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Sumário

INTRODUÇÃO – TEOLOGIA E VIDA: 5

a) Conhecimento e Piedade: 6

b) Teologia Integral: Reflexão e Vida: 10

c) A Teologia Sistemática como elaboradora, propagadora e defensora da Verdade: 16

1. A “DOENÇA” DO ATEÍSMO ENTRE OS GREGOS: 24

2. DEFINIÇÃO ETIMOLÓGICA DA PALAVRA TRINDADE: 37

3. DEFINIÇÃO DA DOUTRINA: 37
1) Há no Ser Divino uma só essência (ou)si/a) indivisível: 39
2) No Ser de Deus há três Pessoas: 40
3) A Essência de Deus pertence totalmente por igual a cada uma das Três Pessoas: 41
4) A Igreja confessa que a Trindade é um Mistério que transcende a compreensão do homem: 41

4. A FORMULAÇÃO DOUTRINÁRIA: UM PANORAMA HISTÓRICO: 43

4.1. O Processo: Erros e acertos: 43

1) Os Ebionitas: 49

2) O Gnosticismo: 50

3) Monarquianismo: 53

4) Arianismo: 56

5) O Apolinarismo: 59

6) Nestorianismo: 61

7) Eutiquianismo: 63

4.2. Os Credos da Igreja: A Busca de uma Compreensão Bíblica: 64

Introdução: A necessidade de definição: 64

4.2.1. Origem e Uso: 66


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4.2.2. Principais Credos da Igreja: 70


A. Credo Apostólico: 70
B. Credo Niceno-Constantinopolitano: 71
C. O Credo de Calcedônia: 75
D. Credo Atanasiano: 79

5. FUNDAMENTOS BÍBLICOS DA DOUTRINA: 81

5.1. No Antigo Testamento: 82


1. Há Textos nos quais Deus fala de Si Mesmo no Plural: 82
2. A Ênfase Tripla no nome ou Santidade de Deus: 82
3. O Nome Plural de Deus: 82
4. Deus faz uma distinção em Si mesmo. 82
5. Há Textos que falam de três Pessoas no Ser de Deus: 83
6. O Espírito de Deus é distinto de Deus: 83
7. Textos que se referem ao Anjo do Senhor: 83
8. Textos que Descrevem a Sabedoria e a Palavra Divina: 84
9. Textos que Descrevem o Messias: 84

5.2. No Novo Testamento: 85

6. O PAI, O FILHO E O ESPÍRITO E A SUA RELAÇÃO TRINITÁRIA: 85

6.1. A Relação Trinitária: 85

6.2. As Três Pessoas Consideradas Separadamente: 86

A. O Pai: 86

B. O Filho: 86

1) A Filiação de Jesus Cristo: 86


A) A Eternidade do Filho e de Filho: 86
B) O Relacionamento íntimo do Filho com o Pai: 88
C) Aspectos da Filiação Única de Jesus Cristo: 89
D) O Filho Eterno e o Povo de Deus: 90

2) A Divindade de Cristo: 91
A) A Sua Divindade foi Profetizada: 91
B) A Sua Divindade foi Reconhecida: 91
C) A Sua Divindade Demonstrada: 91

C. O Espírito Santo: 93

Introdução: 94

1. O Espírito Santo no Antigo Testamento: 96

2. O Espírito Santo no Judaísmo Posterior: 102

3. As Perfeições do Espírito Santo: 104


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1) Unicidade: 104
2) Personalidade: 104
3) Divindade: 112
4) Espírito de Justiça e Purificador: (Is 4.4/Jo 16.8). 119
5) Espírito da Promessa: (Ef 1.13/At 1.4,5; 2.33). 119
6) Espírito da Verdade: (Jo 15.26; 16.13). 120
7) Espírito da Vida: (Rm 8.2). 120
8) Espírito da Graça: (Hb 10.29). 120
9) Espírito da Glória: (1Pe 4.13-14). 120
10) Espírito Consolador: (Jo 14.26). 120
11) Espírito Santo: (Mt 3.11; Lc 12.12; Jo 1.33; At 5.32; 7.51; 8.15, etc.). 120
12) A Procedência do Espírito Santo: 121

7. A TRINDADE E A NOSSA SALVAÇÃO: 125

8. A TRINDADE E A VIDA CRISTÃ: 128


1) Reprova-nos e se entristece com os nossos pecados: (Jo 16.7-8; Ef 4.30/Is 63.10). 128
2) Ensina-nos por meio da Palavra, guiando-nos à Verdade: 129
3) Consola-nos: 129
4) Dá-nos poder para testemunhar: 130
A) O Poder do Trino Deus: 130
B) O Poder do Espírito Na Evangelização: 138
5) Faz-nos Frutificar: 144
6) Revela a Vontade do Pai por meio da Palavra: 145
7) Dá-nos liberdade: 145
A) Liberdade “Do”: 145
B) Liberdade “Para”: 150
8) Dá-nos esperança: (Rm 15.13; Gl 5.5) 155
9) Fortalece-nos: 157

9. A TRINDADE E O CULTO LEGÍTIMO: 158

9.1. Escolhidos para Adorar: 158

9.2. O Culto como Atitude Responsiva: 161

9.3. Culto Somente a Deus: 164

9.4. O Culto é oferecido por meio de Cristo: 167

9.5. Encher-nos do Espírito: (Ef 5.18) 171


1) Comunhão santa: (Ef 5.19) 175
2) Louvor sincero: 176

10. A TRINDADE E AS NOSSAS ORAÇÕES: 204

11. O DEUS MISTERIOSO E A PREGAÇÃO DA IGREJA: 210

11.1. O Deus Misterioso: 210


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11.2. Uma Proclamação Poderosamente Submissa e Inteligente: 212

11.3. A Igreja como expressão e Agente da Glória do Deus Triúno: 217

11.4. A Trindade e o Evangelho Proclamado: 222

11.4.1. As insondáveis riquezas de Cristo: 222


1) A Riqueza da Encarnação: 222
2) A Riqueza da Misericórdia de Deus: 223
3) A Riqueza do Evangelho e a Igreja: 224

11.4.2. A Glória de Deus e de Cristo: 225


1) A Gloriosa Singularidade da Pessoa e Obra de Cristo: 226
a) A necessidade da Divindade do Redentor: 228
b) A Necessidade da Humanidade de Cristo: 228
c) A Necessidade das duas Naturezas numa só Pessoa: 229
d) A Unipersonalidade de Cristo: 230
2) A Gloriosa Singularidade do Evangelho: 232
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A Santíssima Trindade
– Apontamentos Introdutórios –

INTRODUÇÃO – TEOLOGIA E VIDA:

“A pregação e a oração estão


1
sempre juntas” – Martinho Lutero.

“Ela [Trindade] é, em certo sentido, a


mais excelsa e a mais gloriosa de todas
as doutrinas, a coisa mais espantosa e
estonteante que aprouve a Deus
revelar-nos sobre Si mesmo” – D.M. Lloyd-
2
Jones.

“O propósito original de Deus foi que


o ser humano partilhasse a intimidade
familiar jubilosa da Trindade” – J.I.
3
Packer.

“Quanto mais as três pessoas da Trin-


dade são glorificadas, no entanto, mais
completamente o orgulho humano é
excluído. Magnificar a auto-revelação
de Deus é confessar a nossa completa
ignorância sem ela. Enaltecer a cruz de
Cristo é confessar a nossa total perdição
sem ela. Engrandecer o papel regene-
rador e santificador do Espírito Santo em
nós é confessar o nosso eterno egocen-
4
trismo sem Ele” – John R.W. Stott.

1
Lutero, Luther’s Works, Saint Louis: Concordia Publishing House, 1960, Vol. II, (Gn 13.4), p. 333.
2
D. M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
(Grandes Doutrinas Bíblicas, Vol. 1), 1997, p. 114.
3
J.I. Packer, O Plano de Deus para Você, 2ª ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias
de Deus, 2005, p. 125.
4
John R.W. Stott, A Verdade do Evangelho: Um apelo à Unidade, Curitiba/São Paulo: Encon-
tro/ABU Editora, 20001, p. 137-138.
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a) Conhecimento e Piedade:
5
João Calvino (1509-1564) comentando o texto de 1Tm 6.3, diz que “[a dou-
trina] só será consistente com a piedade se nos estabelecer no temor e no
culto divino, se edificar nossa fé, se nos exercitar na paciência e na humilda-
6
de e em todos os deveres do amor”. Estamos convencidos de que a genuína
7
piedade bíblica (eu)se/beia) começa pela compreensão correta do mistério de Cris-
to, conforme nos diz Paulo: “Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele
que foi manifestado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pre-
gado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória” (1Tm 3.16). A piedade
era a tônica do ministério pastoral de Paulo. É deste modo que ele inicia a sua Carta
8
a Tito: “Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover (kata/) a
9
fé que é dos eleitos (e)klekto/j) de Deus e o pleno conhecimento da verdade se-
gundo a piedade” (Tt 1.1). Portanto, devemos indagar sempre a respeito de
doutrinas consideradas evangélicas, se elas, de fato, contribuem para a piedade. A
genuína ortodoxia será plena de vida e piedade.

Paulo diz que é apóstolo da parte de Jesus Cristo comprometido com a fé que é
dos eleitos de Deus. O seu ensino tinha este propósito – diferentemente dos falsos
mestres, que se ocupavam com fábulas e mandamentos procedentes da mentira (Tt
10
1.14) – promover a fé dos crentes em Cristo Jesus. A fé que é dos eleitos, portan-
11
to, deve ser desenvolvida no “pleno conhecimento (e)pi/gnwsij) da verdade
(a)lh/qeia)”. Ou seja, a nossa salvação se materializa em nosso conhecimento in-
tensivo e qualitativamente completo da verdade. Contudo, este conhecimento da
verdade, longe de arrogante e auto-suficiente, está relacionado com a piedade: “se-
12
gundo a piedade (eu)se/beia)”. O verdadeiro conhecimento de Deus é cheio de pi-
edade. Piedade caracteriza a atitude correta para com Deus, englobando temor, re-
13
verência, adoração e obediência. Ela é a palavra para a verdadeira religião. Paulo

5
“Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cris-
to e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, mas tem mania por questões e
contendas de palavras, de que nascem inveja, provocação, difamações, suspeitas malignas, alterca-
ções sem fim, por homens cuja mente é pervertida e privados da verdade, supondo que a piedade é
fonte de lucro” (1Tm 6.3-5).
6
João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 6.3), p. 164-165.
7
*At 3.12; 1Tm 2.2; 3.16; 4.7,8; 6.3,5,6,11; 2Tm 3.5; Tt 1.1; 2Pe 1.3,6,7; 3.11.
8
Kata/ quando estabelece relação, tem o sentido de “de acordo com a”, “com referência a”. No texto,
pode ter o sentido de “segundo a fé que é dos eleitos”, “no interesse de”, “promover”, etc. (Mc 7.5; Lc
1.9,38; 2.22,24,29; Jo 19.7; At 24.14; Cl 1.25,29; 2Tm 1.1,8,9; Hb 7.5).
9
*Mt 22.14; 24.22,24,31; Mc 13.20,22,27; Lc 18.7; 23.35; Rm 8.33; 16.13; Cl 3.12; 1Tm 5.21; 2Tm
2.10; Tt 1.1; 1Pe 1.1; 2.4; 1Pe 2.6,9; 2Jo 1,13; Ap 17.14.
10
“e não se ocupem com fábulas judaicas, nem com mandamentos de homens desviados da verda-
de” (Tt 1.14).
11
* Rm 1.28; 3.20; 10.2; Ef 1.17; 4.13; Fp 1.9; Cl 1.9,10; 2.2; 3.10; 1Tm 2.4; 2Tm 2.25; 3.7; Tt 1.1; Fm
6; Hb 10.26; 2Pe 1.2,3,8; 2.20.
12
*At 3.12; 1Tm 2.2; 3.16; 4.7,8; 6.3,5,6,11; 2Tm 3.5; Tt 1.1; 2Pe 1.3,6,7; 3.11.
13
Ver: William Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1988 (reim-
pressão), p. 73-80.
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diz que a piedade para tudo é proveitosa, não havendo contra-indicação: “Pois o e-
xercício físico para pouco é proveitoso (w)fe/limoj), mas a piedade para tudo é pro-
14
veitosa (w)fe/limoj), porque tem a promessa da vida que agora é e da que há de
ser” (1Tm 4.8). Por isso Timóteo, com o propósito de realizar a vontade de Deus,
15
deveria exercitá-la com a perseverança de um atleta (1Tm 4.7); segui-la como al-
guém que persegue um alvo, e, a convicção e o zelo com os quais o próprio Paulo
perseguira a Igreja de Deus (Fp 3.6): “Tu, porém, ó homem de Deus, foge destas
16
coisas; antes, segue (diw/kw) a justiça, a piedade (eu)se/beia), a fé, o amor, a
constância, a mansidão” (1Tm 6.11). O tempo presente do verbo, indica a progressi-
vidade que deve caracterizar essa busca pela piedade.

Calvino entende que o conhecimento verdadeiro do verdadeiro Deus traz como


implicação necessária, a piedade e a santificação: “.... deve observar-se que so-
mos convidados ao conhecimento de Deus, não àquele que, contente com
17
vã especulação, simplesmente voluteia no cérebro, mas àquele que, se é
de nós retamente percebido e finca pé no coração, haverá de ser sólido e
18
frutuoso”. Em outro lugar, acrescenta: “.... Jamais o poderá alguém conhe-
cer devidamente que não apreenda ao mesmo tempo a santificação do
Espírito. (...) A fé consiste no conhecimento de Cristo. E Cristo não pode ser
conhecido senão em conjunção com a santificação do Seu Espírito. Segue-
se, consequentemente, que de modo nenhum a fé se deve separar do afeto
19
piedoso”. Resume: “O conhecimento de Deus é a genuína vida da al-
20
ma....”.

14
Este adjetivo que, no Novo Testamento só é empregado por Paulo, é aplicado às boas obras (Tt
3.8) e à Palavra inspirada de Deus em sua aplicação às nossas necessidades (2Tm 3.16).
15
“Mas rejeita as fábulas profanas e de velhas caducas. Exercita-te (gumna/zw), pessoalmente, na
piedade” (1Tm 4.7). Gumna/zw é aplicada ao exercício próprio de atleta. No Novo Testamento a pala-
vra é usada metaforicamente, indicando o treinamento que pode ser utilizado para o bem ou para o
mal (*1Tm 4.7; Hb 5.14;12.11; 2Pe 2.14).
16
Diw/kw é utilizada sistematicamente para aqueles que perseguiam a Jesus, os discípulos e a Igreja
(Mt 5.10-12; Lc 21.12; Jo 5.16; 15.20). Lucas emprega este mesmo verbo para descrever a
perseguição que Paulo efetuou contra a Igreja (At 22.4; 26.11; 1Co 15.9; Gl 1.13,23; Fp 3.6), sendo
também a palavra utilizada por Jesus Cristo quando pergunta a Saulo do porquê de sua perseguição
(At 9.4-5/At 22.7-8/At 26.14-15). Paulo diz que prosseguia para o alvo (Fp 3.12,14). O escritor de
Hebreus diz que devemos perseguir a paz e a santificação (Hb 12.14). Pedro ensina o mesmo a
respeito da paz (1Pe 3.11).
17
Ver J. Calvino, As Institutas, Campinas, SP./São Paulo: Luz para o Caminho/Casa Editora Presbi-
teriana, 1985, I.14.4.
18
J. Calvino, As Institutas, I.5.9. “.... Importa se nos transfunda ela [a doutrina] ao coração e
se nos traduza no modo de viver, e, a tal ponto a si nos transforme, que nos não seja infrutu-
osa. Se, com razão, se incendem os filósofos contra aqueles que, em professando uma arte
que lhes deva ser a mestra da vida, a convertem em sofística loquacidade, e os alijam ig-
nominiosamente de sua grei, de quão melhor razão haveremos de detestar estes fúteis sofis-
tas que se contentam em revolutear o Evangelho no topo dos lábios, Evangelho cuja eficá-
cia devera penetrar os mais profundos afetos do coração, arraigar-se na alma e afetar o
homem todo, cem vezes mais do que as frias exortações dos filósofos” [João Calvino, As Insti-
tutas, III.6.4].
19
João Calvino, As Institutas, III.2.8.
20
João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.18), p. 136-137.
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O verdadeiro conhecimento de Deus conduz-nos à piedade: “Paulo sustenta


que aquele falso conhecimento que se exalta acima da simples e humilde
21
doutrina da piedade não é de forma alguma conhecimento”. “A única
coisa que, segundo a autoridade de Paulo, realmente merece ser
denominada de conhecimento é aquela que nos instrui na confiança e no
22
temor de Deus, ou seja, na piedade”.

No entanto, é possível forjar uma aparente piedade – conforme os falsos mestres


23
que, privados da verdade, o faziam pensando em obter lucro (1Tm 6.5) –; contudo,
esta carece de poder e da alegria resultantes da convicção de que Deus supre as
nossas necessidades. Logo, esses falsos mestres não conhecem o “lucro” da pieda-
de: “De fato, grande fonte de lucro (porismo/j) é a piedade (e)use/beia) com o con-
24
tentamento (au)ta/rkeia = “suficiência”, “satisfação”). Porque nada temos trazido
para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele. Tendo sustento e com que
25
nos vestir, estejamos contentes” (1Tm 6.6-8/2Tm 3.5). Todo o conhecimento cris-
26
tão deve vir acompanhado de piedade. (1Tm 3.16/1Tm 6.3; Tt 1.1). A piedade de-
ve estar associada a diversas outras virtudes cristãs a fim de que seja frutuosa no
27
pleno conhecimento de Cristo (2Pe 1.6-8). A nossa certeza é que Deus nos con-
cedeu todas as coisas que nos conduzem à piedade. Ele exige de nós, os crentes,
"o uso diligente de todos os meios exteriores pelos quais Cristo nos comunica
28
as bênçãos da salvação" e que não negligenciemos os “meios de preserva-

21
João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.20), p. 186.
22
João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.20), p. 187.
23
“Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus
Cristo e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, mas tem mania por questões e
contendas de palavras, de que nascem inveja, provocação, difamações, suspeitas malignas, alterca-
ções sem fim, por homens cuja mente é pervertida e privados da verdade, supondo que a piedade é
fonte de lucro (porismo/j)” (1Tm 6.3-5).
24
* 2Co 9.8; 1Tm 6.6.
25
“Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas,
avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes,
desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, a-
trevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, ne-
gando-lhe, entretanto, o poder. Foge também destes” (2Tm 3.1-5).
26
“Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi justificado
em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória”
(1Tm 3.16). “Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor
Jesus Cristo e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, mas tem mania por
questões e contendas de palavras, de que nascem inveja, provocação, difamações, suspeitas malig-
nas, altercações sem fim, por homens cuja mente é pervertida e privados da verdade, supondo que a
piedade é fonte de lucro” (1Tm 6.3-5).
27
“Por isso mesmo, vós, reunindo toda a vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude; com a
virtude, o conhecimento; com o conhecimento, o domínio próprio; com o domínio próprio, a perseve-
rança; com a perseverança, a piedade (e)use/beia); com a piedade (e)use/beia), a fraternidade; com a
fraternidade, o amor. Porque estas coisas, existindo em vós e em vós aumentando, fazem com que
não sejais nem inativos, nem infrutuosos no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Pe
1.5-8).
28
Catecismo Menor de Westminster, Perg. 85.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 9/233

29
ção”. Portanto, devemos utilizar de todos os recursos que Deus nos forneceu com
este santo propósito: “Visto como, pelo seu divino poder, nos têm sido doadas todas
as coisas que conduzem à vida e à piedade (e)use/beia), pelo conhecimento com-
30
pleto daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude” (2Pe 1.3).

A piedade como resultado de nosso relacionamento com Deus deve ter o seu
reflexo concreto dentro de casa, sendo revelada por meio do tratamento que
concedemos aos nossos pais e irmãos: “....se alguma viúva tem filhos ou netos, que
estes aprendam primeiro a exercer piedade (eu)sebe/w) para com a própria casa e a
31
recompensar a seus progenitores; pois isto é aceitável diante de Deus” (1Tm 5.4).
Nunca o nosso trabalho, por mais relevante que seja, poderá se tornar num
empecilho para a ajuda aos nossos familiares. A genuína piedade é caracterizada
por atitudes condizentes para com Deus (reverência) e para com o nosso próximo
(fraternidade). Curiosamente, quando o Novo Testamento descreve Cornélio, diz que
ele era um homem “piedoso (Eu)sebh/j) e temente a Deus (...) e que fazia muitas
esmolas ao povo e de contínuo orava a Deus” (At 10.2). A piedade é, portanto, uma
relação teologicamente orientada do homem para com Deus em sua devoção e
reverência e, a sua conduta biblicamente ajustada e coerente com o seu próximo. A
piedade envolve comunhão com Deus e o cultivo de relações justas com os nossos
32
irmãos. “A obediência é a mãe da piedade”, resume Calvino.

A piedade é desenvolvida por meio de nosso crescimento na graça. A graça de


Deus é educativa: "Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os
homens, educando-nos (paideu/w) para que, renegadas a impiedade e as paixões
mundanas, vivamos no presente século, sensata, justa e piedosamente (eu)sebw=j)”
(Tt 2.11-12). A piedade autêntica, por ser moldada pela Palavra, traz consigo os pe-
rigos próprios resultantes de uma ética contrastante com os valores deste século:
33
“Ora, todos quantos querem viver piedosamente (eu)sebw=j) em Cristo Jesus serão
perseguidos” (2Tm 3.12). No entanto, há o conforto expresso por Pedro às Igrejas
perseguidas: “....o Senhor sabe livrar da provação [peirasmo/j = “tentação”] os
piedosos (eu)sebh/j)....” (2Pe 2.9).

A piedade não pode estar dissociada da fé que confessa que Deus é o autor de
todo o bem. Portanto podemos nEle descansar sendo conduzidos pela Sua Pala-
34
vra.

29
Confissão de Westminster, XVII.3.
30
Ver: Hermisten M.P. Costa, A Palavra e a Oração como Meios de Graça: In: Fides Reformata, São
Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 5/2 (2000), 15-48.
31
“Seria uma boa preparação treinar-se para o culto divino, pondo em prática deveres do-
mésticos piedosos em relação a seus próprios familiares” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 5.4),
p. 131].
32
John Calvin, Commentaries of the Four Last Books of Moses, Grand Rapids, Michigan: Baker Book
House, (Calvin’s Commentaries, Vol. II), 1996 (Reprinted), Vol. 1, (Dt 12.32), p. 453.
33
Este advérbio só ocorre em dois textos do Novo Testamento: 2Tm 3.12; Tt 2.12.
34
Cf. John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company,
1996 (Reprinted), Vol. II/1, (Dt 6.16), p. 422.
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b) Teologia Integral: Reflexão e Vida:

“Uma teologia que toca a mente,


deixando de afetar o coração, não é a
verdadeira teologia cristã” – Alister E.
McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência
intelectual do Evangelicalismo, São Paulo:
Shedd Publicações, 2007, p. 67.

35
A reflexão teológica deve ser sempre um prefácio à ação sob a influência
modeladora do Espírito que nos instrui pelo Evangelho. “Uma igreja que só reflete
e não atua é semelhante ao exército que passa o tempo fazendo manobras
36
dentro do quartel”. A nossa reflexão e ação devem estar sempre acompanhadas
e dominadas pela oração fervorosa e sincera: "Desvenda os meus olhos, para que
37
eu contemple as maravilhas da tua lei" (Sl 119.18). “A fé envolve a verdade de
Deus (doutrina), encontro com Deus (culto) e servir a Deus (vida). A insepa-
rabilidade desses três elementos é vista repetidas vezes nas Escrituras e na
38
história do povo de Deus”.

Talvez aqui esteja uma das armadilhas mais sutis para nós Reformados. Preza-
mos a doutrina, entendemos ser ela fundamental para a vida cristã, no entanto, nes-
ta justíssima ênfase e compreensão, podemos nos esquecer da importância vital da
39
piedade. Notemos que não estou dizendo que isto aconteça conosco com fre-
quência ou, que este seja o nosso ponto fraco, apenas observo que devemos vigiar
neste flanco, para que o inimigo não alcance êxito em seu desígnio destruidor. Pau-

35
“Para aquele que é intelectualmente dotado, é muito mais fácil ser um cristão no campo
do pensamento do que naquele comportamento prático; e ainda o bom teólogo sabe mui-
to bem que o que realmente conta diante de Deus não é simplesmente o que alguém pen-
sa, mas o que alguém pensa com tal fé que se torna ato. Porque somente essa fé ‘que atua
pelo amor’ é considerada” (Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, Vol. 1, p.
119-120).
36
Orlando E. Costas, Qué Significa Evangelizar Hoy?, San José, Costa Rica: Publicaciones INDEF.,
1973, 3.442. p. 45.
37
"A oração é sempre necessária como instrução (...). Transmitir conhecimento não basta. É
igualmente essencial que oremos – que oremos por nós mesmos, para que Deus nos faça
receptivos ao conhecimento e à instrução; que oremos para sermos capacitados a agasa-
lhar o conhecimento recebido e aplicá-lo; que oremos para que não fique só em nossas
mentes, e sim que se apegue aos nossos corações, dobre as nossas vontades e afete o ho-
mem todo. O conhecimento, a instrução e a oração devem andar sempre juntos; jamais
devem estar separados" (D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo:
Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 98).
38
W. Robert Godfrey, A Reforma do Culto: In: James M. Boice, et. al. eds. Reforma Hoje, São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 1999, p. 155.
39
Vejam-se, entre outros: D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, p. 8, 85-86, 165,
254; D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991,
p. 101-103,127; D.M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, São Paulo: Publicações Evangélicas Se-
lecionadas, 1997 (Grandes Doutrinas Bíblicas, Vol. 1), p. 393.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 11/233

40
lo fala dos “desígnios” de Satanás (2Co 2.11), indicando a ideia de que ele tem
metas definidas, estratégias elaboradas, um programa de ação com variedades de
técnicas e opções a serem aplicadas conforme as circunstâncias. Ele emprega toda
41
a sua “energia” (2Ts 2.9). Neste texto fica claro que Satanás se vale de todos os
recursos a ele disponíveis, contudo, como não poderia ser diferente, amparado na
42
“mentira” – que lhe é própria (Jo 8.44) –, para realizar os seus propósitos.

D.M. Lloyd-Jones (1899-1981), assim se expressou:

“O ministro do Evangelho é um homem que está sempre lutando em


duas frentes. Primeiro ele tem que concitar as pessoas a se interessarem
por doutrina e pela teologia, todavia não demorará muito nisso antes de
perceber que terá que abrir uma segunda frente e dizer às pessoas que
não é suficiente interessar-se somente por doutrinas e teologia, que você
corre o perigo de se tornar um mero intelectualista ortodoxo e de ir fican-
do negligente quanto à sua vida espiritual e quanto à vida da Igreja. Este
é o perigo que assedia os que sustentam a posição reformada. Essas são
as únicas pessoas realmente interessadas em teologia, pelo que o diabo
vem a eles e os impele para demasiado longe na linha desse interesse, e
eles tendem a tornar-se meros teólogos e só intelectualmente interessados
43
na verdade”.

A Teologia não termina em conhecimento teórico e abstrato, antes se plenifica no


conhecimento prático e existencial de Deus por intermédio da Sua Revelação nas
Escrituras Sagradas, mediante a iluminação do Espírito. Conhecer a Deus é obede-
cer a Seus mandamentos. “A boa teologia desloca-se da cabeça até o cora-

40
“Para que Satanás não alcance vantagem sobre nós, pois não lhe ignoramos os desígnios
(no/hma)” (2Co 2.11). A palavra traduzida por “desígnio” (no/hma), ocorre cinco vezes no NT., sendo
utilizada apenas por Paulo: 2Co 2.11; 3.14; 4.4; 10.5; 11.3; Fp 4.7, tendo o sentido de “plano” (Platão,
Política, 260d), “intenção maligna”, “intrigas”, “ardis”. Com exceção de Fp 4.7, a palavra sempre é u-
sada negativamente no NT. No/hma é o resultado da atividade do nou=j (mente); (J. Behm & E. Wur-
thwein, nou=j, etc. In: Gerhard Kittel & G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament,
Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. IV, p. 960). “É a faculdade geral do juí-
zo, que pode tomar decisões e pronunciar certos ou errados os veredictos, conforme as in-
fluências às quais tem sido expostas” (J. Goetzmann, Razão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Di-
cionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. IV, p.
32).
41
“Ora, o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia (e)ne/rgeia) de Satanás, com todo poder, e si-
nais, e prodígios da mentira” (2Ts 2.9). Satanás atua de forma eficaz na consecução dos seus objeti-
vos: e)ne/rgeia (energeia) – “trabalho efetivo” –, de onde vem a nossa palavra “energia”, passando pe-
lo latim, “energîa”. Esse substantivo é empregado tanto para Deus (Ef 3.7; 4.16; Fp 3.21; Cl 1.29;
2.12) como para Satanás (2Ts 2.9). Estando este subordinado à e)ne/rgeia de Deus (2Ts 2.11).
E)ne/rgeia e seus derivados, no NT., descreve sempre um poder eficaz em atividade sobre-humana,
por meio da qual a natureza de quem a exerce se revela (Vd. W. Barclay, Palavras Chaves do Novo
Testamento, p. 51-57).
42
“Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o
princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fa-
la do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.44).
43
D. M. Lloyd-Jones, Os Puritanos: Suas Origens e Seus Sucessores, São Paulo: Publicações Evan-
gélicas Selecionadas, 1993, p. 22.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 12/233

44
ção e, finalmente, até a mão”. A Teologia não pode ser um estudo descom-
promissado feito por um transeunte acadêmico; ela é função da Igreja Cristã, dentro
da qual estamos inseridos. “Estudamos dogmática como membros da Igreja,
com a consciência que temos uma incumbência dada por ela um serviço a
lhe prestar, devido a uma compulsão que pode originar-se somente no seu
45
interior”. “Pensamento dogmático não é somente pensar sobre a fé, é um
46
pensar crendo”, conclui Brunner (1889-1966).

Calvino está convencido de que ninguém pode “provar sequer o mais leve
gosto da reta e sã doutrina, a não ser aquele que se haja feito discípulo da
47
Escritura”. E, que “só quando Deus irradia em nós a luz de seu Espírito é que
48
a Palavra logra produzir algum efeito”. Portanto, “O conhecimento de todas
as ciências não passa de fumaça quando separada da ciência celestial de
49
Cristo”. Deste modo, “O homem que mais progride na piedade é também
o melhor discípulo de Cristo, e o único homem que deve ser tido na conta
de genuíno teólogo é aquele que pode edificar a consciência humana no
50
temor de Deus”.

Ao longo da História diversos teólogos têm insistido neste ponto. O luterano Davi
Chyträus (1530-1600) – aluno de Melanchthon (1497-1560) –, resumiu bem este es-
pírito, quando escreveu em 1581: “Demonstramos ser cristãos e teólogos muito
mais através da fé, da vida santa e do amor a Deus e ao próximo, do que a-
51
través da astúcia e das sutilezas das polêmicas”. Ele também costumava repe-
tir aos seus alunos durante o ano: "O estudo da teologia não deve ser conduzi-
52
do através da rixa e disputa, mas pela prática da piedade".
53
A Teologia – que a muitos faz estremecer de reverência ou de espanto – na
44
Stanley J. Grenz & Roger E. Olson, Quem Precisa de Teologia? Um convite ao estudo sobre Deus
e sua relação com o ser humano, São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 51.
45
Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, Vol. 1, p. 15.
46
Emil Brunner, Dogmática, Vol. 1, p. 18.
47
J. Calvino, As Institutas, I.6.2. Os verdadeiros discípulos da Escritura tornam-se “discípulos da I-
greja” [Ver: João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.13), p. 126].
48
J. Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.16), p. 374.
49
João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 1.20), p. 60.
50
João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.1), p. 300. Para maior detalhamento deste ponto, ver: Hermisten
M.P. Costa, Anotações Sobre a Hermenêutica de Calvino – Compreensão a serviço da piedade e do
ensino –, São Paulo, 2005.
51
D. Chyträus, Apud Ph. J. Spener, Mudança para o Futuro: Pia Desideria, São Bernardo do Campo,
SP./Curitiba, PR.: Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião/Encontrão Editora,
1996, p. 114 e 30. (Vd. também, Spener, Ibidem., p. 102-117).
52
D. Chyträus, Apud Ph. J. Spener, Pia Desideria, São Bernardo do Campo, SP.: Imprensa Metodis-
ta, 1985, p. 30. (Esta frase de Chyträus foi omitida na edição mais recente, citada supra, conforme
explicação do editor).
53
Quanto à estupefação que a palavra “teologia” causa, Vd. por exemplo: Helmut Thielicke, Reco-
mendações aos Jovens Teólogos e Pastores, São Paulo: Sepal, 1990, 69p.; William Hordern, Teolo-
gia Protestante ao Alcance de Todos, Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1974, p. 11ss.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 13/233

forma que estamos analisando, tem o sentido de procura bíblica pelos fundamentos
54
da evangelização, não uma teorização ou especulação que venha satisfazer o
nosso intelecto. Na realidade, a especulação, ainda que tenha muitos adeptos, tende
55
a nos afastar da verdade, da pureza do Evangelho. A profundidade teológica está
56
aliada ao conhecimento experimental de Deus em Cristo (Jr 9.24; Os 6.3; Mt
11.27; Jo 14.6,9; 2Pe 3.18) e, como disse J.I. Packer, “Conhecer a Deus é um re-
57
lacionamento capaz de fazer vibrar o coração do homem”.

Se quisermos ser considerados mestres cristãos, devemos ser fiéis à verdade bí-
blica. A infidelidade, ao contrário do que possa parecer num primeiro momento, não
consiste apenas em acrescentar ensinamentos estranhos à Palavra, mas, também,
omitir e, talvez de forma mais sutil, nos contentarmos com amenidades, sem expor
com clareza, fidelidade e profundidade a Palavra de Deus. Fidelidade exige o silên-
cio reverente diante do mistério e a ousadia edificante diante do estudo do revelado;
ambas as atitudes nos previnem da especulação pecaminosa e da ingratidão para
com o que Deus nos tem concedido na Escritura. Calvino nos instrui: "As cousas
que o Senhor deixou recônditas em secreto não perscrutemos, as que pôs a
descoberto não negligenciemos, para que não sejamos condenados ou de

54
Se a especulação indevida é um mal; devemos observar também, que mal semelhante é negligen-
ciar o estudo daquilo que Deus nos revelou em Sua Palavra. Calvino (1509-1564) nos advertiu quanto
a isto, dizendo: “As cousas que o Senhor deixou recônditas em secreto não perscrutemos, as
que pôs a descoberto não negligenciemos, para que não sejamos condenados ou de ex-
cessiva curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra” (As Institutas, III.21.4). Alhures,
ele observa que a sabedoria consiste em reconhecer os nossos limites. “Nem nos envergonhemos
em até este ponto submeter o entendimento à sabedoria imensa de Deus, que em Seus
muitos arcanos sucumba. Pois, dessas cousas que nem é dado, nem é lícito saber, douta é a
ignorância, a avidez de conhecimento, uma espécie de loucura” (As Institutas, III.23.8).
Calvino orientou-nos pastoralmente, dizendo: ”....Que esta seja a nossa regra sacra: não pro-
curar saber nada mais senão o que a Escritura nos ensina. Onde o Senhor fecha seus pró-
prios lábios, que nós igualmente impeçamos nossas mentes de avançar sequer um passo a
mais” [J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 9.14), p. 330].
“Aqueles que inquirem curiosamente acerca de tudo, e que jamais ficam satisfeitos, po-
dem com justiça ser chamados ‘questionadores’. Em suma, as coisas mantidas em elevada
estima pelos eruditos da Sorbonne são aqui condenadas pelo apóstolo. Porquanto toda a
teologia dos papistas nada é senão um labirinto de questões” [João Calvino, As Pastorais, (Tt
3.9) p. 355].
Do mesmo modo, diz Agostinho: “Ignoremos de boa mente aquilo que Deus não quis que
soubéssemos” [Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 9/1), 1998, Vol. I,
(Sl 6), p. 60].
55
“O fútil ensino dos sofistas, erguendo-se em airosas especulações e sutilezas, não só obs-
curecem a simplicidade da doutrina genuína com suas implicações, mas também a opri-
mem e a fazem desprezível, já que o mundo quase sempre se deixa levar pela aparência
externa” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.20), p. 186].
56
Somente aquele que conhece experimentalmente a Deus pode confiar no Seu poder e descansar
nas Suas Promessas. Vejam-se: J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão,
1980, p. 9-35; A.W. Pink, Os Atributos de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
1985, p. 5; Idem., Enriquecendo-se com a Bíblia, São Paulo: Fiel, 1979, p. 15-27; Leon L. Morris, Lu-
cas: Introdução e Comentário, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1973, p. 160.
57
J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 29.
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58
excessiva curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra". (grifos
meus).

Isto não significa que todos nós conseguimos compreender perfeita e exaustiva-
mente a Palavra, mas, aponta para a responsabilidade que temos de, pela graça,
crescer no conhecimento de Jesus Cristo que nos advém pela Escritura (2Pe
59
3.18). O ensino da Palavra é um privilégio altamente responsabilizador. Deus, por
graça, tem se valido de Seus servos para a transmissão de Sua mensagem. Somos
embaixadores cuja responsabilidade é sermos integralmente fiéis à mensagem do
Rei. Com conhecimento de causa, em 1956, Lloyd-Jones (1899-1981), lamentava
que "muitíssimas vezes os ministros cristãos não têm sido senão uma espécie
60
de Capelão da Corte, declarando vagas generalidades".

Como pregadores e mestres, é necessário que não nos contentemos em guiar as


pessoas apenas pelo sopé da montanha da glória de Deus; “torne-se um alpinista
61
nos rochedos íngremes da majestade de Deus”, aconselha Piper.

Podemos estar tão preocupados com as nossas teorias que transformamos a


Palavra em apenas um elemento convalidador do que pensamos. Deste modo,
também nos tornamos infiéis ao Senhor da Palavra. É extremamente perigoso
pensarmos autonomamente e fazermos de Deus um ventríloquo que, com voz
estranha, diga o que queremos. Deus e a Sua Palavra não se adéquam a este
papel. A fidelidade doutrinária parte do desejo de conhecer a Palavra e expô-la em
sua profundidade, abrangência e simplicidade; nada mais, nada menos.

Deixem-me ilustrar parcialmente isto. Como sabemos, o Reformador João Calvino


(1509-1564) era avesso a especulações. Seu desejo era expor as Escrituras com
consciente fidelidade e simplicidade. Este ponto era de extrema importância para
ele. Pouco antes de morrer, convoca os ministros de Genebra à sua casa; tendo-os
à sua volta, despede-se. Entre outras orientações, lhes diz (28.04.1564):

“A respeito de minha doutrina, ensinei fielmente e Deus me deu a graça


de escrever. Fiz isso do modo mais fiel possível e nunca corrompi uma só
passagem das Escrituras, nem conscientemente as distorci. Quando fui
tentado a requintes, resisti à tentação e sempre estudei a simplicidade.
“Nunca escrevi nada com ódio de alguém, mas sempre coloquei fiel-
62
mente diante de mim o que julguei ser a glória de Deus”.

Cerca de treze anos antes (1551), Calvino respondendo uma carta de Laelius So-

58
João Calvino, As Institutas, III.21.4.
59
“Antes, crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja a
glória, tanto agora como no dia eterno” (2Pe 3.18).
60
D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas
Selecionadas, 1992, p. 52.
61
John Piper, A Supremacia de Deus na Pregação, São Paulo: Shedd Publicações, 2003, p. 60.
62
Calvin, Textes Choisis par Charles Gagnebin, Egloff, Paris: © 1948, p. 42-43.
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63
cino (1525-1562), na qual este fazia várias especulações, lhe diz:

“Certamente, ninguém pode ser mais adverso ao paradoxo do que eu,


e não tenho nenhum deleite em sutilezas. No entanto, nada jamais me
impedirá de confessar abertamente aquilo que tenho aprendido da Pala-
vra de Deus, pois nada, senão o que é útil, é ensinado na escola desse
mestre. Ela é meu único guia, e aquiescer às suas doutrinas manifestas será
a minha constante regra de sabedoria. [...]Se você tem prazer em flutuar
em meios a essas especulações etéreas, permita-me, peço-lhe eu, humil-
de discípulo de Cristo, meditar naquilo que conduz à edificação da minha
64
fé”.

O apóstolo Paulo tinha consciência de que a sua mensagem era pura e


simplesmente “todo o desígnio de Deus” (At 20.27).

O ministério pastoral envolve o anúncio perseverante da Palavra: (At


20.20,24,27,31). “A tarefa dos mestres consiste em preservar e propagar as sãs
65
doutrinas para que a pureza da religião permaneça na Igreja”.

Paulo revela alguns aspectos do seu método de ensino:

a) Lugares diferentes: (“Método completo”): Publicamente e nas casas (20);

b) Sem preconceito racial: (“Abrangência completa”): judeus e gregos (21);

c) Sem predileções: (“Todo o rebanho”) (28). O pastorado é sobre todos


aqueles que nos foram confiados. Ele fala que admoestou com lágrimas “a
cada um” (31);

Ele jamais omitiu a Palavra para não desagradar alguém ou apresentou um su-
posto evangelho para benefício próprio ou de quem quer que fosse; pelo contrário,
ele pregava a Palavra que poderia ser escândalo para os judeus e loucura para os
gentios, mas, era o Poder de Deus para a salvação dos que cressem (Rm 1.16/1Co
1.18-25). “Ele compartilhou todas as verdades possíveis com todas as pessoas
possíveis, de todas as formas possíveis. Ele pregou todo o Evangelho, a toda

63
Este é tio de Fausto Paolo Socino (1539-1604), teólogo italiano que entre outras heresias fruto de
uma interpretação puramente racional das Escrituras, negava a doutrina da Trindade, a divindade de
Cristo, sustentando a ressurreição apenas de alguns fiéis etc. O movimento herético conhecido como
Socinianismo é derivado dos ensinamentos de ambos.
64
João Calvino, Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 93. “O propósito divino
não é satisfazer nossa curiosidade, e, sim, ministrar-nos instrução proveitosa. Longe, com to-
das as especulações que não produzem nenhuma edificação” (J. Calvino, As Pastorais, (2Tm
2.14) p. 233). Veja-se também: Segundo Prefácio de Calvino à tradução da Bíblia feita por Pierre Oli-
vétan (1546), In: Eduardo Galasso Faria, ed. João Calvino: Textos Escolhidos, São Paulo: Pendão
Real, 2008, p. 34.
65
João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 12.28), p. 390. Do mesmo modo, acentua MacArthur:
“Toda a tarefa do ministro fiel gira em torno da Palavra de Deus – guardá-la, estudá-la e
proclamá-la” (John F. MacArthur, Com Vergonha do Evangelho, São José dos Campos, SP.: Fiel,
1997, p. 29).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 16/233

66
a cidade com toda a sua força”.

c) A Teologia Sistemática como elaboradora, propagadora e


defensora da Verdade:

Uma das razões fundamentais da existência da Dogmática é a preservação da


fé cristã contra as heresias que assolam a igreja. “É a deteriorização da doutrina que
67
conduz a formação da ideia e sistematização do dogma”. Partindo diretamente das
Escrituras, "o dogmático começa por ocupar-se dos dogmas incorporados na confis-
68
são de sua Igreja e procura ordená-los em um sistema completo". À teologia não
cabe a tarefa de dizer o que as Escrituras não dizem, sob pena de deixar de ser uma
69
genuína teologia, antes ela se propõe a pensar sobre as Escrituras, no afã de ela-
borar uma sistematização que reflita a complexidade e abrangência da totalidade da
revelação de Deus (Rm 3.2/1Tm 3.15). Esta tarefa exigirá de nós sempre um traba-
lho árduo e sério, comprometido com a nossa fidelidade a Deus. Tomás de Aquino
(1225-1274) observou com propriedade:

"Ninguém pode entregar-se à pesquisa da verdade divina sem muito


trabalho e diligência. Este trabalho, muito poucos estão dispostos a
assumi-lo por amor à ciência, embora Deus tenha colocado este desejo
70
no mais profundo do coração humano".

Num segundo momento, como foi o caso da Reforma Protestante, a Dogmática


pode ter o sentido de resgatar a pureza dos ensinamentos bíblicos a fim de purificar
71
a mensagem que tem sido transmitida ao longo dos séculos. Notemos portanto,
que a Teologia tem um compromisso com a edificação da Igreja (Ef 4.11-16): A Igre-
ja é enriquecida espiritualmente com os ensinamentos da Palavra, os quais cabe à
teologia organizar. “A teologia é o sustento da vida cristã”. Ela “alicerça a vi-
vência cristã”.72 Portanto, vale a pena citar a observação de Barth (1886-
1968): “O pregador (...) com toda modéstia e seriedade, deve trabalhar, lu-
tar para apresentar corretamente a Palavra, sabendo perfeitamente que o
73
recte docere só pode ser realizado pelo Espirito Santo”.

Herman Bavinck (1854-1921), em sua aula inaugural em Amsterdã, sobre Religi-

66
John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: Até os confins da terra, São Paulo: ABU, (A Bíblia Fala Ho-
je),1994, (At 20.28-35), p. 370
67
Emil Brunner, Dogmática, Vol. 1, p. 24.
68
L. Berkhof, Introduccion a la Teologia Sistemática, p. 53.
69
Não nos esqueçamos que o "pensar" teológico envolve uma nova categoria – só possível ao rege-
nerado –, que é "pensar de maneira espiritual"; e este "pensar", tem como elemento controlador a o-
ração. (Sl 119.18/1Co 2.11-16).
70
Tomás de Aquino, Súmula Contra os Gentios, IV, p. 67.
71
Cf. Emil Brunner, Dogmática, Vol. 1, p. 24.
72
Stanley J. Grenz & Roger E. Olson, Quem Precisa de Teologia? Um convite ao estudo sobre Deus
e sua relação com o ser humano, p. 46 e 47.
73
Karl Barth, La Proclamacion del Evangelio, p. 46.
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ão e Teologia, disse:

“Religião, o temor de Deus, deve ser o elemento que inspira e anima a


investigação teológica. Isso deve marcar a cadência da ciência. O teólo-
go é uma pessoa que se esforça para falar sobre Deus porque ele fala fo-
ra de Deus e por meio de Deus. Professar a teologia é fazer um trabalho
santo. É realizar uma ministração sacerdotal na casa do Senhor. Isso é por
si mesmo um serviço de culto, uma consagração da mente e do coração
74
em honra ao Seu nome”.

O apóstolo Paulo diz: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino,
(didaskali/a = “instrução”) para a repreensão, para a correção, para a educação na
justiça" (2Tm 3.16). Entre outras coisas, isto significa que o nosso pensar teológico
deverá estar sempre conectado com a fidelidade à Escritura e com o ensino da Pa-
lavra; este aspecto realça a nossa responsabilidade como intérpretes e pregadores
da Palavra. Por outro lado, há aqui um grande conforto, que nem sempre temos nos
dado conta: não precisamos – nem nos foi requerido –, "desculpar" ou "justificar"
75
Deus e a Sua Palavra.

De fato, há sempre o perigo de nossa teologia se transformar em um cerceamen-


to das Escrituras, como se pretendêssemos delimitar de forma policiada a Deus, um
velhinho caduco que já não diz coisa-com-coisa e, por isso, precisa ser atenuado em
sua Revelação. Calvino, biblicamente, tinha uma compreensão bem diferente. Pode-
ríamos citar vários de seus textos que comprovam a nossa afirmação; no entanto,
basta-nos o que destacamos a seguir. Diz ele: “A Escritura é a escola do Espírito
Santo, na qual, como nada é omitido não só necessário, mas também proveitoso de
76
conhecer-se, assim também nada é ensinado senão o que convenha saber”.

Não há o que selecionar ou cortar: "Toda Escritura é (...) útil o para ensino". Al-
gumas vezes, tenho a impressão de que diante de "questões embaraçosas" tais co-
mo: a "condenação de todos os homens inocentes que morrerem sem conhecer a
Cristo", a "eleição de uns para a salvação em detrimento de outros", "o quase silên-
cio dos evangelhos sobre os trinta primeiros anos de Cristo", e semelhantes, ficamos
como que procurando uma justificativa para O Soberano agir desta ou daquela for-
ma, buscamos uma maneira de tornar Deus apetecível à mente e aos valores mo-
dernos e “pós-modernos”. Como cristãos, devemos aprender, se ainda não o fize-
mos, a nos calar diante do silêncio de Deus, sabendo que o som da nossa voz petu-
77 78
lante e "lógica" – em tais circunstâncias –, por si só seria uma "heresia". Diante

74
Apud Henry Zylstra em prefácio à obra de Bavinck, Our Reasonable Faith, p. 7
75
Calvino afirma que: “Contra os ímpios, que com destemor falam mal de Deus abertamente, o Se-
nhor se defende suficientemente com a Sua justiça, sem que Lhe sirvamos de advogados” [João Cal-
vino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, Vol. III, (II-
I.8), p. 49]. Na sequência, entretanto, ele nos mostra como Deus nos fornece argumentos racionais
para fazer calar as suas maldades e injustiças.
76
João Calvino, As Institutas, III.21.3
77
A lógica dirigida pelo espírito de submissão a Deus, sempre será útil; caso contrário, esqueçamo-la.
No entanto, devemos ter em que mente que “não podemos prender Deus na prisão da lógica huma-
na” [Anthony Hoekema. Salvos pela Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 86].
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da vontade de Deus – que é a causa final de todos os Seus atos –, temos que man-
ter um reverente silêncio, reconhecendo que Ele assim age, porque foi do Seu agra-
do; conforme o Seu santo, sábio e bondoso querer: Isto nos basta! (Sl 115.3;135.6;
Dn 4.35; Ef 1.11). O que nos compete é procurar entender, através do estudo e da
oração, o que Deus quer nos ensinar em "toda a Escritura" e em cada parte da Es-
79
critura.

Lembremo-nos de que Deus não precisa ser justificado, explicado ou racionaliza-


do. Ele ultrapassa em muito a nossa capacidade de percepção (Jó 11.7; Is 40.18,
80
28; 45.15; Rm 11.33-36): um Deus plenamente explicado, seria um “deus” humani-
zado, à altura da nossa "razão" humana e preso à cosmovisão contemporânea. Em
cada época este “deus” seria compreendido de uma forma, de acordo com a percep-
81
ção e valores hodiernos. Neste caso a Teologia se transformaria em antropologi-
82
a. A Teologia não tem nem pode ter esta pretensão – de justificar Deus –; ela ape-
nas O descreve conforme Ele Se revelou em atos e palavras nas Escrituras, bus-
83
cando permanentemente a Sua iluminação para a compreensão da Sua Palavra.
"A teologia reformada sustenta que Deus pode ser conhecido, mas que ao homem é
impossível ter um exaustivo e perfeito conhecimento de Deus (...). Ter esse conhe-
cimento de Deus seria equivalente a compreendê-lo, e isto está completamente fora
84
de questão: 'Finitum non possit capere infinitum'.".

78
Vd. João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 9.14), p. 330; J. Cal-
vino, As Institutas, III.21.4 e III.23.8.
79
Spurgeon (1834-1892) salientou: “Não se deve reter nenhuma doutrina. A doutrina retida, tão de-
testável na boca dos jesuítas, não é nem um pouco menos abjeta quando adotada por protestantes”
(C.H. Spurgeon, Lições aos Meus Alunos, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1982,
Vol. II, p. 94). “O ensino saudável é a melhor proteção contra as heresias que assolam à direita e à
esquerda entre nós” (C.H. Spurgeon, Lições aos Meus Alunos, Vol. II, p. 89).
80
“.... o Criador é incompreensível para as Suas criaturas. Um Deus que pudesse ser exaustivamente
compreendido por nós, cuja revelação sobre Si mesmo não nos apresentasse qualquer mistério, seria
um Deus segundo a imagem do homem e, portanto, um Deus imaginário, e nunca o Deus da Bíblia”
(J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 20).
81
Farley acentua com propriedade que “Um Deus que não fosse inefável, que fosse inteiramente co-
nhecido como um objeto, uma coisa ou um dado, não seria o Deus da Escritura” (Benjamin Wirt Far-
ley, A Providência de Deus na Perspectiva Reformada: In: Donald K. Mckim, ed. Grandes Temas da
Tradição Reformada, São Paulo: Pendão Real, 1999, p. 74).
82
Como equivocadamente entendia Feuerbach (1804-1872). (Veja-se: L. Feuerbach, A Essência do
Cristianismo, Campinas, SP.: Papirus, 1988, Prefácio à 2ª edição, p. 35 e p. 55.
83
Charles Hodge (1797-1878) observou com precisão: “....A teologia não é filosofia. Não pretende
descobrir a verdade nem conciliar o que ensina como verdadeiro com todas as outras verdades. Seu
lugar é simplesmente declarar o que Deus tem revelado em Sua Palavra, e justificar estas declara-
ções até onde seja possível frente a equívocos e objeções. Este limitado e humilde ofício da teologia
é especialmente necessário ter em mente, quando passamos a falar dos atos e propósitos de Deus”
(Charles Hodge, Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1986, Vol. I, p. 535).
84
L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz Para o Caminho, 1990, p. 32. “.... somos se-
res humanos, e é preciso que observemos sempre as limitações de nosso conhecimento, e não os ul-
trapassemos, pois tal gesto seria usurpar as prerrogativas divinas” [João Calvino, As Pastorais, São
Paulo: Paracletos,1998, (1Tm 5.25), p. 160]. “Deus não pode ser apreendido pela mente humana. É
mister que Ele se revele através de Sua Palavra; e é à medida que Ele desce até nós que podemos,
por sua vez, subir até os céus” [João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000,
Vol. 1, (Dn 3.2-7), p. 186]. Do mesmo modo, enfatiza Schaeffer (1912-1984): “A comunicação entre
Deus e o homem é verdadeira, o que não significa que ela seja exaustiva. Esta é uma importante dife-
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Retornando ao texto de 2Tm 3.16, lemos: "Toda Escritura é inspirada por Deus e
útil ('proveitosa')....". Calvino (1509-1564) comentando este passo sagrado diz:

"'A Escritura é proveitosa'. Segue-se daqui que é errôneo usá-la de forma ina-
proveitável. Ao dar-nos as Escrituras, o Senhor não pretendia nem satisfazer nos-
sa curiosidade, nem alimentar nossa ânsia por ostentação, nem tampouco depa-
rar-nos uma chance para invenções místicas e palavreado tolo; sua intenção, ao
contrário, era fazer-nos o bem. E assim, o uso correto da Escritura deve guiar-nos
85
sempre ao que é proveitoso”.

“O propósito divino não é satisfazer nossa curiosidade, e, sim, ministrar-nos ins-


trução proveitosa. Longe com todas as especulações que não produzem nenhuma
86
edificação”. O “proveitoso”, tem a ver com o objetivo de Deus para o Seu povo:
87
que tenha uma vida piedosa e santa; seja maduro (perfeito). Por isso, conclui que,
“é quase impossível exagerar o volume de prejuízo causado pela pregação hipócrita,
88
cujo único alvo é a ostentação e o espetáculo vazio”.

Muitas pessoas querem saber do seu futuro, o que as aguarda, se serão bem su-
cedidas em seus projetos, etc.; buscando para isso orientação em cartas de baralho,
jogo de búzios, em mapas astrais, por meio da necromancia, revelações sobrenatu-
rais e "caixinhas de promessa". Todavia, Paulo está dizendo que a Palavra de Deus
é útil para o nosso ensino; não para fazer previsões ou para ficar entregue aos nos-
sos casuísmos interpretativos ou para satisfazer às nossas curiosidades pecamino-
sas... Ela é útil para o ensino. Deus quer nos falar por intermédio da Sua Palavra. A
questão é: queremos nós ouvi-lo? Estamos preparados para isto? Temos priorizado
em nossa vida o ouvir a voz de Deus? Como teólogos, temos nos preocupado com
isto, ou simplesmente buscamos na Palavra a convalidação das nossas hipóteses já
dogmatizadas pelas nossas paixões?

Com demasiada frequência, nós procuramos na Palavra apenas uma confirmação


de nossos intentos, de nossos propósitos (2Tm 4.3-4); queremos apenas que ela
nos diga o que desejamos ouvir. Contudo, a observação de Paulo permanece: Toda
a Escritura é proveitosa para o ensino... "Pois tudo quanto outrora foi escrito, para o
nosso ensino (didaskali/a) foi escrito....” (Rm 15.4). Precisamos ter a “santa
modéstia” de deixar que as Escrituras corrijam a nossa teologia e a nossa prática.

A Palavra de Deus nos ensina preventivamente. Cabe aos Ministros de Deus en-
siná-la fielmente, para que a Igreja seja aperfeiçoada em santidade e, assim, "... não
mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro, e levados ao redor

rença e precisa sempre ser mantida em mente. Para conhecer qualquer coisa que seja, de forma e-
xaustiva, teríamos que ser infinitos, como Deus é. Mesmo no céu não seremos assim” (Francis A. S-
chaeffer, O Deus que Intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 151).
85
João Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.16) p. 263. Ver também: João Calvino, As Pastorais, (2Tm
2.15), p. 233-234.
86
J. Calvino, As Pastorais, (2Tm 2.14), p. 233.
87
J. Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.16-17), p. 264.
88
João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.3), p. 164.
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89
por todo vento de doutrina (didaskali/a), pela artimanha (kubei/a) dos homens,
pela astúcia com que induzem ao erro” (Ef 4.14). Calvino, enfatiza que “Deus nos
deu sua Palavra na qual, quando fincamos bem as raízes, permanecemos inamoví-
veis; os homens, porém, fazendo uso de suas invenções, nos extraviam em todas as
90
direções”.

Por isso, Paulo enfatiza a responsabilidade de Timóteo e Tito – como de todos os


Ministros de Deus –, de meditar, preservar e ensinar a sã doutrina (1Tm 4.6,13,16;
Tt 1.9; 2.1,7) pois, diz ele:
91 92
“.... haverá tempo (kairo/j) em que não suportarão (a)ne/xomai) a sã doutrina
(didaskali/a); pelo contrário, cercar-se-ão de mestres, segundo as suas próprias
cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à
93
verdade, entregando-se às fábulas” (mu=qoj = lenda, mito) (2Tm 4.3-4).

Pode soar estranho, mas, ao que parece, a gravidade do ensino bíblico juntamen-
te com a seriedade de suas reivindicações, fazem com que o homem não queira sa-
ber dele, preferindo uma mensagem mais light, que quando muito mexa com seus
músculos, mas não com a sua mente e coração. Para muitas pessoas, a religião o-
cupa um lugar reservado às crianças, às mulheres, aos pobres, aos velhos ou,
quando a medicina confessa a sua impotência, aí, nesta brecha a religião pode ter

89
kubei/a (só ocorre aqui em todo o Novo Testamento), palavra que vem de ku/boj, astúcia, dolo,
que, passando pelo latim, cubus, chegou à nossa língua como cubos, dados. Significa a habilidade
para manipular os dados, usando de truques para iludir e persuadir. Paulo emprega a palavra figura-
damente para se referir ao homem que usa de todos os seus truques para enganar, dar pistas erra-
das e driblar; revelando aqui a habilidade de um jogador profissional sem escrúpulos, que obviamente
quer levar vantagem a qualquer preço.
90
João Calvino, Efésios, (Ef 4.14), p. 128-129.
91
A ideia da palavra é de “oportunidade”, “tempo certo”, “tempo favorável”, etc. (Vd. Mt 24.45; Mc
12.2; Lc 20.10; Jo 7.6,8; At 24.25; Gl 6.10; Cl 4.5; Hb 11.15). Ela enfatiza mais o conteúdo do tempo.
Este termo que ocorre 85 vezes no NT é mais comumente traduzido por “tempo”, surgindo, então, al-
gumas variantes, indicando a ideia de oportunidade. Assim temos (Almeida Revista e Atualizada):
Tempo e tempos: Mt 8.29; 11.25; 12.1; 13.30; 14.1; Lc 21.24; At 3.20; 17.26; “Devidos tempos”: Mt
21.41; “Tempo determinado”: Ap 11.18; “Momento oportuno”: Lc 4.13; “Tempo oportuno”: Hb 9.10;
1Pe 5.6; Oportunidade: Lc 19.44; Gl 6.10; Cl 4.5; Hb 11.15; Devido tempo: Lc 20.10; Presente: Mc
10.30; Lc 18.30; “Circunstâncias oportunas”: 1Pe 1.11; Algum tempo: Lc 8.13; Hora: Lc 8.13; 21.8;
Época: Lc 12.56; At 1.7; 1Ts 5.1 (Xro/nwn kai\ tw=n kairw=n); 1Tm 6.15; Hb 9.9; Ocasião: Lc 13.1; 2Ts
2.6; 1Pe 4.17; Estações: At 14.17; Vagar: At 24.25; Avançado: Hb 11.11.
92
A)ne/xomai aparece 15 vezes no Novo Testamento, sendo traduzida por: “Sofrer” (Mt 17.17 = Mc
9.19; Lc 9.41); “atender” (At 18.14); “suportar” (1Co 4.12; 2Co 11.1; Ef 4.2; Cl 3.13; 2Ts 1.4; 2Tm 4.3;
Hb 13.22); “tolerar” (2Co 11.4,19,20). Na LXX este verbo não ocorre. No entanto, a))ne/xw é emprega-
da umas 11 vezes, sendo traduzida por: conter (Is 42.14; 64.12); carregar (Is 46.4), deter (Is 63.15) e
reter (Am 4.7; Ag 1.10). Originalmente, a palavra estava associada à ideia de manter-se ereto, ergui-
do; daí o sentido de suportar de “cabeça erguida”.
93
Calvino, que define fábulas como “.... aqueles contos fúteis e levianos que não têm em si nada de
sólido” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 1.4), p. 29], adverte-nos quanto aos perigos da fé que se
deixa influenciar por elas: “[A] fé saudável equivale à fé que não sofreu nenhuma corrupção proveni-
ente de fábulas” [João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320]. “Se porventura desejarmos conservar
a fé em sua integridade, temos de aprender com toda prudência a refrear nossos sentidos para não
nos entregarmos a invencionices estranhas. Pois assim que a pessoa passa a dar atenção às fábu-
las, ela perde também a integridade de sua fé” [João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320].
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algum relevo: peço ou encomendo algumas orações. O homem longe de Deus e a-


vesso à Sua Palavra, quando possível, fabrica e molda seus mestres e, domestica
os outros.

Na mesma linha de raciocínio, o escritor de Hebreus pede aos seus leitores que
suportem aquela exortação que fizera; em outras palavras, pede que suportem a “sã
doutrina”: “Rogo-vos ainda, irmãos, que suporteis (a)ne/xomai) a presente palavra de
exortação; tanto mais quanto vos escrevi resumidamente” (Hb 13.22).

Por sua vez, não devemos “suportar” os falsos mestres com seus ensinos enga-
nosos. Paulo receia isso pelos coríntios. Logo eles que eram tão críticos em relação
a Paulo e tão tolerantes para com o ensino enganoso, que se constituía num “evan-
gelho” estranho e oposto ao ensinado pelo Apóstolo. Notemos que os falsos mestres
não apresentavam uma imagem de Jesus corrompida, mas, tentavam distorcer os
seus ensinamentos: “Mas receio que, assim como a serpente enganou a Eva com a
sua astúcia, assim também seja corrompida a vossa mente e se aparte da simplici-
dade e pureza devidas a Cristo. Se, na verdade, vindo alguém, prega outro (a)/lloj)
Jesus que não temos pregado, ou se aceitais espírito diferente (e(/teroj) que não
tendes recebido, ou evangelho diferente (e(/teroj) que não tendes abraçado, a esse,
de boa mente (kalw=j), o tolerais (a)ne/xomai)” (2Co 11.3-4). À frente, Paulo acusa
94
os coríntios de estarem alegremente (“boa mente” h(de/wj), com satisfação e delei-
te, “tolerando” os insensatos: “Porque, sendo vós sensatos, de boa mente tolerais
(a)ne/xomai) os insensatos” (2Co 11.19).

Somente quando a Igreja se dispõe a aprender com discernimento a Palavra, ela


pode de fato ter lucidez para interpretar corretamente os outros ensinos... "Ora, o
Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos alguns apostatarão da fé,
por obedecerem a espíritos enganadores e a ensinos (didaskali/a) de demônios,
pela hipocrisia dos que falam mentiras, e que têm cauterizada a própria consciência"
(1Tm 4.1-2).

Toda a Escritura é útil para o ensino. Queremos aprender com Deus? Desejamos
fazer a vontade de Deus? Estamos dispostos de fato a ouvir a Sua voz? (Observe
bem: estamos dizendo a Sua voz; a voz de Deus, não a nossa). Se a sua resposta
for não, confesso não ter argumentos para convencê-lo da oportunidade que você
está deixando escapar, contudo, o que posso reafirmar, é que Deus Se revelou na
Sua Palavra, para que possamos ser conduzidos a Cristo, aprendendo dEle a res-
peito de Si mesmo, de nós e do significado de todas as coisas. Portanto, Ele deseja
nos ensinar. A teologia deve estar sempre a este serviço: aprender e ensinar. A teo-
logia não é algo acabado e feito, ela está sempre a caminho buscando uma compre-
ensão mais exaustiva e fiel da Revelação. Quanto aos teólogos, enquanto não a-
prendermos a aprender, não poderemos ser teólogos! O teólogo tem paixão por en-

94
h)de/wj * Mc 6.20; 12.37; 2Co 11.19. A palavra é proveniente de h(donh/, “deleite”, “prazer” (*Lc 8.14;
Tt 3.3; Tg 4.1,3; 2Pe 2.13). h(donh/, de onde vem o termo “hedonista”, é sempre usada negativamente
no Novo Testamento (Ver: E. Beyreuther, Desejo: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Interna-
cional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. I, p. 606-608; In: G.
Stählin, h)donh/: In: Gerhard Kittel & G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament,
Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983, Vol. II, p. 909-926).
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sinar, mas a sua paixão primeira e prioritária deve ser a de ouvir a voz de Deus nas
Escrituras. “Nenhum homem será sempre um bom mestre se não revelar-se pesso-
almente educável e sempre disposto a aprender; e ninguém satisfará àquele que se
acha por demais imbuído da plenitude e lucidez de seu conhecimento, que crê que
95
nada lucraria ouvindo a outrem”.

Um outro ponto que devemos destacar, é que à Igreja cabe a responsabilidade de


propagar o Evangelho e defendê-lo contra as heresias e a imoralidade. Uma visão
defeituosa da doutrina bíblica levará necessariamente a equívocos na estrutura e
ensino da Igreja bem como no seu aspecto ético. O cristianismo não é apenas um
96
ensino moral, todavia tem implicações naquilo que cremos, na forma como enca-
ramos a realidade e, consequentemente, nos nossos valores morais. "Uma religião
sem doutrina seria uma religião sem significado. E tal religião não poderia ser propa-
97
gada nem defendida". Toda doutrina ensinada nas Escrituras tem relação com ou-
tras doutrinas; e estas, tem implicações direta com a nossa ética. Por isso, cada
doutrina deve ser vista dentro de uma perspectiva abrangente das Escrituras e, ao
mesmo tempo, deve vir acompanhada da questão pessoal e intransferível – e por
isso mesmo, de extrema relevância: o que devo fazer? A genuína teologia conduz à
piedade. A Teologia Sistemática, partindo da Palavra, esforça-se por elaborar um
sistema doutrinário que reflita a própria organicidade das Escrituras, apresentando-o
de forma coerente e organizado, proporcionando elementos para o ensino do
Evangelho e a defesa da Fé (Fp 1.7,16; 2.16; 2Tm 2.15/1Pe 3.15).

A Igreja é uma comunidade constituída por todos aqueles que pelo dom da fé,
atenderam ao convite gracioso de Deus feito por intermédio da Palavra. Este convite
envolveu o nosso arrependimento e fé: O abandono ao pecado e um caminhar
seguro em direção a Deus, confiando unicamente nas Suas Promessas.

Desde a Reforma, a "genuína pregação do Evangelho" tem sido identificada como


uma das marcas da Igreja. Deste modo, a pregação não é algo que a Igreja possa
optar entre fazer ou não fazer. Por outro lado, devemos enfatizar que a proclamação
não é simplesmente a missão da Igreja; é mais do que isso. A pregação é essencial
à sua própria existência. Por isso, a Igreja, desejosa de fazer a vontade de Deus,
cumpre de forma natural aquilo que caracteriza o seu ser; que diz respeito à razão
da sua existência. Deste modo a Igreja vive na concretização do propósito de Deus,
anunciando as virtudes de Deus, o Evangelho da graça, para que por meio da
Palavra, Deus cumpra todo o Seu propósito de justiça e misericórdia em todos os
homens.

A Igreja se revela no ato proclamador. Ela não é a mensagem, mas, na sua exis-
tência, ela demonstra o poder daquilo que testemunha, visto ser a Igreja o monu-
mento da Graça e Misericórdia de Deus, constituído a partir da Palavra Criadora de
Deus. É justamente por isso, que "a pregação é uma tarefa que somente ela pode

95
João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.31), p. 433.
96
"Se o cristianismo é apenas um ensino moral, um ensino ético, é tão inútil como todos os demais.
Está provado que o caminho 'cristão' é inútil toda vez que o reduzem a esse nível" (D. Martyn L-
loyd-Jones, O Combate Cristão, p. 31).
97
Walter T. Conner, Doctrina Cristiana, p. 19.
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98
realizar".

A Igreja é uma testemunha comissionada pelo próprio Deus, para testemunhar os


Seus atos Gloriosos e Salvadores. Assim, a sua mensagem não foi recebida de ter-
ceiros, mas sim, diretamente de Deus, por intermédio da Palavra do Espírito, regis-
trada nas Sagradas Escrituras. A Igreja declara ao mundo o "Evangelho do Reino",
visto e experimentado por ela em sua cotidianidade. A Igreja e o evangelho são in-
separáveis. (...) A Igreja é tanto o fruto como o agente do evangelho, visto que por
99
meio do evangelho a igreja se desenvolve e por meio desta se propaga aquele”. O
testemunho da Igreja é resultado de uma experiência pessoal: O Espírito dá
testemunho do Filho, porque procede do Pai e do Filho (Jo 14.26; 15.26; Gl 4.6); nós
damos testemunho do Pai, do Filho e do Espírito, porque Os conhecemos e temos o
Espírito em nós (Jo 15.26,27; 14.23/Rm 8.9). Notemos, contudo, que a experiência
da Igreja não se torna a base da sua proclamação; ela anuncia não as suas
experiências mas, a Palavra de Deus. A nossa tarefa é ensinar o Evangelho tal qual
registrado nas Escrituras, em submissão ao Espírito que nos dá compreensão na e
por intermédio da Palavra (Sl 119.18).

