas, a solicitação junto ao governo brasileiro de transformar a área em uma

Unidade de Conservação.

Foram vários os argumentos que fundamentaram a solicitação de criação do

Parque Nacional Serra da Capivara, entre os quais os pesquisadores responsáveis pela

ação destacaram três: ambiental, cultural e social.

Para eles, motivação ambiental era baseada no fato de que a região é

classificada como área semi-árida, com paisagens variadas na serras, vales e planícies,

com vegetação de caatinga, abrigando fauna e flora pouco conhecidas.

Quanto à motivação cultural, o argumento utilizado pelos pesquisadores

mostrou que a região abrigava uma grande concentração de sítios arqueológicos, a

maioria com pinturas e gravuras rupestres.

Por fim, na ótica da equipe de pesquisa, a motivação social aparecia por meio

da possibilidade de introdução de uma nova atividade econômica na região – o

turismo.

Naquele momento eles entendiam que, sob o argumento de que com paisagens

de uma beleza natural surpreendente, com pontos de observação da vida animal

privilegiados e com os vestígios arqueológicos, a área possuía um importante potencial

para o turismo ecológico e cultural, constituindo uma alternativa de desenvolvimento

para a região.

Assim, em 05 de junho de 1979, sob o decreto 13.548, o presidente João Batista

Figueiredo cria o Parque Nacional Serra da Capivara, com a finalidade de “proteger a

flora e fauna e as belezas naturais e os monumentos arqueológicos”, com uma

extensão de, aproximadamente, 100.000 ha.

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1.3.1. O Parque Nacional Serra da Capivara

Baixão das Andorinhas. Foto: André Pessoa

O Parque Nacional Serra da Capivara está localizado no sudeste do Piauí,

fazendo limite com os municípios de São Raimundo Nonato, Cel. José Dias, João

Costa e Brejo do Piauí. Quando da sua criação, sua área era de aproximadamente

100.000 hectares, pelo decreto nº 83.548 de 05/06/1979, e teve sua área ampliada para

os 129.953 hectares atuais. Tal ampliação se deu em função de um memorial descritivo

de demarcação realizado pelo IPARJ.

Por decreto presidencial nº. 99.193 de 12/03/90 foram criadas três Áreas de

Preservação Permanente, contíguas ao PARNA:

 Serra Vermelha/Angical, com uma superfície de 8.500 hectares e um

perímetro de 60 quilômetros;

 Serra do Cumbre/Chapada da Pedra Hume, com uma superfície de 18.500

hectares e um perímetro de 90 quilômetros;

 Serra da Capivara/Baixão das Andorinhas, com uma superfície de 8.000

hectares e um perímetro de 50 quilômetros.

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Em 1988 foi assinado o convênio entre a FUMDHAM e o IBAMA para a

elaboração do Plano de Manejo, que foi entregue em outubro de 1991.

Em 1994 foi assinado um convênio entre IBAMA e a FUMDHAM segundo o

qual as duas instituições assumem, conjuntamente, a gestão do PARNA Serra da

Capivara, de modo que coube ao IBAMA a fiscalização e preservação do patrimônio

cultural e natural e à FUMDHAM, a responsabilidade pela área técnica e o

desenvolvimento das pesquisas.

A partir de então a captação de recursos para investimentos, tanto na infra-

estrutura do Parque como em projetos sociais que contribuíssem com a preservação do

mesmo, passou a ser um dos alicerces da instituição.

A opção por transformar as terras que abrigavam as pinturas rupestres e os

vestígios arqueológicos em uma Unidade de Conservação se deu pelo fato de que,

dentre as opções legais, esta permite uma ação antrópica na área de entorno.

Segundo o IBAMA, os Parques Nacionais pertencem ao grupo de unidades de

conservação de proteção integral, e se destinam à preservação integral de áreas naturais

com características de grande relevância sob os aspectos ecológicos de beleza cênica,

científico, cultural, educativo e recreativo, sendo vedadas as modificações ambientais e

a interferência humana direta.

Somente poderão ser executadas ações que promovam modificações quando

estas visarem medidas de recuperação de sistemas alterados ou de manejo, necessárias

para recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos

naturais, desde que previamente estabelecido no plano de manejo da unidade.

Os Parques Nacionais (PARNA ou PN) comportam a visitação pública com

fins recreativos e educacionais, regulamentada pelo plano de manejo da unidade.

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As pesquisas científicas, quando autorizadas pelo órgão responsável pela sua

administração, estão sujeitas às condições e restrições determinadas por este, bem

como ao que for definido em seu plano de manejo.

A preocupação com a preservação do patrimônio cultural e natural por parte

dos pesquisadores da Missão Franco-Brasileira não foi uma ação isolada, mas estava

pautada numa discussão que se dava ao nível mundial e que serviu de subsídio para as

argumentações que fundamentaram a criação do Parque Nacional Serra da Capivara.

1.3.2. As idéias que Regem um Parque Nacional

Para LEITE E MEDINA (2001), foi a partir da segunda metade do século XX,

através do aumento dos desequilíbrios ambientais determinados pelo processo de

crescimento econômico e pela visão de desenvolvimento vigente naquele momento

(utilização intensiva e extensiva dos recursos naturais) que as idéias de preservação e

proteção ao meio ambiente tomaram forma e força.

Uma das alavancas dessa discussão foi a publicação do livro Primavera

Silenciosa, da jornalista estadosunidense Raquel Carson, que denunciava a

interferência do homem no meio ambiente.

Em virtude dessa denúncia, foi formado o primeiro conselho para educação

ambiental, do qual fizeram parte cinqüenta organizações voltadas para temas de

educação ambiental e meio ambiente.

No mesmo período foi criado o Clube de Roma, tendo como membros trinta

especialistas das diversas áreas do conhecimento, cuja atenção se detinha sobre as

questões ambientais e econômicas.

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Esse grupo publicou o relatório “The limits of growth” (os limites do

crescimento), que condenava o crescimento da economia dos países sem nenhum

controle sobre a natureza.

Em 1972, após as fortes pressões de várias entidades já ligadas às questões

ambientais, a ONU realizou, em Estocolmo, a I Conferência das Nações Unidas sobre

o Meio ambiente, que resultou na criação do Programa das Nações Unidas para o Meio

Ambiente (PNUMA), sediado em Nairobi.

Em 1975, na cidade de Belgrado, representantes de 65 países se reuniram para

formular os princípios orientadores do Programa Internacional de Educação Ambiental

(PIEA) para enfrentar a crise ambiental no planeta, tendo como evidência o princípio

n° 10 da Conferência:

“É indispensável um trabalho de educação em questões dirigido


tanto às gerações jovens como aos adultos, e que preste a
devida atenção ao setor da população menos privilegiada,
para ampliar as bases de uma opinião bem informada e de uma
conduta dos indivíduos, das empresas e da coletividade,
inspirada no sentido de sua responsabilidade quanto à proteção
e melhoramento do meio em toda sua dimensão haverá” (LEITE
e MEDINA, 2001:12).

Entretanto, o marco histórico ligado às preocupações com o meio ambiente

aconteceu em 1977 com a Conferência Intergovernamental da Educação Ambiental,

realizada em Tbilisi, organizada pela UNESCO em cooperação com o PNUMA.

Nesse encontro foram definidos objetivos, princípios, estratégias e

recomendações para o desenvolvimento da educação ambiental no mundo,

compreendendo meio ambiente “não somente o meio físico biótico, mas também o

meio social e cultural e relaciona os problemas ambientais com os modelos de

desenvolvimento adotados pelo homem” (LEITE e MEDINA, 2001: 13).

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Após 10 anos de Tbilisi foi realizada em Moscou a Conferência Internacional

da UNESCO – PNUMA sobre educação e formação ambiental. Nesse encontro foram

elaboradas estratégias internacionais para ações no campo da educação ambiental a

serem aplicadas a partir dos anos 90. Foi também nesse encontro que se reconheceu a

importância da inclusão da educação ambiental, nos sistemas educacionais dos

diversos países.

O Brasil, que até então não era muito presente, chegando mesmo a ser omisso,

foi pressionado por outros países a se integrar às discussões, em função do grande

patrimônio natural do qual é composto.

A discussão sobre educação ambiental e meio ambiente ganhou força nas

décadas de 80 e 90, quando a luta ecológica e os direitos ambientais foram

intensificados a partir do surgimento de novos movimentos sociais e da criação de

várias ONGs ambientalistas no país.

Ainda na década de 80 a Nova Constituição Brasileira destaca a questão

ambiental no artigo 225 do capítulo VI, no título Da Ordem Social, que trata:

“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente


equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade
o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações”. (BRASIL, 1989:105).

Em 1992 foi realizada a Conferência das Nações Unidas, na cidade do Rio de

Janeiro, que contou com a participação de 170 países. Nesse encontro foi elaborada a

Agenda 21, que reuniu propostas de ações e estratégias e previu a promoção da

qualidade de vida e desenvolvimento sustentado com vistas ao século XXI.

Desde então a preocupação com as questões ambientais no Brasil só tem se

fortalecido e conquistado mais espaço no debate nacional.

20
1.3.3. – O Parque e a sua dinâmica

Boqueirão da Pedra Furada. Foto: André Pessoa

A questão ambiental vem sendo considerada cada vez mais urgente e

importante para a sociedade, pois a sobrevivência da humanidade depende da relação

estabelecida entre a natureza e o uso pelo homem dos recursos naturais disponíveis.

Milton Santos, por exemplo, não trabalha diretamente com o conceito de meio

ambiente e sim de natureza. O autor define:

“Referimo-nos ao que podemos chamar de Sistemas da


Natureza sucessivos, onde esta é continente e conteúdo do
Homem, incluindo os objetos, as ações, as crenças, os desejos, a
realidade esmagadora e as perspectivas” (SANTOS, 1997:15).

Ainda, segundo o autor, na atualidade podemos falar de uma Natureza Social,

racionalizada pelo homem, instrumentalizada pela razão. Essa idéia remete a uma

leitura do meio ambiente muito mais direcionada ao ambiente do que ao meio em si

- os aspectos humanos ganham destaque em relação aos aspectos físicos. Os

aspectos humanos ganham destaque em relação aos aspectos físicos. O meio

21
ambiente não se explica apenas pela organização das forças físicas da natureza, mas

também pela interação com o homem.

O conhecimento sistemático relacionado ao meio ambiente e ao movimento

ambiental é bastante recente. A própria base conceitual — definições como a de meio

ambiente e de desenvolvimento local, por exemplo — estão em plena construção. De

fato, não existe consenso sobre esses termos nem mesmo na comunidade científica

nem fora dela.

Por outro lado, muitos estudiosos da área ambiental consideram que a idéia

para a qual se vem dando o nome de “meio ambiente” não configura um conceito que

possa ou que interesse ser estabelecido de modo rígido e definitivo. É mais relevante

estabelecê-lo como uma “representação social”, isto é, uma visão que evolui no tempo

e depende do grupo social em que é utilizada:

“(...) não nos devemos deixar circunscrever pelos ditames de


uma pesquisa automática, instrumentalizada, nem aceitar o
pré-requisito de nenhum enunciado. Somente a história nos
instrui sobre o significado das coisas. Mas é preciso sempre
reconstruí-la, para incorporar novas realidades e novas idéias
ou, em outras palavras, para levarmos em conta o tempo que
passa e tudo muda” (SANTOS 1992: 95)

À medida que a humanidade aumenta sua capacidade de intervir na natureza

para satisfação de necessidades e desejos, surgem conflitos quanto ao uso do espaço e

dos recursos em função da tecnologia disponível.

A exploração dos recursos naturais passou a ser feita de forma demasiadamente

intensa. Sistemas inteiros de vida vegetal e animal são tirados de seu equilíbrio. E a

riqueza, gerada num modelo econômico que propicia a concentração da renda, não

impede o crescimento da miséria e da fome.

22
Hoje esta relação está permeada com o discurso do meio ambiente. De um lado,

ele vem direcionado para interesses próprios e muitas vezes mundializados. A mídia,

nesse caso, possui um papel de destaque, dando credibilidade a esse discurso.

SANTOS (1997) trata de uma natureza espetáculo, inventada, portanto, pelos

instrumentos de comunicação, e essa natureza tende progressivamente a sobressair-se

da natureza histórica, ou seja, aquela que é o produto da ação humana ao longo do

tempo.

De outro lado, temos o discurso dos movimentos de defesa do meio ambiente

que lutam para diminuir o acelerado ritmo de destruição dos recursos naturais ainda

preservados e busca alternativas que concilie, na prática, a conservação da natureza

com a qualidade de vida das populações que dependem dessa natureza.

Para uns, a maior parte dos problemas atuais, decorrentes do modelo de

desenvolvimento, economia e sociedade, pode ser resolvida pela comunidade

científica, confiando na capacidade da humanidade produzir novas soluções

tecnológicas e econômicas a cada etapa, em resposta a cada problema que surge,

permanecendo basicamente no mesmo paradigma civilizatório dos últimos séculos.

Para outros, a questão ambiental representa quase uma síntese dos impasses que

o atual modelo de civilização acarreta. Consideram que aquilo a que se assiste, no

século XXI, não é só uma crise ambiental, mas uma crise civilizatória e que a

superação dos problemas exigirá mudanças profundas na concepção de mundo, de

natureza, de poder, de bem-estar, tendo por base novos valores individuais e sociais.

Para outros ainda, o homem deveria se comportar não como dono do mundo,

mas, percebendo-se como parte integrante da natureza, resgatar a noção de sacralidade

23
dessa natureza, respeitada e celebrada por diversas culturas tradicionais antigas e

contemporâneas.

De todo modo, os recursos naturais e o próprio meio ambiente tornaram-se uma

prioridade, um dos componentes mais importantes para o planejamento político e

econômico dos governos.

Passam então a ser analisados em seu potencial econômico e vistos como

fatores estratégicos. O desnível econômico entre grupos sociais e entre os países, tanto

em termos de riqueza quanto de poder, cria vetores importantes de pressão sobre as

políticas econômicas e ambientais em cada parte do mundo. Além do mais, o poderio

dos grandes empreendimentos transnacionais torna-os capazes de influir fortemente

nas decisões ambientais que governos e comunidades deveriam tomar, especialmente

quando envolvem o uso dos recursos naturais.

Com a constatação dessa inevitável interferência que uma nação exerce sobre

outra por meio das ações relacionadas ao meio ambiente, a questão ambiental torna-se

internacional. Portanto, ao lado da chamada “globalização econômica”, assiste-se à

globalização dos problemas ambientais, o que obriga os países a negociar e a legislar

de forma a que os direitos e os interesses de cada nação possam ser minimamente

limitados em função do interesse maior da humanidade e do planeta.

A ética entre as nações e os povos deve passar então a incorporar novas

exigências, com base numa percepção de mundo em que as ações sejam consideradas

em suas conseqüências mais amplas, tanto no espaço quanto no tempo.

É nesse contexto que se iniciam as grandes reuniões mundiais sobre o tema, em

que se formaliza a dimensão internacional das questões relacionadas ao meio

24
ambiente, o que leva os países a se posicionarem quanto a decisões ambientais de

alcance mundial.

Seguindo a tendência mundial e de outras áreas do Brasil, o modelo de unidade

de conservação foi adotado para o Parque Nacional Serra da Capivara, sendo um dos

principais elementos de estratégia para a conservação da natureza.

Ele deriva da concepção de áreas protegidas, construída no século passado nos

Estados Unidos com o objetivo de proteger a vida selvagem ameaçada pelo avanço da

civilização urbano-industrial.

Esse modelo expandiu-se logo em seguida para o Canadá e países europeus,

consolidando-se como um padrão mundial, principalmente a partir da década de 60

quando o número e a extensão das áreas protegidas ampliaram-se em grande escala no

mundo.

A idéia que embasa este modelo é a de que a alteração e domesticação de toda a

biosfera pelo ser humano são inevitáveis, sendo necessário conservar pedaços do

mundo natural em seu estado originário antes da intervenção humana - lugares onde o

ser humano possa reverenciar a natureza intocada, refazer suas energias materiais e

espirituais e pesquisar a própria natureza.

Estas áreas são sujeitas a um regime de proteção externo, com território

definido pelo Estado, cujas autoridades decidem as áreas a serem colocadas sob

proteção e sob que modalidade e, independentemente, formulam e executam os

respectivos planos de manejo.

As pessoas que vivem no interior ou no entorno das áreas não participam de

modo nenhum dessas decisões. Mais que isso, as decisões costumam ser mantidas em

25
sigilo até sua transformação em lei, justamente para evitar movimentações sociais que

possam criar embaraços para os gestores.

Esse modelo embute uma dicotomia, um conflito entre ser humano e natureza,

pois acaba por supor que as comunidades locais não são capazes de desenvolver um

manejo mais sábio dos recursos naturais. Essa suposição, em alguns casos, se torna

realidade, como no caso da caça predatória e do extrativismo comercial em grande

escala. Mas esse fato não pode ser tomado como a verdade absoluta. Outro fator que

contribui para o conflito é acreditar que essas áreas podem ser perpetuadas num estado

de natural equilíbrio.

Adaptar um modelo que serve aos interesses norte-americanos, em cujo

território há grandes extensões desabitadas, mostra-se problemático porque aqui no

Brasil, mesmo as áreas consideradas isoladas ou selvagens, abrigam populações

humanas.

Como decorrência do modelo adotado, essas populações são retiradas de suas

terras, que transformadas em unidade de conservação para benefício das populações

urbanas (turismo ecológico), das futuras gerações, do equilíbrio ecossistêmico

necessário à humanidade em geral, da pesquisa científica, mas não em benefício das

populações locais. Tal situação não foi diferente no sudeste do Piauí.

Do mesmo modo que em outros lugares do Brasil, os moradores da área de

entorno do PARNA Serra da Capivara resistiram se recusando a deixar seu lugar de

origem. Mesmo tendo que sair das terras, que hoje faz parte da Unidade de

Conservação, eles se mantiveram nos arredores e as suas necessidades de exploração

dos recursos naturais inerentes ao seu modo de vida e sobrevivência passaram a ser

consideradas infrações, de acordo com a legislação ambiental.

26
Esse modelo acaba trazendo conseqüências tão indesejadas quanto a

depredação do meio ambiente, pois acaba por promover, em muitas comunidades, um

agravamento de suas condições de vida, forçando a imigração de muitos homens,

principalmente, para outras regiões do Brasil como, por exemplo, a região canavieira

de Serrana, já mencionada anteriormente.

Outro aspecto indesejável é o aumento da degradação ambiental na área de

entorno ou em pontos mais distantes da Unidade de Conservação, pois à medida que a

população é remanejada passa a ocupar e derrubar novas áreas para moradia.

Os que não conseguem ou não querem mudar para novas áreas são obrigados a

superexplorar as áreas ainda acessíveis (áreas vizinhas às unidades de conservação).

Muitas vezes passam a encarar os recursos naturais da área como perdidos para sua

comunidade. Em função disso, a população não contribui nas ações em prol do manejo

da unidade de conservação, desenvolvendo muitas vezes práticas clandestinas no

interior da própria área, o que agrava ainda mais o conflito, principalmente em relação

ao IBAMA.

“A criação do Parque e a chegada do IBAMA transformaram os


caçadores de donos e senhores daquelas terras em cruéis
usurpadores; a caça, de meio de sobrevivência, passou a ser
considerada como um crime ambiental. A natureza foi batizada
de meio ambiente e agora é regida por outras leis que não mais
são as leis da mata, onde “um dia é da caça e outro do
caçador”” (CASTRO, 2004:20: grifo da autora)

Tal cenário acaba por multiplicar os casos em que os objetivos de conservação

não são cumpridos. Ao mesmo tempo em que as populações locais são incriminadas e,

simultaneamente, impedidas de explorar os recursos naturais de forma sustentável e

garantir sua reprodução sociocultural, há os grupos que comercializam irregularmente

no mercado mais amplo os produtos de extração clandestina, em detrimento da

27
preservação da sociobiodiversidade e, finalmente, da credibilidade e aceitação dos

ideais de conservação ambiental.

As tentativas de solucionar este problema dentro do padrão de atuação dos

órgãos públicos têm esbarrado na ineficácia da ação repressiva, nas dificuldades de

fiscalização, nos problemas sociais decorrentes do deslocamento das populações e

disseminação da visão das políticas ambientais como políticas repressivas e contra os

interesses e necessidades das populações locais.

Entretanto, após a criação do PARNA Serra da Capivara, ações para evitar os

malefícios desse modelo também foram tentadas, como a implantação dos projetos

sociais de qualificação profissional da população, com o objetivo de gerar renda e

promover o crescimento econômico da região. Em tese, o efeito desses projetos seria a

diminuição das práticas predatórias e o aumento das chances de preservação do

patrimônio cultural e natural da região.

1.4. Um novo modelo de Desenvolvimento a partir e para o Parque

1.4.1. A Fundação Museu do Homem Americano

No ano de 1986 foi criada a Fundação Museu do Homem Americano –

FUMDHAM. Seu núcleo de origem foi a Missão Franco-Brasileira, que coordenou as

pesquisas desde os anos 70, bem como desencadeou o processo de criação do Parque

Nacional Serra da Capivara.

Criada com a finalidade de supervisionar os trabalhos arqueológicos realizados

no Parque Nacional da Serra da Capivara coube à FUMDHAM, juntamente com o

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais (IBAMA), através de um

28
convênio assinado em 1994, a co-gestão do parque. Esta experiência de co-gestão

permanece como uma das poucas experiências do tipo no Brasil, e foi o que viabilizou

a implantação de uma infra-estrutura de visitação, manejo e fiscalização.

Para além da pesquisa e da gestão, A FUMDHAM tornou-se uma das grandes

proprietárias de terras da região no entorno do parque, adquirindo áreas que incluem

nascentes naturais e sítios arqueológicos considerados importantes e que são tratados

como se fosse área do Parque, mas que pertencem à FUMDHAM.

Essa ambigüidade na questão das terras é um exemplo da gestão sob a qual o

parque está submetido. Uma gestão que não distingue o que é público e o que é

privado, aumentando ainda mais o desconhecimento da população do papel das

instituições na gestão do parque.

CASTRO (2004) relata em seu estudo sobre os caçadores da região da Serra da

Capivara que, além dessa parcela da população ter total desconhecimento do papel do

IBAMA na sociedade, eles também não assimilam que o trabalho de preservação pode

trazer benefícios à população.

Segundo a autora, alguns dos entrevistados “chegam a comparar o IBAMA com

o diabo que transformou suas vidas “em um inferno”” (CASTRO, 2004:95. Grifos da

autora).

Tal desconhecimento provocou um afastamento dessa população local em

relação àquele território. Se eles não compreendem o papel fiscalizador do IBAMA,

também não compreendem o papel político da FUMDHAM enquanto principal sujeito

e promotor de um modelo de desenvolvimento desenhado por ela para a região.

A indistinção que transita entre os conceitos de público e privado, aliada ao

desconhecimento da população dos papéis e dimensões das instituições responsáveis

29
pela administração do Parque são os elementos principais do clima de conflito latente

que gerou os questionamentos iniciais deste trabalho.

Somando-se a essa indistinção entre o conceito de público e privado e ao

desconhecimento da população a respeito do papel de cada instituição, temos os

poderes conferidos à FUMDHAM através da co-gestão do Parque que, apesar de

facilitar a captação de recursos para a preservação, manejo, fiscalização e construção

de infra-estrutura, gera o efeito político de que esta concentra um volume maior de

recursos que os agentes governamentais e amplia seu campo de ação, muitas vezes,

sobrepondo-se sobre esses agentes. Essa sobreposição é interpretada pela comunidade

local como uma organização não governamental mais forte que o próprio Estado,

portanto, dona proprietária do território.

1.4.2. A Proposta de Desenvolvimento

Na visão da FUMDHAM, as possibilidades de preservação dos sítios

arqueológicos seriam mínimas se a população local não fosse informada sobre o que

eles significam para a história, não só nacionalmente como internacionalmente.

Assim, foram implantados os projetos comunitários nos arredores do Parque

ligados à apicultura, cerâmica artesanal e seis escolas no entorno, na zona rural, onde

era oferecido o ensino básico e assistência médica, além de incentivar o turismo como

atividade geradora de desenvolvimento econômico da região.

Com essa ampliação das atividades da FUMDHAM, ela assume funções que

tradicionalmente deveriam ser do Estado, atuando nas áreas da saúde, educação e

geração de trabalho e renda.

30
1.4.2.1 – Educação e Saúde

Com o apoio da Cooperação Técnica do Ministério das Relações Exteriores da

Itália, a FUMDHAM implantou o primeiro Núcleo de Apoio à Comunidade (NAC) na

comunidade Sítio do Mocó, situado ao sul do parque, no município de Cel. José Dias.

O núcleo se constituiu em escola básica, posto de saúde e alojamento para

professores e técnicos. Na escola, além da educação formal para as crianças, o

programa também contemplava a alfabetização de adultos. Inicialmente, enquanto

existiam os recursos da cooperação italiana, as crianças recebiam três refeições

diárias, tomavam banho, e tinham noções de saúde e higiene.

Depois das aulas elas participavam de atividades recreativas e desportivas e

cuidavam das hortas. Além disso, as professoras passavam por cursos de formação em

interdisciplinariedade, construtivismo e em temas ligados a ecologia, pré-história e

arqueologia.