A teologia, e consequentemente a Igreja, têm com muita frequência se distancia-


100
do daquilo que a caracteriza: a pregação da Palavra que consiste no ensino da
101
verdade e o genuíno culto ao Deus verdadeiro. Ela tem feito discursos políticos,
sociais, ecológicos, etc.; todavia, tem se esquecido de sua prioridade essencial:
pregar a Palavra a fim de que os homens se arrependam e sejam batizados,
ingressando assim, na Igreja. Com isto, não estamos defendendo um total
distanciamento da Igreja do que ocorre na História, pelo contrário, a Igreja deve agir
de forma evidente e efetiva na História; acontece, que ela age de forma eficaz não
com discursos rotineiros a respeito da pobreza, da violência, das guerras e do
desmatamento, mas sim, na proclamação do Evangelho de Cristo, que é o poder de
Deus para a transformação de todos os homens que creem (Rm 1.16-17). A
recomendação bíblica é: "Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não,
corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo
em que não suportarão a sã doutrina (didaskali/a); pelo contrário, cercar-se-ão de
mestres, segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos;
e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas. Tu, porém, sê
sóbrio em todas as cousas, suporta as aflições, faze o trabalho de evangelista,
cumpre cabalmente o teu ministério" (2Tm 4.2-5).

98
David M. Lloyd-Jones, Pregação & Pregadores, p. 23.
99
John R.W. Stott & Basil Meeking, editores, Dialogo Sobre La Mision, Grand Rapids, Michigan:
Nueva Creación, 1988, p. 62.
100
Podemos tomar operacionalmente a definição que Alexander Vinet (1797-1847) deu de pregação:
“A pregação é a explicação da Palavra de Deus, a exposição das verdades cristãs, e a aplicação des-
sas verdades ao nosso rebanho” (A.R. Vinet, Pastoral Theology: or, The Theory of the Evangelical
Ministry, 2ª ed. New York: Ivison, Blakeman, Taylor & Co. 1874, p. 189).
101
"Uma igreja com um grande número de membros, com um imponente edifício, com uma elaborada
liturgia, com uma eficiente organização e com vestimentas digníssimas, porém sem a verdade, não é
uma igreja. Por outro lado, uma igreja com pouquíssimos membros, com um edifício que não é mais
que uma choça, com uma ordem simples de adoração, com um mínimo de organização e sem vesti-
duras eclesiásticas, é uma igreja de Jesus Cristo se somente é leal à verdade" (R.B. Kuiper, El Cuer-
po Glorioso de Cristo, Grand Rapids, Michigan, SLC., 1985, p. 101).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 24/233

A Teologia Sistemática tem também um compromisso com a elaboração, preser-


vação e proclamação da sã doutrina, por isso, ela deve esforçar-se por preservar o
ensino de todo desígnio de Deus (At 20.27) conforme revelado nas Escrituras. "On-
de a teologia sistemática é menosprezada, abundam numerosas seitas e falsos cul-
102
tos".

Isto nos conduz ao nosso assunto específico: A doutrina da Trindade. Esta


doutrina é uma das marcas características do Cristianismo, sendo
103
fundamentalmente dependente da revelação bíblica. Ela, conforme veremos,
sofreu ao longo da história diversos ataques, muitos dos quais resultantes de uma
compreensão limitada e errada dos ensinamentos bíblicos.

Herman Bavinck (1854-1921) acentua:

“O artigo sobre a santa Trindade é o coração e o núcleo de nossa


confissão, a marca registrada de nossa religião, e o prazer e o conforto de
todos aqueles que verdadeiramente crêem em Cristo.
“Essa confissão foi a âncora na guerra de tendências através dos
séculos. A confissão da santa Trindade é a pérola preciosa que foi
104
confiada à custódia da Igreja Cristã”.

Ainda à guisa de introdução, devemos enfatizar que este ensinamento não é


decorrente – como alguns equivocadamente pensam –, de especulação humana;
antes, a nossa dependência na formulação e compreensão desta doutrina é
unicamente da iluminação do Espírito por intermédio da Palavra. As Escrituras
Sagradas contém elementos suficientes para a formulação deste ensino. Esta
doutrina é tão surpreendente que jamais poderia ter sido inventada pelo homem; ela
é resultado da Revelação Especial de Deus que nos foi concedida para que
conheçamos o Trino Deus e o adoremos.

Partindo deste ponto, iniciemos o nosso estudo.

1. A “DOENÇA” DO ATEÍSMO ENTRE OS GREGOS:

“.... vós sois assim, gregos, elegantes


no falar mas loucos no pensar, pois
chegastes a preferir a soberania de mui-
tos deuses em vez da monarquia de um
só Deus, como se acreditásseis estar se-
guindo demônios poderosos” – Taciano,

102
B.A. Demarest, Teologia Sistemática: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da
Igreja Cristã, Vol. III, p. 516.
103
Cf. Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Editora Hagnos, 2003, Vol. 1, p. 452.
104
Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, 4ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House,
1984, p. 145.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 25/233

Discurso contra os Gregos, São Paulo: Pau-


lus, 1995, 14. p. 80.

“É, portanto, relativamente sem im-


portância se uma pessoa crê ou não na
existência de Deus. Existência é um
pseudoconceito. A questão importante
é ‘Quem é Deus?’. A esta pergunta o
Cristianismo oferece uma resposta trini-
tariana” – Gordon H. Clark, Ateísmo: In:
Carl Henry, org. Dicionário de Ética Cristã,
São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 63.

105
Na Grécia antiga, ateísmo, na realidade, “impiedade” (a)se/beia) para com
106
os deuses era a acusação comum feita àqueles que fizessem crítica à religião
predominante, sendo descuidados para com as suas obrigações rituais. Este com-
107
portamento era considerado anti-social. Se a pessoa fosse pública ou influente,
essa acusação poderia servir como forma de vingança ou, para desacreditá-lo diante
da opinião pública. O caso mais conhecido é o do filósofo Sócrates (469-399 a.C.),
que entre outras acusações teve a de “.... não crer nos deuses em que o povo
108
crê e sim em outras divindades novas”. Cometendo um anacronismo, seria
uma espécie de denúncia ao Santo-Ofício tão comum feita por católicos em Portugal
a partir do século XVI e depois também no Brasil, a respeito dos chamados cristãos-
novos, que eram acusados de que mesmo se declarando cristãos, continuavam o-
109
cultando suas práticas judaicas. Um dado importante, é que a inquisição ocultava

105
No grego clássico existiam os termos a)/qeoj (“sem deus” ou “abandonado pelos deuses” )(Cf. Lid-
dell & Scott; Bauer) (Ef 2.12) e a)qeo/thj (“irreligiosidade”, “incredulidade”, “impiedade”). A palavra
ateísmo surgiu apenas no século XVI, sendo empregada pela primeira vez em francês (atheísme) e
posteriormente em inglês (atheism) (1587). Em português a palavra é também datada do século XVI
(Veja-se: http://en.wikipedia.org/wiki/Atheist#cite_note-12) (consultado em 12/07/08).
106
No grego clássico a palavra não era reservada apenas ao conteúdo religioso, tinha um emprego
mais amplo, envolvendo a conduta (conteúdo ético). Platão, por exemplo a emprega no sentido de
“impiedade (...) para com os deuses e para com os pais” (Platão, A República, 7ª ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, (1993), 615c); desprezo para com os homens (Platão, A República,
391c). Vejam-se diversos exemplos em: W. Foerster, a(sebh/j, etc: In: G. Friedrich & Gerhard Kittel,
eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8ª ed. Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans
Publishing Co., (reprinted) 1982, Vol. VII, p. 185-187. Consulte também: W. Gunther, Piedade: In:
Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo:
Vida Nova, 1981-1983, Vol. III, p. 544-547. No Novo Testamento a palavra tem o emprego comum de
impiedade: * Rm 1.18; 11.26; 2Tm 2.16; Tt 2.12; Jd 15,18
107
Quanto à progressiva distinção entre o a)qeo/thj e o a)sebe/ia, veja-se: : W. Foerster, a(sebh/j,
etc: In: G. Friedrich & Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Vol. VII, p.
186.
108
Platão, Defesa de Sócrates, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. II), 1972, 24b-c. p.
17. Evidentemente, há inúmeros outros casos. Um outro bem conhecido é o de Diágoras de Melos (c.
465-410 a.C.) – aliás, em todas as menções feitas ao seu nome, aparece o apelido de “o ateísta” –,
discípulo de Demócrito, que foi acusado de impiedade quando ensinava em Atenas (411 a.C.) devido
ao seu suposto ateísmo (Vd. Cicero, The Nature of the Gods, I.1. p. 69; III.88-90, p. 232). (Ver:
W.K.C. Guthrie, Os Sofistas, São Paulo: Paulus, 1995, p. 220-221).
109
Esta designação "cristãos-novos" surgiu no século XVI para distinguir os judeus convertidos dos
"cristãos-velhos". Estes tinham maiores privilégios em suas áreas de trabalho, além de terem acesso
à determinadas funções impossíveis àqueles. Apesar da lei promulgada em Portugal em 1507, quan-
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 26/233

do processo judicial o nome dos acusadores, das testemunhas de acusação bem


como da extensão das acusações, torturando os acusados para que denunciassem
110
outros, caso houvesse.

111
Mas, na realidade – apesar de listas antigas de “ateus” gregos, cuja crença é
112
denominada por Platão (427-347 a.C.) de “doença” – tem sido extremamente
difícil provar além de qualquer contestação, que algum pensador grego tivesse sido
ateu “puro”. No entanto, o que acontecia era coisa diferente: apesar do paganismo
grego da Antiguidade ser cheio de lendas e superstições, de quando em quando al-
guns pensadores se levantavam contra as crenças e costumes populares, declaran-
do algo de relevo. Muitas das críticas estavam relacionadas – ainda que não solitari-
amente –, à fragilidade moral dos deuses tão candidamente descrita nas obras de
113
cunho histórico-religioso e que dominava a mente dos povos. Encontramos, por
exemplo, a percepção de que os homens tendiam a fazer seus deuses à sua ima-
114
gem e semelhança. Aliás, esta é uma característica do ser humano, projetando o
115
seu mundo a partir de si mesmo, dando uma espécie de “troco” a Deus... Calvino
(1509-1564), diz que o homem pretende usurpar o lugar de Deus: “Cada um faz
de si mesmo um deus e virtualmente se adora, quando atribui a seu próprio

do os "cristãos-novos" foram equiparados aos "cristãos-velhos", proibindo qualquer discriminação, na


prática isto não ocorria, visto que as leis inquisitoriais que, muitas vezes, dão-nos a impressão de
constituir um Estado dentro de outro Estado, exigiam a "limpeza de sangue", que consistia em exigir
que o pretendente a uma função eclesiástica – graus acadêmicos, profissões liberais e ordens milita-
res –, não tivesse antepassados judeus. Esta segregação só foi eliminada definitivamente com o
Marques de Pombal (1699-1782), quando seguindo as disposições legais de 1768, eliminou a lista
das famílias de "cristãos-novos", aboliu a "limpeza de sangue" (16/02/1773) bem como decretou fi-
nalmente o fim da distinção entre os cristãos (25/05/1773 e 15/12/1774 e 1775), declarando os "cris-
tãos-novos" hábeis para exercerem todos os cargos públicos. A partir de 1779, devido pressões de D.
Maria I (1777-1816), o papa Pio VI (1775-1799) concedeu autorização para que os "cristãos-novos"
de "bom comportamento" pudessem ingressar em qualquer posto eclesiástico e nas ordens militares.
[Vejam-se os verbetes: António José Saraiva, Cristãos-Novos; Ruy d'Abreu Torres, Cristãos-Velhos; e
Alberto Martins de Carvalho, Santo Ofício: In: Joel Serrão, dir. Dicionário de História de Portugal, Por-
to: Livraria Figueirinhas, (1981), Vol. II, respectivamente, p. 233-235 e 235; Vol. V, p. 476; Frédéric
Max, Prisioneiros da Inquisição, Porto Alegre, RS.: L&PM, 1991, p. 31. Quanto a uma abordagem
mais ampla da segregação racial portuguesa, incluindo judeus, indianos, africanos e asiáticos, Vd.
C.R. Boxer, O Império Colonial Português, Lisboa: Edições 70, (1977), p. 279ss].
110
Cf. C.R. Boxer, A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770), Lisboa: Edições 70, (1981), p. 108.
“Os métodos adotados pela Inquisição para coligir evidência incluíam uma recompensa às
atividades dos informadores, mexeriqueiros e difamadores. Os ódios pessoais podiam ser
vingados pela simples denúncia de que uma mulher ou um homem tinham mudado de ca-
misa a uma sexta-feira à noite” (C.R. Boxer, A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770), p. 108).
111
Cf. W.K.C. Guthrie, Os Sofistas, p. 220-221. Vd. Cicero, The Nature of the Gods, I.1; João
Calvino, As Institutas, I.3.3.
112
Platão usa a expressão: “doença do ateísmo” (Platão, Leis, 908c). O capítulo X de sua obra é
dedicada à defesa da religião combatendo algumas formas de ateísmo. Veja-se um bom resumo des-
te capítulo em: Ateísmo: N. Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982,
p. 82-83.
113
Vd. alguns exemplos de insatisfação In: W.K.C. Guthrie, Os Sofistas, p. 212ss.
114
Vd. Erich Fromm, A Arte de Amar, Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1960, p. 92; Martinho Lutero,
Catecismo Maior, São Paulo: Livraria Fittipaldi Editora, 1965, p. 16-17.
115
“O homem em geral, e o homem primitivo em particular, tem tendência para imaginar o mundo ex-
terior à sua imagem” (Bronislaw Malinowski, Magia, Ciência e Religião, p. 20).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 27/233

116
poder o que Deus declara pertencer-lhe exclusivamente”. No entanto, a
compreensão de Calvino (1509-1564) a respeito do homem crente, permanece: “o
coração fiel não inventa um deus a seu gosto, mas põe a sua atenção no
único Deus verdadeiro, e não Lhe atribui o que lhe parece bom, mas se ale-
117
gra com o que de Deus lhe é revelado”. E, “O único fundamento de toda
118
a religião é a imutável verdade de Deus”.

Entre os filósofos da Antiguidade que souberam criticar com discernimento as


práticas religiosas do seu tempo, destacamos Xenófanes (c. 570-c.460 a.C.),
Heráclito (c. 540-480 a.C.) e Empédocles (c. 495-455 a.C.).

Xenófanes faz uma crítica mordaz a Homero e Hesíodo, dizendo:

"Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo o que para os homens é


opróbrio e vergonha: roubo, adultério e fraudes recíprocas.
"Como contavam dos deuses muitíssimas ações contrárias às leis: roubo,
adultério, e fraudes recíprocas.
"Mas os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm
vestimentas, voz e forma semelhantes a eles.
"Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos, e pudessem, com elas,
pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de
deuses semelhantes a cavalos, e os bois semelhantes a bois, cada
(espécie animal) reproduzindo a sua própria forma.
"Os etíopes dizem que os seus deuses são negros e de nariz chato, os
119
trácios dizem que têm olhos azuis e cabelos vermelhos".

Xenófanes propunha uma visão aparentemente próxima ao monoteísmo ou pelo


120
menos, um “politeísmo não antropomórfico”, mas, ainda assim, cosmológico,

116
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl 100.1-3), p. 549.
117
João Calvino, As Institutas, (1541), I.8.
118
João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.2), p. 303.
119
Xenófanes, Fragmentos, 11-16. In: Gerd A. Bornheim, org. Os Filósofos Pré-Socráticos, 3ª ed.
São Paulo: Cultrix, 1977, p. 32. Mais tarde, um escritor cristão do segundo século, fazendo uma apo-
logia do Cristianismo – que estava sendo severamente perseguido durante o reinado de Adriano
(117-138 AD), a quem destina o seu escrito –, critica o politeísmo grego: “Os gregos, que dizem ser
sábios, mostraram-se mais ignorantes do que os caldeus, introduzindo uma multidão de deu-
ses que nasceram, uns varões, outros fêmeas, escravos de todas as paixões e realizadores de
toda espécie de iniquidades. Eles mesmos contaram que seus deuses foram adúlteros e as-
sassinos, coléricos, invejosos e rancorosos, parricidas e fratricidas, ladrões e roubadores, co-
xos e corcundas, feiticeiros e loucos. (...) Daí vemos, ó rei, como são ridículas, insensatas e
ímpias as palavras que os gregos introduziram, dando nome de deuses a esses seres que não
são tais. Fizeram isso, seguindo seus maus desejos, a fim de que, tendo deuses por advoga-
dos de sua maldade, pudessem entregar-se ao adultério, ao roubo, ao assassínio e a todo
tipo de vícios. Com efeito, se os deuses fizeram tudo isso, como não o fariam também os
homens que lhes prestam culto? (...) Os homens imitaram tudo isso e se tornaram adúlteros e
pervertidos e, imitando seu deus, cometeram todo tipo de vícios. Ora, como se pode con-
ceber que deus seja adúltero, pervertido e parricida?” (Aristides de Atenas, Apologia, I.8-9. In:
Padres Apologistas, São Paulo: Paulus, 1995, p. 43-45).
120
W.K.C. Guthrie, Os Sofistas, p. 211.
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121
identificando, conforme pontua Aristóteles, o uno, ou seja, o universo, como sen-
122
do Deus. Xenófanes escreve: “Um único deus, o maior entre deuses e ho-
123
mens, nem na figura, nem no pensamento semelhante aos mortais”. Na
realidade, Xenófanes destaca um deus supremo acima dos demais deuses e dos
124
homens.

Reale e Antiseri acentuam que “depois das críticas de Xenófanes, o homem


ocidental poderá nunca mais conceber o divino segundo formas e medidas
125
humanas”.

Heráclito – a quem, juntamente com Sócrates, Justino considera cristão antes de


126
Cristo –, ridiculariza o antropomorfismo e a idolatria da religião contemporânea,
dirigindo a sua crítica à prática do sacrifício como meio de purificação, e às orações
feitas às imagens: “Em vão procuram purificar-se, manchando-se com novo
sangue de vítimas, como se, sujos com lama, quisessem lavar-se com lama. E
louco seria considerado se alguém o descobrisse agindo assim. Dirigem tam-
bém suas orações a estátuas, como se fosse possível conversar com edifícios,
127
ignorando o que são os deuses e os heróis”. Talvez isto revele o que Herácli-
to expressa no Fragmento 79: "O homem é infantil frente à divindade, assim
como a criança frente ao homem." Todavia devemos ressaltar que ele não era
128
irreligioso, apenas discordava da prática religiosa que via.

Heráclito, fugindo da ideia de fatalismo, entendia que o homem é responsável pe-


los seus atos, portanto, afirma: "O caráter é para o homem um demônio"
129
(dai/mwn). (Frag., 119).

121
Ver: Giovanni Reale & Dario Antiseri, História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, São Paulo:
Paulus, 1990, Vol. 1, p. 49.
122
Aristóteles, Metafísica, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. IV), 1973, I.5, p. 223.
123
Xenófanes, Frag., 23.
124
Cf. Étienne Gilson, O Espírito da Filosofia Medieval, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 55.
125
Giovanni Reale & Dario Antiseri, História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média, Vol. 1, p. 48.
126
Justino de Roma, I Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, 46.3. p. 61-62.
127
Heráclito, Frag., 5. Vd. também: Frag., 14. Sobre Heráclito, Bréhier comenta: "A sabedoria de He-
ráclito despreza o que ao vulgo se refere: a começar pela religião popular, a veneração das imagens
e, particularmente, os cultos misteriosos, órficos ou dionisíacos [Frags., 5,14,15], com suas ignóbeis
purificações pelo sangue, os traficantes de mistérios, que alimentam a ignorância dos homens sobre
o além." (É. Bréhier, História da Filosofia, São Paulo: Mestre Jou, 1977, I/1, p. 53).
128
Heráclito, Frags., 14/67.
129
Lembremo-nos que para os gregos o homem ao nascer está ligado a um dai/mwn (“deus”, “deusa”,
“poder divino”, “destino”, “sorte”) e, que este determina o seu destino para o bem ou para o mal. No-
temos que a palavra grega para felicidade é eu)daimoni/a (bom demônio). No fragmento de Heráclito,
ele parece estar criticando a concepção prevalecente de “destino”, trazendo para o homem a respon-
sabilidade de sua conduta. [Vd. F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos: Um léxico histórico, 2ª ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1983), p. 47-48]. Kirk e Raven comentam: "dai/mwn significa
aqui simplesmente um destino pessoal do homem; este é determinado pelo seu próprio ca-
ráter, sobre o qual o homem tem um certo domínio, e não por poderes externos e frequen-
temente caprichosos que atuam, talvez, através de um 'gênio' atribuído a cada indivíduo
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 29/233

Empédocles fala do privilégio de se conhecer a Deus, que é um ser espiritual:

"Bem aventurado o homem que adquiriu o tesouro da sabedoria divina;


desgraçado o que guarda uma opinião obscura sobre os deuses.

pelo acaso ou Sorte." (G.S. Kirk & J.E. Raven, Os Filósofos Pré-Socráticos, 2ª ed. Lisboa: Funda-
ção Calouste Gulbenkian, 1982, p. 216-217).
Dai/mwn significa “deus”, “deusa”, “destino”, “demônio”, “poder sobre-humano”. Dai/mwn é uma pa-
lavra mais geral do que Qeo/j, ainda que esta não seja precisa. Assim como "qeo/j", "Dai/mwn” tam-
bém é de terminologia incerta. Sugere-se que a palavra venha de dai/omai (= "dividir", "partilhar"),
tendo o significado de "dilacerar", “separar”, e, portanto estando relacionada com a concepção de
dai/mwn como aquele que consome o corpo. [Vd. Werner Foerster, dai/mwn: In: G. Friedrich &
Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8ª ed. Grand Rapids, Michigan:
WM. B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, Vol. II, p. 2]. "Pode haver alguma conexão
com a ideia do deus dos mortos como sendo aquele que divide os cadáveres." (Cf. H. Biete-
nhard, Demônio: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Tes-
tamento, São Paulo: Vida Nova, 1981, Vol. I, p. 594. Vd. também, Werner Foerster, dai/mwn: In: G.
Friedrich & Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Vol. II, p. 2). Uma outra
explicação encontramos em Platão (427-347 a.C.), que derivava "daímõn" de "Daëmõn" ("Sábio",
"hábil"), da "sabedoria que lhe é própria" (Platão, Crátilo, 398b-c).
Sócrates (469-399 a.C.) alegou diante de seus algozes que desde a infância ouvia vozes que o
chamavam para uma missão e o impediam de realizar determinadas tarefas. Esta inspiração, diz Só-
crates, vem de um "deus ou de um gênio" (daimo/nion) (Platão, Defesa de Sócrates, 31 c-d.), que
algures chama de "bem", tendo sido experimentado por poucas pessoas [Platão, A República, 7ª ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1993), 496c]. Em Empédocles (c. 450 a.C.) o "dai/mwn" é
um ser espiritual – distinto da "yuxh/" ou a própria –, que acompanhava o homem desde o nascimen-
to (Frag., 115. Vd. H. Bietenhard, Demônio: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional
de Teologia do Novo Testamento, Vol. I, p. 594; F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos: Um léxico
histórico, p. 48; G.S. Kirk & J.E. Raven, Os Filósofos Pré-Socráticos, p. 364-365). Platão também o
identificou como a alma [Platão, Timeu, São Paulo: Hemus, (s.d.), 90a], sendo o "dai/mwn" uma espé-
cie de “anjo” que nos guarda (Platão, República, 620d), no entanto fomos nós quem o escolhemos
(Platão, República, 617d-e).
Na mitologia grega, o "daimo/nion" é um deus inferior, intermediário entre os deuses e os mortais.
(Hesíodo, Teogonia, 120). Em Homero, "dai/mwn" é empregado de forma intercambiável com "Qeo/j"
(A Ilíada, Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, (s.d.), XVII.98,99; Platão, Apologia, 27d), embora "Qeo/j"
fosse, como já mencionamos, uma palavra mais precisa que "dai/mwn". Platão seguiu o conceito de
Hesíodo, atribuindo ao "daimo/nion" a condição de intermediário, permitindo o diálogo dos deuses
com os homens (Platão, O Banquete, 202e-203a). Eles são filhos dos deuses [Qew++=n] (Platão, Defesa
de Sócrates, 27 c-d), tendo sido criados pelo "dhmiourgo/j" ("O artífice do mundo"), que cria seres in-
feriores responsáveis pela criação dos seres vivos. [Platão, Timeu, 29d-30c; 41a-c; Platão, A Repúbli-
ca, 530a; Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensado-
res, Vol. II), 1972, I.4.7; IV.3.13]. Esta concepção do "dhmiourgo/j" foi retomada pelos gnósticos. [Vd.
Irineu, Contra as Heresias, I.5.2-3]. Valentino o considerava como o último dos eons (Clemente de A-
lexandria, Stromata, IV.13.89). Platão também assim os descreve: "Zeus, o grande condutor do
céu, anda no seu carro alado a dar ordens e cuida de tudo. O exército dos deuses [Qew++=n] e
dos demônios [daimo/nion] segue-o, distribuído em onze tribos." (Platão, Fedro, 246e-247). Ho-
mero considerava Zeus um deus extremamente poderoso, sendo o “pai dos deuses e dos homens”
e, mais forte do que todos os outros deuses juntos. (Homero, A Ilíada, VIII, p. 133ss).
Após a morte, as almas dos homens escolhem o seu "dai/mwn" para proteger a sua vida (A Repú-
blica, 617e; 620d); tornando-se as almas dos "homens de bem" em demônio (Platão, Crátilo, 398b-c).
Por isso, o homem de bem, vivo ou morto, deve ser chamado de demônio (Crátilo, 398c).
Plotino disse que um "dai/mwn" é uma “imagem de Deus” e que os demônios estão na segunda
ordem, depois dos deuses, vindo depois deles os homens e os animais (Plotino, Enneades, VI.7.6; II-
I.2.11. Cf. Demônio: In: Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou,
1982, p. 224).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 30/233

"Não nos é possível colocar (a divindade) ao alcance de nossos olhos


ou de apanhá-la com as mãos, principais caminhos pelos quais a persua-
são penetra o coração do homem.
"Pois o seu corpo (da divindade) não é provido de cabeça humana;
dois braços não se erguem de seus ombros, nem tem pés, nem ágeis
joelhos, nem partes cobertas de cabelos; é apenas um espírito; move-se,
santo e sobre-humano, e atravessa todo o cosmos com rápidos
130
pensamentos".

Na História Grega, o século V a.C., costuma ser denominado, "Século de Ouro"


ou "Século de Péricles". Dá-se neste período o grande desenvolvimento democrático
de Atenas. As assembléias e tribunais dependiam da habilidade retórica dos seus
participantes. O discurso era o meio mais eficaz de adquirir influência, poder e
honrarias ou de se defender dos inimigos. A Retórica adquiriu um "status" de
inigualável arma política, assegurando a vitória a quem soubesse usá-la melhor.

"A faculdade oratória situa-se em plano idêntico ao da inspiração das


musas aos poetas. Reside antes de mais nada na judiciosa aptidão para
proferir palavras decisivas e bem fundamentadas. (...) A idade clássica
chama de orador o político meramente retórico. (...) Neste ponto, devia
basear-se na eloquência toda a educação política dos chefes, a qual se
131
converteu necessariamente na formação do orador".

Este século é marcado por profundas modificações; a vitória nas guerras médi-
cas, quando foram expulsos os invasores persas das terras helênicas [Maratona
132 133 134
(490); Salamina (480) e Platéia (479) ], trouxe prosperidade no comércio,
aumento de sua riqueza e, sobretudo, desenvolvimento e esplendor da sua cultura.
Péricles (499-429 a.C.) deu uma Constituição democrática à Atenas, e a vida política
e civil da cidade, tomou novos aspectos, despertando um novo interesse intelectual.
A preocupação pelo mundo que foi característica das épocas anteriores, cede lugar
agora, à preocupação com o homem. Neste contexto surgiram os sofistas, facundos
oradores, retóricos e fundamentalmente pedagogos que tinham como meta a educa-
135
ção dos nobres, especialmente na Gramática, na Literatura, na Filosofia, na Reli-
gião e, principalmente na Retórica.

Os sofistas foram mestres que tiveram grande influência no 5º e 4º séculos antes


de Cristo. Deles partiram críticas severas à religião praticada. Protágoras (c. 480-410
a.C.), por exemplo, partindo do princípio de que o homem é o senhor e padrão de
toda realidade, conduziu seu pensamento pelo pleno subjetivismo, dizendo: "O ho-

130
Empédocles, Fragmentos, 132-134. In: Gerd A. Bornheim, org. Os Filósofos Pré-Socráticos, 3ª ed.
São Paulo: Cultrix, 1977, p. 80-81.
131
Werner Jaeger, Paidéia: A Formação do Homem Grego, 2ª ed. São Paulo/Brasília, DF.: Martins
Fontes/Editora Universidade de Brasília, 1989, p. 236.
132
Veja-se a descrição desta batalha in: Heródoto, História, Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.], VI.93-120.
133
Heródoto, História, VIII.24-96.
134
Heródoto, História, IX.1-107, 115-121.
135
Cf. Werner Jaeger, Paidéia: A Formação do Homem Grego, p. 236.
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mem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, e das que
136
não são enquanto não são". Deste conceito, ele deduz o seu agnosticismo teo-
lógico que, segundo nos parece, era o único caminho possível para ser coerente
com o seu pensamento relativista: “Quanto aos deuses, não posso saber se exis-
tem nem se não existem nem qual possa ser a sua forma; pois muitos são os
impedimentos para sabê-lo: a obscuridade do problema e a brevidade da
137
vida do homem".

Um seu contemporâneo, discípulo de Parmênides (530-460 a.C), Melisso de Sa-


mos (c. 490-c. 430 a.C), também partilhava do mesmo agnosticismo, conforme tes-
temunho de Diógenes Laércio: “Dos deuses, dizia que não se deve dar explica-
138
ção definitiva. Pois não se os pode conhecer”.

Calvino cita que o poeta grego Simônides de Céos (c. 557-c.468 a.C.), indagado
pelo tirano Hierão I de Siracusa sobre o quê seria Deus, depois de alguns dias de
reflexão, respondeu: “Quanto mais reflito, tanto mais obscuro o assunto me
139
parece”.

Trasímaco de Calcedônia (c. 459- 400 a.C), entendendo que a justiça é sempre a
140
do mais forte, sustentava que os deuses foram inventados pelos governantes com
o objetivo de assustarem os homens. No entanto, caso eles existam, não têm provi-
141
dência nem se preocupam com os assuntos humanos. Aliás, o conceito de um
deus indiferente aos problemas humanos, não era estranho no V/IV séculos a.C.
142
conforme indica Platão (427-347 a.C.), ainda que combatendo esta acepção.

Outro sofista, Pródico de Céos (c. 465- c. 399 a.C.), discípulo de Protágoras (c.
480-410 a.C.), pessimista quanto à vida, sustentava que não devemos temer a mor-
te, visto que jamais nos encontraremos com ela: quando a morte chegar já não exis-

136
Apud Platão, Teeteto: In: Teeteto e Crátilo, Belém: Universidade Federal do Pará, 1988, 152a;
160c. Aristóteles (384-322 a.C.), diz: "O princípio (...) expresso por Protágoras, que afirmava ser
o homem a medida de todas as coisas (...) outra coisa não é senão que aquilo que parece
a cada um também o é certamente. Mas, se isto é verdade, conclui-se que a mesma cousa
é e não é ao mesmo tempo e que é boa e má ao mesmo tempo, e, assim, desta maneira,
reúne em si todos os opostos, porque amiúde uma cousa parece bela a uns e feia a outros,
e deve valer como medida o que parece a cada um" (Metafísica, XI, 6. 1 062. Vd. também,
Platão, Eutidemo, 286).
137
Diógenes Laercio, Vidas, Opiniones y Sentencias de los Filósofos más Ilustres, Buenos Aires: Li-
brería “El Ateneo” Editorial, (1947), X, p. 581-582. Vd. também: Rodolfo Mondolfo, O Pensamento An-
tigo, 3ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1971, Vol. I, p. 144-145.
138
Melisso de Samos, Dox. 3. In: Gerd A. Bornheim, org. Os Filósofos Pré-Socráticos, p. 66. Vd. tam-
bém, a citação em Cícero (Cicero, The Nature of the Gods, I.1, 29, 63,117).
139
João Calvino, As Institutas, I.5.12. Na sequência, Calvino comenta a insuficiência da revelação na
natureza para o homem auferir um conhecimento sólido e precioso de Deus.
140
Platão, A República, 7ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1993), 338e-339a; 343c-
344c.
141
Platão, A República, 336b; 338c./Platão, Leis, 889e
142
Vd. Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, I.4.10ss; Platão, Leis, 885b, 888c. Platão,
A República, 365d-e
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tiremos. Entendia que todos os bens, inclusive o divino, só o conseguimos com mui-
to esforço, tendo como ingrediente fundamental a adoração aos deuses: "Os Deuses
não concederam aos homens nenhuma das cousas belas e boas sem fadiga
e estudos; mas se quiseres que os Deuses te sejam benévolos, deves venerá-
143
los....". Para Pródico, conforme documentação disponível, a origem da religião es-
tava associada à gratidão dos homens, que denominaram de deuses as coisas úteis
144
à vida, tais como o sol, a lua, os rios, os lagos, o alimento e o vinho.

Platão (427-347 a.C.), com discernimento correto, entendia que um dos males de
sua época era a corrosão da religião praticada por supostos sacerdotes e profetas –
que ele chama de mendigos e adivinhos –, os quais exploravam a credulidade das
pessoas, especialmente das ricas. Dentro do quadro descrito, uma das fórmulas
usadas por esses líderes religiosos, era fazer as pessoas crerem que poderiam
mudar a vontade dos deuses mediante a oferta de sacrifícios ou, por meio de
determinados encantamentos; os deuses seriam, portanto, limitados e aéticos, sem
padrão de moral, sendo guiados pelas seduções humanas:

“Mendigos e adivinhos vão às portas dos ricos tentar persuadi-los de


que têm o poder, outorgado pelos deuses devido a sacrifícios e encanta-
mentos, de curar por meio de prazeres e festas, com sacrifícios, qualquer
crime cometido pelo próprio ou pelos seus antepassados, e, por outro la-
do, se se quiser fazer mal a um inimigo, mediante pequena despesa, pre-
judicarão com igual facilidade justo e injusto, persuadindo os deuses a se-
rem seus servidores – dizem eles – graças a tais ou quais inovações e feiti-
çarias. Para todas estas pretensões, invocam os deuses como testemu-
nhas, uns sobre o vício, garantindo facilidades (...). Outros, para mostrar
como os deuses são influenciados pelos homens, invocam o testemunho
de Homero, pois também ele disse: ‘Flexíveis até os deuses o são. Com as
suas preces, por meio de sacrifícios, votos aprazíveis, libações, gordura de
vítimas, os homens tornam-nos propícios, quando algum saiu do seu cami-
145
nho e errou’ (Ilíada IX.497-501)”.

Platão faz críticas severas, especialmente a Homero e Hesíodo por terem forjado
146
conceitos de Deus que, segundo ele, não correspondiam à realidade; por isso,

143
Pródico, Das Horas, Fragmento, 2. Vd. também: Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócra-
tes, II.1.28; Platão, Protágoras, 315c. Barclay escreve: “para a mentalidade grega a primeira ca-
racterística de Deus era a apatheia. Esta palavra significa mais que apatia: significa incapa-
cidade total de sentir. Os gregos sustentavam que Deus não poderia sentir. Se pudesse sentir
alegria ou tristeza, aborrecer-se ou apiedar-se, significava que nesse momento alguém o
havia afetado. Se isto era assim, significava que o homem havia influído em Deus; portanto,
era mais poderoso que ele. Deste modo, pois, sustentavam que Deus deve ser incapaz de
todo sentimento e que nada pode afetá-lo jamais. Um Deus que sofria era para os gregos
uma contradição” (William Barclay, 1 y 2 Corintios, Buenos Aires: La Aurora, 1973, p. 30-31).
144
Vd. Cicero, The Nature of the Gods, I.118; W.K.C. Guthrie, Os Sofistas, p. 221-224.
145
Platão, A República, 364c-e.
146
Platão, A República, 377d; 382a-383a; 388b-d. Por trás dessa crítica de Platão, está o conceito
vigente da palavra “teologia”.
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A palavra "Teologia" que não aparece nas Escrituras, é o resultado da junção de dois termos gre-
gos: "qeo/j" = "Deus" e "Lo/goj" = "Estudo", "tratado", "discurso". No entanto, mesmo “teologia” não
ocorrendo nas Escrituras, os termos que a compõem ocorrem (Lc 8.21; Rm 3.2; 1Pe 4.11). A origem
(1) (2)
de "qeo/j" é incerta; "a única coisa que está certa é que originalmente foi um título." Alguns su-
põem que ela veio do sânscrito "div", dar "luz"; outros de uma raiz indoeuropéia “deiwos”, “o lumino-
(3)
so”, o “celeste”, em oposição à natureza terrena do homem (homo, de hummus, “a terra”). Outros
(4)
ainda a derivam de "thes", "implorar", sendo "qeo/j", "Aquele a quem se faz oração". A palavra "teo-
logia" é usada e comentada primariamente por Platão (427-347 a.C.)(República, 379a) com o sentido
de história dos mitos e lendas dos deuses contadas pelos poetas, a qual deveria ser analisada criti-
(5)
camente e purgada dos inconvenientes conforme o padrão de educação adotado. Na Grécia anti-
ga, "teologia" e "teólogo", passaram por diversas mutações; os poetas foram os primeiros a se intitu-
(6)
larem de "teólogos", e a teologia referia-se às discussões filosóficas a respeito dos deuses e do
mundo: teogonias e cosmogonias. Devemos lembrar que mesmo havendo uma hierarquia entre os
deuses gregos ("Cronos" = "tempo" e depois "Zeus" = "Céu brilhante"), "qeo/j" não denotava uma uni-
dade monoteísta mas sim, a concepção conexa e integrada de vários deuses; a totalidade das divin-
(7)
dades.
A palavra "Teologia" parece ter sido incorporada à linguagem cristã nos séculos IV e V, referindo-
(8)
se à genuína compreensão das Escrituras Sagradas. O Evangelista João foi cognominado pelos
"Pais da Igreja" de "o teólogo", porque ele tratou mais detalhadamente das "relações internas das
(9)
pessoas da Trindade." Posteriormente, este mesmo título seria dado a Gregório de Nazianzo (c.
330-389), especialmente devido à sua defesa da divindade de Cristo (distinção homologada em Cal-
(10)
cedônia, 451). Durante a Reforma, Melanchthon denominaria com grande ênfase a Calvino de “o
(11)
Teólogo”.
Restringindo-se à sua etimologia, a disciplina "Teologia" normalmente é definida como a "Ciência
(12)
que trata de Deus", "Ciência de Deus", "Um discurso concernente a Deus".
Agostinho (354-430), seguindo este caminho, a define como sendo, "razão ou discurso sobre a di-
(13)
vindade".
Mesmo permanecendo no sentido etimológico, a concepção não é unívoca; isto porque podemos
conceber a "Teologia" como Deus falando de Si mesmo (o conhecimento que Deus tem de Si mes-
mo) ou o homem falando de Deus (o conhecimento que temos a respeito de Deus); ambas as inter-
(14)
pretações são possíveis.

(1) Cf. Kleinknecht, qeo/j: In: G. Friedrich & Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Tes-
tament, Vol. III, p. 67; J. Schneider, Theós: In: O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento, Vol. I, p. 636.
(2) J. Schneider, Theós: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do No-
vo Testamento, Vol. I, p. 636.
(3) Cf. Jean-Claude Schmitt, Deus: In: Jacques Le Goff & Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário
Temático do Ocidente Medieval, Bauru, SP/São Paulo:SP.: Editora da Universidade Sagrado Cora-
ção/Imprensa Oficial do Estado, 2002, Vol. 1, p. 301.
(4)Vd. A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata & Sanches, 1895, p. 18.
(5) Platão, A República, 378b-e. Vd. H. Fries, Teologia: In: H. Fries, ed. Dicionário de Teologia, 2ª ed.
São Paulo: Loyola, 1987, Vol. 5, p. 297. Vd. também, Theología: In: F.E. Peters, Termos Filosóficos
Gregos: Um léxico histórico, p. 228.
(6) "Também houve, nessa época, poetas que se diziam teólogos, por comporem versos em
honra aos deuses." (Agostinho, A Cidade de Deus, 2ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1990, (Vol. 2), XVI-
II.14). Vd. Carl E. Braaten, Prolegômenos à dogmática cristã: In: Carl E. Braaten & Robert W. Jenson,
eds. Dogmática Cristã, São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1990, Vol. I, p. 32.
(7) Cf. Kleinknecht, qeo/j: In: G. Friedrich & Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Tes-
tament, Vol. III, p. 67.
(8) Vd. por exemplo a forma empregada por Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, Madrid: La E-
ditorial Catolica, S.A., (Biblioteca de Autores Cristianos), 1973, I.2.3; II, prólogo 1; III.24.13.
(9) A.H. Strong, Systematic Theology, 35ª ed. Valley Forge, PA.: The Judson Press, 1993, p. 1.
(10) Cf. Philip Schaff, History of the Christian Church, Peabody, Massachusetts: Hendrickson
Publishers, 1996, Vol. VIII, p. 261; W.C. Weinrich, Gregório de Nazianzo: In: Walter A. Elwell, ed. En-
ciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, Vol. II, p. 226; C.
Folch Gomes, Antologia dos Santos Padres, 2ª ed. rev. e aum. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 245;
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147
tais lendas – que eram mescladas de elementos verdadeiros e falsos – não deve-
riam ser contadas às crianças e aos jovens, visto que elas corromperiam a formação
dos mesmos. As primeiras histórias a serem contadas, deveriam ser as mais nobres,
148
que orientassem no sentido da virtude. Para ele, Deus estava acima de nossa ca-
pacidade racional e, mesmo que fosse percebido, seria incomunicável: “... desco-
brir o autor e o pai deste universo é um grande feito, e quando se o desco-
149
briu, é impossível divulgá-lo a todos”.

Platão, com acuidade acentua que o Criador que formou o universo é um ser pes-
soal e bom: “Ele era bom, e naquele que é bom nunca se lhe nasce a inveja.
Isento de inveja, desejou que tudo nascesse o mais possível semelhante a e-
le. (...) Deus quis que tudo fosse bom: excluiu, pelo seu poder, toda imperfei-
ção, e assim, tomou toda essa massa visível, desprovida de todo repouso,
mudando sem medida e sem ordem, e levou-a da desordem à ordem, pois
150
estimou que a ordem vale infinitamente mais que a desordem”.

Há também um aspecto interessante: ainda que a questão do monoteísmo não


151
seja discutida entre os filósofos gregos; daí: “deus” e “deuses” serem expressões
intercambiáveis; há um fragmento – muito citado entre os antigos –, escrito por An-
tístenes de Atenas (c. 450-360 a.C.), primeiramente sofista e depois discípulo de
Sócrates (469-399 a.C.), no qual diz, conforme menciona Cícero (106-43 a.C.): “An-
tístenes (...) em seu livro A Filosofia Natural, destrói o poder e a personalidade
dos deuses ao dizer que embora a religião popular reconheça muitos deu-
152
ses, há somente um Deus na natureza”.

Posteriormente, apologistas cristãos, inspirados nessas críticas e de outros filóso-


fos gregos e romanos – “impacientes com as divindades inúteis” –, usariam métodos

Gregório Nazianzeno: In: R.N. Champlin & J.M. Bentes, Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia,
São Paulo: Candeia, 1991, Vol. II, p. 979.
(11) Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. VIII, p. 260; Philip Schaff, The Creeds of
Christendom, 6ª ed. Revised and Enlarged, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (1931), Vol.
I, p. 446.
(12) L. Berkhof (1873-1957) diz que em geral os teólogos Reformados conceberam esta definição (L.
Berkhof, Introduccion a la Teologia Sistemática, Grand Rapids, Michigan: T.E.L.L., (1973), p. 30).
(13) Agostinho, A Cidade de Deus, 2ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1990, (Vol. 1), VIII.1. p. 301. Quanto
à distinção feita entre os três "gêneros" de "teologia": "theologia fabulosa” (mitologia), que sobrevive
no teatro através dos poetas; "theologia naturalis", dos filósofos e "theologia civilis" (teologia civil),
sustentada oficialmente pelos cidadãos, Vd. Agostinho, A Cidade de Deus, VI.5ss.
(14) Cf. Abraham Kuyper, Principles of Sacred Theology, Grand Rapids, Michigan: Baker Book
House, 1980 (reprinted), § 56, p. 230-231.
147
Platão, A República, 377a.
148
Platão, A República, 378e.
149
Platão, Timeu, 28. Vd. também, Rudolf Otto, O Sagrado, São Bernardo do Campo, SP.: Imprensa
Metodista/Programa Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1985, p. 96.
150
Platão, Timeu, 29-30. Agostinho aventa a possibilidade de Platão ter tido contato com as Escritu-
ras [Agostinho, A Cidade de Deus, 2ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1990, (Vol. 1), VIII.11]. Acredita que
Platão possa ter conhecido o profeta Jeremias no Egito (Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, São
Paulo: Paulinas, 1991, II.29. p. 135).
151
Ver: Étienne Gilson, O Espírito da Filosofia Medieval, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 54ss.
152
Cicero, The Nature of the Gods, I.32. Vd. W.K.C. Guthrie, Os Sofistas, p. 230-231.
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153
semelhantes para criticarem a religião grega e a de outros povos.

Nos séculos posteriores ao Novo Testamento, a questão da adoção de concep-


154
ções filosóficas gregas não foi pacífica; havia quem concordasse e outros que en-
155
tendiam que o Cristianismo nada tinha a ver com o pensamento pagão. No entan-

153
Cf. Michael Green, Evangelização na Igreja Primitiva, São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 16.
154
Justino Mártir (c. 100-165), escrevendo por volta do ano 135 AD., entendia que a Filosofia era "e-
fetivamente, e na realidade o maior dos bens, e o mais precioso perante Deus, ao qual ela nos con-
duz e recomenda. E santos, na verdade, são aqueles que à filosofia consagram sua inteligência."
(Justino, Dialogue with Trypho, 2. In: Alexander Roberts & James Donaldson, editors. Ante-Nicene
Fathers, 2ª ed. Peabody, Massachusetts:Hendrickson Publishers, 1995, Vol. I, p. 195.). Alhures decla-
ra: "A felicidade é a ciência do ser e do conhecimento da verdade, e a felicidade é a re-
compensa desta ciência e deste conhecimento" (Justino, Dialogue with Trypho, 3. In: Ibidem., p.
196). Clemente de Alexandria (c.153-c.215 AD), escreveu: "Até a vinda do Senhor a filosofia foi
necessária aos gregos para alcançarem a justiça. Presentemente ela auxilia a religião ver-
dadeira emprestando-lhe sua metodologia para guiar aqueles que chegam à fé pelo cami-
nho da demonstração (...). Assim a filosofia foi um pedagogo que levou os gregos a Cristo
(...), como a lei levou a Cristo os hebreus. A filosofia foi um preparo que abriu caminho à per-
feição em Cristo" (Clemente, Stromata, I.5: In: Ibidem., Vol. II, p. 305). Clemente acredita que
a filosofia é boa e, que, por isso, deve ser estudada. "É inconcebível que a filosofia seja má,
visto que torna os homens virtuosos. Portanto ela deve ser obra de Deus, que só pode fazer o
bem; aliás, tudo o que vem de Deus é dado para o bem e recebido para o bem. E, por si-
nal, os homens maus não costumam interessar-se pela filosofia" (Clemente, Stromata, VI.17: In:
Ibidem., p. 517).
155
Taciano, o Sírio (c. 120-c.180 AD), escrevendo por volta do ano 170, ironiza os gregos, dizendo:
“.... renunciamos à vossa sabedoria, por mais que algum de nós tenha sido extremamente i-
lustre nela. De fato, segundo o cômico, tudo isso não passa de ‘galhos secos, palavrório afe-
tado, escolas de andorinhas, corruptores da arte’, e os que se deixam dominar por isso sa-
bem apenas roncar e emitir grasnados de corvos. A retórica que compusestes para a injusti-
ça e a calúnia, vendendo a peso de ouro a liberdade de vossos discursos, e muitas vezes o
que de imediato vos parece justo, logo o apresentais como coisa não boa; a poesia, porém,
vos serve para cantar as lutas, os amores dos deuses, e a corrupção da alma. Com a vossa
filosofia, o que produzistes que mereça respeito?” (Taciano, Discurso contra os Gregos, 1-2. In:
Padres Apologistas, São Paulo: Paulus, 1995, p. 66). Em outro lugar, continua: “.... vós sois assim,
gregos, elegantes no falar mas loucos no pensar, pois chegastes a preferir a soberania de muitos
deuses em vez da monarquia de um só Deus, como se acreditásseis estar seguindo demônios pode-
rosos.” (Ibidem., 14. p. 80).
Tertuliano (c.160-c. 220 A.D.), adversário ferrenho da Filosofia Grega, entre outros ataques àque-
les que tentavam recorrer à filosofia como auxílio, diz:
"Esta é a sabedoria profana que temerariamente pretende sondar a natureza e os decre-
tos de Deus. E as próprias heresias vão pedir seus petrechos à filosofia....
"Que tem a ver Atenas com Jerusalém? Ou a Academia com a Igreja? A nossa doutrina
vem do pórtico de Salomão, que nos ensina a buscar o Senhor na simplicidade do coração.
Que inventem, pois, se o quiserem, um cristianismo de tipo estóico, platônico e dialético!
Quanto a nós, não temos necessidade de indagações depois da vinda de Cristo Jesus, nem
de pesquisas depois do Evangelho. Nós possuímos a fé e nada mais desejamos crer. Pois
começamos por crer que para além da fé nada existe que devamos crer" (Tertuliano, Da
Prescrição dos Hereges, VII. In: Ante-Nicene Fathers, Vol. III, p. 246).
Agostinho (354-430) valoriza a Filosofia; contudo, para ele nem todos os chamados filósofos o são
de fato, visto que o filósofo é aquele que ama a sabedoria. "Pois bem – argumenta Agostinho –, se a
sabedoria é Deus, por quem foram feitas todas as coisas, como demonstraram a autoridade
divina e a verdade, o verdadeiro filósofo é aquele que ama a Deus." (Agostinho, A Cidade de
Deus, Vol. 1, VIII.1). (Veja-se também: Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas,
1991, II.43. p. 153-154).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 36/233

to, o que acabou por prevalecer foi a consciência de que todas as coisas provêm de
Deus e, que as concepções verdadeiras da realidade – ainda que nos lábios de ím-
pios (Cf. At 17.28;Tt 1.12) –, podem ser instrumentos úteis para a elaboração e
transmissão da verdade divina. Isto porque qualquer tipo de conhecimento parte de
Deus, que é a sua fonte inesgotável; portanto, toda verdade é proveniente de Deus,
havendo inclusive pontes entre o que pensadores pagãos disseram e a plenitude da
156
verdade conforme revelada nas Escrituras.

As palavras de Justino Mártir (c. 100-165 AD) permanecem como princípio regu-
lador: “... Tudo o que de bom foi dito por eles (filósofos), pertence a nós, cris-
tãos, porque nós adoramos e amamos, depois de Deus, o Verbo, que pro-
157
cede do mesmo Deus ingênito e inefável”.

2. DEFINIÇÃO ETIMOLÓGICA DA PALAVRA TRINDADE:


Para expressar a verdade bíblica de que o Ser de Deus subsiste em Três Pesso-

Para uma abordagem mais completa das opiniões do “Pais da Igreja”, Vd. Henri-Irénée Marrou,
História da Educação na Antiguidade, 5ª reimpr. São Paulo: EPU. 1990, p. 484ss; Etienne Gilson, A
Filosofia na Idade Média, São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 1ss; Ruy A. da Costa Nunes, História
da Educação na Antiguidade Cristã, São Paulo: EPU/EDUSP. 1978, p. 5ss; Philotheus Boehner & E-
tienne Gilson, História da Filosofia Cristã, 3ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1985, p. 35. É muito interes-
sante também, a obra de Charles Norris Cochrane, Cristianismo y Cultura Clásica, (2ª reimpresión),
México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 213ss).
156
Essas pontes evidenciam-se de modo transparente no comentário feito no segundo século, por
Justino: “.... se há coisas que dizemos de maneira semelhante aos poetas e filósofos que es-
timais, e outras de modo superior e divinamente, e somos os únicos que apresentamos de-
monstração, por que nos odeiam injustamente mais do que a todos os outros? Assim, quan-
do dizemos que tudo foi ordenado por Deus, parecerá apenas que enunciamos um dogma
de Platão; ao falar sobre conflagração, outro dogma dos estóicos; ao dizer que são casti-
gadas as almas dos iníquos que, ainda depois da morte, conservarão a consciência, e que
as dos bons, livres de todo castigo, serão felizes, parecerá que falamos como vossos poetas
e filósofos; que não se devem adorar obras de mãos humanas, não é senão repetir o que
disseram Menandro, o poeta cômico, e outros com ele, que afirmaram que o artífice é mai-
or do que aquele que o fabrica” (Justino de Roma, I Apologia, 20.3-5. p. 37-38).
157
Justino de Roma, II Apologia, XIII.4. p. 104. Esta compreensão esteve sempre presente no pen-
samento teológico da Igreja; cito alguns exemplos: Agostinho (354-430): “Todo bom e verdadeiro
cristão há de saber que a Verdade, em qualquer parte onde se encontre, é propriedade do
Senhor. Essa verdade, uma vez reconhecida e professada, o fará rejeitar as ficções supersti-
ciosas que se encontram até nos Livros sagrados” (Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Pau-
linas, 1991, II.19. p. 122); Calvino (1509-1564): "Se reputamos ser o Espírito de Deus a fonte úni-
ca da verdade mesma, onde quer que ela haja de aparecer, nem a rejeitaremos, nem a
desprezaremos, a menos que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus” (João
Calvino, As Institutas, II.2.15); "Visto que toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser
algo verdadeiro, não devemos rejeitá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus” [João Calvi-
no, As Pastorais, (Tt 1.12), p. 318]; Strong (1835-1921): “A Ciência e a Escritura lançam luz uma
sobre a outra. O mesmo Espírito divino que deu revelação a ambas está ainda presente,
capacitando o crente a interpretar uma pela outra e então progressivamente chegar ao
conhecimento da verdade” (A.H. Strong, Systematic Theology, 35ª ed. Valley Forge, PA.: The
Judson Press, 1993, p. 27); A.A. Hodge (1823-1886): “Toda verdade é um só todo” (A.A. Hodge,
Esboços de Theologia, Lisboa: Barata & Sanches, 1895, p. 7).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 37/233

as, a teologia cristã usa o termo Trindade, palavra esta que não se encontra na Bí-
blia, mas, sim, o seu ensinamento. A expressão Trindade é proveniente do latim trini-
tas, derivando-se do termo trinus (= triplo), ao que veio corresponder outro sinôni-
mo: tríade, do grego tri/aj que significa um conjunto de três.

Até onde sabemos, Teófilo de Antioquia (c. 115-181) – em uma apologia a respei-
to do Cristianismo –, foi possivelmente o primeiro a usar a palavra Trindade
158 159
(tri/aj). Tertuliano (c. 155-220) foi o primeiro a usar o termo latino Trinitas e,
também, o primeiro a tentar sistematizar esta doutrina, ainda que o tenha feito de
160
forma deficiente, subordinando o Filho e o Espírito ao Pai.

Em nosso estudo preferimos empregar a palavra Triunidade por acreditar que ela
expressa melhor o ensinamento bíblico de que há um só Deus que subsiste em Três
Pessoas.

3. DEFINIÇÃO DA DOUTRINA:
“Um único Deus é a Trindade” – Dé-
161
cimo Primeiro Concílio de Toledo (675).

É necessário enfatizar que quando nos aproximamos deste tema para estudá-lo,
temos de fazê-lo com reverente temor e humildade, reconhecendo a grandiosidade
do assunto e a nossa limitação para entendê-lo de forma adequada e explicá-lo de
modo correto.

A palavra Triunidade traz em seu bojo quatro ideias fundamentais embasadas nas
Escrituras, a saber:

158
“Os três dias que precedem a criação dos luzeiros são símbolo da Trindade....” [Theophilus
to Autolicus, II.15. In: Alexander Roberts & James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, 2ª ed.
Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, Vol. II, p. 101. Em português: Teófilo de An-
tioquia, Segundo Livro a Autólico, 15. In: Padres Apologistas, São Paulo: Paulus (Patrística, 2),
1995, p. 246 Ver também: William G.T. Shedd, Dogmatic Theology, Grand Rapids, Michigan: Zon-
dervan, © 1888 (Reprinted), Vol. I, p. 267; A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata & San-
ches, 1895, p. 148; B. Studer, Trindade: In: Ângelo Di Berardino, org. Dicionário Patrístico e de Anti-
guidades Cristãs, Petrópolis, RJ./São Paulo: Vozes/Paulinas, 2002, p. 1387.
159
Tertuliano foi pródigo na criação de neologismos na língua latina (Ver estatísticas em: Alister E.
McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo:
Shedd Publicações, 2005, p. 375).
160
Ver: Tertullian, Agains Praxeas, II. In: Alexander Roberts & James Donaldson, eds. Ante-Nicene
Fathers, 2ª ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, Vol. III, p. 598. Extratos do
texto encontram-se também em: Cirilo Folch Gomes, (compilador). Antologia dos Santos Padres, 2ª
ed. (revista e ampliada), São Paulo: Paulinas, 1980, p. 165-167. Berkhof diz que “Tertuliano foi o
primeiro a declarar claramente a tri-personalidade de Deus e a manter a unidade substan-
cial das três Pessoas. Mas não chegou a exprimir de forma clara a doutrina da Trindade”
(Louis Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
1992, p. 77).
161
Apud Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia
cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 384.
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1) O Pai é Deus;
2) O Filho é Deus;
3) O Espírito é Deus;
162
4) Estes três são um só Deus.

Vejamos agora algumas definições e exposições Confessionais desta doutrina:

“Confessamos e reconhecemos um só Deus (...). Um em substância e,


163
contudo, distinto em três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.

“....Cremos e ensinamos que o mesmo Deus imenso, uno e indiviso é


inseparavelmente e sem confusão, distinto em pessoa – Pai, Filho e Espírito
Santo – e, assim como o Pai gerou o Filho desde a eternidade, o Filho foi
gerado por inefável geração, e o Espírito Santo verdadeiramente procede
de um e outro, desde a eternidade e deve ser com ambos adorado.
“Assim, não há três deuses, mas três pessoas, consubstanciais, co-
eternas e co-iguais, distintas quanto às hipóstases e quanto à ordem, ten-
do uma precedência sobre a outra, mas sem qualquer desigualdade. Se-
gundo a natureza ou essência, acham-se tão unidas que são um Deus, e a
164
essência divina é comum ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”.

“Na unidade da Divindade há três pessoas de uma mesma substância,


poder e eternidade – Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo. O Pai
não é de ninguém – não é nem gerado, nem procedente; o Filho é
eternamente gerado do Pai; o Espírito Santo é eternamente procedente
165
do Pai e do Filho”.

“As igrejas ensinam entre nós com magno consenso que o decreto do
Concílio de Nicéia sobre a unidade da essência divina e sobre as três
pessoas é verdadeiro e deve ser crido sem qualquer dúvida. A saber: que
há uma só essência divina, a qual é chamada Deus e é Deus, eterno,
incorpóreo, impartível, de incomensurável poder, sabedoria, bondade,
criador e conservador de todas as coisas, visíveis e invisíveis. E, contudo há
três pessoas, da mesma essência e poder, e coeternas: o Pai, o Filho e o
Espírito Santo. E a palavra ‘pessoa’ usam-na no sentido em que a usaram,
nesta questão, os escritores eclesiásticos, para significar não uma parte ou
166
qualidade em outra coisa, mas aquilo que subsiste por si mesmo”.

162
Para uma classificação um pouco diferente, ver: Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São
Paulo: Editora Hagnos, 2003, Vol. 1, p. 452.
163
A Confissão Escocesa (1560), Cap. I. In: Livro de Confissões, São Paulo: Missão Presbiteriana do
Brasil Central, 1969, § 3.01.
164
A Segunda Confissão Helvética (1562-1566), Cap. III. In: Livro de Confissões, São Paulo: Missão
Presbiteriana do Brasil Central, 1969, §§ 5.016-5.017.
165
Confissão de Westminster, Cap. II.3. Ver também: Catecismo Maior de Westminster, Perguntas
9-11 e Catecismo Menor de Westminster, Pergunta 6.
166
A Confissão de Augsburgo, São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1980, Art. I, p. 17.
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“Conforme esta verdade e esta palavra de Deus, cremos em um só


Deus, que é um único ser, em que há três Pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito
Santo. Estas são, realmente e desde a eternidade, distintas conforme os a-
tributos próprios de cada Pessoa.
“O Pai é a causa, a origem e o princípio de todas as coisas visíveis e
invisíveis. O Filho é o Verbo, a sabedoria e a imagem do Pai . O Espírito
Santo, que procede do Pai e do Filho, é a eterna força e o poder.
“Esta distinção não significa que Deus está dividido em três. Pois a Sa-
grada Escritura nos ensina que cada um destes três, o Pai e o Filho e o Espí-
rito Santo, tem sua própria existência, distinta por seus atributos, de tal ma-
neira, porém, que estas três pessoas são um só Deus. É claro, então, que o
Pai não é o Filho e que o Filho não é o Pai; que, também, o Espírito Santo
não é o Pai ou o Filho.
“Entretanto, estas Pessoas, assim distintas, não são divididas nem
confundidas entre si. Porque somente o Filho se tornou homem, não o Pai
ou o Espírito Santo. O Pai jamais existiu sem seu Filho e sem seu Espírito
Santo, pois todos os três têm igual eternidade, no mesmo ser. Não há
primeiro nem último, pois todos os três são um só em verdade, em poder,
167
em bondade e em misericórdia”.
168
Esta doutrina pode decompor-se nas seguintes proposições:

OU)SI/A) INDIVISÍVEL:
1) HÁ NO SER DIVINO UMA SÓ ESSÊNCIA (OU)

169 170
No “Shemá” (“ouve”), o “credo judeu”, que consistia na leitura de Dt 6.4-
171
9; 11.13-21; Nm 15.37-41 e, possivelmente, Dt 26.5-9. O “Shemá” era repetido
172 173
três vezes ao dia, sendo usado liturgicamente na Sinagoga.

A instrução iniciava com a afirmação de que há somente um Deus: “Ouve, Israel,


o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR” (Dt 6.4).

No Novo Testamento Paulo instrui aos Efésios: “Há somente um corpo e um Espí-

167
Confissão Belga, Art. 8.
168
Esquema adaptado de Berkhof (Louis Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o
Caminho, 1990, p. 88-91).
169
É a primeira palavra que aparece em Dt 6.4, derivada do verbo ((m$) (Shãma’), “ouvir”, envolven-
do normalmente a ideia de ouvir com afeição, entender, obedecer (Veja-se: Hermann J. Austel, Shã-
ma’: In: R. Laird Harris, et. al., eds., Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São
Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1586).
170
Conforme expressão de Edersheim (1825-1889). Vd. A. Edersheim, La Vida y los Tiempos de Je-
sus el Mesias, Barcelona: CLIE, 1988, Vol. I, p. 491.
171
Cf. G.W. Bromiley, Credo, Credos: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da I-
greja Cristã, I, p. 365.
172
Quanto ao emprego desta oração feita pelos judeus individualmente, Vd. Shemá: In: Alan Unter-
man, Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. 1992, p. 242.
173
Cf. Hermisten M.P. Costa, Teologia do Culto, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1987, p. 19.
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rito, como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há um


só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre
todos, age por meio de todos e está em todos” (Ef 4.4-6). (Tg 2.19).

A compreensão da Igreja é de que não há diferença na essência de Deus; Deus é


um ser simples, não composto. A afirmação da Igreja, conforme veremos abaixo, é
174
de que há apenas uma essência na Trindade partilhada pelas três pessoas, ha-
175
vendo distinção, mas não separação entre elas. A essência “é o fundamento
de sua unidade comum, apesar da distinção em suas manifestações
176
exteriores”.

2) NO SER DE DEUS HÁ TRÊS PESSOAS:

A Bíblia demonstra haver três pessoas na Trindade; entretanto, sabemos que o


termo Pessoa é uma expressão imperfeita e, portanto, inadequada para retratar a
177
mensagem bíblica. Naturalmente as expressões são limitadas para descrever o
Ser de Deus. O nosso esforço é no sentido de utilizar os termos que melhor
178
exprimem o ensinamento bíblico.

As Escrituras afirmam haver um só Deus, mas, que subsistem em três Pessoas.


Calvino (1509-1564) assim define Pessoa: “Designo como pessoa, portanto,
uma subsistência na essência de Deus que, enquanto relacionada com as
179
outras, se distingue por uma propriedade incomunicável”. Adiante, acres-
centa: “Com efeito, em cada e qualquer das hipóstases a natureza inteira se
compreende, com isto, que lhe subjaz, a cada uma, a sua propriedade es-
180
pecífica. O Pai está todo no Filho, o Filho todo no Pai....”. (Ver: Mt 3.16-17;
4.1; Jo 1.1-3,18; 3.16; 5.20-22; 14.26; 15.26; 16.13-15).

174
“Pai, Filho e Espírito Santo, cada um possui toda a substância e todos atributos da divin-
dade. A pluralidade de Deus não é, portanto, pluralidade de essência, mas de distinções
hipostáticas ou pessoais” (Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Editora Hagnos,
2003, Vol. 1, p. 492).
175
Ver: Heber Carlos de Campos, O Ser de Deus e os Seus Atributos, São Paulo: Cultura Cristã,
1999, p. 123-125.
176
Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã,
São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 376.
177
"Tendo criado o homem para ser uma criatura sociável, Deus não só lhe inspirou o desejo
e o colocou na necessidade de viver com os de sua espécie, mas outorgou-lhe igualmente
a faculdade de falar, faculdade que deveria constituir o grande instrumento e o laço co-
mum desta sociedade. É daí que provêm as palavras, as quais servem para representar, e
até para explicar as ideias" (G.W. Leibniz, Novos Ensaios São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensado-
res, Vol. XIX), 1974, III.1. § 1, p. 167).
178
Ver: João Calvino, As Institutas, I.13.3; Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: E-
ditora Hagnos, 2003, Vol. 1, p. 491; Albertus Pieters, Fundamentos da Doutrina Cristã, São Paulo:
Vida Nova, 1979, p. 179.
179
João Calvino, As Institutas, I.13.6.
180
João Calvino, As Institutas, I.13.19.
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Berkhof (1873-1957) comentando a primeira distinção feita por Calvino, observa:

“Isso é perfeitamente permissível e pode proteger-nos de entendimento


errôneo, mas não deve levar-nos a perder de vista o fato de que as auto-
distinções do Ser Divino implicam um ‘Eu’ e ‘Tu’ no Ser de Deus, que assu-
181
mem relações pessoais uns para com os outros”.

3) A ESSÊNCIA DE DEUS PERTENCE TOTALMENTE POR IGUAL A CADA


UMA DAS TRÊS PESSOAS:

A essência divina não está dividida entre as três pessoas como se fossem
modulares e independentes. Deus é plenamente as Três Pessoas com todas as
Suas perfeições; isto equivale a dizer que as Três Pessoas da Trindade tem a
mesma essência: O Deus Pai é tanto Deus Filho como Deus Espírito Santo.
Portanto, não há subordinação de essência (ontológica); não há nenhuma diferença
em dignidade pessoal. A única subordinação que podemos falar é a da que se refere
182
à ordem e à relação.

4) A IGREJA CONFESSA QUE A TRINDADE É UM MISTÉRIO QUE TRANS-


CENDE A COMPREENSÃO DO HOMEM:

A Trindade “é inteligível em algumas de suas relações e de seus modos


183
de manifestação, mas é ininteligível em sua natureza essencial”. As
especulações sobre o assunto no decorrer da história geraram heresias como o
184
triteísmo e o modalismo que ora negava a essência una de Deus, ora negava as
185
distinções pessoais dentro da essência.

É preciso que entendamos que não compete à Igreja explicar o mistério da


Trindade; ela, partindo da Escritura, apenas o descreve de forma mais ou menos
sistemática, formulando a doutrina de tal forma que evite os erros e as heresias.

Calvino com a cautela costumeira diante do mistério, nos adverte pastoralmente


sobre o perigo da especulação indevida:

181
Louis Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 89. Veja-se
também: A. B. Langston, Esboços de Teologia Sistemática, 7ª ed. Rio de Janeiro: JUERP., 1983, p.
119ss.
182
Ver: Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 90; João Calvino, As Institutas, I.13.19.
183
Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 91.
184
Termo introduzido por Adolf von Harnack (1851-1930) para descrever as heresias de Noetus,
Práxeas e Sabélio (Cf. Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução
à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 382).
185
Como acentua Berkhof, “Os numerosos esforços feitos para explicar o mistério foram espe-
culativos, e não teológicos. Invariavelmente redundaram no desenvolvimento de conceitos
triteístas ou modalistas de Deus, na negação ou da unidade da essência divina ou da reali-
dade das distinções pessoais dentre da essência” (Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 91).
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“Aqui, mui certamente, se alguma vez, em qualquer parte, nos recôndi-


tos mistérios da Escritura, importa discorrer sobriamente e com muita mo-
deração, aplicada, ademais, muita cautela, para que, seja o pensamen-
to, seja a língua, não avance além do ponto a que se estendam os limites
da Palavra de Deus. Pois, como haja a mente humana, que ainda não
pode estatuir ao certo de que natureza seja a massa do sol, que, entretan-
to, diariamente com os olhos se vê, de à sua parca medida reduzir a imen-
surável essência de Deus? (...) Pelo infelicíssimo resultado de qual temeri-
dade importa-nos ser advertidos, para que tenhamos o cuidado de apli-
car-nos a esta questão com docilidade mais do que com sutileza, nem in-
cutamos no espírito ou investigar a Deus em qualquer outra parte que em
Sua Sagrada Palavra, ou a Seu respeito pensar qualquer cousa, a não ser
que lhe vá à frente a Sua Palavra, ou falar que não o tomado dessa mes-
ma Palavra.
“Ora, se a distinção que em uma só é única divindade subsiste de Pai,
Filho e Espírito, posto que é difícil de apreender-se, causa a certos espíritos
mais dificuldade e problema do que é justo, lembrar-se devem de que as
186
mentes humanas penetram em um labirinto quando cedem à sua curi-
osidade e, destarte, por mais que não alcancem a altura do mistério, dei-
187
xem-se reger dos oráculos celestes”.