No posto de saúde, implantado e supervisionado por médicos da Fundação

Oswaldo Cruz (RJ), agentes de saúde garantiam o atendimento de urgência, ajudavam

na prevenção de doenças endêmicas e ofereciam cursos para formação de novos

agentes.

Seis núcleos foram montados em torno do Parque, chegando a atender

aproximadamente 450 crianças entre 4 e 12 anos. A ênfase para adultos e crianças

estava na formação proteção, conservação, pesquisa, artesanato, apicultura, reciclagem

dos desenhos do Parque e guias de turismo ecológicos.

As ações previstas no programa inicial tiveram sua continuidade

comprometida em virtude do término do convênio com a cooperação italiana, dada a

dependência de recursos externos.

31
Na tentativa de dar continuidade ao programa, a FUMDHAM buscou a

assinatura de convênios com os municípios para viabilizar a transferência de recursos,

uma vez que os mesmos só podem ser liberados pelo Estado para o poder público

local.

A “municipalização” dos NACs, na visão da FUMDHAM, resultou, em 2001,

no fracasso do programa e no fechamento dos seis núcleos, que se mantém fechados

até hoje.

Detalhe de uma antiga sala de aula. Foto:Matilde Braga

1.4.2.2. Geração de trabalho e renda

1.4.2.2.1. Turismo

Naquele momento, o turismo foi eleito como motor para gerar desenvolvimento

para a região, tendo o Parque como principal atrativo. Para tanto, foram solicitados

recursos para várias entidades nacionais e internacionais, bem como recursos do

governo federal para a construção da infra-estrutura de visitação do parque e dos seus

arredores.

32
A região é considerada pelo Plano Diretor do Turismo Arqueológico e Plano

Diretor do Turismo no Piauí – ambos financiados pelo PRODETUR/EMBRATUR –

como apta para a implantação de um dos principais pólos turísticos nacionais, devido à

existência dos dois parques nacionais e à maior concentração de sítios arqueológicos

das Américas conhecida até o momento.

O projeto vislumbrado pela FUMDHAM passa a ser o projeto de todos, ou seja,

criar o parque e implantar um modelo de desenvolvimento ligado ao turismo que

transformará a realidade da sociedade.

Nele a população local é inserida através de programas de capacitação,

qualificando-a como mão-de-obra no receptivo aos turistas.

Mesmo as atividades tradicionais são incluídas no projeto com o intuito de

atender aos turistas.

Visitantes na travessia do Baixão das Mulheres. Foto: ITCP

1.4.2.2.2. Apicultura

No início dos anos noventa, um grande projeto de apicultura foi montado na

região, na tentativa de substituir a atividade extrativista tradicional de mel de baixo

33
retorno. Dentro da cultura tradicional, a prática extrativa do mel se dava através da

derrubada da árvore e da queima do enxame para se tirar o mel. Esse mel era colhido

sem nenhum cuidado com a higiene e ainda era contaminado com as cinzas da queima

do enxame.

Essa prática extrativista é agressiva à natureza, uma vez que, além de provocar

a derrubada desnecessária de uma árvore, mata enxames inteiros de abelhas, o que

prejudica muito o sistema de polinização da caatinga. Entretanto, tal atividade não era

considerada rentável e não era amplamente praticada como forma de gerar recursos.

A partir dessa cultura tradicional, montou-se uma estrutura profissional para

transformar a apicultura em atividade comercial, com o objetivo de lançar no mercado

um mel de qualidade.

Inteiramente organizado pela FUMDHAM, através de captação de recursos

internacionais e nacionais, o projeto chegou a contar com um sítio para colocação de

apiários, bem como os laboratórios de manipulação do mel, de acordo com as

especificações exigidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

O complexo contava com várias casas de mel3 espalhadas por diversas

localidades, com uma central de envaze, situada na entrada do povoado do Sítio do

Mocó, no município de Cel. José Dias. Além de toda infra-estrutura necessária, cursos

de formação de apicultores foram realizados sistematicamente.

Apesar da qualidade técnica do projeto, ele não conseguiu ampliar os

horizontes dos participantes, limitando o apicultor ao papel de produtor, não

estendendo sua participação ao universo da gestão e comercialização do

empreendimento. Com isso, os apicultores foram obrigados a entrar no mercado

3
Local onde se faz a primeira manipulação do mel, para que o produto chegue em tambores, já no
estado líquido à fábrica de envaze.

34
através dos intermediários, que manipulavam o preço do produto de acordo com seus

próprios interesses.

A fragilidade da gestão e da comercialização mantém os apicultores numa

relação de dependência em relação à FUMDHAM, que subsidia a atividade. Sem a

segurança da continuidade de recursos para o projeto, este4 passa a sofrer com o corte

de verbas, o que compromete a sustentabilidade da estrutura criada, acarretando a

venda do complexo apícola a um dos grupos empresariais mais fortes do Piauí – Grupo

Jorge Batista.

Após a negociação, a empresa absorveu os melhores produtores através de

contratos de longo prazo. Alguns apicultores se organizaram em associações outros,

ainda, continuam na atividade de forma independente, mas ainda à mercê dos

intermediários.

Fachada da Casa de Beneficiamento de Mel. Foto Matilde Braga

1.4.2.2.3. Cerâmica
4
“De acordo com Guidon, a idéia inicial do parque era construir uma série de projetos sociais para
atender a população, o que acabou não aconteceu por falta de recursos. "Tivemos que fechar algumas
escolas construídas na região do parque porque não tínhamos como mantê-las", exemplifica.
http://www.comciencia.br, Atualizado em 18/03/05.

35
Da mesma forma que a apicultura, no início dos anos noventa, dada a grande

variedade de argilas que a região possui, a cerâmica foi outra atividade incluída nos

projetos alternativos como forma de combate à exploração e depredação da fauna e

flora da caatinga.

O projeto, no período em que esteve sob a gerência da FUMDHAM, não

desenvolveu comercialmente a atividade, entretanto, formou alguns artesãos.

Em 2002, a estrutura da cerâmica, que funciona no povoado do Barreirinho, no

município de Cel. José Dias, também foi vendida à iniciativa privada.

Atualmente, a cerâmica é uma indústria de médio porte, com uma produção de

cinco mil peças e um quadro de funcionários com aproximadamente quarenta pessoas.

Seus produtos têm boa entrada no mercado nacional e no exterior. Obedecendo a

padrões rigorosos, os produtos têm certificação, por serem produtos socialmente justos

e não agredirem a natureza.

Contudo, não podemos nos esquecer que o sucesso da cerâmica se deu a partir

do momento que se tornou uma empresa privada que visa o mercado, se distanciando

da proposta inicial de inclusão social das comunidades, numa dimensão maior que a

empresa consegue atingir atualmente.

Detalhe da Cerâmica. Foto Matilde Braga

36
Tanto o projeto da apicultura como o da cerâmica avança na construção física e

tecnológica, bem como na formação dos produtores, contudo, não decola em direção

ao fortalecimento dos empreendimentos para uma gestão autônoma. A incapacidade

gerencial dos produtores dentro dos empreendimentos cria uma relação de dependência

em relação aos recursos dos projetos. Quando esgotados tais recursos, os projetos se

tornam inviáveis e acabam sendo repassados à iniciativa privada.

O sucesso dos empreendimentos nas mãos da iniciativa privada mostra que o

projeto foi planejado corretamente, mas o que não levou eles à frente foi a inexistência,

dentro da lógica do projeto, da criação de um espaço para a autogestão e independência

do produtor, não incluindo na sua formação os conceitos básicos para a autogestão

nem uma visão empresarial.

A repercussão nacional e internacional das dimensões do patrimônio cultural e

natural do Parque e os resultados, ainda que aquém das expectativas, dos projetos

sociais para a região, trouxeram melhorias na infra-estrutura local, passando a maioria

das comunidades a contar com energia elétrica, estradas de acesso, sendo as principais

asfaltadas, dinamização do sistema de transporte, instalação de cisternas e sistema de

captação de água da chuva na maioria das propriedades, telefonia por via convencional

ou por satélite, aumento do número de escolas e postos de saúde na zona rural.

Contudo, apesar das melhorias de infra-estrutura, o modelo de gestão não

trouxe nenhuma mudança significativa nas relações sociais ou tornou a população

auto-suficiente, uma vez que tal processo de desenvolvimento não estava previsto no

projeto.

O envolvimento da população na tomada de decisões, dentro de uma proposta

de desenvolvimento, é uma condição fundamental para que esse processo avance em

37
direção ao conceito de desenvolvimento local. Para compreender melhor esse

processo, será objeto do próximo capítulo o aprofundamento da discussão teórica sobre

tal conceito.

38
Capítulo 2: DEBATENDO SOBRE DESENVOLVIMENTO LOCAL

Uma vez que o Parque Nacional Serra da Capivara está inserido em um dado

território, transformando-o, é necessário compreendermos o próprio conceito de

território. Esta será a primeira tarefa deste capítulo.

2.1. Compreendendo o conceito de Território.

Para ABRAMOVAY (2000:385), “um território representa uma trama de

relações com raízes históricas, configurações políticas e identidades [...]”. Assim,

mais do que um espaço geográfico passivo à ação humana, a concepção de território

envolve os laços que se formam entre os agentes que pertencem ao lugar: indivíduos,

associações, empresas, grupos informais, entidades governamentais e não-

governamentais, entre outros. Também tem grande peso as interações com o ambiente

externo.

A forma como as conexões estabelecidas pelos atores sociais evolui marca os

aspectos territoriais específicos, atribuindo aos espaços diferentes dinâmicas. Assim,

alguns espaços acumulam capacidades inovativas e eficientes arranjos de organização

sócio-territorial, o que lhes permite ser capaz de mobilizar seus integrantes em torno de

projetos coletivos, obtendo consenso e coesão sociais.

Outros espaços, no entanto, inibem esses processos, num ambiente que “apóia-

se em vínculos hierárquicos localizados e bloqueia a ampliação do círculo de relações

sociais em que se movem as pessoas” (ABRAMOVAY, 2001, p. 168).

Assim, o sucesso das localidades depende da forma como interagem os seus

componentes. Territórios bem sucedidos ou competentes seriam aqueles nos quais a

39
população tem acesso aos meios necessários e suficientes para o desenvolvimento

humano, que vem ocupando lugar de destaque no debate sobre o desenvolvimento

desde o início da década de 1990. A questão central passa da tradicional pergunta de

quanto se está produzindo para como isto está afetando a qualidade de vida da

população. Dessa forma, para atingir o desenvolvimento humano temos que reduzir a

exclusão social, caracterizada pela pobreza e pela desigualdade.

Esse modelo de desenvolvimento humano se orienta para o progresso da vida e

do bem-estar das pessoas. Para tanto, é necessário lembrar que esse modelo precisa ser

mais flexível, fugindo da rigidez que ainda é encontrada em vários projetos

governamentais. (MATOS, 2005:13).

Portanto, ainda segundo MATOS (2005:3) “o processo de desenvolvimento

humano precisaria partir da própria comunidade, de suas iniciativas, de sua

criatividade”.

Segundo MARTINS (2007:2-3) é a vivência dos problemas que suscita a

procura de meios para contorná-los ou superá-los. E isto se dá no âmago do cotidiano,

envolvendo práticas sociais que, através da capacidade de percepção do espaço vivido,

afetam qualitativamente a experiência humana.

Relações sociais e práticas locais ocupam o cerne da luta pela sobrevivência, e

neste processo de construção social se dá a construção do território.

Para alcançar tal estágio de construção do território é preciso apresentar “a

capacidade de gerar e incorporar conhecimentos para dar respostas criativas aos

problemas do presente” (MÉNDEZ, apud DALLABRIDA; FERNÁNDEZ, 2005:

246).

40
Muito embora essa discussão tenha surgido como instrumental para favorecer o

crescimento econômico de locais estagnados, impulsionando o funcionamento virtuoso

dos seus mercados, ela incorpora outras dimensões, uma vez que se reconhece a

insuficiência da dimensão econômica, ainda que ela seja estritamente necessária.

Nessa perspectiva, engendrar processos dessa amplitude em contextos

localizados depende da integração encontrada entre os agentes locais, através dos

vínculos que estabelecem nas suas relações sociais. Isso não significa que nos espaços

nos quais exista pouca interação seja impossível desencadear a formação de

competências territoriais, embora essa função fique comprometida. Mas as instituições

presentes no lugar podem ter um papel fundamental nesse sentido

“A existência local de instituições inovadoras, geradoras de


maior densidade de interações, criando rede, são fundamentais
para o êxito de alguns âmbitos espaciais e, pela sua ausência, a
estagnação e fracasso de outros” (DALLABRIDA;
FERNÁNDEZ, 2005:245).

Abre-se, com essa idéia, a oportunidade para que instituições que atuem

localmente promovam ações que contribuam nas mudanças do território. As políticas

públicas ou privadas são expressões dessas instituições e a sua capacidade de

transformação dos lugares não deve ser subestimada. Afinal, esse conjunto de ações

pode fornecer um serviço imprescindível ao desenvolvimento humano.

Ações na área do cooperativismo, em especial, ganham relevo nessa

vislumbrada forma de atuação, uma vez que consistem num meio à margem do

mercado, baseando-se em relações outras que não apenas nas excludentes transações

mercantis, formando ambientes em que possam florescer ações de cooperação e

41
solidariedade, ao contrário do que SANTOS5 (2005) denomina por “sociabilidade

empobrecida”, típicas das transações comerciais.

Ademais, por razões simples, tem-se percebido que é sobre as

interdependências não mercantis que se tem “depositado a possibilidade de

construção de um padrão de desenvolvimento que abranja, além da dimensão

econômica, a social e a política, a ambiental e a cultural” (DALLABRIDA;

FERNÁNDEZ, 2005: 253).

Todas essas constatações fortalecem o conceito de que uma adequada visão

territorial deve considerar os arranjos sociais formados pela comunidade local, suas

inter-relações (internas e externas) e suas formas de sociabilidade.

A maneira como se molda esse contexto, por sua vez, torna-se uma

determinante do desempenho do local em termos do bem-estar ofertado aos seus

cidadãos. Esses elementos tão importantes têm sido estudados através da recente

abordagem do capital social.

A existência de ações cooperadas em pequenas comunidades pode fazer

emergir um processo de dinamização, possibilitando realizações que seriam

impossíveis para as pessoas individualmente, ou que seriam muito mais custosas caso

elas agissem de forma isolada.

A importância do trabalho em cooperação se eleva em relação aos menores

contextos e às camadas populares socialmente desfavorecidas. Isto é, para os

pequenos, cooperar abre oportunidades de grande potencialidade.

5
De acordo com Santos (2005), um dos maiores problemas da sociedade contemporânea de consumo é
que ela se apóia fundamentalmente numa sociabilidade de mercado, que empobrece as relações sociais
na medida em que as pessoas passam a compreender as demais como ameaças ou como fonte de ganhos,
ao invés da convivência pautada nos valores da solidariedade humana

42
Nas palavras de DOWBOR (2006ª: 12), a palavra-chave é “conectividade”, na

medida em que “o problema de ser grande já está deixando de ser essencial, quando

se é bem conectado, quando se pertence a uma rede interativa”.

Nas palavras do autor, isso implica reconhecer que a interação entre os agentes

é um elemento forte de superação de problemas coletivos diversos e pode ser

estrategicamente utilizada para a solução de dilemas comunitários.

Em outros termos, esse é um recurso a mais de que a sociedade dispõe - o

capital social, que se soma ao capital físico, ao capital humano, ao capital natural e ao

financeiro e à tecnologia disponível.

O capital social é fator produtivo e pode também ser entendido como

potencializador dos outros fatores, sendo geralmente abordado a partir das redes de

cooperação existentes em dada localidade (MONASTÉRIO, 2005).

A noção de capital social se refere a

“características da organização social, como confiança, normas


e sistemas, que contribuem para aumentar a eficiência da
sociedade, facilitando as ações coordenadas” (PUTNAM apud
ABRAMOVAY, 2001:380).

Por isso, sociedades que possuem maior número de grupos organizados e

instituições geralmente possuem capital social em maior escala, desde que existam

ações conjuntas entre os agentes e interação suficiente para formar as conexões

necessárias e facilitar a ação do indivíduo e das organizações.

De acordo com MONASTÉRIO (2005), a classificação do capital social feita

por Robert Putnam6 envolve três categorias: uma primeira diz respeito aos vínculos
6
Robert Putnam, professor de Economia norte-americano, é um dos maiores responsáveis pela
emergência da concepção de capital social, a partir dos seus estudos realizados sobre o caso italiano
denominado por terceira Itália, onde a cultura local de interação entre os agentes teria desencadeado o
processo de desenvolvimento econômico que aquele território assistiu nas últimas décadas do século
passado. De acordo com Cerullo (2006), a abordagem desse autor quanto ao capital social difere de
outra destacada corrente, a neo-institucionalista, na medida em que, para esta última, as agências
públicas encontram-se numa “posição central como incentivadoras de cooperação e de formação de

43
formados por agentes em posição socioeconômica semelhante (bonding social capital),

caracterizando grupos homogêneos que se mantêm através de laços fortes; em segundo

lugar estaria a interconctividade entre grupos sociais heterogêneos (brindiging social

capital), que embora apresentem laços mais fracos, permitem a integração de agentes

de diferentes realidades socioeconômicas. O terceiro tipo (o linking social capital) une

pessoas relacionadas ao setor público e aos ambientes formais de decisão em geral e

indivíduos dos “estratos inferiores da pirâmide social”, favorecendo a participação

popular e a democratização política.

Promover ou intensificar a formação de capital social nas sociedades locais é

uma ação que depende em muito da capacidade das organizações locais em promover

ligações dinâmicas, pelas quais se possam valorizar os atributos materiais e imateriais

do território. Precisa-se assim, de um tecido institucional denso, de um capital de

relações, como defende ABRAMOVAY (2000).

Desse modo, cada território pode e deve se mover dentro de um processo de

mudanças globais que penetra e influencia todos os espaços.

2.1.1. Configurando o Território

Nos lugares cada vez mais conectados e interdependentes do mundo atual estão

também presentes forças “estranhas”, representantes de interesses distantes, não

autóctones, de uma “ordem global” (SANTOS, 1996:272). Esta é a razão pela qual os

redes sociais de engajamento cívico entre os cidadãos”. Já na posição de Putnam, são os interesses
individuais ou comunitários os elementos mais potenciais para a emergência de comunidades ativas e
independentes, um processo que seria prejudicado com a intervenção direta do Estado. Ponto do qual
discordamos, pois entendemos que em algumas regiões a intervenção direta do Estado se faz necessária
através de políticas públicas de ações afirmativas.

44
problemas atuais, via de regra, não podem ser completamente entendidos e analisados

exclusivamente na ótica local, uma vez que há variáveis externas.

Se na perspectiva do desenvolvimento local, por um lado as ações externas são

muitas vezes indispensáveis; por outro, tais ações devem ser mediadas e reguladas em

função estrita dos interesses locais.

Entende LE BOURLEGAT (2000:13) que, em um “universo de eventos

contingentes”, o lugar possui sua própria ordem a ser acionada diante das demandas e

interesses externos, constituindo “força de desenvolvimento”.

Existe uma “ordem local” diretamente associada ao cotidiano das pessoas,

cujos parâmetros são a co-presença, a vizinhança, a intimidade e a cooperação

(SANTOS, 1996:272).

Eis a dimensão humana identificada pela relação entre as pessoas, entre estas e

o seu entorno (ambiente, empresas e instituições), pautada na interdependência e na

comunidade de interesses, mas também, e principalmente, no cotidiano conflitante e

solidário vivido em comum.

Segundo MARTINS (2007:03. Grifo do autor)

A “força do lugar” reside no território compartilhado e


identificado por uma consciência social de entorno, cuja
essência é a própria história vivida em comum. Desta forma, o
lugar se apresenta para as pessoas por sua materialidade, pela
aparência conhecida e familiar dos elementos que o compõem -
casas, ruas, campos, a vizinhança, o clima habitual - e é certo
que tal materialidade participa ativamente da vida das pessoas,
envolvendo-as por todos os lados, sendo assim, no território,
que os fatos ganham plena significação”.

A “redescoberta do lugar”, do território como totalidade sistêmica, unidade

dialética entre elementos naturais e humanos, está associada à busca por estratégias

sustentáveis de atendimentos às necessidades de produção e consumo.

45
Está claro que a elevação da produtividade e a conquista de mercados

prosseguem como imperativos à gestão e planejamento econômicos em todo o mundo.

Contudo, a superação das carências e desigualdades socioeconômicas,

materializadas por distintas manifestações da pobreza humana, tem desafiado a gestão

pública na busca por alternativas que possibilitem a inclusão social via participação

ativa da população (MARTINS, 2007:4-5)

Sobre a configuração territorial, VEIGA (2002:35) coloca muito bem que esta

não deveria ser ignorada pelos formuladores das políticas públicas, porque é necessário

que compreendamos que o futuro das populações, principalmente da zona rural,

dependerá cada vez mais de articulações intermunicipais que sejam capazes de

diagnosticar as vocações do território na formulação de um plano de desenvolvimento

microrregional, viabilizando seu financiamento com o

“imprescindível apoio das esferas governamentais superiores


[...] Daí a importância de um plano federal especialmente
voltado para a promoção de articulações intermunicipais
microrregionais de pequeno porte populacional. Isto é, um
programa especialmente voltado ao desenvolvimento
sustentável do Brasil rural.” (VEIGA, 2002:36)

O destaque que o autor faz em relação ao Brasil rural está na peculiaridade

brasileira de considerar urbana toda sede de município sejam quais forem suas

características. Isso coloca numa situação de ambivalência municípios que o critério

decisivo é a densidade demográfica, pois ela estará no centro do chamado “índice de

pressão antrópica”, ou seja, é o indicador que melhor reflete as modificações do meio

natural que resultam de atividades humanas. (VEIGA, 2002:31-33)

As palavras de VEIGA (2002) retratam a realidade da região da Serra da

Capivara, pois a mesma é formada por vários pequenos municípios que, sem uma ação

integrada, tem sua viabilidade comprometida. Recompor esse território significa

46
entender a necessidade de novas formas institucionais de arranjos, coordenação,

gestão, ou seja, de governança.

Essas novas formas institucionais devem superar as antigas estruturas de poder

local, promovendo a articulação das unidades político-administrativas, com o objetivo

de alcançar coesão e organização suficientes de modo que a microrregião seja capaz de

formular e adotar um plano de desenvolvimento local (VEIGA, 2002:38-39)

Dentro de um plano de desenvolvimento local de microrregiões que não

abrigam aglomerações, a qualidade ambiental pode se tornar o principal trunfo do

desenvolvimento, principalmente quando este patrimônio natural está ligado a um

patrimônio histórico-cultural, como é o caso do Parque Nacional Serra da Capivara.

Contudo, VEIGA (2002:41) salienta que o patrimônio precisa ser entendido

como uma oportunidade de consumo produtivo, fazendo com que muitas comunidades

se transformem em entusiásticas protagonistas de sua valorização. Esse é o ponto

nevrálgico da Serra da Capivara, pois sua população ainda não atingiu o patamar de

protagonistas nesse processo de enxergar no Parque uma oportunidade de consumo

produtivo.

O autor ainda salienta que é um grande equívoco pensar que a exploração

econômica do patrimônio esteja restrita às atividades turísticas. Equívoco que ocorre

na Serra da Capivara, onde o fluxo turístico fica abaixo do necessário para a

manutenção de um plano de desenvolvimento, bem como limita outras atividades

potenciais ligadas à agricultura familiar, organização característica da região e pouco

valorizada economicamente.

47
Em relação ao patrimônio, VEIGA afirma que este permite uma diferenciação,

fator fundamental no processo de competição entre os territórios na luta pela atração de

investimentos.

“Fica cada vez mais evidente que as microrregiões devem


oferecer recursos específicos às pessoas e às empresas, e não
recursos genéricos ou banalizados que as obrigam a entrar
numa concorrência baseada exclusivamente em custos. Como
diz o economista Alain Rallet, da Universidade de Paris-
Dauphine, a valorização do patrimônio é um meio de criar
recursos específicos com o envolvimento dos atores locais. Isso
permite principalmente a construção de uma imagem de marca
identitária do território, da mesma forma que uma empresa
elabora cuidadosamente um símbolo que a ajude a fidelizar uma
clientela, ou conquistar um novo segmento de mercado. Por
isso, a valorização do patrimônio natural e histórico-cultural é
muito mais um processo de construção do que uma herança. É
fundamental que o maior número de atores se engajem nessa
valorização. Não somente as pessoas, mas sobretudo as
empresas, que devem ser incentivadas a investir no plano
simbólico como forma de ancorá-las ao território.” (VEIGA,
2002: 42-43)

No caso de territórios localizados no meio rural esse ancoramento é mais

complexo e fica subordinado às políticas públicas. Assim, se faz necessário entender

de que forma as transformações econômicas e sociais pelas quais o mundo

contemporâneo passa, atinge o meio rural e como o transforma., principalmente no

âmbito do desenvolvimento local.

2.2. Desenvolvimento Local

A discussão a respeito de desenvolvimento local e do território tem assumido

papel de destaque em várias correntes de estudo: economia de negócios (PORTER,

1998), desenvolvimento regional (SCOTT, 1996), estudos sobre inovações

48
tecnológicas (BRACYK, COOKE and HEIDEMEIDR, 1999) e ciência política

(LOCKE, 1994).

A idéia básica desse paradigma é que o sistema produtivo dos países

desenvolvimento e as formas eficazes de atuação dos atores econômicos, sociais e

políticos.

Para os pensadores do Canadá (PRÉVOST, 1996), a noção de desenvolvimento

local sugere uma transformação de estruturas e de sistemas visando uma melhoria

durável de qualidade de vida de uma comunidade. Não se trata de um simples arranjo

local, como por exemplo, a resolução de alguns problemas específicos.

Para BARQUERO (1999), o conceito de desenvolvimento local se fundamenta

na idéia de que as localidades e territórios dispõem de recursos econômicos, humanos,

institucionais, ambientais e culturais, além de economias de escala não exploradas, que

constituem seu potencial de desenvolvimento.

A existência de um sistema produtivo capaz de gerar rendimentos crescentes,

mediante a utilização de recursos disponíveis e a introdução de inovações, garante a

criação de riqueza e melhoria do bem-estar da população local.

AROCENA (1995) explica que o desenvolvimento local é um processo em que

o social se integra ao econômico. A distribuição de renda e o crescimento econômico

adquirem uma dinâmica comum, pois os atores governamentais e privados tomam

decisões para o aumento da produtividade e competitividade das empresas, para

resolver os problemas locais e melhorar a qualidade de vida da população.

MATOS (2005) destaca, contudo, que esse novo paradigma já vem rompendo

com modelos que privilegiaram o crescimento econômico e a racionalidade

49
tecnológica, partindo de possibilidades reais dentro de uma evolução dialética nas

relações político-institucionais em todos os níveis.

Esse paradigma, segundo o autor, defende modelos de desenvolvimentos que

possam articular o caráter subsidiário dos interesses entre países e regiões com

recursos naturais, vocações, graus de desenvolvimento e culturas diferentes;

principalmente porque defende o homem e sua qualidade de vida sobre a terra, como

centro e objetivo do desenvolvimento, eliminando-se a miséria e a dívida social à qual

se vê submetida a maioria da população mundial.

A reconstrução do local em articulação com o global permite fazer uma nova

leitura do conceito de Estado, mais ajustado à nova fase de acumulação do capital a

partir da necessidade de sociedades muito mais organizadas, democráticas e

participativas, com efetivo poder de decisão.

A articulação entre sociedade e economia, tecnologia e cultura pode se realizar

melhor a partir do local. O global e o local são complementares, criam sinergia social e

econômica.

Nesse contexto, a participação da sociedade favorece o controle social sobre o

desenvolvimento, efetivando o espaço local como um território privilegiado da

formação do cidadão. A participação é entendida como um processo de tomar parte e

se responsabilizar pelas decisões tomadas.

A efetiva participação eleva o ator à condição de agente de mudança e a

comunidade organizada à de protagonista pró-ativa do processo de gestão social, onde

o cidadão deixa de ser espectador e passa a ser ator.

Contudo, não se pode esquecer que o papel da sociedade civil, aqui entendida

por movimento e por instituição, com ações coletivas desenvolvidas por uma

50
pluralidade e heterogeneidade de atores no sentido da democratização da sociedade e

do Estado, do controle social do mercado (COHEN E ARATO, 1992) é limitado, pois

a mesma não substitui as estruturas de poder e, em relação ao Estado, esse papel é

incipiente, pois é ele que ainda executa a ação de agente promotor e regulador do

desenvolvimento econômico e social.

O exercício da parceria constitui ferramenta de modernização de políticas

públicas, como forma de combater o clientelismo, o fisiologismo e o corporativismo

das instituições e assegurar o interesse político. Estimula-se a parceria entre órgãos do

governo com a organização da sociedade e do mercado.

No entanto, é necessário lembrar que parceria não se limita a um momento

estanque, a uma mera assinatura de protocolo de intenções ou repasse de recursos

financeiros para realizar ações segmentadas. Parceria pressupõe a agregação de valor e

a mudança de comportamento que se realiza pela prática, pelo curso da ação.

Tão importante quanto construir parcerias é mantê-las, o que requer espaços de

coordenação dos diversos agentes que atuam no território. A forma concreta de

coordenação por parte dos poderes locais não responde a um modelo único, dada a

diversidade desses instrumentos utilizados em diferentes experiências, tais como

fóruns empresariais, conselhos, oficinas e agências de desenvolvimento local.

A construção de novas institucionalidades deve guiar-se considerando a

evolução espontânea, as características próprias e a trajetória do processo de

desenvolvimento em cada território.

Diante do atual contexto da globalização e reestruturação produtivas que incide

na totalidade dos territórios locais, iniciativas baseadas no desenvolvimento local

51
possibilitam criações institucionais harmonizadas de forma consciente, estratégica e

participativa, para assegurar, a partir do local, o interesse coletivo.

Dessa forma há a possibilidade de tornar realidade o conceito de estado-rede

(CASTELLS, 1999), que se refere à necessidade de articulação e complementaridade

das ações, entrelaçando fluxo de informações, interconectando serviços e

comunidades, exigindo vínculos horizontais e verticais. (VEIGA, 2004)

WOLFF (1991) afirma que este novo paradigma tem seu alicerce no

fortalecimento da comunidade e no conceito de auto-ajuda, substituindo o foco dado

anteriormente às estruturas econômicas e políticas em escala ampla - as empresas

multinacionais, a economia mundial, o Estado burocrático-autoritário, as organizações

transnacionais.

O autor aponta como uma tendência recente a incorporação da sociedade civil e

do local como elementos fundamentais para se construir um desenvolvimento social

sustentável e refere-se à sociedade civil como expressão da família, das comunidades,

dos movimentos de base, organizações voluntárias e associações.

As referências empíricas são as estratégias de sobrevivência e de resolução de

problemas coletivos presentes em países periféricos, sendo essas estratégias vistas

enquanto um reflexo de energias sociais liberadas das redes sociais.

A valorização dessas práticas é ainda reforçada quando o autor afirma:

“A questão com que, cada vez mais, iremos nos defrontar,


não é se o desenvolvimento é possível, mas que tipo de
desenvolvimento será e, para responder a esta pergunta, o
social deverá se tornar parte do nosso foco, tanto quanto o
econômico e o político” (WOLFF, 1991, p.62).

AROCENA (1988), entretanto, chama a atenção para a emergência nos anos 70

da perspectiva histórica que enfatiza o local ao resgatar o papel da história e das

52
tradições e os modos diferenciados de desenvolvimento e avança no seu pensamento

quando observa que a perspectiva do desenvolvimento local pressupõe não só conhecer

recursos e potencialidades humanas do lugar, o ponto de partida, como também, tomar

por referência um modelo, no sentido de utopia, o ponto de chegada, e buscar interferir

no sistema, ou seja, nas regularidades estruturais avessas ao desenvolvimento local. O

autor ainda inclui como parte da estratégia de desenvolvimento, a construção de um

sistema local autônomo e mais integrado nas redes globais.

Arocena difere de Wolff em relação ao papel do Estado no processo de

desenvolvimento local, pois não exclui o Estado nem os agentes econômicos como

atores fundamentais do desenvolvimento, pelo contrário, reforça-os na sua dimensão

local, incluindo também os atores sociais, em particular os movimentos populares.

Aqui o local aparece com certa autonomia, porém, articulado globalmente e o sentido

de desenvolvimento segue uma ótica mais abrangente, incorporando as dimensões

política, cultural e social.

BARQUERO (1993) e KNOOP (1996), analisando a realidade européia,

afirmam a necessidade e possibilidade dos governos locais tomarem iniciativas para

enfrentar o problema do desemprego.

O primeiro discute o que seriam as novas estratégias de desenvolvimento tendo

em vista a reestruturação do sistema produtivo local, o aumento dos postos de trabalho

e a melhoria da qualidade de vida. Isso, através da promoção e/ou expansão da

capacidade empresarial e reorganização da economia local, com mobilização de

recursos internos e externos.

O segundo autor especifica que o alvo prioritário das iniciativas locais devem

ser as pequenas e médias empresas que, a longo prazo, possuem um maior potencial de

53
absorção de mão-de-obra. Nesse sentido, o autor situa como papel do governo local a

oferta de condições para as empresas investirem com rentabilidade, dentre as quais a

requalificação profissional, a melhoria da qualidade da infra-estrutura e dos serviços

públicos e promoção da imagem do município.

Numa linha de abordagem, não tanto prescritiva como as anteriores, HAMEL

(1990) e SYRET (1993) procuram identificar o que seriam as abordagens sobre

desenvolvimento local, trazendo novas contribuições ao debate.

De acordo com HAMEL (1990), há duas abordagens básicas que representam

visões e práticas diferenciadas, levando em conta experiências e debates ocorridos em

países de capitalismo avançado.

A primeira, denominada de elitista, estaria associada ao pragmatismo, próprio

dos agentes econômicos e dirigentes políticos locais. A orientação, nesse caso, seria

desenvolver vantagens comparativas no sentido de obter melhores posições no

mercado mundial para o município, distrito ou região, aprofundando a competitividade

interurbana. Ações de modernização de empresas, formação de mão-de-obra em novas

tecnologias, melhoria dos serviços e da paisagem urbana para tornar a cidade mais

atrativa aos negócios, se enquadram nessa perspectiva.

Na segunda vertente, que HAMEL (1990) denomina de social, o objetivo do

desenvolvimento não seria tanto promover a cidade enquanto um negócio rentável,

mas atender as necessidades sociais, pelo alargamento da democracia local em direção

à dimensão econômica. Aqui se situam, por exemplo, programas de fomento ao

emprego e de reinserção social voltados para segmentos marginalizados e

trabalhadores pouco qualificados.

54
O autor denomina de desenvolvimento auto-sustentável, que seria uma

expressão do pensamento pós-industrial, caracterizado por idéias de sociedade

autônoma, democrática e igualitária.

De acordo com o autor, as diferenças no interior dessa perspectiva apontam

para duas formas de realização: uma liberal, voltada para administração pragmática

que poderia ser a elitista, e outra radical, que enfatiza a justiça social e a participação

popular como ingredientes fundamentais do desenvolvimento, que poderia ser o social.

SYRET (1993) observa que, na prática, a “linha radical” é sufocada, sendo

apropriada pelos aspectos do empreendedorismo, parceria social e mobilização de

recursos, vistos enquanto complementos políticos da liberalização do mercado.

A diferença neste tipo de experiência estaria no papel desempenhado pelo

poder público de articulador de forças e atores locais, e na perspectiva de conjugar

desenvolvimento econômico, promoção da cidadania e preservação ambiental, com

base em práticas de parceria e na busca da negociação. Enquanto que, no padrão

anterior, o poder público buscava atrair agentes externos de modo marcadamente

paternalista e com poucas garantias de contrapartida para o município.

De um lado, é possível situar as abordagens elitistas liberal de desenvolvimento

local, de que falam HAMEL (1990) e SYRET (1993), ou do empreendedorismo

urbano na concepção de HARVEY (1989), em que a articulação entre economia

localizada e o mercado globalizado rompe com as coordenadas ditadas pelo modelo

anterior, assentados no Estado-nação.

A reprodução desse modelo aparece, no entanto, pela possibilidade aberta de

aprofundamento da competitividade interurbana em condições tais que são excluídas

cidades ou regiões que não têm como desenvolver vantagens comparativas a menos

55
que estabeleçam as relações intermunicipais, redefinindo o território como aponta

VEIGA (2002).

O meio rural principalmente nas áreas onde o povoamento é espaçado e a

concentração dos piores indicadores sociais estão fortemente presentes pode oferecer

condições para que processos consistentes de desenvolvimento ocorram? Tentar

responder tal questionamento será objeto da próxima seção.

2.2.1 Desenvolvimento Local Rural: um conceito em evolução

No Brasil, o meio rural sempre foi reconhecido como fonte de problemas e

fragilizado pelo isolamento e pela precariedade estrutural e social, em oposição à

cidade, depositária do poder público e dos serviços e equipamentos.

No entanto e em acordo com WANDERLEY (1999), mediante a crise do

modelo de sociedade, “novos olhares” também estão sendo lançados sobre o meio rural

que, aos poucos, está sendo reconhecido como “portador de soluções”. Sendo assim, a

ruralidade e o desenvolvimento sustentável, na perspectiva do desenvolvimento

local/territorial, são temáticas já incorporadas, em grande medida, pela comunidade

acadêmica, pelos movimentos sociais e pelos formuladores das políticas públicas,

muito embora num ritmo mais lento em comparação aos países da União Européia.

Wanderley procura chamar a atenção para uma dupla face do “mundo rural”

brasileiro, que apesar de diverso em sua configuração territorial e social, mantém

singularidades que não devem ser ignoradas. Isto porque,

“as profundas transformações resultantes dos processos sociais


mais globais – a urbanização, a industrialização, a
modernização da agricultura – não se traduziram por nenhuma
‘uniformização’ da sociedade, que provocasse o fim das

56
particularidades de certos espaços ou certos grupos sociais”
(WANDERLEY, 1997: 39)

Nestes termos, o meio rural brasileiro deve ser analisado como um

“universo socialmente integrado ao conjunto da sociedade


brasileira e ao contexto atual das relações internacionais”, mas
que, ao mesmo tempo, “mantém particularidades históricas,
sociais, culturais e ecológicas, que o recortam como uma
realidade própria” (WANDERLEY, 1999: 13)

Caminhando lado a lado com essa tendência, há também a necessidade de

construir e acumular um capital social que seja capaz de desvelar os potenciais dos

homens e mulheres do campo nos seus locais de origem, perpassando pela vida e pelo

trabalho, através da expansão da capacidade de fazerem escolhas. (ABRAMOVAY,

1998).

Os valores, os conhecimentos, as habilidades, as tecnologias e as instituições da

sociedade rural contribuem na escolha sobre o tipo de cultura agrária a ser

desenvolvida no local, mas questões políticas externas podem auxiliar ou atrapalhar

essa relação que, a princípio, deveria ser harmoniosa.

Uma das grandes transformações que ocorreu no meio rural foi a diversificação

do espaço, pois encontramos indústrias, serviços, vias de comunicação e distintos tipos

de residências ao lado de unidades produtivas, além da presença de diversos grupos

sociais que podem dinamizar ou se tornar fonte de conflito, expresso na distinção que

ocorre entre os antigos habitantes e os recém-chegados.

A criação do Parque provocou essa diversificação e criou uma nova dinâmica

com os recém chegados que aportaram na região em função da sua preservação.

Embora Wanderley estivesse se referindo a uma realidade européia, suas

palavras cabem perfeitamente para descrever o que ocorre na região da Serra da

Capivara a partir da criação do parque

57
“para os primeiros, a presença de “estranhos” pode provocar
sentimentos de que o seu ambiente de vida não corresponde
mais a um espaço de interconhecimento, no qual está inscrita
sua própria história social, e que ele pode ser profundamente
afetado pelos usos da terra e das paisagens rurais para fins
diferentes” (WANDERLEY, 2000:98-99. Grifos da autora),

A autora ainda destaca que para além das dificuldades de convivência

cotidiana, tais conflitos refletem o confronto entre concepções distintas a respeito do

que é rural e dos usos que podem ser dados aos espaços rurais.

Esse é o quadro que se apresenta na Serra da Capivara com a criação do Parque

e a chegada dos “estranhos” e seu modelo de desenvolvimento, pois dentro do foi

proposto o uso do espaço passa a ser outro – a preservação da caatinga e do patrimônio

cultural existente.

Quanto aos distintos atores coletivos, que estabelecem entre si relações sociais

variadas, estes passam a disputar o uso daquele espaço rural, mas não atingem a

instância de controlar decisões da vida local.

É na construção dessa identidade territorial que os diversos grupos polarizam

suas posições, defendendo o espaço de um lado prioritariamente produtivo; de outro,

como um espaço de preservação ambiental. WANDERLEY coloca que a

conseqüência desse embate é a “ressignificação do rural”, mudando a problemática

completamente:

“diferentemente do “rural”, o “meio ambiente” se refere a um


modelo, não em vias de desaparecimento, mas em emergência e
em conflito com o modelo econômico dominante”. (2000:101)

Nesse debate, dentro do âmbito social quando se centraliza as atenções na

problemática do desenvolvimento territorial/local, segundo a autora, deve-se focar em

três questões específicas: a pobreza e a exclusão social; as políticas de

58
desenvolvimento territorial e o lugar da agricultura e dos agricultores neste novo

contexto. Entretanto, para este estudo nos ateremos apenas às duas primeiras questões.

2.2.1.1 A pobreza e a exclusão social

Embora a idéia de que os avanços ocorridos nas sociedades modernas tenham

reduzido as diferenças mais gritantes entre as condições de vida dos moradores do

meio rural e do meio urbano, a realidade nos mostra que

“a paridade está longe de ter sido alcançada de forma


homogênea, inclusive nas sociedades de capitalismo avançado.
Partes significativas do espaço rural correspondem,
freqüentemente, às zonas mais fragilizadas dos territórios
nacionais, que ainda diferenciam do urbano pelas suas
condições de inferioridade no que se refere, precisamente, ao
acesso da população aos bens e serviços materiais, sociais e
culturais.” (WANDERLEY, 2000:114)

Para a autora, essa fragilidade aparece como um prolongamento das próprias

características da história rural de cada sociedade e também com conseqüência da

distribuição desigual no espaço da riqueza, fazendo com que a população que habita

essas áreas seja igualmente atrasada, vítimas da pobreza, do desemprego e do

subemprego, condições que se agravam em função de alguns fatores como identidade e

pertencimento a grupos mais vulneráveis.

Uma alternativa para esses moradores do meio rural é a organização em torno

de movimentos sociais com reivindicações de implantação e manutenção de

equipamentos coletivos no espaço local (WANDERLEY, 2000:115)

59
2.2.1.2. As políticas de desenvolvimento territorial

A reorganização do meio rural provocou uma reorientação nas políticas

voltadas para este meio, tendo como pressuposto o

“ reconhecimento político da necessidade de integração aos


processos gerais do desenvolvimento nacional e macroregional,
dos espaços e das populações, marginalizados ou excluídos, por
meio da valorização dos recursos naturais, sociais e culturais
de cada território, sejam eles ou não associados às atividades
agrícolas”(WANDERLEY, 2000: 116)

Dentro dessa nova abordagem de desenvolvimento territorial, consideraremos

então território como

“um espaço delimitado, cujos contornos são recortados por


certo grau de homogeneidade e de integração no que se refere;
tanto aos aspectos físicos e às atividades econômicas, quanto à
dimensão sociocultural da população local. É, precisamente, o
fato de levar em conta a densidade social e cultural que concede
aos espaços locais os atributos de um território, do ponto de
vista sociológico.” (WANDERLEY, 2000:116)

O território pode ser percebido como um espaço de vida de uma sociedade

local, com sua história e sua dinâmica social interna e redes de integração com o

conjunto da sociedade em que está inserida. O território precisa ser percebido como

um espaço onde a memória coletiva se manifesta, deixando marcada a identidade local,

fazendo com que a valorização do patrimônio natural e cultural de cada localidade seja

uma dimensão importante do desenvolvimento territorial.

Por isso, na próxima seção iremos tratar do conceito de identidade.

60
2.3. – Conceituando Identidade

As várias configurações de identidade habitam reflexões dos teóricos da

modernidade, como GIDDENS (1991) ou da pós-modernidade como SANTOS (1999)

e exigem a abrangência do homem ao momento atual, a fim de explicitar as novas

bases sobre as quais se articula o pessoal e o social.

A complexidade desse tema tem sido responsável por discussões extensas e

muitas vezes estéreis em razão de princípios e conceitos divergentes envolvidos. A

fase denominada de capitalismo desorganizado (SANTOS, 1999), para inserir o

momento atual do mundo globalizado, responde por novas configurações do homem,

expondo perspectivas que devem ser objeto de investigação dos cientistas sociais.

Marcada por pressões de um mundo cada vez mais complexo e desorganizado,

a natureza dos problemas humanos se redimensiona, obrigando todos a um

investimento pessoal, por vezes demasiado pesado.

Perdido e coagido por exigências do mundo, onde a divisão entre público e

privado manifesta-se com doses generosas de ambigüidade, o homem tem a sua

identidade transformada rapidamente, sem que a ciência e o universo consensual

possam dar conta dessas mudanças.

A impessoalidade tal como discute SENNETT (1988), transformou-se num

risco que poucos estão dispostos a correr. A apologia da intimidade cristaliza os

mundos públicos e privados, tornando-os intransponíveis:

“Identificar-se com pessoas que não se conhece, pessoas


estranhas, mas que podemos compartilhar dos interesses
étnicos, dos problemas familiares, ou da religião, tornou-se
algo penoso (...) Quanto mais local a imaginação, maior se
torna o número de interesses e problemas sociais, para os quais
a lógica psicológica é: não nos deixaremos envolver; não
permitiremos que isso nos violente. Não se trata de indiferença:

61
é uma recusa, uma constrição voluntária de experiências que o
eu comum pode se permitir”. (SENNETT, 1988:378).

O autor denuncia uma realidade ao revelar a preocupação com situações que

envolvem a vida cotidiana. Censura o comportamento dos homens preocupados em

investir em si mesmos, estabelecendo vínculos transitórios e frágeis com aqueles com

quem compartilham a vida social.

Da mesma maneira, SANTOS (1999) entende que no mundo globalizado

observa-se um capitalismo desorganizado, no qual o homem está obcecado pela

diferença procurando por distinção. Na modernidade, entende que há duas linhas de

construção da subjetividade que merecem destaque especial: a tensão entre

subjetividade individual e coletiva de um lado, e a subjetividade contextual e universal

de outro:

“Na tensão entre subjetividade individual e subjetividade


coletiva, a prioridade é dada à subjetividade individual, na
tensão entre subjetividade contextual e subjetividade abstrata, a
prioridade é dada à subjetividade abstrata” (SANTOS,
1999:137).

A complexidade originária do mundo capitalista trouxe como conseqüência,

problemas para a identidade. A busca por uma hegemonia proposta e controlada pelo

Estado estimula uma identidade genérica e abstrata. É de SANTOS a afirmação:

“(...) concluo assim que, sob a igualdade do capitalismo, a


modernidade deixou que as múltiplas identidades e os
respectivos contextos intersubjetivos que a habitavam fossem
reduzidos à lealdade terminal ao Estado, uma lealdade
omnívora das possíveis lealdades alternativas” (SANTOS,
1999: p. 142).

O autor propõe uma análise crítica em que os três marcos da história da

modernidade estejam relacionados: a subjetividade, a cidadania e a emancipação. Para

62
isso, percorre um trajeto em que, de um lado, está a regulação; e, de outro, a

emancipação e analisa como esses limites relacionam-se com a subjetividade.

Seu projeto de modernidade é caracterizado por um equilíbrio entre regulação e

emancipação, sendo o primeiro sustentado pelos princípios de Estado (Hobbes), de

mercado (Locke) e comunidade (Rousseau), enquanto o pilar do segundo - a

emancipação - se dá pela articulação entre três dimensões de racionalização e

secularização da vida coletiva, ou seja, a racionalidade cognitivo-experimental da

ciência e técnicas modernas; a racionalidade estético-expressiva e a racionalidade

moral-prática do direito moderno. O autor entende que o equilíbrio pretendido nunca

foi alcançado, oscilando ora a favor de um (regulação), ora a favor de outro

(emancipação).

Para demonstrar melhor essas oscilações, ele propõe uma relação entre

subjetividade e cidadania, entendendo que esta última é mais restrita e exemplifica essa

distinção por meio da teoria liberal, na qual a sociedade (enquanto sociedade civil) não

exerce a cidadania pela impossibilidade de participação política. Introduz, assim, uma

nova questão: a relação entre democracia e participação:

“A sociedade liberal é caracterizada por uma tensão entre a


subjetividade dos agentes na sociedade civil e a subjetividade
monumental do Estado. O mecanismo regulador dessa tensão é
o princípio de cidadania que, por um lado, limita os poderes do
Estado e, por outro, universaliza e igualiza as particularidades
dos sujeitos, de modo a facilitar o controle social de suas
atividades e, conseqüentemente, a regulação social”. (SANTOS,
1999: p.240).

O resultado dessas tensões parece estar sempre a favor do Estado e/ou

sociedade, reduzindo as possibilidades de expressão da subjetividade naquilo que, em

essência, é sua característica - a singularidade; o que, aparentemente, favoreceria o

indivíduo.

63
Outra relação de tensão e, ainda mais complexa, é a relação entre cidadania e

subjetividade. Pode-se argumentar que a subjetividade se amplia e se enriquece quando

a ela acrescenta-se o princípio de cidadania, onde direitos e deveres são elementos

constitutivos.

A crítica de SANTOS (1999) é a de que essa mesma subjetividade fica

reduzida porque os deveres e direitos se apresentam de forma abstrata e universal,

tornando impossível articular igualdade (cidadania) e diferença (subjetividade). “A

igualdade da cidadania colide, assim, com a diferença da subjetividade”. (SANTOS,

1999: 240). Esse dilema está presente em todo o percurso da modernidade. A

superação dessa tensão só ocorrerá, se a relação entre cidadania e subjetividade for

sustentada pela emancipação (SANTOS, 1999), representando uma conquista do

indivíduo e de sua subjetividade.

A conquista por novos espaços de expressão e reconhecimento social, em que a

relação entre cidadania e subjetividade esteja firmada na idéia de emancipação, deve

tomar como fundamento o princípio de comunidade de Rousseau que, segundo

SANTOS (1999), articulava as idéias de obrigação política horizontal entre cidadãos e

a idéia de participação e solidariedade concreta, emergindo daí uma nova cultura

política e, “[...] em última instância, uma nova qualidade de vida pessoal e coletiva

assentes na autonomia e no auto-governo..”. (SANTOS, 199: p.263).