Agostinho (354-430), conclui a sua monumental obra Da Trinitate – que se torna-


186
Figura semelhante Calvino empregou para falar a respeito da doutrina da Eleição. “.... quando
os homens quiserem fazer pesquisa sobre a predestinação, é preciso que se lembrem de en-
trar no santuário da sabedoria divina. Nesta questão, se a pessoa estiver cheia de si e se in-
trometer com excessiva autoconfiança e ousadia, jamais irá satisfazer a sua curiosidade. En-
trará num labirinto do qual nunca achará saída. Porque não é certo que as coisas que Deus
quis manter ocultas e das quais Ele não concede pleno conhecimento sejam esquadrinha-
das dessa forma pelos homens. Também não é certo sujeitar a sabedoria de Deus ao critério
humano e pretender que este penetre a Sua infinidade eterna. Pois Ele quer que a Sua altís-
sima sabedoria seja mais adorada que compreendida (a fim de que seja admirada pelo
que é). Os mistérios da vontade de Deus que Ele achou bom comunicar-nos, Ele nos testifi-
cou em Sua Palavra. Ora, Ele achou bom comunicar-nos tudo o que viu que era do nosso in-
teresse e que nos seria proveitoso”. [João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial
com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 3, (III.8.1), p. 38]. “Apren-
damos, pois, a evitar as inquirições concernentes a nosso Senhor, exceto até onde Ele nos
revelou através da Escritura. Do contrário, entraremos num labirinto do qual o escape não
nos será fácil” [João Calvino, Romanos, 2ª ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 11.33), p. 426-
427].
187
João Calvino, As Institutas, I.13.21. Calvino combateu as especulações com veemência; em di-
versos lugares ele escreveu sobre o assunto; como exemplo, cito:
"Porque são mui poucos entre a ingente multidão de homens que existe no mundo os
que pretendem saber qual é o caminho para ir ao céu; porém todos desejam antes do
tempo conhecer o que é que se faz nele." (As Institutas, III.25.11; Vd. também I.5.9).
"As cousas que o Senhor deixou recônditas em secreto não perscrutemos, as que pôs
a descoberto não negligenciemos, para que não sejamos condenados ou de excessiva cu-
riosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra" (As Institutas, III.21.4).
"Nem nos envergonhemos em até este ponto submeter o entendimento à sabedoria
imensa de Deus, que em Seus muitos arcanos sucumba. Pois, dessas cousas que nem é da-
do, nem é lícito saber, douta é a ignorância, a avidez de conhecimento, uma espécie de
loucura" (As Institutas, III.23.8).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 43/233

ria decisiva para toda formulação cristológica posterior – com uma humilde e reve-
rente oração: “Senhor, único Deus, Deus Trindade, tudo o que disse de ti nestes
livros, de ti vem. Reconheçam-no os teus, e se algo há de meu, perdoa-me
188
e perdoem-me os teus. Amém”.

4. A FORMULAÇÃO DOUTRINÁRIA: UM PANORAMA HISTÓRICO:

“Deus permitiu aos heréticos


fustigarem sua Igreja exatamente
para despertar a mente pelo
conflito e para levá-la a buscar a
Palavra de Deus” – Abraham
189
Kuyper.

4.1. O Processo: Erros e acertos:

As exposições concernentes à Trindade estão relacionadas à compreensão


equivocada da Pessoa de Cristo e do Espírito Santo. O desenvolvimento da
compreensão Cristológica por parte da igreja foi determinante na evolução da
teologia do Espírito Santo e esta contribui para aquela de forma
190
retroalimentadora. Portanto, trataremos conjuntamente destas questões.

No final do segundo século, Irineu (c. 130-200 AD) testemunha que a Igreja de
Deus, espalhada por toda face da terra, declarava a sua fé trinitária – conforme re-
cebera dos discípulos –, a saber: “a fé em um só Deus, Pai onipotente, que fez
o céu e a terra, o mar e tudo quanto nele existe; em um só Jesus Cristo, Filho
de Deus, encarnado para nossa salvação; e no Espírito Santo que, pelos pro-
191
fetas, anunciou a economia de Deus”. Ainda segundo ele, esta pregação era
comum na Igreja: “Unanimemente as prega, ensina e entrega, como se possu-
192
ísse uma só boca”.

Orígenes (c. 184-254), a despeito de outros equívocos subordinacionitas, reco-


nhece a divindade trinitária: “Por isso, tudo o que for uma propriedade do cor-

188
Santo Agostinho, A Trindade, São Paulo: Paulus, 1994, (Patrística, 7), XV.28, p. 557.
189
Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 57.
190
A duas declarações seguintes refletem o que estamos dizendo: “É verdade que as controvér-
sias cristológicas que remontam ao ano 360 não são no fundo mais do que uma conse-
quência lógica das discussões sobre a fé trinitária” (B. Studer, Trindade: In: Ângelo Di Berardino,
org. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs, Petrópolis, RJ./São Paulo: Vozes/Paulinas, 2002,
p. 1389). “É possível argumentar que a doutrina da Trindade encontra-se intimamente asso-
ciada ao desenvolvimento da doutrina sobre a divindade de Cristo. Quanto mais a igreja in-
sistia no fato de Cristo ser Deus, mas era pressionada a esclarecer a forma como Cristo se re-
lacionava com Deus” (Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdu-
ção à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 378).
191
Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1985, I.10.1. p. 61-62.
192
Irineu, Irineu de Lião, I.10.2. p. 62. Sobre o trabalho trinitário, Vd. Ibidem., IV.20.1,3; V.6.1.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 44/233

po, não pode ser afirmado nem sobre o Pai nem sobre o Filho; mas o que
193
pertence à natureza da divindade é comum ao Pai e ao Filho”.

O Credo Apostólico, ao ser analisado estatística e teologicamente, evidencia de


modo contundente que as declarações a respeito da Pessoa e Obra de Cristo são
mais expressivas e mais completamente elaboradas do que as referentes ao Pai e
ao Espírito. O Credo – ainda que as suas três divisões sejam dedicadas a cada uma
das Pessoas da Trindade –, demonstra de forma eloquente ser a Pessoa de Cristo o
seu tema. Isto se torna ainda mais evidente, quando apresentamos o Credo
Apostólico de forma sinótica:

“Creio em Deus Pai Todo-


Poderoso, Criador do Céu e
da Terra
”Creio em Jesus Cristo seu
único Filho, nosso Senhor, o
qual foi concebido....
“Por obra do Espírito Santo,
“nasceu da virgem Maria,
padeceu sob o poder de
Pôncio Pilatos, foi
crucificado, morto e
sepultado; no terceiro dia
ressurgiu dos mortos, subiu
ao Céu, e está sentado à
“Deus Pai Todo-Poderoso, mão direita de

“de onde há de vir a julgar


os vivos e os mortos.
“Creio no Espírito Santo....”

De semelhante modo, o Credo Niceno (325) procede: após falar do Pai e mais
194
exaustivamente do Filho, diz: “[cremos] no Espírito Santo”.

193
Origen, Origen de Principiis, I.1.8. In: ANF., Vol. 4, p. 245.
194
Curiosamente, o Credo formulado por Cirilo de Jerusalém (c. 315-386) por volta de 350, para ser
recitado pelos Catecúmenos, era um pouco mais completo neste ponto, dizendo: “Pisteu/omen (...)
ei)j e(\n a(/gion pneu=ma, to\n para/klhton, to\ lalh=san e)n toi=j profh/taij.” “[Cremos] em um Espíri-
to Santo o Consolador, que falou através dos profetas”. [Vd. o texto grego do Credo de Cirilo e o de
Nicéia In: NPNF2., Vol. VII, p. xlvii. Do mesmo modo, Vd. P. Schaff, The Creeds of Christendom, 6ª
ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Revised and Enlarged), (1931), Vol. II, p. 32 e 57.
(doravante citado como COC)].
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 45/233

195
Este quase silêncio quanto à doutrina do Espírito Santo, pode ser explicado pe-
lo fato de que nos primórdios da história da igreja cristã, poucos movimentos
196
levantaram questões consideradas sérias a respeito da Sua Pessoa e, menos
ainda a respeito do Pai. Para ser mais preciso, podemos mencionar Orígenes (c.
184-254), que inspirando-se em Tertuliano (c. 155-220) foi mais longe do que ele,
197 198
dizendo que o Filho era subordinado ao Pai e o Espírito subordinado ao Filho.
Por volta do ano 360, encontramos Atanásio (c. 296-373), bispo de Alexandria (328-
373) combatendo um grupo de cristãos egípcios, que ele chamou de “tropicianos”
(derivado de Tro/poj = “figura”, “forma”), pelo modo figurado de interpretar as
Escrituras. Este grupo que, ao que parece, teve uma influência apenas local, com
uma hermenêutica tendenciosa de Am 4.13; Zc 1.9 (LXX) e 1Tm 5.21, cria ser o
199
Espírito meramente um anjo hierarquicamente superior aos outros.
200
Ainda no 4º século, apareceu o macedonismo, uma das facções do arianismo,
ensinando que o Espírito Santo era uma criação do Filho, que se destinava a atuar
em nós e no mundo, sendo, desta forma, subordinado ao Filho. Esta heresia foi con-
denada pelo Concílio de Constantinopla em 381, que estabeleceu definitivamente a
identidade do Espírito. Este Concílio, conforme veremos abaixo, tomou o Credo Ni-
ceno e o ampliou; na cláusula sobre o Espírito, afirmou:

195
Notemos que o “silêncio” era quanto à uma doutrina do Espírito mais elaborada, não à sua reali-
dade, presença e direção. (Vd. por exemplo, Clemente de Roma, Epístola aos Coríntios, XXII.1; Di-
daquê, VII.1; Inácio de Antioquia, Carta aos Magnésios, IX.2; XIII.1-2; XV; Carta aos Filadélfios, In-
trodução, VII.1-2; Carta aos Efésios, IX.1; XVIII.2; Irineu, Contra as Heresias, III.11.9; 12.1-2; 17.1-4;
19.2). Robert W. Jenson, diz que Irineu (c. 120-202) foi “uma figura-chave no período em que a
pneumatologia patrística se cristalizou.” (Robert W. Jenson, O Espírito Santo: In: Carl E. Braaten
& Robert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã, São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1995, Vol. II, p. 134).
196
Kelly diz que mesmo o Credo Niceno declarando “simplesmente” a sua crença nO Espírito Santo,
“transcorreriam muitos anos antes que houvesse alguma controvérsia pública acerca de Sua
posição na Divindade” (J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: origem e desenvolvimento,
São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 190). Adiante acrescenta: “Embora o problema do Espírito não
tenha sido levantado em Nicéia, percebe-se a partir daí um aumento de interesse pelo as-
sunto” (Ibidem., p. 192). Boettner comenta: “Tão absorvido esteve o Concílio com a formula-
ção da doutrina da Pessoa de Cristo, que omitiu fazer uma declaração formal a respeito do
Espírito Santo” (Loraine Boettner, Studies in Theology, 9ª ed. Philadelphia: The Presbyterian and
Reformed Publishing Company, 1970, p. 127-128).
197
Vd. Carlos Ignacio Gonzalez, El Desarrollo Dogmatico en los Concilios Cristologicos, Santafé de
Bogotá: CELAM., 1991, p. 47ss.
198
Vd. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: origem e desenvolvimento, p. 198.
199
Cf. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: origem e desenvolvimento, p. 193-194. Escre-
vendo ao seu amigo Serapião, bispo de Tmuis, no delta do Nilo, Atanásio comenta a respeito destes
hereges: “... fomentam pensamentos hostis contra O Espírito Santo, pretendendo-o não ape-
nas criatura mas até um dos espíritos servis, distinto dos anjos tão-somente por grau” [Ataná-
sio, 1ª Carta a Serapião, In: C. Folch Gomes, (compilador), Antologia dos Santos Padres, 2ª ed. (re-
vista e aumentada), São Paulo: Paulinas, 1980, p. 209].
200
Nome derivado de Macedônio, bispo de Constantinopla (c. 341-360). Este grupo era também de-
nominado de Pneumatoma/xh (“lutadores contra o Espírito”). (Pneu=ma & ma/xomai). (ma/xomai e
ma/xh *Jo 6.52; At 7.26; 2Co 7.5; 2Tm 2.23,24; Tg 4.1,2).
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“[cremos] no ESPÍRITO SANTO, o Senhor e Vivificador, o que procede do


Pai [e do Filho], e que juntamente com o Pai e o Filho é adorado e glorifi-
cado, o que falou através dos profetas....”.

Ainda no Quarto século, Cirilo de Jerusalém (c. 315-386), assinala sobre a serie-
dade do assunto e da necessidade de nos atermos às Escrituras, buscando a ilumi-
nação de Deus: “A graça do Espírito é verdadeiramente necessária para tra-
tar do Espírito Santo; não a fim de que possamos falar dele como correspon-
de – porque isso é impossível – senão para que possamos atravessar este te-
201
ma sem perigo, dizendo o que está contido nas divinas Escrituras”.

Entre o Concílio de Nicéia (325) e o de Constantinopla (381), a declaração


explícita de que o Espírito é Deus foi apenas sugerida, porém não declarada. Em
372, Basílio Magno (c. 330-379) defensor ardoroso da divindade do Filho, também
sustentou a divindade do Espírito, porém não foi tão incisivo ao ponto de identificá-
202
Lo como Deus; mesmo, posteriormente (373), quando ampliou o seu
pensamento, declarou que o Espírito deve ser honrado juntamente com o Pai e com
203
o Filho. Gregório de Nissa (c. 335-c.394), outro dos “pais capadócios”, seguiu os
passos de seu irmão Basílio, sem contudo, apresentar maior contribuição,
204
enfatizando apenas a unicidade das três pessoas.
205 206
O terceiro destes pais, Gregório de Nazianzo (329-390), amigo de ambos,
foi, segundo expressão de Daniélou, “o pensador trinitário por excelência”. De
fato, com ele a divindade do Espírito é declarada com todas as letras:

201
Cirilo de Jerusalém, The Catechetical Lectures, XVI.1. In: P. Schaff & H. Wace, eds. Nicene and
Post-Nicene Fathers of the Christian Church, (Second Series), Grand Rapids, Michigan: Eerdmans,
1978, Vol. VII, p. 115.
202
Basil, Letters, 113 e 114 In: NPNF2., VIII, p. 189-190; Vd. Gregório de Nazianzo, Epístola, 58.
203
Basil, Letters, 125.3; 159.2. In: NPNF2., VIII, p. 195-196; 212.
204
Oração Catequética, 3s. Gregório de Nissa, no entanto, foi de grande relevância na questão da
procedência do Espírito (Vd. Contra Eunômio, 1.42; Contra Macedônio, 2.10,12,24), ainda que tenha
deixado aberta uma fresta para a compreensão equivocada de que o Espírito procede do Pai através
do Filho...
205
Latourette diz, não sem razão, que os “pais capadócios”, “mostraram como interpretar de tal
maneira o Símbolo Niceno que ganhou o apoio da grande maioria dos bispos orientais, in-
clusive o apoio de muitos dos que haviam sido classificados como arianos. Eles representa-
vam o que poderia chamar-se de origenismo de direita, aquela corrente de pensamento
que havia sido reforçada por Orígenes e que sustentava que o Logos sempre foi igual ao
Pai.” (K.S. Latourette, Historia del Cristianismo, 4ª ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicacio-
nes, 1978, Vol. I, p. 210). No entanto, deve ser dito, que a posição de Orígenes é difícil de precisar
pois, em alguns textos ela parece sustentar a unidade essencial entre o Pai e o Filho, em outros, a-
presenta uma inclinação subordinacionista; no entanto, esta última aparece com mais clareza em
seus escritos. (Vd. Carlos Ignacio Gonzalez, El Desarrollo Dogmatico en los Concilios Cristologicos,
p. 47ss.).
206
Devido à sua eloquência e profundidade teológica, deram-lhe o título de “o teólogo” (homologado
em Calcedônia, 451) e, de “o Demóstenes cristão” (Cf. W.C. Weinrich, Gregório de Nazianzo: In: Wal-
ter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1990, Vol.
II, p. 226 (Doravante citada como EHTIC), C. Folch Gomes, (compilador), Antologia dos Santos Pa-
dres, p. 245 e Gregório Nazianzeno: In: R.N. Champlin & J.M. Bentes, Enciclopédia de Bíblia Teolo-
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 47/233

“... Sem confusão, existem Três Pessoas na Única natureza e dignidade


da Divindade.
“Por conseguinte o Filho não é o Pai (é um só o Pai), mas é exatamente
aquilo que o Pai é. Nem o Espírito é o Filho, por vir de Deus (um só é o Uni-
gênito), é, porém, exatamente aquilo que o Filho é. Estes três são um pela
Divindade, e, na unidade, são três por suas propriedades.
“Desse modo não são o Um de Sabélio nem os três da péssima divisão
de hoje [modalismo].
– Que, então? O Espírito é Deus?
– Perfeitamente, sem dúvida alguma.
– E é consubstancial?
207
– Sim, já que é Deus”.

Agostinho (354-430), em 393, escreveu:

“Numerosos são os livros que homens sábios e espirituais escreveram so-


bre o Pai e o Filho. (...) O Espírito Santo, entretanto, não tem sido estudado
com tanta abundância e cuidado pelos doutos e grandes comentaristas
das divinas Escrituras, de tal sorte que resultará igualmente fácil compre-
ender seu caráter próprio: que faz com que não possamos chamar-lhe
208
nem Filho nem Pai, senão unicamente Espírito Santo”.

gia e Filosofia, São Paulo: Candeia, 1991, Vol. II, p. 979. (Doravante citada como EBTF). O livro de
Tillich diz que o designativo de “o teólogo”, foi dado a Gregório de Nissa. (P. Tillich, História do Pen-
samento Cristão, São Paulo: ASTE, 1988, p. 81. A impressão que tenho, é que este lapso foi um erro
de revisão...). Gregório de Nazianzo presidiu durante um período o Sínodo de Constantinopla 381;
quando se despediu, pronunciou o famoso “Discurso de adeus”. (Vd. Lorenzo Perrone, De Nicéia
(325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberigo, org. História dos Concílios Ecumênicos, São Paulo:
Paulus, 1995, p. 65-66).
207
São Gregório de Nazianzo, Discursos Teológicos, Petrópolis, RJ.: Vozes, 1984, XXXI.9-10. p. 98.
Gregório entende que a doutrina do Espírito deveria mesmo ser formulada por último, obedecendo a
uma espécie de revelação progressiva: “A antiga Aliança pregou abertamente o Pai, mais obs-
curamente o Filho. A Nova manifestou o Filho, deixou entrever a divindade do Espírito. Agora
o Espírito mora conosco, e de modo mais evidente se manifesta a nós. Porque não era pru-
dente, antes de ser reconhecida a divindade do Pai, proclamar abertamente a do Filho.
Nem, antes de admitida a do Filho, falar dO Espírito Santo, para que, se assim se pode dizer,
não se impusesse um jugo pesado demais. Para não acontecer, como a opressos em exces-
so de comida ou a olhos enfermos diante dos raios do sol, fossem postos em perigo acima
de suas forças. Por estes acréscimos paulatinos ou, como diz Davi, ascensões (Sl 84.7), tam-
bém de glória em glória mais esplêndidos avanços e progressos, brilha a luz da Trindade” (I-
bidem., XXXI.26). Ainda que não detalhe o assunto, McGrath considera que a formulação dos pais
capadócios é “uma forma atenuada de triteísmo” (Ver: Alister E. McGrath, Teologia Sistemática,
histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 383-
384).
208
Agostinho, On Faith and the Creed: In: Philip Schaff, Nicene and Post-Nicene Fathers of the
Christian Church, 2ª ed. (First Series), Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1995, Vol. III, p. 328 e
329.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 48/233

Modernamente a heresia Ariana foi retomada pela seita anticristã das Testemu-
nhas de Jeová, que afirma ser o Espírito apenas uma força impessoal e ativa sem
209
ser dotado de inteligência. As Testemunhas de Jeová reconhecem em Ário um
precursor de Charles Taze Russel (1852-1916), o iniciador de sua seita.

Ao estudarmos este assunto, não devemos nos esquecer, que as Escrituras falam
210
mais "do" Filho do que "do" Espírito. A natureza do Espírito – e não poderia ser
diferente –, é menos explicitada, tratando mais especificamente do Seu Ministério,
211
que consiste, após a ascensão de Cristo, em dar testemunho Dele. A Obra do
Filho reclama as operações do Espírito; e estas, amparam-se naquela. A nossa
teologia portanto, nada mais é do que uma reflexão interpretativa da Palavra, não o
212
seu “complemento”; ela é o estudo da Revelação Pessoal de Deus conforme
registrada nas Escrituras Sagradas.

Já nos primeiros séculos da Era Cristã, surgiram diversas heresias concernentes


à Pessoa de Cristo e à relação das Suas duas Naturezas. Essas heresias ora nega-
vam a divindade ora diminuíam a humanidade de Cristo. Alguns teólogos, no afã de
combater alguma forma de erro, caíram com frequência em outro; passando a existir
daí, não mais uma heresia, mas duas!. Segundo Grudem, essas heresias surgiram
da negação de um desses princípios fundamentais, a saber: a) Deus é três pessoas;
213
b) Cada pessoa é plenamente Deus e, c) Só há um Deus. Notemos também, que
nos primeiros séculos, a Igreja confessou direta e indiretamente a Santíssima
Trindade, a divindade do Filho e do Espírito; isto estava implícito de várias formas:
no batismo (Mt 28.19; Didaquê, 7), na “bênção apostólica” (2Co 13.13) e no recitar
do Credo Apostólico. O problema surge na elaboração desta verdade de modo
compreensível. Na formulação da doutrina é que a Igreja se viu em sérias
dificuldades: como tornar compreensível doutrinas entremeadas de mistérios? Este
foi um dos problemas. Na tentativa da verbalização da doutrina é que muitas he-
resias surgiram...

209
Cf. citação extraída do documento das Testemunhas de Jeová, Let Your Name Be Sanctified
(Santificado Seja o Teu Nome), 1961, p. 269 Apud A. Hoekema, Testigos de Jehova, Grand Ra-
pids, Michigan Subcomision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1978, p. 37. Ho-
ekema também ressalta que a concepção tida do Espírito como algo inferior, é evidenciada na tradu-
ção que as Testemunhas de Jeová fazem das Escrituras, colocando o “Espírito” sempre com a inicial
minúscula (Vd. Ibidem., p. 21-23). Veja-se também, J.K. Van Baalen, O Caos das Seitas, 3ª ed. São
Paulo: Imprensa Batista Regular, 1977, p. 193.
210
Ainda que a intenção seja apreciável, acredito que a analogia feita por McGrath é infeliz. Diz este
brilhante autor: “O Espírito Santo tem sido, por muito tempo, como a Cinderela da Trindade.
As outras duas irmãs podem ter ido ao baile da teologia; o Espírito Santo, toda vez, é deixa-
do para trás” (Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teo-
logia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 361).
211
Compreensão semelhante encontrei em Millard J. Erickson, Christian Theology, 13ª ed. Grand
Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996, p. 847. (Existe em português uma edição abreviada des-
ta obra: Teologia Sistemática,Introdução à Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1997).
212
“A teologia é o conhecimento de Deus derivado da revelação bíblica. (...) Cada vez
mais tenho chegado à conclusão de que o ensino de teologia jamais deve estar separado
da Bíblia" (D.M. Lloyd-Jones, Uma Escola Protestante Evangélica: In: Discernindo os Tempos, São
Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 389). ("Discurso proferido na inauguração do
Seminário Teológico de Londres, em 6 de outubro de 1977").
213
Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 177.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 49/233

Quanto à segunda pessoa da trindade, a preocupação predominante, concentra-


va-se em tentar responder à pergunta concernente à divindade de Jesus. Segundo
resume bem a questão:

“Durante os quatro primeiros séculos que se seguiram à morte de Cristo,


mais exatamente até os concílios de Nicéia (325), Éfeso (431) e Calcedô-
nia (451), grande parte dessa criatividade cristológica foi dirigida a res-
214
ponder, de maneira cabal, à pergunta (...) Jesus de Nazaré é Deus?....”.

Veremos abaixo em forma de esboço, apenas os principais erros:

1) O Ebionismo:

Heresia surgida nos círculos judaicos, no final do primeiro século. O nome


é derivado do hebraico: }Oy:be) ('ebheyôn), que significa "pobre", "necessitado", "mi-
215
serável", "mendigo", "pedinte de esmolas". Eusébio de Cesaréia (c. 262-339),
com uma dose de maldade, diz que este nome "manifesta a pobreza de sua inte-
216
ligência". Informa que eles tinham a respeito de Cristo "pensamentos pobres e
217
de baixa estima". Criam que a fé não era suficiente para a salvação, sendo pre-
218
ciso que os homens observassem a Lei. Determinado grupo de ebionitas, "hete-
rodoxo", cria que Jesus era um mero homem, filho de José e Maria, porém um since-
219
ro observante da Lei. Ele foi qualificado através do batismo pela descida do Espí-
rito Santo, para ser um profeta e mestre; porém o Espírito Santo o abandonou no
Calvário. (Vd. 1Jo 5.6-12). No entanto, como Messias predestinado, Ele voltaria a
220
terra para reinar.

Este grupo desejava manter a qualquer preço o monoteísmo do Antigo


Testamento – preservando a Lei mosaica e uma forma de ascetismo: todos os
cristãos deveriam ser circuncidados –, nem que para isso, tivessem de negar a
divindade de Cristo e a Sua concepção virginal... o que de fato fizeram. Na tentativa
de preservar o monoteísmo bíblico, os ebionitas sacrificaram todos os textos que
falam da divindade e eternidade do Filho.

214
Juan Luis Segundo, O Homem de Hoje Diante de Jesus de Nazaré, (II/2), São Paulo: Paulinas,
1985, p. 17.
215
Apesar de haver alusões (Hipólito e Tertuliano) a um suposto Ebião como fundador da seita, esta
palavra relembra o título com que a igreja judaico-cristã de Jerusalém gostava de ser reconhecida
(Vd. Rm 15.26; Gl 2.10). (Cf. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimen-
to, São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 103).
216
Eusébio de Cesarea, Historia Eclesiastica, Madrid: La Editorial Catolica, (Biblioteca de Autores
Cristianos, Vols. 349-350), 1973, III.27.6. (Doravante citada como HE).
217
Eusébio, HE., III.27.1.
218
Eusébio, HE., III.27.2.
219
Eusébio, HE., III.27.2/VI.17.
220
J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 103.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 50/233

221
Rejeitavam os escritos de Paulo, chamando-o de “apóstata da lei”; todavia,
honravam a Tiago e Pedro.

Devemos acentuar que todo ebionismo é subordinacionista. A divindade do Filho,


quando aceita, é menor do que a de Deus. O Filho é ontologicamente subordinado
ao Pai.

Ebionita na Teologia moderna passou a significar aqueles que negam a divindade


ou a plena divindade de Cristo.

2) O Gnosticismo:222

Nome derivado do grego gnw/sij, “conhecimento”. Este grupo extrema-


223 224
mente “amorfo”, surgiu provavelmente no primeiro século. Os gnósticos pre-
tendiam ter um conhecimento esotérico, secreto e especulativo de Deus. Na busca
de um conhecimento maior, o gnosticismo se caracterizava por ser altamente espe-
culativo, fazendo um sincretismo de elementos gregos, judeus, cristãos e orientais,
buscando uma explicação peculiar para a origem do mal. Irineu (c. 130- c. 200), os
retrata como hereges que corromperam a doutrina cristã mesclando-a com a filosofia
225
pagã. No entanto, ao que parece, muitos dos mestres gnósticos eram cristãos
sinceros, desejosos de expressar o Evangelho de forma que parecesse satisfatório
aos seus contemporâneos. Contudo, foram infelizes em sua tentativa, sacrificando o
226
conceito bíblico do Logos divino, em prol de seus pressupostos filosóficos.

Uma das preocupações dominantes nos sistemas gnósticos era com a questão da
dualidade, caracterizada pela miséria e futilidade da vida humana neste mundo: vida
aprisionada pelo corpo material, e o contraste com a ordem superior, inteiramente
espiritual, que não se comunica com a matéria.

A matéria é má, e Deus, o Pai supremo (Bythos), é o Éon perfeito; por isso, Deus
não pode ter criado o mundo; “o que Deus fez foi lançar uma série de emana-

221
Eusébio, HE., III.27.4.
222
Vd. Gnosticismo: In: R.N. Champlin & João M. Bentes, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofi-
a, São Paulo: Editora e Distribuidora Candeia, 1991, Vol. 2, p. 918-923. (Doravante citado como
EBTF).
223
Conforme expressão de C.H. Dodd, A Interpretação do Quarto Evangelho, São Paulo: Paulinas,
1977, p. 134 e de J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 16. Do
mesmo modo entende, A.F. Walls, Gnosticismo: In: J. D. Douglas, ed. ger. O Novo Dicionário da Bí-
blia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, Vol. II, p. 674.
224
Há um certo consenso por parte dos Pais da Igreja em atribuírem a Simão, o Mágico (At 8.9ss), a
origem do gnosticismo (Vd. por exemplo, Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1995, I.23.2. p.
99s.); todavia, nos detalhes são divergentes, devido à variedade de grupos gnósticos. (Vd. J.N.D. Kel-
ly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 16ss; B. Hägglund, História da
Teologia, Porto Alegre, RS.: Concórdia, 1973, p. 27).
225
Irineu, Irineu de Lião, II.14.1. p. 161ss
226
Vd. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 20.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 51/233

227
ções [30]. Cada uma destas emanações distanciou-se mais de Deus, até
que por último houve uma emanação tão distante que pôde tocar a maté-
ria. Esta emanação [Demiurgo, identificado como o Deus do Antigo Testa-
mento] foi a que criou o mundo (...). Os gnósticos sustentavam que cada
emanação conhecia cada vez menos a Deus, até chegar a um ponto que
as emanações não só ignoravam a Deus senão que lhe eram hostis. Assim
chegaram, finalmente, à conclusão de que o deus criador não só era distin-
228
to do Deus verdadeiro, senão que o ignorava e lhe era ativamente hostil”.

Para os gnósticos, Deus (Bythos) não tinha nada a ver com este universo, daí,
possivelmente, a afirmação de João: “Todas as cousas foram feitas por intermédio
dele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (Jo 1.3).
229
Márcion (? – c. 165) o herege de Sinope – cujos ensinamentos perduraram no
Oriente até o século VII – ainda que sustentasse alguns conceitos gnósticos, ensi-
nando também a ideia de dois deuses, diferentemente do “gnosticismo tradicional”,
230
não identificou o “Demiurgo” como o autor do mal.

A respeito da Pessoa de Cristo, havia dentro do gnosticismo, uma variedade de


ideias, a saber:

a) Jesus era uma das trinta emanações "aeons" do Deus bom "Bythos", emitidas
para entrar em contato com a matéria que é má. Assim sendo, Jesus não é divino, é
apenas uma espécie de semi-deus, uma entidade entre Deus e os homens.

227
Irineu, Irineu de Lião, I.1.3. p. 33. “Esses trinta éons constituem o Pleroma, ou a plenitude da
Divindade” (J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 17).
228
William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora (Juan I), 1974, Vol.
5, p. 20. Para uma descrição mais detalhada deste processo de emanações, Vejam-se: J.N.D. Kelly,
Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 17ss; B. Hägglund, História da Teolo-
gia, p. 29-30; L. Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, São Paulo: PES., 1992, p. 45-47.
229
A respeito de seus ensinamentos, Vejam-se, entre outros: Tertulian, The Five Books Against Mar-
cion. In: Alexander Roberts & James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, 2ª ed. Peabody, Massa-
chusetts: Hendrickson Publishers, 1995, Vol. III, p. 269-475; Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus,
1995, I.27.2-4. p. 109-110; Justino de Roma, I Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, 58, p. 73-74.
230
Vd. Justino de Roma, I Apologia, 26, p. 42-43; J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Ori-
gem e Desenvolvimento, p. 42; Márcion: In: R.N. Champlin & João M. Bentes, Enciclopédia de Bíblia,
Teologia e Filosofia, São Paulo: Editora e Distribuidora Candeia, 1991, Vol. 4, p. 119-121; A. Ske-
vington Wod, Marcionitas: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, Grand Rapids, Michigan:
T.E.L..L., 1985, p. 333; Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 49-50. “Márcion não foi um
Gnóstico verdadeiro ou típico a despeito do seu dualismo e docetismo.” (John Knox, Marcion:
In: Harry S. Ashmore, Editor in Chief. Encyclopaedia Britannica, Chicago: Encyclopaedia Britannica
Inc., 1962, Vol. 14, p. 868a. Do mesmo modo, ver: B. Aland, Marcião – Marcionismo: In: Ângelo Di
Berardino, org. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs, Petrópolis, RJ./São Paulo: Vo-
zes/Paulinas, 2002, p. 881-882). No entanto, ele foi o “teólogo mais proeminente a popularizar
uma cristologia docética.” (Carl E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In: Carl E. Braaten & Ro-
bert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã, Vol. I, p. 485).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 52/233

Deus – Bom Deus – Bom

Jesus Cristo seria uma das 30


emanações
emanações

________________________________________________________________

Matéria má Matéria má

b) Partindo do princípio filosófico de que a matéria é essencialmente má, afirma-


vam que Jesus não tinha corpo real; deste modo, ele era uma espécie de fantasma,
sem carne e sangue reais. Jesus era uma ilusão; parecia homem mas não era (do-
231
cetismo); o filho de Deus, que era real, apenas usava o Jesus humano como meio
232
de expressão; a encarnação, portanto, era apenas uma ilusão. Por trás deste
conceito, estava a concepção de que Deus não pode sofrer; logo, se Cristo sofreu,
ele não era Deus; e se ele era Deus, não poderia sofrer. Então, o sofrimento de Cris-
to teria sido apenas na aparência, não real. Inácio, bispo de Antioquia, no início do
segundo século (c. 110) combateu ferreamente o docetismo, afirmando a divindade
233
e a humanidade de Cristo. Do mesmo modo, Policarpo (c. 75-c. 160), bispo de
Esmirna, escreve aos filipenses: “Qualquer que não confesse que Jesus Cristo
veio em carne, é um anticristo. E quem não confessa o testemunho da cruz,
234
é do diabo.”

Alguns diziam que quando Ele andava, não deixava pegadas, porque seu corpo
não tinha peso nem substância. João, de modo especial, combateu este tipo de con-
ceito em seus escritos (Vd. Jo 1.14; 20.31; Cl 1.19; 2.9; 1Jo 2.22; 4.1-3,15; 5.1,5,6;

231
Como sabemos este nome é derivado do verbo grego doke/w = “parecer”. Este ensinamento foi
primariamente difundido por volta do ano 85 por Cerinto, natural de Alexandria, discípulo de Fílon.
232
Vd. M.C. Tenney, Docetismo: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, p. 175; Docetismo: In:
R.N. Champlin & João M. Bentes, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, II, p. 203-205; J.N.D.
Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 104-105
233
Vd. Suas Cartas: Aos Efésios, 7,18,19,20; Aos Magnésios, 11; Aos Tralianos, 9; Aos Esmirnen-
ses, 1-3, 7. (Vd. a coleção de Cartas In: Cartas de Santo Inácio de Antioquia, 3ª ed. Petrópolis, RJ.:
Vozes, 1984). Devemos mencionar que apesar de Inácio combater os “docetas”, este nome só iria
aparecer como designação deste tipo de pensamento, por volta do ano 200, em Serapião, que deno-
mina este grupo de Dokhta\j. (Cf. Eusébio, HE., VI.12.6).
234
Polycarp, The Epistle of Polycarp to the Philippians, VII. In: ANF., Vol. I, p. 34. Quanto a um tes-
temunho antigo sobre o procedimento de Policarpo, Vd. Irineu, Irineu de Lião, III.1.3. p. 251-252).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 53/233

235
2Jo 7).

c) Jesus era um homem comum que foi usado pelo Espírito de Deus e
abandonado no Calvário, não havendo de fato encarnação. (Vd. Jo 1.14; 20.31; Cl
1.19; 2.9; 1Jo 2.22; 4.1-3,15; 5.1,5,6; 2Jo 7).

3) Monarquianismo:

O nome é derivado de duas palavras gregas, mo/noj & a)rxh/, daí, "Um
só Princípio", "Um só Deus". O Monarquianismo modalista foi a heresia mais
236
influente do terceiro século.

A sua preocupação era a defesa do monoteísmo, negando toda e qualquer ideia


de diversidade no Ser divino, daí a tentativa de conciliar a doutrina do “Logos”, com
a unicidade de Deus.

Os monarquianos criam numa espécie de divindade de Jesus (monarquianismo


237
dinâmico), contudo afirmavam ser a Trindade irreconciliável com a unidade de
Deus. Dentro desta perspectiva, não há relação trinitária e, está totalmente fora de
questão a doutrina da Expiação e da intercessão do Espírito.

A) Monarquianismo Dinâmico: Também conhecido como "Humanitaria-


no". Seu primeiro representante foi o curtidor Teodoto, que chegou a Roma de Bi-
zâncio no ano 190, como resultado de uma perseguição. Teodoto foi excomungado
pelo bispo de Roma, Vítor (186-198). Contudo, suas ideias foram preservadas e di-
238
fundidas por outro Teodoto, banqueiro e um tal Asclepiodoto. No entanto, o mais
destacado defensor desta doutrina, foi Paulo de Samosata, bispo de Antioquia por
volta do ano 260.
239
Paulo de Samosata ensinava que Jesus era originariamente um mero homem,
sendo elevado a uma posição superior no batismo, quando recebeu o poder
("du/namij") do céu. Este poder, que passou a residir na pessoa humana de Jesus –
como em mero recipiente –, qualificou-a para uma tarefa especial. Assim, Jesus foi
elevado a uma posição intermediária entre Deus e os homens, no entanto, Jesus
não é essencialmente divino. A consciência de ser o portador do Logos, foi crescen-

235
Notemos que nem todo “docetismo” era gnóstico, no entanto, como este era uma das característi-
cas do gnosticismo, os termos foram identificados.
236
Compare as informações de L. Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 71 com as de J.N.D.
Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 89. Berkhof diz, que foi Tertuli-
ano o primeiro a dar este designativo (monarquiano) a este tipo de concepção (História das Doutrinas
Cristãs, p. 71).
237
“A força propulsora por trás do modalismo era a dupla convicção, defendida com vigor,
da unicidade de Deus e da plena divindade de Cristo” (J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé
Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 89).
238
Eusébio, HE., V.28.1-3,6,9.
239
Eusébio, HE., V.28.2; VII.27.2.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 54/233

do gradativamente em Jesus a partir do seu batismo. O Logos o capacitou a exercer


um ministério especial e, era Ele quem controlava todas as palavras e obras de Je-
sus.

Jesus era o filho adotivo de Deus; portanto, a sua "divindade" era apenas de hon-
ra, de adoção e não de essência; ela ocorre pela graça. No entanto, dentro da pleni-
tude da revelação bíblica, não há lugar para nenhum tipo de teologia adocionista. O
fato bíblico é o oposto: O verbo eterno de Deus se fez carne e habitou entre nós (Jo
1.14). A encarnação tem início lá em cima, de onde vem o nosso Senhor (Jo
240
8.23).

Essa teologia adopcionista foi condenada no Sínodo de Antioquia (268), sendo


241
ele excomungado.

B) Monarquianismo Modalista: Seu principal representante foi Sabélio,


presbítero de Ptolemaida (250), tendo ensinado em Roma por volta do ano 215.

Esta forma de modalismo, foi conhecida no Ocidente como "Patripassianismo" (O


242
Pai se encarnou e também sofreu) e no Oriente como "Sabelianismo".

Para Sabélio, não havia Trindade; Pai, Filho e Espírito Santo, eram apenas no-
mes diferentes para a mesma realidade; deste modo, os três eram apenas
243
(Pro/swpata) (semblantes, faces) e não seres independentes. Ele considerava
as três Pessoas da Trindade como três diferentes modos de ação ou manifestação
divina, as quais Deus assume sucessivamente, revelando-se como Pai na criação e
244
na doação da Lei; como Filho na encarnação e como Espírito na regeneração e
santificação. Deste modo há apenas um única Pessoa; ficando a Trindade reduzida
a três modos de manifestação.

Epifânio, bispo de Salamis, descrevendo os ensinamentos do Sabelianismo,


escreveu por volta do ano 375:

240
Vd. Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, São Paulo: Editora Os Puritanos, 2000, p. 52-53
241
Eusébio, HE., VII.29.1.
242
Na sua obra contra Práxeas (c. 213), Tertuliano escreveu: “O demônio tem lutado contra a
verdade de muitas maneiras, inclusive defendendo-a para melhor destruí-la. Ele defende a
unidade de Deus, o onipotente criador do universo, com o fim exclusivo de torná-la herética.
Afirma que o próprio Pai desceu ao seio da Virgem, dela nascendo, e que o próprio Pai so-
freu; que o Pai, em suma, foi pessoalmente Jesus Cristo.... Práxeas foi quem trouxe esta here-
sia da Ásia para Roma.... Ele afugentou profecia, e trouxe heresia; expulsou o Paráclito e
crucificou o Pai.” (Against Praxeas, 1. In: ANF., Vol. III, p. 597-598). Devido à obscuridade da pes-
soa de Práxeas, pensa-se que este nome era apenas um apelido (“intrometido”), dado a algum pro-
ponente destas ideias, tais como, Noeto, Epígono ou o papa Calixto (217-222). (Vd. J.N.D. Kelly, Dou-
trinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 90).
243
Vd. P. Tillich, História do Pensamento Cristão, São Paulo: ASTE., 1988, p. 73.
244
Boettner comenta: “A encarnação foi reduzida a ser simplesmente uma união temporária
das naturezas Divina e humana no homem, Jesus Cristo.” (Loraine Boettner, Studies in
Theology, 9ª ed. Philadelphia, The Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1970, p. 128).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 55/233

“Ensinam que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma só e mesma es-
sência, três nomes apenas dados a uma só e mesma substância”. À frente
Epifânio cita uma analogia utilizada: “Tome-se o sol: o sol é uma só substân-
cia, mas com tríplice manifestação: luz, calor e globo solar. O calor... é (a-
nálogo a) o Espírito; a luz, ao Filho; enquanto o Pai é representado pela
verdadeira substância. Em certo momento, o Filho foi emitido como um
raio de luz; cumpriu no mundo o que cabia à dispensação do Evangelho
e à salvação dos homens, e retirou-se para os céus, semelhantemente ao
raio enviado pelo sol que é novamente incorporado a ele. O Espírito Santo
é enviado mais sigilosamente ao mundo e, sucessivamente, aos indivíduos
245
dignos de o receberem....”.

Criação, doação da
Pai Lei

MONARQUIANISMO
MODALISTA: DEUS F Filho
Encarnação

F Espírito Regeneração e
Santo Santificação
Sa

Implicações desta doutrina:

1) Não há Trindade.

2) As três formas de Revelação não são co-eternas.

3) Há apenas três MODOS da mesma Pessoa, e não três Pessoas.

4) Arianismo:

Nome derivado de seu maior representante, Ário (c. 250-c.336), natural


da Líbia e educado em Antioquia da Síria, tendo como mestre a figura enigmática de
246
Luciano de Antioquia († 312), que teria sido discípulo de Paulo de Samosata.

Ário teve os seus ensinamentos condenados em Antioquia (02/325); e no Primeiro


Concílio Ecumênico de Nicéia (20/05/325), sendo então deportado para o Ilírico.

245
In: H. Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, São Paulo: ASTE, 1967, p. 71. Do mesmo em: Alis-
ter E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Pau-
lo: Shedd Publicações, 2005, p. 382-383.
246
Cf. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 174.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 56/233

Mesmo no exílio, ele continuou escrevendo, aumentando consideravelmente a sua


influência, contando sempre com um bom número de amigos fiéis, sendo o grande
articulador político do grupo ariano, o bispo Eusébio de Nicomédia († 342). Em 335,
num encontro com Constantino (274-337), Ário subscreveu uma confissão conside-
rada pelo Imperador “ortodoxa”, que na realidade é mais eloquente no seu silên-
247
cio. Em 336/337, quando jazia no seu leito de morte em Constantinopla, foi sole-
248
nemente readmitido à comunhão da Igreja pelo Sínodo de Jerusalém.

O Arianismo a despeito de sua condenação em Nicéia, juntamente com os aná-


temas emitidos por este Concílio, desfrutou de ampla aceitação no quarto século, só
começando a perder força no Concílio de Constantinopla (381), quando a posição de
Nicéia foi reafirmada; no entanto, o arianismo permaneceu vivo até o final do século
249
sétimo. Se por um lado o arianismo desfrutou de boa aceitação devido ao grande

247
Vd. o texto da sua confissão In: Socrates Scholasticus, The Ecclesiastical History, I.26. In: P.
Schaff & H. Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, (Second Series),
Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1978, Vol. II, p. 28-29. (Doravante citado como NPNF2); Salami-
nus Hermias Sozomen, The Ecclesiastical History, I.27. In: NPNF2, II, p. 277-278; o texto grego está
reproduzido In: Philip Schaff, The Creeds of Christendom, 6ª ed. Revised and Enlarged, Grand
Rapids, Michigan: Baker Book House, (1931), Vol. II, p. 28-29. (Doravante, citado como COC). Vd.
também, Carlos Ignacio Gonzalez, El Desarrollo Dogmatico en los Concilios Cristologicos, Santafé de
Bogotá: CELAM., 1991, p. 316.
248
Cf. V.L. Walter, Arianismo: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja
Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, Vol. I, p. 105. (Doravante citado como EHTIC) e Eusebius
of Nicomedia: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical,
Doctrinal, and Practical Theology, Chicago: Funk Wagnalls, Publishers, 1887 (Revised Edition), Vol.
I, p. 772-773.(Doravante citado como RED).
249
Os visigodos (= godos do oeste) que invadiram e pilharam Roma em 24/08/410, conseguiram
com muita dificuldade se manter sobre o território conquistado. Contudo, no período de apogeu, os
visigodos estenderam os seus domínios sobre a maior parte da Espanha, comandados pelo rei Eurico
(466-484). Os suevos, entretanto, conservaram o seu território independente no extremo noroeste da
península. (Cf. Justo L. Gonzalez, A Era das Trevas, São Paulo: Vida Nova, (Uma História Ilustrada
do Cristianismo), 1980-1988, Vol. III, p. 12. Vd. também, Vários autores, Enciclopedia Universal Ilus-
trada Europeo-Americana, Madrid: Espasa-Calpe, 70 Vols. (mais apêndices e suplementos), XXI, p.
902).
Apesar do indiscutível domínio dos visigodos, a unificação política dos seus domínios só se de-
senvolveu satisfatoriamente sob o reinado de Leovigildo (568-586), que estabeleceu a capital em To-
ledo, derrotando finalmente o reino dos suevos.
Os visigodos eram arianos, tendo sido doutrinados ao norte do Danúbio pelo missionário cristão
Ulfilas (311?-383). Embora seja discutida a amplitude da influência do trabalho de Ulfilas sobre os vi-
sigodos, o fato é que ela existiu. (Cf. Kenneth S. Latourette, Historia del Cristianismo, 3ª ed. Buenos
Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1977, Vol. I, 174 e Williston Walker, História da Igreja Cristã,
São Paulo: ASTE, 1967, Vol. I, p. 175. Vejam-se, também: Stephen Neill, História das Missões, São
Paulo: Vida Nova, 1989, p. 57 e Ruth A. Tucker, "...Até aos Confins da Terra.": Uma História Biográfi-
ca das Missões Cristãs, São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 36-39). "Os arianos se consideravam a si
mesmos como os verdadeiros cristãos e as suas igrejas, como a Igreja Católica.” (Kenneth S.
Latourette, Historia del Cristianismo, I, p. 399).
Leovigildo tentou impor o arianismo a seus súditos na península; todavia, com a sua morte
(21/04/586)(1), encerra-se a sucessão de reis visigodos "arianos". O seu filho Recaredo I,(2) assume
o trono, governando de 586 a 601. Recaredo, que ao que parece, era cristão, declarou-se oficialmen-
te em 587, quando reinava apenas há dez meses. O bispo de Sevilha, Leandro (540-596), por certo,
teve grande influência em sua decisão, como também tivera na de seu irmão Hermenegildo (564-
586).
Após Recaredo dominar três conspirações arianas, visto que estes não se conformavam com a sua
conversão, ele convocou o Terceiro Concílio de Toledo, que se celebrou em 06/05/589, com a assis-
tência de 62 bispos e 5 metropolitanos de Espanha e das Gálias, sendo Leandro de Sevilha (540-
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 57/233

número de seguidores influentes e a tolerância explícita do imperador – que deseja-


250
va a tudo custo manter a unidade do império –, ele encontrou um adversário per-
severante que, apesar da pequena estatura, tornou-se um gigante na defesa da or-
251
todoxia bíblica: Atanásio (c 296-373), o jovem bispo de Alexandria (328-373), que
mesmo sendo perseguido e exilado, conseguiu exercer poderosa influência na teo-
logia ocidental, preservando a unidade da igreja e uma sã teologia bíblica, susten-
252
tando a divindade e a humanidade de Jesus.

O ponto focal de Ário é de que há um só Deus (Pai) não-gerado, sem começo, ú-


nico, verdadeiro, único detentor de imortalidade. Para os arianos, Jesus Cristo não
era da mesma substância do Pai (o(moou/sioj) (“da mesma natureza”), mas sim de
uma substância similar (o(moio/usioj)(“de natureza semelhante”). Esse “iota” grego
fazia toda a diferença entre um cristianismo bíblico e um cristianismo forjado pela

596) o grande personagem deste evento. À ocasião, Recaredo e sua esposa Bada, reafirmaram as
suas conversões ao catolicismo – proclamando deste modo a conversão de todo o reino –, e muitos
outros abjuraram o arianismo, entre eles cinco magnatas e oito bispos. (Vd. Enciclopedia Universal I-
lustrada Europeo-Americana, XLIX, p. 1137). Alguns arianos aristocratas fizeram oposição ao rei, to-
davia, como não dispunham de apoio popular, nada conseguiram. (Cf. Jacques Heers, História Medi-
eval, 3ª ed. (corrigida), São Paulo: Difel, 1981, p. 31).
O crescente desaparecimento do arianismo "facilitou a unidade religiosa e cultural da Europa
Ocidental". (Kenneth S. Latourette, Historia del Cristianismo, I, p. 400).

*****

(1) Parece que Leovigildo se fez católico no leito de morte (Vd. Enciclopedia Universal Ilustrada Euro-
peo-Americana, XXI, p. 904A; XXVII, p. 1205A; XXIX, p. 1234A), entregando seu filho Recaredo aos
cuidados espirituais de Leandro de Sevilha.
(2) O primeiro filho de Leovigildo foi Hermenegildo (564-586), nascido do seu primeiro casamento
com a católica Riquilde (Richilde), que teve vida breve [ou Teodora, que segundo alguns, era irmã do
bispo Leandro (Cf. Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana, XXIX, p. 1234a)]. Hermene-
gildo se converteu ao catolicismo por volta do ano 580, mudando o seu nome para João. Mais tarde,
por questões políticas e, finalmente, por se negar voltar ao arianismo, rejeitando inclusive, receber a
Comunhão das mãos de um bispo ariano, Hermenegildo foi martirizado em 13/04/586, provavelmente
em Sevilha (Vd. Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana, XXI, p. 903b; XXVII, p. 1204).
Em sua homenagem, o Rei Fernando VII, de Espanha (1784-1833), criou em 10/07/1815, "A Real e
Militar Ordem de São Hermenegildo", que objetivava premiar os oficiais dos Reais Exércitos e Arma-
da pela constância no serviço militar. (Vd. Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana, XXVI-
I, p. 1203-1204).
Recaredo foi o segundo filho de Leovigildo, rebento do seu casamento com Goisuintha, viúva de
Atanagildo, sendo uma "ariana furiosa" (Cf. Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana, XXI,
p. 903b). Todavia, na Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana, XIL, p. 1136b, encontra-
mos a informação de que esta era a sua madrasta.
250
Vd. Philip Schaff, History of the Christian Church, Peabody, Massachusetts, Hendrickson
Publishers, 1996, Vol. III, § 119, p. 621; Atanásio: In: Tony Lane, Pensamento Cristão: Dos Primórdios
à Idade Média, São Paulo: Abba Press Editora, 1999, Vol. 1, p. 45; P. Tillich, História do Pensamento
Cristão, p. 75-76.
251
Desses 45 anos, 17 foram passados em cinco exílios diferentes. (Cf. Samuel J. Mikolaski,
Atanasio: In: Wilton M. Nelson, ed. ger. Diccionario de Historia de la Iglesia, Miami, Florida, Editorial
Caribe, 1989, p. 100 e Atanásio: In: Tony Lane, Pensamento Cristão: Dos Primórdios à Idade Média,
Vol. 1, p. 45).
252
Vd. Samuel J. Mikolaski, Atanasio: In: Wilton M. Nelson, ed. ger. Diccionario de Historia de la I-
glesia, p. 99-100.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 58/233

253
imaginação do homem.
254
Desta premissa, como observa Kelly, decorrem quatro outras:

1) O Filho é uma criatura; uma criatura perfeita, distinta da criação, mas que veio
à existência pela vontade do Pai;

2) Como criatura, o Filho teve um começo. Logo, a afirmação de que Ele era co-
eterno com o Pai, implicaria na existência de dois princípios, o que assinalaria uma
negação do monoteísmo;

3) O Filho não tem nenhuma comunhão substancial com o Pai. Ele é uma criatura
que recebeu o título de “Palavra” e “Sabedoria” de Deus porque participa da Palavra
e Sabedoria essenciais;

4) O Filho está sujeito a mudanças e ao pecado, e poderia cair como o diabo caiu.
Contudo, Deus prevendo a sua firmeza de caráter, agiu preventivamente com a Sua
graça.

Ário e seus discípulos, buscando apoio em textos tais como Jo 1.14; 3.16,18; Cl
1.15; 1Jo 4.9, ensinavam que Deus, o Pai, criou o Filho primeiro e, através do Filho
criou o Espírito, os homens e o mundo; portanto: Jesus é o primogênito do Pai e o
Espírito é o primogênito do Filho. O Filho foi criado do nada; Ele veio à existência an-
255
tes da fundação do mundo, mas ele não é eterno porque foi criado. Daí o “cha-
256
vão” ariano: “Tempo houve em que Ele não existia”. Portanto, sendo o Filho
criado, não é Deus; consequentemente, Jesus não é da mesma essência ou
natureza do Pai. A atribuição de títulos “Deus” e “Filho” feita a Jesus, era apenas de
cortesia, resultante da graça.

Quando perseguido em 321, Ário buscou ajuda no seu antigo e poderoso amigo,
o bispo Eusébio de Nicomédia († 342) – que batizaria o imperador Constantino, mo-
ribundo em maio de 337 –, escrevendo: "Somos perseguidos porque afirmamos
257
que o Filho tem um início, enquanto que Deus é sem início (a)/narxoj)".

O historiador W. Walker resume a posição de Ário:

“Para Ário, Cristo era, na verdade, Deus em certo sentido, mas um Deus
inferior, de modo algum uno com o Pai em essência ou eternidade. Na

253
Vd. Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 179-180; P. Tillich, História do Pensamento Cris-
tão, p. 73-74.
254
Vd. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 172-174.
255
Ver: Louis Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecio-
nadas, 1992, p. 78.
256
Cf. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 173.
257
Ário a Eusébio, In: Socrates Scholasticus, Ecclesiastical History, I.5. NPNF2., Vol. 2, p. 3. Ver
também: H. Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, p. 72 e Carlos Ignacio Gonzalez, El Desarrollo
Dogmatico en los Concilios Cristologicos, p. 314.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 59/233

encarnação, esse Logos entrou em um corpo humano, tomando o lugar


258
do espírito racional humano”.

Tillich especula que, “A vitória do arianismo teria transformado o cristianismo


259
em apenas mais uma entre as religiões já existentes.”

O Pai criou o Filho


ARIANISMO: PAI Filho Espírito primeiro e através
Santo do Filho criou
o Espírito Santo

5) O Apolinarismo:

Nome derivado de Apolinário, o jovem (c. 310-c.390), bispo de Laodicéia


na Síria (c. 360), tendo seus ensinamentos condenados em vários Concílios: Ale-
xandria (362)(aqui somente o apolinarismo, não Apolinário; o seu nome não foi men-
260 261
cionado); Roma (377) (Apolinário e o apolinarismo); Antioquia (378), no 2º
Concílio Ecumênico de Constantinopla (381) (Apolinário e o apolinarismo). Atanásio
(c 296-373), mais uma vez foi o campeão da ortodoxia do século IV, escrevendo
262
contra esta heresia (371). Ainda que alguns apolinaristas voltassem à Igreja Apo-
263
linário conseguiu adeptos que perseveraram em seus ensinamentos; um de seus
discípulos, Vitális, fundou uma congregação em Antioquia (375), sendo sagrado
bispo por Apolinário. “Os apolinarianos tiveram pelo menos um sínodo em
378, e há evidência no sentido de ter ocorrido um segundo sínodo. Depois
da morte de Apolinário, seus seguidores dividiram-se em dois partidos, os vita-
lianos e os polemeanos ou sinusiatos. Por volta de 420, os vitalianos já esta-
vam reunidos com a Igreja Grega. Pouco mais tarde, os sinusiatos fundiram-
264
se no cisma monofisita.”

Devido à sua concepção tricotômica do homem, bem como o seu desejo de pre-
servar a divindade e a unipersonalidade de Cristo, terminou por concebê-Lo como
sendo totalmente divino e apenas 2/3 humano. Baseando-se supostamente em Jo
1.14, admitiu que Jesus era uma unidade composta de elementos divinos e huma-
258
W. Walker, História da Igreja Cristã, São Paulo: ASTE., 1967, Vol. I, p. 158.
259
P. Tillich, História do Pensamento Cristão, p. 77.
260
Cf. Herzog, Appolinarianism: In: RED., Vol. I, p. 109.
261
Em 376 foi censurado pelo Papa Damaso I. Foi então que Atanásio desenvolveu a sua obra, De-
monstração da Encarnação Divina, firmando a sua posição.
262
Cf. Herzog, Appolinarianism: In: RED., Vol. I, p. 109.
263
Cf. Herzog, Appolinarianism: In: RED., Vol. I, p. 109.
264
V.L. Walter, Apolinarismo: In: EHTIC., I, p. 98.
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nos; o Verbo divino teria assumido apenas a carne humana, não toda a humanidade;
265
deste modo Jesus ainda que humano fisicamente, não o era psicologicamente.
Esta compreensão, pode ser comparada com a ideia de uma alma humana ser im-
plantada num leão; a pergunta é: quem governaria quem?; no caso, a alma humana
266
governaria o leão em seu corpo.

A ideia de total humanidade envolvia o conceito de pecaminosidade, por isso, a


267
sua tentativa de resguardar o Filho. Para ele, o homem era constituído de Sw=ma
(carne ou corpo); Yuxh/ (alma animal) e Pneu=ma (alma racional). O Pneu=ma é que
torna o homem o que ele é. Aplicando estes conceitos a Jesus, Apolinário dizia que
Jesus tinha Sw=ma e Yuxh/ iguais a de um homem comum; já o Pneu=ma fora substi-
tuído pelo Lo/goj; assim, Jesus possuía um corpo, uma alma, mas não possuía um
espírito humano.

Kelly acentua que Apolinário deixa claro o seu pensamento nas seguintes
considerações:

“A carne por depender de algum outro princípio de movimento e ação


(qualquer que seja este princípio) para se movimentar, não é por si só uma
entidade viva completa, mas, a fim de se tornar uma, entra em fusão com
alguma outra coisa. Dessa maneira, ela se uniu ao princípio celestial
governante [isto é, o Logos] e fundiu-se com ele... Assim, a partir do
movido e do motor, foi composta uma única entidade viva – não duas
entidades, nem uma única composta de dois princípios completos e
268
automáticos”.

Assim, para Apolinário há uma única vida; uma perfeita fusão do homem (carne)
com o divino, sendo a carne de Jesus glorificada pelo Logos, daí ele falar de “carne
269
divina”, “carne de Deus”, “natureza encarnada da Palavra divina”.

HOMEM JESUS CRISTO

ALMA RACIONAL pneu=ma Lo/goj

ALMA ANIMAL
Yuxh/ Yuxh/

CORPO
Sw=ma Sw=ma

265
Vd. Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, p. 291.
266
Vd. Loraine Boettner, Studies in Theology, p. 263.
267
Cf. Louis Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 94.
268
Apud J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 220.
269
Vd. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 221-222.
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Os ensinamentos de Apolinário foram censurados pelo fato de que, se o Logos


não tomou sobre si a integridade da natureza humana – estando toda ela afetada
pelo pecado –, esta natureza não poderia ser redimida, visto que aquilo que o Filho
270
não levou sobre si não pode ser alvo de sua redenção.

6) Nestorianismo:

Nome proveniente de Nestório (380-451), Bispo de Constantinopla (428-


431). Adversário voraz do Arianismo, seu primeiro ato oficial como patriarca, foi
271
incendiar uma capela ariana.

Nestório, numa série de sermões proferidos em 428, combateu uma designação


272
popular dada à Maria de “Qeoto/koj” (“Mãe de Deus”). Esta fórmula seria usada
273
pouco depois pelo Concílio de Éfeso (431), alcunhada por Cirilo de Alexandria.

Deve ser dito que Concílio de Éfeso utilizou esta expressão não como uma atri-
274
buição de majestade a Maria mas sim, como reconhecimento de que o que dela
nasceu, por obra do Espírito Santo, era o Filho de Deus, o Deus encarnado desde à
concepção. A expressão também ressalta, que Maria não foi mãe simplesmente da
275
natureza humana de Jesus, mas sim, da pessoa Teantrópica de Jesus Cristo. A
expressão é boa? Não. Talvez ela seja inspirada em Lc 1.43, quando Isabel diz a
Maria, grávida: “E de onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor?”
(Lc 1.43). Contudo, foi a melhor que se pôde elaborar naquele contexto para ex-
pressar a afirmação desta verdade bíblica. Parece-nos melhor a declaração de que
Maria é mãe de Jesus Cristo, Aquele que é verdadeiramente homem e verdadeira-
mente Deus. O fato é que mesmo involuntariamente, o Concílio de Éfeso contribuiu
276
para a deificação de Maria.

Nestório, por sua vez – fugindo do que considerava o extremo oposto, que dizia

270
Vd. Louis Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 94-95; Wayne A. Grudem, Teologia Sistemá-
tica, p. 458.
271
Cf. H. Griffith, Nestório, Nestorianismo: In: EHTIC., III, p. 18.
272
Cf. H. Griffith, Nestório, Nestorianismo: In: EHTIC., III, p. 18.
273
Quanto aos possíveis empregos da expressão antes deste período, ver: Maurice Jourjon & Ber-
nard Meunier, Maria: In: Jean-Yves Lacoste, dir. Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Pauli-
nas/Loyola, 2004, p. 1095; G.I. Söll, et. al., Maria: In: Angelo Di Berardino, org., Dicionário Patrístico e
de Antiguidades Cristãs, Petrópolis, RJ/São Paulo: Vozes/Paulus, 2002, p. 885-886.
274
O que viria a acontecer por volta do sexto século, quando Maria começaria a ser adorada (Cf.
W.C.G. Proctor, Madre de Dios: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, p. 325).
275
Cf. P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. II, p. 64.
276
Cf. Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 1235-1236.
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277
ser Maria “a)nqropoto/koj” (“Mãe do homem”) – entendia que a expressão correta
278 279
seria “Xristoto/koj” (“Mãe de Cristo”), ou mesmo, “Qeodo/xoj” (“que recebe a
Deus”), por considerar distintas as qualidades da divindade e da humanidade. Des-
te modo, aceitando a sua posição, podemos perceber logo de início o problema da
encarnação do Verbo: o menino que nasceu de Maria era Deus-Homem?.
280
Nestório tentando refutar o Eutiquianismo, ensinava (?) que Jesus Cristo era
constituído de duas pessoas e duas naturezas. Sustentava que cada uma das duas
naturezas de Jesus tinha a sua própria subsistência e personalidade; a união entre
elas não era ontológica, mas apenas moral, simpática e afetiva.

Pessoa Pessoa
NESTORIANISMO Humana Divina
DUAS PESSOAS
E DUAS NATUREZAS

Os seus ensinamentos foram rejeitados no Concílio de Éfeso (431) e de Calcedô-


nia (451). Ele foi mandado para um mosteiro em Antioquia, depois exilado (435/436)
na distante cidade de Petra na Arábia e finalmente foi para o oásis de Upper no Egi-
281
to, onde passaria o resto de seus dias.

O Nestorianismo permaneceu na Pérsia, onde seus seguidores estabeleceram


um eficiente trabalho missionário que permitiu a sua proliferação na Arábia, Índia,
Turquestão e China, espalhando-se por diversas regiões da Ásia. Ainda hoje sobre-
vive o Nestorianismo (“Caldeus Uniatos”) na Mesopotâmia, Pérsia e Síria, havendo
um grupo alinhado com a Igreja de Roma e outro independente (“Igreja Nestoriana

277
Cf. Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberingo, org. História
dos Concílios Ecumênicos, São Paulo: Paulus, 1995, p. 74. (Doravante, citado como HCE).
278
Ver: G. C. Berkouwer. A Pessoa de Cristo, São Paulo: ASTE, 1964, p. 218-219.
279
Proveniente de “Doxh/”, “recipiente”, “vasilha”, “depósito”. [A palavra é usada no NT. com o senti-
do de “banquete” (* Lc 5.29; 14.13)].
280
Em 1895 descobriu-se na Síria um escrito de Nestório, O Livro de Heraclides, (publicado em 1910)
no qual ele ensina algo que vai justamente de encontro à heresia que supunham que ele sustentava.
Referindo-se a Cristo, Nestório afirma que "o mesmo que é um é duplo"; ele também se dizia satis-
feito com a Cristologia de Calcedônia. Na atualidade os estudiosos estão divididos quanto à interpre-
tação de seu pensamento e, consequentemente, se foi justo ou não condená-lo. (Vd. H. Griffith, Nes-
tório, Nestorianismo: In: EHTIC., Vol. III, p. 19; J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e
Desenvolvimento,p. 235-240; B. Hägllund, História da Teologia, p. 79-82; G.C. Berkouwer, A Pessoa
de Cristo, São Paulo: ASTE, 1964, p. 54; Johannes Quasten, Patrology, 7ª ed. Westminster,
Maryland, Christian Classics. INC., 1994, Vol. III, p. 516; Charles Hodge, Teologia Sistemática, p.
781-782).
281
Cf. Justo L. Gonzalez, A Era das Trevas, p. 96; W. Möller, Nestorius: In: RED., II, p. 1630b.
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282
Não-Unida”).

7) Eutiquianismo:
283
Nome derivado de Êutico (= Eutiques, Eutíquio) (c.378-454), arquimadrita
de um mosteiro em Constantinopla, discípulo de Cirilo de Alexandria. A sua doutrina
consiste numa reação ao Nestorianismo. Ele sustentou que a encarnação é o resul-
tado da fusão do divino com o humano em Jesus, sendo a natureza humana absor-
284
vida pela divina ou, que desta fusão surgisse uma nova substância “híbrida”; um
285
“terceiro tipo de natureza.” Assim, sua posição envolvia uma pessoa e uma
natureza. Ele foi o fundador do "Monofisismo": Cristo tem uma única natureza; a
divina revestida de carne humana. Observem que dentro desta perspectiva, Jesus
não salvaria ninguém, já que Ele não seria verdadeiro homem nem verdadeiro
Deus...

Pessoa
Divina

EUTIQUIANISMO UMA PESSOA E


UMA NATUREZA

Pessoa
Humana

O Eutiquianismo foi condenado no Sínodo Permanente de Constantinopla


286
(22/11/448). Todavia, em outro Concílio, convocado pelo imperador Teodósio II

282
Vejam-se mais detalhes em Nestorianos: In: EBTF., IV, p. 489; Kenneth S. Latourette, Historia del
Cristianismo, I, p. 218-219; Justo L. Gonzalez, A Era das Trevas, p. 116ss.
283
Arquimadrita, significava, na Igreja oriental, o chefe de um ou mais mosteiros. O título também se
aplicava aos padres celibatários de destaque.
284
Cf. Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, p. 303.
285
Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 459.
286
Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: HCE., p. 87. Quanto às articulações polí-
ticas de Dióscoro, patriarca de Antioquia, neste Concílio, Vd. Ibidem., p. 88ss.; Justo L. Gonzalez, A
Era das Trevas, p. 98.
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287
(408-450), realizado em Éfeso (08/449), Êutico foi reabilitado. Isto ocorreu a reve-
288
lia do bispo de Roma Leão I, “o Grande”, que havia elaborado uma “Carta Dog-
289
mática” ou “Tomo” (13/06/449) combatendo a doutrina da natureza única de Cris-
to. Dióscoro, sucessor de Cirilo († 444) como patriarca de Antioquia, foi quem presi-
290
diu este Concílio – com plenos poderes imperiais –, impedindo inclusive que os
três legados do bispo de Roma lessem a sua “Carta Dogmática” perante o Concí-
291
lio.

No entanto, dois anos depois, foi convocado o Concílio de Calcedônia (23/05/451)


pelo imperador Marciano, que casou-se com Pulquéria [irmã do imperador Teodósio
II, falecido prematuramente numa queda de cavalo (28/07/450)]. Calcedônia anulou
a decisão de Éfeso e o invalidou como Concílio verdadeiramente ecumênico, conde-
nando o Eutiquianismo, exilando Êutico e Dióscoro. Contudo, o Eutiquianismo
continuou vigorando como ensinamento genuíno na Igreja Egípcia.

4.2. Os Credos da Igreja: A Busca de uma Compreensão Bíblica:

Introdução: A necessidade de definição:

“A ciência da definição, da divisão e


da classificação, ainda que seja em-
pregada muitas vezes para coisas falsas,
não é por si só falsa; nem foi instituída
pelos homens, mas descoberta pela
própria razão das coisas” ― Santo Agos-
292
tinho.

287
Vd. Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: HCE., p. 89-90.
288
Latourette diz que Leão I “foi um dos homens mais capazes que já ocuparam o chamado
trono de Pedro.” (Kenneth S. Latourette, Historia del Cristianismo, I, p. 220).
289
Este “Tomo”, que Berkhof chama de “um compêndio da cristologia ocidental”, contribuiria decisi-
vamente para a formulação de Calcedônia (Vd. Louis Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 97-
98). Do mesmo modo, declara Perrone: “O Tomus ad Flavianum representa uma contribuição
decisiva para a solução da questão cristológica, tal como tomará forma na definição de
Calcedônia.” (Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: HCE., p. 88). Boa parte
deste “Tomo”, encontra-se In: H. Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, p. 83-86.
290
Vd. Justo L. Gonzalez, A Era das Trevas, p. 98.
291
Este Concílio seria conhecido na História como o “Sínodo dos Ladrões”, alcunha dada por Leão,
bispo de Roma, em carta dirigida a Pulquéria, irmã do imperador Teodósio II, em 20/07/451. Isto por-
que a sua decisão não coincidia com a ortodoxia da Igreja e também, porque o seu documento não
foi lido. (Vd. mais detalhes, In: J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvi-
mento, p. 249-252; Éfeso, Concílios de: In: EBTF., II, p. 289a; Justo L. Gonzalez, A Era das Trevas, p.
98-99).
292
Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991, II.36 p. 143.
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293
Definir, segundo o sentido etimológico é delimitar. A definição procura
294
determinar a compreensão da ideia, circunscrevendo a sua abrangência, indican-
do todos os seus elementos constitutivos. Como todo conceito possui um conteúdo,
a definição nada mais é do que a determinação da natureza deste conteúdo.