Olhando por este prisma, podemos pensar que a comunidade sofreu uma

destruição no que se refere às marcas deixadas pelo homem na constituição da vida

social.

Embora os “lugares”, enquanto espaços apareçam cada vez mais integrados,

revelam-se territorialmente fragmentados, genéricos e iguais. Há como que um

64
“estranhamento”, onde o homem não se reconhece como constituinte desse processo.

Para ampliar o debate, far-se-á uma incursão nas idéias de GIDDENS (1991) sobre o

assunto.

Para GIDDENS (1991), na modernidade, outras transformações são observadas

no âmbito das relações interpessoais:

“(...) as rotinas que são estruturadas por sistemas abstratos têm


um caráter vazio, amoralizado – isto vale também para a idéia
de que o impessoal submerge cada vez mais o pessoal”.
(GIDDENS, 1991:122).

A preocupação de GIDDENS (1991) é a de mostrar não uma ruptura entre o

pessoal e o social institucionalizado, mas explicitar novas bases sobre as quais se

desenvolve essa relação, onde situações tão diferentes e localizadas estão diretamente

interligadas. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a intimidade e a impessoalidade

adquirem um lugar de expressão comum, e espaço único, se indiferenciando enquanto

especificidades.

Esse dilema pode, talvez, ser mais bem compreendido por meio da exposição

de GIDDENS (1991), sobre a fenomenologia da modernidade, que caracteriza em:

“(...) quatro estruturas de vivência dialeticamente relacionadas:


deslocamento e reencaixe: intersecção de estranhamento e
familiaridade. Intimidade e impessoalidade: intersecção de
confiança pessoal e laços impessoais. Perícia e reapropriação:
a intersecção de sintomas abstratos e cognoscibilidade
cotidiana. Privatismo e engajamento: a intersecção entre
aceitação pragmática e ativismo”. (GIDDENS, 1991: p. 140).

Esse é o movimento que caracteriza a vida cotidiana, onde as oscilações e o

direcionamento e redirecionamento respondem pela apreensão dos fenômenos

psicossociais, ao mesmo tempo em que a ambigüidade se mostra como elemento

constante:

65
“[...] – o mundo que se transforma gradativamente da
familiaridade do lar e da vizinhança local para um
tempo – espaço indefinido – não é de modo algum um
mundo puramente impessoal... Vivemos num mundo
povoado, não meramente um mundo de rostos anônimos,
vazios, e a interpolação de sistemas abstratos em nossas
atividades é intrínseco à sua realização”. (GIDDENS,
1991:144)

Buscando diferenciar sua posição da de outros estudiosos, GIDDENS (1991),

denomina de modernidade radicalizada (MR) sua concepção, em oposição à pós-

modernidade (PM) e, sintetiza suas idéias afirmando sua convicção no poder do

homem em se apropriar da vida cotidiana, apesar das perdas que sofre.

Acredita, ainda, em processos ativos de auto-identificação, onde a ambigüidade

é uma constante, expressa nas relações de integração e dispersão, engajamento e

pragmatismo, estranhamento e familiaridade. Sugere também que a solidão e

distanciamento do homem, como apontado por outros estudiosos é resultado de uma

percepção fatalista e desesperançosa do mundo moderno, onde não se percebe que as

transformações ocorridas oferecem novas oportunidades combinadas, é claro, com

limites e imposições.

É nesse quadro de limites e imposições que o homem vive se questionando:

“quem sou eu?” Tal questionamento invariavelmente remete à identidade, de acordo

com CIAMPA (1984). O emprego popular de tal termo apresenta-se marcado por uma

intensa diversidade conceitual, sugerindo que a ostentação de um nome tão definitivo,

continua sujeito a inúmeras variações (JACQUES, 1998).

Essa imprecisão conceitual não se restringe ao universo da vida cotidiana, mas

reflete a dificuldade nos mais variados campos do conhecimento que têm se dedicado a

essa temática, como a Antropologia, Filosofia, Sociologia e Psicologia

66
“A importância conferida ao estudo da identidade foi variável
ao longo da trajetória do conhecimento humano,
acompanhando a relevância atribuída à individualidade e às
expressões do eu nos diferentes períodos históricos”
(JACQUES, 1998: 159).

Há momentos na história em que se verifica um maior interesse sobre a questão

da identidade, como registrado na Antigüidade clássica, em que predominava uma

valorização da vida individual e do mundo interno.

Em contrapartida, constata-se um declínio acentuado no feudalismo devido à

influência da concepção cristã de homem e do corporativismo feudal, fazendo com que

historiadores remetam o aparecimento da individualidade aos séculos XI, XII e XIII.

Foi na época do movimento romântico que o egocentrismo e a introspecção

atingiram o seu apogeu, fornecendo condições para que se propagassem produções

teóricas sobre a identidade.

Diante da diversidade atribuída ao conceito identidade, destacaremos aqui o

termo identidade social, uma vez que os elementos que o compõem parecem apontar

de forma mais evidente as duas instâncias - individual e social - em jogo na discussão

da problemática conceitual, que trata da origem individual ou coletiva da identidade.

Assim, é possível fazer algumas reflexões sobre a concepção de homem

inerente à interpretação do termo, a fim de superar a dicotomia (individual e social),

bem como mostrar que é na articulação destas que é tecida a identidade.

Os termos identidade e social sugerem, respectivamente, um conceito que

"explique por exemplo o sentimento pessoal e a consciência da posse de um eu...”

(BRANDÃO, 1990: p.37) privilegiando, de um lado, o indivíduo, e de outro lado, a

coletividade, resultando numa configuração na qual se capta o homem inserido na

sociedade, bem como à dinâmica das relações sociais.

67
É preciso compreender qual visão de homem orienta o estudo dessa categoria

de análise - a identidade social, por constituir-se numa lente que regerá todo o processo

de pensamento e construção do conhecimento.

A identidade é considerada uma categoria de análise, ou seja, constitui-se em

um elemento que é utilizado como referencial para submeter um objeto a uma análise;

um recurso teórico que vai subsidiar a compreensão de um dado fenômeno; mediação

para a compreensão de um determinado objeto.

A identidade pode ser entendida como uma forma sócio-histórica de

individualidade. O contexto social fornece as condições para os mais variados modos e

alternativas de identidade. O termo identidade pode, então, ser utilizada para expressar,

de certa forma, uma singularidade construída na relação com outros homens.

Os acontecimentos da vida de cada pessoa geram sobre ela a formação de uma

imagem de si mesma. Uma imagem que se constrói aos poucos e ao longo de

experiências de trocas com outras pessoas:

“os pais, a família, a parentela, os amigos de infância e as


sucessivas ampliações de outros círculos de outros: outros
sujeitos investidos de seus sentimentos, outras pessoas
investidas de seus nomes, posições e regras sociais de atuação”.
(BRANDÃO, 1990: 37).

É importante, segundo Jacques (1998), não limitar o conceito de identidade ao

de autoconsciência ou auto-imagem. A identidade é o ponto de referência, a partir do

qual surge o conceito de si e a imagem de si, de caráter mais restrito.

A identidade não se apresenta sob a forma de uma entidade que rege o

comportamento das pessoas, mas é o próprio comportamento, é ação, é verbo. Há uma

articulação em que os limites entre o social e os individuais se confundem. Para existir

um, são necessários dois, não apenas do ponto de vista da concepção, da genética, da

68
sobrevivência, mas, sobretudo em se tratando do homem ser reconhecido como tal; o

homem só se vê como homem se os outros assim o reconhecerem.

Sob essa perspectiva, é possível conceber a identidade, ao mesmo tempo,

pessoal e social, superando a dicotomia entre essas duas instâncias.

A questão da identidade é complexa, porque está inserida em uma intrincada

rede de representações, onde cada personagem reflete tantos outros, todos constitutivos

de uma identidade social expressa em múltiplas ordens relacionais que se dão ao nível

social, material e afetivo de pertencimento familiar, de vizinhança, de grupos sociais,

de classes, regionais, nacionais e internacionais, em suma, locais e globais.

Expressas em corpos e mentalidades, essas identidades (individuais e coletivas)

carregam suas possibilidades futuras de ser, criar, bem como um presente de angústias,

aspirações e incertezas do seu vir a ser que terminam por compor o sentido de

pertencimento a um lugar. É sobre esse sentido que trataremos na próxima seção.

2.4 - O Sentido de Pertencimento

As Ciências Sociais sempre se dedicou a criar teorias plausíveis para explicar

fenômenos de nosso campo, enxergando-os como objetos construídos historicamente

pela humanidade, portanto, muito mais próximos do universo da cultura. Um desses

autores foi o sociólogo alemão Norbert Elias, cuja teoria é bastante relevante para

compreensão dos processos históricos de longa duração. A metodologia instituída é um

instrumento capaz de viabilizar a compreensão da estrutura básica da sociedade,

concebida como formas concretas, por meio das quais os indivíduos se agrupam. Sua

tese tem sido interpretada, ora como evolucionista, ora como teoria do progresso.

69
Suas proposições surgiram a partir de um projeto de pesquisa realizado na

Alemanha, antes da ascensão do nazismo; e ao serem compiladas nas obras “Sociedade

da Corte” (1987) e “O Processo Civilizador” (1976a,b), se tornaram instrumentos

importantes para a compreensão do processo civilizador europeu, uma vez que

relaciona mudanças comportamentais e emocionais dos indivíduos da corte inglesa do

século XVIII, com as transformações ocorridas na estrutura social.

Elias apresenta novas possibilidades para investigação do fenômeno social dos

“Estabelecidos e os Outsiders” (2000), denominando como estrutura um esquema de

indivíduos interdependentes que formam um grupo ou a sociedade, do ponto de vista

do coletivo; às configurações, conceito destinado à análise dos indivíduos

isoladamente.

Configuração é um conceito central da sociologia elisiana e elucida as

estruturas sociais de maneira mais abrangente. Como sistema de interação ou estrutura

social, é formada por pessoas interdependentes, não se restringi a um “agrupamento de

pessoas”, e pode ser identificada como "estruturas entrelaçadas", formadas pela

afluência de diversos comportamentos individuais, independentes (ELIAS, 1980).

De acordo com WAIZBORT (1999:92) “o social em Elias é um conjunto de

relações”, um “todo relacional”, sempre em movimento, em processo de

transformação. Não há possibilidade de um ‘indivíduo isolado’, mas um ‘indivíduo na

sociedade’; como também não existe ‘sociedade’, mas apenas, ‘sociedade no

indivíduo’, isto é, “os indivíduos fazem a sociedade e a sociedade faz os indivíduos”.

A noção de configuração é um instrumento para se repensar as dicotomias

ainda existentes no pensamento tradicional ocidental - de enxergar fenômenos sociais,

70
entre indivíduo e sociedade, como se fossem objetos separados e independentes uns

dos outros - que utilizam dualismos sujeito/objeto e causa/efeito.

A inovação teórica desenvolvida por Elias ocorre, nesse sentido, em superar

teorias sociológicas que apresentam a sociedade ou os fenômenos sociais, como algo

separado do indivíduo. A cisão entre indivíduo e sociedade desaparece e a imagem

rudimentar de uma sociedade abstrata deixa de existir, substituída pela concepção de

figuração, entrelaçamento interdependente de indivíduos formando a sociedade.

De acordo com Elias (1980) as estruturas tais como matrimônio, parlamento,

crise econômica ou guerra, se tornam impossíveis de serem captadas, quando reduzidas

ao âmbito individual e isoladas do contexto, pois só podem ser compreendidas

mediante análise e síntese figuracional, por meio da sociologia figuracional, já que os

homens são “dependentes uns dos outros e se orientam uns em relação aos outros”

(ELIAS, 1997: 191).

Contudo, tais dependências não são sempre as mesmas, mas relativa aos

diferentes estágios de desenvolvimento da sociedade, isso significa que as

interdependências variam conforme se tornam mais “diferenciadas e estratificadas”

(ELIAS, 1980:147).

O autor afirma que as “valências de afeição e de desapego” só envolvem a

maioria dos habitantes de determinada tribo na medida em que ela permanece pequena.

Com o crescimento e a estratificação, os indivíduos inseridos procurarão outras formas

de “ligação emocional”, ou seja, o crescimento de determinado grupo dificulta

ligações interpessoais, induzindo os indivíduos a se unirem a outros “símbolos de

unidades maiores” (p.150), com o intuito de perpetuar suas relações afetivas. Dessa

71
maneira reconhecemos que os símbolos fortalecem ligações entre sujeitos, vinculando

uns aos outros.

É possível percebermos tais afirmações na região da Serra da Capivara. Serão

considerados pertencentes ao território àqueles que se apropriarem do Parque. É fato

que algumas afeições às unidades sociais maiores, são tão intensas como as relações

que os indivíduos despendem aos seus entes mais queridos. E tal fato é facilmente

perceptível quando seus apreços são menosprezados por adversários, como ocorre, por

exemplo, quando um caçador é preso dentro do Parque, no momento que seus

símbolos são depreciados (instrumentos quebrados).

Ainda utilizando a Serra da Capivara, mais uma analogia pode ser utilizada

para se discutir o conceito de figuração. Elias (1980) facilita a assimilação do conceito,

ao esclarecer que para se formar uma configuração, necessita-se da interdependência

dos indivíduos, que pode ser grupos que atuam em posições distintas, como

adversários; pois o movimento de um grupo é o ponto de partida para decifrar o

mesmo movimento do outro grupo.

Segundo HEINICH (2001), é nesse aspecto que as teorias de Bourdieu e Elias

se aproximam: na discussão sobre o conceito de campo, uma vez que o termo

“configuração” denota uma definição similar à noção de campo bourdiniano.

Utilizar o pensamento a partir da noção de figuração induz, não mais a

raciocinar em termos de individualidades vinculadas entre si, mas em relações, o que

confirma a pertinência da teoria de Elias para compreensão dos fenômenos coletivos,

sendo possível identificar ações sociais nas quais se medem relações de força,

transformando configurações iniciais em outras configurações, em um contínuo e

72
interminável movimento, designado por ELIAS e DUNNING (1992) como “modelo

de jogo”.

2.4.1. “Established e Outsiders”

Um dos conceitos mais relevantes do legado de Elias é sua síntese figuracional

das relações entre established e outsiders7, considerada na área da sociologia,

inovadora na teoria das relações de poder. Apresentada pela primeira vez em 1965, no

livro “A Sociedade dos Indivíduos”, é o compêndio da pesquisa de campo realizada

conjuntamente com Scotson, na escola do povoado industrial de Winston Parva, por

meio da qual detectou desigualdades sociais existentes entre habitantes antigos

(established) e recém chegados (outsiders) ao bairro, reconhecidas pelos próprios

moradores.

Os residentes mais antigos eram vistos pelo restante da comunidade como

indivíduos melhores do que os mais novos, com status inferior, estigmatizados como

delinqüentes, desintegrados, até mesmo por seus pares.

A grande descoberta de Elias e Scotson (2000) era o fato de que,

estatisticamente, não havia indicadores sociais significativos (renda, escolaridade,

ocupação) que determinassem diferenças relevantes entre os dois grupos, mas tão

somente o tempo de permanência na vizinhança, isto é, moradores antigos e novos.

Na Serra da Capivara, entretanto, os papéis se invertem, pois serão

considerados com status inferior os moradores mais antigos, pois os novos moradores

7
Na concepção empregada por Elias, establishment é um grupo que se reconhece como uma "boa
sociedade", um grupo unido, mais poderoso e melhor do que os outsiders, considerados “não membros
da ‘boa sociedade’’ ou os que estão fora dela.. (Elias, 2001).

73
que vieram com o Parque têm o conhecimento acadêmico, a força da lei e o poder

econômico.

Mesmo com a inversão dos papéis na Serra da Capivara, o ponto central do

debate proposto por Elias (2000) se mantém quando entendemos que é a

interdependência entre grupos, por meio de uma dinâmica de atração e repulsão,

gerando conflitos que dependendo da distribuição de poder entre eles, legitima o uso

da força.

A integração dos grupos é absolutamente condicionada à “vontade de

assimilação dos outsiders e da capacidade dos estabelecidos de assimilá-los” (ELIAS,

2000:141). Para o autor, a aceitação real daqueles que se encontram subjugados é um

processo de longa duração, conquistado apenas de uma geração à outra.

Dessa forma a colaboração do autor vem no sentido de instituir um novo

modelo de como seres humanos individuais ligam-se uns aos outros em uma

pluralidade. É redundante afirmar que os indivíduos formam a sociedade ou de que

toda sociedade é uma sociedade de indivíduos. No entanto, para Elias (1994) a

utilização do termo ‘sociedade dos indivíduos’ é proposital, com intuito de assegurar

que a consciência que temos como sociedade é significativamente diversa daquela que

temos como indivíduo.

Com isso Elias (1994), infere que o todo é diferente da soma de suas partes,

isto é, a sociedade não pode ser compreendida pela análise do agrupamento de

indivíduos isolados, refutando, assim, a idéia que o indivíduo é mais importante que a

sociedade e vice-versa. Para o autor, as pessoas estão presas umas às outras e essas

relações são denominadas de estruturas ou leis sociais, as quais humanizam os

indivíduos no próprio convívio com o outro.

74
Todos os indivíduos nascem em um grupo pré-existente que lhes impõem

padrões sociais colaborando na formação da sua consciência. A quantidade de

“padrões sociais de auto-regulação” que cada um desenvolve durante a vida é

determinada por cada geração, por cada sociedade, de acordo com a situação dos pais,

do meio inserido ou da escola visitada, por exemplo.

O que Elias (1994:30) denomina como rede (a totalidade da relação entre

indivíduo e sociedade) é dependente da “historicidade de cada indivíduo”, pois “o

fenômeno do crescimento até a idade adulta é a chave para a compreensão do que é a

sociedade”, ou seja, a criança deve ser adaptada pelo outro, à vida em comunidade.

Dessa maneira compreendemos o indivíduo inserido em uma rede de sujeitos

existentes antes dele e que ele mesmo futuramente ajudará a formar e, é essa ordem,

esse “entrelaçamento incessante e sem começo” (ELIAS, 1994:36), que determina a

natureza e a forma do ser humano individual, sua alma, sua psique.

Portanto, para Elias (1994) as estruturas da psique humana, da sociedade e da

história são interdependentes e complementares devendo ser analisadas em conjunto,

ou seja, “a história é sempre a história de uma sociedade, mas, sem a menor dúvida,

de uma sociedade de indivíduos” (ELIAS: 1994: 45).

75
Capítulo 3. DESENVOLIMENTO LOCAL ATRAVÉS DA ATIVIDADE

TURÍSTICA

Um dos maiores desafios da sociedade brasileira contemporânea tem sido o

enfrentamento das questões da desigualdade e da exclusão social em um cenário

democrático, que pressupõe a ampla participação do conjunto de atores sociais. No

entanto, a realidade nos mostra que ainda há permanentes e recorrentes contradições

que afetam a sociedade brasileira, como o desemprego, a expansão da pobreza e a

exclusão social.

Nos últimos anos foi possível acompanhar a implementação, por parte do

governo federal, de uma série de programas específicos de ações afirmativas legais e

institucionais para mudar esse cenário. Dentre essas ações, foi criado pelo Ministério

do Turismo um programa de inclusão “enfoca também o acesso e a distribuição dos

benefícios da atividade turística” (MTUR, 2006:5).

Tal programa entende que o poder público tem a função de fomentar a ascensão

sociocultural e econômica dos indivíduos e que a atividade turística pode contribuir

efetivamente para a superação das diversas formas de vulnerabilidade e exclusão social

através da formação e do fortalecimento de redes de confiança, solidariedade e de ação

cooperada dos agentes sociais.

3.1. Inclusão Social pelo Trabalho

Como bem expõe SACHS (2004:112), a economia brasileira é constituída de

um arquipélago de empresas modernas e eficientes, contudo, à sua volta o que existe é

uma parcela importante da população que busca a sobrevivência na informalidade.

76
Para acomodar o número crescente de pessoas que se tornam economicamente

ativa e

“saldar a imensa dívida social acumulada sob a forma de


desemprego e subemprego durante quarenta anos de
crescimento econômico e de modernização rápida [...] o Brasil
precisa se transformar numa gigantesca fábrica de empregos”
(SACHS, 2004:112. Grifos do autor)

A questão que o autor coloca é saber se a modernização poderia ter sido menos

destruidora de empregos se tivessem sido aplicadas políticas diferentes nos mais

diversos setores econômicos, tanto no meio urbano quanto no meio rural.

Para o autor,

“qualquer que seja a resposta dada a esta pergunta


(pessoalmente, penso que boa parte do estrago poderia ter sido
evitada), compreende-se que, nestas condições, o presidente
Lula e vários ministros tenham proclamado em vários
pronunciamentos recentes a geração de empregos como a
prioridade máxima para o ano de 2004, reconhecendo ao
mesmo tempo, com razão, que o crescimento por si só não
bastava para assegurar uma trajetória da economia com uma
intensidade de emprego satisfatória” (SACHS, 2004:115).

O Brasil não está sozinho nesse desafio, pelo contrário, o mundo todo está às

voltas com a epidemia de “crescimento sem emprego (jobless groeth)” (SACHS,

2004:115).

Segundo o autor, o crescimento sem emprego resulta de uma combinação de

vários fatores, como a substituição de mão de obra por tecnologia, uma política de

salários injusta que provoca a diminuição do poder aquisitivo da massa trabalhadora e

o deslocamento de produção para países periféricos sob a égide da terceirização.

Esses países terminam por se satisfazerem com uma competitividade ilegítima,

uma vez que se apóia em salários excessivamente baixos, longas jornadas de trabalho e

ausência de proteção social.

77
Contudo, existem aqueles que acreditam que a epidemia de crescimento sem

emprego só poderá ser combatida por taxas de crescimento econômico excessivamente

elevadas e o desemprego, o subemprego e a exclusão social apresentam-se como um

mal necessário, atenuado por vigorosas políticas assistenciais.

Neste trabalho adotaremos uma linha diferente e, para tanto, usaremos as

palavras de SACHS (2004:116)

“é necessário e possível desenhar estratégias de


desenvolvimento que asseguram a todos a inclusão social pelo
trabalho decente atuando simultaneamente sobre as taxas de
crescimento econômico e os coeficientes de elasticidade de
emprego/crescimento. Enquanto persistirem as abismais
diferenças sociais e os níveis de exclusão que conhecemos hoje
no Brasil, as políticas sociais compensatórias serão
indispensáveis, além da urgência em se promover o acesso
universal aos serviços sociais de base – educação, saúde,
saneamento, moradia. Porém, o emprego e o auto-emprego
decentes constituem a melhor maneira de atender às
necessidades sociais”.

A razão para tal entendimento reside no fato de que, através da inserção dos

excluídos no sistema produtivo haverá uma solução definitiva, enquanto que as

medidas assistenciais requerem financiamento público recorrente e causam

desânimo e falta de perspectivas nos assistidos crônicos.

O exercício do direito ao trabalho promove a auto-estima, oferecendo

oportunidades para a auto-realização e o avanço na escala social. Esses serão os

parâmetros de análise do próximo capítulo.

Como bem expõe SACHS (2004:117),

“o desenvolvimento é um processo com duas vertentes que


devem ser compatibilizadas:
 Em nível econômico, trata-se de diversificar e complexificar as
estruturas produtivas, logrando, ao mesmo tempo, incrementos
significativos e contínuos da produtividade de trabalho, base do
aumento do bem-estar;

78
 Em nível social, deve-se, ao contrário, promover a
homogeneização da sociedade, reduzindo as distâncias sociais
abismais que separam as diferentes camadas da população.”

Nesse sentido, há vários espaços para a expansão de serviços técnicos e

pessoais em formas de ocupações decentes para trabalhadores por conta própria, seja

por micro e pequenas empresas ou na forma de cooperativas.

O turismo, por exemplo, tem sido um setor onde tem havido grandes

investimentos nessa direção, mas o sucesso das ações dependerá do modelo adotado

tanto para a exploração turística como para a forma de inclusão de trabalho decente a

ser incentivado.

Parece-nos que o potencial de atração do Brasil para o turismo internacional de

alto poder aquisitivo está sendo considerado para além do seu valor real. A

competição nesse setor já é acirrada pela variedade de destinos já consolidados e

pelo fato de que os investimentos em redes de hotéis de luxo serem muito

dispendiosos.

Entretanto, o turismo de base comunitária e o turismo interno de massas não

estão recebem a devida atenção, de modo a se tornarem nichos de mercado

consolidados.

Mesmo o turismo ecológico, que não pode ser encarado como um nicho de

mercado para as massas, se incentivado pode se transformar em um ramo de

atividade a ser integrada nas estratégias de desenvolvimento local de numerosas

microrregiões, entre elas a Serra da Capivara, como veremos a seguir.

79
3.2 – Proposta de Desenvolvimento Local do Ministério do Turismo para a Serra

da Capivara

Entre os dias 7 e 8 de maio de 2003 foi realizada, em Madrid, a Terceira

Reunião da Comissão Mista Brasil-Espanha de Cooperação, com a finalidade de

estabelecer um conjunto de ações de cooperação entre os dois países nas áreas

técnicas, científicas, educacionais e culturais.

Nessa reunião foi definida como prioridade a formulação e implementação de

projetos de desenvolvimento integrado e sustentável do turismo em regiões com baixo

Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), ficando estabelecido que as regiões dos

Parques Nacionais Serra da Capivara (PI) e Lençóis Maranhenses (MA) seriam os

primeiros pontos a serem trabalhados, através de um projeto piloto.

“Em 2003, e aí tem uma questão de tramitação burocrática que


é de governo para governo, chamada comista, que acontece de
tempos em tempos, dependendo do ritmo de execução de cada
uma das propostas, ocorre a comista, em Madri. Nessa reunião,
tanto o governo brasileiro quanto o governo espanhol, tendo
em vista a recém criação do Ministério do Turismo, aventou a
possibilidade de se fazer um projeto de desenvolvimento com a
Cooperação Espanhola, porque a Espanha tem uma base da
economia no desenvolvimento do turismo. Contudo, não se
focalizou só isso, definiu-se um projeto em que o turismo seria
vetor de desenvolvimento, que esse projeto seria em áreas de
preservação ambiental,que ele teria um recorte de gênero e que
seria feito em áreas de baixo IDH- áreas de pobreza.” (SILVA,
2008)

Neste trabalho nos ateremos apenas à região da Serra da Capivara.

O primeiro passou foi a identificação da capacidade que a região da Serra da

Capivara possuía para desenvolver tal projeto piloto de desenvolvimento

sustentável dentro do setor turístico, nos moldes exigidos pela Cooperação

80
Espanhola. Comprovada a existência de todas as características exigidas para a

implementação do projeto, este passou a ser colocado em prática.

Assim, ações do Estado possibilitaram a execução de medidas que

implementaram na região um possível início de um processo de mudança social e

tecnológica.

Segundo Kátia Silva, coordenadora do Departamento de Qualificação e

Certificação e de Produção Associada ao Turismo,

“não é um projeto só setorial, teoricamente ele era um projeto


que tinha que ter ações de infra-estrutura, qualificação,
promoção e mobilização que a gente chama, de
desenvolvimento de capital social [...] Quando a gente fala em
desenvolvimento local, tendo como vetor o turismo, é tentar
priorizar ações que se tem certeza que vão melhorar a
qualidade de vida da população e isso vai fazer também com
que se tenham melhores condições de desenvolver o
turismo. Então é sempre essa a associação.” (SILVA,
2008)

Dessa forma, o conceito de desenvolvimento local empregado implica que:

 Os recursos turísticos devem ser conservados para o uso contínuo no futuro, e,

conjuntamente, para que continuem trazendo benefícios para a região do

Parque Nacional Serra da Capivara;

 O desenvolvimento do turismo deve ser planejado e implementado de forma

que não provoque problemas econômicos, sócio-culturais e ambientais na

região;

 A qualidade ambiental da região será mantida ou melhorada quando for

necessário;

 O alto nível de satisfação turística deve ser atingido, de forma que o destino

turístico mantenha a atração e as preferências; e,

81
 Os benefícios do turismo devem ser amplamente distribuídos em todos os

níveis da sociedade.

A metodologia utilizada aproximou o saber científico ao saber local, tendo como

orientação conceitual a organização da atividade turística como núcleos produtivos,

visto que as empresas que compõem a infra-estrutura turística compartilham o mesmo

território e ou participam da mesma cadeia produtiva.

Com base no pressuposto básico de que uma das maneiras de melhorar a

competitividade dessas pequenas e médias unidades autônomas é a formação de

parcerias entre elas, cria-se um relacionamento próximo e permanente que propicia,

por um lado, a troca de sinergia e a prática da colaboração e, por outro, estimulando a

rivalidade e a competição saudável.

A organização das empresas com afinidade econômica, com proximidade física

e com articulação entre si podem consolidar um arranjo produtivo local estruturado,

podendo intensificar e fortalecer a interação entre os atores envolvidos, gerando uma

otimização no uso das vantagens competitivas e na mobilização permanente de um

pacto para o desenvolvimento local e integrado na dimensão econômica, social e

ambiental.

“Numa primeira fase foi o diagnóstico e dimensionamento do


Projeto, em que você faz com o trabalho de gabinete, com o
trabalho de diagnóstico, mas com propósito de identificar e
fazer com que os representantes dos territórios e diferentes
atores, desenhem quais são as demandas, ou seja, desenhem
uma agenda de ações, resultado das oficinas de planejamento
do projeto” (SILVA, 2008)

Era ambição inicial do projeto, a partir da agenda de ações, construir uma linha

de política pública de inclusão social com base nas atividades turísticas tornando-se,

assim, uma alternativa de desenvolvimento e de recuperação da área economicamente

82
debilitada, objetivando a melhoria das condições sócio-econômicas das populações do

entorno do Parque por meio da criação de oportunidades de emprego e geração de

renda e desenvolvimento local.

Após a assinatura e o estabelecimento do Acordo de Cooperação entre Brasil e

Espanha foi formada uma equipe mista que visitou a região, primeiramente para

estabelecer uma articulação com o estado e municípios próximos ao Parque.

Posteriormente fez-se o levantamento de dados e estudos para a elaboração do cenário,

definição do território, dimensionamento do projeto e planejamento da pesquisa de

campo que resultaria na montagem da agenda de ações.

O resultado do trabalho inicial do projeto será exposto a seguir, separado por

tópicos e eixos por uma opção didática. Esse material serviu, posteriormente, de base

para a construção do projeto de turismo local da região do Parque Nacional Serra da

Capivara.

3.3 – Execução da Proposta

3.3.1 – A Problemática

Com base nos documentos gerados na fase de diagnóstico, a coordenação do

projeto chegou à seguinte questão: apesar de existir um atrativo ímpar – o Parque

Nacional Serra da Capivara - o desenvolvimento do turismo não chegou à região. Os

dados oficiais apontam que em média o número de visitantes 8 é de cinco mil pessoas

8
Na cadeia turística, para se considerar uma pessoa visitante ela precisa pernoitar ao menos uma noite;
caso contrário, ela não entra nas estatísticas como visitante, mas sim como turista. A implicação dessa
diferenciação é que a pessoa que não pernoita na cidade não deixa recursos, ou seja, não traz benefícios
econômicos ao local.

83
por ano (IBAMA), mas a capacidade de recepção pode ser bem maior, uma vez que o

Parque possui uma das melhores infra-estruturas da América Latina.

A estrutura receptiva da região ainda não é capaz de atender às necessidades

dos turistas - hotéis, agências de turismo, serviço de transporte, agenda cultural

permanente – não comportando, em curto prazo, o aumento do fluxo.

Superar a dicotomia existente entre o potencial turístico que o Parque oferece e

as limitações de infra-estrutura e serviços que a região tem transformou-se na

problemática principal que deu origem ao Projeto de Desenvolvimento para a Serra

da Capivara. Nessa sistematização, os aspectos socioeconômicos formaram o

primeiro eixo.

3.3.1.1 - Aspectos Sócio-econômicos

Os dois pontos principais a serem destacados dentro do eixo sócio-econômico

são o sistema de gestão individualista e as instituições públicas.

3.3.1.1.1. Sistema de Gestão Individualista

O diagnóstico apontou que, do ponto de vista da população, a forma como o

Parque e os projetos vinculados a ele são geridos é individualista. A população tem a

percepção de que apenas os interesses dos gestores do Parque são levados em

consideração. Não vamos entrar no mérito se tal visão procede ou não. Para nós, neste

momento, interessa apenas o que está registrado no corpo do documento.

O fato é que tal percepção provocou nesta população um sentimento de não

84
pertencimento perante qualquer ação que envolveu o Parque e o desenvolvimento da

região. A desconfiança criada por essa percepção dificultou a associação entre as

entidades públicas, privadas, ONGs e a própria população local, levando a um tipo de

participação vazia, quase nula. Como resultado, a região apresenta um quadro social

frágil.

Esse quadro social corrobora o perfil descrito no primeiro capítulo sobre a

necessidade de se trabalhar a identidade local junto à população do entorno do Parque

Nacional Serra da Capivara nos moldes apontados por JACQUES (1998) e

BRANDÃO (1990).

Percebemos que o caminho percorrido pelos moradores ao longo do processo

de construção desse novo território foi marcado pela solidão e pelo desenraizamento.

Entendemos enraizamento com WEIL (2001), que o define como um sentimento de

pertença, isto é, de pertencer ou participar ativamente de um certo “lugar” ou grupo, ou

ainda, como um “sentir-se em casa”. Assim, por oposição, desenraizamento significa

um sentimento de não-pertencimento.

Esse sentimento de não-pertencimento diagnosticado na população da Serra da

Capivara nos leva à percepção de que há uma dicotomia entre o fato de habitarem um

“lugar”, mas esse “lugar” não ser mais a “casa deles” e sim o território do “outro”,

onde eles se sentem os excluídos, como já dissemos anteriormente através dos

trabalhos de Elias (1994, 1998, 2001) no capítulo 2.

O fato da população se sentir excluída provoca uma desarticulação, onde o

limite entre o social e o individual se confunde. Para existir um, são necessários os

dois, não apenas do ponto de vista da concepção, da genética ou da sobrevivência.

Mas e isso não ocorre.

85
Quando um componente não está presente é gerado o sentimento de não-

pertencimento. Mas o indivíduo, para ser reconhecido como tal, precisa também

ser reconhecido pelos seus pares. Sob essa perspectiva, é possível conceber a

identidade ao mesmo tempo pessoal e social, superando a dicotomia entre essas

duas instâncias. Tal ação se tornará a missão do projeto. Tal ação se tornou a

missão do projeto.

3.3.1.1.2. Instituições Públicas

Em relação às instituições públicas, o diagnóstico apontou como principais

entraves para o desenvolvimento do turismo na Serra da Capivara o isolamento

regional, a baixa capacidade da região em executar planos nacionais, os precários

índices sócio-econômicos e a baixa auto-estima da população, revelada na

desvalorização da cultura regional, aliada a uma participação política desarticulada

e ainda muito assistencialista.

Esse quadro contribuiu para que fossem mínimas as condições de

fortalecimento ou criação instituições responsáveis e eficazes, que permitissem romper

com o sistema de gestão individualista e pouco participativa existente na região.

Entretanto, essa é uma realidade contraditória, porque existem vários

programas sociais comunitários de capacitação, crédito e desenvolvimento, mas que

não atingem seus objetivos porque, em sua grande maioria, se concentram na

capacitação produtiva ou na gestão de crédito, sem contemplarem etapas que são

fundamentais como gestão dos recursos, tanto ao nível jurídico como contábil, nem

no fortalecimento do trabalho cooperativo ou associativo.

86
3.3.1.2. Aspectos econômicos, infra-estrutura e investimentos

O segundo eixo se concentra nos aspectos econômicos, de infra-estrutura e

investimentos, onde foi possível detectar que a economia regional não teve

crescimento significativo, salvo em atividades relacionadas com o turismo e

apicultura, embora esse crescimento ainda seja precário e desorganizado.

As atividades ligadas à caprinovinocultura, agricultura e comércio continuam

em índices estáveis nos últimos 20 anos, ou seja, não surgiu nenhum elemento

dinamizador da economia regional.

Na região existem três agências bancárias que possuem linhas de crédito para

micro e pequenas empresas rurais e urbanas – Banco do Brasil, Banco do Nordeste e

Caixa Econômica Federal.

Os gerentes afirmam que a baixa procura por esses créditos faz com que os

recursos sejam devolvidos às matrizes, em Brasília. Entretanto, reconhecem que a

burocracia é um grande entrave para que se processem esses financiamentos, além da

pouca perspectiva em atividades econômicas rentáveis para a taxa de retorno cobrada.

A quase inexistência de capacitação técnica para implementar os créditos e a

quase inexistente cultura empreendedora da população local, principalmente quando as

linhas exigem trabalho cooperativo, são fatores que provocam a estagnação da

economia local.

Embora nos últimos cinco anos a atividade turística tenha crescido de forma

exponencial em números relativos aos anos anteriores, ainda se pode chamar de

precária ou em estado pré-inicial.

87
Há na região a convicção que a construção de um aeroporto possa mudar esse

quadro. Esse é um projeto que se arrasta há anos e as obras ainda não foram

finalizadas.

Com a construção desse aeroporto estima-se que a região passe a receber um

contingente maior de visitantes. Mas esse aumento do fluxo turístico sem um

planejamento prévio e cuidadoso poderá levar à constatação da existência de

problemas, tais como mão-de-obra local desqualificada para atuar na cadeia turística,

impossibilidade de criar padrões de qualidade nos serviços que mantenham a demanda

turística, instalação de multinacional do turismo controlando a atividade na região.

Essa estagnação histórica da economia regional e as poucas possibilidades para

se desencadear um quadro de desenvolvimento dentro do modelo neoliberal leva aos

entraves mais críticos para que qualquer projeto obtenha êxito na região: recursos

econômicos limitados, baixos investimentos nacionais e nenhum investimento

internacional, baixa escolaridade, emigração da mão-de-obra capacitada para regiões

mais desenvolvidas, poucas atividades econômicas rentáveis, baixa cultura

empreendedora e mão-de-obra desqualificada para as necessidades desse modelo de

desenvolvimento.

3.3.1.3. Aspectos organizacionais: articulação, planejamento,

implementação, gestão e sustentabilidade

O terceiro eixo se concentrou nos aspectos organizacionais, onde se constatou

que, tanto ao nível de organização como ao nível de gestão, o modelo predominante na

região ainda é o neoliberal.

88
Essa realidade reflete o processo histórico regional e o atual tecido sócio-

político, dimensionados pela corrupção política que impacta de maneira negativa em

qualquer iniciativa que tente melhorar ou dinamizar novas formas e metodologias de

desenvolvimento.

Esses aspectos regionais de organização e gestão têm levado a um isolamento

social e a um truncado desenvolvimento sócio-econômico local. Torna-se urgente a

quebra desse círculo vicioso, de modo a abrir uma possibilidade para um novo modelo

de desenvolvimento fundamentado nos princípios da sustentabilidade, tendo por base a

inclusão do maior número de pessoas à cadeia produtiva do turismo.

Nesse desafio deve estruturar-se uma plataforma maior para todos os atores

locais e, em especial, para que a população mais carente possa ser harmonizada em

seus interesses e necessidades.

Um dos caminhos escolhidos pelo ministério do turismo para quebrar esse

círculo vicioso e restabelecer o sentimento de pertencimento à população local foi o

fortalecimento dos princípios cooperativos, através da implementação na região de

uma incubadora tecnológica de cooperativas populares.

3.4. A Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP)

A Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) foi criada em

1995 como um programa de extensão universitária do Instituto Alberto Luiz Coimbra

de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE) da Universidade Federal do Rio

de Janeiro (UFRJ).

89
A ITCP foi concebida como um centro de tecnologia que disponibiliza os

conhecimentos acadêmicos para gerar, por meio de suporte, a formação e

desenvolvimento de empreendimentos cooperativos visando a criação de alternativas

de trabalho e renda para que indivíduos e grupos em situação de vulnerabilidade social

e econômica possam se incluir na sociedade e exercer o direito pleno de cidadania.

Sob esta perspectiva, a ITCP tem se destacado de outros programas e projetos,

pois entende que não há divisão entre a exclusão econômica e a exclusão social,

embora os discursos oficiais e as ações governamentais sejam marcados por esta

divisão entre o social e o econômico.

Este conceito, que dissocia o econômico do social, fez com que as opções

econômicas adotadas nunca levassem em conta os prejuízos sociais causados pelo

desenvolvimento do país que gerava um crescimento econômico de caráter excludente.

Essa divisão das estruturas social e econômica reproduz-se, especialmente, na

organização dos setores populares da sociedade brasileira.

“Os trabalhadores do mercado informal, que não estão


efetivamente inseridos na economia formal, são vistos
socialmente como marginalizados, excluídos da sociedade. Só o
trabalho formal é reconhecido como trabalho efetivo. As outras
formas de trabalho acabam sendo desvalorizadas. Em
conseqüência, o indivíduo que não tem um trabalho formal não
tem sua cidadania reconhecida e fica à margem do
reconhecimento social. O fato de não estar inserido na
economia formal o torna um marginal social. Por ser
identificado como excluído das relações sociais, as políticas
públicas são desenvolvidas ou aplicadas para a reinserção,
como se esses cidadãos, ou essas famílias, ou esses setores, já
não participassem das trocas econômicas e das relações
sociais”. ( GUERREIRO et All, 2004:3)

Este é o contexto no qual a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares

(ITCP) da COPPE/UFRJ vem atuando a mais de 12 anos na perspectiva de construir

90
alternativas distintas de busca individual pela sobrevivência. A proposta coletiva

agrega valores ao grupo e utiliza como principal instrumento a formação de

cooperativas populares e autogestionárias.

BOCAYUVA (2000) discorre sobre as “dimensões socioespaciais e

cooperativismo popular”, concluindo que é necessária e legítima a intervenção pública

nessa problemática. Nesse sentido, traz que:

“Os ideais que desencadeiam uma nova abordagem da extensão


universitária foram o ponto de partida e a motivação inaugural
para a criação da Incubadora (ITCP/COPPE/UFRJ). O campo
experimental foi marcado pela modificação das relações entre
instituições públicas e territórios urbanos estigmatizados pela
sua posição periférica e marginalizada (favelas). Mas o esforço
de uma atuação sistemática teve de enquadrar-se nas novas
políticas urbanas de caráter social, por meio das quais, por
motivos práticos e opções políticas, os governos subnacionais
buscam incorporar instituições da sociedade civil e, de forma
análoga, setores específicos da universidade para focalizar as
ações e qualificá-las ou para realizar uma perspectiva de
terceirização de sua ação. O tema da parceria, portanto, remete
a um redesenho das políticas urbanas e de combate à pobreza e
à exclusão social” (BOCAYUVA,2000:11.mimeo)

Um programa de Geração de Trabalho e Renda baseado no cooperativismo

poderia ser adotado por várias instituições públicas e privadas e não apenas por uma

universidade pública. 

Assim, o projeto assume, dentro de Universidade Federal do Rio de Janeiro,

um caráter social que, através do retorno do conhecimento à sociedade através de

ações positivas, garante sua continuidade com um programa de extensão

universitária com ações neutras e imparciais junto às comunidades.

A universidade reúne importantes condições para manter a continuidade das

ações através dos programas de extensão universitária como é capaz de garantir maior

imparcialidade, pois os conflitos internos são diluídos no ingresso de novas pessoas a

91
cada ano. A renovação constante dos grupos mantém a dinâmica e a coragem do novo,

o caráter interdisciplinar e a busca do conhecimento.

Em relação à criação e êxito das ações da ITCP/COPPE/UFRJ, podemos dizer

que as propostas não são inovadoras, mas sim o tempo em que elas acontecem. A

conjuntura é favorável porque o grau de violência e de exclusão provoca novas

leituras do quadro social. Há claramente, por parte do poder instituído, uma

tolerância para que coisas ocorram nesse ritmo. Com alocação efetiva de recursos e

de pessoas, parte do êxito desse projeto deve-se ao momento em que foi deflagrado.

Dificilmente ele teria o mesmo êxito na década de 70.

Essa conjuntura favorável que viabilizou e imprimiu com cores fortes o caráter

estrutural do projeto. Sua força tem origem na forma como demonstra a possibilidade

de trabalhar com setores historicamente alijados tanto do mercado informal quando do

formal.  Toda a discussão que se trava em torno do cooperativismo popular hoje

aponta para soluções ou levanta a discussão de questões estruturais.

Em função dessa discussão e da nova conjuntura que a possibilita foi que o

Ministério do Turismo entendeu que esta seria a melhor alternativa para implantar seu

novo modelo de desenvolvimento na região do Parque Nacional Serra da Capivara.

“Paralelamente a isso, nós tínhamos uma sistematização, um


indicativo, até porque a secretária e a diretora tinham vindo do
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Então,
tinha no diagnóstico a participação, essa coisa de fortalecer as
iniciativas econômicas locais.[...]Como se faz esse
fortalecimento das iniciativas econômicas locais?[...]Nós
traduzimos isso na agenda de ações como uma proposta de
incubação, que era muito influenciada até pela incubação que
acontece com tecnologias sofisticadas e na área industrial da
qual, tanto a secretária com a diretora do departamento,tinham
experiências com o desenvolvimento de políticas para essa área
[...]No volume de documentos não tinha muita especificação do
que seriam esses projetos de incubação. Aí, em janeiro e
fevereiro de 2005, sob minha responsabilidade, comecei a

92
pesquisar. Eu conhecia um pouco de pesquisas e iniciativas, de
geração de trabalho e renda. Fui ver o que o governo federal
estava fazendo e sabia das iniciativas de economia solidária.
Marquei reuniões na Secretaria Nacional de Economia
Solidária, no Departamento de Fomento à Economia Solidária,
porque ali eles trabalhavam com incubação de cooperativas
populares. Marquei reunião com diretor do departamento e com
um dos coordenadores, e a gente começou a desenhar uma
proposta de incubação de cooperativas populares, em conjunto
com a Secretaria Nacional de Economia Solidária. Nós iríamos
implementar essa proposta por meio da Secretaria Nacional de
Economia Solidária, mas por razões de ordem burocrática não
foi possível, porque não tinha os mecanismos ou instrumentos
formais para a execução e tínhamos orçamento para isso e
quando eu faço essa pesquisa da questão de incubação de
cooperativas ou mesmo a questão dos empreendimentos de
economia solidária, você tem ali a incubadora de cooperativas
populares que é do projeto, que é do PRONINC, que é das ações
de 95/96, que aqui foi financiado pela FINEP. E você cai nas
experiências mais bem sucedidas ou mais próximas de serem
bem sucedidas, mais pioneiras, que são as da ITCP
COPPE/UFRJ. Fui procurar o coordenador que é o Gonçalo
Guimarães e, aí como eu tinha agenda de reuniões de outras
ações no Rio de Janeiro e tinha o aval da Secretaria Nacional
de Economia Solidária, porque um dos técnicos que trabalhou
conosco na Secretaria Nacional de Economia Solidária, tinha
vindo do governo do Rio Grande do Sul e conhecia as
experiências de Caxias e do próprio governo do RS, fui
procurar a coordenação da ITCP, com um projeto que eu tinha
pra incubação de cooperativas e disse pra ele que eu precisava
implementar aquilo aí ele colocou que aceitava o desafio, me
contou um pouco o que eles faziam, como eles faziam, e ele me
apresentou a metodologia de incubação, achava que dava
incubação via remota e ali ele faz uma proposta de implementar
dentro das diretrizes que a gente tinha dado do projeto que a
gente desenhado, os projetos para o Piauí e maranhão. Neste
primeiro momento a gente só faz o convênio, de acordo com a
disponibilidade orçamentária que a gente tinha naquele
momento, só para esses dois territórios” (SILVA, 2008)

3.5. A Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares na Serra da Capivara

Segundo Gonçalo Guimarães, coordenador geral da ITCP/COPPE/UFRJ, o

projeto proposto pelo Ministério do Turismo apresentava dois desafios. O primeiro

93
deles era trabalhar especificamente com uma cadeia produtiva definida, em um setor

definido - o turístico.

“Então era buscar não o empreendimento pelo empreendimento,


mas o empreendimento na medida em que o turismo fosse a
identidade dele. Ele não era restritivo, mas era uma diretriz que
seria importante, porque alinharia as ações de fortalecimento
do turismo, aos empreendimentos. Quanto mais ela se
aproximasse do setor turístico, mais ela teria possibilidade de
agregar outras políticas desenvolvidas na região. Então esse
era um desafio. Então não era trabalhar com empreendimento,
mas empreendimento/cadeia produtiva do turismo.”
(GUIMARÃES, 2008)

Para este desafio encontraremos em HAMEL (1990) uma base teórica que

consolida essa proposta quando agregada ao conceito de trabalho decente defendida

por SACHS (2004) e exposta no capítulo anterior, onde o objetivo do desenvolvimento

não seria tanto promover a cidade enquanto um negócio rentável, mas atender às

necessidades sociais pelo alargamento da democracia local em direção à dimensão

econômica, se situando, por exemplo, em programas de fomento ao emprego e de

reinserção social voltados para segmentos marginalizados e trabalhadores pouco

qualificados, como é o caso da Serra da Capivara.

O segundo desafio era a localização dos empreendimentos - no sertão do Piauí,

muito distante da sede da ITCP, no rio de Janeiro. Para se ajustar à nova realidade, a

coordenação da ITCP optou por aprimorar a metodologia utilizada em anos anteriores

no Rio Grande do Sul, com a formação de equipes locais, no local.

Desse modo, o primeiro passo foi a instalação de uma sede do projeto, com o

objetivo dele se tornar um ponto de referência,

“Nós achávamos que além do trabalho de consultoria


continuada pontual, era necessário criar uma referência
institucional – o local, a equipe, é a cara, aquilo
operacionalmente, quer dizer, o fato de constante ou não
constante, não sei em que nível isso mudaria, poderíamos ter

94
reuniões quinzenais, talvez até com mais intensidade do que
propriamente uma equipe local, o fato de existir uma equipe
local, era ter a construção de uma equipe local, de um
estabelecimento, de um ponto como referência institucional.
Aquilo seria um novo marco para que os cooperados ou o grupo
do entorno assim identificasse aquela como uma ação
diferenciada do treinamento, da qualificação que era histórico.
A gente queria construir outra imagem não aquele que vai fazer
consultoria, mas aquele que trabalho é continuado. Pra ter essa
visão se fazia necessário para se ter uma institucionalidade
local.” (GUIMARÃES, 2008)

Como já foi colocado no capítulo anterior, existe uma “ordem local”

diretamente associada ao cotidiano das pessoas, cujos parâmetros são a co-presença, a

vizinhança, a intimidade e a cooperação (SANTOS, 1996:272).