Aristóteles (384-322 a.C.), compreendia a definição como consistindo “no


gênero e nas diferenças; e se, por outro lado, não é um desses termos,
295
evidentemente, será um acidente.”

Do ponto de vista lógico, a ideia é igual a sua definição. A definição lógica


consiste de fato em delimitar exatamente a compreensão de um objeto, ou, em
outros termos, em dizer o que uma coisa é. Daí o princípio: “A definição é a
296
noção [idéia] desenvolvida e (...) a noção é a definição condensada”.

A definição se propõe a nos fazer ver com maior clareza o assunto do qual
tratamos. A “indefinição” acarreta uma série de omissões e equívocos, justamente
por não termos claro diante de nós o objeto do qual estamos tratando ou, em que
sentido nos aproximamos de cada ideia.

Condillac (1715-1780) assim expressou esta questão: "A necessidade de de-


finir é apenas a necessidade de ver as coisas sobre as quais se quer racioci-
297
nar e, se fosse possível ver sem definir, as definições se tornariam inúteis".

Como toda a Lógica, a definição respalda-se no “Princípio de Contradição” –


298
“Nada pode simultaneamente ser e não ser” –, portanto, uma definição não
pode ser contraditória com a própria essência do definido; antes, ela deve convir a
todo o definido e somente a ele. Assim sendo, será possível substituir a definição
pelo definido sem possibilidade de equívoco, caso contrário não haveria interesse na
definição, tantas as confusões que ela provocaria.

A observação de Espinosa (1632-1677) é-nos orientadora: "A verdadeira defini-


ção de cada coisa não envolve nem exprime senão a natureza da coisa de-
299
finida"
293
As palavras gregas correspondentes são: o(/roj = “termo”, “limite” e o(rismo/j = “delimitação”, “a-
cordo”, “tratado”.
294
É a “expansão do conceito essencial das coisas”. “Definição é uma oração que manifes-
ta a natureza de uma coisa ou de um termo” (Ernesto Dann Obregón, Lógica, 4ª ed. Santa Fé:
Libreria y Editorial Castellví, [1951], p. 89 e 90.
295
Aristóteles, Tópicos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. IV), 1973, I.8. p. 17.
296
L. Liard, Lógica, 9ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979, p. 25.
297
E.B. de Condillac, Lógica ou Os Primeiros Desenvolvimentos da Arte de Pensar, São Paulo: Abril
Cultural, (Os Pensadores, Vol. 27), 1973, p. 121.
298
Aristóteles, Metafísica, III,2,996 b 30; IV,2,1005 b 24. Cf. Princípio de Contradição: In: N. Abbag-
nano, Dicionário de Filosofia, 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 188b.
299
Baruch Espinosa, Ética, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XVII), 1973, I.8. Escólio 2,
p. 91.
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O princípio que deve nos nortear é que a definição deve primar pela essência,
não pelos “acidentes” que normalmente são efêmeros e não indicam as qualidades
300
intrínsecas do ser. Aristóteles (384-322 a.C.) está correto ao dizer: "Uma defini-
301
ção é uma frase que significa a essência de uma coisa."

O historiador Huizinga (1872-1945) apresenta-nos um bom princípio:

“Uma boa definição deve ser concisa, ou seja, expor o conceito que se
trata de definir com toda precisão e de um modo completo, no menor
número de palavras. A definição descreve o significado de uma determi-
nada palavra, usada para designar um determinado fenômeno. Na defi-
nição deve ficar inscrito, incluído o fenômeno em sua totalidade. Se per-
manecem fora dela partes essenciais do fenômeno, a definição não é
302
boa. Por outro lado, uma definição não precisa entrar em detalhes”.

Os Credos e Confissões foram necessários, como veremos, para apresentar as


diretrizes teológicas da igreja conforme a sua compreensão bíblica.

4.2.1. Origem e Uso:

A palavra “Credo” é derivada do latim “credo”, que denota uma pos-


tura ativa de “eu creio”, uma confiança perene em Deus. Portanto, há na declaração
credal um ato de adoração a Deus a quem damos crédito. Assim, os credos são an-
303
tes de tudo uma confissão de gratidão à glória de Deus. No credo a Igreja declara
304
a sua fé em Deus visto que somente Ele é absolutamente digno de crédito. Curio-
samente em hebraico, confessar tem o sentido também de louvar: Davi, por exem-
305 306
plo, usa a palavra em dois dos salmos penitenciais: “Confesso (‫( )נגד‬nagad) a
minha iniquidade; suporto tristeza por causa do meu pecado” (Sl 38.18). “Abre, Se-
nhor, os meus lábios, e a minha boca manifestará (‫( )נגד‬nâgad) os teus louvores” (Sl

300
Mesmo a “definição essencial” sendo a mais adequada, devemos ter em mente que de acordo
com a abordagem que faremos de um assunto, o “essencial” pode não ser o mais importante; neste
caso, propomos a “definição operacional” que seria aquela que nos daria os “elementos essenciais”
para a nossa abordagem (operação), para o fim almejado. (Vd. Definição: In: N. Abbagnano, Dicioná-
rio de Filosofia, p. 222a).
301
Aristóteles, Tópicos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. IV), 1973, I.5. p. 13.
302
Johan Huizinga, El Concepto de la Historia y Otros Ensayos, 4ª reimpresión, México: Fondo de
Cultura Econômica, 1994, p. 87.
303
Vejam-se as sugestivas observações de Thomas H, McDill no prefácio à obra: Paul T. Fuhrmann,
Na Introduction to the Great Creeds of the Church, Philadelphia: Westminster Press, 1960, p. 9-10.
304
Ver: Paul T. Fuhrmann, Na Introduction to the Great Creeds of the Church, Philadelphia:
Westminster Press, 1960, p. 11-12.
305
Os Salmos classificados como Penitenciais são: 6, 32, 38, 51, 102, 130 e 143. Neles encontramos
forte alento para o pecador perdoado.
306
O sentido básico é de “declarar”, “publicar”, “anunciar”, “manifestar, “expor”.
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51.15). A confissão sincera é um ato de benevolência de Deus que inclina o nosso


coração ao arrependimento e à confissão. Quando, por graça, assim fazemos, ren-
demos graças a Deus pela sua justiça e por sua graça. “A ideia de ‘confissão’ era
ambivalente, pois, ao reconhecer-se justo o julgamento, confessava-se o ex-
307
travio e era dado a esta declaração um tom de louvor a Deus”.

Ainda mais ilustrativas são duas outras palavras hebraicas também traduzidas por
308
confissão; (‫( )ידע‬yâda‛), “conhecer”, “pensar”, “reconhecer”, “discernir” e
309
(‫()ידה‬yâdâh), “confessar”, “dar graças”, “agradecer”. Ambas comportam vários
significados literais e figurados. (‫()ידה‬yâdâh) tem também o sentido de “declarar”,
“confirmar”, “homologar”. Isso independe do teor da declaração; podendo, portanto,
310
ser uma confissão de fé ou de pecado. Uma das ideias preponderantes, é o de
311
“confessar ou declarar a glória de Deus”. É por isso que (‫( )ידה‬yâdâh) é traduzida
muitas vezes por: a) Render graças: (Sl 7.17;57.9; 107.1,8,15,21,31;
118.19,21,28,29; 119.7); b) Dar graças (Sl 30.4,12; 35.18; 52.9; 106.47; Is 12.1,4); c)
Louvar [Sl 6.5; 9.1;28.7; 30.9; 42.5,11; 43.4-5; 44.8; 45.17; 49.18; 54.6; 67.3 (2
vezes); Is 25.1]; d) Glorificar (Sl 18.49); e) Celebrar (Sl 33.2); f) Confessar (os
pecados) (Lv 16.21; 1Rs 8.33,35; Ed 10.1; Ne 1.6; 9.2-3; Sl 32.5; Dn 9.4,20); g)
Confessar (o nome de Deus) (2Cr 6.24,26).

A Bíblia apresenta diversas confissões que consistem em expressões de fé, as


quais eram ensinadas. Parece haver acordo entre os estudiosos no que diz respeito
às evidências neotestamentárias referentes à um corpo doutrinário específico, con-
312
siderado como “depósito sagrado da parte de Deus”. Como vimos, no Antigo

307
Gerhard Von Rad, Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: ASTE, (1973)(1986), Vol. 1, p. 343.
308
A LXX traduz (Sl 32.5 – “confessei”) por gnwri/zw, “fazer conhecido”, “revelar”, “declarar”, “des-
vendar”.
309
A LXX traduz (Sl 32.5 – “confessarei”) por e)comologe/w “prometer”, “confessar”, “glorificar”.
310
Cf. J.B. Torrance, Confissão: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo:
Junta Editorial Cristã, 1966, Vol. 1, p. 314.
311
“Louvor é uma confissão ou afirmação de quem Deus é do que faz” (Ralph H. Alexander,
Yãdâ: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São
Paulo: Vida Nova, 1998, p. 595). “A ação de graças acompanha o louvor, pois quando al-
guém declara os atributos e obras de Deus, não pode deixar de ser agradecido por isso. O
louvor conduz regularmente à ação de graças” (Ralph H. Alexander, Yãdâ: In: R. Laird Harris,
et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, p. 595). “No Antigo Testa-
mento, a confissão frequentemente se reveste do caráter de louvor, quando o crente, a-
gradecido, declara o que Deus fez pela redenção de Israel ou pela sua própria alma. (...) A
confissão pode levar o crente a reconsagrar-se a Deus, a entoar-Lhe hinos de louvor, a ofe-
recer-Lhe sacrifício de regozijo, e infunde no crente o desejo de falar aos outros sobre a mi-
sericórdia de Deus e de Identificar-se com os outros crentes na adoração ao Senhor” (J.B.
Torrance, Confissão: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial
Cristã, 1966, Vol. 1, p. 314). Vejam-se: Otto Michel, O(mologe/w: In: G. Friedrich & G. Kittel, eds.
Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982, Vol. V, p.
204; D. Furst, Confessar: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do
Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. I, p. 465-466.
312
Ralph P. Martin, Credo: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Edi-
torial Cristã, 1966, Vol. I, p. 342; R.P. Martin, Adoração na Igreja Primitiva, São Paulo: Vida Nova,
1982, p. 64ss
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 68/233

313 314
Testamento, encontramos o “Shemá” (“ouve”), o “credo judeu”, que consistia
315
na leitura de Dt 6.4-9; 11.13-21; Nm 15.37-41 e, possivelmente, Dt 26.5-9. O
316
“Shemá” era repetido três vezes ao dia, sendo usado liturgicamente na Sinago-
317
ga. No Novo Testamento deparamo-nos com abundante material que indica a
existência de um corpo doutrinário fixo da igreja cristã. Temos referências às “tradi-
ções” [para/dosij](2Ts 2.15), à “Doutrina dos apóstolos” (At 2.42), à “palavra da
vida” (Fp 2.16); à “forma (tu/pon = modelo) de doutrina” (Rm 6.17), à “Palavra” (Gl
318
6.6), à “Pregação” (Rm 16.25; 1Co 1.21), à “fé evangélica” (Fp 1.27), à “fé” (Ef
4.5; Cl 2.6-7; 1Tm 6.20-21), às “sãs palavras” (2Tm 1.13), ao “bom depósito” (2Tm
1.14/1Tm 6.20), à “sã doutrina” (2Tm 4.3/1Tm 4.6; Tt 1.9), à “verdade” (Cl 1.5; 2Ts
2.13; 2Tm 2.18,25; 4.4), à “tradição (dos apóstolos)” (1Co 11.2;Cl 2.6; 1Ts 4.1; 2Ts
2.15), ao “Evangelho” (1Co 15.1; Gl 1.9), à “Confissão” (Hb 3.1; 4.14; 10.23), à “fé
que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Jd 3/1Tm 1.19; Tt 1.13), e à “fé san-
tíssima” (Jd 20).

Outros textos parecem indicar as primeiras confissões da Igreja, tais como: “Je-
sus, o Cristo” (At 5.42); “Jesus Cristo é Senhor” (Fp 2.11/1Co 12.3); “Senhor e Deus”
(Jo 20.28); “Deus e Salvador Jesus Cristo” (At 2.13); “Senhor e Cristo” (At 2.36);
319
“Jesus Cristo Filho de Deus” (At 8.37; Mt 16.16; 1Jo 4.15), etc.

Os Credos em princípio não pretendem ser uma exposição exaustiva da fé, antes
consistem numa declaração de fé dos pontos considerados essenciais à existência
da Igreja Cristã.

Primitivamente, os Credos e Confissões eram empregados principalmente da


seguinte forma:

1) Doutrinariamente:

Serviam como ensino proposicional a respeito da fé cristã, ao mesmo tempo


320
em que combatiam ênfases ou ensinamentos essencialmente errados, resguar-

313
É a primeira palavra que aparece em Dt 6.4, derivada do verbo ((m$) (Shãma’), “ouvir”, envolven-
do normalmente a ideia de ouvir com afeição, entender, obedecer (Veja-se: Hermann J. Austel, Shã-
ma’: In: R. Laird Harris, et. al., eds., Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São
Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1586).
314
Conforme expressão de Edersheim (1825-1889). Vd. A. Edersheim, La Vida y los Tiempos de Je-
sus el Mesias, Barcelona: CLIE, 1988, Vol. I, p. 491.
315
Cf. G.W. Bromiley, Credo, Credos: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da I-
greja Cristã, I, p. 365.
316
Quanto ao emprego desta oração feita pelos judeus individualmente, Vd. Shemá: In: Alan Unter-
man, Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. 1992, p. 242.
317
Cf. Hermisten M.P. Costa, Teologia do Culto, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1987, p. 19.
318
Vd. G.W. Bromiley, Credo, Credos: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da I-
greja Cristã, I, p. 365; J.N.D. Kelly, Primitivos Credos Cristianos, p. 24.
319
Vd. R.P. Martin, Adoração na Igreja Primitiva, p. 63-76.
320
Vd. At. 2.42; Rm 6.17; Ef 4.5; Fp 2.16; Cl 2.7; 2Ts 2.15; 1Tm 4.6,16; 6.20; 2Tm 1.13,14; 4.3; Tt
1.9, entre outros.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 69/233

321
dando, assim, a Igreja, de ensinamentos heréticos. No segundo século eles eram
322
conhecidos como “regra de fé”. Os candidatos à Profissão de Fé estudavam a
“doutrina” a fim de que pudessem, na ocasião própria, declarar publicamente a sua
fé de forma responsiva.

Os Credos também tiveram uma outra utilidade: Devido o medo da perseguição,


323
ao invés deles serem escritos, eram memorizados e quando necessário, recitados
como testemunho de sua fé.

2) Liturgicamente:
324
a) Batismo: Os fiéis declaravam (no caso de serem adultos), responsiva-

321
Ver: Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, p. 45-49.
322
Os “Pais da Igreja” e alguns Concílios usaram com certa frequência a expressão “cânon” que, via
de regra visava distinguir os ensinamentos da Igreja cristã das heresias que surgiam. Abaixo, pode-
remos constatar, dentro da documentação disponível, alguns dos diversos e valiosos testemunhos
dos Pais e Concílios da Igreja.
Clemente (c. 30-100), bispo de Roma (91-100), por volta do ano 95 AD., deparou-se com uma
grave dissensão na Igreja de Corinto, causada por alguns jovens que não estavam obedecendo aos
presbíteros da Igreja. Clemente então, no mesmo ano, escreveu uma carta à Igreja, na qual ele os
exorta à humildade e obediência, segundo o exemplo de Cristo, para que possam assim, chegar à u-
nidade e paz. Estimulando a Igreja arrependida a uma caminhada segura em Cristo, diz: “Prossiga-
mos para a gloriosa e venerável regra (kanw/n) de nossa tradição” (Clemente de Roma, Epísto-
la aos Coríntios, I.7.2). Clemente de Alexandria (c. 150-c. 215), chamou a harmonia entre o Antigo e o
Novo Testamento de “um cânon para a Igreja” [Clemente de Alexandria, The Stromata, VI.15. In:
ANF., II, p. 506-511. (Vd. também, VI.11; VII.16)]. Ele também escreveu um livro contra os judaizan-
tes, intitulado, “Cânon eclesiástico ou contra os judaizantes” (Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiásti-
ca, VI.13.3. Irineu (c.120-202), chama o “credo batismal” – que deveria ser guardado sem nenhuma
modificação no coração –, de “O cânon da verdade” (Irineu, Against Heresies, I.9.4. In: ANF., I, p.
330. Vd. também, Against Heresies, I.10.1; III.4.1). Policarpo (c. 70-155), refere-se ao “Evangelho”
como “cânon da fé”. (Eusebio, HE., V.24.6).
Entre os anos de 264 e 268, três Sínodos reuniram-se sucessivamente em Antioquia, tendo como
objetivo julgar a conduta e os ensinamentos de Paulo de Samosata, bispo de Antioquia desde 260. O
último dos três sínodos (268) o condenou e o excomungou por “heterodoxia” (e(terodoci/an). A sua
doutrina e conduta foram classificadas como sendo uma “apostasia do cânon” (“a)posta\j tou= ka-
no/noj”) (Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiastica, VII.30.6); ou seja, o abandono da fé ortodoxa.
Como pudemos observar, o emprego da expressão “cânon” pelos Pais e Concílios da Igreja, tinha
o sentido de um padrão aprendido e recebido como verdadeiro. Uma outra expressão usada e, pelo
que deduzimos, tinha o mesmo significado, era: “regra de fé” [Cf. o uso feito por Tertuliano, Da Pres-
crição dos Hereges, 13. In: Cirilo Folch Gomes, (compilador). Antologia dos Santos Padres, 2ª ed.
(revista e ampliada), São Paulo: Paulinas, 1980. § 254, p. 162 e ANF., III, p. 249; Novaciano, Sobre a
Trindade: In: Cirilo Folch Gomes, (compilador). Antologia dos Santos Padres, § 309, p. 201] e, “regra
dos antigos”. (Conforme uso de Basílio, Profissão de Fé: In: Cirilo Folch Gomes, (compilador). Antolo-
gia dos Santos Padres, § 365, p. 239). Em outras palavras, o “cânon eclesiástico” (kanw\n th=j
e)kklhsi/aj), quando não se referia aos Livros da Bíblia, significava a doutrina ortodoxa da Igreja,
aquilo que a Igreja sustentava como verdade. (Para mais detalhes sobre este assunto, Vd. Hermisten
M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada, São Paulo: Edito-
ra Cultura Cristã, 1998).
323
Ambrósio de Milão (c. 334-397), escreveu: “Os santos apóstolos juntos fizeram um resumo da
fé, a fim de que pudéssemos compreender brevemente o elenco de toda a nossa fé. A bre-
vidade é necessária, para que ela seja sempre mantida na memória e na lembrança” (Am-
brósio, Explicação do Símbolo, São Paulo: Paulus, 1996, 2. p. 23).
324
Vd. Hipólito de Roma, Tradição Apostólica, Petrópolis, RJ.: Vozes, 1981, § 44. p. 51.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 70/233

325 326
mente a sua fé na ocasião do batismo. (Vd. At 8.37; Rm 10.9).

b) Santa Ceia: Na Eucaristia a Igreja declarava a sua fé através de hinos,


orações e exclamações devocionais. (Vd. 1Co 12.3; 16.22; Fp 2.5-11).

c) Culto: Ao que parece, a partir do quarto século, os credos passaram a ser


usados nos cultos regulares, sendo recitados após a leitura das Escrituras.

Com o passar do tempo, os credos foram se tornando mais detalhados; isto por
dois motivos: 1) Devido à compreensão mais aprimorada das doutrinas bíblicas; 2)
Devido à necessidade de através do ensino cristão, combater as heresias que
327
surgiam, marcadamente, relacionadas com a Pessoa de Cristo. Neste contexto,
são elaborados quatro Credos que são considerados os mais importantes dos cinco
primeiros séculos, os quais veremos no momento oportuno.

4.2.2. Principais Credos da Igreja:

A. CREDO APOSTÓLICO:

O Credo dos Apóstolos tem a sua origem no Credo Romano Anti-


328
go, elaborado no segundo século, tendo algumas declarações doutrinárias acres-
329
centadas no decorrer dos primeiros séculos, chegando à sua forma como temos
hoje, por volta do sétimo século.

Paul Tillich (1886-1965), comentando a primeira declaração de fé deste Credo –


“Creio em Deus Pai Todo-Poderoso Criador do Céu e da Terra” –, diz que
“deveríamos pronunciar essas palavras com grande reverência, porque, por
meio dessa confissão, o cristianismo se separou da interpretação dualista da
realidade presente no paganismo (...). O primeiro artigo do Credo é a gran-
de muralha que o cristianismo ergueu contra o paganismo. Sem essa sepa-

325
Vd. Hipólito de Roma, Tradição Apostólica, § 46, p. 51-52; Didaquê, São Paulo: Imprensa Meto-
dista, 1957, VII.1. p. 70.
326
Ver também: Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teo-
logia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 54.
327
“A cristologia, como a maioria das doutrinas do Novo Testamento, foi retirada da bigorna
da necessidade quando a igreja entrou em conflito com os ensinos errôneos.” (Broadus D.
Hale, Introdução ao Estudo do Novo Testamento, Rio de Janeiro: JUERP., 1983, p. 299). Quanto às
principais heresias dos primeiros séculos concernentes à Pessoa de Cristo, Vd. Hermisten M.P. Cos-
ta, Eu Creio, São Paulo: Parakletos, 2002).
328
Sobre a formação deste Credo, Vd. J.N.D. Kelly, Primitivos Credos Cristianos, p. 125ss.
329
Cf. P. Schaff, COC., Vol. I, p. 19-22; II. 45-55; Reinhold Seeberg, Manual de História de las Doctri-
nas, El Paso, Texas/Buenos Aires/Santiago: Casa Bautista de Publicaciones/Junta Bautista de Publi-
caciones/Editorial “El Lucero”, [1963], Vol. I, p. 93-94; O.G. Oliver, Jr., Credo dos Apóstolos: In: Walter
A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p. 362-363; K.S. Latourette, His-
tória del Cristianismo, Vol. I, p. 180-182; Henry Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, p. 54; Char-
les A. Briggs, Theological Symbolics, New York: Charles Scribners’s Sons, 1914, p. 40; Wayne A.
Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 486ss.; Mark A. Noll, Momentos Deci-
sivos na História do Cristianismo, p. 47.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 71/233

ração a cristologia teria inevitavelmente se deteriorado num tipo de gnosti-


cismo no qual o Cristo não seria mais do que um dos poderes cósmicos entre
330
outros, embora, talvez, o maior deles”.

O Credo Apostólico era usado na preparação dos catecúmenos, professado du-


rante o batismo, servindo também para a devoção privada dos cristãos. Posterior-
331
mente passou a ser recitado com a Oração do Senhor no culto público. No nono
século ele foi sancionado pelo Imperador Carlos Magno para uso na Igreja e, o papa
332
o incorporou à liturgia Romana.
333
A Reforma valorizou este Credo, sendo ele usado liturgicamente em muitas de
nossas igrejas ainda na atualidade.

A analogia feita por P. Schaff (1819-1893), parece resumir bem o significado


deste Credo: “Como a Oração do Senhor é a Oração das orações, o
Decálogo a Lei das leis, também o Credo dos Apóstolos é o Credo dos
334
credos”.

335
B. CREDO NICENO-CONSTANTINOPOLITANO:

O Credo Niceno primitivo, foi elaborado no Primeiro Concílio E-


336 337
cumênico de Nicéia (20/05/325), na Bitínia no ano 325. Este Concílio teve uma

330
Paul Tillich, História do Pensamento Cristão, São Paulo: ASTE, 1988, p. 34.
331
Cf. Philip Schaff, COC., Vol. I, p. 17; O.G. Oliver, Jr., Credo dos Apóstolos: In: Walter A. Elwell,
ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, I, p. 363.
332
Cf. Jack B. Rogers, Creeds and Confessions: Donald K. McKim, ed. Encyclopedia of the
Reformed Faith, Louisville, Kentucky, Westminster/John Knox Press, 1992, p. 91.
333
O Credo Apostólico pode ser dividido em quatro partes, a saber:
1) Deus Pai
2) Deus Filho: a História da Redenção
3) Deus Espírito Santo
4) A Igreja e os benefícios que Deus nos têm concedido
Vd. J. Calvino, Catecismo de la Iglesia de Ginebra: In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Buenos
Aires: La Aurora, 1962, Pergunta 186, p. 32.
334
P. Schaff, COC., Vol. I, p. 14.
335
Quem primeiro o denominou assim, foi J.B. Carpzov (1639-1699), professor da de Teologia da U-
niversidade de Leipzig (Vd. J.N. D. Kelly, Primitivos Credos Cristianos, Salamanca: Secretariado Trini-
tario, 1980, p. 353).
336
Esses Concílios foram assim chamados, porque reuniam as Igrejas do Oriente e do Ocidente. A
palavra Oi)koume/nh, é derivada de Oi)=koj (casa, nação). O conceito desta palavra era primariamente
geográfico – terra habitada [Vd. Heródoto, História, Rio de Janeiro, Editora Tecnoprint, (s.d.), IV.110,
p. 373] –, tornando-se depois, também cultural e político, (Vd. Michel, h( oi(koume/nh: In: TDNT., V, p.
157), indicando o mundo cultural versado e refinado comandado pelos gregos em contraposição ao
“barbarismo”. [Cf. John H. Gerstner, Ecumenismo: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, p.
183b].
Oi)koume/nh tem o sentido de “mundo civilizado”, “todos os habitantes do globo”. (Cf. A Lexicon
Abridged from Liddell and Scott’s Greek-English Lexicon, Oxford, Clarendon Press, 1935, p. 477b).
A palavra veio a significar: a) A partir de Demóstenes (384-322 a.C.), mundo habitado pelos gre-
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338 339
representação significativa (especialmente das igrejas do Oriente): 300 ou 318
bispos; cerca de 1/6 de todos os bispos (estima-se a existência de 1800 bispos em
340
toda a Igreja). O Concílio foi convocado e subvencionado pelo Imperador Cons-
341
tantino – quem presidiu a sessão inaugural, fazendo um discurso sobre o perigo
da dissensão dentro da Igreja, tendo também, ampla participação no decorrer do
342
Concílio – visando tratar da questão Ariana que prejudicava a união da Igreja e,
consequentemente, do Império. O Concílio, depois de amplo debate, declarou a i-
gualdade essencial entre o Pai e o Filho. Os ensinamentos de Ário foram condena-

gos em contraste com as terras habitadas pelos bárbaros; b) A partir de Aristóteles (384-322 a.C.),
mundo habitado, quer por gregos, quer por “bárbaros”, contrastando com as terras não habitadas; c)
Adquiriu no Império Romano um sentido político, indicando as terras sob o domínio Romano. Não é à
toa que Nero tinha o título de Swth/r e Eu)erge/thj da Oi)koume/nh, ou seja, “Salvador e benfeitor
da terra”. [Cf. O Flender, Terra: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teolo-
gia do Novo Testamento, Vol. IV, p. 601-602].
Na Septuaginta, a palavra ocorre 46 vezes, especialmente no Livro de Salmos, tendo de modo ge-
ral o sentido de terra habitada, sendo muitas vezes traduzida por mundo. Como exemplo, citamos:
2Sm 22.16; Sl 18.15; 19.4; 24.1; 33.8; 50.12; Jr 10.12 (mundo); Is 10.14,23; 13.5,9 (terra); Ex 16.35
(ARA; BJ: “terra habitada”); Pv 8.31 (ARA: “mundo habitável”; BJ; “superfície da terra”).
O NT. emprega a palavra 15 vezes (* Mt 24.14; Lc 2.1; 4.5; 21.26; At 11.18; 17.6,31; 19.27; 24.5;
Rm 10.18; Hb 1.6; 2.5; Ap 3.10; 12.9; 16.14) – especialmente nos escritos de Lucas (8 vezes) –,
primordialmente no sentido geográfico, ainda que Lc 2.1, entre outros textos, indique o sentido políti-
co, revelando o poder romano. Assim podemos classificar a sua ocorrência do seguinte modo: a) A
terra habitada, o mundo: Mt 24.14; Lc 4.5; 21.26; At 11.28; Rm 10.18; Hb 1.6; Ap 16.14; b) Mundo, no
sentido de humanidade: At 17.31; 19.27; Ap 3.10; 12.9; c) O Império Romano: At 24.5; d) Seus habi-
tantes: Lc 2.1; At 17.6; e) O mundo por vir: Hb 2.5.
337
Socrates Scholasticus, Ecclesiastical History, I.13. In: NPNF2, II, p. 19. Ou dia 19, conforme es-
tudos modernos têm indicado (Cf. J.N.D. Kelly, Primitivos Credos Cristianos, p. 254). A História mais
detalhada deste Concílio é encontrada, entre outras, nas seguintes obras: J.N.D. Kelly, Primitivos
Credos Cristianos, p. 247ss.; K.S. Latourette, História del Cristianismo, I, p. 201ss; Earle E. Cairns, O
Cristianismo Através dos Séculos, São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 107ss.; C.A. Blaising, Concílio de
Nicéia: In: Walter A. Elwell, ed Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, I, p. 309-311; W.
Walker, História da Igreja Cristã, São Paulo: ASTE., 1967, Vol. I, p. 157-162 e, principalmente, J.L.
Gonzalez, A Era dos Gigantes, São Paulo: Vida Nova, 1980, p. 87-98 e Giuseppe Alberigo, org. His-
tória dos Concílios Ecumênicos, São Paulo: Paulus, 1995, p. 23ss.
338
K.S. Latourette, História del Cristianismo, Vol. I, p. 202; E.E. Cairns, O Cristianismo Através dos
Séculos, p. 107; J.L. Gonzalez, A Era dos Gigantes, p. 92.
339
Philip Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 25; A.H. Leitch, Creed, Creeds: In: Merril C.
Tenney, ed. ger. The Zondervan Pictoral Encyclopaedia of the Bible, 5ª ed. Michigan: Zondervan,
1982, Vol. I, p. 1027. Devido a participação destes 318 bispos, este Credo é também chamado de
“Credo dos 318”. (Ibidem., p. 1027). Convencionou-se, desde a segunda metade do 4º século, a de-
claração de que houve 318 representantes, “inspirando-se nos 318 servidores de Abraão de Gn
14.14”; todavia as fontes antigas e interpretações modernas são das mais variadas, oscilando entre
194 e 318 representantes. (Vd. Giuseppe Alberigo, org. História dos Concílios Ecumênicos, p. 25).
340
Cf. Philip Schaff, History of the Christian Church, Peabody, Massachusetts: Hendrickson
Publishers, 1996, Vol. III, § 120, p. 623-624.
341
Cada bispo poderia levar consigo dois presbíteros e três criados. (Cf. Philip Schaff, History of the
Christian Church, Vol. III, § 120, p. 623).
342
Cf. Eusebius, The Life of Constantine The Great, III.12. In: NPNF2, Vol. I., p. 523 (Vd. Philip
Schaff, History of the Christian Church, Vol. III, § 120, p. 622ss; K.S. Latourette, História del
Cristianismo, I, p. 201; C.A. Blaising, Concílio de Nicéia: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Históri-
co-Teológica da Igreja Cristã, I, p. 310; J.L. Gonzalez, A Era dos Mártires, p. 93; Giuseppe Alberigo,
org. História dos Concílios Ecumênicos, p. 26s.; J.N.D. Kelly, Primitivos Credos Cristianos, p. 254).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 73/233

343
dos e ele, foi deportado para o Ilírico.

Posteriormente, o Concílio de Constantinopla (381), convocado pelo Imperador


Teodósio I, – sendo presidido inicialmente por Melécio de Antioquia (310-381) –,
constituído tradicionalmente por 150 bispos, ampliou o Credo Niceno, daí o nome de
344
Credo Niceno-Constantinopolitano. Esse Credo “ampliado”, foi lido e aprovado no
345
Concílio de Calcedônia (451).

Segue abaixo a transcrição do Credo Niceno (Primitivo) do Credo Niceno-


Constantinopolitano, como é usado hoje, do Credo de Calcedônia e do Credo
Atanasiano:

CREDO NICENO (325) CREDO NICENO-


CONSTANTINOPOLITANO (381)
Cremos em um só DEUS, o Pai Todo- Cremos em um só Deus, o Pai Todo-
Poderoso, criador de todas as coisas visí- 347
Poderoso, Criador [do céu e da terra],
veis e invisíveis. de todas as coisas, visíveis e invisíveis;
E em um só Senhor JESUS CRISTO, o Filho E em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho
de Deus; gerado como o Unigênito do Pai, Unigênito de Deus, o gerado do Pai [antes
isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, 348
de todos os séculos,] [Deus de

343
V.L. Walter, Arianismo: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã,
Vol. I, p. 105.
344
Para uma crítica desta posição, Vd. J.N. D. Kelly, Primitivos Credos Cristianos, p. 356ss. Temos
uma defesa da visão tradicional, preservada desde Calcedônia (451), In: Giuseppe Alberigo, org. His-
tória dos Concílios Ecumênicos, p. 68-70.
345
Cf. Archibald A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 104; J.N. D. Kelly, Primitivos Credos Cristia-
nos, p. 354. Este Credo seria posteriormente reafirmado na oitava sessão do 6° Concílio Ecumênio,
realizado em Constantinopla (16/9/680) (Cf. J.N. D. Kelly, Primitivos Credos Cristianos, p. 356). [Os
primeiros 4 Concílios Ecumênicos – reuniram as igrejas do Ocidente e do Oriente –, foram: Nicéia
(325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcedônia (451)].
346
O adjetivo “Católico” é uma transliteração do grego “kaJoliko/j”, que pode ser traduzido por “uni-
versal” e “geral”. O termo grego é constituído de duas palavras: “kata/” (= cujo significado original é
“abaixo”; todavia, em composição assume os mais diversos sentidos; aqui, talvez signifique, “de acor-
do com” (Vd. H.E. Dana e Julius R. Mantey, Manual de Gramatica Del Nuevo Testamento Griego,
Buenos Aires, Casa Bautista de Publicaciones © 1975, p. 104-105, 110-111)) e “o(/loj” (= Todo, in-
teiro, completo). Assim, grego “kaJoliko/j” pode significar: “conforme ou de acordo com o todo”. A
palavra só ocorre uma vez no Novo Testamento e, mesmo assim, na forma adverbial, acompanhada
de um advérbio de negação, (“kaJo/lou mh\) sendo traduzida (ARA, BJ, ARC, ACR) por “absoluta-
mente não” (At 4.18).
Até onde vai o nosso conhecimento, o primeiro homem a usar a palavra “católica” para se referir à
Igreja, foi Inácio de Antioquia (c. 30-110 AD), na sua epístola à Igreja de Esmirna, escrita por volta do
ano 110, quando diz: “Onde quer que se apresente o bispo, ali também esteja a comunidade,
assim como a presença de Cristo Jesus também nos assegura a presença da Igreja católi-
ca” (Inácio de Antioquia, Cartas de Santo Inácio de Antioquia, 3ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1984,
8.2. p. 81).
347
Cláusula acrescentada.
348
Cláusula acrescentada.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 74/233

Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus ver- 349


Deus], Luz de Luz, Verdadeiro Deus de
dadeiro, gerado, não feito, consubstancial Verdadeiro Deus, gerado e não feito, da
com o Pai, mediante o qual todas as coi- mesma substância que o Pai, por meio do
sas foram feitas, tanto as que estão nos qual todas as coisas vieram a ser; o qual,
céus como as que estão na terra; o qual, por nós, os homens, e pela nossa salvação

349
A expressão “Deus de Deus” foi omitida em Constantinopla, porém foi recolocada no III Concílio
local de Toledo (589) na Espanha. (Vd. A.A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 103; H. Bettenson,
Documentos da Igreja Cristã, p. 56; P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 26-27).
350
Cláusula acrescentada.
351
Cláusula acrescentada.
352
Cláusula acrescentada.
353
Cláusula acrescentada.
354
Cláusula acrescentada.
355
Cláusula acrescentada.
356
Cláusula acrescentada.
357
Cláusula acrescentada.
358
A expressão “e do Filho” em latim “Filioque”, foi acrescentada no III Concílio local de Toledo (589)
e, ao que parece, posteriormente no Quarto Sínodo de Braga (675) e em Hatfield (680).[Cf. O. Sem-
melroth, Espírito Santo: In: H. Fries, ed. Dicionário de Teologia, Vol. II, p. 100; J.N.D. Kelly, Primiti-
vos Credos Cristianos, Salamanca, Secretariado Trinitario, 1980, p. 426, 429-430]. Todavia, esta
cláusula já havia sido usada no Primeiro (400) e Segundo (477) Concílio de Toledo. (Vd. H. Betten-
son, Documentos da Igreja Cristã, p. 56; P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 26; Earle E.
Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos, p. 109; G.W. Bromiley, Filioque: In: E.F. Harrison, ed.
Diccionario de Teologia, p. 242. ; L. Boff, A Trindade e a Sociedade, 3ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes,
1987, p. 93; J.N.D. Kelly, Primitivos Credos Cristianos, p. 427). Este acréscimo – que reflete especi-
almente o pensamento de Agostinho (354-430), quem enfatizou com propriedade a unidade da Trin-
dade (A Trindade, São Paulo: Paulus, 1994, II.5.7; IV.20.29.; XV.17-20; 26-27), ainda que não exclu-
sivamente (Vd. J.N.D. Kelly, Primitivos Credos Cristianos, p. 425) –, marca de forma definitiva a teo-
logia anti-Ariana sustentada pela Igreja Ocidental, enfatizando a unidade essencial do Pai e do Filho
bem como a procedência do Espírito como sendo de ambos. Este acréscimo que se tornou ampla-
mente aceito na Igreja Ocidental [em 1014, o papa Benedito VIII determinou que o Credo Niceno-
Constantinopolitano, com a expressão “filioque” deveria ser proferido durante a missa. (Cf. Robert W.
Jenson, O Espírito Santo: In: Carl E. Braaten & Robert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã, Vol. II, p.
159)] e ratificado em 1017, foi o principal motivo doutrinário para a primeira grande divisão da Cris-
tandade, criando a Igreja do Oriente e a do Ocidente em 1054 (As Igrejas do Oriente, diziam: “Do Pai
através do Filho”). No entanto, somente no Segundo Concílio de Lyon (1274), é que esta cláusula foi
considerada oficialmente como doutrina da Igreja Ocidental. (Cf. H. Brandt, O Risco do Espírito: Um
Estudo Pneumatológico, p. 16). Este assunto seria ampla e vagarosamente discutido no Concílio de
Ferrara-Florença-Roma (1438-1445) entre os representantes da Igreja Oriental e Ocidental, quando
então, os Orientais aceitariam como razoável o acréscimo latino, contudo não ficando imposto à sua
Igreja a aceitação do mesmo. Nesta reunião foi formulada uma declaração “conciliatória”, datada de
06/7/1439. (Vd. o texto In: L. Boff, A Trindade e a Sociedade, p. 95-96). (Vd. Umberto Proch, A União
no Segundo Concílio de Lião e no Concílio de Ferrara-Florença-Roma: In: Giuseppe Alberigo, org.
História dos Concílios Ecumênicos, p. 300ss, 305; L. Boff, A Trindade e a Sociedade, p. 95-96). (Vd.
uma boa discussão a respeito do uso da expressão, In: J.N.D. Kelly, Primitivos Credos Cristianos, p.
424ss.; Reinhold Seeberg, Manual de Historia de las Doctrinas, El Paso, Texas, Casa Bautista de
Publicaciones, 1963, Vol. II, p. 45; Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, São Paulo: Editora Os Puri-
tanos, 2000, p. 95-103). No entanto, não devemos nos esquecer que a Confissão Ortodoxa de Fé da
Igreja Católica e Apostólica do Oriente (1643), reafirma a procedência do Espírito como sendo ape-
nas do Pai. (Vd. o texto In: P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. II, p. 282).
359
McGrath nos chama a atenção para o fato de que mesmo o Credo afirmando que o Espírito jun-
tamente com o Pai e o Filho devem ser adorados, ele não declara explicitamente que o Espírito é
Deus (Ver: Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia
cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 364-365).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 75/233

por nós homens e por nossa salvação, 350


desceu [dos céus] e se encarnou [do
desceu, se encarnou e se fez homem e so- 351
Espírito Santo e da Virgem Maria] e se
freu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao
céu, e novamente virá para julgar os vivos fez homem [e foi por nós crucificado sob
352
e os mortos; Pôncio Pilatos] e padeceu [e foi sepul-
353
tado] e ressuscitou ao terceiro dia, [se-
354
gundo às Escrituras,] e subiu aos céus
355
[e está sentado à direita do Pai] e virá
356
de novo, [com glória], a julgar vivos e
mortos; [e do seu reino não haverá
357
fim].
E no ESPÍRITO SANTO, o Senhor e Vivifi-
E no ESPÍRITO SANTO.
cador, o que procede do Pai e do Fi-
358
lho, o que juntamente com o Pai e o Fi-
359
lho é adorado e glorificado, o que fa-
lou através dos profetas; e numa só Igreja
santa, católica e apostólica. Confessamos
um só batismo para remissão dos
pecados, esperamos a ressurreição dos
mortos e a vida do século vindouro.
Amém.
E a quantos dizem: “Houve tempo em que
não era”; e “Antes de nascer, Ele não e-
ra”, ou que “Foi feito do que não existe”,
bem como a quantos alegam ser o Filho
de Deus “de outra substância ou essên-
cia”, ou “feito”, ou “mutável”, ou “alter-
346
nável”, a todos estes a Igreja católica e
apostólica anatematiza.

C. O CREDO DE CALCEDÔNIA:

O Quarto Concílio Ecumênico, foi realizado em Calcedônia, perto


de Constantinopla (atual Istambul). Reunido de 8 a 31 de outubro de 451, contou
360
com a presença de mais de 500 bispos e vários delegados papais, que como de
costume o representavam. Nesta reunião, a já aludida “Carta Dogmática” ou “To-

360
J.L. Gonzalez diz 520 (A Era das Trevas, p. 99). Latourette fala de 600 bispos, fora os legados
(Kenneth S. Latourette, Historia del Cristianismo, I, p. 220. Vd. também: A.A. Hodge, Esboços de
Theologia, p. 104). Hodge fala de 630 (Archibald A. Hodge, Confissão de Fé Westminster Comenta-
da por A.A. Hodge, São Paulo: Editora os Puritanos, 1999, p. 192). Outros autores mencionam de
forma menos específica, a presença de mais de 500 bispos (Ex. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da
Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 256; J.H. Hall, Concílio de Calcedônia: In: In: Walter A. El-
well, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p. 306). Sobre as versões diferentes
a respeito do número de participantes, Vd. Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In:
Giuseppe Alberigo, org. História dos Concílios Ecumênicos, São Paulo: Paulus, 1995, p. 93). Destes
bispos, 40 “teriam sido incapazes de assinarem o seu nome” (Jean Vial, Técnicas Pedagógicas:
Os Rudimentos até ao Renascimento: In: Gaston Mialaret & Jean Vial, diretores, História Mundial da
Educação, Porto, Rés, (s.d.), Vol. I, p. 313).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 76/233

361 362
mo” redigida pelo bispo Leão I, o “Grande” de Roma (13/06/449), foi decisiva
363
na elaboração de seu Credo.

Como vimos, Calcedônia ratificou o Credo de Nicéia (325) e o de Constantinopla


(381). O seu objetivo era estabelecer uma unidade teológica na Igreja.

A sua declaração teológica foi rascunhada em 22 de outubro, por uma comissão


364
presidida por Anatólio de Constantinopla († 458), encontrando a sua redação fi-
365
nal, possivelmente na 5ª Sessão, na quinta-feira, de 25 de outubro. Calcedônia
rejeitou o Nestorianismo (duas pessoas e duas naturezas) e o Eutiquianismo (uma
pessoa e uma natureza), afirmando que Jesus Cristo é uma Pessoa, sendo verda-
deiro Deus e verdadeiro homem (uma pessoa e duas naturezas). “....Calcedônia
366
pronunciou-se não só contra a separação como contra a fusão” das duas
naturezas de Cristo. Todavia, a noção de mistério esteve presente nesta confissão,
367
por isso, ela não tentou explicar o que as Escrituras não esclareciam.

Como já escrevemos em outro lugar, “Um decreto ou uma declaração teoló-


gica, por mais relevantes que sejam, não põe fim imediatamente a um sis-
tema; a ortodoxia, por sua vez, não é criada através de pronunciamentos o-
ficiais, embora saibamos que todos eles sejam necessários e relevantes para
nortear a Igreja. Com isso, estamos apenas querendo indicar que, do mesmo
modo que Nicéia não colocou um ponto final na questão Trinitária, Calce-
dônia, não determinou o fim dos problemas Cristológicos. Como já indica-
mos, as heresias permaneceram em diversas regiões, especialmente na Igre-
368
ja Oriental. Contudo, Calcedônia se constitui num marco decisório na vida

361
Este “Tomo”, é chamado por Berkhof de “um compêndio da cristologia ocidental”. (Vd. L.
Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 97-98). Do mesmo modo, declara Perrone: “O Tomus ad
Flavianum representa uma contribuição decisiva para a solução da questão cristológica, tal
como tomará forma na definição de Calcedônia.” (Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calce-
dônia (451): In: In: Giuseppe Alberigo, org. História dos Concílios Ecumênicos, p. 88). Boa parte des-
te “Tomo”, encontra-se In: H. Bettenson, Documentos da Igreja Cristã, p. 83-86.
362
Latourette diz que Leão I “foi um dos homens mais capazes que já ocuparam o chamado
trono de Pedro.” (K.S. Latourette, História del Cristianismo, I, p. 220).
363
Quando o “Tomo” de Leão foi lido, na segunda sessão (10/10/451), ainda que não unânime, hou-
ve repetidas aclamações, tais como: “A fé dos pais, a fé dos apóstolos”; “Pedro falou por meio de Le-
ão” e “Leão e Cirilo deram o mesmo ensinamento”. (Cf. Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedô-
nia (451): In: Giuseppe Alberigo, org. História dos Concílios Ecumênicos, p. 96).
364
Cf. Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a Calcedônia (451): In: Giuseppe Alberigo, org. História dos
Concílios Ecumênicos, p. 98.
365
Compare as informações de J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvi-
mento, p. 257; P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p 29; Lorenzo Perrone, De Nicéia (325) a
Calcedônia (451): In: HCE., p. 97-98..
366
G. C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, p. 55.
367
Vd. G.C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, p. 67ss; Carl E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In:
Carl E. Braaten & Robert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã, Vol. I, p. 492.
368
Além das indicações já feitas, Vd. Louis Berkhof, História das Doutrinas Cristãs, p. 99-102; J.N.D.
Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, p. 258; B. Lohse, A Fé Cristã Atra-
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 77/233

da Igreja, estabelecendo uma compreensão Cristológica que, se não é a fi-


nal, é a que pôde ser alcançada, pelo Espírito, dentro da revelação. No en-
tanto, a Palavra é a fonte de toda a genuína teologia, portanto, se Calce-
dônia estabeleceu balizas, e graças a Deus por isso, devemos permanecer
sempre atentos à Palavra de Deus, à luz da qual nós e a nossa teologia se-
369
remos julgados”.

Hendriksen está essencialmente correto ao declarar: “A relação entre as duas


naturezas sempre permanecerá sendo um mistério muito além de nossa
compreensão, mas provavelmente nunca seja encontrada uma formulação
370
melhor do que a que é encontrada no Símbolo de Calcedônia”.

O Credo de Calcedônia (451)371

Portanto, seguindo os santos Pais, todos nós, em perfeito acordo, ensinamos que
se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito na
Deidade e também perfeito na humanidade; verdadeiro Deus e verdadeiro ho-
372 373
mem, de alma racional (Yuxh\ logikh/) e corpo, consubstancial
374
(o(moou/sioj) ao Pai na Divindade e consubstancial (o(moou/sioj) a nós na huma-
375
nidade, ‘em todas as coisas semelhante a nós, exceto no pecado’; gerado antes
de todas as eras pelo Pai quanto à Sua Divindade, e nos últimos dias, por nós e para
376
nossa salvação, nasceu da Virgem Maria, a Mãe de Deus (Qeoto/koj), quanto à

vés dos Séculos, p. 101-106; P. Tillich, História do Pensamento Cristão, São Paulo: ASTE., 1988, p.
91ss.; J.L. Gonzalez, A Era das Trevas, p. 102ss.; Carl E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In:
Carl E. Braaten & Robert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã, Vol. I, p. 492ss.
369
Hermisten M.P. Costa, Introdução à Cristologia, São Paulo: 2001, p. 18-19.
370
William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, (Jo 1.14), p. 118.
371
O Credo de Calcedônia é precedido pela confirmação dos Credos de Nicéia (325) e Constantino-
pla (381). A elaboração deste novo Credo pode ser explicada pelo surgimento de novas heresias re-
ferentes a Cristo (Apolinarismo, Nestorianismo e Eutiquianismo), que precisavam ser combatidas.
(Vd. P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. II, p. 63-64).
372
Este conceito já estava presente em Irineu (c. 130- c. 200). (Irineu, Irineu de Lião, IV.6.7. p. 382-
383.
373
Esta expressão visa combater o Apolinarismo.
374
o(moou/sioj, na versão latina: “consubstantialem”. Da mesma substância, consubstancial, coes-
sencial. Atanásio, combatendo o Arianismo [que empregava a expressão (o(moio/usioj)(“de natureza
semelhante”) para Jesus Cristo] já havia usado este termo em Nicéia (325), referindo-se à Trindade,
indicando a unidade da essência do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Aqui em Calcedônia, a expres-
são é utilizada para indicar a verdadeira divindade e verdadeira humanidade de Cristo. Calvino (1509-
1564) diz que “essa palavrinha fazia a diferença entre os cristãos de pura fé e os sacrílegos a-
rianos” (As Institutas, I.13.4).
375
Hb 4.15.
376
Qeoto/koj, na versão latina: “Dei genetrice”. [Qeo/j & To/koj = Ti/ktw = “Dar à luz um menino /
gerar, chegar a ser mãe / produzir”: “Mãe de Deus”. A expressão foi usada para indicar que Aquele
que foi concebido de Maria, fora obra do Espírito Santo, portanto era Deus. A expressão também res-
salta, que Maria não foi mãe simplesmente da natureza humana de Jesus, mas sim, da pessoa Te-
antrópica de Jesus Cristo (Cf. P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. II, p. 64).
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Sua humanidade; um e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, sendo conhecido


377 378
em duas naturezas, inconfundíveis (a)sugxu/twj), imutáveis (a)tre/ptwj), indi-
379 380
visíveis (a)diaire/twj), inseparáveis (a)xwri/stwj); a distinção das duas natu-
rezas de modo algum é anulada pela união, mas as propriedades de cada natureza
381
são preservadas, e concorrem em uma Pessoa (Pro/swpon) e uma Subsistência
382
(u(/po/stasij), não separada ou dividida em duas pessoas (Pro/swpon), porém
um e o mesmo Filho, Unigênito, Verbo de Deus, o Senhor Jesus Cristo, conforme os
profetas do passado e o próprio Senhor Jesus Cristo nos ensinaram a respeito Dele
e o Credo dos santos Pais nos transmitiu.”

D. CREDO ATANASIANO:

Também conhecido como “Symbolum Quicunque”, porque esta é


a sua primeira palavra em latim: “Quicunque vult salvus esse” (“Todo aquele que
quiser ser salvo...”). Este Credo que reflete a teologia dos quatro primeiros sínodos
ecumênicos; tem sentenças breves que são “artisticamente arranjadas e ritmi-

377
a)sugxu/twj, na versão latina: “inconfuse”. “Sem confusão”, “sem mistura”. Expressão usada con-
tra o Eutiquianismo, que sustentava que a encarnação fora o resultado da fusão do divino com o hu-
mano.
378
a)tre/ptwj, na versão latina: “immutabiliter”. “Sem conversão”, “sem transformação”. Da mesma
forma, esta expressão também foi usada contra o Eutiquianismo.
379
a)diaire/twj, na versão latina: “indivise”. “Sem divisão”. Expressão que visava combater o Nesto-
rianismo, que separava as duas naturezas de Cristo, afirmando ser a sua união apenas moral, simpá-
tica e afetiva.
380
a)xwri/stwj, na versão latina: “inseparabiliter”. “Sem separação “, “indissolúvel”. Termo também
usado contra o Nestorianismo. G.C. Berkouwer, interpretando Korff, comenta que estes quatro advér-
bios de Calcedônia: inconfundíveis (a)sugxu/twj), imutáveis (a)tre/ptwj), indivisíveis (a)diaire/twj),
inseparáveis (a)xwri/stwj), “Enriquecem a fé e a humildade da Igreja. Esses advérbios asse-
melham-se a um alinhamento de bóias cercando o estreito canal navegável e alertando os
navios contra os perigos ameaçadores dos dois lados. Não são uma definição nem servem
para definir, pois tal não foi a intenção da Igreja.” (G.C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, p. 68.
Vd. também: B. Lohse, A Fé Cristã Através dos Séculos, 2ª ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1981, p.
100-101). Num mar tormentoso como aquele vivido em Calcedônia, as “âncoras” foram necessárias –
e ainda são –, para preservar segura a Igreja em meio a todas as ondulações heréticas na história,
sem se distanciar da plenitude da revelação bíblica.
381
Pro/swpon, na versão latina: “Personam”. “Pessoa”; significando primariamente, “face” ou “ex-
pressão”. A ideia básica da palavra é a de um papel representado por alguém numa brincadeira. Lo-
gicamente, este termo é menos técnico e preciso que u(/po/stasij. Os Pais gregos, se apropriaram
desta palavra, utilizando-a para referirem-se à Trindade, conferindo-lhe o sentido teológico de “indiví-
duo”, de uma pessoa que tem uma natureza racional e uma substância individual, própria. (Quanto
ao significado e às discussões teológicas a respeito da interpretação dada a esta palavra, Vd. Perso-
na: In: Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, p. 223-227 e Alister E.
McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo:
Shedd Publicações, 2005, p. 319 e 375).
382
u/(po/stasij, na versão latina: “Subsistentiam”. “Substância”, “natureza”, “essência”. A palavra
denota uma subsistência pessoal e real. (* 2Co 9.4; 11.17; Hb 1.3; 3.14; 11.1)(Sobre a interpretação
desta palavra nos textos aludidos, Vd. Wick Broomall, Su(b)stancia: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario
de Teologia, p. 504-505). Tertuliano foi quem introduziu o termo latino Persona como tradução de
u/(po/stasij (Cf. Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teo-
logia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 375).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 79/233

383
camente expressadas. Ele é um credo musical ou salmo dogmático.” Se-
gundo a tradição, ele teria sido escrito por Atanásio (295-373), Bispo de Alexandria
(328-373), conhecido como “Pai da Ortodoxia”. Segundo a mesma tradição, Atanásio
o elaborara durante o seu exílio em Roma, tendo-o oferecido ao papa Julius como
384
sua confissão de fé. Todavia, esta tradição tem sido rejeitada por muitos estudio-
sos desde o século XVII, quando o holandês Gerhard Jan Vossius (1577-1649), a-
presentou em 1642, as suas conclusões que contrariavam a referida crença, o mes-
385
mo fazendo James Usher (1581-1656), em 1647.

A teoria mais aceita hoje, é a de que este Credo foi escrito por volta do ano 500,
386
no sul da Gália ou África do Norte ou, até mesmo em dois lugares e momentos
387
diferentes. Apesar de várias hipóteses quanto à sua autoria (Ambrósio, Hilário de
388
Arles, Virgílio de Tapsus, Vicente de Lérins, Paulinus de Aquileja, entre outros),
ninguém conseguiu provar de modo incontestável a identidade do seu autor.

A ênfase deste Credo é a defesa da Cristologia e da doutrina da Trindade


conforme foram definidas nos Concílios de Nicéia (325), Constantinopla (381) e
389
Calcedônia (451), refletindo visivelmente a teologia de Agostinho (354-430).

CREDO ATANASIANO (c. 500)

1. Todo aquele que quiser ser salvo: é-lhe necessário, primeiro que tudo,
que receba a fé católica:
2. A qual é preciso que cada um guarde perfeita e inviolada ou terá com
certeza de perecer para sempre.
3. A fé católica é esta: que adoremos um só Deus em trindade, e trindade
em unidade.
4. Nem confundindo as Pessoas, nem separando a Substância.

383
P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 37.
384
Cf. P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 35.
385
Cf. P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 35; J.F. Johnson, Credo Atanasiano: In:
Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, I, p. 364. Kelly diz que Vossius
e Usher “inauguraram a era moderna de estudos sobre os credos.” (J.N. D. Kelly, Primitivos
Credos Cristianos, p. 19).
386
Cf. P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 36; Johnson, Credo Atanasiano: In: Walter A.
Elwell, ed Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, I, p. 364; James Hastings, ed., Dictionary
of the Bible, New York, Charles Scribner’s Sons, (edition revised F.C. Grant and H.H. Rowley), 1963,
p. 188; A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa, Barata & Sanches, 1895, p. 103; L. Boff, A
Trindade e a Sociedade, 3ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1987, p. 91-92.
387
Conforme sugere Charles A. Briggs, Theological Symbolics, p. 100.
388
Vd. P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 36; Johnson, Credo Atanasiano: In: Walter A.
Elwell, ed Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, I, p. 364; Charles A. Briggs, Theological
Symbolics, p. 100ss.
389
Cf. J.N.D. Kelly, Doutrinas Centrais da Fé Cristã: Origem e Desenvolvimento, São Paulo: Vida No-
va, 1983, p. 206; P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 36ss; A.A. Hodge, Esboços de The-
ologia, p. 103. (Veja-se, conforme já indicamos supra: Agostinho, A Trindade, São Paulo: Paulus,
1994).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 80/233

5. Porque é uma Pessoa do Pai: outra do Filho: e outra do Espírito Santo.


6. Mas a Divindade do Pai, do Filho, e do Espírito Santo, é uma: a Glória i-
gual e majestade co-eterna.
7. Aquilo que o Pai é, o mesmo é o Filho, e o Espírito Santo.
8. O Pai incriado: o Filho incriado: o Espírito Santo incriado.
9. O Pai imenso: o Filho imenso: o Espírito Santo imenso.
10. O Pai eterno: o Filho eterno: o Espírito Santo eterno.
11. E contudo, não são três eternos: mas um só eterno.
12. Como também não são três incriados: nem três imensos, porém um só
incriado; e um só imenso.
13. Do mesmo modo o Pai é onipotente: o Filho é onipotente: e o Espírito
Santo onipotente.
14. E, contudo, não há três onipotentes: mas um só onipotente.
15. Assim o Pai é Deus: o Filho é Deus: e o Espírito Santo é Deus.
16. E contudo não há três deuses: mas um só Deus.
17. Assim o Pai é Senhor: o Filho é Senhor: o Espírito Santo é Senhor.
18. E contudo não há três Senhores: mas um só Senhor.
19. Porque assim como somos obrigados pela verdade Cristã: a confessar
que cada Pessoa é por si mesma Deus e Senhor.
20. Assim também somos proibidos pela religião católica: de dizer: há três
Deuses, ou três Senhores.
21. O Pai não foi feito de ninguém: nem criado, nem gerado.
22. O Filho é só do Pai: não é feito, nem criado: mas gerado.
23. O Espírito Santo é do Pai e do Filho: não feito, nem criado, nem gerado:
porém procedendo.
24. Por isso há um só Pai, não três Pais: um Filho, não três Filhos: um Espírito
Santo, não três Espíritos Santos.
25. E nesta Trindade nenhum é o primeiro ou o último: maior ou menor.
26. Mas todas as três Pessoas são co-eternas, e co-iguais.
27. Semelhante em todas as coisas, como supracitado: a Unidade na
Trindade, e a Trindade na Unidade, deve ser adorada.
28. Portanto quem quiser ser salvo, deve pensar assim a respeito da
Trindade.
29. Mas é necessário para a salvação eterna: que também se creia
fielmente na encarnação de nosso Senhor Jesus Cristo.
30. É, portanto, verdadeira fé que creiamos e confessemos que nosso
Senhor Jesus Cristo e Filho de Deus, é Deus e homem;
31. Deus, da Substância do Pai; gerado antes dos mundos: e Homem, da
Substância de sua Mãe, nascido no mundo.
32. Perfeito Deus: e perfeito Homem, subsistindo em uma alma racional e
carne humana.
33. Igual ao Pai segundo a sua Divindade: e menor do que o Pai segundo
a sua humanidade.
34. O qual, ainda que seja Deus e homem, não é dois, e sim um só Cristo.
35. Um só; não por conversão da sua Divindade em carne; mas sim pela
assunção em Deus da sua Humanidade.
36. Um só; não por confusão de Substância: mas sim, pela unidade da Pes-
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 81/233

soa.
37. Porque assim como uma alma racional e carne são um só homem: as-
sim também Deus e Homem são um só Cristo;
38. O qual sofreu por nossa salvação: desceu ao inferno, ao terceiro dia
ressurgiu dos mortos.
39. Ascendeu aos céus: assentando-se à direita de Deus Pai Onipotente.
40. De onde virá para julgar os vivos e os mortos.
41. À cuja vinda todos os homens ressurgirão com seus corpos;
42. E darão conta de suas próprias obras.
43. E os que tiverem feito o bem entrarão na vida eterna; e os que tiverem
feito o mal, para o fogo eterno.
44. Esta é a fé católica: a menos que um homem creia fiel e firmemente,
390
não poderá ser salvo.

5. FUNDAMENTOS BÍBLICOS DA DOUTRINA:

“Onde o monoteísmo foi


francamente reconhecido, isto é, no
mundo cristão, ele ocupou de imediato
uma posição central e se impôs como o
princípio dos princípios. É a própria
natureza dessa noção que exige isso,
porque, se há um Deus, e só um, é
sempre a Ele que se deve referir tudo o
mais” – Étienne Gilson, O Espírito da
Filosofia Medieval, São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 54.

Ainda que não encontremos no Antigo Testamento uma revelação completa da


existência da Triunidade de Deus, não podemos menosprezar as evidências ali
encontradas desta verdade que, especialmente olhadas à luz do Novo Testamento,
adquirem maior eloquência e firmeza. Dentro da revelação progressiva de Deus
encontramos gradativamente o desvelar da ação trinitária de Deus.

5.1. No Antigo Testamento:391

1. HÁ TEXTOS NOS QUAIS DEUS FALA DE SI MESMO NO PLURAL:

Gênesis 1.26: “Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa seme-

390
Este Credo encontra-se publicado em latim e inglês in P. Schaff, The Creeds of Christendom, II, p.
66-70. Em obra recente de Teologia Sistemática, o Credo Atanasiano, veio publicado em português
(Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 997-998).
391
Neste tópico, segui de maneira bem próxima o esquema apresentado por Strong (Augustus H. S-
trong, Teologia Sistemática, São Paulo: Editora Hagnos, 2003, Vol. 1, p. 472-479).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 82/233

lhança....”.
Gênesis 3.22: “Então, disse o SENHOR Deus: Eis que o homem se tornou como um de nós....”.
Gênesis 11.7: “Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a
linguagem de outro”.
Isaías 6.8: “Depois disto, ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem
há de ir por nós?”

2. A ÊNFASE TRIPLA NO NOME OU SANTIDADE DE DEUS:

Números 6.24-26: “24 O SENHOR te abençoe e te guarde; 25 o SENHOR faça resplandecer o rosto
sobre ti e tenha misericórdia de ti; 26 o SENHOR sobre ti levante o rosto e te dê a paz”
Isaías 6.3: “E clamavam uns para os outros, dizendo: Santo, santo, santo é o SENHOR dos Exércitos;
toda a terra está cheia da sua glória”.
Isaías 33.22: “Porque o SENHOR é o nosso juiz, o SENHOR é o nosso legislador, o SENHOR é o
nosso Rei; ele nos salvará”.
Daniel 9.19: “Ó Senhor, ouve; ó Senhor, perdoa; ó Senhor, atende-nos e age; não te retardes, por
amor de ti mesmo, ó Deus meu; porque a tua cidade e o teu povo são chamados pelo teu nome”.

3. O NOME PLURAL DE DEUS:


**** Ver Sinônimos de l Antiguo Testamento, p. 34-35

Alguns textos usam a forma plural para Deus (‫'( )אלהים‬ĕlôhîym).

Gênesis 1.1: “No princípio, criou Deus (‫'( )אלהים‬elohiym) os céus e a terra”.
Gênesis 20.13: “Quando Deus (‫'( )אלהים‬elohiym) me fez andar errante da casa de meu pai, eu
disse a ela: Este favor me farás: em todo lugar em que entrarmos, dirás a meu respeito: Ele é meu
irmão”.
Gênesis 35.7: “E edificou ali um altar e ao lugar chamou El-Betel; porque ali Deus (‫)אלהים‬
('elohiym)se lhe revelou quando fugia da presença de seu irmão”.
Isaías 54.5-6: 5 Porque o teu Criador é o teu marido; o SENHOR (‫( )יהוה‬yehôvâh) dos Exércitos é o
seu nome; e o Santo de Israel é o teu Redentor; ele é chamado o Deus (‫'( )אלהים‬elohiym) de toda a
terra. 6 Porque o SENHOR (‫( )יהוה‬yehôvâh) te chamou como a mulher desamparada e de espírito
abatido; como a mulher da mocidade, que fora repudiada, diz o teu Deus (‫'( )אלהים‬elohiym)”.

4. DEUS FAZ UMA DISTINÇÃO EM SI MESMO.

Gênesis 19.24: “Então, fez o SENHOR chover enxofre e fogo, da parte do SENHOR, sobre Sodoma e
Gomorra”.
Oséias 1.7: “Porém da casa de Judá me compadecerei e os salvarei pelo
SENHOR, seu Deus....”.

5. HÁ TEXTOS QUE FALAM DE TRÊS PESSOAS NO SER DE DEUS:


A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 83/233

Isaías 48.16: “Chegai-vos a mim e ouvi isto: não falei em segredo desde o princípio; desde o tempo
em que isso vem acontecendo, tenho estado lá. Agora, o SENHOR Deus me enviou a mim e o seu Es-
pírito” – A impressão que se tem deste texto é da Segunda Pessoa da Trindade fa-
lando.

6. O ESPÍRITO DE DEUS É DISTINTO DE DEUS:

Gênesis 1.1-2: “No princípio, criou Deus os céus e a terra. 2 A terra, porém, estava sem forma e vazia;
havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas”.
Salmo 33.6: “Os céus por sua (‫( )יהוה‬yehôvâh) palavra se fizeram, e, pelo sopro (ahUr) (ruah) de sua
boca, o exército deles”.
Isaías 48.16: “Chegai-vos a mim e ouvi isto: não falei em segredo desde o princípio; desde o tempo
em que isso vem acontecendo, tenho estado lá. Agora, o SENHOR Deus me enviou a mim e o seu
Espírito”.
Isaías 63.7-10: “7 Celebrarei as benignidades do SENHOR e os seus atos gloriosos, segundo tudo o
que o SENHOR nos concedeu e segundo a grande bondade para com a casa de Israel, bondade que
usou para com eles, segundo as suas misericórdias e segundo a multidão das suas benignidades. 8
Porque ele dizia: Certamente, eles são meu povo, filhos que não mentirão; e se lhes tornou o seu
Salvador. 9 Em toda a angústia deles, foi ele angustiado, e o Anjo da sua presença os salvou; pelo seu
amor e pela sua compaixão, ele os remiu, os tomou e os conduziu todos os dias da antiguidade. 10
Mas eles foram rebeldes e contristaram o seu Espírito Santo, pelo que se lhes tornou em inimigo e ele
mesmo pelejou contra eles”.
Ageu 2.4-5: “4 Ora, pois, sê forte, Zorobabel, diz o SENHOR, e sê forte, Josué, filho de Jozadaque, o
sumo sacerdote, e tu, todo o povo da terra, sê forte, diz o SENHOR, e trabalhai, porque eu sou
convosco, diz o SENHOR dos Exércitos; 5 segundo a palavra da aliança que fiz convosco, quando
saístes do Egito, o meu Espírito habita no meio de vós; não temais”.

7. TEXTOS QUE SE REFEREM AO ANJO DO SENHOR:

Gn 16.7-13. Nos versos 7,9,10 e 11 vemos a referência ao Anjo do


Senhor (‫( )מלאך‬mal'âk) e, no verso 13, o Anjo é chamado Deus (‫( )יהוה‬yehôvâh).

No texto de Gn 18.1-19 encontramos no verso 2 referências a três homens; no


verso 3 um deles é chamado de Senhor (‫'()אדני‬ădônây) e Jeová (‫( )יהוה‬yehôvâh) no
verso 13. No verso 25 Ele é chamado de juiz de toda terra e no 27 novamente é
chamado de Senhor (‫'()אדני‬ădônây). No verso 14 o Anjo do Senhor fez uma distinção
entre Si mesmo e Deus.

Quando estes homens partem para se encontrar com Ló, um deles permaneceu,
indo apenas dois (Gn 18.22; 19.1)

Em Ex 3.1-6 vemos a identificação do Anjo do Senhor como Deus: “Vendo o SE-


NHOR (‫( )יהוה‬yehovah) que ele se voltava para ver, Deus (‫'( )אלהים‬elohiym), do meio
da sarça, o chamou e disse: Moisés! Moisés! Ele respondeu: Eis-me aqui!” (Ex 3.4).
Na sequência, o Anjo se identifica como o Deus de Abraão, Isaque e Jacó: “Disse
mais: Eu sou o Deus (‫ )אלהים‬de teu pai, o Deus (‫'( )אלהים‬elohiym) de Abraão, o Deus
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 84/233

(‫'( )אלהים‬elohiym) de Isaque e o Deus (‫'( )אלהים‬elohiym) de Jacó. Moisés escondeu o


rosto, porque temeu olhar para Deus (‫'( )אלהים‬elohiym)” (Ex 3.6).

Nestes e outros textos podemos observar que o Anjo é identificado como Deus
(Gn 22.11,16; 31.11,13); o Anjo é distinguido de Deus (Gn 16.9,13; 48.15,16) e, o
Anjo aceita adoração devida somente a Deus (Ex 3.2; 4.5; Jz 13.20-22/Ap 22.8-9).

8. TEXTOS QUE DESCREVEM A SABEDORIA E A PALAVRA DIVINA:

a) A Sabedoria é representada como distinta de Deus e coeterna com


Ele:
 Pv. 8.1/Mt 11.19; Lc 7.35; 11.49; Pv 8.22,30,31/Pv 3.19; Hb 1,2

b) A Palavra de Deus é executiva de Sua vontade:


 Sl 107.20; 119.89; 147.15-20; Is 55.10,11.

9. TEXTOS QUE DESCREVEM O MESSIAS:


a) É um com Jeová:
Isaías 9.6: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus
ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus (‫'( )אל‬êl) Forte, Pai da Eternidade,
Príncipe da Paz”.

b) Ele é, em certo sentido, distinto de Jeová:

Salmo 45.6-7: “O teu trono, ó Deus, é para todo o sempre; cetro de equidade é o cetro do teu reino. 7
Amas a justiça e odeias a iniquidade; por isso, Deus, o teu Deus, te ungiu com o óleo de alegria, como
a nenhum dos teus companheiros”.
Malaquias 3.1: “Eis que eu envio o meu mensageiro, que preparará o caminho diante de mim; de
repente, virá ao seu templo o Senhor, a quem vós buscais, o Anjo da Aliança, a quem vós desejais; eis
que ele vem, diz o SENHOR dos Exércitos”.

c) Ele é Filho de Jeová:

Salmo 2.7: “Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei”.
Provérbios 30.4: “Quem subiu ao céu e desceu? Quem encerrou os ventos nos seus punhos? Quem
amarrou as águas na sua roupa? Quem estabeleceu todas as extremidades da terra? Qual é o seu
nome, e qual é o nome de seu filho, se é que o sabes?”.

5.2. No Novo Testamento:

Nas páginas do Novo Testamento a doutrina da Triunidade é apresentada


de forma mais clara e completa, complementando aquilo ao que o Antigo Testamen-
to apenas alude. O Novo Testamento esclarece e completa o que o Antigo já revela-
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 85/233

ra. A figura do eminente teólogo de Princeton, B.B. Warfield (1851-1921), é-nos útil
aqui:

“Podemos comparar o Velho Testamento com um salão ricamente mo-


bilado, mas muito mal iluminado; a introdução de luz nada lhe traz que
nele não estivesse antes; mas apresenta mais, põe em relevo com maior
nitidez muito do que mal se via anteriormente, ou mesmo não tivesse sido
apercebido. O mistério da Trindade não é revelado no Velho Testamento;
mas o mistério da Trindade está subentendido na revelação do Velho Tes-
392
tamento, e aqui e acolá é quase possível vê-lo”.

De forma mais específica, podemos dizer que a salvação que era atribuída a
Jeová no Antigo Testamento (Jó 19.25. Sl 9.14; 78.35; 106.21; Is 41.14; 43.3,11,14;
47.4), no Novo Testamento é atribuída ao Filho de Deus (Mt 1.21; Lc 1.76-79; 2.17;
Jo 4.42; At 5.3; Gl 3.13; 4.5; Fp 3.30).

No Antigo Testamento é Jeová quem mora no meio do Seu Povo e nos corações
dos que o temem (Sl 74.2; 135.21; Is 8.18; 57.15; Ez 43.7-9; Jl 3.17,21; Zc 2.10,11);
no Novo Testamento é o Espírito quem habita na Igreja, tornando-a Seu templo (At
2.4; Rm 8.9,11; 1Co 3.16; 6.19; Gl 4.6).

Além disso, há diversos textos que falam mais claramente das Pessoas da
Trindade: Mt 28.19; 1Co 12.4-6; 2Co 13.13; Ef 4.4-6; 1Pe 1.1-2; Jd 20-22; Ap 1.4-
5.

6. O PAI, O FILHO E O ESPÍRITO E A SUA RELAÇÃO TRINITÁRIA:

6.1. A Relação Trinitária:

1) Deus envia Seu Filho ao mundo: Jo 3.16; 4.4; Hb 1.6; 1Jo 4.9.

2) O Pai e o Filho enviam o Espírito Santo: Jo 14.26; 15.26; 16.7; Gl 4.6.

3) O Pai dirige-se ao Filho: Mc 1.11; Lc 3.22.

4) O Filho comunica-se com o Pai: Mt 11.25-26; 26.39; Jo 11.41; 12.27-28.

5) O Espírito Santo ora a Deus nos corações dos crentes: Rm 8.26.

6.2. As Três Pessoas Consideradas Separadamente:

A. O Pai:

392
B.B. Warfield, A Doutrina Bíblica da Trindade, Leiria: Edições Vida Nova, (s.d.), p. 130-131.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 86/233

O nome Pai como é aplicado a Deus, é usado de diversas formas nas


Escrituras.
393
Aspectos da Paternidade de Deus:

1) Pai Glorioso: Jo 17.1-5; Ef 1.17;


2) Pai Santo: Jo 17.11;
3) Pai Justo: Jo 17.25;
4) Pai Perfeito: Mt 5.48;
5) Pai Misericordioso: Lc 6.36; 2Co 1.3;
6) Pai Gracioso: Mt 7.11; Rm 1.7; Tg 1.17;
7) Pai fiel no Cumprimento das Suas Promessas: Dt 7.6-9; Lc 24.49/At 1.4,8/At
2.1ss; 14ss.;
8) Pai que escolhe os seus filhos adotivos: Jo 6.37,44,65; Ef 1.3,4; 2Ts 2.13;
9) Pai incansável: Jo 5.17;
10) Pai onisciente e Todo-Poderoso: Mc 13.32; 14.36;
11) Pai que envia o Seu Filho para salvar o Seu povo: 1Jo 4.14/Jo 17.6-26;
12) Pai auto-existente: Jo 5.26;
13) Pai livre em Seus atos: Jo 5.21; Rm 9.14-29; 11.33-36;
14) Pai que Se revela através do Filho: Mt 11.27.

B. O Filho:

A Segunda Pessoa da Trindade é chamada de Filho e Filho de Deus.


Analisemos o uso das expressões.

1) A Filiação de Jesus Cristo:

A) A ETERNIDADE DO FILHO E DE FILHO:

Jesus Cristo é o Filho eterno de Deus (Is 9.6; Mq 5.2; Jo 1.1,2,15,30.


etc.). O que dificulta a nossa compreensão é o fato de entendermos sempre a
filiação e a paternidade, como tendo um princípio; ou seja, só sou pai a partir do
momento que tenho um filho e, obviamente, um filho é filho porque tem um pai: A
paternidade está para a filiação como esta para aquela. Ambos (pai e filho), só são o
que são, enquanto são um para o outro. Todavia, há certas expressões empregadas
pela própria Bíblia, que se constituem numa forma figurada de falar: Tiago e João
são chamados de “filhos do trovão” (Mc 3.17); José é chamado de filho da exortação
ou consolação (At 4.36); Jesus fala de “filho da paz” (Lc 10.6); Paulo fala dos “filhos
da luz” (Ef 5.8), etc. Estes exemplos, não significam que um trovão gerou Tiago e
João, mas sim, que eles procediam como tal (Vd. Lc 9.54), o mesmo se aplica a
Barnabé, que era de fato um consolador (Vd. At 9.26,27) e exortador (At 11.23). De
semelhante modo, os filhos da luz e da paz, são aqueles que procuram viver em paz
(Rm 12.18) e refletir a luz de Cristo em seu comportamento diário (Jo 8.12/Mt 5.14-
16).
393
Vejam-se mais detalhes in: Hermisten M.P. Costa, O Pai Nosso, a Oração do Senhor, São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 2001, passim
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 87/233

Quando falamos da eternidade do Filho, queremos dizer também, da Sua eterni-


dade como Filho; a relação filial entre o Deus Filho e o Deus Pai sempre foi e sem-
pre será assim; não foi forjada, criada ou assumida. Não houve na eternidade ne-
nhum “momento” em que o Filho não fosse Filho, o Pai não fosse Pai e o Espírito
não fosse Espírito. A Trindade coexiste eternamente como tal.

Calvino (1509-1564), seguindo a interpretação de Agostinho (354-430), escreve:

“Cristo com respeito a si mesmo é chamado Deus, e em relação ao Pai


é chamado Filho. Assim, o Pai com respeito a si mesmo é chamado Deus,
e em relação ao Filho se chama Pai. Enquanto em relação ao Filho é
chamado Pai, Ele não é Filho; da mesma forma o Filho, com respeito ao
Pai não é Pai. Mas enquanto que o Pai com respeito a si mesmo é
chamado Deus, e o Filho com respeito a si mesmo é também chamado
Deus, trata-se do mesmo Deus. Assim quando falamos do Filho
simplesmente sem relação ao Pai, afirmamos reta e propriamente que tem
seu ser de si mesmo; e por esta causa o chamamos único princípio; porém
quando nos referimos à relação que tem com o Pai, com razão dizemos
394
que o Pai é princípio do Filho”.

A totalidade deste assunto escapa à nossa compreensão e, reconhecemos tam-


bém, que os termos empregados são falhos; todavia, o que a Bíblia nos diz a respei-
to do Filho é que Ele é tão eterno quanto o Pai e o Espírito (Jo 1.1,14,18; 17.5; Ap
395
1.8; 21.6; 22.13). A Sua glória é tão eterna quanto a do Pai eterno (Jo 17.5).

É oportuno lembrar que quando a Bíblia nos fala de Jesus Cristo como
primogênito de Deus, obviamente não se refere à Sua suposta criação mas sim à
Sua honra. A primogenitura também é usada desta forma e, no caso de Jesus
Cristo, indica a Sua prioridade, supremacia, honra, herança e governo (Ex 4.22; Sl
89.27; Jr 31.9/Rm 8.29; Cl 1.15-18; Hb 1.1,2).

Por isso, os crentes são chamados de “primogênitos”, porque alcançaram a


primogenitura em Cristo (Hb 12.23). Os crentes em Cristo uniram-se a uma família
de primogênitos, da qual Cristo é o Filho maior e eterno (Hb 1.5-8), sendo o modelo
do que seremos (Rm 8.29).

B) O RELACIONAMENTO ÍNTIMO DO FILHO COM O PAI:

Os judeus estavam convictos da paternidade de Deus sobre Israel.


Entretanto, o que mais nos chamou a atenção, é o fato de não ser encontrado no ju-
daísmo nenhum exemplo convincente da utilização da expressão “meu pai” para
396
Deus. Os judeus podiam dirigir-se a Deus, liturgicamente, como yiba) (‘abhi’)

394
J. Calvino, As Institutas, I.13.19.
395
Vd. Confissão de Westminster, II.3.
396
J. Jeremias, A Mensagem Central do Novo Testamento, p. 20.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 88/233

397
(“Meu Pai”); mas nunca empregavam a forma familiar )fba) (’abhã’) (grego:
a)bba=) (abba), que soaria desrespeitoso.

Agostinho (354-430) resume a questão dizendo:

“.... Quem quer que leia a Sagrada Escritura poderá encontrar tais lou-
vores de modo variado e extenso. Entretanto, em parte alguma encontra-
se algum preceito ordenando ao povo de Israel que se dirigisse a Deus
398
como Pai e o invocasse como Pai nosso”.

Portanto, o surpreendente para o judeu foi o fato de Jesus referir-se ao Pai de


uma forma nunca vista, jamais praticada. Acontece, que Jesus, em suas orações,
não usava de um artifício para criar impacto ou para presumir, diante de seus
ouvintes, ter uma relação inexistente com o Pai. Não. Jesus apenas revelou o fato
do Seu relacionamento íntimo e especial com o Pai. Isto Ele fez, usando a
expressão aramaica ’abba, que foi tomada por empréstimo do linguajar das crianças,
399
equivalendo mais ou menos ao nosso “papai” ou “paizinho”. O Talmud diz que
“quando uma criança saboreia o trigo (isto é, quando é desmamada),
400
aprende a dizer ‘abba’ e ‘imma’ (Papai e mamãe)”. Com o passar do
tempo o uso desta expressão também tornou-se comum entre os jovens e adultos
401
para se referirem aos seus pais.

Abba era um designativo tão familiar e íntimo que nenhum judeu ousaria usá-lo
para Deus. Tal emprego, feito por Jesus, impressionou de tal forma os discípulos,
que eles não traduziram a expressão para o grego.

Com exceção da oração de Mt 27.46, que seguiu a forma do Sl 22.1, em todas as


402
suas orações, Jesus dirigiu-se a Deus como Abba.

Permita-me mais uma vez usar as palavras de J. Jeremias, que pinta este quadro
de forma singular:

“Jesus dirigia-se a Deus como uma criancinha a seu pai, com a mesma
simplicidade íntima, o mesmo abandono confiante (...). Jesus considerava
este modo infantil de falar como a expressão do conhecimento único de
397
Cf. Alan Richardson, Introdução à Teologia do Novo Testamento, São Paulo: ASTE., 1966, p.
149ss.
398
Agostinho, O Sermão da Montanha, São Paulo: Paulinas, 1992, II.4. p. 115.
399
“O emprego inteiramente novo, e, para os judeus, nunca imaginado, do termo infantil e
familiar ‘abbã’ na oração é uma expressão de confiança e obediência para com o Pai
(Mc 14.36), como também de Sua autoridade incomparável (Mt 11.25ss).” (O. Hofius, Pai: In:
Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. III, p.
383).
400
J. Jeremias, O Pai Nosso, p. 36,37; O. Hofius, Pai: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário In-
ternacional de Teologia do Novo Testamento, III, p. 382.
401
Cf. O. Hofius, Pai: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento, Vol. III, p. 382.
402
J. Jeremias, A Mensagem Central do Novo Testamento, p. 20ss.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 89/233

403
Deus que o Pai lhe dava, e de seus plenos poderes de Filho”.

Isto implica dizer que Jesus tinha plena consciência de ser, de modo único e
singular, O Filho de Deus (Mt 11.27; Mc 13.32; 14.36). Quando a Igreja professou a
sua fé na filiação divina de Jesus, o fez respaldada pelo próprio testemunho de
Jesus, de ser o Filho de Deus. O que para os ouvintes foi uma novidade, a afirmação
da Sua filiação divina por ocasião do batismo, para Ele foi apenas o testemunho
público daquilo que Ele sempre soubera. Jesus Cristo é o Filho eterno, amado e
prazeroso do Pai (Mt 17.5; Jo 3.35; 5.20) e, Eles – o Pai e o Filho – se conhecem
como mais ninguém (Mt 11.27; Jo 1.18).

C) ASPECTOS DA FILIAÇÃO ÚNICA DE JESUS CRISTO:

Através do estudo da filiação de Cristo, podemos conhecer mais a-


cerca da Sua Pessoa e Obra. Vejamos, agora, de forma apenas indicativa, alguns
destes elementos:

1) A igualdade Essencial entre o Pai e o Filho:

a) O Batismo é ministrado em nome da Trindade: Mt 28.19.


b) Igualmente Eternos: Jo 17.5,24/Jo 1.1.
c) Iguais em Honra e Glória: Jo 5.23; 17.1,4,5.
d) Iguais em Poder Criador e Redentor: Jo 1.3; 5.21.
e) Iguais em Domínio: Lc 10.22; 22.29; Jo 16.15; 17.10.
f) Iguais em Perfeição: Hb 7.28/Mt 5.48.
g) Igualmente auto-existentes: Jo 5.26/Jo 1.4; 14.6.
h) Igualmente dignos de Adoração: Mt 14.33/Mt 4.10.

2) O Poder do Filho:

a) Poder sobre a natureza: Mt 4.3/Mt 14.15-33.


b) Poder sobre satanás e seus demônios: Mc 5.11,12; Lc 4.41;
1Jo 3.8.
c) Poder sobre a morte: Jo 5.21; 6.40.
d) Poder para julgar: Jo 5.22.
e) Poder para libertar definitivamente o Seu povo do pecado:
Jo 8.32-36.
f) Pode purificador: 1Jo 1.7.

3) A Santidade gloriosa do Filho:

a) Santo: Lc 1.35; Jo 10.36.


b) O Pai Glorifica e honra ao Filho: Jo 17.5; 2Pe 1.16-18;
c) Herdeiro de todas as coisas: Hb 1.2.

403
J. Jeremias, O Pai Nosso, p. 37. Vd. também, G. Kittel, a)bba=: In: G. Kittel & G. Friedrich, eds.
Theological Dictionary of the New Testament, Vol. I, p. 6.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 90/233

d) O Seu Reino permanece para sempre: Hb 1.5-8.

4) O Reconhecimento da filiação de Jesus Cristo:

a) Pelo próprio Pai: Mt 3.17/1Jo 5.9.


b) Pelo Anjo Gabriel: Gabriel anuncia o Seu nascimento, como
sendo do Filho de Deus (Lc 1.30-33).
c) Pelo próprio Filho: Mt 26.63,64; Mc 14.61,62.
d) Pelos seus discípulos: Jo 1.14,18,34; 11.27; Mt 16.15-17.
e) Por seus algozes: Mt 27.54.
f) Pelos demônios: Mt 8.29; Mc 3.11; 5.7; Lc 4.41.

D) O FILHO ETERNO E O POVO DE DEUS:


1) Nossa relação com o Filho:
a) Tudo que recebemos é através do Filho: Rm 8.32/Ef 1.3,4.
b) Fomos chamados à Sua comunhão: 1Co 1.9/Gl 2.20; 1Jo
1.3.
c) Ele é o modelo de nossa glorificação futura: Rm 8.28-30.
d) O Filho nos amou e Se entregou por nós: Gl 1.3,4; 2.20.
e) Recebemos o Espírito do Filho: Gl 4.4-7/Jo 14.26; 15.26;
16.13.
f) Fomos transportados para o Reino do Filho: Cl 1.13. Os
salvos estão em um novo estado, numa nova condição de vida.
g) Ele é a propiciação pelos nossos pecados: 1Jo 4.10;
intercedendo efetiva e eficazmente por nós (Hb 4.14-16/Jo 17.9; Rm
8.34; Hb 7.25-28).
h) O Filho nos dá discernimento: 1Jo 5.20.
i) A nossa vida está nEle: 1Jo 4.9; 5.10-12.
j) Ele nos livra da ira vindoura: 1Ts 1.10.
l) A Sua manifestação foi para nos libertar das obras do
diabo: 1Jo 3.7-10.

2) Nossa atitude para com o Filho:

a) Adorá-Lo: Mt 14.33.
b) Honrá-lo juntamente com o Pai: Jo 5.23.
c) Crer nEle: Jo 3.16,18,36 (Vd. também: Jo 6.40; 20.30,31; 1Jo
5.13).
d) Confessá-Lo: 1Jo 2.22,23.
e) Ser Batizado em Seu nome: At 8.36-38/Mc 16.15,16/Mt 28.19.
f) Conhecê-Lo cada vez mais: Ef 4.11-14.
g) Atentar para a Sua Palavra: Mt 17.5/Tg 1.22-25.
h) Proclamá-lo: At 9.20; 2Co 1.19; Gl 1.15,16.

Reconhecer a filiação divina de Cristo, significa reconhecê-Lo como de fato é, o


Filho de Deus, Aquele no qual se cumprem de forma completa e triunfante, o destino
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 91/233

do Israel de Deus, a Igreja de Cristo (Sl 2.7; 2Sm 7.12-14/At 13.33; Hb 1.5; 5.5).

Aquele que nega a filiação divina de Cristo, nega o próprio Deus e a Sua Palavra.
Esta é uma das manifestações próprias do anticristo (Cf. 1Jo 2.22,23).

2) A Divindade de Cristo:

A Bíblia declara e demonstra com clareza que Jesus Cristo é Deus.


Vejamos o que a Palavra nos diz a respeito:

A) A SUA DIVINDADE FOI PROFETIZADA:

Leia e compare os textos: Sl 45.6-7/Hb 1.8-9; Sl 110.1/At 2.32-36;


Hb 1.13; Is 9.6-7/Lc 1.31-33; Jr 23.6; Mq 5.2; Ml 3.1.

B) A SUA DIVINDADE FOI RECONHECIDA:

a) Pelo Pai e pelo Espírito Santo: Mt 3.16-17/Is 42.1.


b) Por Ele Mesmo: Mt 11.27; 16.16,17; 25.31; 27.63-65; 28.18; Jo
5.17,18; 6.37-40,57; 8.34-36; 10.17,18,30, 35-38; 14.7-9; 19.7.
c) Pelos Seus Discípulos: Jo 1.1-3,14,18; 20.28; Mt 14.33; Rm 9.5;
1Co 2.8; 2Co 12.8-9; Cl 2.9/1.19; 1Tm 3.16; Tt 2.13.
d) Pelos próprios demônios: Mt 8.29/Mc 1.23,24.

C) A SUA DIVINDADE DEMONSTRADA:

1) Títulos Divinos:

Jesus Cristo recebeu designações aplicáveis somente a Deus. Jo


1.1,18; 20.28; Rm 9.5; 2Ts 1.12; 1Tm 3.16; Tt 2.13; Hb 1.8; 2Pe 1.1; 1Jo 5.20.

2) Perfeições Divinas:

A Palavra atribui a Cristo diversas perfeições que são próprias do


Ser de Deus:

a) Onisciência: Mt 9.4;11.27; 24.1,2,14; Mc 2.8; Lc 6.8; 9.47; Jo


1.48; 2.24,25; 4.17,18,39; 6.64; 11.14; 13.37,38; 16.30; 21.17; Cl
2.3. Devemos observar aqui, que o fato de Jesus dizer que não
sabia o dia da Sua volta (Mc 13.32), não anula o que afirmamos
acima. Entendemos que o Verbo encarnado, durante o Seu Esta-
do de Humilhação não tinha conhecimento disso porque não era
da vontade de Seu Pai e, Jesus Cristo limitava-se a fazer e a co-
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 92/233

nhecer aquilo que era do agrado do Pai; todavia, no Seu Estado


de Exaltação, a partir da Sua ressurreição, isto já era conhecido,
404
entretanto, Ele não quis revelar (At 1.6,7). No Seu estado de
humilhação, ainda que não saibamos compreender adequada-
mente isso, a Sua onisciência foi usada de forma restrita. (Vd. Mc
405
2.8; 5.32; 9.21, 33-34; 10.33-34; 11.12-13).

b) Onipresença: Mt 18.20; 28.20; Jo 1.18; 3.13. A Encarnação


do Verbo, não significa o encarceramento do Logos ao corpo de
Jesus; a Segunda Pessoa da Trindade está de fato encarnada
mas, também, continua presente em todos os lugares
406
sustentando todas as coisas com o Seu poder.

c) Onipotência: Mt 11.27; 28.18; Lc 7.14; Jo 5.26-29; 10.18;


11.43,44; Ef 1.22; Hb 1.3; Ap 1.8; 11.17.

d) Eternidade: Is 9.6; Mq 5.2; Jo 1.1,2,15,30; 6.62; 8.58; 13.3;


16.28; 17.5,24; 2Co 8.9; Cl 1.17; Ap 1.8,17,18; 22.13.

e) Imutabilidade: Hb 1.11,12; 13.8.

f) Santidade: Lc 4.34; Jo 6.69; 8.46; 2Co 5.21; Hb 7.26; 1Pe


2.22.

g) Vida em Si Mesmo e “Imortalidade”: Jo 1.4; 2.19-22; 5.26;


10.17-18; 11.25; Hb 7.16

3) Obras Divinas:

A Palavra atribui a Jesus Cristo a realização de obras que são


prerrogativas divinas:

a) Autoridade para Perdoar Pecado: Mt 9.6; 26.28; Mc 2.5-12;


Lc 24.46,47; Jo 1.29; At 10.43; Cl 1.14.
b) Cura Miraculosa: Mt 8.13,15; 9.23-26; 11.4,5.
c) Poder sobre os demônios: Mt 8.31,32.
d) Poder sobre a natureza: Mt 8.23-27.
f) Autoridade sobre o sentido do “sábado”: Ex 20.8-11/Mc
2.27-28.
g) Criação e Preservação: Jo 1.3,10; 1Co 8.6; Cl 1.16,17; Hb
1.3,8,10.

404
Vd. J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 53.
405
Vejam-se: John Calvin, Harmony of the Evangelists, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House,
(Calvin’s Commentaries, Vol. XVII), 1996, p. 153-154; R.C.H. Lenski, The Interpretation of St. Mark’s
Gospel, Peabody, Massachusetts, (Commentary on the New Testament), 1998, (Mc 13.32), p. 590-
591; Guillermo Hendriksen, El Evangelio Segun San Marcos, Grand Rapids, Michigan: Subcomisión
Literatura Cristiana, 1987, (Mc 13.32), p. 552-553.
406
Vd. Catecismo de Heidelberg, Pergs. 47 e 48; Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 462.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 93/233

h) Autor da Salvação: Objeto da Fé: Mt 1.21; Lc 19.10; Jo


3.16,18,36; 8.24; 10.9,27,28; 11.26; 12.44,45; 14.1; 15.5,6; 17.3;
20.31; At 4.12; 16.31; Ap 7.10.
i) Eleição: Jo 13.18; 15.16/Ef 1.4.
j) O Envio do Espírito Santo: Jo 16.7,14.
k) A Santificação: Ef 5.25,26.
l) A Ressurreição do Seu Povo: Jo 6.40.
m) Juízo Final: Mt 7.21-23; 25.31-46; At 10.42; 2Co 5.10/Jo
5.22-29.

Um outro fato que atesta a divindade de Cristo, é a adoração tributada a Ele, bem
como as orações. Biblicamente somente Deus deve ser adorado e, o próprio Jesus,
no Seu confronto com satanás, cita o texto de Dt 6.13, dizendo: “Ao Senhor teu
Deus adorarás, e só a ele darás culto” (Mt 4.10). Entretanto, Ele aceita ser adorado
e, o Novo Testamento ensina esta prática explicitamente. [Mt 14.33; 15.25; 28.9,17;
1Co 1.2; Fp 2.9-11 (Compare com: Lc 4.8; At 10.25,26; Ap 19.10; 22.8,9). (Outros
Textos: Lc 24.52; Jo 5.22,23; 20.28; At 7.59,60; Hb 1.6; Ap 5.11,14)].

C. O Espírito Santo:

“A graça do Espírito é
verdadeiramente necessária para tratar
do Espírito Santo; não a fim de que
possamos falar dele como corresponde
– porque isso é impossível – senão para
que possamos atravessar este tema sem
perigo, dizendo o que está contido nas
divinas Escrituras” – Cirilo de Jerusalém, (c.
407
315-386).

“A necessidade da direção divina


nunca se sente mais profundamente do
que quando se empreende dar
instrução acerca da obra do Espírito
Santo – porque delicadíssimo é o
assunto que toca os segredos mais
íntimos de Deus e os mistérios mais
profundos da alma” – Abraham
408
Kuyper.

“A primeira obra que Cristo realizou


depois de Sua exaltação à mão direita
do Pai foi o envio do Espírito Santo” –
409
Herman Bavinck.

407
The Catechetical Lectures, XVI.1. In: P. Schaff & H. Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers
of the Christian Church, (Second Series), Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1978, Vol. VII, p. 115.
408
Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, Chaattanooga: AMG. Publishers, 1995, p. 3.
409
Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, 4ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House,
1984, p. 386.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 94/233

Introdução:

A Pessoa e obra do Espírito Santo têm sido esquecidas! Talvez os últimos cem
anos tenham sido um dos períodos mais omissos quanto ao Espírito Santo. Parado-
xalmente, quando consultamos os catálogos de livros evangélicos, “navegamos” na
410
“internet” ou adentramos em livrarias de material evangélico, nos surpreendemos
com a quantidade de livros, opúsculos, sermões, apostilas, cursos, fitas de vídeo,
“K7”, “CDs”, “DVDs” e outros meios semelhantes, sobre o Espírito. De fato, reafirmo,
o Espírito tem sido esquecido!

O Espírito tem sido esquecido porque os discursos modernos sobre Ele, parecem
não ser “elaborados” no Espírito, em submissão ao Espírito. Parece-me que a
tentação humana é de ir “além” do que o Espírito vai; e, portanto, além do que
requereu de nós. Curiosamente, estas tentativas, são permeadas por um discurso
“libertador” do Espírito. No entanto, todas as vezes que tratamos do Espírito alheado
do Seu próprio desejo – conforme registrado nas Escrituras –, nos esquecemos do
Espírito; Ele passa a ser o tema de nossas cogitações, não da Sua revelação.
Temos nos esquecido do Espírito!

O ministério do Espírito só pode ser compreendido e avaliado de modo correto


dentro da perspectiva cristocêntrica; um enfoque sem esta consideração consiste
num esquecimento do Espírito por maior que seja o nosso desejo de “reabilitá-lo” à
igreja. Quando a igreja compreende adequadamente Quem é Cristo e o Seu ministé-
rio, ela honra o Espírito, porque este conhecimento só pode ser alcançado por obra
de Deus (Mt 11.27; 16.17) e, é o Espírito de Deus Quem nos conduz à verdadeira
compreensão de Cristo. A confissão do Cristo por parte da Igreja, é, de certa forma,
a glória do Espírito (Jo 14.26; 15.26; 16.13-15/1Co 12.3). Bruner, analisando a atitu-
de de Paulo em relação a alguns discípulos em Éfeso que nada sabiam sobre o Es-
pírito Santo (At 19.1-7), mostra que o apóstolo passou-lhes a ensinar sobre o batis-
mo de Jesus (At 19.4). Conclui: “Este fato é relevante. O remédio para aqueles
que sabem pouco ou nada acerca do Espírito Santo não é instrução especi-
al sobre Ele, nem o conhecimento sobre o acesso ao Espírito, nem uma nova
coleção de condições, um novo regime de esvaziamento, de obediências
adicionais, de dedicação mais profunda, ou de orações ardentes, mas, pelo
contrário, simplesmente o grande fato: o evangelho da fé no Senhor Jesus
411
Cristo e o batismo em Seu nome.” Lloyd-Jones (1899-1981) faz um comentá-
rio pertinente: “Ao meu ver, esta é uma das coisas mais espantosas e extraor-
dinárias acerca da doutrina bíblica sobre o Espírito Santo. Ele parece esqui-
412
var-se e ocultar-se. Ele está sempre, por assim dizer, focalizando o Filho....”.

410
Esta é também uma preocupação do movimento carismático dentro da Igreja Católica. Vd. Her-
mann Brandt, O Risco do Espírito: Um Estudo Pneumatológico, São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1977, p.
7-8.
411
Frederick D. Bruner, Teologia do Espírito Santo, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 160.
412
D. Martyn Lloyd-Jones, Deus o Espírito Santo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
1998, p. 31. À frente: “Ele não ensina acerca de Si mesmo, nem chama a atenção para Si
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 95/233

O Espírito – como Deus que é –, deve ser estudado dentro da perspectiva da


Sua Palavra, em harmonia com os Seus propósitos. Qualquer esforço que
ultrapasse ou diminua isso, significa esquecer o Espírito, alhear-se da Sua vontade.

Lembremo-nos do Espírito, considerando-O tão-somente a partir da Sua revela-


ção, dentro do dimensionamento dado por Ele mesmo a respeito de Si. O limite do
nosso conhecimento está configurado nos parâmetros da revelação; tentar ultrapas-
413
sá-los, além de infrutífero, é loucura (Dt 29.29).

Quando Cristo é compreendido dentro da dimensão do revelado, isto significa que


o Espírito tem sido considerado, porque o Seu testemunho foi aceito: “Quando,
porém, vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da
verdade, que dele procede, esse dará testemunho de mim”, disse Jesus Cristo. (Jo
15.26).

No entanto, a observação de Kuyper feita em 1888, permanece como um alerta


para todos nós:

“Ainda que honremos o Pai e acreditemos no Filho, vivemos muito


pouco no Espírito Santo! Parece-nos algumas vezes até que somente para
a nossa santificação o Espírito Santo é acrescentado acidentalmente à
grande obra redentiva.
“Esta é a razão porque as nossas mentes se ocupam tão pouco com o
Espírito Santo; porque no ministério da Palavra Ele é pouco honrado; por-
que o povo de Deus, quando se curva suplicante diante do Trono da
Graça, faz Dele tão pouco o objeto de sua adoração. Sente-se involunta-
riamente que Ele recebe uma porção muito exígua de nossa piedade,
414
que já é bastante pequena”.

Nas páginas do Novo Testamento encontramos uma gama maior de referências


ao Espírito Santo, as quais revelam mais detalhadamente a Sua Pessoa e Obra, ao
mesmo tempo em que lançam luz sobre diversos textos do Antigo Testamento.

mesmo, nem glorifica a Si mesmo. Ele está o tempo todo chamando a atenção para o Se-
nhor, e essa é a característica de toda a obra do Espírito Santo.” (D. Martyn Lloyd-Jones, Deus
o Espírito Santo, p. 61).
413
Tenho aqui em mente, as oportunas observações de Calvino: "As cousas que o Senhor deixou
recônditas em secreto não perscrutemos, as que pôs a descoberto não negligenciemos, pa-
ra que não sejamos condenados ou de excessiva curiosidade, de uma parte, ou de ingrati-
dão, de outra" (As Institutas, III.21.4). “Tudo o mais que pesa sobre nós e que devemos buscar
é nada sabermos senão o que o Senhor quis revelar à Sua igreja. Eis o limite de nosso co-
nhecimento.” [João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Edições Parácletos, 1995 (2Co
12.4), p. 242-243]. “....Que esta seja a nossa regra sacra: não procurar saber nada mais se-
não o que a Escritura nos ensina. Onde o Senhor fecha seus próprios lábios, que nós igual-
mente impeçamos nossas mentes de avançar sequer um passo a mais.” [J. Calvino, Exposi-
ção de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 9.14), p. 330].
414
Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, p. XV-XVI.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 96/233

1. O Espírito Santo no Antigo Testamento:

O Antigo Testamento emprega a palavra (ahUr) (ruah), para “espírito”,


sendo traduzida por “vento”, “espírito”, “alento”, “hálito”, “sopro”, etc. A ideia básica é
415
de “ar em movimento” (Gn 2.7; Ex 10.13,19; 14.21; Dt 32.11; Jó 1.19; Is 7.2). En-
tretanto, “não é tanto o movimento por si que desperta a atenção, mas, sim,
416
a energia que semelhante movimento manifesta”. “Não expressa imateri-
417
alidade, mas a energia da vida em Deus”, resume Vos. Fazendo eco a Vos,
Ferguson enfatiza: “O que está em vista é energia em vez de imaterialidade.
418
(...) A ênfase é posta, antes, em sua esmagadora energia”. (Is 25.4; 40.7;
59.19; Hc 1.11). Payne e Ferguson chamam-nos a atenção para o episódio da rai-
nha de Sabá que, maravilhada com a sabedoria prática de Salomão, “não tinha mais
419 420
ruah” (1Rs 10.5); ou seja: ficou com a “respiração suspensa”. Quando ahUr é
421
empregado para Deus, denota o Seu poder incorruptível e preservador. Portanto,
a ideia de vento aponta para o poder soberano de Deus que se manifesta algumas
422
vezes como juiz, outras vezes como consolador e, também, que se movimenta li-
vremente, figuradamente, como uma tempestade, um tufão incontrolável, daí a
impossibilidade de prender, domesticar ou dominar o Espírito de Deus.

415
J. Barton Payne, hUr: In: R. Laird Harris, ed., Theological Wordbook of the Old Testament, 2ª ed.
Chicago: Moody Press, 1981. Vol. 2, p. 836a.
416
E. Kamlah, et. al., Espírito: In: Colin Brown, ed. ger. Teologia do Novo Testamento,O Novo Dicio-
nário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. II, p.124
(Doravante citado como NDITNT). “O pensamento implícito em rûah é que a ‘respiração’, com
o movimento do ar que ela acarreta, é a expressão externa da força vital inerente em todo
o comportamento humano” (Idem, Ibidem, II, p. 124). Por outro lado, recorrendo à figura do vento,
podemos dizer que: “... Os hebreus conheciam muito bem o poder do vento. Uma tempesta-
de de areia no deserto é uma potência que pode destruir até homens. Tremendo poder!
Quando falam do Espírito de Deus estão pensando no poder de Deus, Seu alento, aquilo
que se emite Dele e que sai ao mundo para cumprir Seus propósitos. Na realidade este é o
conceito do Espírito no Antigo Testamento, o poder de Deus que sai ao mundo para realizar
algum propósito determinado que Deus tem” (Hoke Smith, Teologia Biblica dEl Espiritu Santo,
Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1976, p. 14-15). Vd. também, A.B. Davidson, The
Theology of the Old Testament, Edinburgh, T. & T. Clark, 1904, p. 193; A.B. Crabtree, Teologia do
Antigo Testamento, 2ª ed. Rio de Janeiro: JUERP., 1977, p. 65-66; Sinclair B. Ferguson, O Espírito
Santo, p. 16-19; Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teo-
logia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 362.
417
Geerhardus Vos, Biblical Theology: Old and New Testaments, Grand Rapids, Michigan:
Eerdmans, 1985 (Reprinted), p. 238.
418
Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 17,18.
419
ARA: “ficou como fora de si”; BJ e ACR: “ficou fora de si”; ARC (1911): “não houve mais espírito
nela”.
420
J. Barton Payne, ahUr: In: R. Laird Harris, ed. Theological Wordbook of the Old Testament, Vol. 2,
p. 836; Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 17.
421
F. Baumgärtel, Pneu=ma: In: G. Friedrich & G. Kittel, eds. Theological Dictionary of the New
Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982, Vol. VI, p. 364. (Doravante citado como
TDNT).
422
Ver: Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cris-
tã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 362.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 97/233

423
Das 389 ocorrências do substantivo no Antigo Testamento, 136 se referem ao
Espírito, O qual é chamado de “Espírito de Deus” (Gn 1.2) e, principalmente,
424
“Espírito do Senhor” (hawhy) (Cf. Jz 6.34; 1Sm 16.13; Is 11.2). Estas designações
não sugerem nenhum tipo de subordinação, antes são apenas nomes que
expressam o Deus que executa o Seu querer; são portanto, nomes “executivos” de
425
Deus.

Algumas vezes também, ahUr indica os maus espíritos enviados da parte de Deus
(Jz 9.23; 1Sm 16.14-16,23; 18.10; 19.9; 1Rs 22.21-23/Jó 1.6-12; Is 19.14; 29.10) e
aos anjos (1Rs 19.11,12/Sl 104.4; Ez 1.12,20).

ahUr em diversos textos refere-se ao “espírito humano”, sempre evidenciando a


426
sua dependência de Deus, visto ser o Espírito de Deus o poder vitalizador e gera-
427
dor de toda criação (Gn 1.2; 6.3; Jz 3.10; 13.15/14.6; 1Sm 10.6; Jó 26.13; 33.4;
34.14-15; Sl 104.29-30; 146.4; Ec 12.7; Is 40.7), inclusive dos animais (Gn 6.17;
7.15,22; Ec 3.19-21). Considerando a variedade de emprego da palavra, torna-se,
em determinados casos, necessário um exame cuidadoso do contexto no qual o
termo ocorre.

O Antigo Testamento dá mais ênfase à atividade do Espírito do que à Sua nature-


za; no entanto, nem por isso deixa de evidenciar a Sua personalidade e divindade
428 429 430
(Sl 51.11; Is 48.16; 63.10,11; Zc 3.9/Zc 4.6,10; Mq 2.7), bem como a Sua

423
378 vezes em hebraico e 11 em aramaico (Cf. Hans W. Wolff, Antropologia do Antigo Testamen-
to, 2ª ed. São Paulo: Loyola, 1983, p. 51). Vejam-se também: J. Barton Payne, hUr: In: R. Laird Har-
ris, ed. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p.
1407 e Wilf Hildebrandt, Teologia do Espírito de Deus no Antigo Testamento, São Paulo: Editora Aca-
demia Cristã, 2004, p. 17.
424
Como sabemos, o tetragrama YHWH é o nome pessoal de Deus, considerado pelos judeus como
o nome por excelência de Deus; ele é usado 5321vezes no Antigo Testamento. “É especialmente
no nome Yhwh que o Senhor se revela como o Deus de Graça” (Herman Bavinck, The Doctri-
ne of God, 2ª ed. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1955, p. 103). (Sobre este assunto, vejam-se
mais detalhes em Hermisten M.P. Costa, Eu Creio, no Pai, no Filho e nO Espírito Santo, São Paulo:
Edições Parakletos, 2002 e Idem, Os Nomes do Verbo Encarnado, São Paulo: 1988, p. 22-28.
425
Vd. B.B. Warfield, A Doutrina Bíblica da Trindade, Leiria: Edições Vida Nova, (s.d.), p. 165.
426
Wolff acentua que: “A maioria dos textos que tratam da rûach de Deus ou dos homens
mostra Deus e o homem em relação dinâmica. O fato de que um homem como rûach é vi-
vo, quer o bem e age com autorização não vem dele mesmo.” (H.W. Wolff, Antropologia do
Antigo Testamento, p. 60).
427
Vd. Walther Eichrodt, Teologia Del Antiguo Testamento, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1975, Vol.
I, p. 196; Vd. também, Vol. II, p. 56ss; Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 20-24; Alister E. Mc-
Grath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, p. 363.
428
O profeta aqui alude a si mesmo e ao Espírito, indicando a sua inspiração profética (Cf. Is 61.1;
Ez 2.2; 11.5; 37.1; Zc 7.12). (Vd. A.R. Crabtree, A Profecia de Isaías, Rio de Janeiro: Casa Publica-
dora Batista, 1967, Vol. 1, p. 166; C.F. Keil & F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans, Vol. VII/2, 1969, p. 252-253).
429
Aqui, Zacarias fala de forma poética do Espírito de Deus como sendo os “sete olhos”. Figura
análoga é empregada em Ap 4.5. (Vd. J. Barton Payne, The Theology of the Older Testament,
Grand Rapids, Michigan: Zondervan, © 1961, p. 174).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 98/233

distinção de Deus (Nm 11.17; Ez 37.9), temas que serão melhor desenvolvidos no
Novo Testamento. Abrindo um parêntese, podemos usar a figura do eminente teólo-
go de Princeton, B.B. Warfield (1851-1921), que, referindo-se à doutrina da Trinda-
de, disse:

“Podemos comparar o Velho Testamento com um salão ricamente mo-


bilado, mas muito mal iluminado; a introdução de luz nada lhe traz que
nele não estivesse antes; mas apresenta mais, põe em relevo com maior
nitidez muito do que mal se via anteriormente, ou mesmo não tivesse sido
apercebido. O mistério da Trindade não é revelado no Velho Testamento;
mas o mistério da Trindade está subentendido na revelação do Velho Tes-
431
tamento, e aqui e acolá é quase possível vê-lo”.

Do mesmo modo, Ferguson conclui:

“.... a história do Espírito permanece incompleta quando limitada às


páginas do Antigo Testamento. O Evangelho de João torna isso bem claro:
‘pois o Espírito até esse momento não fora dado, porque Jesus não havia
sido ainda glorificado’ (Jo 7.39). Toda a revelação veterotestamentária
432
tem um ‘ainda não’ escrito como a olhar para seu alvo em Cristo”.

Esta constatação serve-nos de alerta para que consideremos a Bíblia como um


433
todo harmonioso e orgânico; toda ela procede de Deus (2Tm 3.16; 2Pe 1.20-21);
e também para o fato de que não podemos nos esquecer que, muitos dos textos ve-
terotestamentários ganham um sentido mais eloquente para nós, justamente por
dispormos das “luzes” do Novo Testamento, direcionadas pelo Espírito Santo.

A atividade do Espírito é demonstrada mais amplamente no homem, ainda que


não exclusivamente, visto ser Ele o agente e sustentador da criação (Gn 1.2; Jó 4.9;
434
26.13; 33.4; 34.14,15; Sl 33.6; 104.30; Is 40.7; 42.5). Há em todas as criaturas a
435
sustentação de Deus; nada existe sem a manutenção constante de Deus.

O Antigo Testamento mostra o Espírito como onisciente (Is 40.13), onipresente (Sl
139.7) e onipotente (Is 34.16), evidenciando assim, a impotência e inércia dos ído-
los, visto que estes não têm espírito, não têm vida (Hc 2.19/Jr 10.14). Somente Deus
pode conceder vitalidade, já que a vida pertence a Deus (Ez 37.14/Hc 3.2) (hfyfx)
436
(hãyãh).
430
Um contraste revelante é feito, quando é dito que os ídolos não têm hUr (Jr 10.14; Hc 2.19).
431
B.B. Warfield, A Doutrina Bíblica da Trindade, p. 130-131.
432
Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 40.
433
Vd. Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras, São Paulo: Editora Cultura
Cristã, 1998; Idem, A Harmonia dos Evangelhos, São Paulo: 1995, 10p; Idem, Unidade e Coesão
das Escrituras, São Paulo: 1995, 7p.
434
Vd. Hermisten M.P. Costa, Teologia do Espírito Santo, São Paulo: 1986, p. 1-5.
435
Cf. Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, p. 27.
436
Este verbo e os seus derivados ocorrem no Antigo Testamento cerca de 800 vezes, sendo tradu-
zido normalmente por “viver” e “vida”. A sua origem etimológica ainda não foi explicada satisfatoria-
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 99/233

Apresentando a questão de forma didática, podemos dizer que o Antigo


Testamento descreve Deus por meio do Espírito agindo no homem em três níveis, a
saber:

437
1) NÍVEL FÍSICO E INTELECTUAL:

O Espírito concede ao homem conhecimento e habilidade para tarefas especí-


ficas. Esta concessão, não implica necessariamente, na transformação espiritual,
como bem observou Hodge, “Todas essas operações são independentes das in-
438
fluências santificadoras do Espírito.” Esta presença pode ser tão marcante, que
não passa despercebida, mesmo de um pagão, como no caso de Faraó em relação
439
a José (Gn 40.8/41.16,38,39; Ex 28.3; 31.1-5; 35.30-36.2; Nm 11.17,25;
22.38/24.2; Jó 32.8; Dn 4.8-9; 5.11-14).

Neste mesmo aspecto, encontramos o Espírito agindo de modo capacitante nos


Seus servos, concedendo-lhes autoridade (para comandar, julgar) e vitória sobre
todos os desafios (Nm 11. 17,25-29; 27.18-21/Dt 34.9; Jz 3.10; 6.34;11.29;13.25;
14.6; 15.14; 1Sm 10.6/11.6; 1Cr 12.18).

2) NÍVEL RELIGIOSO-MORAL:

Aqui vemos o Espírito de Santidade, Aquele que produz no homem o caráter


moral de Deus, esquadrinhando o coração humano, entristecendo-se com o seu pe-
cado, testificando contra, conduzindo-o através da regeneração (Ez 11.19;
36.26,27), ao arrependimento, à fé e à santidade (Ne 9.20,30; Sl 32.2; 51.11;
143.10; Is 59.21; 63.10,11; Ez 39.29; Ag 2.5), que se revelam num fervor religioso (Is
26.9; Zc 12.10). O Antigo Testamento ensina claramente, que as operações do Espí-
440
rito Santo envolviam uma renovação moral e espiritual de Seu povo.

Lembremo-nos de que a salvação no Antigo Testamento não difere da salvação


no Novo Testamento: todos dependem da obra redentora de Cristo, sendo aplicada
441
a nós pelo Espírito Santo. Ou seja: quer no Antigo quer no Novo Testamento, a

mente. Biblicamente, hfyfx tem o sentido de: a) Chamar à existência o que não existia: [Gn 2.7 (ad-
jetivo: yfx “vivente”); Jó 33.4/2Rs 5.7], e b) Preservar vivo: (Gn 7.3; 19.32; Sl 33.19; 41.2). (Vd.
mais detalhes In: Hermisten M.P. Costa, Avivamento Bíblico, São Paulo: 1994, 3p).
437
McGrath chama esta ação do Espírito de “carisma” (Ver: Alister E. McGrath, Teologia Sistemática,
histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, p. 363).
438
“Quando o Espírito veio sobre Sansão ou sobre Saul, não foi com o intuito de torná-los
santos, mas para dotá-los com extraordinário poder físico e intelectual; e, quando lemos que
o Espírito se afastou deles, isso significa que eles foram privados dos dons extraordinários”
(Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos Editora, 2001, p. 395).
439
Vd. Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 26.
440
Vd. Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 26-31.
441
“No tempo do Antigo Testamento, ele estava incessantemente ativo – na criação e na
preservação do universo, na providência e na revelação, na regeneração de crentes, e na
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 100/233

salvação é pela graça proveniente de Cristo. Calvino resume: “.... tudo o que o
Senhor tinha feito e sofrido para adquirir salvação para o gênero humano
pertencia tanto aos crentes do Antigo Testamento quanto a nós. E, de fato,
eles tinham um mesmo espírito que nós temos, pelo qual Deus regenera os
Seus para a vida eterna. Portanto, como vemos que o Espírito de Deus, que
é como uma semente de imortalidade em nós (pelo que é chamado penhor
da nossa herança), habitava neles, como ousaríamos vetar a eles a herança
442
da vida?” À frente, acrescenta: “Foi isso que desejei sustentar, isto é, que to-
dos os santos a respeito dos quais lemos na Escritura que foram escolhidos
por Deus, desde o princípio do mundo, têm sido participantes conosco das
443
mesmas bênçãos que nos são dadas com a salvação eterna.”

Após o cativeiro babilônico, Deus encoraja o povo, dizendo que o Seu Espírito
permanecia no meio dele; aqui vemos a manifestação do Deus do Pacto (Ag 2.4,5),
cuja presença por Si só é altamente estimulante (Vd. Ex 29.45,46; 33.14; Dt 31.6-8;
Js 1.9; Is 41.10,13; 43.2/2Tm 1.7; Hb 13.5). “A certeza da promessa de Deus e o
fato do Espírito sempre presente seriam suficientes para acalmar os temores
444
da comunidade.” O particípio ativo do verbo hebraico “habitar” (damf()(ãmadh)
(Ag 2.5) indica a ideia de que Deus sempre esteve presente no meio do Seu povo,
mesmo durante o cativeiro (Ed 9.9; Ne 9.17,18,20,28); a presença de Deus não é al-
go pontilhado, durante determinados eventos da história, antes, é contínua, ininter-
445
rupta. “Se o exílio aparentemente tinha anulado a aliança, agora o povo
era certificado de que Deus ainda estava entre eles em Espírito, como estive-
446
ra durante todo o êxodo (Ex 29.45).” O fundamento do Pacto está na “palavra
da aliança” e no “Espírito” presente. Aliás, a Aliança sempre está ligada à Palavra
misericordiosa de Deus e ao Seu Espírito (Is 54.10; 55.3; 59.21; Ag 2.5/Dt 7.9; 1Rs
447
8.23; Dn 9.4). O Espírito dirige a história de forma poderosa, “transpondo os obs-
táculos”, fazendo com que – de uma forma misteriosa para nós –, Deus sempre
cumpra a “palavra da aliança”.

capacitação de pessoas especiais para tarefas especiais” (John Stott, John Stott. Batismo e
Plenitude do Espírito Santo, 2ª. Ampli., São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 17).
442
João Calvino, As Institutas, (1541), II.7.
443
João Calvino, As Institutas, (1541), II.7.
444
Gerard Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, Campinas, SP.: Luz para o
Caminho, 1995, p. 784.
445
Davidson orienta-nos que “o particípio representa uma ação ou condição em sua coesão
contínua....” (A.B. Davidson, An Introductory Hebrew Grammar, 24ª ed. Edinburgh, T.& T. Clark,
(reprinted), 1936, § 46, p. 159). O autor continua mostrando que, enquanto o imperfeito sugere su-
cessão, uma multiplicidade de ação e de pontos, o particípio indica uma linha que se prolonga sem
quebra em sua continuidade. (Ibidem., p. 159). Isto indica, que a “história não saiu das mãos de
Deus" (D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangé-
licas Selecionadas, 1992, p. 64. (Sobre os variados conceitos de História e a perspectiva cristã, Vd.
Hermisten M.P. Costa, Escatologia: O Sentido da História à Luz da Sua Consumação, São Paulo:
2004).
446
Joyce G. Baldwin, Ageu, Zacarias e Malaquias, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão,  ameri-
cana, 1972, p. 37. Mesmo no exílio, Israel continuava sendo o povo eleito de Deus (Is 41.8-14; 43.1-
7).
447
Vd. Francis Turretin, Institutes of Elenctic Theology, Phillipsburg, New Jersey: P & R Publishing,
1994, Vol. II, XV.xvi.10-11.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 101/233

3) NÍVEL PROFÉTICO-REVELACIONAL:

O Espírito é o agente de Deus na revelação da Sua vontade, colocando-a nos


lábios dos profetas. O Espírito é apresentado como “o veículo comunicador de
448
toda a criativa plenitude dos poderes divinos”. O Espírito revela, inspira e i-
lumina os profetas (Nm 11.25,26; 1Sm 10.6; 2Rs 2.9,15; 1Cr 12.19; 2Cr 15.1; 20.14;
Is 11.2; 42.1; 48.16; 59.21; Ez 2.2; 3.24; 8.3; 11.24; Zc 7.12/Am 3.7; Mq 3.8/2Sm
23.2). Por isso, a sua mensagem consiste no anúncio fiel da revelação de Deus. Os
profetas, conscientes disso, insistentemente traziam como preâmbulo à sua
mensagem, os dizeres: “Assim diz o Senhor...”, “Ouvi a Palavra do Senhor...”, “Veio
a Palavra do Senhor...” (Cf. Jr 27.1; 30.1,4; Ez 31.1; Os 1.1; Jl 1.1; Am 1.3; 2.1; Ob
1.1; Mq 1.1). Por sua vez, os profetas “especulativos” eram qualificados de “falsos”,
por proferirem as suas próprias palavras, fruto de seus desejos, e não a Palavra de
449
Deus (Vd. Jr 14.14; 23.16; 29.9; Ez 13.2,3,6).

Tanto neste nível como no anterior, podemos dizer que, “O Espírito, um poder
capacitador, reveste aquele sobre o qual repousa com as qualidades que o
450
próprio Espírito possui.”

Do que foi visto até aqui, depreende-se, que a experiência do profeta com o Espí-
rito não era comum a todos em Israel (Nm 11.29). Todavia, o Antigo Testamento a-
ponta para o futuro, quando o Espírito seria derramado sobre todos em Israel – ho-
mens e mulheres, jovens e velhos –, e também, sobre todos os homens indistinta-
451
mente (Ez 36.27;37.14; Jl 2.28-32; Zc 12.10). O cumprimento desta promessa es-
tava relacionado com a Obra do Messias, que viria – como de fato veio –, na pleni-
452
tude do tempo e do Espírito Santo (Is 11.2; 42.1; 48.16; 61.1-11 /Lc 4.16-21; Jo
3.34; 14.16,17,26; 15.26). “Deus fez repousar plenamente o Seu Espírito sobre
Jesus para que Ele fosse uma fonte para nós, a fim de recebermos por meio
dele da Sua plenitude e, associados a Ele, pudéssemos, nessa comunhão,
453
participar das graças do Espírito Santo”, conclui Calvino.

O profeta Isaías descreve o Messias como aquele que “pode cumprir todos os
seus deveres porque é ungido por Yahwéh por meio da dádiva do Espíri-

448
C.F. Keil & F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, VII/1, p. 282.
449
Vd. Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras, passim. Stott resume bem a
tarefa do profeta: “A característica essencial do profeta não era prever o futuro nem interpre-
tar a atividade presente de Deus, mas falar as palavras de Deus.” (J.R.W. Stott, O Perfil do
Pregador, São Paulo: SEPAL., 1989, p. 12).
450
Gerard Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, p. 508.
451
A. A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 15-16; Way-
ne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 640.
452
Vd. G. Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, p. 602-603.
453
João Calvino, As Institutas, (1541), II.4.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 102/233

454
to”. Foi o próprio Senhor quem “designou, equipou e autorizou seu escolhido”
455
para ministrar a tarefa que lhe competia como profeta, sacerdote e rei.

2. O Espírito Santo no Judaísmo Posterior:

“A fé do crente veterotestamentário era completamente esca-


tológica. Ele aguardava a intervenção de Deus na história, tanto no futuro
próximo como no distante. Foi, na verdade, esta fé-esperança que conce-
deu ao santo do Velho Testamento a coragem necessária para percorrer o
456
caminho posto perante ele”. Desse modo, o viver pela fé assumiu um caráter
extremamente concreto.

No período após o Antigo Testamento, esta fé foi fortemente provada. No juda-


ísmo interbíblico, predominava a ideia, com algumas poucas exceções, de que o Es-
457
pírito Santo se apagara devido ao pecado do povo. Esta concepção trazia consigo
sérias consequências, visto que para a Sinagoga, “a posse do Espírito Santo, isto
é, o Espírito de Deus, era a marca por excelência da profecia. Possuir o Espíri-
458
to de Deus significava ser profeta”; logo, a asserção de que o Espírito se apa-
459
gara, implicava na inexistência de um autêntico profeta e, também, na “convic-
ção de que o tempo presente está alienado de Deus. Tempo sem Espírito é
460
tempo sob o julgamento de Deus. Deus se cala”.

Segundo J. Jeremias, os rabinos explicavam da seguinte forma o fato do Espírito


ter se apagado:

“Ao tempo dos patriarcas, todos os piedosos e justos possuíam o Espírito


de Deus. Quando Israel prevaricou com o bezerro de ouro, Deus limitou o
Espírito a homens escolhidos, aos profetas, sumo sacerdotes e reis. Com a
morte dos últimos profetas escritores, Ageu, Zacarias e Malaquias, o Espírito
se apagou, por causa do pecado de Israel. Desde então, acreditava-se,
461
Deus continuava falando apenas pelo ‘eco da sua voz’ (bat qol = eco ),

454
G. Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, p. 604.
455
Cf. G. Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, p. 602-603.
456
Anthony Hoekema, A Bíblia e o Futuro, p. 20.
457
Vd. Hermisten M.P. Costa, A Literatura Apocalíptico-Judaica, São Paulo: Casa Editora Presbite-
riana, 1992, p. 27ss.
458
J. Jeremias, Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Paulinas, 1977, p. 124-125
459
O livro de Macabeus reflete esta ideia: “Levantou-se uma tão grande tribulação em Israel,
que não se tinha visto outra assim desde o tempo do desaparecimento dos profetas de Isra-
el” (1Mac 9.27. Vejam-se, também: 1Mac 4.46; 14.41).
460
J. Jeremias, Teologia do Novo Testamento, p. 129.
461
lOq taB (Bath qôl). Literalmente, “Filha da voz” ou “Filha de uma voz”. O conceito é derivado de
Dn 4.31. O Novo Testamento menciona algumas vezes uma voz que veio do céu (Vd. Mt 3.17; 17.5;
Jo 12.28; At 9.4/ 22.7/26.14; 10.13,15). Unterman, assim define: “Voz celestial que continuou a
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 103/233

462
um pobre substituto.”

Apesar dessa desolação, admitia-se a esperança de que no tempo Messiânico, o


Espírito Santo traria de novo o profetismo e a renovação dos corações: esta era a
463
aspiração do povo, a vinda do Espírito.

É a partir do Novo Testamento que a obra do Espírito – quase que totalmente


restrita à nação de Israel no Antigo Testamento – se tornará mais abrangente,
através da nova aliança que, pela instrumentalidade da Igreja, unirá judeus e gentios
(Ef 2.22/1Pe 2.5).

3. As Perfeições do Espírito Santo:

1) UNICIDADE:

Há um só Espírito Santo de Deus no qual todos os crentes em Cristo


foram batizados (Ef 4.3-4/1Co 12.11,13).

transmitir a mensagem de Deus ao homem depois que a PROFECIA bíblica chegou ao fim. O
sumo sacerdote podia ouvir a bat kol enquanto oficiava no Santo dos Santos, e, após a des-
truição do Templo, os que visitavam suas ruínas podiam ouvir a voz celestial expressando a
tristeza de Deus.” (Bat kol: In: Alan Unterman, Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p. 43). Uma outra definição, como a de Van Pelt, com pequenas
variações, é geralmente usada: “Um termo rabínico significando a divina voz, audível ao ho-
mem e desacompanhada de uma visível manifestação da divindade.” (J.R. Van Pelt, Bath
Kol: In: Geoffrey W. Bromiley, (General Editor), The International Standard Bible Encyclopedia, 2ª ed.
Grand Rapids, Michigan: William B. Eerdmans Publishing Company, 1980, Vol. I, p. 438-439)
(Doravante citado como ISBE). Ao que parece este “eco” tendeu a ser explorado como um meio de se
decidir em questões de difícil interpretação da Lei; daí a insistência do Rabino Josué (c. 100 AD) em
enfatizar a supremacia da Lei escrita, sendo esta questão debatida entre as escolas de Shammai e
Hillel. (Vd. Otto Betz, Fwnh/: In: TDNT., IX, p. 288-290; J.R. Van Pelt, Bath Kol: In: ISBE., I, p. 439a;
A.K. Helmbold, Bath Kol: In: Merril C. Tenney, gen. ed. The Zondervan Pictorial Encyclopaedia of the
Bible, 5ª ed. Grand Rapids, Michigan: Zondervan Publishing House, 1982, Vol. I, p. 492(Doravante
citado como ZPEB). No Talmude as referências à “Bath Kol” são inúmeras.
462
J. Jeremias, Teologia do Novo Testamento, p. 128. Esta voz vinda do céu, geralmente consistia
na declaração do juízo de Deus dirigido a indivíduos, grupos, governos, cidades ou todas as nações.
(Vd. Otto Betz, Fwnh/: In: TDNT.,IX, p. 288 e A.K. Helmbold, Bath Kol: In: ZPEB., I, p. 492). (Vejam-
se, também: A.C. Schultz, Voz: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, Grand Rapids, Michi-
gan: TELL., 1985, p. 556 (Doravante citado como DT); Bath Kol: In: EBTF., I, p. 456; . A.K. Helmbold,
Bath Kol: In: ZPEB., I. p. 492; Otto Betz, Fwnh/: In: TDNT., IX, especialmente, p. 285ss; J.R. Van Pelt,
Bath Kol: In: ISBE., I, p. 438-439).
463
Cf. J. Jeremias, Teologia do Novo Testamento, p. 130 e P. Van Imschoot, Espírito: In: A. Van
Den Born, redator, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, 2ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1977, p. 485.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 104/233

2) PERSONALIDADE:

O Espírito é um Ser Pessoal, sendo distinto do Pai e do Filho. A Bí-


blia O apresenta como sendo dotado de três elementos essenciais à personalidade.
Isto indica que Ele não é apenas uma força impessoal e ativa de Deus; o Espírito é o
próprio Deus ativo que Se agencia deliberadamente através de Si mesmo. “Uma
personalidade inclui inteligência, vontade e individualidade. Uma pessoa
age por intenção. Nenhuma força abstrata pode tencionar fazer qualquer
464
coisa. Boas ou más intenções são limitadas aos poderes de seres pessoais”.
.Estudemos o que a Palavra nos diz a respeito da Personalidade do Espírito:

465
a) Possui os Elementos Essenciais à Personalidade:

1) Tem Inteligência (mente, intelecto): Is 40.13,14; Jo 14.26;


15.26; At 15.28; Rm 8.27; 1Co 2.10-12. Sobre este texto, diz C. Hodge: “A
466
consciência de Deus é a consciência do Espírito”.

2) Tem Vontade: Sl 106.32-33; Is 34.16; At 13.2; 16.7; 21.11;


467
1Co 12.11; 1Tm 4.1.

3) Tem Sensibilidade: Mq 2.7 (Irritação); Rm 15.30 (Amor); Is


63.10; Ef 4.30 (Entristece-se).

468
b) Ele é o Autor de Toda Vida Intelectual:

Quando historiadores da arte tratam da arte produzida pelos ju-


469
deus, é comum a identificação da proibição divina quanto à idolatria (Ex 20.4-6)
470
com uma suposta proibição divina à arte. É possível que a falta de uma maior cla-
reza de interpretação bíblica tenha contribuído para o não desenvolvimento de de-

464
R.C. Sproul, O Ministério do Espírito Santo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997, p. 17.
465
Embora Charles Hodge (1797-1878) não julgue necessário nem prudente tratar separadamente
dos atributos pessoais do Espírito, considerando que os textos que tratam de um, também referem-se
aos outros (C. Hodge, Systematic Theology, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1986 (Reprinted), Vol. I,
p. 523-524), procederemos diferentemente por questões didáticas.
466
Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Editora Hagnos, 2001, p. 393.
467
A comunicação do Espírito a respeito do futuro de Paulo bem como dos “últimos tempos”, denota
a liberdade da Sua vontade na revelação destes eventos.
468
Devo este tópico às observações de C. Hodge, Teologia Sistemática, p. 395.
469 4
“ Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus,
5
nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as adorarás, nem lhes darás culto;
porque eu sou o SENHOR, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até à
6
terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia até mil gerações daque-
les que me amam e guardam os meus mandamentos” (Ex 20.4-6).
470
Como por exemplo, Gombrich: “Na realidade, a Lei judaica proibiu a realização de imagens
por temor à idolatria” (E.H. Gombrich, A História da Arte, 16ª ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e
Científicos Editora, 1999, p. 127).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 105/233

terminada manifestação artística entre os judeus. Dentro de uma perspectiva mais


ampla, devemos entender que a arte na Escritura é proibida apenas como instru-
mento de idolatria, não como meio de glorificar a Deus por meio do belo: “O fato de
que querubins foram bordados no véu interno do Tabernáculo (Ex 26.31), de
que as paredes do Templo de Salomão foram esculpidas com figuras de
querubins e palmeiras (1Rs 6.29), e de que Tabernáculo e Templo tinham figu-
ras de querubins no propiciatório, dentro do Santos dos Santos, indica que o
471
segundo mandamento não impediu a produção de trabalhos artísticos”.

No Antigo Testamento encontramos com frequência a ação do Espírito associada


à vida intelectual de diversos homens (Vejam-se: Jó 32.8; 35.10,11/Gn 2.7; Ex 31.2-
472
6; 35.31-35; Nm 11.17,25-29; 27.18-21/Dt 34.9). O Espírito é o autor de toda vida
intelectual e artística; nEle temos o sentido do belo e sublime como expressão da
santa harmonia procedente do Deus Triúno, que é perfeitamente Belo em Sua
Santidade e Majestade.

Referindo-se à obra de Bezalel e Aoliabe, Ferguson escreve:

“A beleza e a simetria da obra executada por esses homens na cons-

471
H.G. Stigers, Arte, Artes: In: Merrill C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultu-
ra Cristã, 2008, Vol. 1, p. 513. Na mesma linha escreveu Schaeffer: “A Bíblia não proíbe a con-
fecção de arte figurativa e sim sua adoração. Só Deus deve ser adorado. Portanto, o man-
damento não é contra a arte, mas contra a adoração a qualquer coisa além de Deus e,
especificamente, contra a adoração à arte. Adorar a arte é um erro; produzi-la, não” (Fran-
cis A. Schaeffer, A Arte e a Bíblia, Viçosa, MG.: Editora Ultimato, 2010, p. 20). À frente: “Não é a e-
xistência da arte figurativa que é errada, mas o seu uso incorreto” (p. 30).
472
“Na verdade, há um espírito no homem, e o sopro do Todo-Poderoso o faz sábio” (Jó 32.8). “Mas
ninguém diz: Onde está Deus, que me fez, que inspira canções de louvor durante a noite, que nos
ensina mais do que aos animais da terra e nos faz mais sábios do que as aves dos céus?” (Jó 35.10-
2 3
11). “ Eis que chamei pelo nome a Bezalel, filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá, e o enchi do
4
Espírito de Deus, de habilidade, de inteligência e de conhecimento, em todo artifício, para elaborar
5
desenhos e trabalhar em ouro, em prata, em bronze, para lapidação de pedras de engaste, para en-
6
talho de madeira, para toda sorte de lavores. Eis que lhe dei por companheiro Aoliabe, filho de Ai-
samaque, da tribo de Dã; e dei habilidade a todos os homens hábeis, para que me façam tudo o que
31
tenho ordenado” (Ex 31.2-6). “ e o Espírito de Deus o encheu de habilidade, inteligência e conheci-
32 33
mento em todo artifício, e para elaborar desenhos e trabalhar em ouro, em prata, em bronze, e
34
para lapidação de pedras de engaste, e para entalho de madeira, e para toda sorte de lavores.
Também lhe dispôs o coração para ensinar a outrem, a ele e a Aoliabe, filho de Aisamaque, da tribo
35
de Dã. Encheu-os de habilidade para fazer toda obra de mestre, até a mais engenhosa, e a do bor-
dador em estofo azul, em púrpura, em carmesim e em linho fino, e a do tecelão, sim, toda sorte de
17
obra e a elaborar desenhos” (Ex 35.31-35). “ Então, descerei e ali falarei contigo; tirarei do Espírito
que está sobre ti e o porei sobre eles; e contigo levarão a carga do povo, para que não a leves tu so-
25
mente. (...) Então, o SENHOR desceu na nuvem e lhe falou; e, tirando do Espírito que estava sobre
ele, o pôs sobre aqueles setenta anciãos; quando o Espírito repousou sobre eles, profetizaram; mas,
26
depois, nunca mais. Porém, no arraial, ficaram dois homens; um se chamava Eldade, e o outro,
Medade. Repousou sobre eles o Espírito, porquanto estavam entre os inscritos, ainda que não saíram
27
à tenda; e profetizavam no arraial. Então, correu um moço, e o anunciou a Moisés, e disse: Eldade
28
e Medade profetizam no arraial. Josué, filho de Num, servidor de Moisés, um dos seus escolhidos,
29
respondeu e disse: Moisés, meu senhor, proíbe-lho. Porém Moisés lhe disse: Tens tu ciúmes por
mim? Tomara todo o povo do SENHOR fosse profeta, que o SENHOR lhes desse o seu Espírito!”
(Nm 11.17,25-29). “Josué, filho de Num, estava cheio do espírito de sabedoria, porquanto Moisés im-
pôs sobre ele as mãos; assim, os filhos de Israel lhe deram ouvidos e fizeram como o SENHOR orde-
nara a Moisés” (Dt 34.9).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 106/233

trução do tabernáculo não só deram prazer estético, mas um padrão físi-


co no coração do acampamento que serviu para restabelecer expressões
concretas da ordem e glória do Criador e suas intenções em prol de sua
473
criação”.

Calvino (1509-1564) entendia que a arte e as demais coisas que servem ao uso
comum e conforto desta vida são dons de Deus; portanto, devemos usá-las de forma
474
legítima a fim de que o Senhor seja glorificado. Quanto mais o homem se apro-
funda nas “artes liberais” e investiga a natureza, mais se aproxima “dos segredos
475
da divina sabedoria”. Ainda que as artes não tenham poder redentivo, e, a bem
da verdade, não é este o seu propósito, elas, contribuem para temperar a nossa vida
476
com mais encanto e beleza, quer pelo que reproduz (o seu tema), quer pela forma
477
de fazê-lo (habilidade). A beleza da arte não está simplesmente em sua temática,
mas, também, na qualidade daquilo que reproduz e reinventa a partir da natureza
478
que a alimenta.