Essa escala humana que se identifica pela relação entre as pessoas e entre estas

e o seu entorno (ambiente, empresas e instituições), pautada na interdependência e na

comunidade de interesses e principalmente no cotidiano conflitante e solidário vivido

em comum, corrobora o segundo ponto importante para que a equipe técnica fosse

local, pois a questão da linguagem e do entendimento da realidade local é fundamental

para a execução do trabalho.

Outro ponto considerado foi que, na possibilidade de continuidade do projeto,

já haveria quadro local que pudesse dar seguimento às atividades.

“Então o que moveu a construção da equipe local não foi a


questão de custo, mas a construção do caráter institucional.
Essa foi a primeira diretriz que a gente achou importante ter,
que foi em cima da experiência do Rio Grande do Sul, foi muito
importante – a linguagem, a identidade local e várias outras”
(GUIMARÃES, 2008)

Um diferencial na proposta do MTUR em relação aos empreendimentos residiu

no fato de que a prioridade não estava no empreendimento em si, mas na ação piloto de

construção de uma política pública. Nesse sentido, era fundamental, dentro da

95
proposta, que esses grupos fossem reconhecidos também como atores locais,

principalmente pelo poder público, na medida em que eles, organizados, podem se

tornar um segmento significativo da sociedade local, inclusive como atores

econômicos, através do reconhecimento não mais como grupos populares, mas como

cooperativas que atuam na cadeia produtiva do turismo.

“Um ponto chave do projeto era o cruzamento entre a demanda


de construção de uma política pública local e a construção da
institucionalidade local, porque na medida em que ela constitui
a incubadora com entidade local, como institucionalidade local,
ela começa a ser uma referência e, conseqüentemente, as
cooperativas e aqueles que estão nesse circuito começam a ter
uma visibilidade e uma leitura local como mais um ator ou um
novo ator naquela região.” (GUIMARÃES, 2008)

Em outras palavras, se as ações do projeto focassem exclusivamente o

fortalecimento de empreendimentos eles poderiam alcançar algum resultado, mas isso

não significaria que o conjunto das pessoas se constituiu em ator político local.

É necessário que as pessoas envolvidas no projeto reconheçam e passem a ter

uma identidade local como atores políticos para serem reconhecidos, inclusive, pelos

seus pares na cadeia produtiva do turismo.

“Isso é fundamental que a gente ta entendendo que esse projeto


não era de fortalecimento do empreendimento, mas sim de
desenvolvimento local e aí eles tinham que se constituir como
ator político local e não simplesmente uma cooperativa ou um
empreendimento bem sucedido no plano econômico e aí nessa
perspectiva, a institucionalidade da incubadora ela é chave,
porque o primeiro passo pra constituição desses atores foi
construir a própria incubadora com ator local, o que se não
tivesse escritório, seria impossível construir essa referência.”
(GUIMARÃES, 2008)

Esse é um ponto chave para este trabalho, pois ele vem sendo destacado ao

longo dos dois primeiros capítulos - a importância que o lugar e o compartilhamento

do território “identificado por uma consciência social” (MARTINS, 2007:03) tem para

96
que as pessoas possam se identificar com sua cultura e sua história. Desse modo,

reforça-se aqui a idéia de que o sentimento de pertencimento ao lugar é fundamental

para a consciência individual e coletiva.

Entendemos que neste ponto o projeto converge totalmente com o conceito de

pertencimento de MARTINS (2007:04), citado textualmente no capítulo anterior, que

coloca que pertencimento a um lugar é um sentimento tão indispensável à pessoa

quanto pertencer a uma família ou grupo social.

Esse sentimento existe não apenas quando a pessoa se sente pertencendo a um

lugar, mas também quando consegue compreender em que medida aquele lugar é dele

também, fortalecendo o sentido de identidade, que é o processo de construção de

significados culturalmente estabelecidos e inter-relacionados.

Tal construção se configura como um processo contínuo de afirmação do

indivíduo frente à coletividade. Dessa construção resulta o sujeito, entendido como

aquele que se individualiza na construção de sua própria história ou o “ator social

coletivo” que alcança o “significado holístico em sua experiência” (CASTELLS,

2000:26).

Podemos avançar aqui no sentido de que, além das pessoas se tornarem atores

sociais coletivos, vemos que quando o projeto estabelece essas diretrizes termina por

incorporar as razões colocadas por SACHS (2004:117) para que as políticas públicas

saiam do âmbito das políticas compensatórias de cunho assistencialista e se tornem

instrumentos de geração de trabalho decente, uma vez que assim as soluções são

definitivas e geram nas pessoas uma realização profissional que resulta na elevação da

auto-estima.

97
Na medida em que a incubadora vai se instituindo como interlocutor local,

através da promoção de seminários, intercâmbios, abrindo canais de comunicação

entre as cooperativas e instituições locais, contribui para que essas cooperativas se

constituam também como atores locais.

Dessa forma fica estabelecido o diferencial entre a incubação de

empreendimento e o projeto político – que era o desafio - transformar as cooperativas

não só em um empreendimento bem sucedido, mas sim numa proposta que apontasse

indicativos para a construção de um novo modelo de desenvolvimento.

Essa linha de atuação colabora, em particular, com as cooperativas populares

da Serra da Capivara, porque estavam, à primeira vista, muito distantes do que se

poderia chamar de atividade turística.

Numa visão mais simplista, a atividade turística está ligada à hotelaria,

restaurante e guias. No entanto, as cooperativas incubadas na Serra da Capivara não

trabalham nessas áreas, estando ligadas às atividades indiretas – artesanato,

beneficiamento de frutas nativas e fabricação de produtos de limpeza.

A opção por incubá-las se deu porque, se ampliamos a visão de serviços

vinculados às necessidades da cadeia turística, elas poderiam se tornar fornecedoras de

produtos de interesse para esse nicho de mercado.

Essas cooperativas, em sua maioria, foram frutos de ações de outras entidades e

necessitavam de um aporte que o projeto poderia dar. Sob a ótica do desenvolvimento

local todas as ações de fortalecimento de grupos populares são positivas. Além disso,

as pessoas que formavam tais cooperativas já estavam a algum tempo trabalhando

juntas e sensibilizadas para o trabalho coletivo, mesmo que de forma incipiente:

“[...] eles já são os primeiros atores, de grupo popular, ao nível


de empreendimento, então o fortalecimento deles era

98
justificável. Numa visão restrita de atividade turística, ou seja,
se tivesse a leitura simplista de que quem trabalha com limpeza
não é turismo, quem trabalha com artesanato não é turismo,
primeiro precisaríamos construir novos empreendimentos;
segundo, a própria desestruturação da cadeia produtiva local
não permitia nichos de mercado para novos empreendimentos.
Daí, a questão: vamos criar o que? Além do fato que qualquer
empreendimento diretamente ligado ao turismo requer
investimento alto.” (GUIMARÃES, 2008)

A partir desse quadro, a estratégia utilizada para iniciar o processo de

incubação foi, primeiramente, reconhecer todas as ações e atividades ligadas de

alguma forma com os princípios do cooperativismo/associativismo. A seguir, detectar

empreendimentos de origem popular, criando a base política e econômica do projeto e,

na medida do possível, iniciar o engajamento desses grupos na discussão do turismo,

ou seja,

“ver o turismo não na ação direta do visitante, mas ampliar,


paulatinamente, essa visão, por exemplo, ao invés de questionar
o artesanato, melhorar o artesanato, caracterizar o artesanato
não como uma manufatura, mas colocar elementos da cultura
local ou dos atrativos turísticos na forma que ele se encaixe no
turismo, dando continuidade a isso a criação de pontos
estratégicos que aliem a esse potencial ao próprio turismo,
como lojas de artesanato no meio do circuito turístico”
(GUIMARÃES, 2008)

Desse modo, a estratégia foi fortalecer o que já existia e também construir uma

rede, uma interlocução entre esses empreendimentos, mesmo que tivessem origens e

atividades econômicas distintas.

Posteriormente, potencializar esses empreendimentos a partir da sua

organização, de modo a se tornarem interlocutores do plano econômico, foi tarefa

do projeto. O propósito era que, ao final do projeto em 2008, houvesse uma base

econômica, organizativa e política.

99
Outro diferencial e desafio da proposta foi o fato da microrregião de São

Raimundo Nonato ser, em sua grande maioria, de origem rural, de atividade rural. Até

o momento a ITCP/COPPE/UFRJ, havia concentrado suas atividades em áreas

urbanas, com problemas urbanos. Aqui, ressaltamos que estamos nos utilizando da

discussão posta no capítulo anterior para denominar a microrregião como sendo de

origem rural.

O desafio de se trabalhar na área rural criou a necessidade de readequar a

metodologia, porque o tempo, a linguagem, os produtos têm outra dinâmica, quer

dizer,

“Fazer uma reunião ou treinamento na área urbana é uma


coisa, na área rural é outra. Esse desafio foi enfrentado na
medida em que a opção por uma equipe local, formada por
pessoas que já tinham experiência na área rural consegue
responder a essa demanda. Por exemplo, o técnico de fora teria
um tempo, um compasso pra trabalhar, que na área rural teria
que ser outra. Então esse desafio da área rural, ele foi resolvido
à medida que a própria equipe era dali”. (GUIMARÃES, 2008)

Por fim, confirmando os dados levantados no diagnóstico inicial, outro desafio

imposto ao trabalho de incubação foi vencer a própria descrença das comunidades, dos

grupos organizados e mesmo dos que têm atividades econômicas em projetos ou

intervenções externas.

A razão dessa descrença reside no fato apontado no documento inicial que deu

origem ao projeto, que é o fato desse território já ter sofrido várias intervenções ao

longo do tempo, inclusive com projetos de peso, projetos de qualidade, mas, que foram

incapazes ou insuficientes para mudar a dinâmica local.

De fato, até o momento não se fez uma avaliação mais detalhada desse

insucesso. O que se coloca de maneira informal é a visão generalizada de este

insucesso ocorreu em conseqüência do despreparo e desinteresse da população.

100
“Todos que nós vimos que eram projetos bem estruturados, não
eram projetos que questionaríamos pela qualidade, porém a
avaliação sempre foi tendenciosa, de colocar como o fracasso,
o término, a não continuidade uma conseqüência direta das
comunidades seja pelo seu nível educacional, seja pelo que eles
chamavam de ignorância, isso gera uma descrença e uma
desconfiança por parte da comunidade.” (GUIMARÃES, 2008)

Entretanto, é notório que o despreparo é mensurado dentro dos moldes de um

modelo de desenvolvimento neoliberal que não condiz com a realidade nem com as

necessidades da população. Quanto ao desinteresse, é motivado pela distância existente

entre as necessidades impostas pelos projetos anteriores e a população.

Novamente Milton Santos oferece uma referência importante para a discussão

acerca das possibilidades do desenvolvimento local, de modo a amenizar, senão

resolver essa dicotomia, pois apresenta um enfoque que introduz como fator decisivo -

o reconhecimento das particularidades de cada território e dos grupos sociais que aí

vivem e trabalham.

Quando reconhecemos a pluralidade de interesses e os conflitos presentes, é

possível apontar para novas construções do que se entende por interesse comum, por

interesse público. Segundo o autor,

“[...] é a partir do espaço geográfico que se dá a solidariedade


orgânica; tais atividades, não importa o nível, devem sua
criação e alimentação às ofertas do meio geográfico local
[…]na verdade, mudadas as condições políticas, é nesse espaço
banal que o poder público encontraria as melhores condições
para sua intervenção. Trata-se, aqui, da produção local de uma
integração solidária, obtida mediante solidariedades
horizontais internas, cuja natureza é tanto econômica, social e
cultural como propriamente geográfica. A sobrevivência do
conjunto, não importa que os diversos agentes tenham
interesses diferentes, depende desse exercício da solidariedade,
indispensável ao trabalho, e que gera a visibilidade do interesse
comum.” (SANTOS, 2000:110).

101
O conceito de solidariedade horizontal interna também foi norteador para

análise dos dados no próximo capítulo, onde verificamos se as cooperativas, a partir do

projeto, alcançaram algum nível de integração solidária nos aspectos econômico, social

e cultural.

102
Capítulo 4: COOPERATIVAS DA SERRA DA CAPIVARA: análise dos dados

4.1 – Cooperativas Populares da Serra da Capivara

O início das atividades na região Serra da Capivara data de março de 2006,

tendo como primeira atividade a seleção de grupos produtivos com perfil necessário

para o processo de incubação. Essa seleção foi realizada com os técnicos e instrutores

de outras instituições como, por exemplo, a Cáritas Diocesana, o SENAC e o

SEBRAE, que já desenvolviam alguma atividade com esses grupos.

A segunda ação foi a aplicação dos questionários de avaliação e

monitoramento individuais e por empreendimento, que serviu de base para

diagnosticar a situação do grupo no momento de ingresso no processo de incubação.

No decorrer do primeiro ano da ação, cinco grupos foram desincubados por

não terem cumprido as exigências do termo de compromisso, assinado no início da

ação. Os quatro restantes permaneceram até o fim do projeto, em março de 2008,

superando as muitas dificuldades. É sobre esses quatros grupos que trataremos a

seguir.

4.1.1. Breve histórico

Neste tópico nos preocupamos apenas em situar o leitor quanto à formação dos

grupos sua trajetória, até serem incubados. A caracterização dos cooperados será

objeto do perfil sócio-econômico e a evolução dos grupos dentro do projeto será

apresentada na seção seguinte.

103
4.1.1.1. COOPERART

Cooperados em reunião.Detalhe. Foto:ITCP

A COOPERART existe desde o ano de 2000 e é resultado da união dos

artesãos da microrregião de São Raimundo Nonato. Durante esses anos o grupo

enfrentou muitas dificuldades como, por exemplo, grande rotatividade de seus

componentes, falta de condições para concluir a construção da sede, entraves no

processo de legalização, que só foi finalizado no início de 2008.

Atualmente ela é composta por 27 cooperados, entre homens e mulheres,

divididos em cinco núcleos produtivos: madeira, reciclagem de resíduos sólidos,

argila, costura, bordado, crochê e trançado em palha.

A COOPERART passou a integrar o projeto de incubação no final de 2006.

4.1.1.2. COOPEARTFRUT

104
Cooperados em reunião. Detalhe. Foto:ITCP

A Cáritas Diocesana desenvolve no município de Cel. José Dias um projeto

chamado FECUNDAÇÃO. Dentro desse projeto, uma das ações foi formar a

população local no beneficiamento de frutas nativas, principalmente o umbu. Essa

formação aconteceu em todos os distritos do município e possibilitou a criação de

pequenos núcleos produtivos de unidade familiar.

Com a divulgação do projeto de incubação no município, três núcleos se

interessaram em participar, mas isoladamente não seria possível, porque eram

compostos por um número inferior ao mínimo solicitado no projeto. Como estratégia,

eles se uniram e formaram um único grupo, embora as comunidades onde eles vivam

sejam bem distantes uma das outras.

Inicialmente o fator da distância não foi entrave para o trabalho, porque

optaram em se reunir na sede do município. Cada comunidade fica distante em média

quinze quilômetros, percorridos de bicicleta, muitas vezes no horário mais quente do

dia, uma vez que as reuniões tinham que acontecer de forma a não interferir na rotina

da unidade produtiva.

105
Entretanto, as relações sociais do grupo eram mais frágeis que as relações

familiares dos núcleos e as divergências entre os grupos foram se acentuando, o que

provocou a primeira desmobilização da cooperativa.

Essa desmobilização criou um impasse a respeito da permanência ou não no

projeto, já que a cooperativa poderia ser desvinculada e desligada pela pouca

quantidade de participantes.

O núcleo familiar da comunidade do Sítio do Mocó tentou mobilizar um grupo

de bordadeiras da sede do município para manter a cooperativa no projeto, sem

sucesso. Esse foi o segundo momento de desmobilização do grupo.

Por fim a cooperativa se constituiu com o número mínimo de 15 pessoas, todas

da própria comunidade, e permaneceu incubada.

4.1.1.3. ECOART

Cooperados chegando para reunião. Foto:ITCP

106
João Costa é um município que faz limite com a área norte do Parque, onde

não é permitida nenhuma atividade de exploração turística por ser área de proteção

integral, de acordo com o Plano de Manejo. Em virtude disso e da distância de São

Raimundo Nonato, as ações do projeto de incubação tiveram outra dinâmica nesta

localidade.

A partir de maio de 2006 várias visitas foram realizadas no município para

divulgar o projeto e sensibilizar grupos em potencial. Contudo, nessa primeira fase

nenhum grupo demonstrou interesse.

A iniciativa de uma funcionária da prefeitura deu origem à formação de um

grupo que, posteriormente, foi incubado. Ela reuniu as crocheteiras da sede e as da

comunidade do Cambraia. A distância entre os grupos se tornou um entrave diante da

disputa na escolha para o local das reuniões, que só ocorria com a presença dos

técnicos da ITCP.

O afastamento da representante da prefeitura por motivos de saúde

desmobilizou as crocheteiras da sede, que abandonaram o grupo.

Inconformadas com a desistência em massa, quatro jovens da comunidade

Cambraia resolveram rearticular o grupo somente com integrantes da própria

comunidade. Essa é a formação que permanece até hoje, mesmo com o término do

projeto.

107
4.1.1.4. COOPELZABELÊ

Cooperadas em reunião. Detalhe. Foto:ITCP

A COOPELZABELÊ se reúne desde outubro de 2003, quando suas integrantes

terminaram o curso de fabricação de produtos de limpeza oferecido pela SASC 9, no

assentamento Novo Zabelê, com objetivo de aumentar a renda familiar. Este grupo,

inicialmente, era formado somente por mulheres.

No início, para fabricar os primeiros lotes de produtos, o grupo cotizou os

custos entre as integrantes e promoveu bingos para a criação de um fundo.

Posteriormente conseguiram um empréstimo através do Projeto Economia Solidária

para obtenção de capital de giro, que muito contribuiu para o fortalecimento do grupo.

Entretanto, o grupo tem uma situação instável porque seus produtos precisam

ser registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), o que implica

em adequações de uma ordem complexa para a sua realidade.

Inicialmente os produtos precisam passar por análises sistemáticas por lotes e

ter o aval de um bioquímico, contudo, na região não há profissionais com esta

9
Secretaria de Estado de Assistência Social e Cidadania

108
qualificação, nem laboratórios com essa competência. Tais análises obrigatoriamente

deverão ser feitas em Teresina, o que onera os custos.

Outro ponto de estrangulamento na certificação dos produtos é a necessidade

do grupo construir uma unidade de produção que obedeça rigorosamente às normas

estabelecidas pela ANVISA.

Para entrar formalmente no mercado, o grupo deverá legalizar a cooperativa

para que consigam o CNPJ e possam emitir nota fiscal, o que torna o custo da

atividade alto para um grupo de mulheres assentadas.

Tais entraves não foram levados em consideração no planejamento da ação.

Este é um bom exemplo de projetos que focam apenas na capacitação do indivíduo

sem considerar os desdobramentos da ação – não poderão aumentar a renda sem que

haja condições necessárias para atuarem formalmente no mercado.

Ainda assim, a cooperativa funciona em condições precárias e consegue criar

alternativas de superação dos entraves para a produção e comercialização dos seus

produtos.

4.1.2 - Perfil Sócio-Econômico

A partir dos dados levantados nos questionários individuais de avaliação e

monitoramento, aplicados ao longo do processo de incubação, montamos o perfil

sócio-econômico dos cooperados atendidos pelo projeto.

4.1.2.1. SEXO

109
Fonte ITCP/COPPE/UFRJ

O primeiro ponto que destacamos é a predominância feminina nos grupos

(78%). Esse ponto merece destaque porque, quando comparamos com a amostra do

IBGE (2007) por município, verificamos que a maioria da população é masculina.

Os dados do IBGE apontam que somente no município de São Raimundo

Nonato a população feminina é maior (52%). Em Cel. José Dias e em João Costa,

mesmo sendo pequena a diferença, a maioria da população é masculina (53% e 55%,

respectivamente). Entretanto, quando os dados dos municípios são somados há uma

equiparação entre os gêneros (50% para cada).

Os dados nos mostraram que as mulheres que participam das cooperativas o

fazem por duas motivações: contribuir com a renda familiar e garantir o sustento da

família. Neste caso, mesmo sendo casadas, elas se declaram como as principais

responsáveis pela família.

4.1.2.2. IDADE

110
Fonte: ITCP/COPPE/UFR

Em relação à faixa etária, 59% dos cooperados são adultos e estão

compreendidos entre 30 e 49anos. O perfil etário acompanha a tendência da região e as

faixas de maior representatividade são as consideradas a fase adulta.

Contudo, tem ocorrido com maior freqüência a adesão dos jovens ao trabalho

cooperativista, representando hoje uma parcela significativa de 27% do total dos

cooperados, o que nos leva a afirmar que um dos pontos positivos do projeto foi a

inclusão da população jovem no mercado de trabalho através das cooperativas.

A participação de jovens contribuiu para o sucesso do projeto, uma vez que

são mais despojados de pré-conceitos, estão mais abertos às novas propostas que

possam lhes trazer uma perspectiva de vida diferente da que os pais tiveram e

contribuem para a melhoria dos resultados nos cursos de formação devido ao melhor

grau de instrução que têm em relação aos pais.

4.1.2.3. COR/RAÇA

111
Fonte: ITCP/COPPE/UFRJ

Neste tópico será adotada a terminologia de “afrodescendente” para representar

o somatório dos que se declaram negros e pardos, perfazendo um total de 63% das

pessoas envolvidas no projeto.

Um ponto a ser destacado é o fato de 4% das pessoas se declararem indígenas.

Elas são moradoras da localidade do Sítio do Mocó e, depois do trabalho de resgate da

cultura e história local, passaram a se reconhecer como descendentes dos antigos

moradores da região - os indígenas - e se assumem como tal. Esse é um dado

significativo no reconhecimento de pertencimento ao local.

Ao contrário do que os livros didáticos ensinam - que no Piauí não existe mais

nenhuma nação indígena - elas estão espalhadas pelo estado e embora não falem mais

a língua mãe, não vivam em aldeias, sejam pobres, não possuam terras demarcadas e

sejam superexpostas aos elementos de uma cultura diferente (aculturadas), ainda

guardam traços de sua origem e se reconhecem como índios. Esta é a população

indígena do Piauí, que de acordo com o censo do IBGE de 2000 contam com mais de

dois mil representantes.

112
Com relação à declaração de cor ou raça, o perfil dos cooperados não

difere da população residente na região que, em sua grande maioria, se declara parda.

4.1.2.4. ESCOLARIDADE

Fonte: ITCP/COPPE/UFRJ

O grau de escolaridade dos cooperados apresenta duas situações opostas e

interessantes: 33% ainda não concluiu o Ensino Fundamental e 40% concluiu o Ensino

Médio.

Da mesma forma essa oposição se estende aos extremos, uma vez que

encontramos entre os cooperados 2% de analfabetos e 2% que concluíram o ensino

superior, o que nos leva a concluir que em relação à escolaridade temos um quadro

heterogêneo.

Novamente estabelecemos a relação idade/escolaridade, pois verificamos que nas

cooperativas que concentram maior número de jovens a escolaridade é maior e nas

cooperativas que prevalecem os adultos a escolaridade é menor.

113
4.1.2.5. RENDA

Distribuição da renda pessoal média, em salários mínimos, e sua composição na renda


familiar por cooperativa.
COOPERATIVA Renda Pessoal Salários Renda familiar Salários %
Média Mínimos Média Mínimos

COOPERART 252,60 0,66 616,64 1,62 40,96


ECOART 202,93 0,53 764,53 2,01 27,00
COOPERARTFRUT 238,89 0,63 502,83 1,32 47,51
COOPELZABELÊ 101,70 0,27 320,50 0,84 31,73
Fonte:ITCP/COPPE/UFRJ
Nota: o valor do salário mínimo usado como base de cálculo é o de R$380,00, de acordo com a Lei n° 11.498, de
28.06.2007

Uma característica marcante entre os cooperados é que, em sua grande maioria,

eles desenvolvem outras atividades ligadas às suas unidades produtivas de base

familiar como, por exemplo, criação de animais, agricultura e apicultura, o que

significa dizer que a atividade da cooperativa se agrega a um universo já estabelecido,

visando o aumento da renda.

Uma questão que deve ser ressaltada é o fato de que, em média, os

rendimentos, mesmo sendo abaixo do desejado, já têm uma importância significativa

dentro do orçamento das famílias.

A COOPERART, onde a maioria declara ter no artesanato a principal

atividade, apresenta os maiores índices de renda pessoal. Já a ECOART, onde os

jovens se inseriram no mercado de trabalho através da cooperativa, apresenta o maior

índice de renda familiar. Contudo, a COOPELZABELÊ, que é composta pelas pessoas

mais velhas e de menor escolaridade, apresenta os menores índices, tanto pessoais

como familiar.

4.1.2.6. Trabalho

114
33,3% dos cooperados declararam trabalhar antes de entrarem no

empreendimento e atestaram ter como atividade principal a agricultura. Mesmo depois

de ter entrado para o empreendimento, o “trabalho na roça”, como eles dizem,

continua sendo a principal atividade.