473
Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, São Paulo: Editora Os Puritanos, 2000, p. 26. “Deus quis
que a vocação artística fosse exercida como um aproveitamento obediente e edificante
de matérias, sons, formas, paisagens, palavras, gestos e outras coisas semelhantes que Ele
colocou sob os cuidados dos homens e das mulheres” (C.G. Seerveld, Arte: In: Walter A. Elwell,
ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, Vol. I, p.
121).
474
Cf. João Calvino, As Institutas, I.11.12; John Calvin, Calvin's Commentaries, Grand Rapids,
Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), Vol. I, (Gn 4.20), p. 217-218; Vol. III, (Ex
31.2), p. 291.
475
João Calvino, As Institutas, I.5.2.
476
Ilustrativo é o desenho feito por Peter Paul Rubens (1577-1640), Retrato de Seu Filho, Nicholas
(c. 1620).
477
Neste particular, um bom exemplo é o desenho feito por Albrecht Durer (1471-1528), Retrato de
sua mãe (1514).
478
“O princípio é que há liberdade para se fazer algo a partir da natureza, que seja distinto
dela e que possa ser levado à presença de Deus. Em outras palavras, a arte não precisa ser
‘fotográfica’, no sentido mais simples da palavra fotografia!” (Francis A. Schaeffer, A Arte e a
Bíblia, Viçosa, MG.: Editora Ultimato, 2010, p. 23). Cézanne (1839-1906), um artista de grande sensi-
bilidade, simplicidade e acessibilidade, em carta a Charles Camoin (1879-1965) datada de
22/02/1903, disse: “Mas preciso trabalhar. Principalmente na arte, tudo é teoria desenvolvida
e aplicada em contato com a natureza” (Paul Cézanne, Correspondência, São Paulo: Martins
Fontes, 1992, p. 239. Também em H.B. Chipp, Teorias da Arte Moderna, 2ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1999 (2ª tiragem), p. 15). Em outra ocasião, revelando problemas no “sistema nervoso”, diz:
“É preciso prosseguir. Devo, pois, produzir a partir da natureza” (Carta a seu filho Paul, datada
de 13/10/1906. In: Paul Cézanne, Correspondência, São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 271. Tam-
bém em H.B. Chipp, Teorias da Arte Moderna, p. 20). Em cartas a Émile Bernard (1868-1941) data-
da de 25/07/1904: “Para fazer progressos, só através da natureza, e o olho se educa no conta-
to com ela” (Paul Cézanne, Correspondência, p. 248. Também em H.B. Chipp, Teorias da Arte Mo-
derna, p. 17). Esta, datada de 12/05/1904: “O Louvre é um bom livro a ser consultado, mas
também não deve ser mais do que um intermediário. O estudo real e prodigioso a ser em-
preendido é a diversidade do quadro da natureza” (Paul Cézanne, Correspondência, p. 246.
Também em H.B. Chipp, Teorias da Arte Moderna, p. 16). Novamente, em 1905 depois de março: “O
Louvre é o livro em que aprendemos a ler. Não devemos porém, contentar-nos em reter as
belas formas de nossos ilustres predecessores. Saiamos delas para estudar a bela natureza,
tratemos de libertar delas o nosso espírito, tentemos exprimir-nos segundo nosso tempera-
mento pessoal. O tempo e a reflexão, além disso, pouco a pouco, modificam a visão, e fi-
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Bavinck (1854-1921) escreve de modo magistral, mostrando que a arte provém de


Deus, tendo também um sentido confortador:

“A arte também é um dom de Deus. Como o Senhor não é apenas verdade e


santidade, mas também glória, e expande a beleza de Seu nome sobre todas as
Suas obras, então é Ele, também, que, pelo Seu Espírito, equipa os artistas com
sabedoria e entendimento e conhecimento em todo tipo de trabalhos manuais (Ex
31.3; 35.31). A arte é, portanto, em primeiro lugar, uma evidência da habilidade
humana para criar. Essa habilidade é de caráter espiritual, e dá expressão aos
seus profundos anseios, aos seus altos ideais, ao seu insaciável anseio pela har-
monia. Além disso, a arte em todas as suas obras e formas projeta um mundo i-
deal diante de nós, no qual as discórdias de nossa existência na terra são substi-
tuídas por uma gratificante harmonia. Desta forma a beleza revela o que neste
mundo caído tem sido obscurecido à sabedoria mas está descoberto aos olhos do
artista. E por pintar diante de nós um quadro de uma outra e mais elevada reali-
dade, a arte é um conforto para nossa vida, e levanta nossa alma da consterna-
479
ção, e enche nosso coração de esperança e alegria”.

Contudo, continua ele, a arte, como não poderia deixar de ser, tem seus limites.
Isto deve ser observado com atenção:

“Mas apesar de tudo o que a arte pode realizar, é apenas na imagina-


ção que nós podemos desfrutar da beleza que ela revela. A arte não po-
de fechar o abismo que existe entre o ideal e o real. Ela não pode trans-
formar o além de sua visão no aqui de nosso mundo presente. Ela nos mos-
tra a glória de Canaã à distância, mas não nos introduz nesse país nem
nos faz cidadãos dele. A arte é muito, mas não é tudo.(...) A arte não po-
de perdoar pecados. Ela não pode nos limpar de nossa sujeira. E ela não é
480
capaz de enxugar nossas lágrimas nos fracassos da vida”.

A Escritura nos mostra que Deus como autor de toda beleza, aprecia o belo. A be-
leza não tem existência própria e autônoma; ela provém de Deus, daí o perigo de fa-
zermos a separação entre beleza e Deus, correndo o risco de adorar a criação em
481
lugar do Criador (Rm 1.25). O belo por sua vez, não tem apenas um sentido fun-
cional, antes, é prazeroso, refletindo de alguma forma a grandeza da Criação divina
que, por sua vez, reflete a natureza majestosa de Deus e Seu amor que faz com que
Ele Se comunique conosco de forma tão bela e harmoniosa. Portanto, a nossa criati-
vidade deve ser atribuída a Deus, sua fonte inesgotável e perfeita. O Deus Quem
nos criou à Sua imagem é o Artista original. O nosso senso estético procede também

nalmente nos vem a compreensão” (Paul Cézanne, Correspondência, p. 256. Também em H.B.
Chipp, Teorias da Arte Moderna, p. 18). (Para uma avaliação sensível da vida e obra de Cézanne,
recomendo: Fayga Ostrower, A Grandeza Humana: cinco séculos, cinco gênios da arte, Rio de Ja-
neiro: Campus, 2003, p. 109-127).
479
Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 21-22.
480
Herman Bavinck, Teologia Sistemática, p. 22. Do mesmo modo, veja-se: Michael S. Horton, O
Cristianismo e a Cultura, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 84.
481
Veja-se: Henry R. Van Til, O Conceito Calvinista de Cultura, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p.
127-129.
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de Deus, como por uma imagem.

Nós, como imagem, tentamos imitá-Lo de forma subjetiva, visto que somente
482
Deus possui de forma absoluta a objetividade do Belo em Suas perfeições.

É claro que esta criatividade imaginativa também foi afetada e manchada pelo pe-
cado e, o produto de nosso trabalho também refletirá essencialmente isso. Portanto,
indicando o senhorio de Cristo sobre todas as coisas, devemos submeter a nossa
habilidade de criar e recriar à realidade de nosso Senhor. Deste modo, o nosso
trabalho deve ser sempre uma expressão de culto a Deus por meio dos talentos que
Ele mesmo nos confiou.

Eu não preciso necessariamente de um motivo a mais para criar. A minha criação


poderá ser bela em sua temática e composição. Não preciso de justificativa ulterior.
O algo mais pode ser altamente estimulante e necessário, contudo, estará sempre
numa escala secundária. Posso compor uma música simplesmente para expressar a
minha fé em meio às angústias e incertezas da vida cotidiana; retratar a beleza do
amor entre um homem e uma mulher (que deve refletir o amor de Deus por Sua Igre-
já [Ef 5.25]), ou, ainda, fazer um poema que descreva a dor da saudade ou a espe-
rança de um reencontro. Nestas expressões, revelo a minha condição de criatura
que ama, sofre, deseja e tem expectativas. Nenhum destes sentimos é-nos estra-
nho, afinal, somos homens finitos, limitados, vivendo no tempo, na condição de pe-
cadores. Ainda que nem tudo que produzamos seja uma expressão pecaminosa, é,
sem dúvida, uma manifestação de nossa maravilhosamente complexa finitude, da
483
condição humana. Daí, talvez, o desejo implícito de que nossa arte permaneça;
há o “pressentimento de imortalidade”, que se manifesta no desejo e esperança de
que a nossa produção seja vista, lida, ouvida, admirada e interpretada também em
nossa posteridade.

A arte, portanto, é uma expressão de percepção de mundo. Esta percepção está


longe de ser neutra. Por isso, toda arte é existencial e axiológica. Aqui temos um
ponto final. Contudo, se pessoas são levadas a Cristo por meio desta música, desse
quadro ou daquela poesia, não torna a minha arte melhor ou pior. Isto, ainda que re-
levante, não muda a essência do que fiz (qualidade), do princípio que me orientou (a
Palavra) e do seu objetivo final que é glorificar a Deus. Há sempre o perigo de ser-
mos pragmáticos, apesar de cheios de boas intenções. Deus pode se valer de um
jumento, contudo, nem por isso devo me inspirar neste animal criado por Deus, co-
mo meio de expressão de minha natureza, ainda que Deus também o empregue pa-
ra demonstrar a nossa insanidade espiritual (Is 1.3/Sl 32.9/Jr 8.7). Ele toma dois a-

482
“.... A beleza não é produto de nossa própria fantasia, nem de nossa percepção subjeti-
va, mas tem uma existência objetiva, sendo ela mesma a expressão de uma perfeição Divi-
na” (Abraham Kuyper, Calvinismo, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 164).
483
“Estou convencido de que uma das grandes fraquezas na pregação evangélica nos úl-
timos anos é que nós perdemos de vista o fato bíblico de que o homem é maravilhoso. (...)
O homem está realmente perdido, mas isso não significa que ele não é nada. Nós temos
que resistir ao humanismo, mas classificar o homem como um zero não é o caminho certo
para resistir a ele. Você pode enfatizar que o homem está totalmente perdido e ainda ter a
resposta bíblica de que o homem é realmente grande. (...) Do ponto de vista bíblico, o ho-
mem está perdido, mas é grande” (Francis A. Schaeffer, Morte na Cidade, São Paulo: Cultura
Cristã, 2003, p. 60,61).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 109/233

nimais difíceis de trato: o boi e o jumento. Mostra que a obtusidade, a teimosia e a


dificuldade de condução destes animais dão-se pela sua própria natureza. O jumen-
to e o boi agem conforme as suas próprias estruturas criadas por Deus. No entanto,
assim mesmo, eles sabem reconhecer os seus donos, aqueles que lhes alimentam.
O homem, por sua vez, como coroa da criação, cedendo ao pecado perdeu total-
mente o seu discernimento espiritual; já não reconhecemos nem mesmo o nosso
484
Criador; antes lhe voltamos as costas e prosseguimos em outra direção.

Paulo diz que a nossa nova criação espiritual levada a efeito por Deus é uma obra
485
de arte. O homem é a obra-prima de Deus e os salvos têm o seu “homem interior”
486
criado de novo em Cristo Jesus: “Pois somos feitura (poi/hma = “obra de arte”) de-
487
le, criados (kti/zw) em Cristo Jesus para as boas (a)gaqo/j) obras, as quais Deus
de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10).

Somos filhos de Deus, criados não por qualquer um, mas, pelo próprio Deus (Sl
100.3). Deus nos recria em Cristo, o Deus Encarnado, não simplesmente para uma
admiração recíproca, mas, para que caminhemos nas boas obras preparadas de an-
temão, as quais, devido às nossas limitações, nem sempre nos parecerão belas,
contudo, foram ordenadas por Deus. Os caminhos propostos pela Sabedoria de
488
Deus são belos (Pv 3.17). A grande beleza estética na vida do homem está em
obedecer a Deus, seguindo os Seus caminhos!

Com base no texto de Efésios, podemos dizer que o homem é o mais belo poema

484
Jones explora com vivacidade a analogia do texto. Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de
Deus, não o nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 43-46.
485
Prefácio de Calvino à tradução do Novo Testamento feita por Pierre Olivétan. In: Eduardo Galasso
Faria, ed. João Calvino: Textos Escolhidos, São Paulo: Pendão Real, 2008, p. 14. W. Shakespeare,
Hamlet, São Paulo: Abril Cultural, (Obras Primas), 1978, II.2.
486
Poi/hma, quer dizer “o que é feito”, “obra”, “criação”, “obra-prima”, “obra de arte”, especialmente
um produto poético. O nome da obra de Aristóteles (384-322 a.C.) que foi traduzida para o português
com o título de “Poética”, em grego, intitula-se, Peri\ poihtikh/j. Aliás, são estas as palavras com as
quais Aristóteles inicia a sua obra. (Vejam-se entre outros: F.F. Bruce, The Epistle to the Ephesians, a
Verse-by-verse Exposition, Londres: Pickering & Inglis, 1961, in loc; M. Barth, The Anchor Bible:
Ephesians, Garden City, New York: Doubleday, 1974, Vol. I, in loc; Poi/hma: In: William F. Arndt; F.W.
Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, 2ª ed.
Chicago: University Press, 1979, p. 689; Poi/hma: A Lexicon Abridged from Liddell and Scott’s Greek-
English Lexicon, London: Clarendon Press, 1935, p. 568). Para um estudo mais detalhado do verbo
poie/w e de seus cognatos, vejam-se: H. Braun, poie/w: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological
Dictionary of the New Testament, Vol. VI, p. 458-484; C. F. Thiele, Trabalhar: In: Colin Brown, ed. ger.
O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. IV, p. 649-652.
487
Kti/zw, indica uma nova criação de Deus efetuada em Cristo (* Mc 13.19; Rm 1.25; 1Co 11.9; Ef
2.10,15; 3.9; 4.24; Cl 1.16 (2 vezes); 3.10; 1Ts 4.3; Ap 4.11; 10.6). Nesta palavra, como bem observa
Lenski, temos o equivalente ao verbo hebraico )frfB, “chamar à existência do nada” (R.C.H. Lens-
ki, The Interpretation of St. Paul´s Epistles to the Ephesians, Peabody, Massachusetts: Hendrickson
Publishers, 1998, p. 425). Para um estudo mais detalhado, vejam-se: W. Foerster, kti/zw: In: G. Kittel;
G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Vol. III, p. 1000-1035; H.H. Esser,
Criação: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,
Vol. I, p. 536-544.
488
“Os seus caminhos são caminhos deliciosos (~[;nO) (no`am) (= belos, amáveis), e todas as suas ve-
redas, paz” (Pv 3.17).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 110/233

de Deus, criado em Cristo Jesus nosso Senhor! O nosso novo nascimento deve nos
conduzir a uma maior sensibilidade para com a beleza da Criação de Deus. Contu-
do, a fé cristã não se expressa em mero culto à beleza, antes, em adoração ao Deus
criador de todas as coisas.

Deus como fonte de toda beleza, exercita a arte em toda a Sua Criação. O que
Schaeffer diz a respeito dos Alpes suíços, nós brasileiros, poderíamos falar com mui-
to maior propriedade a respeito das belezas diversificadas de nossa terra: “Vá aos
Alpes e observe as montanhas cobertas de neve. Não há como contestar.
Deus se interessa por beleza. Ele fez as pessoas para serem belas e a beleza
489
tem seu lugar na adoração a Deus”.

Portanto, ainda que a Bíblia não seja um livro que trate de teoria estética, oferece-
490
nos parâmetros para avaliar o sentido de arte e o seu propósito.

Na nova dispensação o Espírito continua atuando concedendo dons aos homens


para ensinar e dirigir a Igreja na Palavra (1Co 12.11/Ef 4.4-6,11-14).

4.2.3. Pronomes Pessoais São Usados para se Referir a Ele:

Jesus Cristo se refere ao Espírito usando um pronome pessoal


masculino, e)kei=noj, mesmo o substantivo grego Pneu+ma, sendo neutro. (Jo 14.17;
491
16.8,13,14). O Espírito prometido é o “Santo Espírito da Promessa” (Ef 1.13,14).

4.2.4. O Espírito é Chamado de Consolador:

Da mesma forma que o designativo consolador (Para/klhtoj) é apli-


cado a Cristo, indicando a Sua Personalidade (Jo 14.16; 1Jo 2.1), o mesmo pode ser
dito em relação à Pessoa do Espírito Santo. No texto de Jo 14.16, Jesus Cristo con-
forta os seus discípulos, prometendo-lhes “outro Consolador”, referindo-se a uma
pessoa numericamente distinta que viria substituir outra; um Consolador semelhante
492
a Ele. (Vd. também: Jo 14.26; 15.26; 16.7). Portanto, O Consolador é Jesus Cris-
to; o Espírito é outro, semelhante a Jesus Cristo, que veio substituí-lo neste
propósito.

O Consolador é Aquele que conforta, exorta, guia, instrui e defende; é um amigo


493
que assiste a seus amigos; essas atividades são próprias de uma pessoa não de

489
Francis A. Schaeffer, A Arte e a Bíblia, Viçosa, MG.: Editora Ultimato, 2010, p. 25.
490
Cf. Michael S. Horton, O Cristianismo e a Cultura, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p.
75ss.
491
Veja-se, entre outros, Millard J. Erickson, Christian Theology, p. 859-860.
492
Vd. Richard C. Trench, Synonyms of the New Testament, 7ª ed. revised and enlarged, London:
Macmillan and Co., 1871, § xcv, p. 337.
493
Vd. William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1974, Vol. 15,
(1Jo 2.1-2), p. 45-48; idem., Palavras Chaves do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1988 (re-
impressão), p. 153-158.
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uma mera força ou influência.

4.2.5. Atos Pessoais São-Lhe Atribuídos:

1) Trabalha: 1Co 12.11.


2) Intercede: Rm 8.26,27.
3) Proíbe: At 16.7
4) Decide: At 15.28.
5) Perscruta: 1Co 2.10.
6) Fala: At 13.2; Ap. 2.7.
7) Testifica: Jo 15.26; At 5.32; Rm 8.16.
8) Ensina: Ne 9.20; Jo 14.26; 1Co 12.3.
9) Consola: At 9.31.
10) Reprova: Jo 16.8-11.
11) Regenera: Jo 3.5; Tt 3.5.
12) Ora: Rm 8.26.
13) Guia à Verdade: Jo 16.13.
14) Glorifica a Cristo: Jo 16.14.
15) Chama os homens ao trabalho, dirigindo-os nesta atividade:
Is 61.1; At 13.2-4; 16.6,7; 20.28.

4.2.6. É Relacionado com Outras Pessoas:

O Espírito é relacionado com seres pessoais, não sendo confundido


com ninguém, nem com o Pai, nem com o Filho. “A própria associação do Espíri-
to, em tal conexão, com o Pai e com o Filho, visto que se admite serem eles
494 495
pessoas distintas, prova que o Espírito Santo é uma pessoa.” (Mt 28.19; Lc
496
1.35; Jo 14.26; 15.26; 16.7,13,14; At 15.28; 2Co 13.13; Ef 1.3-14; 2.13-22; 2Ts
2.13,14; 1Pe 1.1-2; Jd 20-21).

4.2.7. Em Alguns Textos o Espírito é Distinto do Seu Poder:

494
Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 391.
495
“Por meio do batismo, professamos reconhecer o Espírito como reconhecemos o Pai e o
Filho, e nos unimos tanto a um quanto aos outros. Se quando o Apóstolo diz que os coríntios
não foram batizados ei)j to\ o)/noma Pau=lou e quando ele diz que os hebreus foram batizados
em nome de Moisés, sua intenção era mostrar que os coríntios não haviam sido feitos discí-
pulos de Paulo, enquanto os hebreus o foram de Moisés; então, quando somos batizados
em nome do Espírito, o significado é que no batismo professamos ser seus discípulos; com-
prometemo-nos em receber suas instruções e submeter-nos ao seu controle. Colocamo-nos
na mesma relação com ele que temos com o Pai e com o Filho; reconhecendo-o como
uma pessoa de maneira tão distinta quanto reconhecemos a pessoalidade do Filho, ou a do
Pai” (Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 391).
496
“O Espírito Santo é colocado em igualdade absoluta com o Pai e com o Filho, como
Deus, e é considerado, de maneira idêntica com Eles, como origem de todo o poder e de
todas as bênçãos” (Loraine Boettner, Studies in Theology, p. 87).
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O Espírito não é confundido com o Seu poder nem com o daqueles


aos quais Ele capacita eficazmente. (Lc 1.35; 4.14; At 1.8; 2.4; 10.38; Rm 15.13;
1Co 2.4; 12.4,8,11).

4.2.8. Blasfêmia Contra o Espírito:

Independentemente da interpretação que dermos a este texto (Mt


12.31-32), o fato é que a blasfêmia é um pecado cometido contra uma pessoa. Aqui,
o Espírito é relacionado com o Filho no mesmo nível de honra e glória, destacando-
se ainda, como imperdoável a blasfêmia contra o Espírito. “A linguagem aqui u-
sada implica que é impossível cometer um pecado contra uma maior divin-
dade que o Espírito Santo, e que, de todos os pecados, o pecado contra o
Espírito Santo é o maior, tanto na sua natureza, como pelas suas consequên-
cias; tudo isso implica a Sua dignidade e divindade eternas”, conclui Boett-
497
ner.

3) DIVINDADE:

Vimos que o Espírito é uma pessoa; demonstraremos agora, que Ele


é uma Pessoa Divina.

No Antigo Testamento não encontramos a afirmação explícita de que Deus seja


um Espírito ou Ser espiritual ou imaterial; todavia, sugere a ideia de que o Espírito
498
é uma Pessoa distinta na Trindade. Também, as oposições feitas entre homem-
carne e Deus-espírito, evidenciam que Deus é Espírito e que o Seu Espírito é Deus
(Is 31.3). Assim, temos:

 O homem/carne representa tudo o que é frágil, perecível e transitório: Jó


10.4-5; Sl 78.39; Is 40.6.
499
 Deus/Espírito representa o Poder, a Eternidade e a imperecibilidade:
Gn 6.3; Jó 10.4-5; Jr 17.5-8.

O pensamento judeu está mais voltado à mobilidade do que à essencialidade. Ou


seja, a ênfase maior não é à essência do Espírito mas ao fato dele ser a fonte da vi-
500
da e do movimento. O Espírito é poderoso, eterno, imperecível.

Estas sugestões veterotestamentárias recebem maior força e clareza no Novo


Testamento, quando a divindade do Espírito é apresentada de forma mais límpida e

497
Loraine Boettner, Studies in Theology, p. 88. Turretini argumenta: “... Como a blasfêmia dirigi-
da contra o Pai e o Filho supõe que Eles são pessoas, do mesmo modo a blasfêmia contra o
Espírito Santo” (F. Turretin, Institutes of Elenctic Theology, Vol. I, III.30.9. p. 305).
498
Cf. J. Barton Payne, The Theology of the Older Testament, p. 173.
499
Vd. Geerhardus Vos, Biblical Theology: Old and New Testaments, p. 238; Sinclair B. Ferguson, O
Espírito Santo, p. 18.
500
Ver: Yves M.J. Congar, El Espíritu Santo, 2ª ed. Barcelona: Herder, 1991, p. 30.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 113/233

501 502
enfática (Cf. Jo 4.24; 2Co 3.17-18; Ef 2.22).

No Catecismo Maior de Westminster (1648), pergunta 11, lemos:

“Como podemos saber se o Filho e o Espírito Santo são Deus, iguais ao Pai?”

“As Escrituras revelam que o Filho e o Espírito são Deus iguais ao Pai, atri-
buindo-lhes os mesmos nomes, atributos, obras e culto, os quais só a Deus
503
pertencem.” (grifos meus).

A nossa abordagem será circunstancialmente diferente, embora envolva os


elementos mencionados no Catecismo.

a) O Espírito é Chamado Deus: At 5.3-4.

b) Recebe Nomes Divinos:


Podemos observar que as expressões “Palavra de Deus” e
“Palavra do Espírito” são normalmente usadas de forma intercambiável (Ex 17.7/Hb
3.7-9; Nm 12.6/2Pe 1.21; Sl 95.7-11/Hb 3.7-11; Is 6.3,8-10/At 28.25; Sl 78.17,21/At
7.51; Jr 31.31-34/Hb 10.15-17). (Vd. Também: Nm 20.2-13/Sl 106.32-33).

c) Perfeições Divinas São-Lhe Atribuídas:


1) Santidade: Jo 14.26/Is 63.10.
2) Onipresença e Imensidão: Sl 139.7-10/Jr 23.24.
3) Onipotência: Lc 1.35; Rm 15.19.
504
4) Onisciência: Is 40.13-14/Rm 11.34; 1Co 2.10-11 /Jo 16.13;
2Pe 1.21.

501
Quanto às possíveis interpretações desse texto, Vd. Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p.
72. Vd. também H. Bavinck, Our Reasonable Faith, p. 387-388.
502
Peço licença aqui, para recordar a analogia feita por B.B. Warfield (1851-1921), já aludida nestas
anotações: “Podemos comparar o Velho Testamento com um salão ricamente mobilado,
mas muito mal iluminado; a introdução de luz nada lhe traz que nele não estivesse antes;
mas apresenta mais, põe em relevo com maior nitidez muito do que mal se via anteriormen-
te, ou mesmo não tivesse sido apercebido. O mistério da Trindade não é revelado no Velho
Testamento; mas o mistério da Trindade está subentendido na revelação do Velho Testa-
mento, e aqui e acolá é quase possível vê-lo.” (B.B. Warfield, A Doutrina Bíblica da Trindade, p.
130-131).
503
Francis Turretini (1623-1687), o campeão da ortodoxia calvinista no século XVII, mesmo sem in-
dicar o Catecismo Maior de Westminster, segue esta mesma ordem na sua exposição a respeito da
Divindade do Espírito. (Vd. F. Turretin, Institutes of Elenctic Theology, Vol. I, III.30.12. p. 305ss.).
504
“O Espírito, aqui, aparece como substrato da autoconsciência divina, o princípio do co-
nhecimento de Deus acerca de Si mesmo. Em resumo, Ele é, simplesmente, o próprio Deus,
na essência do mais recôndito do Seu Ser. Tal como o espírito do homem é o centro da vida
humana, assim também o Espírito de Deus é o Seu próprio elemento vital. Como se pode,
pois, pensar que está subordinado a Deus, ou que recebe o Seu Ser de Deus?” (B.B. Warfield,
A Doutrina Bíblica da Trindade, p. 166).
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505
5) Liberdade Soberana: Is 40.13; 1Co 12.11; Hb 2.4.
506
6) Eternidade: Hb 9.14/Gn 1.2.
7) Glória: 1Pe 4.14.
8) Graça: Hb 10.29.
9) Vida: 1Co 15.45/Rm 8.11.

d) Realiza Obras Divinas:

O Espírito Santo como Ser Pessoal, é o agente executivo da


507
Trindade: “Tudo quanto Deus faz, ele o faz por meio do Espírito”. Todavia,
508
deve ser ressaltado que Ele é O agente, não uma agência.

1) Criação: Gn 1.2-3; Jó 33.4; Sl 33.6


2) Preservação e Governo: Jó 26.13; 33.4; Sl 104.30.
3) Inspiração das Escrituras: 2Pe 1.20,21/2Tm 3.16.
4) Regeneração: Jo 3.5-6/Tt 3.5.
5) Revela os eventos futuros: Lc 2.26; Jo 16.13; At 11.28; 1Tm
4.1.
6) Ressurreição: Rm 8.11; 1Pe 3.18.
7) Confere dons: 1Co 12.4-11.
8) Governa a Igreja:
a) Decisões: At 15.28.
b) Vocação de Seus servos: At 13.2; 20.28.
509
9) Iluminação: Ef 1.17,18.
10) Santificação: 2Ts 2.13; 1Pe 1.2.
11) Milagres: Mt 12.28.

e) É Adorado:
Lc 2.25-29; At 4.23-25/At 1.16,20/Ef 2.18. Nos textos de Atos, fi-
ca claro que o Deus adorado é identificado com o Espírito Santo que proferiu as Es-
crituras. Há o reconhecimento de que o Senhor é o Espírito. “O culto religioso de-
510
ve ser prestado a Deus o Pai, o Filho e o Espírito Santo – e só a Ele....”.

f) É Colocado em Igualdade com o Pai e o Filho:


Mt 28.19; 2Co 13.13. O fato das Escrituras relacionarem as Três
Pessoas da Trindade no Batismo e na Bênção Apostólica, atesta a igualdade

505
Calvino comenta: “A não ser que o Espírito fosse algo subsistente em Deus, de modo ne-
nhum outorgar-se-Lhe-iam arbítrio e vontade” (As Institutas, I.13.14).
506
O fato do Espírito preceder à criação de todas as coisas, aponta para a Sua eternidade. (Cf. F.
Turretin, Institutes of Elenctic Theology, Vol. I, III.30.12. p. 306.
507
Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 394.
508
C. Hodge, Systematic Theology, Vol. I, p. 447.
509
A palavra “espírito” aqui, tem sido entendida por diversos comentaristas, como referindo-se aO
Espírito Santo, ou à Sua influência (Vd. Vincent, Alford, Wuest, Foulkes, Russel Shedd, Champlin,
Salmond, Hendriksen, entre outros).
510
Confissão de Westminster, XXI.2.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 115/233

511
substancial da Trindade em poder e glória. Ser batizado no nome do Pai, do Fi-
lho e do Espírito, equivale a ser entregue a Eles, para a remissão dos pecados.
“Quando o nome de Deus se junta com o do Filho e do Espírito Santo, as-
sume o caráter de perfeição e plenitude (Mt 28.19); trata-se de pensa-
mento trinitariano, ainda que falte aqui uma formulação trinitariana preci-
512
sa.”

511
Vd. Catecismo Menor de Westminster, Pergunta 6; Catecismo Maior de Westminster, Perg. 9
512
H. Bietenhard, Nome: In: NDITNT., III, p. 281
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513
g) Peca-se contra o Espírito: Mt 12.31-32.

513
O substantivo que aparece neste texto (duas vezes), Blasfhmi/a, ocorre também em: Mt 15.19;
26.65; Mc 2.7; 3.28; 7.22; 14.64; Lc 5.21; Jo 10.33; Ef 4.31; Cl 3.8; 1Tm 6.4; Jd 9; Ap 2.9; 13.1,5,6;
17.3. O verbo, Blasfhme/w, é empregado mais vezes no Novo Testamento (35 vezes) e, aquele que
blasfema, Bla/sfhmoj, é utilizado 5 vezes (At 6.11,13; 1Tm 1.13 (aqui de forma substantivada); 2Tm
3.2; 2Pe 2.11).
O verbo Blasfhme/w, que tem o sentido de “injuriar”, “difamar”, ”insultar”, “caluniar”, “maldizer”,
“falar mal”, “falar para danificar”, etc., é formado de duas palavras, Bla/yij derivada de Bla/ptw =
“injuriar”, “prejudicar” (* Mc 16.18; Lc 4.35) e Fhmi/ = “falar”, “afirmar”, “anunciar”, “contar”, “dar a en-
tender”. A Blasfêmia tem sempre uma conotação negativa, de “maldizer”, “caluniar”, “causar má repu-
tação”, etc., contrastando com Eu)fhmi/a (“boa fama” * 2Co 6.8) e Eu)/fhmoj (“boa fama” * Fp 4.8)
(Eu)/ & fh/mh). No Fragmento 177 de Demócrito, lemos: “Nem a nobre palavra encobre a má a-
ção, nem é a boa ação prejudicada pela má palavra (Blasfhmi/a)”.
O pecado da blasfêmia, surge no coração do homem (Mt 15.19/Mc 7.21,22); ele consiste entre ou-
tras coisas, em presumir-se com prerrogativas divinas ou ser o próprio Filho de Deus (Mt 9.1-3; Mc
2.7/Lc 5.21/Jo 10.33, 36; Mc 14.60-64). A blasfêmia entristece o Espírito, por isso a sua prática deve
estar distante de nós (Ef 4.25-32/Cl 3.8; Tt 3.2; 1Pe 4.1-4). A falsa doutrina propicia a prática da blas-
fêmia (1Tm 6.3,4), bem como os falsos mestres (2Pe 2.1-2,10-12). Esta será uma das características
dos homens nos últimos tempos (2Tm 3.1-2). Paulo diz que a sua perseguição aos cristãos houvera
sido tão pesada, que estes foram obrigados a blasfemar (At 26.11); sendo ele mesmo um blasfemo
(1Tm 1.13). O mal testemunho dos judeus contribuía para que os gentios blasfemassem o nome de
Deus (Rm 2.24, citando Is 52.5; compare com a orientação de Paulo, 1Tm 6.1; Tt 2.5). No entanto,
não devemos nos entristecer se somos blasfemados por causa de nossa fidelidade a Deus; esta é
uma evidência de que o Espírito glorioso de Deus repousa sobre nós (1Pe 4.14). A blasfêmia é uma
prática própria da “besta”, que blasfema contra o nome de Deus (Ap 13.1,5,6/17.3). Parece que os
efésios estavam combatendo Paulo, sob a insinuação de que ele havia blasfemado contra a deusa
Diana (At 19.32,37). Alguns homens foram subornados para dizer que ouviram Estevão blasfemar
contra Deus e Moisés (At 6.11-13). Bla/sfhmoj “expressa o ‘caluniar’ de uma pessoa; é a ex-
pressão mais forte da difamação pessoal.” (H. Währisch & C. Brown, Blasfêmia: In: NDITNT., I, p.
312). Xerxes quando convoca seus soldados a marcharem contra Atenas, diz que os atenienses
“blasfemaram” (injuriaram, insultaram) contra o seu pai e o seu povo (Heródoto, História, VII.8).
Em Platão (427-347 a.C.), é considerada blasfêmia atribuir aos deuses determinadas formas hu-
manas, conforme fizeram primariamente os poetas e, as mães, que assim aprendiam e transmitiam
aos seus filhos estas estórias (A República, 7ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1993), II,
381e).
No Novo Testamento este grupo de palavras é usado predominantemente no sentido religioso:
“caluniar”, “difamar”. O verbo Blasfhme/w empregado de forma absoluta, indica uma blasfêmia con-
tra Deus (Cf. Mt 26.65a; Mc 2.7; Jo 10.36); do mesmo modo ocorre com o substantivo Blasfhmi/a
(Cf. Mt 26.65b; Mc 14.64; Lc 5.21; Jo 10.33, etc.). “No NT o conceito de blasfêmia é controlado
completamente pelo pensamento de violação do poder e majestade de Deus. Blasfêmia
pode ser dirigida imediatamente contra Deus (Ap 13.6; 16.11,21; At 6.11), contra o nome de
Deus (Rm 2.24; 1Tm 6.1; Ap 16.9), contra a Palavra de Deus (Tt 2.5), contra Moisés e Deus e
consequentemente contra o fundamento da revelação na Lei (At 6.11).” (H.W. Beyer,
Blasfhmi/a: In: TDNT., I, p. 622-623). Na LXX, este pensamento é predominante: a blasfêmia é con-
tra a majestade e glória de Deus. Para o judeu, falar de forma ímpia contra Moisés ou a Lei, significa
blasfemar (Vd. At 6.11). Para o judaísmo do período anterior ao Cristianismo — conforme interpreta-
ção que faziam de Dt 21.22-23 —, morrer numa cruz significava uma blasfêmia, sendo este tipo de
morte uma maldição divina (Vd. Gl 3.13) (Cf. O. Hofius, Blasfhmi/a: In: Horst Balz & Gerhard
Schneider, eds. Exegetical Dictionary of New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1978-
1980, Vol. I, p. 221. (Doravante citado como EDNT).
Hendriksen que traduz “blasfêmia” como sendo uma “irreverência desafiante”, comentando Mt
12.31,32, diz: “A blasfêmia contra o Espírito Santo é o resultado de gradual progresso no pe-
cado. Entristecer o Espírito (Ef 4.30), se não há arrependimento, leva à resistência ao Espírito
(At 7.51), a qual, se persistida, se desenvolve até que o Espírito é apagado (1Ts 5.19).” (Willi-
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 117/233

A Imperdoabilidade deste pecado, envolve o fato dEle ser Deus.


Se o Espírito fosse apenas uma força, não se pecaria contra Ele; se por outro lado
fosse apenas um ser pessoal finito, o pecado contra Ele não seria imperdoável... “Se
não fosse Deus, o pecado cometido contra Ele seria considerado menos o-
514
dioso do que quando cometido contra o Pai ou o Filho.” (Vd. Is 63.10; At
5.3).

Bavinck comenta enfaticamente, apresentando também, um tom pastoral:

“O pecado do endurecimento alcança sua expressão máxima na


blasfêmia contra o Espírito Santo. Jesus fala sobre isso em um contexto de
séria desavença com os fariseus. Quando Ele curou um homem que era
cego e mudo e que estava possuído por um demônio, as multidões
ficaram tão maravilhadas que clamaram: ‘Esse não é o Filho de Davi, o
Messias, prometido por Deus aos nossos pais?’.
“Mas essa honra dada a Cristo levantou ódio e inimizade entre os fari-
seus e eles declararam o contrário, disseram que Cristo expulsava demô-
nios por Belzebu, o príncipe dos demônios. Dessa forma eles assumiram
uma posição diametralmente oposta a Cristo. Em vez de reconhecê-lo
como o Filho de Deus, o Messias, que expulsa os demônios pelo Espírito de
Deus e que estabelece o reino de Deus na terra, eles disseram que Cristo é
um cúmplice de Satanás e que Sua obra é diabólica. Contra essa terrível
blasfêmia Jesus preserva sua dignidade refutando a afirmação dos fariseus
e mostrando sua insensatez e ao final de Sua réplica Ele acrescenta essa
grave admoestação: ‘Todo pecado e blasfêmia serão perdoados aos

am Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: Mateus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001,
Vol. 2, p. 39).
Seja qual for as nuanças interpretativas, este pecado, segundo nos parece, é resultado de uma re-
jeição consciente, deliberada, arrogante e despreocupada da obra do Espírito em Cristo, atribuindo-a
de forma provocativa e, por isso blasfema, à Satanás. Este pecado é imperdoável porque quem o
comete, não está disposto a arrepender-se e, portanto, não deseja ser salvo. Rejeitar o Espírito de
Cristo significa rejeitar os atos salvadores da Trindade: do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O Espíri-
to procede do Pai e do Filho; a Sua obra consiste em dar testemunho do Pai e do Filho; rejeitá-lo sig-
nifica repudiar o Seu Ofício. (Sugestões para leitura: H.W. Beyer, Blasfhmi/a: In: TDNT., I, 621-625;
William Hendriksen, Comentário do Novo Testamento: Mateus, p. 36-39; O. Hofius, Blasfhmi/a: In:
EDNT., I, p. 219-221; W. Währisch & C. Brown, Blasfemar: In: NDITNT., I, p. 312-316; P.H. Davis,
Blasfêmia e Blasfêmia contra o Espírito Santo: In: EHTIC., I, p. 196-198; R.P. Martin, Blasfêmia: In:
J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Cristã Editorial, 1966, Vol., I, p.
221-222; Frank Stagg, Mateus: In: Clifton J. Allen, ed. ger. Comentário Bíblico Broadman, Rio de Ja-
neiro: JUERP., 1983, Vol. VIII, p. 190 (Doravante citado como CBB); Russel N. Champlin, O Novo
Testamento Interpretado, Guaratinguetá, SP.: A Voz Bíblica, (s.d.), Vol. I, p. 391-392(Doravante ci-
tado como NTI); J.A. Broadus, Comentário do Evangelho de Mateus, 3ª ed. Rio de Janeiro: Casa
Publicadora Batista, 1966, Vol. I, p. 356-358; Alexander B. Bruce, The Synoptic Gospels: In: W. Ro-
bertson, Nicoll, ed. The Expositor’s Greek Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983
(Reprinted), Vol. I, p. 188-190; William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La
Aurora, 1973, Vol. II, p. 48-53; J.I. Packer, Teologia Concisa, Campinas, SP.: Luz para o Caminho,
1999, p. 225-226; Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 65-66; Herman Bavinck, Our Reasonable
Faith, p. 252-254; Edwin H. Palmer, El Espiritu Santo, Edinburgh: El Estandarte de la Verdad, (s.d.),
Edição Revista, p. 226-238).
514
John L. Dagg, Manual de Teologia, São Paulo: FIEL., 1989, p. 192.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 118/233

homens; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Se alguém


proferir alguma palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe-á isso perdoado;
mas se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será isso perdoado,
nem neste mundo nem no porvir’ (Mt 12.31,32).
“As próprias palavras e o contexto no qual elas aparecem claramente
indicam que a blasfêmia contra o Espírito Santo não acontece no come-
ço nem no meio do caminho do pecado, mas no fim. Ela não consiste de
uma dúvida ou de incredulidade a respeito do que Deus revelou, nem de
uma resistência ou de uma murmuração contra o Espírito Santo, pois esses
pecados podem ser cometidos também pelos crentes. Mas a blasfêmia
contra o Espírito Santo acontece somente quando Ele se apresenta à
consciência humana com uma rica revelação de Deus e com uma pode-
rosa iluminação espiritual que o homem fica completamente convencido
em seu coração e em sua consciência da verdade da divina revelação.
(Hb 6.4-8; 10.25-29; 12.15-17).
“O pecado consiste em que essa pessoa, apesar de toda a revelação
objetiva e da iluminação subjetiva, a despeito do fato de que ela tem co-
nhecido e provado a verdade como verdade, de forma consciente e
com intento deliberado diz que a verdade é mentira e castiga Cristo co-
mo instrumento de Satanás. Nesse pecado o humano se torna diabólico.
Não, isso não consiste de dúvida e incredulidade, mas de um rompimento
total da possibilidade de arrependimento (1Jo 5.16). Esse pecado vai mui-
to além da dúvida, da incredulidade e do arrependimento. Apesar do fa-
to de que o Espírito Santo é reconhecido como sendo o Espírito do Pai e
do Filho, Ele é, em um testemunho diabólico, blasfemado. Nesse ápice o
pecado se torna tão descaradamente demoníaco que lança fora todo
vestígio de vergonha, desfaz-se de toda vestimenta e se apresenta nu e
cru, despreza todas as aparentes razões, manifesta todo o seu prazer no
mal e se levanta contra a vontade e a Graça de Deus. É, portanto, uma
grave admoestação essa que Jesus dá em Seu ensino sobre a blasfêmia
contra o Espírito Santo. Mas nós não devemos nos esquecer do conforto
que está contido nesse ensino, pois se esse pecado é o único pecado im-
perdoável, até mesmo os maiores e os mais severos podem ser perdoados.
Eles podem ser perdoados não através de exercícios penitenciais huma-
515
nos, mas pelas riquezas da Graça de Deus.”

Calvino resume este pecado com a palavra “apostasia”, um abandono consciente


e deliberado da fé cristã. Como ele mesmo define: “A pessoa apóstata é alguém
que renuncia a Palavra de Deus, que extingue sua luz, que se nega a provar
o dom celestial e que desiste de participar do Espírito. Ora, isso significa uma
516
total renúncia de Deus.” Em outro lugar: “O pecado contra o Espírito Santo
só é cometido quando os homens mortais deflagram deliberadamente guer-
ra contra Deus, de tal sorte que extingue-se a luz que o Espírito lhe oferecera.

515
Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, p. 253-254.
516
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 6.4), p. 151.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 119/233

517
Essa é uma espantosa perversidade e uma monstruosa temeridade.” No
entanto, acrescenta: “Mas se alguém se ergueu novamente de sua queda,
podemos concluir que, por mais gravemente tenha ele pecado, o mesmo
518
não é culpado de apostasia.” Por outro lado, “Se foi devido à ignorância
que Deus perdoara a Paulo suas blasfêmias, os que blasfemam consciente e
519
deliberadamente não devem esperar o perdão.” Logo, aquele que sincera-
mente se arrepende de seus pecados, por mais graves que sejam, não cometeu o
pecado descrito como imperdoável. Portanto, “os eleitos se acham fora do perigo
da apostasia final, porquanto o Pai que lhes deu Cristo, seu Filho, para que
sejam por Ele preservados, é maior do que todos, e Cristo promete [Jo 17.12]
520
que cuidará de todos eles, a fim de que nenhum deles venha a perecer.”

Ao concluir seu comentário de 1 Timóteo, Calvino apresenta o remédio preventivo


contra a apostasia: “Caso não queiramos ser terrificados pela ideia de
apostasia da fé, então que nos apeguemos à Palavra de Deus em sua
integridade e detestemos a sofística e com ela todas as sutilezas que são
521
odiosas corrupções da piedade.”

h) O Templo do Espírito é o Templo de Deus: (Rm 8.9-10; 1Co


3.16; 6.19)
O que nos qualifica como “templos de Deus”, é a habitação do
Espírito Santo em nós. Logo, somos “Templo do Espírito”, porque Deus habita em
nós.

4) ESPÍRITO DE JUSTIÇA E PURIFICADOR: (IS 4.4/JO 16.8).

A manifestação do Espírito indica a presença do Reino de Deus.


Uma das características do Reino é a justiça no Espírito (Rm 14.17).

5) ESPÍRITO DA PROMESSA: (EF 1.13/AT 1.4,5; 2.33).

O Espírito cumpre as promessas de Cristo em nós, sendo Ele


mesmo parte do cumprimento daquilo que Jesus prometeu (Jo 14.26; 16.7).

6) ESPÍRITO DA VERDADE: (JO 15.26; 16.13).

O Espírito dá testemunho de Cristo, que é a Verdade (Jo 15.26/Jo

517
João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.13), p. 41.
518
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 6.6), p. 155.
519
João Calvino, As Pastorais, (1Tm 1.13), p. 41.
520
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 6.4), p. 153.
521
João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.21), p. 187.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 120/233

14.6); guia-nos à verdade ( = Cristo, Jo 16.13/Jo 14.6) e age através da Palavra, que
é a Verdade de Deus, criando em nós a fé salvadora e nos conduzindo à santifica-
ção (Jo 17.17,19; Rm 10.17/2Co 3.18; 2Ts 2.13; 1Pe 1.2).

7) ESPÍRITO DA VIDA: (RM 8.2).

Temos vida através do Espírito que nos regenerou (Tt 3.5),


conduzindo-nos a Cristo (Jo 10.10). Dele receberemos a vida eterna.

8) ESPÍRITO DA GRAÇA: (HB 10.29).

Ele aplica a graça de Deus em nossos corações, fazendo-nos


aceitar os merecimentos de Cristo que graciosamente nos são oferecidos.

9) ESPÍRITO DA GLÓRIA: (1PE 4.13-14).

O Espírito é Glorioso: Toda a Trindade é Gloriosa na beleza


harmoniosa de Suas eternas perfeições. A glória do Pai permanece invisível a todos
nós até que ela se torne visível em Cristo; isto acontece pelo Espírito, Quem nos
conduz a Ele: O Filho revela-nos o Pai, o Espírito revela-nos o Filho. O Espírito
glorifica a Cristo (Jo 16.14) e, é em nós o embrião da glória futura (Rm 8.18; 2Co
4.17).

10) ESPÍRITO CONSOLADOR: (JO 14.26).

Ele nos consola de várias maneiras. Creio que Ele O faz de modo
522
efetivo, testificando continuamente em nós, que somos filhos de Deus (Rm 8.16).
É pelo testemunho do Espírito que a graça de Deus é-nos conscientizada. “Nossa
mente, por iniciativa própria, jamais nos comunicaria tal segurança se o
523
testemunho do Espírito não a precedesse.”

11) ESPÍRITO SANTO: (MT 3.11; LC 12.12; JO 1.33; AT 5.32; 7.51;


8.15, ETC.).

Este é o nome que tem primazia nas Escrituras para referir-se ao


Espírito. Isto ocorre “para indicar tanto sua natureza quanto suas operações.
Ele é absolutamente santo em sua própria natureza, e a causa da santidade
524
das criaturas”.

522
Vd. A.A. Hoekema, Salvos pela Graça, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997, p. 36.
523
João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.16), p. 279.
524
Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 389.
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12) A PROCEDÊNCIA DO ESPÍRITO SANTO:

O Espírito Santo é chamado de Espírito do Pai (Mt 10.20; Lc 11.13;


1Co 6.19; 1Ts 4.8) e Espírito do Filho (Gl 4.6; Fp 1.19; 1Pe 1.11), sendo ENVIADO
POR DEUS (At 5.32): Pai (Jo 14.26; Gl 4.6) e Filho (Jo 15.26).

Segundo me parece, o texto que mais especificamente trata desta relação


Trinitária é o de Romanos, quando Paulo diz: “Vós porém, não estais na carne,
mas no Espírito, se de fato o Espírito de Deus habita em vós. E se alguém não tem o
Espírito de Cristo, esse tal não é dele” (Rm 8.9).

Paulo estabelece uma relação de identificação entre o Espírito de Deus e o


Espírito de Cristo, que é um e o mesmo Espírito que habita em nós e nos identifica
como propriedade de Deus e de Cristo. (Vd. também: 2Co 1.21,22; 5.5; Ef 1.13,14;
4.4,30). “O mesmo Espírito é comum ao Pai e ao Filho, o qual é com eles de
525
uma só essência e possui a mesma Deidade eterna.”

A relação Trinitária foi compreendida pela Igreja da seguinte forma: Quando fala-
mos do Filho em relação ao Pai, dizemos que aquele é gerado (gennhqe/nta) do Pai
e quando nos referimos ao Espírito, declaramos que Ele é procedente
526 527
(e)kporeuo/menon) do Pai e do Filho. Esta relação ocorre eternamente, sem
princípio nem fim, jamais havendo qualquer tipo de mudança na essência (ou)si/a)
528
divina, nem qualquer tipo de subordinação ontológica; “a subordinação pre-
tendida consiste apenas naquilo que concerne ao modo de subsistência e
operação, implícito nos fatos bíblicos de que o Filho procede do Pai, e o Espí-
rito procede do Pai e do Filho, e de que o Pai opera através do Filho, e o Pai
529
e o Filho operam através do Espírito”. Portanto, a subordinação não é ontológi-
ca mas sim existencial (econômica). Deste modo, a nomenclatura Pai, Filho e Espí-
rito Santo, é apenas um designativo que implica uma correlação intertrinitária que é
necessária e eterna, não uma primazia de essência, no que resultaria em diferenças

525
João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.9), p. 271.
526
gennhqe/nta e e)kporeuo/menon são expressões usadas no Credo Niceno-Constantinopolitano
(381). Quanto à distinção das expressões, e o significado da “procedência”, confesso minha ignorân-
cia, juntamente com Agostinho (354-430) e João Damasceno (c. 675-749) (Vd. F. Turretin, Institutes
of Elenctic Theology, Vol. I, III.31.3; J. Oliver Buswell, A Systematic Theology of the Christian
Religion, Grand Rapids, Michigan: Zondervan, © 1962, I, p. 119-120).
527
Como já mencionamos supra, a expressão “e do Filho” em latim “Filioque”, foi acrescentada no
Concílio local de Toledo (589).
528
“O Pai é entendido como o primeiro princípio (archê) da Trindade e, por conseguinte,
como o princípio unificador da hypostases [u/po/stasij]. O Filho é gerado do Pai, e o Espírito
procedente do Pai através do Filho” (Trinitas: In: Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek
Theological Terms, 4ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 308). No entanto, a
expressão do autor, “o Espírito procedente do Pai através do Filho” não corresponde à compre-
ensão de Nicéia e Constantinopla, visto que esta fórmula, de certo modo, inspirada em Gregório de
Nissa (c. 335-c.394) – que modelou a teologia oriental –, foi rejeitada por Agostinho (354-430), para
evitar qualquer tipo de subordinação (Agostinho, A Trindade, V.14.15. p. 208-210).(Vd. J.N.D. Kelly,
Doutrinas Centrais da Fé Cristã, p. 198).
529
Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 346.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 122/233

530
de honra e glória.

Como vimos, o Quarto Concílio Ecumênico, realizado em Calcedônia (8-


31/10/451) ratificou o Credo de Nicéia (325) e o de Constantinopla (381). O seu
objetivo era estabelecer uma unidade teológica na Igreja. Apesar de sua
preocupação dominante ser concernente às questões referentes ao Filho,
encontramos na sua declaração termos que se tornaram padrão dentro da teologia
para se referirem à Trindade.

Retornando à nossa linha mestra, devemos enfatizar que a relação Trinitária tem
sido compreendida pela Igreja como uma procedência eterna e necessária, do Espí-
rito da parte do Pai e do Filho. As palavras de Agostinho (354-430) tornaram-se basi-
lares na compreensão Ocidental: “O Espírito Santo, conforme as Escrituras, não é
531
somente Espírito do Pai, nem somente o Espírito do Filho, mas de ambos”.
Daí que, a Confissão de Westminster (1647), refletindo esta compreensão bíblica
conforme a tradição teológica ocidental, dizer: “O Espírito Santo é eternamente
procedente do Pai e do Filho” (II.3) (Jo 15.26; Gl 4.6).

Edwin H. Palmer, coloca a questão da “procedência” do Espírito nos seguintes


termos:

“Sua procedência não quer dizer que seja inferior ao Pai e ao Filho, do
mesmo modo que pelo fato do Filho ser gerado tampouco significa que
não esteja num plano de igualdade com o Pai. O segredo está no fato de
que o Espírito foi ETERNAMENTE espirado, do mesmo modo que o Filho foi
eternamente gerado. Nunca houve um tempo em que o Espírito não fosse
espirado. Tem coexistido eternamente com o Pai e o Filho. Dizer que pro-
cedeu de, ou foi espirado do Pai e do Filho não implica que seja menos
Deus; só fala da relação que sustenta eternamente com as outras duas
532
Pessoas da Trindade”.

530
“A propriedade peculiar e pessoal da terceira pessoa é expressa pelo título Espírito. Esse
título não pode expressar sua essência, visto que sua essência é também a essência do Pai e
do Filho. Ele deve expressar sua eterna relação pessoal com as outras pessoas divinas, visto
ser ele uma pessoa constantemente designada como o Espírito do Pai e o Espírito do Filho.”
(Archibald A. Hodge, Confissão de Fé Westminster Comentada por A.A. Hodge, São Paulo: Editora
os Puritanos, 1999, Capítulo II, p. 91). (Vd. também, A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Ba-
rata & Sanches, 1895, p. 151-152).
531
Agostinho, ATrindade, São Paulo: Paulus, 1994, XV.17.27. p. 522. Vd. também: IV.20.29; V.14.15;
XV.17.29; 26.47; 27.50.
532
Edwin H. Palmer, El Espiritu Santo, p. 15. Berkhof coloca desta forma: “O eterno e necessário
ato da primeira e da segunda pessoas da Trindade pelo qual elas, dentro do Ser Divino, vêm
a ser a base da subsistência pessoal dO Espírito Santo, e propiciam à terceira pessoa a posse
da substância total da essência divina, sem nenhuma divisão, alienação ou mudança” (L.
Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 98). [Vd. também, A.H.
Strong, Systematic Theology, 35ª ed. Valley Forge, Pa.: Judson Press, 1993, p. 340-343; F. Turretin,
Institutes of Elenctic Theology, Vol. I, III.31.3ss. p. 308-310; A.A. Hodge, Esboços de Theologia, p.
151-152; Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 394; Loraine Boettner, Studies in Theology, p. 122-
124; Herman Bavinck, The Doctrine of God, p. 310ss; L. Berkhof, Teologia Sistemática, p. 97-98; R.L.
Dabney, Lectures in Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1985
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 123/233

Os nossos termos serão sempre limitados, meras alusões à complexidade do Ser


533
divino, por isso, podemos no máximo, trabalhando dentro dos limites da Revela-
ção, ter uma compreensão pálida deste mistério, que certamente ultrapassa em mui-
to a nossa percepção e mais ainda, à nossa linguagem, no esforço de expressar o
534
que percebemos; no entanto, se a doutrina da Trindade foi-nos revelada nas Es-
crituras, fazendo parte do desígnio de Deus, tem por certo “utilidade” para a vida da
535 536
Igreja; nada na Escritura é ocioso (At 20.27/2Tm 3.16); ocioso e ingrato, é dei-
537
xar de considerar “todo o desígnio de Deus” ou tentar ultrapassá-lo. Quanto a es-
te último perigo, talvez mais tentador para nós teólogos, cabe a advertência de
Calvino (1509-1564), ao encerrar o capítulo sobre a Trindade:

“Espero que pelo que temos dito, todos os que temem a Deus verão
que ficam refutadas todas as calúnias com que Satanás tem pretendido
até o dia de hoje perverter e obscurecer nossa verdadeira fé e religião. Fi-
nalmente confio em que toda esta matéria haja sido tratada fielmente,
para que os leitores refreiem sua curiosidade e não suscitem, mais do que
é lícito, molestas e intrincadas disputas, pois não é minha intenção satisfa-
zer aos que colocam seu prazer em suscitar sem medida algumas novas
especulações.
“Certamente, nem conscientemente nem por malícia omiti o que pode-
ria ser contrário a mim. Mas como meu desejo é servir à Igreja, me pare-
ceu que seria melhor não tocar nem revolver outras muitas questões de
pouco proveito e que resultariam enfadonhas aos leitores. Porque, de que
serve discutir se o Pai gera sempre? Tendo como indubitável que desde a
eternidade há três Pessoas em Deus, este ato contínuo de gerar não é

(Reprinted), XIX, p. 210-211; Heber Carlos de Campos, O Ser de Deus e os Seus Atributos, São
Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 127ss.].
533
Este tipo de comentário poderia induzir o leitor à compreensão de que desvalorizamos os termos
teológicos; o que estaria extremamente distante de nossa convicção e perspectiva. Os termos teoló-
gicos, em grande parte, são expressões humanas na elaboração da fé conforme revelada nas Escri-
turas; portanto, limitados; no entanto, servem de referências para expressar a compreensão bíblica
formulada através da história. Desprestigiar gratuitamente as expressões teológicas, tem, em geral,
contribuído para o empobrecimento da doutrina bíblica e, consequentemente o enfraquecimento da
vida cristã.
534
“A linguagem é a primeira tentativa do homem para articular o mundo de suas percep-
ções sensoriais. Esta tendência é uma das características fundamentais da linguagem hu-
mana” (Ernst Cassirer, Antropologia Filosófica, 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1977, p. 328).
535
“O artigo sobre a santa Trindade é o coração e o núcleo de nossa confissão, a marca
registrada de nossa religião, e o prazer e o conforto de todos aqueles que verdadeiramente
crêem em Cristo.
“Essa confissão foi a âncora na guerra de tendências através dos séculos. A confissão da
santa Trindade é a pérola preciosa que foi confiada à custódia da Igreja Cristã.” (Herman
Bavinck, Our Reasonable Faith, p. 145).
536
Vd. J. Calvino, As Institutas, III.21.4.
537
Calvino também aqui tem algo dizer: “A Escritura é a escola dO Espírito Santo, na qual, co-
mo nada é omitido não só necessário, mas também proveitoso de conhecer-se, assim tam-
bém nada é ensinado senão o que convenha saber.” (J. Calvino, As Institutas, III.21.3).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 124/233

538
mais que uma fantasia supérflua e frívola”.

Por outro lado, se os termos são imperfeitos e imprecisos, devemos sempre


lembrar que somente a Escritura é inspirada e infalível, não os nossos termos e
interpretações. O ponto, portanto, que deve ser priorizado, é a realidade por trás dos
termos. Procede esta compreensão?, deve ser sempre a pergunta do estudante
sincero, desejoso de conhecer mais a Palavra de Deus. Bavinck mais uma vez é-nos
imprescindível em suas observações a respeito da elaboração doutrinária da Igreja:

“Para satisfazer a essa exigência [tratar da diversidade e unidade] a


Igreja Cristã e a teologia cristã primitiva fizeram uso de várias palavras e
expressões que não podem ser encontradas literalmente nas sagradas
Escrituras. A Igreja começou a falar da essência de Deus e de três pessoas
nessa essência do Ser divino. Ela falava de características triúnas e
trinitárias, ou essenciais e pessoais, da eterna geração do Filho e da
procedência do Espírito Santo do Pai e do filho, e outros termos
semelhantes.
“Não há razão pela qual a Igreja Cristã e a teologia cristã não devam
usar esses termos e expressões, pois as Sagradas Escrituras não foram da-
das por Deus à Igreja para ser desconsideradamente repetida, mas para
ser entendida em toda a sua plenitude e riqueza, e para ser reafirmada
em sua própria linguagem para que dessa forma possa proclamar os po-
derosos feitos de Deus. Além disso, tais termos e expressões são necessários
para manter a verdade da Escritura contra seus oponentes e colocá-la
em segurança contra equívocos e erros humanos. E a história tem
mostrado através dos séculos que a despreocupação com esses nomes e
a rejeição deles conduz a vários afastamentos da confissão.

“Ao mesmo tempo nós devemos, no uso desses termos, nos lembrar que
eles são de origem humana e, portanto, limitados, sujeitos a erro e falíveis.
Os Pais da Igreja sempre reconheceram isso. Por exemplo, eles afirmavam
que o termo pessoas, que foi usado para designar as três formas de exis-
tência no Ser divino não fazem justiça à verdade, mas servem de ajuda
para manter a verdade e eliminar o erro. A palavra foi escolhida, não por-
que fosse a mais precisa, mas porque nenhuma outra melhor foi encon-
trada. Nesse caso a palavra está atrás da ideia, e a ideia está atrás da re-
alidade. Apesar de não poder preservar a realidade a não ser dessa for-
ma, nós nunca devemos nos esquecer de que é a realidade que conta, e
não a palavra. Certamente na glória outras e melhores palavras e expres-
539
sões serão colocadas em nossos lábios”.

Na procedência do Espírito da parte do Pai e do Filho temos uma relação trinitária


ontológica e econômica; em outros termos, partindo do princípio de que a revelação
de Deus alude à essência de Deus; através da manifestação da Trindade, vemos,

538
Juan Calvino, Institución de la Religión Cristiana, Rijswijk, Países Bajos: Fundación Editorial de Li-
teratura Reformada, 1967 (Nueva Edición Revisada), I.13.29.
539
Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, p. 157-158.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 125/233

limitadamente, aspectos da relação essencial da Trindade. Privar-nos desta compre-


ensão (procedência do Pai e do Filho) equivale a empobrecer a nossa compreensão
de Deus conforme nos foi dado conhecer na Palavra e definitivamente em Jesus
540
Cristo. Corremos o risco de cair parcialmente num agnosticismo teológico.

7. A TRINDADE E A NOSSA SALVAÇÃO:

“É uma grande bênção ter um Deus


que não é uma Pessoa senão três.
Constitui uma Trindade abundante.
Porque não só um Pai que nos ama e
cuida de nós, senão também um Cristo
que trouxe salvação e intercede por nós
e um Espírito Santo que mora dentro de
nós e aplica a salvação à nossa vida” –
541
Edwin H. Palmer.

“É somente sob a direção do Espírito que tomamos posse de Cristo e de


542
todos os seus benefícios”. O Espírito é chamado de “Espírito da Graça” (Hb
543
10.29/Zc 12.10), porque é Ele Quem aplica a graça de Deus aos pecadores elei-
tos, conduzindo-os progressivamente à conformação da imagem de Cristo. O Espíri-
544
to é “comunicador da graça”. Este ministério tem início, quando o Espírito nos
leva a aceitar a mensagem de perdão dos nossos pecados. O Espírito anuncia que
chegou o tempo da salvação, o qual é caracterizado pelo perdão para todos aqueles
que se arrependem de seus pecados. Portanto, quando tratamos deste tópico, não
estamos simplesmente especulando, antes, mostrando como está doutrina (Trinda-
de) está amparada nas Escrituras e como ela tem uma relação direta com a experi-
545
ência do cristão resultante da sua salvação em Cristo.

Sem as obras da Trindade, jamais seríamos salvos pela graça. A graça de Deus,
que é personificada em Cristo, é apenas um lado das obras redentoras do Deus
Triúno. Toda a Trindade está comprometida na salvação do Seu povo, tendo cada
uma das Pessoas da Santíssima Trindade, conforme o Conselho trinitário, um papel
fundamental.

A obra do Espírito é distinta da obra do Pai e do Filho porém, não é independente.


A Trindade opera conjuntamente, tendo o mesmo propósito eterno: a glória do pró-

540
Vd. Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 102.
541
Edwin H. Palmer, El Espiritu Santo, Edinburgh: El Estandarte de la Verdad, (s.d.), Edição Revis-
ta, p. 14
542
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 13.13), p. 271.
543
Vd. Hermisten M.P. Costa, A Pessoa e Obra do Espírito Santo, São Paulo: 2006, p. 65ss.; A.W.
Pink, Os Atributos de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 74.
544
A.W. Pink, Os Atributos de Deus, p. 74.
545
Ver: Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cris-
tã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 378.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 126/233

546
prio Deus por intermédio da salvação do Seu povo (Is 43.7/Ef 1.6; 1Pe 2.9,10). A
Teologia Reformada, fiel aos ensinamentos das Escrituras, ensina esta verdade. J. I.
Packer, comentando este ponto, disse:

“Deus – O Jeová Triúno, Pai, Filho e Espírito Santo; três pessoas traba-
lhando em conjunto, em sabedoria, poder e amor soberanos, a fim de
realizar a salvação de um povo escolhido. O Pai escolhendo, o Filho
cumprindo a vontade do Pai de remir, o Espírito executando o propósito
547
do Pai e do Filho mediante a renovação do homem”.

É precisamente isto que estamos dizendo, quando declaramos que a nossa sal-
vação é por Deus: O Deus Triúno é o Autor e o executor da nossa salvação; do prin-
cípio ao fim, a salvação é obra do Deus da graça. Paulo estimulando os filipenses,
inspirado por Deus, fala de sua convicção inabalável: “Estou plenamente certo de
que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo
548
Jesus” (Fp 1.6).

A Obra do Espírito torna efetivo em nós aquilo que Cristo realizou definitivamente
por nós. Podemos afirmar, que sem as operações do Espírito, o Ministério Sacrificial
de Cristo não teria valor objetivo para os homens, visto que os méritos redentores e
salvadores de Cristo não seriam comunicados aos pecadores. Calvino (1509-1564)
afirmou corretamente, que é necessário que Cristo habite em nós para que comparti-
lhe conosco o que recebeu do Pai. Ele conclui dizendo que: “O Espírito Santo é o
549
elo pelo qual Cristo nos vincula efetivamente a Si”. Em outro lugar declara:
“Sabemos que nosso bem, nossa alegria e repouso é estar unido ao Filho de
550
Deus”.

Cristo cumpriu perfeitamente as demandas da Lei e adquiriu todas as bênçãos

546
Vd. Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 54.
547
J.I. Packer, O “Antigo” Evangelho, São Paulo: Fiel, 1986, p. 9. (Ver também: Abraham Kuyper, The
Work of the Holy Spirit, p. 18-22; R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo: Publicações
Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 7-14; Idem., El Cuerpo Glorioso de Cristo, Grand Rapids, Michi-
gan: SLC., 1985, p. 169-175; A.W. Pink, Deus é Soberano, São Paulo: Fiel, 1977, p. 49ss., especial-
mente, p. 75-76; J. Owen, Por Quem Cristo Morreu?, São Paulo: Publicações Evangélicas Seleciona-
das, 1986, p. 19-22; Loraine Boettner, Studies in Theology, p. 117-118).
548
"A graça começa, continua e termina a obra da salvação no coração de uma pessoa."
(C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
1992, p. 45). "... Em sua inteireza a nossa salvação procede do Senhor. É sua realização. Ele
mesmo apresenta Sua noiva a Si mesmo por que ninguém mais pode fazê-lo, ninguém mais
é competente para fazê-lo. Somente Ele pode fazê-lo. Ele fez tudo por nós, do princípio ao
fim, e concluirá a obra apresentando-nos a Si mesmo com toda esta glória aqui descrita."
[D.M. Lloyd-Jones, Vida No Espírito: No Casamento, no Lar e no Trabalho, São Paulo: Publicações
Evangélicas Selecionadas, 1991, (Ef 5.27), p. 137]. Do mesmo modo acentua Murray: “A salvação é
do Senhor, tanto em sua aplicação como em sua concepção e realização.” (John Murray,
Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 98). Vejam-se, R.B.
Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristia-
na Reformada, 1985, p. 169ss; 177ss.; C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, p. 12ss
549
João Calvino, As Institutas, III.1.1.
550
Juan Calvino, Sermones Sobre La Obra Salvadora De Cristo, Jenison, Michigan: T.E.L.L. 1988,
“Sermon nº 2”, p. 23.
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que envolvem a salvação. A Obra do Espírito consiste em aplicar os merecimentos


551
de Cristo aos pecadores, capacitando-os a receberem a Graça da salvação. So-
mente através do Espírito “recebemos todos os bens e dons que nos são dados
552
em Jesus Cristo”. É Ele quem derrama sobre nós, as bênçãos da graça, obtidas
pela obra eficaz de Cristo. Desta forma, podemos dizer que o Ministério soteriológico
do Espírito se baseia nos feitos de Cristo e, que o Ministério Sacrificial de Cristo re-
553
clama a ação do Espírito (Jo 7.39/Jo 14.26; 16.13-14). “A obra do Espírito na
aplicação da redenção de Cristo é descrita como tão essencial quanto a
554
própria redenção”. “A condição prévia indispensável para a outorga do
555
Espírito é a obra de Cristo”.

A Palavra nos ensina que o Espírito Santo é o Espírito de Cristo (Gl 4.6; Fp
556 557
1.19); por isso, a presença do Espírito em nós, é a presença do Filho (Rm 8.9).
Quando evangelizamos, o fazemos, confiantes de que Deus, pelo Espírito, aplicará
os méritos de Cristo no coração do Seu povo. Portanto, aí está a nossa
responsabilidade e o nosso conforto, conforme bem observou Billy Graham:

“O Espírito Santo é o grande comunicador do Evangelho, usando como


instrumento pessoas comuns como nós. Mas é dele a obra. Assim, quando
o Evangelho é fielmente proclamado, o Espírito Santo é quem o envia co-
558
mo dardo flamejante aos corações dos que foram preparados”.

551
“De fato a graça reina, mas uma graça reinante à parte da justiça não é apenas inve-
rossímil, mas também inconcebível" (John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, p. 19).
552
Catecismo de Genebra, (1541/2), Perg. 91. (Vd. Hermisten M.P. Costa, A Graça de Deus: Co-
mum ou Exclusiva?, São Paulo: 2000).
553
“Isto ele disse com respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espíri-
to até aquele momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado” (Jo 7.39). “Mas
o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coi-
sas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo 14.26). “Quando vier, porém, o Espírito da
verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver
ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que é
meu e vo-lo há de anunciar” (Jo 16.13-14).
554
Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 390.
555
Frederick D. Bruner, Teologia do Espírito Santo, p. 179.
556
“E, porque vós sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama: Aba,
Pai!” (Gl 4.6). “Porque estou certo de que isto mesmo, pela vossa súplica e pela provisão do Espírito
de Jesus Cristo, me redundará em libertação” (Fp 1.19).
557
“Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se, de fato, o Espírito de Deus habita em vós.
E, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele” (Rm 8.9)
558
Billy Graham, Por que Lausanne?: In: A Missão da Igreja no Mundo de Hoje, São Paulo/Belo Ho-
rizonte, MG.: ABU/Visão Mundial, 1982, p. 30. A consciência de que os “resultados” da Evangelização
dependem do Deus soberano, traz como implicação a nossa ousada confiança em Deus, não em
nosso métodos. Packer analisou bem este ponto, fazendo aplicações complementares: "Se esque-
cermos que a prerrogativa de Deus é produzir resultados quando o evangelho é pregado,
acabaremos pensando que é nossa responsabilidade assegurá-los. E, se nos esquecermos
de que somente Deus pode infundir fé, acabaremos pensando que a conversão, em última
análise, depende não de Deus, mas de nós, e que o fator decisivo é a maneira como evan-
gelizamos. E essa linha de pensamento, coerentemente seguida, nos fará desviar em muito."
(J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 22).
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Portanto, desprezar esta doutrina bíblica equivaleria a perder o significado do E-


559
vangelho, sustentando uma fé indefinida e por isso mesmo superficial, não condi-
zente com a plenitude da revelação bíblica.

Lembremo-nos: “Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo e nela não


permanece, não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem assim o Pai,
como o Filho” (2Jo 9).

8. A TRINDADE E A VIDA CRISTÃ:

“O que o ar é para a natureza física


do homem, o Espírito Santo é para a sua
natureza espiritual. Sem o ar os nossos
corações morrem; sem o Espírito Santo
as nossas almas morrem” – Abraham
560
Kuyper.

Muitas vezes, a impressão que se tem da Igreja, é a de que ela se esquece da


realidade concreta da presença e ação do Espírito do Deus Triúno no seu dia-a-dia.
Na realidade diária de cada um, com demasiada frequência, o Espírito parece mais
uma premissa teológica que tem pouca ou nenhuma relação com o nosso hoje exis-
tencial, que é marcado por diversos problemas, dificuldades, vitórias e frustrações.
Por outro lado, há alguns crentes que, apesar de sinceros em sua fé, não são escla-
recidos e, por isso, invocam o Espírito como se Ele ainda não tivesse batizado a I-
greja definitivamente no Pentecoste; vivem como se o Espírito não fosse um fato real
em nós, que somos o Seu Templo (1Co 3.16,17; 6.19).

O que a Escritura nos ensina é que o Espírito está presente em nós, e que Ele
age na Igreja como Comunidade (organização) e, também, age eficaz e
poderosamente na vida individual de cada crente (Igreja como organismo). Neste
capítulo vamos analisar de que forma o Espírito atua na vida do Povo de Deus.

1) REPROVA-NOS E SE ENTRISTECE COM OS NOSSOS PECADOS: (JO


16.7-8; EF 4.30/IS 63.10).

O Espírito se entristece com os nossos pecados, manifestando o Seu


desagrado, de modo externo: através da Palavra de Deus e interno: através da
nossa consciência.

Todas as vezes que agimos de forma contrária aos ensinamentos da Palavra de


Deus, entristecemos ao Espírito que em nós habita. O Espírito também se entristece
conosco, quando caminhamos de modo contrário ao propósito de Deus para nós,
que é a santificação (1Ts 4.3/2Ts 2.13), quando as obras da carne estão cada vez

559
Ver: Albertus Pieters, Fundamentos da Doutrina Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1979, p. 179-180.
560
Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, p. 116.
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mais evidentes em nossa vida e o fruto do Espírito parece mais distante do nosso
procedimento (Gl 5.16-26). O entristecimento do Espírito, se por um lado revela o
nosso pecado, por outro, fala-nos do Seu invencível amor, que não se intimida nem
se acomoda com a nossa desobediência, antes se expõe, nos atraindo para Si em
amor. “Podemos magoar ou irar alguém que não nos tem afeição, mas entris-
561
tecer podemos só quem nos ama”.

O Espírito aplicou os méritos salvadores de Cristo em nosso coração e, nos


preserva íntegros até o fim; nele fomos “selados para o dia da redenção” (Ef 4.30).
Pelo fato do Espírito ser Santo, Ele nos quer preservar em santidade até o dia da
redenção (Ef 1.13-14).

2) ENSINA-NOS POR MEIO DA PALAVRA, GUIANDO-NOS À VERDADE:

O Espírito nos chama através da Palavra. Para muitos crentes, este


chamamento poderá parecer o clímax da vida cristã; no entanto, é apenas o início; a
conversão não é o final de uma corrida, antes é a “largada”... O Espírito que nos
chama, continua agindo em nós, nos guiando à verdade e à compreensão desta
mesma verdade, nos falando através da Palavra de Deus, para que a cumpramos, a
fim de que Ela seja de fato a norma para a nossa vida. O novo nascimento é "o
562
começo de um caminho de vida".

O Espírito deve ser o orientador dos nossos projetos, o iluminador dos nossos
sonhos e o diretor de nossas realizações. Ele nos conduz à verdade, fazendo-nos
compreendê-la concedendo-nos força para cumpri-la à risca (Vd. Sl 119.1-5/Jo
14.26; 16.13; Ef 6.17; Ap 2.7,11, 17),

3) CONSOLA-NOS:

O Espírito nos consola, fortalece e ajuda em todas as nossas dificuldades, nos


estimulando à ação. Ele age em nós como Jesus agiu com os Seus discípulos e
563
ainda age por nós (Jo 14.26; 15.26/14.16; 1Jo 2.1).

Mas, além de nos consolar, Ele nos desafia à luta, ao testemunho fiel de nossa fé.
Lucas registra que a igreja “edificando-se e caminhando no temor do Senhor e, no
conforto (para/klhsij) do Espírito Santo, crescia em número” (At 9.31). O estímulo
do Espírito é por si só desafiante e consolador. Paulo nos diz que “.... tudo quanto,
outrora, foi escrito para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pe-
la consolação (para/klhsij) das Escrituras, tenhamos esperança. Ora, o Deus da

561
Billy Graham, O Espírito Santo, São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 123.
562
Hendrikus Berkhof, La Doctrina del Espíritu Santo, p. 78.
563
A palavra grega traduzida no Evangelho de João por “Consolador”, (Para/klhtoj)(Jo 14.16,26;
15.26) – que é usada unicamente por João no NT. –, é a mesma que é traduzida na Epístola de Jo-
ão, por “Advogado” (1Jo 2.1) (ARA, ARC, ACR, BJ). Para um estudo detalhado desta palavra, Vd. W.
Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento, p. 153-158; Johannes Behm, Para/klhtoj: In:
TDNT., V, p. 800-814.
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paciência e da consolação (para/klhsij) vos conceda o mesmo sentir de uns para


com os outros, segundo Cristo Jesus....” (Rm 15.4-5). Lembremo-nos de que foi o
Espírito quem fez registrar as Escrituras (2Tm 3.16; 2Pe 20-21). Ele, como Deus que
é, na inspiração das Escrituras, providenciava o nosso conforto, consolo e estímulo.

William Barclay (1907-1978), recorrendo à literatura grega, faz uma analogia


muito oportuna:

“Repetidas vezes achamos que parakalein é a palavra do sinal de rea-


grupamento; é a palavra usada dos discursos dos líderes e dos soldados
que se animam mutuamente a avançarem. É a palavra usada a respeito
de palavras que fazem com que soldados e marinheiros medrosos,
temerosos e hesitantes entrem na batalha com coragem. Um paraklêtos é,
portanto, um encorajador, uma pessoa que injeta coragem nos
acovardados, que anima o braço fraco para a luta, que leva um homem
muito comum a lidar heroicamente com uma situação perigosa e
arriscada.
“Aqui, pois, temos a grande obra do Espírito Santo. Expressando-a em
linguagem atual, o Espírito Santo capacita os homens a lidarem com a
564
vida. O Espírito Santo é, na realidade, o cumprimento da promessa”.

Jesus prometeu aos discípulos “outro Consolador”. Agora eles tinham a Jesus
fisicamente ao seu lado; quando viesse o Espírito, eles teriam dois Consoladores
(Advogados): Jesus Cristo no céu e o Seu Espírito neles (Jo 14.16-17). Nós hoje
continuamos desfrutando deste mesmo conforto, fortalecimento e ânimo, a saber: do
Espírito em nós e de Cristo no céu por nós (1Jo 2.1/Rm 8.34; Hb 7.25). Ferguson
comenta: “Tão plena é a união entre Jesus Cristo e o Parácleto, que a vinda
565
deste é a vinda do próprio Jesus Cristo no Espírito.”

4) DÁ-NOS PODER PARA TESTEMUNHAR:

A) O PODER DO TRINO DEUS:

Antes de ser assunto aos céus, o Senhor ressurreto – diante da curiosidade


de seus discípulos que o inquiriam sobre o que não lhes era pertinente –, lhes diz:
“....recebereis poder (du/namij), ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis
minhas testemunhas (ma/rtuj) tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e
Samaria e até aos confins da terra” (At 1.8).

Na redação do Evangelho, Lucas registrou palavras semelhantes, oferecendo-


nos, contudo, outros detalhes:

44 A seguir, Jesus lhes disse: São estas as palavras que eu vos falei, estando ainda convosco:
importava se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos.

564
W. Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento, p. 157.
565
Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 74.
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45 Então, lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras;


46 e lhes disse: Assim está escrito que o Cristo havia de padecer e ressuscitar dentre os mortos no
terceiro dia
47 e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações,
começando de Jerusalém.
48 Vós sois testemunhas (ma/rtuj) destas coisas.
49 Eis que envio sobre vós a promessa de meu Pai; permanecei, pois, na cidade, até que do alto
sejais revestidos de poder (e)ndu/shsqe e)c e(/youj du/namin)” (Lc 24.44-49).

Realcemos alguns pontos no texto:

a) Os discípulos de Cristo, só entenderam as Escrituras, quando o próprio Jesus


lhes abriu o entendimento (Lc 24.45). F.F. Bruce (1910-1990) está correto ao afirmar
que: “Os crentes possuem um padrão permanente e um modelo no uso que
nosso Senhor fez do Antigo Testamento, e uma parte do atual trabalho do
Espírito Santo no tocante aos crentes é abrir-lhes as Escrituras, conforme o
Cristo ressurreto as abriu para os dois discípulos no caminho para Emaús (Lc
566
24.25ss)".

b) Os discípulos como testemunhas deveriam pregar o Evangelho profetizado e


vivenciado por eles na companhia de Jesus Cristo, o Verbo Encarnado (Lc 24.47-
48).

c) O alcance dessa missão primitiva teria início em Jerusalém e depois se


estenderia a todo mundo: universalidade da pregação (Lc 24.47).
567
d) Eles deveriam aguardar até que fossem revestidos (e)ndu/w) de poder (Lc
24.49).
568
e) O poder (du/namij) que receberiam seria do alto (u(/yo/w) (Lc 24.49).

A Palavra poder (du/namij) é empregada de várias maneiras no Novo Testamen-


to; ela se refere, por exemplo: a) Milagres: Mt 7.22; 11.20,21,23; 13.58; Mc 6.5; Gl
566
F.F. Bruce, Interpretação Bíblica: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Pau-
lo: São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, Vol. II, p. 753. Vd. Também: João Calvino, As Institutas,
I.9.3; II.8.7. “Muito embora todo cristão seja participante do Espírito e, portanto, por ele guia-
do à verdade, parece que a revelação dos mistérios de Deus contidos nas Escrituras do An-
tigo Testamento era um dom apostólico, consignado aos autores do Novo Testamento co-
mo parte da inspiração divina para registrar infalivelmente a verdade de Deus” (Augustus Ni-
codemus Lopes, A Bíblia e Seus Intérpretes, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 120).
567
e)ndu/w tem o sentido literal de “vestir-se” (Mt 6.25; 27.31; Mc 1.6; Lc 15.22; At 12.21) e, quase
que exclusivamente em Paulo, a aplicação figurada de “revestir-se”: a) De poder (Lc 24.49); b) Das
armas da luz (Rm 13.12); c) Do Senhor Jesus (Rm 13.14; Gl 3.27); d) Do novo homem (Ef 4.24; Cl
3.10); e) De toda armadura de Deus (Ef 6.11,14); f) De ternos afetos (Cl 3.12); g) Da couraça da fé e
amor (1Ts 5.8). A palavra descreve também a nossa ressurreição como um revestimento de imortali-
dade e incorruptibilidade (1Co 15.53-54).
568
u(/yoj literalmente tem o sentido de “altura”, como no texto de Lucas e, também, de “dignidade”
(Tg 1.9) (*Lc 1.78; 24.49; Ef 3.18; 4.8; Tg 1.9; Ap 21.16). O verbo (u(yo/w) é traduzido em geral por “e-
levar” (Mt 11.23; Lc 10.15; Jo 3.14); “exaltar” (Mt 23.12; Lc 1.52; 14.11; 2Co 11.7; Tg 4.10; 1Pe 5.6)
“levantar” (Jo 3.14; 8.28; 12.32).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 132/233

3.5; b) Poderes miraculosos: Mt 13.54; 2Co 12.12; c) Forças miraculosas: Mt 14.2;


Mc 6.14; d) Maravilhas: Mc 6.2.

Vejamos algumas formas como a palavra é usada no Novo Testamento, fazendo


algumas aplicações decorrentes:

1) O nascimento do Messias está associado ao poder de Deus: “Respondeu-lhe o


anjo: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e o poder (du/namij) do Altíssimo te
envolverá com a sua sombra; por isso, também o ente santo que há de nascer será
chamado Filho de Deus” (Lc 1.35). Jesus Cristo foi designado Filho de Deus com
poder: “Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o
evangelho de Deus, o qual foi por Deus, outrora, prometido por intermédio dos seus
profetas nas Sagradas Escrituras, com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne,
veio da descendência de Davi e foi designado Filho de Deus com poder (du/namij),
segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo,
nosso Senhor” (Rm 1.1-4).

2) Jesus inicia o seu ministério após a tentação, no poder do Espírito: “Então, Je-
sus, no poder (du/namij) do Espírito, regressou para a Galiléia, e a sua fama correu
por toda a circunvizinhança” (Lc 4.14).

3) Jesus Cristo em Seu Ministério operou pelo poder do Pai. Pedro em seu
sermão conclama o povo a atender a sua mensagem: “Varões israelitas, atendei a
estas palavras: Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós com
milagres (du/namij), prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por
intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis” (At 2.22). Diante de Cornélio,
Pedro resume: “.... Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com poder
(du/namij), o qual andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os
oprimidos do diabo, porque Deus era com ele; e nós somos testemunhas de tudo o
que ele fez na terra dos judeus e em Jerusalém; ao qual também tiraram a vida,
pendurando-o no madeiro” (At 10.38-39). Os discípulos extasiados com os sinais de
Cristo louvaram a Deus: “E, quando se aproximava da descida do monte das
Oliveiras, toda a multidão dos discípulos passou, jubilosa, a louvar a Deus em alta
voz, por todos os milagres (du/namij) que tinham visto” (Lc 19.37).

4) As Escrituras nos mostram que o Reino chega com poder: “Dizia-lhes ainda:
Em verdade vos afirmo que, dos que aqui se encontram, alguns há que, de maneira
nenhuma, passarão pela morte até que vejam ter chegado com poder (du/namij) o
reino de Deus” (Mc 9.1). Paulo, aos ensoberbecidos de Corinto, diz: “Alguns se
ensoberbeceram, como se eu não tivesse de ir ter convosco mas, em breve, irei
visitar-vos, se o Senhor quiser, e, então, conhecerei não a palavra, mas o poder
(du/namij) dos ensoberbecidos. Porque o reino de Deus consiste não em palavra,
mas em poder (du/namij)” (1Co 4.18-20).

5) Os saduceus procurando fazer uma pergunta embaraçosa a Jesus Cristo, tem


como resposta uma declaração estonteante: “Errais, não conhecendo as Escrituras
nem o poder (du/namij) de Deus” (Mt 22.29).

6) Cristo demonstra que a Sua segunda vinda será com grande poder e glória:
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 133/233

“Então, aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem; todos os povos da terra se la-
mentarão e verão o Filho do Homem vindo sobre as nuvens do céu, com poder
569
(du/namij) e muita glória” (Mt 24.30). (Ver: 2Ts 1.7). Quando Cristo retornar, se-
remos ressuscitados pelo poder de Deus: “Deus ressuscitou o Senhor e também nos
ressuscitará a nós pelo seu poder (du/namij)” (1Co 6.14). O que Ele tem preparado
para nós ultrapassa em muito aos nossos sonhos, por mais santos que eles sejam:
“Ora, àquele que é poderoso (du/namai) para fazer infinitamente mais do que tudo
quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder (du/namij) que opera em nós,
a ele seja a glória, na igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações, para todo o
sempre. Amém” (Ef 3.20-21). (Ver: Dt 29.29; 1Co 2.9-16).

7) Vejamos algumas das manifestações do poder de Deus na vida de Seus


servos:

a) Na Parábola dos Talentos, vemos que talentos são distribuídos conforme a


“capacidade” de cada um: “Porque isto é também como um homem que,
partindo para fora da terra, chamou os seus servos, e entregou-lhes os seus
bens, e a um deu cinco talentos, e a outro, dois, e a outro, um, a cada um
segundo a sua capacidade (du/namij), e ausentou-se logo para longe” (Mt
25.14-15).

b) Os apóstolos nos sinais miraculosos operados demonstravam reconhecer o


poder vindo de Jesus Cristo. Após a cura de um coxo de nascença, Pedro
se dirige ao povo atônito: “.... Israelitas, por que vos maravilhais disto ou por
que fitais os olhos em nós como se pelo nosso próprio poder (du/namij) ou
piedade o tivéssemos feito andar? (...) Pela fé em o nome de Jesus, é que
esse mesmo nome fortaleceu a este homem que agora vedes e
reconheceis; sim, a fé que vem por meio de Jesus deu a este saúde perfeita
na presença de todos vós” (At 3.12,16). Diante do Sinédrio, Pedro e João
ouvem a pergunta das principais autoridades judaicas: “Com que poder
(du/namij) ou em nome de quem fizestes isto?” (At 4.7). Segue então o seu
testemunho a respeito da salvação em Cristo Jesus. Este poder era uma das
credenciais do apostolado: “Pois as credenciais do apostolado foram
apresentadas no meio de vós, com toda a persistência, por sinais, prodígios
e poderes miraculosos (du/namij)” (2Co 12.2).

c) Os apóstolos testemunhavam a respeito da ressurreição de Cristo: “Com


grande poder (du/namij), os apóstolos davam testemunho da ressurreição
do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça” (At 4.33).

d) Estevão cheio de graça e poder, operava grandes sinais: “Estêvão, cheio de


570
graça e poder (du/namij), fazia prodígios (te/raj) e grandes sinais (sh-

569
“E a vós outros, que sois atribulados, alívio juntamente conosco, quando do céu se manifestar o
Senhor Jesus com os anjos do seu poder (du/namij)” (2Ts 1.7).
570
A palavra indica algo que é maravilhoso, prodigioso, causa assombro, é estarrecedor; é aquilo que
desperta a atenção, é novo e incomum, sendo guardado na memória. Satanás também usa deste re-
curso para enganar, se possível os eleitos [Mt 24.24 (= Mc 13.22); 2Ts 2.9]; Jesus, além de sinais,
operou prodígios (At 2.22); do mesmo modo os apóstolos (At 2.43; 5.12), os quais reconheciam ser
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 134/233

571
mei=on) entre o povo” (At 6.8).

e) Através de Paulo Deus operava milagres extraordinários: “E Deus, pelas


572
mãos de Paulo, fazia milagres (du/namij) extraordinários” (At 19.11). O
objetivo de todos os sinais e prodígios era, pelo Espírito, divulgar o Evange-
lho a fim de que os homens se convertessem a Cristo: “Porque não ousarei
discorrer sobre coisa alguma, senão sobre aquelas que Cristo fez por meu
intermédio, para conduzir os gentios à obediência, por palavra e por obras,
por força de sinais e prodígios, pelo poder (du/namij) do Espírito Santo; de
maneira que, desde Jerusalém e circunvizinhanças até ao Ilírico, tenho di-
vulgado o evangelho de Cristo” (Rm 15.18-19). Notemos a relação estreita
entre graça e poder (At 4.33; 6.8; Ef 3.7). O mago Simão era chamado pelo
povo de poder de Deus (At 8.10). Ele supostamente convertido, admirou-se
dos sinais feitos por Filipe e pelos apóstolos. Querendo adquirir poder seme-

isto obra de Deus (At 4.30; 14.3). Estevão, Paulo e Barnabé também realizaram prodígios (At 6.8;
14.3; 15.12). Assim como os “sinais”, os “prodígios” se constituíam num dos elementos que credenci-
avam o apóstolo (2Co 12.12). Eles tinham uma função de confirmar o anúncio da salvação (Hb 2.3,4).
(Quanto a maiores detalhes sobre esta palavra, Vd. O. Hofius, Milagre: In: Colin Brown, ed. ger. O
Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983,
Vol. III, p. 175; K.R. Rengstorf, te/raj: In: G. Kittel & G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the
New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. VIII, p. 113-126; Richard
C. Trench, Synonyms of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1985 (Reprinted),
p. 339-344; Richard C. Trench, Notes on The Miracles of Our Lord, London: Kegan Paul, Trench,
Trubner, & Co. Ltd., 1911, p. 2ss.).
571
A palavra indica uma marca ou sinal indicativo pelo qual alguma coisa é identificada; aponta para
outra coisa cujo significado parece obscuro. Esta palavra é usada para referir-se aos milagres divinos:
(Mt 12.38,39; 16.1,4; Mc 8.11,12; 16.17,20; Lc 11.16; Jo 2.11) e de Satanás e seus mensageiros: (Mt
24.24; Mc 13.22; 2Ts 2.9; Ap 13.13,14;16.14;19.20). Os discípulos querem um sinal da vinda de Cris-
to (Mt 24.3/24.30; Mc 13.4); o beijo traidor de Judas serviu como sinal (Mt 26.48); a criança nascida
em Belém era um sinal do nascimento do Messias (Lc 2.12); Simeão diz que Jesus será “alvo” (sh-
mei=on) de contradição. (Lc 2.34). Jonas foi um sinal para os ninivitas e Jesus era para a sua geração
(Lc 11.29,30). Herodes queria ver Jesus realizar algum sinal (Lc 23.8); os judeus queriam um sinal de
Jesus que atestasse a Sua autoridade (Jo 2.13-18/3.2/6.14; 6.30); muitos creram por meio de Seus
sinais (Jo 2.23/4.48; 6.2; 7.31). Todavia, outros estavam mais preocupados com o pão (Jo 6.26), e
outros, ainda que vendo os sinais, não creram (Jo 12.37); contudo gostavam de ver sinais (Mt
16.1/1Co 1.22). Os sinais de Jesus deixavam confusos os judeus e amedrontadas as autoridades (Jo
9.16; 11.47,48). João diz que Jesus fez “muitos outros sinais”, contudo estes foram registrados para
que os homens cressem (Jo 20.30,31/Hb 2.3,4). Os sinais incitam “a mente humana a atentar
para algo mais elevado que a mera aparência” [João Calvino, Exposição de Hebreus, São Pau-
lo: Paracletos, 1997, (Hb 2.4), p. 55]. João Batista não fez sinal, contudo, tudo que disse era verdade
(Jo 10.41). Os apóstolos também realizaram sinais (At 2.43; 4.16; 5.12) reconhecendo que estes e-
ram obra de Deus (At 4.30; 14.3; 15.12). Estevão, Filipe, Paulo e Barnabé, do mesmo modo, opera-
ram sinais (At 6.8; 8.13; 14.3; 15.12; Rm 15.19). Os sinais se constituíam num dos elementos que
credenciavam o apóstolo (2Co 12.12). Resumindo: os sinais de Cristo nunca eram praticados com
fins egoístas ou, com o propósito de se mostrar aos Seus ouvintes. Na realidade vimos sempre o pro-
pósito de glorificar a Deus, relacionar de forma fundamental a base sobrenatural da revelação e, tam-
bém, satisfazer e aliviar as necessidades humanas. (Quanto a maiores detalhes sobre esta palavra,
Vd. K.R. Rengstorf, shmei=on, etc.: In: G. Kittel & G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New
Testament, Vol. VII, p. 200-269; O. Hofius, Milagre: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Inter-
nacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. III, p. 169-174; Richard C. Trench, Synonyms of the
New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1985 (Reprinted), p. 339-344; Richard C.
Trench, Notes on The Miracles of Our Lord, London: Kegan Paul, Trench, Trubner, & Co. Ltd., 1911,
p. 2ss.).
572
Tugxa/nw indica algo que é incomum ou extraordinário.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 135/233

lhante para si, propôs aos apóstolos uma compra, no que foi duramente re-
preendido por Pedro (At 8.13-24).

f) Primeiramente, o chamado para o Ministério da Palavra não é uma questão


de querer ou não querer; depende exclusivamente do Poder de Deus; poste-
riormente, como algo natural, o homem deseja cumprir o ministério recebido,
atendendo à vocação de Deus. Deus atua em nossa vontade mediante o
Seu poder: “.... os gentios são co-herdeiros, membros do mesmo corpo e co-
participantes da promessa em Cristo Jesus por meio do evangelho; do qual
fui constituído ministro conforme o dom da graça de Deus a mim concedida
segundo a força operante do seu poder (du/namij)” (Ef 3.7)(Ver: Jr 1.5; Gl
573
1.15; Fp 2.13). Paulo trabalha arduamente conforme o poder que opera
eficientemente nele: “Para isso é que eu também me afadigo (kopi-
574 575
a/w), esforçando-me o mais possível (a)gwni/zomai), segundo a sua efi-
576
cácia (e)ne/rgeia) que opera (e)nerge/w) eficientemente (du/namij) em mim”

573
“Entre tantos dotes preclaros com os quais Deus há exornado o gênero humano, esta
prerrogativa é singular: que digna a Si consagrar as bocas e línguas dos homens, para que
neles faça ressoar Sua própria voz” [João Calvino, As Institutas, IV.1.5]. “A Deus pertence com
exclusividade o governo de sua Igreja. Portanto, a vocação não pode ser legítima a menos
que proceda dele” [João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 1.1), p. 22].
574
O verbo kopia/w e o substantivo ko/poj descrevem um trabalho estafante, difícil, árduo, trabalhar
até à exaustão. Curiosamente, Paulo é quem mais utiliza esta palavra para se referir ao seu ministé-
rio: “....em tudo recomendando-nos a nós mesmos como ministros de Deus: na muita paciência, nas
aflições, nas privações, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nos tumultos, nos trabalhos
(ko/poj)....” (2Co 6.4-5).(Ver: 2Co 11.23,27). Paulo trouxe à memória dos tessalonicenses, a lembran-
ça do seu labor, de como ele se esforçou por pregar o Evangelho sem depender financeiramente da-
queles irmãos: “Porque, vos recordais, irmãos, do nosso labor (ko/poj) e fadiga; e de como, noite e
dia labutando para não vivermos à custa de nenhum de vós, vos proclamamos o evangelho de Deus”
(1Ts 2.9/2Ts 3.8; At 20.35; 1Co 4.12; 15.10). Paulo também relembra aos irmãos que quando teve de
partir de Tessalônica devido a perseguição que se moveu contra ele, manteve-se preocupado com a
Igreja. Assim, tendo enviado a Silas e Timóteo para verificar o estado da Igreja, aguardou-os num
primeiro momento em Atenas: “Foi por isso que, já não me sendo possível continuar esperando,
mandei indagar o estado da vossa fé, temendo que o Tentador vos provasse, e se tornasse inútil o
nosso labor (ko/poj)” (1Ts 3.5).
Escrevendo aos Romanos, Paulo destaca algumas irmãs que se exauriam no trabalho de Deus:
“Saudai a Maria que muito trabalhou (kopia/w) por vós” (Rm 16.6). “Saudai a Trifena e a Trifosa,
as quais trabalhavam (kopia/w) no Senhor. Saudai a estimada Pérside que também muito trabalhou
(kopia/w) no Senhor” (Rm 16.12).
Ao Anjo da Igreja de Éfeso, o Senhor diz: “Conheço as tuas obras, tanto o teu labor (ko/poj) como
a tua perseverança....” (Ap 2.2). Na visão do Apocalipse, João registra a palavra vinda do céu: “Es-
creve: Bem-aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para
que descansem das suas fadigas (ko/poj), pois as suas obras (e)/rgon) os acompanham” (Ap 14.13).
575
A)gwni/zomai, a)gw/n e a)gw=noj descrevem um esforço atlético (1Co 9.25, “atleta”), um combate
[1Tm 6.12;Tm 4.7(duas vezes em ambos os textos)], uma luta (1Ts 2.2) por conseguir o seu objetivo.
(Ver: Cl 4.12; 1Tm 4.10). A nossa palavra “agonia” é a transliteração de a)gwni/a, conforme traduzida
em Lc 22.44 referindo-se ao tormentoso sofrimento de Cristo: “E, estando em agonia (a)gwni/a), orava
mais intensamente. E aconteceu que o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a ter-
ra”
576
E))ne/rgeia – “trabalho efetivo” –, de onde vem a nossa palavra “energia”, passando pelo latim,
energîa. Esse substantivo é empregado tanto para Deus (Ef 3.7; 4.16; Fp 3.21; Cl 1.29; 2.12) como
para Satanás (2Ts 2.9). Estando este subordinado à e)ne/rgeia de Deus (2Ts 2.11). E)ne/rgeia e seus
derivados, no NT, descreve sempre um poder eficaz em atividade sobre-humana, através da qual a
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 136/233

(Cl 1.29). A nossa pregação deve ser no poder do Espírito: “....o nosso e-
vangelho não chegou até vós tão-somente em palavra, mas, sobretudo, em
poder (du/namij), no Espírito Santo e em plena convicção, assim como sa-
beis ter sido o nosso procedimento entre vós e por amor de vós” (1Ts 1.5).
Os milagres visavam confirmar a mensagem do Evangelho: “Como escapa-
remos nós, se negligenciarmos tão grande salvação? A qual, tendo sido a-
nunciada inicialmente pelo Senhor, foi-nos depois confirmada pelos que a
ouviram; dando Deus testemunho juntamente com eles, por sinais, prodígios
e vários milagres (du/namij) e por distribuições do Espírito Santo, segundo a
sua vontade” (Hb 2.3-4).

g) Ninguém tem poder em si mesmo para confessar sinceramente o senhorio


de Cristo: “.... ninguém pode (du/namai) dizer: Senhor Jesus!, senão pelo
Espírito Santo” (1Co 12.3).

h) Deus é poderoso para socorrer e manter de pé os seus servos, mesmo a-


queles aos quais consideramos fracos: “Quem és tu que julgas o servo a-
lheio? Para o seu próprio senhor está em pé ou cai; mas estará em pé, por-
que o Senhor é poderoso (dunate/w) para o suster” (Rm 14.4). É neste sen-
tido que Paulo ora, para que Deus cumpra o Seu propósito na vida dos tes-
salonicenses a fim de que Deus seja glorificado neles no regresso de Cristo:
“Por isso, também não cessamos de orar por vós, para que o nosso Deus
vos torne dignos da sua vocação e cumpra com poder (du/namij) todo pro-
pósito de bondade e obra de fé, a fim de que o nome de nosso Senhor Je-
sus seja glorificado em vós, e vós, nele, segundo a graça do nosso Deus e
do Senhor Jesus Cristo” (2Ts 1.11-12). Ora também para que a igreja de
Roma seja rica de esperança no poder do Espírito Santo: “E o Deus da es-
perança vos encha de todo o gozo e paz no vosso crer, para que sejais ricos
de esperança no poder (du/namij) do Espírito Santo” (Rm 15.13. Ver tam-
bém: Rm 16.25). Paulo pede a Deus que desvende os nossos olhos para
que vejamos entre outras coisas, a suprema grandeza do poder de Deus:
“Por isso, também eu, tendo ouvido da fé que há entre vós no Senhor Jesus
e o amor para com todos os santos, não cesso de dar graças por vós, fa-
zendo menção de vós nas minhas orações, para que o Deus de nosso Se-
nhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de
revelação no pleno conhecimento dele, iluminados os olhos do vosso cora-
ção, para saberdes qual é a esperança do seu chamamento, qual a riqueza
da glória da sua herança nos santos e qual a suprema grandeza do seu
poder (du/namij) para com os que cremos, segundo a eficácia da força do
seu poder” (Ef 1.15-19). (Ver também: Ef 3.16,20; Fp 3.10; Cl 1.9-11; 1Pe
1.5).
Deus é poderoso para nos guardar até o fim. Esta é a confiança
partilhada por Paulo com todos os fiéis servos de Deus: “.... por isso, estou
sofrendo estas coisas; todavia, não me envergonho, porque sei em quem
tenho crido e estou certo de que ele é poderoso (dunato/j) para guardar o
meu depósito até aquele Dia” (2Tm 1.12).

natureza de quem a exerce se revela (Vd. William Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento,
São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 51-57).
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No Apocalipse é considerada bem aventurada a Igreja de Filadélfia que


apesar da pouca força guardou a Palavra e não negou o nome do Senhor
Jesus: “Conheço as tuas obras – eis que tenho posto diante de ti uma porta
aberta, a qual ninguém pode (du/namai) fechar – que tens pouca força
(du/namij), entretanto, guardaste a minha palavra e não negaste o meu
nome” (Ap 3.8).

i) Deus pode suprir todas as nossas necessidades: “Deus pode (dunate/w)


fazer-vos abundar em toda graça, a fim de que, tendo sempre, em tudo,
ampla suficiência, superabundeis em toda boa obra” (2Co 9.8). O Poder
gracioso de Cristo se aperfeiçoa na fraqueza. É o que Deus diz a Paulo, que
estava em profunda agonia: “....A minha graça te basta, porque o poder
(du/namij) se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me
gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder (du/namij) de
Cristo” (2Co 12.9). Paulo diz que o seu ministério é sustentado pelo poder
de Deus: ”Porque, de fato, foi crucificado em fraqueza; contudo, vive pelo
poder (du/namij) de Deus. Porque nós também somos fracos nele, mas
viveremos, com ele, para vós outros pelo poder (du/namij) de Deus” (2Co
13.4).
Deus nos fornece uma armadura resistente para que possamos enfrentar
as tentações satânicas:

11 Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para poderdes (du/namai) ficar firmes contra as
ciladas do diabo;
12 porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e
potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do
mal, nas regiões celestes.
13 Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que possais (du/namai) resistir no dia mau
e, depois de terdes vencido tudo, permanecer inabaláveis.
14 Estai, pois, firmes, cingindo-vos com a verdade e vestindo-vos da couraça da justiça.
15 Calçai os pés com a preparação do evangelho da paz;
16 embraçando sempre o escudo da fé, com o qual podereis (du/namai) apagar todos os
dardos inflamados do Maligno.
17 Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus;
18 com toda oração e súplica, orando em todo tempo no Espírito e para isto vigiando com toda
perseverança e súplica por todos os santos (Ef 6.11-18).

Jesus Cristo pelo seu poder nos fornece todos os meios para o nosso
crescimento na piedade: “Visto como, pelo seu divino poder (du/namij), nos
têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade, pelo co-
nhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e
virtude” (2Pe 1.3). Em Teologia denominamos essas “cousas que nos con-
duzem à piedade”, de meios de graça ou meios de santificação. A nossa
certeza é que Deus nos concedeu todas as coisas que nos conduzem à pie-
dade; portanto, devemos utilizar todos os recursos que Deus nos forneceu
577
(2Pe 1.3).
577
Ver: Hermisten M.P. Costa, A Palavra e a Oração como Meios de Graça: In: Fides Reformata, São
Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 5/2 (2000), 15-48.
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Ao mesmo tempo, o Senhor Jesus Cristo é poderoso para nos socorrer


578
em nossas tentações (1Co 10.13): “Pois, naquilo que ele mesmo sofreu,
tendo sido tentado, é poderoso (du/namai) para socorrer os que são tenta-
579
dos” (Hb 2.18). (Ver também: Hb 4.15; Jd 24; 1Pe 1.5).

8) A disciplina eclesiástica é realizada no poder de Jesus: “Eu, na verdade, ainda


que ausente em pessoa, mas presente em espírito, já sentenciei, como se estivesse
presente, que o autor de tal infâmia seja, em nome do Senhor Jesus, reunidos vós e
o meu espírito, com o poder (du/namij) de Jesus, nosso Senhor, entregue a Satanás
para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no Dia do Senhor
Jesus” (1Co 5.3-5).

9) Podemos observar que enquanto Mateus procurou dar nome aos atos
poderosos de Jesus Cristo, Lucas apresenta Jesus Cristo exercendo o seu poder
realizando tais atos: a) Expulsão dos espíritos: (Lc 4.36); b) Cura: (Lc 5.17; 6.19;
8.46); c) Jesus conferindo poder e autoridade aos doze e aos 70 sobre os demônios
e para curar os enfermos: (Lc 9.1/Lc 10.19).

10) Finalmente, o nosso conforto é que o poder pertence a Deus. Quando o


Senhor revelar plenamente a sua soberania – “Exorto-te, perante Deus, que
preserva a vida de todas as coisas, e perante Cristo Jesus, que, diante de Pôncio
Pilatos, fez a boa confissão, que guardes o mandato imaculado, irrepreensível, até à
manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo; a qual, em suas épocas determinadas,
há de ser revelada pelo bendito e único Soberano (duna/sthj), o Rei dos reis e
Senhor dos senhores” (1Tm 6.13-15) –, o canto celestial, finalmente será, como
descrito no Apocalipse: “Depois destas coisas, ouvi no céu uma como grande voz de
numerosa multidão, dizendo: Aleluia! A salvação, e a glória, e o poder (du/namij) são
do nosso Deus” (Ap 19.1).

B) O PODER DO ESPÍRITO NA EVANGELIZAÇÃO:

O Evangelho é o poder de Deus (Rm 1.16). A Palavra da Cruz é poder de


580
Deus (1Co 1.18); e a “Palavra da Graça” é poderosa para nos edificar (At 20.32;

578
“Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais
tentados além das vossas forças (du/namai); pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá
livramento, de sorte que a possais (du/namai) suportar” (1Co 10.13).
579
“Porque não temos sumo sacerdote que não possa (du/namai) compadecer-se das nossas fra-
quezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15).
”Ora, àquele que é poderoso (du/namai) para vos guardar de tropeços e para vos apresentar com e-
xultação, imaculados diante da sua glória, ao único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo,
Senhor nosso, glória, majestade, império e soberania, antes de todas as eras, e agora, e por todos os
séculos. Amém!” (Jd 24-25). “Que sois guardados pelo poder (du/namij) de Deus, mediante a fé, para
a salvação preparada para revelar-se no último tempo” (1Pe 1.5).
580
“Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos sal-
vos, poder (du/namij) de Deus” (1Co 1.18).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 139/233

581 582
2Tm 3.15). Jesus Cristo é o poder de Deus (1Co 1.24). Como vimos, Paulo
pregou o Evangelho com demonstração do Espírito e de poder para que a fé dos co-
583
ríntios não se apoiasse em palavras mas em poder (1Co 2.4-5; 1Ts 1.5). O Evan-
584
gelho não parte de fábulas inventadas (2Pe 1.16). “[A] fé saudável equivale à
585
fé que não sofreu nenhuma corrupção proveniente de fábulas”.

Em Atos 4.33, lemos: “Com grande poder (du/namij) os apóstolos davam


testemunho da ressurreição do Senhor Jesus....”. A Igreja cumpria a missão dada
por Jesus Cristo com fidelidade, pois, Ele mesmo ordenou: “.... e sereis minhas
testemunhas...” (At 1.8).

A Igreja teve uma experiência pessoal com o seu Senhor e, foi comissionada por
Ele mesmo a dar testemunho perante o mundo, dos atos salvadores de Deus e das
586
Suas virtudes (Mt 16.15; Mt 28.19,20; 1Pe 2.9,10). A eficácia do ministério da I-
greja consiste em apontar para a obra eficaz de Jesus Cristo, testemunhando, então,
o perdão do seu próprio pecado. A Igreja apresenta-se como resultado histórico, fru-
to da ação misericordiosa de Deus em Cristo. Ela não cria nem é a mensagem; é
apenas o sinal mais ou menos luminoso, dependendo de sua fidelidade à Palavra,
que aponta para o Seu Senhor (Mt 5.14-16; At 2.14ss; 5.30-32; 20.27-21; 22.12-15;
26.22,23; 1Jo 1.2,3).

581
“Agora, pois, encomendo-vos ao Senhor e à palavra da sua graça, que tem poder (du/namai) para
vos edificar e dar herança entre todos os que são santificados” (At 20.32). “E que, desde a infância,
sabes as sagradas letras, que podem (du/namai) tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo
Jesus” (2Tm 3.15).
582
“.... nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas
para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder (du/namij) de
Deus e sabedoria de Deus” (1Co 1.23-24).
583
“A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria,
mas em demonstração do Espírito e de poder (du/namij), para que a vossa fé não se apoiasse em
sabedoria humana, e sim no poder (du/namij) de Deus” (1Co 2.4-5). “Porque o nosso evangelho não
chegou até vós tão-somente em palavra, mas, sobretudo, em poder (du/namij), no Espírito Santo e
em plena convicção, assim como sabeis ter sido o nosso procedimento entre vós e por amor de vós”
(1Ts 1.5).
584
“Porque não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo seguindo fá-
bulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majesta-
de” (2Pe 1.16).
585
João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.14), p. 320. “Se porventura dese-
jarmos conservar a fé em sua integridade, temos de aprender com toda prudência a refrear
nossos sentidos para não nos entregarmos a invencionices estranhas. Pois assim que a pes-
soa passa a dar atenção às fábulas, ela perde também a integridade de sua fé” [João Calvi-
no, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320]. “Fábulas (...) aqueles contos fúteis e levianos que não têm
em si nada de sólido” [João Calvino, As Pastorais, (1Tm 1.4), p. 29].
586
“E disse-lhes: Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Mt 16.15). “Ide, portan-
to, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;
ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os
dias até à consumação do século” (Mt 28.19,20). “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação
santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos
chamou das trevas para a sua maravilhosa luz; vós, sim, que, antes, não éreis povo, mas, agora, sois
povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia” (1Pe
2.9,10).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 140/233

A Missão da Igreja inspira-se e fundamenta-se no exemplo Trinitário. O Pai envia


587
o Seu Filho (Jo 3.16), ambos enviam o Espírito à Igreja (Jo 14.26; 15.26; Gl 4.6),
588
habitando em nossos corações (Rm 8.9-11,14-16); e nós, somos enviados pelo
589
Filho, sendo guiados pelo Espírito de Cristo (Jo 17.18; 20.21).

1) Em Jerusalém:

O resultado da pregação eficiente e de uma vida cristã autêntica, além de


outras coisas secundárias, redunda na Glória de Deus (Mt 5.14-16; 2Co 9.12-15),
resultando naturalmente, conforme o exemplo bíblico, no crescimento espiritual e
numérico da Igreja. O Livro de Atos registra que enquanto a Igreja testemunhava e
vivia o Evangelho, “acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos”
(At 2.47); e mais: “Crescia a palavra de Deus e, em Jerusalém, se multiplicava o
número dos discípulos; também muitíssimos sacerdotes obedeciam à fé” (At 6.7.
Leia também: At 2.41; 4.4; 9.31; 12.24; 14.1).

2) “Até Aos Confins da Terra”

Após o eloquente e desafiante sermão de Estevão e, a sua consequente


morte por apedrejamento (At 7.1-60) – a forma judaica de executar os culpados de
blasfêmia (Lv 24.16; Jo 10.33) – o grupo inquisidor estimulado por esta atitude
assassina, promoveu “... grande perseguição contra a igreja de Jerusalém” (At 8.1),
com a permissão do sumo sacerdote (At 8.3; 9.1,2).

O termo usado em At 8.1 para descrever a “perseguição” apresenta a ideia de


590
uma caça violenta e sem trégua. Lucas, inspirado por Deus, pinta este quadro de

587
“Mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará to-
das as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo 14.26). “Quando, porém, vier o
Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que dele procede, esse dará
testemunho de mim” (Jo 15.26). “E, porque vós sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito
de seu Filho, que clama: Aba, Pai!” (Gl 4.6).
588“9
Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se, de fato, o Espírito de Deus habita em vós.
10
E, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele. Se, porém, Cristo está em vós, o
11
corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito é vida, por causa da justiça. Se
habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressus-
citou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por meio do seu Espíri-
14
to, que em vós habita. (...) Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus.
15
Porque não recebestes o espírito de escravidão, para viverdes, outra vez, atemorizados, mas rece-
16
bestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com
o nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rm 8.9-11, 14-16).
589
“Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17.18). “Disse-lhes,
pois, Jesus outra vez: Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo
20.21).
590
O substantivo “perseguição” (Diwgmo/j = “caça”, “pôr em fuga”) dá a entender a figura simbólica
de um animal caçado, de uma presa perseguida, de um tormento incansável e sem misericórdia. Esta
palavra denota mais especificamente as perseguições promovidas pelos inimigos do Evangelho; ela
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forma mais forte, adjetivando “grande”, indicando assim, a severidade da persegui-


ção. Saulo foi o grande líder desta ação contra os cristãos (At 8.1; 9.1,2; 22.4,5;
26.9-12).

Nesta primeira grande perseguição, vemos claramente a direção divina:

1) Os apóstolos não foram dispersos, permanecendo em Jerusalém (At 8.1),


podendo assim, sedimentar a mensagem do Evangelho em Jerusalém.

2) Até agora a Igreja não havia cumprido a totalidade da ordem divina, que
dizia: “Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas
testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samaria, e até os
confins da terra” (At 1.8). Os apóstolos, ao que parece, não haviam saído dos limites
da Judéia com o objetivo de proclamar o Evangelho.

O verbo usado para descrever a “dispersão” – diaspei/rw – (At 8.1,4), está ligado
à sementeira e semeadura, sendo empregado unicamente por Lucas no Novo Tes-
tamento e somente para descrever este episódio (*At 8.1,4; 11.19). Assim, através
da perseguição, os discípulos saíram de Jerusalém levando as Boas Novas do E-
vangelho (At 8.4), semeando a semente do Evangelho de Cristo (1Pe 1.23).

Filipe, um dos diáconos eleitos (At 6.5), pregou em Samaria e muitos se


converteram (At 8.5-8), posteriormente ele evangelizou, mediante a direção de Deus
(At 8.26), um judeu etíope, que era tesoureiro da rainha Candace – título esse
semelhante ao de “Faraó”, não indicando o nome próprio de uma pessoa –, que se
converteu, sendo então batizado (At 8.38). Após o batismo do etíope, “.... Filipe veio
a achar-se em Azôto; e, passando além, evangelizava todas as cidades até chegar a
Cesaréia” (At 8.40).

Outro fato que evidencia a ação providencial de Deus na perseguição de


Jerusalém, está registrado em At 11.19-21, onde lemos no verso 19: “.... Os que
foram dispersos, por causa da tribulação que sobreveio a Estevão, se espalharam
até à Fenícia, Chipre e Antioquia....”. Nos versos 20 e 21 temos ainda a proclamação
expandindo-se: “Alguns deles, porém, que eram de Chipre e de Cirene, e que foram
até Antioquia, falavam também aos gregos, anunciando-lhes o evangelho do Senhor
Jesus. A mão do Senhor estava com eles, e muitos, crendo, se converteram ao
Senhor”. Vemos, desta forma, que o Evangelho estava sendo disseminado, tendo
como elemento gerador uma perseguição que parecia ser fatal para a Igreja de
Cristo; entretanto Deus a redundou em bênçãos para o Seu povo (Gn 50.20/Rm
8.28).

A difusão do Evangelho é demonstrada mais tarde, ainda no período neotesta-


mentário, através das Epístolas de Tiago e Pedro, sendo a de Tiago destinada “... às

se refere sempre à perseguição por motivos religiosos (Vd. Mc 4.17; At 8.1; 13.50; Rm 8.35; 2Tm
3.11). O verbo Diw/kw é utilizado sistematicamente para aqueles que perseguiam a Jesus, os discí-
pulos e a Igreja (Mt 5.10-12; Lc 21.12; Jo 5.16; 15.20). Lucas emprega este mesmo verbo para des-
crever a perseguição que Paulo efetuou contra a Igreja (At 22.4; 26.11; 1Co 15.9; Gl 1.13,23; Fp 3.6),
sendo também a palavra empregada por Jesus Cristo quando pergunta a Saulo do porquê de sua
perseguição (At 9.4-5/At 22.7-8/At 26.14-15). Paulo diz que antes perseguia a igreja (Fp 3.6), mas,
agora, prosseguia para o alvo (Fp 3.12,14).
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doze tribos que se encontram na Dispersão” (Tg 1.1) e a de Pedro, “... aos eleitos,
que são forasteiros da Dispersão, no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia, e Bitínia”
(1Pe 1.1. Leia também, At 17.6).

3) Por meio do zelo cego de Saulo em perseguir os cristãos, Deus o chamou


eficazmente (At 9.1-5), regenerando-o, porque para Deus, Saulo era “.... um
instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como
perante os filhos de Israel” (At 9.15). Mais tarde, Paulo, o antigo Saulo, escreveu aos
gálatas: “Quando, porém ao que me separou antes de eu nascer e me chamou pela
sua graça, aprouve revelar seu Filho em mim, para que eu pregasse entre os
gentios....” (Gl 1.14,15). Saulo, o grande perseguidor, agora era Paulo, o apóstolo de
Cristo levando a mensagem salvadora do Evangelho a todos os povos, chegando à
capital gentílica (Roma) e, desejando prosseguir em sua missão, se possível, atingir
a Espanha (At 28.16ss; Rm 15.22-29).

Por intermédio do trabalho de Filipe, Pedro, Paulo, Barnabé, Silas, Timóteo, Tito e
de milhares de irmãos anônimos, o Evangelho proliferou em todos os continentes.
Nós hoje somos herdeiros desta proclamação. O crescimento da Igreja impulsionado
pelo Espírito, era operado através de todos os irmãos; todos estavam
comprometidos com a obra missionária quer em suas cidades quer em outras
591
regiões.

3) Fidelidade e Crescimento:

O Espírito alimenta a Igreja, fazendo-a crescer espiritual e numericamen-


te. Creio que o crescimento significativo ocorre nesta ordem. Quando a Igreja co-
nhece a Palavra e a pratica, prega com maior autoridade e, enquanto anuncia e vive
o Evangelho, o Senhor por Sua misericórdia, acrescenta o número de salvos. É jus-
tamente isto que vemos em Atos: a Igreja pregava a Palavra com fidelidade, vivendo
o Evangelho com sinceridade e o Espírito fazendo a Igreja crescer. A melhor estra-
tégia é a do Espírito Santo e, o método infalível de Deus é a pregação fiel da Pala-
vra; a pregação do Evangelho compete ordinariamente a nós; é função exclusiva da
Igreja; não há outra entidade, agremiação ou organização a qual Deus tenha incum-
bido deste privilégio responsabilizador. "A Igreja é uma instituição especial e es-
592
pecialista, e a pregação é uma tarefa que somente ela pode realizar". No
entanto, o crescimento, é obra do Espírito (At 2.47; 4.4; 6.7; 9.31; 12.24; 14.1; 16.4-
593
5).

591
Vd. Iain Murray, A Igreja: Crescimento e Sucesso: In: Fé para Hoje, São José dos Campos, SP.:
Fiel, nº 6, 2000, p. 19ss.
592
D. Martyn Lloyd-Jones, Pregação e Pregadores, São Paulo: Fiel, 1984, p. 23.
593
“Louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o
Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos” (At 2.47). “Muitos, porém, dos que ouviram a palavra a
aceitaram, subindo o número de homens a quase cinco mil” (At 4.4). “Crescia a palavra de Deus, e,
em Jerusalém, se multiplicava o número dos discípulos; também muitíssimos sacerdotes obedeciam
à fé” (At 6.7). “A igreja, na verdade, tinha paz por toda a Judéia, Galiléia e Samaria, edificando-se e
caminhando no temor do Senhor, e, no conforto do Espírito Santo, crescia em número” (At 9.31). “En-
tretanto, a palavra do Senhor crescia e se multiplicava” (At 12.24). “Em Icônio, Paulo e Barnabé entra-
ram juntos na sinagoga judaica e falaram de tal modo, que veio a crer grande multidão, tanto de ju-
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 143/233

Observemos também, que muitas vezes, a responsabilidade do não crescimento


da Igreja está em nós, que nos entregamos a uma letargia espiritual, não
amadurecendo em nossa fé e, consequentemente, não apresentando um
testemunho genuíno (Vd. Hb 5.11-14/1Co 3.1-9; Ef 4.11-16). Devemos aproveitar as
oportunidades que Deus nos dá, aprendendo a Palavra, fortalecendo a nossa fé,
sendo educados por Deus e, assim, viver de modo digno do Senhor, testemunhando
o Evangelho com fidelidade e autoridade.

4) Perseguição e Consolo:

A Igreja no Novo Testamento logo enfrentou uma série de perseguições,


geradas num primeiro momento, pelos judeus. Para citar apenas algumas, temos a
perpetrada contra Estevão, que morreu apedrejado (At 7.1-60); a de Herodes Agripa
I, que prendeu a Pedro e decapitou Tiago (At 12.1-3); Paulo, o antigo perseguidor do
Evangelho, foi aquele que mais sofreu perseguições (At 9.23-25,29; 14.2-7,19;
16.19-24; 17.4-9, 13-15; 21.30-32).

Escrevendo aos coríntios, Paulo faz um resumo do que havia sofrido pelo
Evangelho de Cristo (2Co 11.23-33). Contudo, havia nele, uma visão constante que
transpunha o sentimento de dor e angústia. Na prisão, escreveu aos filipenses:
“Quero ainda, irmãos, cientificar-vos de que as cousas que me aconteceram têm
antes contribuído para o progresso do evangelho” (Fp 1.12) e, diz mais: “Alegrai-vos
sempre no Senhor, outra vez digo, alegrai-vos” (Fp 4.4). O Evangelho prosseguia em
sua caminhada vitoriosa a despeito dos obstáculos erguidos contra ele.

Paulo estava convencido e, demonstrava isto na prática, que Deus nos faz vencer
os obstáculos que estão à nossa frente.

A perseguição não se encerrou no primeiro século; a Igreja através de toda a His-


tória tem sido alvo de ataques físicos, morais, intelectuais e espirituais; todavia, ao
lado destas afrontas, ela tem podido desfrutar da presença confortadora do Espírito
Santo. O Espírito que habita em nós, nos conforta em todos os momentos, nos am-
parando quando parece que não temos onde ou em quem nos apoiar. “Assim, o Es-
pírito Santo é o autor imediato de toda a verdade, de toda a santidade, de
toda a consolação, de toda a autoridade e de toda a eficiência nos filhos
594
de Deus, individualmente, e na Igreja, coletivamente”.

De fato, o Senhor Jesus não nos deixou órfãos; Ele, Ele mesmo está conosco
aqui e agora, e para sempre (Jo 14.16-18/At 9.31).

Calvino orienta-nos pastoralmente: “.... A Igreja será sempre libertada das ca-
lamidades que lhe sobrevêm, porque Deus, que é poderoso para salvá-la,

deus como de gregos” (At 14.1). “Ao passar pelas cidades, entregavam aos irmãos, para que as ob-
servassem, as decisões tomadas pelos apóstolos e presbíteros de Jerusalém. Assim, as igrejas eram
fortalecidas na fé e, dia a dia, aumentavam em número” (At 16.4-5).
594
Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Editora Hagnos, 2001, p. 396.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 144/233

595
jamais suprime dela sua graça e sua bênção”. Portanto, “se algo de adver-
so lhe houver ocorrido, aqui também o servo do Senhor de pronto elevará a
mente para com Deus, cuja mão muito vale para imprimir-nos paciência e
596
serena moderação de ânimo”. Ele comenta que, “todos os homens reco-
nhecem que o mundo é governado pela providência divina; mas quando
daí surge uma lamentável confusão de coisas a perturbar a tranquilidade
deles e os envolve em dificuldades, poucos são os que conservam em sua
597
mente a inabalável convicção dessa verdade”.

5) FAZ-NOS FRUTIFICAR:

“Podemos ser salvos sem muitos dos dons do Espírito, mas não podemos
598
ser salvos sem o fruto do Espírito”. O Espírito nos transformou, concedendo-nos
uma nova perspectiva da vida, produzindo em nós as virtudes cristãs, em oposição
às obras anteriores, que estavam de acordo com o curso dos valores e ética deste
mundo. Somente pelo Espírito, os homens que eram desobedientes, néscios,
escravos de toda série de paixões e prazeres, podem ser agora solícitos na prática
de boas obras (Tt 3.3-8; Gl 1.3-4/5.16-26). (Vd. Lc 10.21; Rm 15.13; Cl 1.8; 1Ts 1.6).

Agostinho (354-430), de modo poético, diz: “....Ele chama e nós respondemos,


599
não pela voz, mas pela fé; não pela língua, mas pela vida.”

No Catecismo de Heidelberg (1563), analisando a doutrina da Justificação, lemos:


“Esta doutrina não torna as pessoas descuidadas e ímpias?”. Responde: “De
forma alguma, pois é impossível que alguém que está enxertado em Cristo
por uma verdadeira fé, não produza frutos de gratidão.” (Pergunta 64).

Um crente seguro de sua salvação é um trabalhador ardoroso e fiel na Causa de


Cristo; não um espectador indolente com uma suposta fé bem fundamentada.

O Espírito produz em nós uma unidade de propósito que tem como elemento a-
gregador o amor (Gl 5.22-23). O Espírito em nós é identificado pelo Seu fruto; o Es-
pírito nunca é estéril naquele em que habita. Contudo, há um processo gradativo de
maturidade espiritual marcado pelo nosso mais intenso conhecimento de Cristo (Fp
1.9-10) e submissão a Ele. O fruto do Espírito não é algo eventual ou esporádico

595
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 3.8), p. 88. “Sempre que nossas mentes se agi-
tam e caem em perplexidade, devemos trazer à memória a seguinte verdade: sejam quais
forem os perigos e apreensões que porventura nos ameacem, a segurança da Igreja que
Deus estabeleceu, por mais dolorosamente abalada ela seja, por mais poderosamente as-
saltada, jamais poderá ser demasiadamente enfraquecida e envolvida em ruína” [João Cal-
vino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 48.8), p. 362]. Ver também: Idem, As Institutas, I.17.6.
596
João Calvino, As Institutas, I.17.8. Veja-se também: João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl
25.4), p. 541; João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 46.3), p. 331.
597
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 11.4), p. 240.
598
A.A. Hoekema, Salvos pela Graça, p. 51.
599
Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 9/3), 1998, (Sl (102)101), Vol.
III, p. 31.
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mas, gradativo e sistemático. Somos conduzidos dia a dia a frutificar no Espírito.

6) REVELA A VONTADE DO PAI POR MEIO DA PALAVRA:

É o Espírito Quem nos dá discernimento espiritual para entendermos a Palavra


de Deus. Daí a necessidade do estudo sistemático e sincero da Palavra,
acompanhado de oração, para que possamos entender a vontade de Deus para nós
hoje (Sl 119.18/1Co 2.9-16).

600
7) DÁ-NOS LIBERDADE:

A liberdade descrita no Novo Testamento não depende da ação do ho-


mem, mas sim da obra de Cristo (Jo 8.36; Gl 2.4; 5.1), que nos outorgou o Seu Espí-
rito (Rm 5.5; 8.9; 1Co 3.16; 6.19; Ef 2.21,22); “Ora o Senhor é o Espírito; e onde está
o Espírito do Senhor aí há liberdade” (2Co 3.17). Aliás, a tentativa humana de ser
livre através de seus próprios esforços, tende sempre a ser frustrada; a revolta como
601
caminho da libertação, é sempre uma ilusão. A liberdade concedida por Cristo é
recebida pelo conhecimento dEle como nosso Senhor e Salvador (Jo 8.32/Jo 14.6).
O conhecimento de Cristo já é uma revelação da graça de Deus: Sem a obra do Pai
e do Espírito, nós jamais O receberíamos como nosso Salvador (Mt 11.27; 16.16,17;
1Co 12.3).

A salvação efetuada por Deus visa a nos tirar de uma condição e colocar-nos em
outra. Para que entendamos o sentido da liberdade que temos no Espírito, é
necessário, ainda que sumariamente, analisar o que houve em nossa vida.

A) LIBERDADE “DO”:

a) Pecado: A Escritura nos fala que todos pecaram (Rm 3.23); o pecado
602
fez-nos seus escravos, mantendo-nos sobre o seu domínio (Rm 6.14); nos fazen-
603
do cativos, como um prisioneiro de guerra (Lc 4.18; Jo 8.34; Rm 6.20 ), habitando
604
em nós (Rm 7.17,20).

Enfatizando este domínio do pecado sobre nós antes do novo nascimento, escre-
ve: “.... Sou carnal, vendido à escravidão do pecado” (Rm 7.14). A expressão “vendi-
do à escravidão”, é uma tradução interpretativa de “pipra/skw u(po\” (“pipráskõ hy-

600
Vd. Hermisten M.P. Costa, Liberdade Cristã, São Paulo: 2000.
601
Vd. José Comblin, O Espírito no Mundo, Petrópolis, RJ.: Vozes, 1978, p. 54ss.
602
Kurieu/w, “dominar como senhor”.
603
“....Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34).
“Porque, quando éreis escravos do pecado, estáveis isentos em relação à justiça” (Rm 6.20).
604
“Neste caso, quem faz isto já não sou eu, mas o pecado que habita em mim. (...) Mas, se eu faço
o que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim” (Rm 7.17,20).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 146/233

605
pó”), que significa ser vendido, estando por isso, sob o domínio do seu senhor.
Portanto, o homem entregue a si mesmo não é mais livre do que um animal sob o
jugo do seu senhor, o qual pode prendê-lo, vendê-lo ou matá-lo.

Em outro lugar, Paulo fala da prisão do homem natural: “Mas vejo nos meus
606
membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente me faz prisioneiro
da lei do pecado que está nos meus membros” (Rm 7.23)(Compare com: Lc 4.18).

Porém Deus nos libertou definitivamente do poder do pecado (Mt 1.21; Jo 8.32-
34; Rm 6.6,17,18, 20; 8.2; 2Pe 2.19; Ap 1.5); do domínio moral e espiritual deste
mundo (Gl 1.4/Jo 17.14). Agora quem habita em nós é o Espírito do Pai e do Filho
607
(Rm 8.9,11; 1Co 3.16).

Paulo, tendo experimentado esta libertação, escreve aos colossenses: “Ele nos
libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho Seu amor” (Cl
1.13). De fato, o Evangelho é uma mensagem de libertação de um estado de total
domínio, de escravidão do pecado. João referindo-se a Cristo, diz: “Aquele que nos
ama, e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados” (Ap 1.5).

b) Morte Espiritual e Eterna: Deus nos deu vida (Ef 2.1,5), restaurando-nos
à comunhão com Ele, livrando-nos da Sua ira. A ira de Deus é uma manifestação da
608
Sua justiça. Deus nos salvou da condenação eterna (morte eterna), que se
tornará plenamente evidente quando Cristo retornar em Glória para julgar a todos os
homens (Mt 16.27; At 10.42; 17.31; Rm 14.10; 1Co 4.5; 1Ts 1.10).

c) Poder de Satanás: Deus libertou-nos definitivamente do poder de


Satanás, o deus do secularismo. Cristo o derrotou e, agora, ele não mais tem
domínio sobre nós; “por isso afirmamos que os fiéis nunca, jamais, poderão ser
609
vencidos por ele [Satanás]”. (Cl 1.13/2.15; Hb 2.14,15; 1Jo 3.7-8).

d) Mundo: “O qual Se entregou a Si mesmo pelos nossos pecados para nos


610
desarraigar deste mundo perverso (aivw/noj ponhrou/)” (Gl 1.4).

Cristo morreu e ressuscitou para nos libertar definitivamente das garras de um


mundo perverso; ou seja, dos valores deste mundo, de uma ética egoísta e terrena.

Paulo fala de uma “era má, perversa”. Aos efésios, escreve: “Portanto, vede pru-

605
É digno de nota que a palavra pipra/skw somente aqui é mencionada no sentido espiritual. Nas
outras oito vezes em que ela ocorre no Novo Testamento (Mt 13.46; 18.25; 26.9; Mc 14.5; Jo 12.5; At
2.45; 4.34; 5.4), tem sempre o sentido de venda de algo material.
606
ai)xmalwti/zw, capturado, feito prisioneiro de guerra.
607
Oi)ke/w.
608
“Intimamente relacionada com a santidade de Deus está a sua ira, a qual é, de fato, a
sua reação santa ao mal” (John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Florida: Editora Vida, 1991, p. 93).
609
J. Calvino, As Institutas, 1.14.18.
610
A palavra “pressupõe que aqueles que são alcançados por seus benefícios estão corren-
do grande perigo, do qual são incapazes de livrar-se” (W. Hendriksen, Gálatas, São Paulo: Edi-
tora Cultura Cristã, 1999, p. 55).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 147/233

dentemente como andais, não como néscios, e sim como sábios, remindo o tempo,
porque os dias são maus (h`me,rai ponhrai,)” (Ef 5.15-16).

A palavra “mundo” (aivw,n) (Gl 1.4) significa as transformações pelas quais o nosso
tempo passa, conduzindo-o à degradação constante e inflexível; revela também os
valores transitórios da sociedade que se corrompe. Pertencer ao mundo significa ter
uma visão da realidade totalmente divorciada de Deus e de Sua Palavra, sendo, por-
611
tanto, governado pela perspectiva e valores do mundo no qual vivemos.

No entanto, a libertação levada a efeito por Cristo, não é simplesmente futura, an-
tes, tem o seu início agora, na presente vida. O ato completo de Cristo tem implica-
ções para sempre: Somos salvos para viver livres dos valores deste mundo até a
consumação de nossa total liberdade na eternidade.

Jesus Cristo veio para nos libertar definitivamente. Ele mesmo nos diz: “Se, pois,
o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (Jo 8.36). “O Filho do Homem veio
612
(...) para servir e dar a sua vida em resgate (lu,tron) por muitos” (Mt 20.28).

A libertação do mundo, engloba a libertação do domínio da vontade satânica so-


bre a nossa. Satanás também tem a sua vontade, o seu propósito para a nossa vida;
o homem sem Cristo, faz naturalmente a sua vontade, já que o pecado o tornou eti-
camente filho do Diabo (Jo 8.44). Calvino (1509-1564) observa que os “incrédulos
se encontram tão intoxicados por Satanás, que, em seu estupor, não têm
613
consciência de sua miséria”. Paulo instruindo sobre a “didática” do ministro, a-
lude a este tema: “Ora, é necessário que o servo do Senhor não viva a contender, e,
sim, deve ser brando para com todos, apto para instruir, paciente; disciplinando com
mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda não só o ar-
rependimento para conhecerem plenamente a verdade, mas também o retorno à
614
sensatez, livrando-se eles dos laços do Diabo, tendo sido feitos cativos por ele,
para cumprirem a sua vontade (Qe/lhma)” (2Tm 2.24-26).

e) Da Superstição: Nesta libertação do pecado, a Escritura nos mostra que


fomos salvos da superstição: “Outrora, porém, não conhecendo a Deus, servíeis a
deuses que, por natureza, não o são; mas agora que conheceis a Deus ou, antes,
sendo conhecidos por Deus, como estais voltando, outra vez, aos rudimentos fracos
e pobres, aos quais, de novo, quereis ainda escravizar-vos? Guardais dias, e meses,

611
“Ser do mundo pode ser assim resumido – é vida, imaginada e vivida, separadamente de
Deus. Noutras palavras, o que decide definitiva e especificamente se eu e vocês somos do
mundo ou não, não é tanto o que podemos fazer em particular como a nossa atitude fun-
damental. É uma atitude para com todas as coisas, para com Deus, para com nós mesmos,
e para com a vida neste mundo; em última análise, ser do mundo é ver todas estas coisas
separadamente de Deus [...]
“Ser do mundo – e isso é repetido pelos apóstolos – significa que somos governados pela
mente, pela perspectiva e pelos procedimentos deste mundo no qual vivemos” [D. Martyn
Lloyd-Jones, Seguros mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (Certe-
za Espiritual, Vol. 2), 2005, p. 28-29].
612
Preço pago para libertar um escravo. (* Mt 20.28; Mc 10.45)
613
João Calvino, As Pastorais, (2Tm 2.26), p. 247.
614
Zwgre/w, “capturar”, “feito prisioneiro”, “prender com vida” (* Lc 5.10; 2Tm 2.26).
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e tempos, e anos” (Gl 4.8-10).(Ver: 1Co 10.23-31).

O conhecimento de Cristo é definitivo, não permitindo, por não necessitar de nos-


sas invencionices pecaminosas. “É propriedade da fé pôr diante de nós aquele
conhecimento de Deus não confuso, mas distinto, o qual não nos deixa em
suspenso e à deriva, como o fazem as superstições e seus adeptos, os quais,
bem o sabemos, estão sempre introduzindo alguma nova divindade, todas
615
falsas e intermináveis”.

Com todo o avanço científico e tecnológico o homem sem Cristo continua o mes-
mo, preso às suas crendices e superstições, sendo dominado por um medo insano;
616
daí o seu prazer em ouvir mitos, entregando-se às fábulas (2Tm 4.3-4). O homem
617
é pródigo na fabricação de seus deuses, em geral, criados à sua imagem e seme-
lhança. Numa pesquisa feita na Inglaterra (talvez no final da década de 80), verifi-
cou-se que “o número de adultos que lêem o seu horóscopo toda semana é
618
o dobro dos que lêem a Bíblia”.

f) Da Maldição: “Cristo nos resgatou da maldição da lei” (Gl 3.13). A Lei de


Deus é boa; foi-nos dada para o nosso bem. Ela tornou-se maldição para nós devido
ao nosso pecado; a quebra da Lei fez com que merecêssemos o justo castigo. Aliás,
a lei precisa ser enfatizada para que o homem, por graça, se disponha a ouvir o
Evangelho. Sem a Lei, a impressão que fica, é que temos uma vida correta e
satisfatória; de nada precisamos, muito menos de salvação.

Cristo satisfez perfeitamente todas as exigências da Lei; por isso Ele pode nos
libertar definitivamente do seu aspecto condenatório, nos restaurado à comunhão
com Deus por meio de Sua obra sacrificial, fazendo-se maldito em nosso lugar.
19
Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que
se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, 20 visto que nin-
guém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o
pleno conhecimento do pecado. 21 Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de
Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; 22 justiça de Deus mediante a fé em

615
João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 48.14), p. 368.
616
“[A] fé saudável equivale à fé que não sofreu nenhuma corrupção proveniente de fábu-
las” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998 (Tt 1.14), p. 320]. “Se porventura de-
sejarmos conservar a fé em sua integridade, temos de aprender com toda prudência a re-
frear nossos sentidos para não nos entregarmos a invencionices estranhas. Pois assim que a
pessoa passa a dar atenção às fábulas, ela perde também a integridade de sua fé” [João
Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320].
617
“É propriedade da fé pôr diante de nós aquele conhecimento de Deus não confuso,
mas distinto, o qual não nos deixa em suspenso e à deriva, como o fazem as superstições e
seus adeptos, os quais, bem o sabemos, estão sempre introduzindo alguma nova divindade,
todas falsas e intermináveis” [J. Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 2,
(Sl 48.14), p. 368]. O historiador Braudel esta correto em sua percepção: “A superstição popular é
sempre capaz de minar, de comprometer a vida religiosa por dentro, deformando as pró-
prias bases da fé. Tudo, então, deve ser refeito” (Fernand Braudel, Gramática das Civilizações,
3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 312).
618
John Stott, Ouça o Espírito, Ouça o Mundo, São Paulo: ABU Editora, 1997, p. 56.
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Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que crêem; porque não há distinção, 23
pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, 24 sendo justificados gratuita-
mente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, 25 a quem
Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a
sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteri-
ormente cometidos; 26 tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo
presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus.
27
Onde, pois, a jactância? Foi de todo excluída. Por que lei? Das obras? Não; pe-
lo contrário, pela lei da fé. 28 Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé,
independentemente das obras da lei. 29 É, porventura, Deus somente dos judeus?
Não o é também dos gentios? Sim, também dos gentios, 30 visto que Deus é um
só, o qual justificará, por fé, o circunciso e, mediante a fé, o incircunciso. 31 Anu-
lamos, pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a lei.
(Rm 3.19-31).