Entretanto, um dado interessante a ser destacado é o fato de que no universo

que compõe os 66, 7% que não têm a agricultura como atividade principal, 53,8% são

moradores da zona rural e a família mantém uma unidade produtiva.

As pessoas desse universo da pesquisa, mesmo não trabalhando na roça, pertencem a

famílias de agricultores, corroborando nossa afirmativa de que o público envolvido no

projeto é formado por agricultores familiares.

Duas observações importantes: dentre aqueles que mantêm outra atividade fora

do empreendimento, a maioria informa que exerce atividade por conta própria e sem

garantias trabalhistas. Daí, uma das motivações para entrar para a cooperativa se deve

à compreensão de que, através de ações coletivas, eles poderão conseguir assegurar o

futuro, ainda incerto.

Entre os que não trabalham por conta própria, somente uma minoria tem

registro em carteira. Esse fato demonstra que um dos propósitos do projeto é atingido,

pois através da formação, consolidação e legalização das cooperativas abre-se um

caminho para a inserção de grande parte dessas pessoas, hoje excluídas e sem

garantias, no mercado formal de trabalho.

Entrar para o mercado formal de trabalho é mais que aumento de renda, é o

reconhecimento de sua cidadania, dos seus direitos e deveres.

4.2 – Análise dos Dados

115
Nesta seção iremos analisar os dados gerados a partir dos questionários

individuais e de empreendimentos. Esses dados foram reagrupados de acordo com os

pontos norteadores mencionados no capítulo anterior: inclusão pelo trabalho decente,

auto-estima pelo cumprimento pleno da cidadania e estabelecimento de uma rede de

solidariedade horizontal no território.

4.2.1. Inclusão pelo trabalho decente

Tomando por base a idéia de que é possível criar estratégias de

desenvolvimento que assegurem a inclusão social dos excluídos no sistema produtivo,

através do trabalho decente, como uma medida definitiva (SACHS, 2004:116),

selecionamos entre os indicadores do sistema integrado de gestão (SIG) da ITCP

aqueles que possam nos demonstrar que o projeto de incubação tem elementos que

certificam essa idéia.

Inicialmente analisamos o indicador de viabilidade econômica, que mensura e

monitora o potencial das cooperativas enquanto negócio. Este indicador é composto

pelos subindicadores: grau de legalização e formalização do empreendimento,

comprometimento dos sócios, estrutura de produção, garantia de direito à renda e

proteção social, comercialização, melhorias tecnológicas e evolução da renda.

Essa escolha se justifica por entendermos que o sucesso do empreendimento é

a garantia de trabalho e, portanto, a permanência dos cooperados no sistema produtivo.

Contudo, antes de entrarmos na análise dos dados por cooperativa, vamos tratar

da experiência das COOPERLOJAS, uma estratégia montada durante o processo de

116
incubação que modificou tanto os resultados das cooperativas como obrigou a equipe

técnica a readequar a metodologia.

4.2.1.1. COOPERLOJAS

Detalhe da COOPERLOJA do Mercado do Produtor


Foto:ITCP

No projeto desenhado para a Serra da Capivara, dada suas fragilidades em

relação à manutenção das atividades turísticas como forma de geração de trabalho e

renda, o objetivo principal era a criação de uma central de negócios que possibilitasse

ao público atendido pelo projeto não só escoar seus produtos, mas, também, a sua

sensibilização para a profissionalização das atividades até então consideradas

secundárias.

O primeiro ano de projeto focou no fortalecimento dos grupos ao nível do

indivíduo e do empreendimento. Contudo, havia a necessidade de se avançar no

processo e atingir resultados até então não alcançados.

117
Em maio de 2007 a ITCP contava com um espaço ocioso numa área central da

cidade de São Raimundo Nonato e, neste momento, já era sabido que o maior

problema para as vendas das cooperativas era o escoamento dos produtos. Dessa

forma, foi proposto um desafio – em sistema de mutirão, montar uma loja no espaço

da ITCP, num prazo de quinze dias.

Para superar esse desafio os cooperados se organizaram e levantaram o que

cada um disponibilizava para a montagem da loja. Foi com surpresa que constataram

que tinham todo o material necessário: estantes, balcões, expositores.

O levantamento também mostrou que eles tinham em suas casas produtos

suficiente para abastecer a loja. No prazo estabelecido a loja estava montada no anexo

do escritório da ITCP.

Inauguração da primeira COOPERLOJA. Foto ITCP

118
Com a abertura da loja, questões tratadas em cursos como controle de caixa,

controle de estoque, controle de qualidade de produto, cálculo de preço por produto,

marketing, entre outros, ganharam o espaço da aplicabilidade.

Isso fez com que os cooperados compreendessem a importância da aquisição

do conhecimento e obrigou a equipe a sair do campo teórico e compreender a dinâmica

comercial na prática. Esse intercâmbio de saberes foi fundamental para a continuidade

do projeto na área e na conquista dos seus resultados.

A partir da expressão “saber global, saberes locais”, tomada de empréstimo ao

antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1986), a revalorização dos temas

cotidianos, as metodologias qualitativas e a proximidade com os agentes da base nos

levam a observar um vaivém entre diferentes movimentos sob a influência de

dinâmicas científicas, políticas e profissionais.

A COOPERLOJA tem uma característica muito particular de interação,

proporcionando a aproximação e a troca de saberes não apenas entre os cooperados-

técnicos, mas, sobretudo entre os próprios cooperados.

O “espaço-loja” tem proporcionado conhecimento e experiências aos

cooperados, fato que dificilmente poderia ocorrer se fossem utilizados canais de

comercialização mais individualizados, como mostra o depoimento de Mário Paes

Landim:

“É uma forma que os artesões encontraram de produzir seus


próprios produtos e vender diretamente pros consumidores. É
uma forma de ganhar mais e uma forma dos artesões deixar de
passar pros atravessadores, tendo mais valor seus produtos. E
trabalhar em mutirão é uma forma de manter todos unidos,
fazer intercâmbio muito positivo pra todos.”

119
O entusiasmo de ter superado o primeiro desafio levou os cooperados a

desejarem novos desafios.

O próximo desafio foi abrir a segunda loja, através de um acordo com a

prefeitura municipal de Cel. José Dias, que cedeu um prédio localizado na estrada que

dá acesso à principal entrada do Parque Nacional Serra da Capivara, onde por anos

funcionou a primeira escola da comunidade Sítio do Mocó.

O prédio estava praticamente em ruínas e os cooperados propuseram ao

prefeito sua reforma em sistema de mutirão, se este disponibilizasse o material. Com o

acordo fechado, as obras tiveram início e no final de junho de 2007 os cooperados

inauguraram sua segunda loja.

Colocação da placa indicativa. Cooperloja Sítio do Mocó. Foto:Vânia Sanches

O sucesso da iniciativa trouxe desdobramentos para os cooperados, como a

instalação de um “show room” na ITCP/COPPE/UFRJ, no Rio de Janeiro, a aquisição

de um ponto na nova rodoviária de São Raimundo Nonato e a abertura de uma terceira

loja em João Costa.

120
Porém, o maior ganho que esta iniciativa trouxe aos cooperados foi a assinatura

de um contrato de comodato por cinco anos com a Prefeitura Municipal de São

Raimundo Nonato. Com isto a prefeitura transferiu para os cooperados o prédio do

Mercado do Produtor, na área central da cidade, onde funcionava a antiga rodoviária.

Hoje o escritório da ITCP também funciona neste prédio.

Detalhe da fachada do Mercado do Produtor. Foto:ITCP

Com a iniciativa da prefeitura municipal de São Raimundo Nonato, a prefeitura

municipal de Cel. José Dias também está regularizando a situação do prédio cedido,

com um contrato de comodato semelhante ao assinado com a prefeitura municipal de

São Raimundo Nonato.

Dessa forma, entendemos que tal estratégia está em harmonia com a idéia de

que, quando criamos espaços que garantam o direito ao trabalho e este oferece

oportunidade para a auto-realização do indivíduo, este avança na escala social e amplia

seus direitos de cidadão.

Relembrando as palavras de SACHS (2004:117), o desenvolvimento deve

compatibilizar duas vertentes – no nível econômico, diversificar e complexificar as

121
estruturas produtivas; no nível social, ao contrário, promover a homogeneização da

sociedade, reduzindo as distâncias sociais.

A estratégia de criação da COOPERLOJA atingiu esses dois níveis dentro da

dinâmica local do território.

4.2.1.2. Análise por cooperativa

A partir de agora vamos demonstrar, com base no indicador de viabilidade

econômica e nos dados levantados ao longo do projeto, como cada cooperativa evoluiu

neste aspecto. Entretanto, salientamos que somente este ponto será tratado dessa

maneira por entender que cada cooperativa teve suas especificidades em relação aos

aspectos econômicos.

4.2.1.2.1. COOPERART

Viabilidade Econômica:
COOPERART

5,5 5,0
4,8
5,0 4,7
4,4
4,5
4,0
2006.1 2006.2 2007.1 2007.2

Fonte: SIG ITCP/COPPE/UFRJ

De maneira geral este indicador demonstra uma flutuação ao longo do projeto,

mas, quando comparamos os dados do primeiro e do último levantamento, verificamos

que houve um aumento de 30% na viabilidade econômica.

122
No processo de fortalecimento do grupo, um ponto importante e que foi

insistentemente trabalhado foi a relação de compromisso que os cooperados deviam ter

com a qualidade dos produtos e a organização do trabalho dentro da cooperativa, de

modo a atender melhor e no prazo, seus clientes.

Nesse processo, uma mudança significativa foi que inicialmente os cooperados

trabalhavam em suas casas e só tinham algum controle sobre sua própria produção.

Apesar disso, na primeira intervenção de avaliação, a grande maioria considerou que a

estrutura de produção era plenamente satisfatória.

Com o processo de sensibilização, através dos cursos e a administração e

manutenção das COOPERLOJAS, os cooperados foram despertados para questões

centrais em relação à cooperativa, como a construção do projeto cooperativo 10, ou seja,

a necessidade de se elaborar um planejamento estratégico.

Na elaboração do plano estratégico os cooperados reestruturaram a produção,

criando os núcleos de madeira, palha, reciclagem, crochet, bordado, costura e

cerâmica.

Na última avaliação, quando questionados sobre a estrutura de produção, os

cooperados consideraram que esta não satisfazia as necessidades da cooperativa,

contrariando a opinião dada na primeira avaliação.

Entendemos que essa mudança de posicionamento deve-se ao aumento da

demanda, sendo então necessário manter os estoques e as lojas abastecidas, e ao

aumento, com a exposição dos produtos nas lojas, dos convites e das oportunidades de

participarem de feiras e eventos, tanto na região como fora dela.

10
Projeto Cooperativo é uma ferramenta fundamental dentro da metodologia de incubação. É um
documento construído coletivamente. Para sua elaboração são realizadas sete oficinas onde se inicia
com o resgate da história do grupo e avança até a elaboração do plano de ação de cooperativa para curto,
médio e longo prazo. O documento é revisado de seis em seis meses.

123
No que tange ao investimento tecnológico no empreendimento, a

COOPERART fez modificações nos seus produtos, ao perceberem que o nicho de

mercado importante do artesanato é o dos souvenires ligados ao Parque Nacional Serra

da Capivara. Até a criação das lojas e sem uma visão empresarial, mesmo que

incipiente, os artesãos não identificavam essa realidade.

A falta de percepção inicial quanto a importância de adequar a produção em

função do Parque Nacional Serra da Capivara devia-se ao desconhecimento sobre sua

história. Uma pesquisa realizada entre os cooperados indicou que a maioria nunca

tinha visitado o Parque, embora alguns deles tivessem vivido naquelas terras durante a

infância.

Mediante o resultado da pesquisa foi montada uma visita técnica, onde os

cooperados foram sensibilizados quanto a importância daquele patrimônio e da

necessidade de sua incorporação do mesmo nas suas peças.

A vivência de serem responsáveis por um espaço comercial também contribuiu

para que os cooperados criassem entre eles um sistema de controle de qualidade das

peças.

Esse controle de qualidade gerou um aumento da receita o que, contudo, não

proporcionou um grau de estabilidade e proteção necessárias para a manutenção dos

cooperados, uma vez que a renda obtida no empreendimento ainda está aquém da

desejada.

124
4.2.1.2.2. COOPEARTFRUT

Viabilidade Econômica:
COOPEARTFRUT

6,0 4,1 4,0 4,3


3,3
4,0
2,0
0,0
2006.1 2006.2 2007.1 2007.2

Fonte SIG ITCP/COPPE/UFRJ

Das quatro cooperativas, a COOPERARTFRUT foi a única que apresentou um

decréscimo na viabilidade econômica de -80%. Em parte essa realidade pode ser

entendida pela dificuldade geográfica e disposição do grupo para o trabalho coletivo,

que afetou a organização da produção, uma vez que os núcleos produtivos de

beneficiamento de frutas não conseguiram se integrar enquanto um grupo único, e

entraram numa disputa interna como concorrentes pela venda de seus produtos.

Os produtos são feitos nas próprias casas, em condições não muito favoráveis

para uma produção em escala. Agravando a situação, a concorrência estabelecida entre

esses grupos fez com que as diferenças no produto se destacassem, ou seja, a

cooperativa tinha o mesmo produto com cor e sabor diferenciado, de acordo com a

localidade em que era produzido.

Os responsáveis pela venda da cooperativa, para favorecer o próprio produto

depreciavam a produção do outro núcleo, não compreendendo que, dessa maneira,

prejudicavam a cooperativa de forma que na entressafra, sem matéria prima, a

produção ficou em baixa, afetando a comercialização.

Embora a cooperativa tenha avançado sob alguns aspectos em relação à

formalização e à idéia de legalização, o trabalho de incubação não surtiu efeito porque

125
na maior parte do tempo as ações giraram em torno da solução de crises internas entre

os núcleos produtivos e na continuidade da cooperativa no projeto.

Apesar de todos os percalços pelos quais a COOPEARTFRUT passou ao longo

do projeto, em 2007 ela conseguiu evoluir em relação à sua receita, custo, número de

cooperados em atividade e grau de participação dos cooperados.

4.2.1.2.3. ECOART

Viabilidade Econômica:
ECOART

6,0 4,2 4,1


4,0 3,0
1,7
2,0
0,0
2006.1 2006.2 2007.1 2007.2

Fonte: SIG ITCP/ COPPE/ UFRJ

De maneira geral, este indicador apresenta um avanço de 110% na viabilidade

econômica entre a primeira e a última aplicação dos questionários.

Entretanto, percebemos que há uma queda brusca no segundo semestre de

2006, explicada pela saída em massa dos integrantes da sede. Com a entrada de novos

membros o indicador subiu consideravelmente, atingindo a estabilização no decorrer

de 2007.

A estabilização do grupo trouxe avanços na discussão a respeito do processo de

formalização e legalização da cooperativa. Eles desenvolveram uma série de

atividades com o objetivo de arrecadar fundos para custear o processo de legalização

126
da cooperativa, e já conseguiram elaborar seus documentos internos como estatuto e

regimento.

É possível identificar que os cooperados conseguiram avançar em relação ao

compromisso para com o empreendimento. Essa identificação é feita pela melhoria na

qualidade dos produtos, pela organização e melhor distribuição do trabalho dentro da

cooperativa e por maior rigor no cumprimento dos prazos, o que acarreta um aumento

gradativo da receita, também vinculada às vendas realizadas nas COOPERLOJAS.

Mas, a exemplo dos demais empreendimentos a renda ainda não alcança os índices

desejáveis.

4.2.1.2.4. COOPELZABELÊ

Viabilidade Econômica:
COOPELZABELÊ

6,0 5,0 4,5 4,7


4,1
4,0
2,0
0,0
2006.1 2006.2 2007.1 2007.2

Fonte: SIG ITCP/COPPE/UFRJ

A COOPELZABELÊ, em termos de empreendimento, é a mais frágil, porque a

fabricação de produtos de limpeza requer um esquema mais complexo que a produção

de artesanato, uma vez que os produtos necessitam de certificação da ANVISA.

127
Inicialmente o grupo produzia apenas para consumo próprio, pois seus

produtos não despertavam o interesse nem mesmo entre os moradores do

assentamento.

As cooperadas sempre se sentiram desestimuladas e isso gerou uma

insegurança em relação à qualidade do produto. Dado este quadro, a estratégia com

esta cooperativa foi investir no fortalecimento do trabalho coletivo para garantir uma

produção constante e aprimorar as técnicas de vendas através do reconhecimento

interno da qualidade do produto. O resultado foi a elevação da viabilidade econômica

em 60%.

Outra conseqüência do descrédito que as cooperadas tinham no

empreendimento e nos produtos era o desinteresse em legalizar a cooperativa, pois

consideravam que o negócio não tinha condição de dar retorno financeiro. Desse

modo, legalizar era apenas aumentar os custos.

Nesse aspecto, um passo importante foi a assessoria de uma profissional da

área de venda de produtos de limpeza, que analisou os produtos do ponto de vista

comercial e constatou que estes não tinham qualidade inferior às marcas do mercado.

Com a valorização dos produtos, as cooperadas começaram a investir energia na

organização da produção e na criação de um fundo para custear a legalização da

cooperativa.

Após a elaboração e execução de um plano estratégico, as cooperadas

conseguiram, mesmo em condições precárias, estabilizar a produção. O passo seguinte

foi traçar estratégias de venda para o escoamento dos produtos.

128
Como parte da estratégia de entrada no mercado, as cooperadas investiram na

melhoria tecnológica com a modernização das embalagens e dos rótulos e padronizou

os produtos de acordo com cores e essências.

A melhoria na apresentação, aliada aos três novos pontos de venda – as

COOPERLOJAS - fez com que o empreendimento, que até então se mantinha com dez

mulheres conseguisse atrair novos cooperados.

Os novos cooperados são compostos de jovens, com um grau de escolaridade

maior e ficaram responsáveis pelo setor de vendas dos produtos. Eles formaram uma

equipe externa, que passou a visitar os pequenos estabelecimentos comerciais da

periferia de São Raimundo Nonato, onde os entraves legais não seriam impedimento

para que eles conseguissem, mesmo que informalmente, vender seus produtos. A

iniciativa foi além das expectativas e a cooperativa conseguiu formar uma carteira de

clientes fixos.

4.2.1.3. Uma breve reflexão

Os dados analisados apontam que o projeto de incubação ainda encara o

problema da exclusão de modo parcial. Contudo, mesmo que modestamente, ele

consegue atingir o objetivo de inclusão social, no sentido mais lato e profundo da

palavra, na dimensão central do fenômeno – a recuperação da auto-estima e de

identidade de pertencer a um grupo social organizado.

“A gente estava sem motivação para o nosso trabalho, a gente


não tinha apoio e agora a gente ta com garra para continuar
nosso trabalho e atingir nossos objetivos, porque temos as
nossas lojas, vamos para as feiras, vendemos nossos produtos”
(Oveide da Silva Campos Paes)

129
Isso prova que a inclusão, através da participação em ações coletivas, recupera

a dignidade e possibilita, além de emprego e renda, acesso aos direitos de todos os

cidadãos.

“Com o projeto a gente está bem encaminhado, fazendo


informática, porque agora a ITCP está nos apoiando, mas daqui
um tempo o projeto acaba e a gente tem que estar preparado
para gente mesmo seguir com o nosso trabalho.” (Rosileide
Rocha Brito Pereira)

Entendemos que neste aspecto a iniciativa do MTUR tem indicativos para se

firmar enquanto uma política pública pró-ativa e preventiva, através da intervenção na

área econômica com as práticas do turismo social em nível federal que permeiem as

ações dos governos estaduais e municipais, de forma que

“deverão ser aproveitadas ao máximo todas as oportunidades


de geração de empregos nos setores da economia nos quais o
crescimento puxado pelo emprego é ainda possível, ou seja, nos
quais existem margens de liberdade para escolher tecnologias
intensivas em mão de obra”. (SACHS, 2004:8. Grifos do autor)

4.2.2. Auto-estima pelo cumprimento da plena cidadania

Ao contrário do tópico anterior, onde ocorreram mudanças diferenciadas entre

as cooperativas, gerando a necessidade de uma exposição em separado, nesta seção

falaremos de modo global, pois os resultados das análises dos indicadores inclusão

social e econômica e participação política das cooperativas se apresentaram da mesma

forma.

130
Período de
  Aplicação      
Aumento
Indicadores 2006.1 2006.2 2007.1 2007.2 percentual
Inclusão social e
econômica 4,85 5,32 5,55 5,35 50%
Participação Política 6,37 6,83 6,40 6,48 11%

Fonte: SIG ITCP/COPPE/UFRJ

Pensar os processos de “exclusão” significa analisar as relações que levam à

perda ou à ausência dos direitos de cidadania.

Por cidadania entendemos os direitos sociais e civis, de acordo com Marshal

(1967). Entendemos também como a retomada da auto-estima e a possibilidade de

reconstrução de novas identidades como forma de se recuperar a dignidade e a

capacidade de lutar por seus direitos (Manzini-Covre, 1996).

Quanto à autonomia, entendemos que, através do cooperativismo, a população

da região da Serra da Capivara pode se inserir na cadeia de serviços do Turismo, o que

possibilitará o acesso às políticas públicas que podem fortalecer os empreendimentos.

O cooperativismo pode proporcionar um espaço de autonomia para esses

trabalhadores, desde que exista um espaço de co-gestão ou autogestão no

131
gerenciamento da cooperativa11. Além disso, estimula a formação do coletivo, de novas

subjetividades que dêem origem a novos atores políticos que reivindiquem seus

direitos na esfera pública.

Entendemos que para as pessoas atendidas pelo projeto, a entrada na

cooperativa favoreceu a conquista da cidadania, o acesso ao trabalho, entre outros

direitos sociais. Também permitiu que o indivíduo recuperasse a noção de auto-estima

positiva, reconstruindo uma nova identidade.

A cooperativa aparece como um lugar onde se estabelecem relações de

solidariedade e companheirismo no trabalho diário ou na vida cotidiana e estimula a

construção da autonomia dos cooperados. Contudo, ainda há a reprodução das

relações de hierarquia e de poder, inerentes às organizações e trabalhos tradicionais.

Mesmo com suas limitações, a constituição das cooperativas na Serra da

Capivara possibilitou a criação de uma nova identidade individual e coletiva e,

sobretudo, permitiu que os cooperados se tornassem novos atores políticos. Como diz

Jessé de Souza

[...] apenas através da categoria do ‘trabalho’ é possível se


assegurar a identidade, auto-estima e reconhecimento social.
Nesse sentido, o desempenho diferencial no trabalho tem que se
referir a um indivíduo e só pode ser conquistado por ele
próprio. Apenas quando essas precondições estão dadas pode o
indivíduo obter sua identidade pessoal e social de forma
completa (SOUZA, 2003:169. Grifo do autor).

Os dados nos mostram que há uma diferença significativa nas respostas dos

entrevistados, em função do gênero. Mulheres valorizam mais o trabalho da

11
Sobre a complexa relação entre trabalho e autonomia, vide CATTANI, Antonio David, Trabalho e
Autonomia, Petrópolis, Vozes, 1996.

132
cooperativa pelo aumento da auto-estima que dele advém, fruto do sentimento de

orgulho gerado pelo reconhecimento dos seus produtos.

“O que mudou foi a questão do conhecimento, a gente sabia que


o produto podia ir pro mercado, mas a gente tinha medo. Agora
a gente enfrenta o medo e está tudo dando certo” ( Maria
Francisca Sousa da Silva)

Para os homens a cooperativa se apresenta principalmente como alternativa

para o complemento da renda familiar.

“To achando bom o grupo da gente e a gente ta trabalhando


pra melhorar, ter mais comércio.” (Faustino Ferreira de Sá)

Durante todo o período que durou este trabalho, buscamos encontrar nos dados

elementos que nos permitissem estabelecer inter-relações entre a atividade

cooperativista e o exercício da cidadania que evidenciassem a força e a valorização da

ação coletiva como estratégia de resgate da identidade e da auto-estima, porque

acreditamos que o cooperativismo deve ultrapassar a visão do coletivo e satisfazer as

necessidades e desejos das pessoas individualmente.

“Significou muito pra minha auto-estima, porque aprendi a ver


as coisas com outros olhos, conhecer outras pessoas, trocar
conhecimentos e resumindo: trabalhar em grupo é muito
importante” (Rosileide Rocha Brito Pereira)

Contudo, as necessidades e desejos pessoais aparecem na fala dos entrevistados

vinculados ao coletivo. Dessa forma, entendemos que as ações coletivas fortalecem o

sentimento de pertencimento e solidificam os vínculos comunitários, permitindo a

elaboração e o engajamento conjunto em projetos locais de ação comunitária que

podem se revelar como elementos de construção de cidadania, de resgate da auto-

estima, de conscientização e, em última análise, do lugar que cada ator ocupa no

133
mundo social. Ao vislumbrar a possibilidade da solidariedade e da ação conjunta em

benefício comum, o novo cidadão estará também mais atento ao que lhe cerca.

Num período de individualismo crescente, marca da modernidade, pretende-se

com esta pesquisa evidenciar o papel da cooperação no desenvolvimento das pessoas e

das organizações para o aumento do nível de satisfação dos seus membros e para a

concretização de novos projetos de vida.

A participação responsável e solidária contribui para a crescente tomada de

consciência do próprio Eu enquanto pessoa e membro ativo e responsável de uma

comunidade, com a qual se assume compromissos cívicos e de bem comum.

Presidente da COOPERART fazendo reivindicação para o governador Wellington Dias. Foto:ITCP

134
O sentimento de pertencimento resgatado pelo grupo permitiu o

desenvolvimento e a realização de objetivos, tornados comuns, que visam uma maior

realização pessoal, bem-estar e qualidade de vida, em benefício da comunidade.

A valorização dos membros reforçou o sentimento de causalidade e aumentou,

em conseqüência, a auto-estima, permitindo que cada um se sinta ator social com a

responsabilidade de contribuir para o seu próprio bem e da comunidade onde se insere.

Nesse processo, essas pessoas se recriaram enquanto indivíduos e enquanto

atores sociais. Como Carlos Rodrigues Brandão nos coloca, o ser humano é

basicamente criativo e recriador, modificando continuamente o que um dia aprendeu a

fazer

“[...] fazer de novo, refazer, inovar, retomar o antigo e a


tradição [...] incorporar o velho e o novo e transformar um com
o poder do outro” (BRANDÃO, 1995:39)

4.2.3. Rede de solidariedade horizontal no território

Fonte: SIG ITCP/COPPE/UFRJ

135
Neste tópico analisaremos a evolução do indicador de viabilidade cooperativa,

que verifica e acompanha se os empreendimentos correspondem aos princípios

cooperativistas e de autogestão.

Este indicador é mensurado pelos subindicadores instrumentos de gestão,

gestão democrática, representatividade da direção, responsabilidade social do

empreendimento, solidariedade e igualdade entre os cooperados. Para nossa análise o

subindicador solidariedade teve destaque por tratar diretamente da construção de

redes.

Quando observamos o conjunto das quatro cooperativas, constatamos que a

evolução do indicador foi de 158% e, para nós, esse aumento se deu pela

intensificação do trabalho coletivo, principalmente na administração das

COOPERLOJAS.

A prática coletiva surge como uma estratégia de sobrevivência dentro do

modelo de desenvolvimento vigente, que transforma tudo em mercadorias, que impõe

a lógica de mercado como a lógica de organização e das relações sociais, submetendo

os cidadãos a uma combinação injusta da aceleração do processo de acumulação de

capital com o aumento do desemprego, da pobreza, da desigualdade, da exclusão

social, com a exploração e a degradação sem limites dos recursos ambientais (BAVA,

2003)

Apesar disso, esse modelo traz no seu bojo as práticas de movimentos sociais e

políticos que buscam reverter o quadro de injustiças e pretende colocar a economia a

serviço da sociedade, construindo alternativas de desenvolvimento e de organização

social fundamentadas na solidariedade, na inclusão social, na busca da eqüidade, no

respeito aos direitos humanos, na preservação ecológica, na justiça social.

136
Para construir tais alternativas de desenvolvimento e organizações com esses

fundamentos é necessário que haja uma horizontalidade na tomada de decisões das

questões importantes para a sociedade, através da construção de redes e instalação de

fóruns que elaboram e debatem os novos paradigmas nas relações entre o local e o

nacional, e destes com o global.

Essa discussão conceitual é importante para situar e valorizar o sentido

transformador das experiências das cooperativas da Serra da Capivara. Mesmo que

incipientes, essas experiências podem ser avaliadas e valorizadas pela sua dimensão

dos processos de construção de novos paradigmas e novos atores sociais locais, de

fortalecimento da democracia e da cidadania e pelos resultados que proporcionam em

termos de melhoria da qualidade de vida da população envolvida no projeto.

O fato das pessoas terem apostado na formação de cooperativas e na extensão

de suas atividades da dinâmica local para outras dimensões de uma rede de

solidariedade para solucionar ou minimizar seus problemas é o primeiro indicador

dessa transformação e também o primeiro laço dessa rede em torno de um objetivo

comum - fazer com que o empreendimento dê certo.

“Meu sonho pra cooperativa é crescer e melhorar de situação


prá nóis e a cooperativa a gente espera melhorar de venda, ter
lugar pra botá os produtos” (Helena da Silva Amaral - 2006.1)

“A gente saiu a procura dos clientes no mercado e fomos bem


recebidos pelos nossos clientes, eles olharam e a gente
apresentou nossos produtos, falamos sobre nossos produtos que
são bom, de qualidade e foi uma experiência muito boa, porque
as pessoas compraram e compraram de novo e saber que os
produtos são bom... foi uma surpresa, pra atender os pedidos a
gente se ajudou e demos conta dos pedidos. Precisamos ter mais
pessoas no grupo e incentivar o trabalho em grupo, porque as
vendas estão sempre crescendo e esse é um meio da gente
aumentar nosso rendimento, porque no tempo da seca não tem
plantação, então essa é uma forma do trabalhador rural se
manter, em grupo.” (Eliane Jesus Pereira Silva - 2007.2)

137
Esses depoimentos são de duas cooperadas da COOPELZABELÊ. O primeiro

foi retirado da primeira visita da equipe no início do projeto, no primeiro semestre de

2006 e o segundo foi extraído da visita de avaliação, em novembro de 2007.

Contudo, é necessário que os cooperados da Serra da Capivara ultrapassem a

dimensão de experiência-piloto.

Para tanto é importante que

“esforços para a construção de ambientes institucionais


favoráveis, isto é, novas leis, novas linhas de financiamento,
enfim, novos arcabouços institucionais que envolvem não só o
governo local, como as demais instâncias políticas da
Federação.” (BAVA, 2003: mimeo)

A conjuntura atual no campo da defesa da cidadania e da democracia deve

buscar a mudança na relação entre Estado e sociedade civil. O Estado deve exercer um

papel regulador que controle a intervenção do mercado na organização social e crie as

condições de ampliação da atuação de atores coletivos da sociedade civil

comprometidos com a construção da inclusão social.

Novamente,

“a disputa de significados quanto aos conceitos em uso requer


uma precisão: não se trata da defesa da terceirização das
políticas públicas, que a Constituição atribui como
responsabilidade ao Estado. Trata-se, isso sim, de enfrentar um
arcabouço de leis, políticas de financiamento público e
requerimentos de acesso que reafirmam privilégios e favorecem
apenas as grandes empresas. Para abrir campo a fim de que as
experiências-piloto ganhem escala, também é necessário o
desenvolvimento de novas técnicas e metodologias.” (BAVA,
2003: mimeo)

As dificuldades para a criação e sobrevivência das cooperativas são um bom

exemplo de como no Brasil essa iniciativa não têm peso significativo nas formas de

organização do trabalho.

138
A burocratização e as altas taxas atingem a todos que se aventuram nesse

caminho, como prova o resultado do projeto, pois apenas uma cooperativa conseguiu

concluir seu processo de legalização.

O microcrédito é igualmente um exemplo de como o atual arcabouço

institucional brasileiro impede o florescimento de uma economia solidária, porque as

exigências para liberação dos recursos, muitas vezes, inviabiliza seu acesso. Tal

situação é vivenciada constantemente pelos empreendimentos na Serra da Capivara.

Apesar das dificuldades que ainda se apresentam na região da Serra da

Capivara - essa experiência piloto se limita a melhorar a precariedade existente - as

cooperativas, se vistas em seu conjunto, podem configurar uma tentativa de

mobilização de forças endógenas para criação de uma nova relação da sociedade com

a política, trabalhando o tema do desenvolvimento local na perspectiva de acolher uma

influência efetiva e cotidiana dos cidadãos, se pautando pelos princípios da

solidariedade e pelas práticas de cooperação fundadas na idéia da criação de um novo

tipo de espaço público.

Voltando à Milton Santos (2000), ele nos coloca como ação fundamental a

articulação entre o poder público e os agentes sociais e econômicos presentes na

sociedade civil local.

Um exemplo do resultado dessa articulação e da sua importância foi a

concessão feita pela prefeitura de São Raimundo Nonato do prédio do Mercado do

Produtor à COOPERART, através de um contrato de comodato de cinco anos. Essa

medida garante a continuidade do trabalho das cooperativas pela manutenção da loja e

do escritório num ponto estratégico, do ponto de vista comercial.

139
Como vimos anteriormente, a existência das lojas fortaleceu as cooperativas do

ponto de vista da viabilidade econômica e em termos de viabilidade cooperativa.

A pesquisa realizada e a análise da experiência estudada permitem-nos

salientar, em concordância com Milton Santos, a importância da estrutura social local

para sustentar as iniciativas de desenvolvimento local.

Um exemplo que sinaliza a importância da participação político-social das

cooperativas envolvidas no projeto de incubação é a inclusão de representantes nos

fóruns, conselhos e colegiados já instalados na região da Serra da Capivara.

Outro exemplo significativo é a articulação para a criação e o fortalecimento da

Rede Nordestina de Cooperativas Populares.

Essa rede reúne todas as cooperativas das quatro áreas envolvidas no projeto

piloto – Lençóis Maranhenses, Jericoacoara, Delta do Parnaíba e Serra da Capivara.

4.2.3.1 – A Rede Nordestina de Cooperativas Populares

Em agosto de 2007, como desdobramento do projeto de incubação, aconteceu o

I Seminário Regional de Cooperativas Populares do Nordeste, com o objetivo de

promover a articulação e integração dos empreendimentos populares e o

fortalecimento do seu protagonismo no desenvolvimento local.

Foram três dias de intensa troca de experiência entre os empreendimentos

populares associados à cadeia de serviços do turismo atuantes nas localidades onde o

projeto estava funcionando em fase de experimentação.

140
Naquela oportunidade reuniram-se mais de 160 cooperados, muitos deles

saindo de suas regiões pela primeira vez. As discussões ocorreram em torno dos temas

de interesse e trabalho das cooperativas - gastronomia, hospedagem, transporte,

artesanato e condução de turistas – gerando um documento que apontou os pontos

fortes e os pontos de estrangulamento dos setores.

I Seminário Regional de Cooperativas Populares do Nordeste. Foto ITCP

O desdobramento do seminário foi a articulação das cooperativas num

território maior, e não mais nas suas localidades de origem através da criação da Rede

Nordestina de Cooperativas Populares.

Em assembléia geral, os cooperados definiram como missão da Rede

“Defender os interesses das cooperativas e dos grupos envolvidos; consolidar


o intercâmbio entre as regiões; e, promover a troca de conhecimento entre os
participantes” (Carta de Parnaíba, 2007),

tendo como objetivos

141
“Favorecer a integração entre os cooperados e cooperativas
por meio de parcerias entre atividades econômicas existentes na
rede e instituições governamentais e não governamentais;
fortalecer as entidades e seus membros promovendo a
capacitação e troca de conhecimento, contribuindo para a
melhoria e qualidade dos serviços (segurança, pontualidade,
etc); potencializar a geração de renda proporcionando o
intercâmbio de experiências e troca de idéias entre os
cooperados; promover a divulgação dos produtos e serviços das
cooperativas e associações populares no segmento do turismo,
elaborando um plano de marketing integrado; viabilizar o
escoamento dos produtos e serviços regionais; e, possibilitar o
reconhecimento da rede em todos os estados envolvidos (selo de
qualidade)” (Carta de Parnaíba, 2007)

Ao longo do período de 2007/2008, ações ainda tímidas aconteceram para o

fortalecimento da Rede. A principal delas foi a realização do II Seminário de

Cooperativas Populares do Nordeste.

Dentre essas ações, uma teve destaque: as discussões sobre os eixos de marco

jurídico e políticas públicas de fomento à economia popular no turismo, sobre a

construção de redes para o fortalecimento do turismo sustentável e sobre valores e

características da sociobiodiversidade para a consolidação do turismo sustentável.

Outro avanço no processo foi a realização das oficinas preparatórias, que

antecederam o II Seminário. Essa atividade envolveu 275 pessoas, de 26

empreendimentos, onde aconteceu a discussão prévia dos eixos do seminário.

142
II Seminário Regional de Cooperativas Populares do Nordeste. Foto:ITCP

O objetivo das oficinas foi preparar os cooperados para os debates e discussões

durante o seminário, de modo a garantir a plena participação e a troca de saberes com

os palestrantes.

Os resultados das discussões preliminares foram sistematizados e

encaminhados aos palestrantes para que estes adequassem suas participações sobre o

tema ao foco de interesse dos cooperados. Os grupos voltaram para os seus territórios

muito motivados com os resultados do seminário.

A experiência mostrou a necessidade de maior comprometimento com o

próprio negócio, a necessidade de legalização das cooperativas e a importância de

maior engajamento na rede. Nesse aspecto, o seminário permitiu o fortalecimento da

Rede Nordestina de Cooperativas Populares.

“A rede é um intercâmbio que nós vamos fazer e para nós é


muito bom, porque antes nós só tínhamos aqui mesmo, o local
aqui e algumas lojas e atravessadores e dentro de menos de um
ano nós já fazemos parte de uma rede grande como essa, para
nós é muito gratificante.” (Elizeu Lopes da Silva)

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

143
A criação do Parque Nacional Serra da Capivara implicou na transformação da

região em um novo território. Essa transformação foi favorecida pela nova legislação

ambiental que passou a vigorar, e que impunha restrições à caça e à extração de

madeira, entre outras questões ligadas ao modo de vida daquele local, e pela revelação

de novos atores e novos sentimentos.

Em um primeiro momento o destaque foi a centralidade das ações, tendo foco

na estruturação, divulgação e preservação do Parque, tornando-o o carro-chefe de um

programa de desenvolvimento cujas estratégias principais eram a exploração turística

voltada para o mercado internacional.

A opção por essa forma de exploração turística trouxe problemas estruturais ao

programa porque, além de exigir um grande volume de investimentos na infra-

estrutura, provocou o afastamento do Estado da esfera das decisões, seja pela omissão

dos vários órgãos representativos que deveriam atuar mais intensivamente na região,

seja pelo aumento de poder político da fundação co-cogestora que, em muitos

momentos, assumiu o papel do Estado sem, contudo, ter os instrumentos necessários

para viabilizar integralmente o programa de desenvolvimento idealizado por ela, o que

criou um ponto de estagnação na região.

Outro ponto a ser destacado foi o papel que coube à população local nesse

programa de desenvolvimento - um papel secundário, prestando serviços de mão de

obra nas atividades ligadas ao circuito inferior da economia, como destaca Milton

Santos,

“(...) formado de atividades de pequena dimensão e


interessando principalmente às populações pobres, e (...) bem
enraizado e mantêm relações privilegiadas com sua região”
(2004:22). 12
12
Milton Santos define os circuitos da economia da seguinte forma: “(...) pode-se apresentar o circuito
superior como constituído pelos bancos, comércio e indústria de exportação, indústria urbana

144
Esse quadro teve sobre a população o efeito de que aquele não era mais o

“lugar deles”, expresso através do sentimento de não-pertencimento, uma vez que ela

participava das esferas de decisões apenas em caráter consultivo.

O distanciamento da população passou a ser encarado como um ponto de

estrangulamento para o crescimento na região. Encontrar indicativos de caminhos que

levassem à mudança desse quadro através da exploração consciente da cadeia de

serviços do turismo passou a ser o foco do que consideramos o segundo momento – a

mudança de modelo, optando-se pelo desenvolvimento local.

Essa opção foi colocada em prática através de um projeto piloto que trouxe

elementos novos para a população, como participação no fórum das decisões do

projeto, inclusão pelo trabalho decente, ampliação da participação política no local e

construção de redes solidárias.

A escolha da análise teórica sobre os dois momentos de desenvolvimento

decorreu da nossa percepção de que há um espaço específico e privilegiado para a

apreensão da própria dinâmica local, reiterando-se assim a dimensão da identidade e

do pertencimento como um campo de construção de um território onde se atualizam as

lutas sociais.

moderna, serviços modernos, atacadistas e transportadores. O circuito inferior é constituído


essencialmente por formas de fabricação não-‘capital intensivo’, pelos serviços não-modernos
fornecidos ‘a varejo’ e pelo comércio não-moderno e de pequena dimensão” (2004:40)

145
O conceito de desenvolvimento13 que adotamos foi fonte de conhecimento em

um espaço heterogêneo e criou a desafiadora possibilidade de penetrarmos nos

meandros das várias ideologias aplicadas na região e de suas reverberações na prática

social. Essa possibilidade confirmou-se ao longo da pesquisa como uma opção

proveitosa que permitiu-nos adotar como texto os aspectos de uma situação social

estudada.

Essa opção produziu a expectativa de que esse texto não se esgote em si

mesmo, mas que possa funcionar, quem sabe, como referência para o aprofundamento

do debate e proporcione uma nova leitura crítica e significativa da realidade social

daquele território.

O grande desafio foi o de procurar captar os elementos mínimos necessários

para que ações de desenvolvimento local possam atingir seu êxito. Foram evidenciados

não apenas os conteúdos discursivos, mas, sobretudo, as experiências concretas desses

elementos quando colocados em prática. Nesse sentido, nosso foco recaiu sobre os

primeiros projetos sociais e sobre um projeto piloto de transferência de tecnologia

social de fortalecimento de grupos populares.

Ao penetrarmos no território construído a partir da criação do Parque, o que se

buscava era a compreensão de uma travessia real e também simbólica, a partir de um

ponto de observação interno àquele território. Por outro lado, impunha-se um olhar
13
Neste trabalho adotamos o conceito de desenvolvimento elaborado por Amartya Sen “o
desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade:pobreza e
tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos
serviços públicos [...] Às vezes, a ausência de liberdades substantivas relaciona-se diretamente com a
pobreza econômica, que rouba das pessoas a liberdade de saciar a fome, de obter uma nutrição
satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou morar de modo
apropriado, de ter acesso a água tratada ou saneamento básico. Em outros casos, a privação de
liberdade vincula-se estreitamente à carência de serviços públicos e assistência social [...]. Em outros
casos, a violação da liberdade resulta diretamente de uma negação de liberdades políticas e civis por
regimes autoritários e de restrições impostas à liberdade de participar da vida social, política e
econômica da comunidade”.(2005:18)

146
externo, capaz de vislumbrar o cenário mais amplo no qual se encontram essas

personagens, e a partir do qual se traçam caminhos, muito dos quais desconhecidos e

não-previstos por elas. Esses dois pontos de observação nos permitiram captar as

oposições entre dois modelos de desenvolvimento aplicados na região da Serra da

Capivara.

Esses dois pontos de observação nos permitiram captar as oposições entre dois

modelos de desenvolvimento aplicados na região da Serra da Capivara e que foram

evidenciadas através da exposição de projetos executados na região (cap. 1 e 4). Essa

seqüência de capítulos, no plano da redação, obedeceu a uma ordem cronológica da

evolução do território, indo dos anos 70/80 até os dias atuais.

A ênfase nessa relação de causalidade foi acompanhada de instrumentos

heurísticos que tiveram um papel de fio condutor na aproximação entre a teoria e a

prática. Esses instrumentos foram os conceitos de território, pertencimento e de

identidade, que esclarecemos no segundo capítulo.

O importante para análise, contudo, era ressaltar a construção da hegemonia

num espaço de relações de poder e, posteriormente, a construção de um espaço para

ruptura dessa hegemonia.

Este trabalho de pesquisa se dedicou a vasculhar os meandros de dois modelos

de desenvolvimento, com suas contradições e variantes. Sob o ponto de vista

sociológico, interessava-nos considerá-los como movimentos que traduzissem as

mudanças sociais daquele território.

O discurso oficial sobre a ruptura com um modelo e a introdução de uma nova

proposta foi focado no capítulo 3, onde apresentamos o projeto de desenvolvimento

local e sustentável do Ministério do Turismo, através dos preceitos do turismo social.

147
Pelos mecanismos materiais e políticos de que dispõe para se difundir e para

convencer, o projeto do MTUR ganhou legitimidade social através da atuação das

cooperativas populares na gestão interna e na participação política na região. Estas, por

sua vez, só puderam ascender à condição de atores sociais quando adquiriram

visibilidade através do projeto, como explanamos no capítulo 4.

O passo dado aqui decorre da percepção da existência de um conflito oculto,

porém, pulsante, que faz parte das transformações econômicas, sociais e culturais em

curso na região da Serra da Capivara.

Pensamos que esse conflito pode favorecer o desenvolvimento social da região,

à medida que o seu desvendamento, de fato, contribua para conferir legitimidade a

novos interlocutores nos debates políticos acerca dos projetos de desenvolvimento para

a região.

A questão, porém, vai adiante. O que está em jogo é a construção de um novo

sentido de cidadania como meio de construção de propostas e projetos que questionam

potencialmente o modelo de desenvolvimento dominante. Isto pôde ser observado,

empiricamente, nas tentativas de reorganização da população, através das cooperativas

populares referidas nos capítulos 3 e 4.

É possível que a contribuição deste estudo, para a prática social, seja a de

apontar para o fato de que se vive no Brasil um momento de demanda por canais de

inclusão social através de ações permanentes, a exemplo do projeto piloto de

fortalecimento dos grupos populares na Serra da Capivara, contrariamente aos

programas assistencialistas. Torna-se necessário, então, criar condições para que essas

experiências sejam postas em prática.

148
A pesquisa empírica junto ao universo dos excluídos do processo do modelo de

desenvolvimento dominante na Serra da Capivara nos permitiu apreender que esses

excluídos possuem uma percepção elaborada a respeito da exclusão a que vêm sendo

submetidos e também consciência do direito à inclusão e, desse modo, o desejo de

modificar os rumos desse modelo. Trazer isso à tona é acenar para a possibilidade de

que ações futuras tenham no seu bojo o espaço garantido da participação deles no

processo, como atores sociais capazes de delibarem sobre seus destinos.

Remover os impasses do desenvolvimento apresenta-se, hoje, como o grande

desafio dos “homens da modernidade” para o estabelecimento de formas mais

humanas de convivência social, que irá favorecer o exercício da cidadania e a

participação nas decisões que afetam os interesses da comunidade e, desse modo,

consolidar valores como a liberdade e a solidariedade entre as pessoas.

Contudo, SEN (2005) nos lembra que é necessário reconhecer a existência de

diferentes espécies de liberdades na luta contra as distorções da sociedade moderna

capitalista.

Com efeito, a ação individual é, em última instância, essencial para afrontar as

privações. A liberdade de ação de que o indivíduo goza é determinada e condicionada

pelas oportunidades sociais, políticas e econômicas de que dispõe.

É necessário que um projeto de desenvolvimento que vise à inclusão social

tenha na suas diretrizes a expansão da liberdade que

“é concebida como o fim prioritário e, ao mesmo tempo, como o


meio principal do desenvolvimento. O desenvolvimento consiste
na remoção de vários tipos de restrições que deixam às pessoas
pouca escolha e pouca oportunidade para exercerem a sua ação
racional. Defendemos que a remoção de constrangimentos
substanciais é constitutiva do desenvolvimento” (SEN, 2005:
10).

149
Essa proposta retoma a dimensão pública, impondo o reconhecimento de que o

ser humano é capaz de exercer sua consciência moral e de ser responsável pelos seus

atos. Isso significa entender que toda pessoa é capaz de fazer um juízo crítico da

realidade, ou seja, que é capaz de avaliar a situação, consultar as normas estabelecidas

pela sociedade, interiorizar algumas como suas, rejeitar outras, enfim, de decidir, de

fazer escolhas e de assumir responsabilidades pelas escolhas feitas. Nesse sentido, a

consciência moral se confunde com a liberdade (CASTORIADIS, 1982).

No entanto, não podemos nos esquecer que o exercício da consciência moral e,

portanto, da liberdade, não é uma função preestabelecida, natural da espécie humana.

Pelo contrário, pressupõe determinadas condições que precisam ser compreendidas e

observadas na prática cotidiana.

O pressuposto básico que orienta o exercício da liberdade é o conhecimento

necessário para que a pessoa seja capaz de problematizar e por em questão a realidade

à sua volta, exercendo a sua liberdade de escolha.

Outro princípio é recusar a violência. Essa é a segunda condição para que se

possa responsabilizar uma pessoa por seus atos: certificar-se de que, ao praticar uma

ação, ela não esteja submetida a uma coação externa, de ordem física, moral ou

psicológica.

Na sociedade, as relações sociais são estabelecidas num processo

comunicativo, onde cabe a negociação, os acordos, os consensos que são estabelecidos

não pela força física ou intimidação moral, mas pela capacidade de argumentação dos

sujeitos envolvidos.

A terceira condição é a crença na solução democrática. Numa sociedade

complexa como a contemporânea, a participação política e cidadã, a ampliação do

150
processo participativo, a agregação das aspirações da maioria, principalmente dos

excluídos, é fundamental para uma existência ética. A concretização dos direitos

humanos (direitos à vida, à liberdade, à busca da felicidade e à valorização do trabalho

como fonte de realização de uma pessoa) não será possível sem o pleno exercício da

cidadania e o conseqüente fortalecimento da sociedade.

Nesse sentido, gostaríamos de finalizar este trabalho com as palavras de

Amartya Sen (2005:221)

“[...] compreender o papel da condição de agente é essencial


para reconhecer os indivíduos como pessoas responsáveis: nós
não estamos apenas sãos ou enfermos, mas também agimos ou
nos recusamos a agir, e podemos optar por agir de um modo e
não de outro. Assim, nós – mulheres e homens – temos de
assumir a responsabilidade por fazer ou não fazer as coisas.
Isso faz diferença, e precisamos atentar para essa diferença.
Esse reconhecimento elementar, embora suficientemente
simples em princípio, pode ter implicações rigorosas, seja para
a análise social, seja para o raciocínio e a ação práticos”

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