A Lei, portanto, no seu aspecto moral, não foi abolida. “.... A lei moral de Deus é
a verdadeira e perpétua regra de justiça, ordenada a todos os homens, de
todo e qualquer país e de toda e qualquer época em que vivam, se é que
pretendem reger a sua vida segundo a vontade de Deus. Porque esta é a
vontade eterna e imutável de Deus: que Ele seja honrado por todos nós, e
619
que todos nós nos amemos uns aos outros”.

A Lei não nos salva; contudo nos mostra a necessidade que temos do perdão e
da purificação efetuada por Deus. “A regra de nossa santidade é a lei de
620
Deus”.

Por intermédio de Cristo somos libertos da tentativa insana de tentar ser salvo pe-
lo cumprimento da Lei, o que é impossível. Além do mais, este desejo ainda que fos-
se moralmente possível, não o seria dentro do propósito glorioso de glorificar o nome
de Deus, que deve ser o alvo final de todas as coisas, inclusive de nossa obediência
(1Co 10.31). Diante a Lei restam-nos hipoteticamente duas opções: cumprir as suas
exigências, o que nos é impossível, arcando, assim, com o reto juízo condenatório
de Deus. Ou buscar refúgio na misericórdia de Deus por meio de Jesus Cristo. “Na
Lei de Deus nos é apresentado um padrão perfeito de toda a justiça que
pode, com razão, ser chamada de vontade eterna do Senhor. Deus con-
densou completa e claramente nas duas tábuas tudo o que Ele requer de
nós. Na primeira tábua, com uns poucos mandamentos, Ele prescreve qual é
o culto agradável à Sua majestade. Na segunda tábua, Ele nos diz quais são
os ofícios de caridade devidos ao nosso próximo. Ouçamos a Lei, portanto, e
veremos que ensinamentos devemos tirar dele e, similarmente, que frutos
621
devemos colher dela”.

Contudo, o que a Lei exige, ela mesma não nos capacita a cumprir. Esta capaci-

619
João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa,
São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 4, (IV.16), p. 160.
620
J.I. Packer, O Plano de Deus para Você, 2ª ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléi-
as de Deus, 2005, p. 155.
621
João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 8, p. 21.
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tação é somente pela graça. “Pela lei Deus exige o que lhe é devido, todavia
não concede nenhum poder para cumpri-la. Entretanto, por meio do Evan-
gelho os homens são regenerados e reconciliados com Deus através da gra-
ciosa remissão de seus pecados, de modo que ele é o ministério da justiça e
622
da vida”.

Desprezar a Lei de Deus é um ato de insanidade pecaminosa. Na Lei de Deus


temos o princípio de sabedoria que deve nortear a nossa vida. Devemos, portanto,
623
nos aplicar no estudo da Lei, visto que “a Escritura outra coisa não é senão a
624
exposição da lei”.

B) LIBERDADE “PARA”:

A liberdade que temos é gloriosa; ela é o padrão da libertação futura da


corrupção de toda natureza (Rm 8.21/Tg 1.18).

a) Para Cristo: “Foste chamado, sendo escravo? Não te preocupes


com isso; mas, se ainda podes tornar-te livre, aproveita a oportunidade. 22 Porque o
que foi chamado no Senhor, sendo escravo, é liberto do Senhor; semelhantemente,
o que foi chamado, sendo livre, é escravo de Cristo. 23 Por preço fostes comprados;
não vos torneis escravos de homens” (1Co 7.21-23).

Cristo nos libertou da condenação eterna, do pecado e do domínio de satanás


para Si Mesmo. Ele nos libertou daquilo que nos era acidental para que sejamos
aquilo que de fato somos, a imagem de Deus; em Cristo temos o verdadeiro sentido
da nossa existência; vivemos agora pela vida de Cristo, sob a direção do Espírito
Santo. (Jo 3.3; 10.10; At 10.18,19; 20.22-24; 2Co 5.15-17; Fp 3.7-8; Cl 3.1-3).

Brunner (1889-1966), diz acertadamente o seguinte: “Quem se tornou somente


livre, ficou sem dono e, com isso, mais escravo ainda. Não há pior escravatu-
ra do que aquela de não ter dono. Nesse caso o homem é escravo da sua
própria paixão, do seu próprio ‘eu’. E o pior de todos os tiranos é o nosso
‘eu’, ou, como diz a Bíblia, o pecado. É que o ‘eu’ soberano e o pecado são
625
idênticos. Homem pecador é aquele que se diz seu próprio Senhor”.

Paulo falando da nossa libertação do pecado, caracteriza a nossa nova condição

622
João Calvino, Exposição de Segundo Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 3.7), p. 70.
623
Calvino comenta: “.... só são dignos estudantes da lei aqueles que se achegam a ela com
uma mente disposta e se deleitam com suas instruções, não considerando nada mais dese-
jável e delicioso do que extrair dela o genuíno progresso. Desse amor pela lei procede a
constante meditação nela....” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 1.2), p. 53].
624
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 1.2), p. 53.
625
Emil Brunner, Nossa Fé, 2ª ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1970, p. 88.
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626
sob a graça de Deus, dizendo: “Porque o pecado não terá domínio sobre vós....”
(Rm 6.14).

Todavia, por intermédio da libertação integral levada a efeito por Cristo Jesus,
tornamo-nos “escravos de Cristo”; já não somos vendidos, mas, sim comprados por
bom preço; pelo precioso sangue de Cristo, e, como sinal de posse perpétua de
Deus, somos habitados pelo Seu Espírito: O Espírito Santo, procedente do Pai e do
Filho. Paulo insiste neste ponto: “Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito,
se de fato o Espírito de Deus habita (Oi)ke/w) em vós. E se alguém não tem o Espíri-
to de Cristo, esse tal não é dele. (...) Se habita (Oi)ke/w) em vós o Espírito daquele
que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Je-
sus dentre os mortos, vivificará também os vossos corpos mortais, por meio do seu
Espírito que em vós habita (Oi)ke/w)” (Rm 8.9,11). “Não sabeis que sois santuário de
Deus, e que o Espírito de Deus habita (Oi)ke/w) em vós?” (1Co 3.16). (Ver também:
1Co 6.19,20; 1Pe 1.18-21).

À Igreja perseguida, Pedro intima a “remir o tempo” que lhe resta, vivendo para
Deus, segundo a Sua vontade: “Ora, tendo Cristo sofrido na carne, armai-vos
também vós do mesmo pensamento; pois aquele que sofreu na carne deixou o
pecado, para que, no tempo que vos resta na carne já não vivais de acordo com as
paixões dos homens, mas segundo a vontade de Deus” (1Pe 4.1-2).

A vontade de Deus que se concretizou em Cristo, é a nossa libertação das


paixões deste mundo para pertencermos a Cristo, o Nosso Senhor. Portanto, o
homem que é liberto do Senhor, torna-se escravo de Cristo. (Vd. 1Co 7.21-23). A
diferença fundamental desta nova condição é que o “escravo de Cristo” tem prazer
na prática da “lei da liberdade” (Tg 1.22-25; 2.12), que é a lei de Cristo (Gl 6.2; 1 Co
9.21); a lei do amor (Gl 5.13-14). Somente aqueles libertos por Cristo, e para Cristo
podem dizer sinceramente: “Agrada-me fazer a tua vontade, ó Deus; dentro em meu
coração está a tua lei” (Sl 40.8). (Vd. Sl 1.2; 119.14, 16, 47, 77, 92, 143 e 174).

b) Para o Serviço de Deus: Aqui está algo que atinge de forma


627
decisória o cerne do pensamento anomista. O homem salvo por Deus não tem o
direito, nem o desejo de voltar às práticas anteriores à sua regeneração: tais coisas
passaram (2Co 5.17).

Paulo faz uma pergunta e responde: “.... havemos de pecar porque não estamos
debaixo da lei, e, sim, da graça? De modo nenhum” (Rm 6.15). Estar salvo significa,
entre outras coisas, viver em comunhão com Deus, cumprindo prazerosamente a
Sua santa vontade (Lc 1.74-75; Rm 6.15; 1Pe 2.16/Gl 2.20; 1Jo 5.2-5).

A nossa libertação nos impulsiona a desejar cumprir os preceitos de Deus, fazer o


que Lhe agrada. Temos, agora, uma nova perspectiva de vida, um novo direciona-

626
Kurieu/w, “dominar como senhor”.
627
A palavra “anomia” significa “sem lei” (gr. a)nomi/a). Os anomistas entendiam que uma vez que fo-
mos salvos pela graça, podemos fazer o que bem entendermos; a graça – interpretavam –, nos li-
bertou para o exercício da nossa vontade.
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mento; a palavra definitiva para nós é a vontade do Deus que habita em nós: “.... Já
não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que agora tenho na
carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por
mim” (Gl 2.20).

A Confissão de Westminster (1647) resume bem o que estamos dizendo:

“Aqueles que, sob o pretexto de liberdade cristã, cometem qualquer


pecado ou toleram qualquer concupiscência, destroem, por isso mesmo o
fim da liberdade cristã; o fim da liberdade é que, sendo livres das mãos
dos nossos inimigos, sem medo sirvamos ao Senhor em santidade e justiça,
diante dele, todos os dias da nossa vida” (XX.3).

É justamente no serviço prestado a Deus que o homem encontra a verdadeira


expressão da sua liberdade (Rm 6.22; Gl 5.13; 1Pe 2.16).

Deste modo, sabemos que quando aceitamos a Cristo como nosso salvador
pessoal, estamos definitivamente libertos para Deus.

Observem a recomendação que Pedro faz às igrejas da Dispersão: “Porque assim


é a vontade (Qe/lhma) de Deus, que pela prática do bem, façais emudecer a
ignorância dos insensatos; como livres que sois, não usando, todavia, a liberdade
628 629
por pretexto (E)pika/lumma) de malícia (kaki/a), mas vivendo como servos
(dou=loj) de Deus” (1Pe 2.15,16).

Pedro está dizendo que a nossa liberdade em Cristo jamais poderá servir de
desculpa para a malícia; o limite de nossa liberdade é a vontade de Deus revelada
em Sua Palavra. Somos servos de Deus, portanto a Sua vontade estabelece as
normas e os limites de nossa liberdade.

O que dá maior relevância ao preceito do apóstolo Pedro, é que ele escreveu es-
sa Epístola para os cristãos das igrejas da Dispersão (1Pe 1.1) – localizadas na re-
gião da Ásia Menor (hoje, Turquia) –, que estavam experimentando tempos difíceis
de severa perseguição (1Pe 1.6; 2.18-25; 4.12-16). O sofrimento é um dos pontos
mencionados com frequência nessa Carta. Pedro objetivava encorajá-los, ratificando
a esperança que todos deveriam ter depositada em Cristo. Por isso, “esperança” é a
palavra chave desta Carta (1Pe 1.3,13,21; 3.5,15). Daqui se depreende que as con-
tingências políticas e sociais não devem determinar a nossa ética, mas, sim a Pala-

628
Esta palavra só ocorre aqui em todo o NT. Tem o sentido de “capa”, “cobertura”, “véu”. Aquilo que
encobre; daí o sentido de “pretexto”
629
“Mal”, “malícia”, “maldade”, “impiedade”, “depravação”, “vício”, “malignidade”. A palavra em alguns
textos significa uma depravação mental de onde decorrem todos os outros vícios; ela tem de modo
especial um sentido ético. * Mt 6.34; At 8.22; Rm 1.29; 1Co 5.8; 14.20; Ef 4.31; Cl 3.8; Tt 3.3; Tg 1.21;
1Pe 2.1,16. Na literatura clássica a palavra tinha o sentido de “vício” e “injustiça” (Vejam-se: Platão, A
República, 444e; Platão, Fedro, 248b; Aristóteles, Arte Retórica, II.12; Aristóteles, Ética à Nicôma-
co, VII.1.15; Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pen-
sadores, Vol. II), 1972, II.1.21). Calvino (1509-1564) comentando o uso da palavra em Ef 4.31, diz:
“Por esse termo ele quer dizer que a depravação da mente, a qual é oposta ao espírito hu-
mano e à probidade, e a qual é usualmente chamada malignidade” (J. Calvino, Efésios, p.
149).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 153/233

vra de Deus.

Notemos que num período de sofrimento e perseguição, é possível que algumas


pessoas, até mesmo bem intencionadas – contudo, sem o conhecimento devido da
Palavra –, usem do Evangelho para validar os seus desejos. Deste modo, a Bíblia
passa a dizer o que queremos que Ela diga. No contexto da Epístola, poderiam
surgir interpretações que afirmassem a liberdade cristã como pretexto para uma luta
armada, o não pagamento de impostos, a desobediência às autoridades e atitudes
semelhantes. Muitas vezes nós justificamos os nossos pecados, baseando-nos
numa prática que julgamos comum, ou em nome da “liberdade” de Cristo. Pedro,
então, está dizendo que a maldade jamais poderá ser praticada em nome da
liberdade cristã.

O que ocorre com frequência, é a deturpação da doutrina cristã, tornando-a des-


culpa para o pecado, daí a advertência de Pedro.

A liberdade em Cristo deve ser vista não como consentimento para fazer o que
queremos, mas sim, como a responsabilidade para cumprirmos o que deve ser feito
conforme a vontade de Deus: a nossa liberdade é para a prática do bem (1Pe 2.15-
16). “O fim da liberdade cristã é incentivar-nos e induzir-nos à prática do
630
bem”.

c) Para servirmos ao nosso próximo: Servimos ao nosso próximo


com a liberdade que Cristo nos deu, no amor de Cristo e do Seu Evangelho:
“19
Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o
maior número possível. 20 Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de
ganhar os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo
assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu
debaixo da lei. 21 Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei
para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do
regime da lei. 22 Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos.
Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns. 23
Tudo faço por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador com ele”
(1Co 9.19-23).
“Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor e
a nós mesmos como vossos servos, por amor de Jesus” (2Co 4.5).
“Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da
liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo
amor” (Gl 5.13).

Martinho Lutero (1483-1546) expressou isto da seguinte maneira: “Um cristão é


senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém. “Um cristão é

630
João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa,
São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 4, (IV.14), p. 93.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 154/233

631
servidor de todas as coisas e sujeito a todos”.

d) Para a prática da Justiça: A graça não pode nem deve ser banali-
zada. Fomos libertos para uma vida de justiça: “Carregando Ele mesmo em seu cor-
po, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos aos pecados, viva-
mos para a justiça” (1Pe 2.24). Paulo escreve aos romanos: “E, uma vez libertados
do pecado, fostes feitos servos da justiça. Falo como homem, por causa da fraqueza
da vossa carne. Assim como oferecestes os vossos membros para a escravidão da
impureza, e da maldade para a maldade, assim oferecei, agora, os vossos membros
para servirem à justiça para a santificação. Porque, quando éreis escravos do
pecado, estáveis isentos em relação à justiça. Naquele tempo que resultados co-
lhestes? Somente as cousas de que agora vos envergonhais; porque o fim delas é a
morte” (Rm 6.18-21).

Paulo desafia os crentes romanos a desenvolverem a sua liberdade no uso


constante da prática da justiça; ele faz um paralelo entre a nossa escravidão anterior
à maldade (Rm 6.19) e agora; livres que somos, devemos oferecer os nossos
membros para a justiça.

Livres do pecado, nos tornamos incondicionalmente servos da justiça. Se antes,


em nossa escravidão espiritual, servíamos ao pecado, agora, libertos por Cristo,
devemos obedecer à justiça.

e) Para a santificação e vida eterna: Paulo escreve aos romanos


falando da nossa situação atual e do alvo proposto por Deus para nós: “Agora,
porém, libertados do pecado, transformados em servos de Deus, tendes o vosso
fruto para a santificação, e por fim a vida eterna” (Rm 6.22). O homem justificado por
Deus foi liberto da condenação da Lei. Esta libertação implica o início de uma nova
fase da sua vida, na qual a sua prioridade é o crescimento espiritual em obediência
à Palavra de Deus. O fruto da obediência ao pecado é a morte (Rm 6.21,23). O
resultado da nossa obediência a Deus é a vida eterna.

A justificação e a santificação são obras que Deus opera inseparavelmente. Fo-


mos declarados justos (Rm 5.1) e agora, em paz com Deus, tem início em nossa vi-
da o processo de santificação. Como bem escreveu F.F. Bruce (1910-1990), “a san-
632
tificação é o começo da glória e a glória é a santificação completada”.

Usamos corretamente a nossa liberdade quando nos apropriamos de todos os

631
M. Lutero, Da Liberdade Cristã, 3ª ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1979, p. 9. (Esta obra também
foi publicada In: Marinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo/Porto Alegre, RS.: Sino-
dal/Concórdia, 1989, Vol. 2, p. 437).
632
F.F. Bruce, La Epistola a Los Hebreos, Michigan: Nueva Creacion, 1987, p. 45. Da mesma forma
compreende Packer, quando diz: “A santidade será perfeita lá no céu. Estarmos incapacita-
dos de pecar será tanto a nossa liberdade como o nosso gozo” (J.I. Packer, Vocábulos de
Deus, São Paulo: Fiel, 1994, p. 164). (Veja-se também: C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação,
São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 68).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 155/233

meios que Deus nos fornece para o desenvolvimento de nossa fé.

***
William Hendriksen (1900-1982) expressou o conceito cristão de liberdade, nestes
termos: “Se é livre quando o pecado não nos domina, e quando a Palavra
de Cristo domina o coração e a vida. Se é livre, por conseguinte, não quan-
do se pode fazer o que se quer, senão quando se deseja fazer o que se deve
633
fazer”.

Somente aqueles que têm a liberdade do Espírito, podem dizer sinceramente: “A-
grada-me fazer a tua vontade, ó Deus meu; dentro em meu coração está a tua lei”
(Sl 40.8). (Vd. Sl 1.2; 119.14,16,24,47,77,92,143,174).

8) DÁ-NOS ESPERANÇA: (RM 15.13; GL 5.5)

Fomos regenerados pelo Espírito para uma viva esperança, a qual se


fundamenta num fato histórico: a ressurreição de Jesus Cristo (1Pe 1.3/1Co 15.12-
20).

Provavelmente no início do 5º século da Era Cristã, Agostinho (354-430), num


sermão, diria:

“A fé dos cristãos não é louvável porque eles crêem no Cristo que


morreu, mas no Cristo que ressuscitou. Pois, também o pagão acredita
que ele morreu e te acusa como de um crime teres acreditado num
morto. Que tens, portanto, de louvável? teres acreditado que Cristo
ressuscitou e esperar que hás de ressuscitar por Cristo. Nisto consiste uma
fé louvável. ‘Se confessares com tua boca que Jesus é Senhor e creres em
teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo’ (Rm
634
10.9). (...) Esta é a fé dos cristãos.”

A fé é demonstrada na nossa atitude de esperança depositada em Deus e nas


Suas promessas. A esperança sem o conhecimento de Cristo e de Suas promessas,
é apenas uma utopia humana, criada pelo gênio inventivo do homem em busca de
uma sociedade melhor. Todavia isto não é a esperança cristã.

A esperança cristã, produzida pelo poder do Espírito em nós, ampara-se em Cris-


to. Jesus Cristo é o Senhor e o alvo da nossa esperança que procede da fé. (Rm
4.18; 6.8; 1Co 15.19; 2Tm 1.12; 4.7; Hb 11.1). “A esperança não é mais do que
635
o alimento e a força da fé”.

633
G. Hendriksen, El Evangelio Segun San Juan, Grand Rapids, Michigan: SLC., 1981, (Jo 8.32), p.
317.
634
Agostinho, Comentário aos Salmos, (Sl 101), Vol. III, p. 32-33.
635
J. Calvino, As Institutas, III.2.43
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 156/233

636
A esperança só pode persistir fundamentada numa convicção escatológica,
contudo esta esperança respalda-se na realidade presente, nos atos de Deus reali-
zados no passado e em processo de execução no presente, conforme a Palavra
nos diz e temos vivenciado. A escatologia cristã fundamenta-se sempre na verdade
e fidedignidade do Deus Soberano.

“Nossa fé repousa no fundamento de que Deus é verdadeiro. Além do


mais, esta verdade se acha contida em sua promessa, porquanto a voz
divina tem de soar primeiro para que possamos crer. Não é qualquer gê-
nero de voz que é capaz de produzir fé, senão a que repousa sobre uma
única promessa. Desta passagem, pois, podemos deduzir a relação mútua
entre a fé dos homens e a promessa de Deus. Se Deus não prometer,
637
ninguém poderá crer”.

A esperança cristã, por ser produzida pelo Espírito, também não se confunde com
um otimismo fundamentado na falsa ideia do “poder do pensamento positivo”. A
esperança cristã está alicerçada na certeza de que os caminhos de Deus serão
sempre vitoriosos, pois Deus é o Senhor da História. O realismo cristão é repleto de
esperança, porque consegue ter uma perspectiva diferente da realidade; enxerga os
problemas dentro de um quadro de referência teológico, sabendo que Deus
consumará a Sua vontade a despeito da maldade humana e dos ardis de satanás.
Assim compreendendo, Paulo, na prisão pôde escrever aos filipenses: “Quero ainda,
irmãos, cientificar-vos de que as cousas que me aconteceram têm antes contribuído
para o progresso do evangelho; de maneira que as minhas cadeias, em Cristo, se
tornaram conhecidas de toda a guarda pretoriana e de todos os demais; e a maioria
dos irmãos, estimulados no Senhor por minhas algemas, ousam falar com mais
desassombro a palavra de Deus” (Fp 1.12-14).

Como é óbvia, a situação de Paulo não era cômoda nem tranquila; no entanto,
pelo Espírito, ele tinha uma visão real dos fatos. Paulo não estava iludido, antes,
sabia avaliar teologicamente todas as questões...

Cerca de 5 anos antes, então em Corinto, Paulo escreveu a Epístola aos


Romanos, na qual dizia: “Sabemos que todas as cousas cooperam para o bem
daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito”
(Rm 8.28).

Fazendo um retrospecto da pregação em Filipos, constatamos a “lógica” de


Paulo:

Paulo desejava ir para a Bitínia, porém o Espírito de Deus não o permitiu (At
16.7), depois ele teve a visão “na qual um varão macedônio estava em pé e lhe ro-
gava, dizendo: Passa a Macedônia, e ajuda-nos” (At 16.9). Foi para Filipos. Assim,
juntamente com Silas, pôde pregar naquela colônia romana, evangelizando Lídia, a
vendedora de púrpura e a todos os seus familiares (At 16.14,15)... Depois Paulo
expulsou o demônio de uma jovem adivinhadora, dando prejuízo aos seus senhores;

636
Vd. J. Grau, Curso de Formacion Teologica Evangelica, Terrassa, Barcelona: CLIE., 1977, p. 17.
637
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 10.23), p. 270.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 157/233

ele foi acusado, açoitado e preso. Na prisão teve a oportunidade de pregar ao carce-
reiro que se converteu juntamente com os seus familiares e, também, testemunhou
para os outros companheiros de cela. Portanto, Paulo sabia o que estava dizendo
(Fp 1.12).

Agora, havia em Filipos uma grande e viva Igreja, que veio à existência através
daqueles acontecimentos ocorridos há cerca de 10 anos. Além disso, a sua atual
prisão em Roma estava estimulando a maioria dos irmãos a viver dignamente a sua
fé e a proclamarem o Evangelho com ousadia.

Deste modo, aos irmãos perseguidos, pôde dizer: “Porque vos foi concedida a
graça de padecerdes por Cristo, e não somente de crerdes nele, pois tendes o
mesmo combate que vistes em mim e ainda agora ouvis que é o meu” (Fp 1.29-30).

Muitos de nossos problemas são de fato problemas; ninguém está dizendo que
não sejam: acontece que Deus através das nossas dificuldades, tentações e
provações, quer nos mostrar uma nova perspectiva da nossa vida e da nossa
existência.

Quando aprendemos a ter uma visão real dos fatos, tornamo-nos mais felizes,
sem otimismo ou pessimismo humanos, somos apenas realistas em Deus;
depositando toda a nossa esperança em Deus e na Sua promessa, considerando a
Deus em todos os nossos caminhos. (Vd. Sl 119.71; Is 38.17; Rm 8.28).

9) FORTALECE-NOS:

No texto de Ef 3.16, Paulo ora para que Deus através do Espírito, fortaleça com
poder o “homem interior” (Vd. 2Co 4.16). Paulo pede a Deus que o Espírito fortaleça
o coração dos efésios, a fim de que a Sua presença diretiva seja mais evidente e,
que eles possam ter pelo poder do Espírito, força para enfrentar todas as
dificuldades da vida. De fato, quando o Espírito nos fortalece, sentimos as nossas
forças revigoradas e assim, podemos caminhar diante de todos os conflitos e
obstáculos, na força do Espírito (Vd. 1Co 16.13; Fp 4.13).

É justamente isto que Pedro diz à Igreja perseguida: “Se, pelo nome de Cristo,
sois injuriados, bem-aventurados sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória
e de Deus” (1Pe 4.14). O Espírito nos capacita a enfrentar as tribulações e
angústias, nos assistindo e protegendo em todos os momentos (Mt 10.16-20/2Co
4.7-15). Sofrer afrontas pelo nome de Cristo deve ser considerado como um motivo
de alegria, visto sermos identificados com os profetas e os apóstolos que sofreram
por esta mesma pregação (Mt 5.11,12; At 5.41). O Espírito não os desamparou nem
nos desamparará também.

Lloyd Jones (1899-1981), comentando Ef 3.16, diz: “Nosso segredo como cris-
tãos, como no-lo recorda o apóstolo, é que temos um homem interior, e
quando esse homem interior é fortalecido pelo Espírito Santo, o que aconte-
ce ao nosso redor e ao próprio homem exterior é relativamente sem impor-
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 158/233

638
tância.”

9. A TRINDADE E O CULTO LEGÍTIMO:

“Nós adoramos a Deus porque Ele


nos criou para adorá-Lo” – Hughes
639
Oliphant Old.

“O ministério da Palavra é a
plataforma sobre a qual a verdadeira
adoração é edificada” – John
640
MacArthur Jr.

“Todo o culto prescrito na lei não era


nada mais do que um quadro que pre-
figurava o espiritual em Cristo” – João
641
Calvino.

9.1. Escolhidos para Adorar:

Paulo em sua maravilhosa doxologia (Ef 1.3-14), declara que Deus nos tem
abençoado continuamente em Cristo. Ele bendiz a Deus com uma expressão de a-
ção de graças, considerando as bênçãos de Deus que recebemos por Cristo: “que
nos tem abençoado (eu)logh/saj)” (3). O particípio aoristo (eu)logh/saj), indica den-
tro deste contexto, um fato consumado e a ação continuada de Deus. Podemos in-
terpretar que Deus na eternidade já nos abençoou definitivamente; a sua bênção é
completa; todavia, ela é-nos comunicada constantemente através da história. Essas
bênçãos são multifacetadas: “toda sorte” (pa/sh), na realidade, “todas” e “cada” bên-
ção que temos, sem exceção, provém do Senhor. As “regiões celestiais” (e)n toi=j

638
D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, p. 115.
639
Hughes Oliphant Old, Worship: That Is Reformed According to Scripture, Atlanta: John Knox
Press, 1984, p. 1.
640
John MacArthur, Como Devemos Cultuar a Deus?: In: Fé para Hoje, São José dos Campos, SP.:
Fiel, nº 10, 2001, p. 13.
641
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 8.5), p. 207.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 159/233

642
e)pourani/oij = lit. “dos céus”, “celestiais”) indicam a procedência das bênçãos.
Elas provêm de Deus, o Pai que habita os céus (Mt 6.9) e, para onde Ele mesmo
nos levará (2Tm 4.18). Devemos estar atentos ao fato de que tudo que temos pro-
vém de Deus, através de Cristo, sendo comunicado pelo Espírito. De modo especial
o texto destaca algumas dessas bênçãos: a eleição (4-5), a redenção (7), o selo do
Espírito (13-14). Portanto, “é uma tentação muito grave, ou seja, avaliar al-
guém o amor e o favor divinos segundo a medida da prosperidade terrena
643
que ele alcança”. As bênçãos são espirituais porque se originam em Deus,
sendo-nos comunicadas pelo Espírito. Essas bênçãos relacionam-se diretamente ao
ministério de Cristo, que é celestial (2Tm 4.18), tendo um alcance cósmico (Ef 3.10).
Isso também denota a nossa nova condição: Deus “nos fez assentar nos lugares ce-
lestiais (e)pourani/oij)” (Ef 2.6) juntamente com Cristo (Ef 1.20). Essa realidade é al-
tamente estimulante: cada bênção de Deus, o Seu cuidado mantenedor e preserva-
dor constitui-se na administração de Sua graça, concedida em Cristo Jesus desde a
eternidade. Devemos então, considerar que, “se desejamos refrear nossas pai-
xões, devemos recordar que todas as coisas nos têm sido dadas com o pro-
644
pósito de que possamos conhecer e reconhecer o seu autor”.

Considerando essas bênçãos, que ultrapassam em muito a nossa capacidade de


pensar, sentir ou imaginar (Ef 3.20), devemos buscar o reino de Deus (Mt 6.33); as
“coisas lá do alto” onde Cristo está à direita de Deus (Cl 3.1).

Tudo que temos é “em Cristo”. “Vê-se então que a fé nos ensina que todo o
bem que nos é necessário e que em nós mesmos não existe está em Deus e
em Seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, em quem o Senhor constituiu toda a
645
plenitude das Suas bênçãos e da Sua liberalidade”. Neste texto, Ef 1.3-14,
há pelo menos doze referências diretas a Cristo, indicando a verdade de que, fora
de Cristo nada somos e nada temos; Ele é o fundamento da Igreja. Juntamente com
os dons celestiais, Cristo dá-se a Si mesmo por nós (Rm 8.32). A eleição tem um
sentido escatológico: é da eternidade para a eternidade em santificação: até que a
646
nossa salvação seja consumada na glorificação.

Paulo inicia a doxologia bendizendo a Deus, demonstrando que Deus é digno de


ser bendito. A palavra bendito, (Eu)loghto\j = “louvado”, “bem-aventurado”) (Hebrai-
co: Baruk; Latim: Benedictus) ocorre 8 vezes no Novo Testamento e é sempre usada
647
para Deus (Mc 14.61; Lc 1.68; Rm 1.25; 9.5; 2Co 1.3; 11.31; Ef 1.3; 1Pe 1.3). A
fraseologia desta saudação, também empregada em 2Co 1.3, assemelha-se à de
Pedro em 1Pe 1.3. Na Epístola aos Coríntios, Paulo bendiz a Deus considerando o
fato de que é Ele quem nos conforta em toda a nossa tribulação; Pedro, bendiz a

642
E)poura/nioj: Mt 18.35 (variante textual); Jo 3.12; 1Co 15.40,48,49; Ef 1.3,20; 2.6; 3.10; 6.12; Fp
2.10; 2Tm 4.18; Hb 3.1; 6.4; 8.5; 9.23; 11.16; 12.22.
643
João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 17.14), p. 346.
644
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 72.
645
João Calvino, As Institutas, (1541), III.9.
646
Vd. J. Calvino, As Institutas, III.22.10.
647
Na Septuaginta, a única vez que a palavra é usada para referir-se ao homem é em Gênesis
24.31.
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Deus considerando a nossa regeneração efetuada pela misericórdia de Deus, para


que tenhamos uma viva esperança por intermédio da ressurreição de Cristo. Em E-
fésios, Paulo, contemplando a extensão da obra do Deus triúno de eternidade a e-
648
ternidade efetuando a nossa eleição, dá graças a Deus. (Ver o Salmo 103).

Paulo diz que Deus, o Pai, tem, através da história, manifestado as suas bênçãos
eternas para conosco – Paulo, os efésios e todos os santos em todos os tempos –
nas regiões celestiais em Cristo Jesus. Notemos aqui, que Deus é Pai do “nosso
Senhor Jesus Cristo” (path\r tou= kuri/ou h)mw=n )Ihsou= Xristou=).

Paulo dá graças a Deus considerando então as bênçãos de Deus derramadas


sobre o seu povo: No passado: (Eleição) (Ef 1.3,4); No presente: (Redenção) (Ef
1.7); No futuro: (Posse definitiva da vida eterna) (Ef 1.12-14).

O mesmo Espírito que nos abençoa, orienta-nos em nossa adoração, a fim de


que ofereçamos a Deus «hinos e cânticos espirituais» (Ef 5.19), conforme acentuou
Old: “Os hinos e salmos que são cantados na adoração sãos músicas
649
espirituais, isto é, elas são as músicas do Santo Espírito (Atos 4.25; Ef 5.19)”.
(Ver: Cl 3.16).

Paulo bendiz a Deus contemplando a extensão da obra do Deus triúno de


eternidade a eternidade efetuando a nossa eleição. Os eleitos bendizem a Deus pelo
que Ele é e pelo que Ele fez por nós. A gratidão deve nortear o nosso
relacionamento com Deus. “Não há um caminho mais direto (à gratidão), do
que o de tirarmos nossos olhos da vida presente e meditar na imortalidade
650
do céu”.

Deus deve ser sempre o alvo de nossa adoração sincera, resultante de um cora-
ção consciente e agradecido, que reconhece a Sua Glória e os Seus atos salvadores
e abençoadores (2Ts 2.13/Ef 5.20). Comentando o Salmo 6, Calvino assim se ex-
pressa: “Depois de Deus nos conceder gratuitamente todas as coisas, ele
651
nada requer em troca senão uma grata lembrança de seus benefícios”.

Fomos eleitos por Deus na eternidade para que O adoremos. Portanto, no culto a
igreja vivencia o propósito de sua eleição: o fim principal do homem é glorificar a
Deus! A igreja é a comunidade de adoradores que se congrega para testemunhar
publicamente os atos graciosos de Deus.

648
Ver: R.C.H. Lenski, The Interpretation of St. Paul´s Epistles to the Ephesians, Peabody,
Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1998, (Ef 1.3), p. 349.
649
Hughes Oliphant Old, Worship: That Is Reformed According to Scripture, Atlanta: John Knox
Press, 1984, p. 6.
650
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 73.
651
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 6.5), p. 129. Por sua vez, “os ímpios e hipócritas
correm para Deus quando se vêem submersos em suas dificuldades; mas assim que se vêem
livres delas, olvidando seu libertador, se regozijam com frenética hilaridade” [João Calvino, O
Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 28.7), p. 608].
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9.2. O Culto como Atitude Responsiva:

“Nós adoramos a Deus porque Ele


nos criou para adorá-Lo” – Hughes Oli-
652
phant Old.

“Todo o culto prescrito na lei não era


nada mais do que um quadro que pre-
figurava o espiritual em Cristo” – João
653
Calvino.

Normalmente quando se fala de Culto ou do seu porquê, tem-se seguido cami-


nhos desviantes da fé cristã ou, quando se localiza a trilha correta, confunde-se,
muitas vezes, o caminho da ação com o da resposta, percorrendo-se, assim, apenas
a metade da estrada, esquecendo-se da sua origem, da sua “causa primeira”. Afirmo
isto porque tenho observado que, quando o assunto é culto, amiúde tem-se partido
do ponto referente à aproximação do homem em direção a Deus, colocando, desta
forma, o ponto de partida no homem, no desejo deste em buscar a Deus, evidenci-
ando-se, embora de modo correto, a teocentricidade do Culto. Todavia, isso não é
suficiente. O culto cristão não é uma ação humana, mas sim, uma resposta; uma ati-
tude responsiva à ação de Deus que primeiro veio ao homem, revelando-Se e capa-
citando-o a responder-Lhe. A essencialidade desta atividade é apontada pelo fato de
654 655
que é Deus mesmo Quem procura constantemente Seus adoradores: “....vem
a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e
656
em verdade; porque são estes que o Pai procura (zhte/w) para seus adoradores”

652
Hughes Oliphant Old, Worship: That Is Reformed According to Scripture, Atlanta: John Knox
Press, 1984, p. 1.
653
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 8.5), p. 207.
654
O verbo zhte/w na sua forma indicativa, conforme aparece em Jo 4.23, aponta para a atividade
contínua e habitual de Deus.
655
Ver: Boanerges Ribeiro, O Senhor que Se Fez Servo, São Paulo: O Semeador, 1989, p. 46-47;
John Frame, Em Espírito e em Verdade, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 33.
656
Este verbo (92 vezes no NT), quando empregado referindo-se à ação do Pai e do Filho, em suas
poucas aparições, tem um sentido altamente significativo. a) Jesus, o Filho, busca não a sua glória,
mas a do Pai: “Respondeu-lhes Jesus: O meu ensino não é meu, e sim daquele que me enviou. Se
alguém quiser fazer a vontade dele, conhecerá a respeito da doutrina, se ela é de Deus ou se eu falo
por mim mesmo. Quem fala por si mesmo está procurando (zhte/w) a sua própria glória; mas o que
procura (zhte/w) a glória de quem o enviou, esse é verdadeiro, e nele não há injustiça” (Jo 7.16-18);
“Replicou Jesus: Eu não tenho demônio; pelo contrário, honro a meu Pai, e vós me desonrais. Eu não
procuro (zhte/w) a minha própria glória; há quem a busque (zhte/w) e julgue” (Jo 8.49-50). b) O Fi-
lho busca fazer a vontade do Pai: “Eu nada posso fazer de mim mesmo; na forma por que ouço,
julgo. O meu juízo é justo, porque não procuro (zhte/w) a minha própria vontade, e sim a daquele que
me enviou” (Jo 5.30). c) O Filho veio buscar o perdido: “Porque o Filho do Homem veio buscar
(zhte/w) e salvar o perdido” (Lc 19.10). Esta passagem faz eco à promessa de Deus que, através de
Ezequiel, dissera: “Como o pastor busca o seu rebanho, no dia em que encontra ovelhas dispersas,
assim buscarei as minhas ovelhas; livrá-las-ei de todos os lugares para onde foram espalhadas no dia
de nuvens e de escuridão. Tirá-las-ei dos povos, e as congregarei dos diversos países, e as introduzi-
rei na sua terra; apascentá-las-ei nos montes de Israel, junto às correntes e em todos os lugares habi-
tados da terra. Apascentá-las-ei de bons pastos, e nos altos montes de Israel será a sua pastagem;
deitar-se-ão ali em boa pastagem e terão pastos bons nos montes de Israel. Eu mesmo apascentarei
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 162/233

657
(Jo 4.23). Deus não procura líderes, “facilitadores”, mestres ou discípulos, mas
sim, adoradores. Hendriksen (1900-1982) corretamente assevera: “Não no sentido
em que existem pessoas que se tornaram esse tipo de adoradores, e que o
Pai, por assim dizer, os está procurando, mas sim, no sentido em que Ele pro-
cura seus eleitos para que os tenha como tais adoradores. Sua busca é sal-
658
vadora (cf. Lc 19.10)”. Deste modo, devemos enfatizar que “a finalidade ou o
propósito do evangelismo e de missões é criar um povo para adorar a
659
Deus”. A adoração é a nossa mais importante e permanente atividade, tanto aqui
como na eternidade. Portanto, nós cultuamos a Deus não para simplesmente “evan-
gelizar” os incrédulos, antes, para expressar em fé a nossa adoração, louvor e grati-
660
dão. O Culto a Deus deve ser a atitude natural do povo de Deus em reconheci-
mento prazeroso de Seu senhorio sobre a nossa existência e de ser Ele o originador
e provedor de todas as bênçãos celestiais que temos recebido em Cristo Jesus:

as minhas ovelhas e as farei repousar, diz o SENHOR Deus. A perdida buscarei, a desgarrada torna-
rei a trazer, a quebrada ligarei e a enferma fortalecerei; mas a gorda e a forte destruirei; apascentá-
las-ei com justiça” (Ez 34.12-16). Na Parábola da “Ovelha Perdida”, temos figura semelhante: “Que
vos parece? Se um homem tiver cem ovelhas, e uma delas se extraviar, não deixará ele nos montes
as noventa e nove, indo procurar (zhte/w) a que se extraviou?” (Mt 18.12).
No Antigo Testamento ao povo rebelde, distante de Deus, alheio à Aliança, Deus o conclama a
voltar-se para Ele com integridade de coração. Deus se deixaria achar: “Buscar-me-eis e me achareis
quando me buscardes de todo o vosso coração” (Jr 29.13/Dt 4.29; Is 55.6). Na reforma levada a efeito
por Asa – o terceiro Rei de Judá após a divisão das tribos de Israel. Asa governou durante 41 anos
(c. 910-869) –, houve esta busca sincera por Deus: “Israel esteve por muito tempo sem o verdadeiro
Deus, sem sacerdote que o ensinasse e sem lei. Mas, quando, na sua angústia, eles voltaram ao
SENHOR, Deus de Israel, e o buscaram, foi por eles achado” (2Cr 15.3-4). O Cronista fala de várias
pessoas das tribos de Israel que se juntaram a Judá com o propósito de buscar a Deus: “Entraram em
aliança de buscarem ao SENHOR, Deus de seus pais, de todo o coração e de toda a alma” (2Cr
15.12). No Novo Testamento, Jesus Cristo ratifica o ensino do Antigo Testamento, estabelecendo a
prioridade do Reino e de sua justiça: “Buscai (zhte/w), pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua jus-
tiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6.33). Temos também a promessa de encon-
trar Aquele a quem buscamos: “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai (zhte/w) e achareis; batei, e abrir-se-vos-
á. Pois todo o que pede recebe; o que busca (zhte/w) encontra; e, a quem bate, abrir-se-lhe-á.” (Mt
7.7-8). No entanto, Jesus não se deixa enganar: Ele sabe da sinceridade de nosso coração e de nos-
sos verdadeiros desejos: “Quando, pois, viu a multidão que Jesus não estava ali nem os seus discípu-
los, tomaram os barcos e partiram para Cafarnaum à sua procura. E, tendo-o encontrado no outro la-
do do mar, lhe perguntaram: Mestre, quando chegaste aqui? Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em
verdade vos digo: vós me procurais, (zhte/w) não porque vistes sinais, mas porque comestes dos
pães e vos fartastes” (Jo 6.24-26).
Paulo, considerando a liberdade cristã em relação aos “rudimentos do mundo”, exorta: “Portanto,
se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai (zhte/w) as coisas lá do alto, onde Cristo vive,
assentado à direita de Deus” (Cl 3.1). De fato, como somos peregrinos neste mundo, buscamos in-
tensamente a cidade eterna: “Na verdade, não temos aqui cidade permanente, mas buscamos
(e)pizhte/w) a que há de vir” (Hb 13.14).
Lucas relata que o procônsul Sérgio Paulo, que ouvia a Paulo e a Barnabé, tinha grande avidez
pela Palavra: “.... o procônsul Sérgio Paulo, que era homem inteligente. Este, tendo chamado Barna-
bé e Saulo, diligenciava (e)pizhte/w) para ouvir a palavra de Deus” (At 13.7).
657
Vd. Confissão de Fé de Westminster, IX.3,4.
658
William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, (Jo 4.23), p. 226.
659
Terry L. Johnson, Adoração Reformada: A adoração que é de acordo com as Escrituras, São
Paulo: Puritanos, 2001, p. 23. “Deus salva os homens para fazê-los adoradores” (A.W. Tozer, O
Poder de Deus, 2ª ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 113).
660
Vd. Michael S. Horton, O Cristão e a Cultura, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 84.
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“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com
toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo” (Ef 1.3).

A adoração correta ao verdadeiro Deus, é uma atitude de fé, gratidão e obediên-


cia na qual, o adorador se prostra diante do Deus que o atraiu com a Sua graça irre-
661
sistível. Neste ato de culto, o homem confessa sua dependência de Deus, profes-
sando a sua fé em resposta à Palavra criadora de Deus (Jo 1.1-3; Rm 1.16; 10.17;
662
Tg 1.18,21; 1Pe 1.23). A Palavra de Deus é criadora porque gera a fé e, todas as
vezes que Deus fala ao homem, algo de novo acontece, o homem não pode ser
mais o mesmo, ele não pode mais ignorar este acontecimento (At 4.20). E isto, se
expressa em culto. Deus fala e o homem adora; Deus Se mostra, o homem contem-
pla; Deus abençoa, o homem louva... "De longe se me deixou ver o Senhor, dizendo:
Com amor eterno eu te amei, por isso com benignidade te atraí" (Jr 31.3).

Quando nos reunimos para cultuar a Deus, exercitamos o Sacerdócio Universal


dos Crentes, que só se torna possível através do sacrifício expiatório de Jesus Cristo
663
(Vejam-se: Hb 7.22-28; 9.11-14; 10.19-25 /Hb 6.19-20). Ele foi o nosso precursor à

661
Vd. Confissão de Fé de Westminster, X.1,2.
662
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princí-
pio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se
fez” (Jo 1.1-3).“Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de
todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego” (Rm 1.16). “.... a fé vem pela pregação, e
a pregação, pela palavra de Cristo” (Rm 10.17). “Pois, segundo o seu querer, ele nos gerou pela pa-
lavra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas” (Tg 1.18). “Portanto,
despojando-vos de toda impureza e acúmulo de maldade, acolhei, com mansidão, a palavra em vós
implantada, a qual é poderosa para salvar a vossa alma” (Tg 1.21). “Pois fostes regenerados não de
semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é permanente”
(1Pe 1.23).
663
“Por isso mesmo, Jesus se tem tornado fiador de superior aliança. Ora, aqueles são feitos sacer-
dotes em maior número, porque são impedidos pela morte de continuar; este, no entanto, porque
continua para sempre, tem o seu sacerdócio imutável. Por isso, também pode salvar totalmente os
que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles. Com efeito, nos convinha
um sumo sacerdote como este, santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores e feito mais
alto do que os céus, que não tem necessidade, como os sumos sacerdotes, de oferecer todos os dias
sacrifícios, primeiro, por seus próprios pecados, depois, pelos do povo; porque fez isto uma vez por
todas, quando a si mesmo se ofereceu. Porque a lei constitui sumos sacerdotes a homens sujeitos à
fraqueza, mas a palavra do juramento, que foi posterior à lei, constitui o Filho, perfeito para sempre”
(Hb 7.22-28). “Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já realizados, mediante o
maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer dizer, não desta criação, não por meio de
sangue de bodes e de bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez
por todas, tendo obtido eterna redenção. Portanto, se o sangue de bodes e de touros e a cinza de
uma novilha, aspergidos sobre os contaminados, os santificam, quanto à purificação da carne, muito
mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, puri-
ficará a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao Deus vivo!” (Hb 9.11-14). “Tendo, pois,
irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho
que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne, e tendo grande sacerdote sobre a casa de
Deus, aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado de
má consciência e lavado o corpo com água pura. Guardemos firme a confissão da esperança, sem
vacilar, pois quem fez a promessa é fiel. Consideremo-nos também uns aos outros, para nos estimu-
larmos ao amor e às boas obras. Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes,
façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se aproxima” (Hb 10.19-25).
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664
presença de Deus (Jo 14.2-3/Hb 6.17-20; Rm 5.2; Hb 4.16).

No culto público nós exercitamos o Sacerdócio Universal dos Crentes da seguinte


forma:

1) Falamos com Deus expressando a nossa fé por meio dos cânticos, das
orações, das ofertas, e dos Credos.

2) Ouvimos e somos alimentados pela Palavra de Deus a qual é lida e exposta.

3) Compartilhamos a nossa fé por intermédio do testemunho uníssono daquilo


que cremos e que Deus tem feito.

Por isso, já no primeiro século, a aqueles que eram tentados a se ausentarem do


culto por motivos irrelevantes, o escritor da Epístola aos Hebreus recomendava:
“Não deixemos de congregar-nos como é costume de alguns; antes, façamos
admoestações, e tanto mais quanto vedes que o dia se aproxima” (Hb 10.25).

A nossa frequência aos cultos deve pressupor um desejo de adorar, aprender e


servir a Deus. O culto nunca é uma atitude passiva, antes envolve o desejo de parti-
cipação. Temos um bom resumo do sentimento que deve nortear a nossa participa-
ção no culto em Hb 10.22-25. Por outro lado, como bem observou Warfield (1851-
1921): “Nenhum homem pode excluir-se dos cultos regulares da comunidade
665
à qual pertence, sem sérios prejuízos para sua vida espiritual pessoal”. E:
“.... nem o indivíduo mais santo pode se dar ao luxo de dispensar as formas
regulares de devoção, e que o culto público regular da igreja, apesar de to-
das as suas imperfeições e problemas localizados, é a provisão divina para o
666
sustento da alma”.

9.3. Culto Somente a Deus:

“O culto cristão terá de ser trinitário,


se é que há de ser culto verdadeiro;
não há contestação, nem opção quan-
to a isso” – D.M. Lloyd-Jones, O Supremo
Propósito de Deus, São Paulo: Publicações
Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 49.

664
“Por isso, Deus, quando quis mostrar mais firmemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade
do seu propósito, se interpôs com juramento, para que, mediante duas coisas imutáveis, nas quais é
impossível que Deus minta, forte alento tenhamos nós que já corremos para o refúgio, a fim de lançar
mão da esperança proposta; a qual temos por âncora da alma, segura e firme e que penetra além do
véu, onde Jesus, como precursor, entrou por nós, tendo-se tornado sumo sacerdote para sempre....”
(Hb 6.17-20). “Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois
vou preparar-vos lugar. E, quando eu for e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei para mim
mesmo, para que, onde eu estou, estejais vós também” (Jo 14.2-3).
665
B.B. Warfield, A Vida Religiosa dos Estudantes de Teologia, São Paulo: Editora os Puritanos,
1999, p. 19.
666
William Robertson Nicoll. Apud B.B. Warfield, A Vida Religiosa dos Estudantes de Teologia, p. 25.
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A igreja adora a Deus por Deus. O que queremos dizer é que o Culto
oferecido a Deus é por intermédio de Cristo pela instrumentalidade do Espírito. Só
poderá haver um culto legítimo se estes aspectos da operação da Trindade forem
devidamente reconhecidos e sinceramente perseguidos.
667
A Segunda Confissão Helvética (1562-1564), no capítulo V, diz:

“Ensinamos que somente o verdadeiro Deus deve ser adorado e cultu-


ado. Esta honra não concedemos a nenhum outro, segundo o manda-
mento do Senhor. ‘Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a Ele darás culto’
(Mt 4.10). (...) Nós cremos em um só Deus, e só a Ele invocamos, e o faze-
mos mediante Cristo (1Tm 2.5; 1Jo 2.1)....
“Por essa razão não adoramos nem cultuamos nem invocamos os san-
tos dos céus, nem outros deuses, nem os reconhecemos como intercesso-
res ou mediadores perante o Pai que está no céu. Deus e Cristo, o Media-
dor, nos são suficientes. Nem concedemos a outros a honra que é devida
668
somente a Deus e ao seu Filho (Is 42.8; At 4.12)”.
669
Confissão de Westminster (1647) XXI.2:

667
A Segunda Confissão Helvética foi primariamente elaborada em latim, pelo amigo, discípulo e su-
cessor de Zuínglio (1484-1531), Henry Bullinger (1504-1575) em 1562. Em 1564, quando a peste vol-
tou a atacar em Zurique, Bullinger perdeu a esposa e as três filhas. Ele mesmo ficou doente mas foi
curado. Neste ínterim ele fez a revisão da Confissão de 1562 e, como uma espécie de testamento
espiritual anexou-a ao seu testamento, para ser entregue ao magistrado da cidade, caso ele viesse a
falecer. Esta confissão foi publicada, com algumas alterações – aceitas por Bullinger –, em latim e a-
lemão em 12/03/1566. Ela foi traduzida para vários idiomas (inclusive o Árabe), tendo ampla aceita-
ção em diversos países nos anos seguintes, sendo também adotada na Escócia (1566); na Hungria
(1567); na França (1571); na Polônia (1578). (Vd. P. Schaff, The Creeds of Christendom, I, p. 390-
395; III, p. 233; R.V. Schnucker, Confissões Helvéticas: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Históri-
co-Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p. 341-342; K.S. Latourette, Historia del Cristianismo, Vol. II, p.
99; Archibald A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 110; David S. Schaff, Nossa Crença e a de Nossos
Pais, p. 30).
668
In: O Livro de Confissões, São Paulo: Missão Presbiteriana do Brasil Central, 1969, §§ 5.023-
5.025.
669
A Confissão de Westminster bem como os Catecismos Maior (1648) e Menor (1647), foram redi-
gidos na Inglaterra, na Abadia de Westminster, conforme convocação do Parlamento Britânico
(12/06/1643). A Assembléia foi aberta no sábado, 01/07/1643, pregando o Dr. William Twisse (1575-
1646) – que iria ser o moderador da Assembléia até a sua morte em julho de 1646 –, baseando o seu
sermão no texto de Jo 14.18, "Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós". A Assembléia funcionou de
01/07/1643 até 22/02/1649, realizando 1163 sessões regulares, sem contar as inúmeras reuniões de
comissões e subcomissões (Vd. P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 753; Guilherme Kerr,
A Assembléia de Westminster, São Paulo: E.F. Beda – Editor, 1984, p. 18). Trabalharam na elabora-
ção da Confissão, 121 teólogos e trinta leigos nomeados pelo Parlamento, a saber: 20 da Casa dos
Comuns e 10 da Casa dos Lordes (nomeação feita em 12/06/1643); e, também 8 representantes es-
coceses – quatro pastores e quatro presbíteros, sendo que dois deles nunca tomaram assento (Cf. G.
Kerr, A Assembléia de Westminster, p. 12) –, que, mesmo sem direito a voto, exerceram grande influ-
ência. Os principais debates desta Assembléia não foram de ordem teológica, já que praticamente to-
dos eram Calvinistas, mas sim no que se refere ao governo da Igreja. "Embora houvesse diversida-
de quanto à Eclesiologia, havia unidade quanto à Soteriologia". (R. T. Kendall, A Modificação
Puritana da Teologia de Calvino: In: W. Stanford Reid, ed. Calvino e sua Influência no Mundo Ociden-
tal, p. 264).
Neste particular havia quatro partidos representados; os Episcopais: James Ussher (1581-1656),
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“O culto religioso deve ser prestado a Deus o Pai, o Filho e o Espírito


Santo — e só a Ele; não deve ser prestado nem aos anjos, nem aos santos,
nem a qualquer outra criatura; nem, depois da queda, deve ser prestado
670
a Deus pela mediação de qualquer outro senão Cristo.”

Comentando o primeiro Mandamento da Lei de Deus, Calvino diz que Deus proí-
be ter deuses estranhos, com isto significa que não transfiramos a outrem o que Lhe
671
é exclusivo. É impossível adorar a Deus corretamente sem o reconhecimento de
672
Seus atributos pessoais. Em outro lugar, acentua: “Toda verdadeira religião es-
673
tará arruinada, a menos que Deus seja o único invocado.” As orações não
dirigidas a Deus se constituem numa grave ofensa a Ele: “.... os papistas, saciem-
se o quanto possam em suas genuflexões diante de Deus, o fato é que o
roubam da principal parte de sua glória quando dirigem suas súplicas aos
674
santos.”

Não pode haver culto hipotético (conforme as nossas hipóteses) a um Deus hipo-
tético (conforme a nossa imaginação). Calvino observa que os homens “se afastam
do verdadeiro Deus porque julgam a Deus, não por sua infinita majestade,
mas pela vaidade tola e volúvel de suas próprias mentes”. Consequentemente,

Brownrigg, Westfield, Prideaux; Presbiterianos: T. Cartwright (1535-1603), Walter Travers (c. 1548-
1635), etc.; Independentes: (Congregacionais) T. Goodwin, (1594-1665) P. Nye (1596-1672); J. Bur-
roughs (1599-1646), W. Bridge (1600-1670), S. Sympson; Erastianos: Assim chamados por seguirem
o pensamento do T. Erasto (1524-1583) – que defendia a supremacia do Estado sobre a Igreja –, J.
Selden (1584-1654), Whitelocke, J. Lightfoot (1602-1675). Prevaleceu no entanto, o sistema Presbite-
riano de Governo.
O Breve Catecismo foi elaborado mais especificamente para instruir as crianças; O Catecismo
Maior, para exposição no púlpito, ainda que não exclusivamente. Eles substituíram em grande parte
os Catecismos e Confissões mais antigos adotados pelas igrejas Reformadas de fala inglesa. Apesar
da teologia dos Catecismos e da Confissão de Westminster ser a mesma, sendo por isso sempre a-
dotados os três, parece que os mais usados são o Catecismo Menor e a Confissão.
Estes Credos foram logo aprovados pela Assembléia Geral da Igreja da Escócia: [Confissão
(27/08/1647); Catecismos Maior e Menor (28/07/1648)], sendo este ato homologado pelo Parlamento
Escocês em 07/02/1649 (Cf. P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 759 e 784).
Eles tiveram e têm uma grande influência no mundo de fala inglesa, máxime entre os Presbiteria-
nos – embora também tenham sido adotados por diversas igrejas batistas e congregacionais. (Vd. P.
Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 727ss.; D.F. Wright, Catecismos: In: Walter A. Elwell,
ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p. 251-252; J.M. Frame, Confissão de Fé
de Westminster: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p.
331-332; J.M. Frame, Catecismos de Westminster: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-
Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p. 252; Guilherme Kerr, A Assembléia de Westminster, 31 p.; A.A.
Hodge, Esboços de Theologia, p. 111-112; Archibald A. Hodge, Confissão de Fé Comentada por A.A.
Hodge, p. 37-47). No Brasil, estes Credos são adotados pela Igreja Presbiteriana do Brasil, Presbite-
riana Independente e Presbiteriana Conservadora. (Vd. Hermisten M.P. Costa, Eu Creio, São Paulo:
Edições Parakletos, 2002).
670
Do mesmo modo, ver: Catecismo Maior, Pergs. 104-106 e o Breve Catecismo, Pergs, 45-48.
671
João Calvino, As Institutas, II.8.16.
672
Cf. John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company,
1996 (Reprinted), Vol. II/1, (Dt 6.16), p. 422.
673
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 50.15), p. 411.
674
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 50.15), p. 412. Mais detalhes podem ser encontra-
dos in: João Calvino, As Institutas, III.20.21-27.
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quando servem a este ser, “não adoram o Deus eterno, mas os sonhos e as
675
fantasias de seus próprios corações no lugar de Deus”. O Deus a quem ado-
ramos é real. Ele se revela e diz como quer ser adorado. O resto é idolatria, resultan-
te de nossa imaginação pecaminosa.
676
Textos Bíblicos: Ex 20.3-5; Is 42.8; Mt 4.10; Jo 4.23-24; Ap 22.8-9.

9.4. O Culto é oferecido por meio de Cristo:

A Glória do Filho é glorificar o Pai. “O Filho anseia pela glória de regozijar-


se na alegria de Seu povo salvo, exatamente o povo cuja salvação Ele (junto
com o Pai e o Espírito) planejara desde a eternidade. Antes da fundação do
mundo. Deus sempre tem prazer sem suas próprias obras. O Filho se gloria na
glória do Pai, e se regozija na alegria de todos os redimidos. Quando eles
677
cantam, Ele canta! (cf. Sf 3.17)”.

Fora de Cristo por melhor sejam as nossas oferendas elas são pecaminosas por-
que carregam em si a mácula de nosso pecado que nos afasta de Deus. Além disso,
mesmo que nossos sacrifícios fossem aceitos, o que de fato não são, necessitariam
ser repetidos constantemente. Isso poderia parecer algo natural dentro de uma
perspectiva da antiga dispensação, na qual o povo vivia nas sombras, aguardando
historicamente Aquele que conferira na eternidade sentido às ofertas do Antigo Tes-
tamento. Contudo, essas oferendas não têm mais sentido e significariam a negação
subjetiva da eficácia da obra de Cristo. Na realidade, na Sua oferta é que fomos san-
tificados de “uma vez por todas” (Hb 10.10). Portanto, todos precisamos ser reconci-
liados com Deus em Cristo, através de Quem oferecemos o nosso culto a Deus.
Calvino comenta: “A razão pela qual Deus ordenara que se oferecessem víti-
mas como expressão de ações de graça foi, como é bem notório, para en-
sinar ao povo que seus louvores eram contaminados pelo pecado, e que
necessitavam de ser santificados exteriormente. Por mais que proponhamos
a nós mesmos louvar o nome de Deus, outra coisa não fazemos senão profa-
ná-lo com nossos lábios impuros, não houvera Cristo se oferecido em sacrifí-

675
J. Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 2, p. 12. “Assim, não ado-
ram ao próprio Deus, mas sua própria produção” [João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Pau-
lo: Parakletos, 2000, Vol. 1, (Dn 3.2-7), p. 188].
676
“Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança
alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as
adorarás, nem lhes darás culto....” (Ex 20.3-5). “Eu sou o SENHOR, este é o meu nome; a minha gló-
ria, pois, não a darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura” (Is 42.8). “Então, Jesus
lhe ordenou: Retira-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e só a ele darás
culto” (Mt 4.10). “Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em
espírito e em verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores. Deus é espírito; e
importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade” (Jo 4.23-24). “Eu, João, sou
quem ouviu e viu estas coisas. E, quando as ouvi e vi, prostrei-me ante os pés do anjo que me mos-
trou essas coisas, para adorá-lo. Então, ele me disse: Vê, não faças isso; eu sou conservo teu, dos
teus irmãos, os profetas, e dos que guardam as palavras deste livro. Adora a Deus” (Ap 22.8-9).
677
William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004 (Jo 17.5), p. 757.
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cio com o propósito de santificar a nós e às nossas atividades sagradas [Hb


10.7]. É através dele, como aprendemos do apóstolo, que nossos louvores
678
são aceitos”.

Insistimos: O sacrifício definitivo de Cristo confere sentido a todos os sacrifícios


do Antigo Testamento. Em Cristo eles foram aceitos e ao mesmo tempo revogados.
Um novo sacrifício implicaria a não suficiência e eficácia da obra de Cristo. Fazê-lo é
uma atitude que desonra a Deus e à Sua providência eterna: “.... Em cada época,
desde o princípio, houve pecados que necessitavam de expiação. Portanto,
a menos que o sacrifício de Cristo fosse eficaz, nenhum dos [antigos] pais ha-
veria obtido a salvação. Visto que se achavam sujeitos à ira divina, qualquer
remédio para livrá-los teria resultado em nada, se Cristo, ao sofrer uma vez
por todas, não sofresse o suficiente para reconciliar os homens com a graça
de Deus, desde o princípio do mundo e até ao fim. A não ser que desejemos
muitas mortes, contentemo-nos com um só sacrifício. (...) Não está no poder
do homem inventar sacrifícios como lhe apraz. Eis aqui uma verdade expres-
sa pelo Espírito Santo, a saber: que os pecados não são expiados por um sa-
crifício, a menos que haja derramamento de sangue. Por conseguinte, a
ideia de que Cristo é sacrificado muitas vezes não passa de uma invenção
679
diabólica”.

“Nós cremos em um só Deus, e só a Ele invocamos, e o fazemos mediante


680
Cristo”, declara a Segunda Confissão Helvética.
681
Do mesmo modo diz a Confissão Belga (1561): “Cremos, que não temos ne-

678
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 66.15), p. 631. “Visto que nos re-
conciliamos com Deus, em Cristo, através de seu verdadeiro sacrifício, somos, todos
nós, por sua graça, feitos sacerdotes com o fim de podermos consagrar-nos a ele
como sacrifício vivo e tributar-lhe toda a glória por tudo o que temos e somos. Não
resta mais nenhum sacrifício expiatório para se oferecer, e não se pode fazer tal coi-
sa sem trazer grande desonra para a cruz de Cristo.” [João Calvino, Exposição de
Romanos, (Rm 12.1), p. 424].
679
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 9.26), p. 245-246. “Cristo sofreu como homem, no en-
tanto, a fim de que sua morte pudesse efetuar nossa salvação, sua eficácia fluiu do poder do Espírito.
O sacrifício que produziu a expiação eterna foi muito mais que uma obra meramente humana.” [João
Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 9.14), p. 231-232].
680
O Livro de Confissões, § 5.024.
681
A Confissão Belga que se inspirou na Confissão Gaulesa (1559), foi escrita em francês em 1561
por Guido (ou Guy, Wido) de Brès (1523-1567), com a ajuda de M. Modetus, Adrien de Saravia
(1513-1613) – um dos primeiros protestantes a advogar a ideia de missões estrangeiras (Cf. I. Bre-
ward, Saravia: In: J.D. Douglas, ed. ger. The New International Dictionary of the Christian Church, 3ª
ed. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1979, p. 878) e G. Wingen, sendo revisada por Francis Juni-
us (1545-1602) e, publicada a sua tradução em holandês em 1562. "O pastor Guy de Brès escre-
veu uma carta de defesa aos magistrados. Lançou-a juntamente com um exemplar de sua
recente 'Confession de Foy' por sobre o muro do castelo de Doornick, para assim ser levado
ao governador e ao rei. Se este jamais leu a confissão de fé, não se sabe, mas ela chegou a
ocupar um lugar de suma importância na Igreja Reformada holandesa." (Frans Leonard S-
chalkwijk, Igreja e Estado no Brasil Holandês, (1630-1654), Recife, Pe.: FUNDARTE, (Coleção Per-
nambucana, 2ª Fase, Vol. 25), 1986, p. 27. Quanto à parte do teor da carta, vd. Jorge P. Fisher, His-
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nhum acesso a Deus senão só pelo único [1Tm 2.5] Mediador e Advogado, Jesus
682
Cristo, o Justo [1Jo 2.1].”
683
Textos Bíblicos: Jo 14.6; Cl 3.17; 1Tm 2.5; 1Pe 2.5.

Paulo fala que nós, os crentes em Cristo, recebemos o Espírito de ousada


confiança em Deus, que nos leva, na certeza de nossa filiação divina, a clamar ”Aba,
Pai”. ”Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez
atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos:
Aba, Pai” (Rm 8.15). O fato de Paulo usar a mesma expressão de Cristo para nós
“significa que, quando Jesus deu a Oração Dominical aos Seus discípulos,
também lhes deu autoridade para segui-Lo em se dirigirem a Deus como
684
‘abbã’, dando-lhes, assim, uma participação na Sua condição de Filho.”
Somente pelo Espírito poderemos nos dirigir a Deus desta forma, como uma criança
que se lança sem reservas nos braços do seu Pai amoroso.

Quando oramos sabemos que estamos falando com o nosso Pai. Desta forma, a
oração é uma prerrogativa dos que estão em Cristo. Somente os que estão em Cris-
to pela fé, têm a Deus como o seu legítimo Pai (Jo 1.12; Rm 8.14-17; Gl. 4.6; 1Jo
3.1-2). De onde se segue que a oração do Pai Nosso, apesar de não mencionar ex-
plicitamente o nome de Cristo, é feita no Seu nome, visto que somos filhos de Deus
– e é nesta condição que nos dirigimos a Deus –, através de Cristo Jesus (Gl
685
3.26). Portanto, quando oramos o Pai Nosso sinceramente, na realidade estamos
orando no nome de Jesus Cristo, pois, foi Ele mesmo quem nos ensinou a fazê-lo.
Assim, devemos, pelo Espírito – nosso intercessor –, no nome de Jesus – nosso
Mediador –, orar: “Pai nosso que estás no céu....”.

Lutero (1483-1546), de modo enfático afirmou que, qualquer tipo de religião que
se proponha servir a Deus, excluindo a Cristo como o Mediador, a Palavra e os Sa-

toria de la Reforma, Barcelona: CLIE., (1984), p. 291.


Ela juntamente com o Catecismo de Heidelberg (1563), foi aprovada no Sínodo de Antuérpia, rea-
lizado secretamente (Cf. Igreja e Estado no Brasil Holandês, (1630-1654), p. 27), no Sínodo de
Ambères (após revisão) (1566) (Cf. J.P. Fisher, Historia de la Reforma, p. 291), em Wessel (1568) e
adotada pelo Sínodo Reformado de Emden (1571), pelo Sínodo Nacional de Dort (1574), Middelburg
(1581) e, também, pelo grande Sínodo de Dort (29/4/1619), o qual a sujeitou a uma minuciosa revi-
são, comparando a tradução holandesa com o texto francês e latino.
A Confissão Belga e o Catecismo de Heidelberg são os símbolos de fé das Igrejas Reformadas na
Holanda e Bélgica, sendo também o padrão doutrinário da Igreja Reformada na América. (Vd. P.
Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I. p. 502-508; Vol. III, p. 383; J. Van Engen, Confissão Belga:
In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vol. I, p. 330).
682
Confissão Belga, XXVI. Vejam-se também: Confissão de Westminster, 21.2; Catecismo Maior de
Westminster, Perg. 105.
683
“Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por
mim” (Jo 14.6). “E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor
Jesus, dando por ele graças a Deus Pai” (Cl 3.17). “Porquanto há um só Deus e um só Mediador en-
tre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem” (1Tm 2.5). “Também vós mesmos, como pedras que vi-
vem, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios es-
pirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo” (1Pe 2.5).
684
O. Hofius, Pai: In: NDITNT., Vol. III, p. 383.
685
Vd. João Calvino, As Institutas, III.20.36.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 170/233

686
cramentos, é mera idolatria. Calvino fazendo alusão ao encontro do Senhor com a
mulher Samaritana, conclui que “jamais culto algum haja agradado a Deus a
687
não ser aquele que contemplasse a Cristo”. Em outro lugar: “Todas as for-
mas de culto são defectivas e profanas, a menos que Cristo as purifique pela
688
aspersão de seu sangue”. Comentando Hb 13.15, Calvino escreve: “Como o
propósito do apóstolo era ensinar-nos qual é a forma legítima de cultuar a
Deus sob o regime do Novo Testamento, ele nos lembra que não podemos
invocar honestamente a Deus e glorificar Seu nome, a não ser através de
Cristo como nosso Mediador. É Ele só quem santifica nossos lábios, que de
outra forma estariam impuros para cantar os louvores de Deus, que abre
caminho para nossas orações, que, em suma, exerce o ofício de Sacerdote,
689
apresentando-se diante de Deus em nosso nome.” “Por Jesus Cristo ofe-
recemos sacrifício de louvor a Deus, quer dizer, o fruto de lábios que confes-
sam o Seu nome, como nos disse o apóstolo. (Hb 13.15; 1Pe 2.5). Porquanto
com os nossos dons e presentes não poderíamos comparecer à presença de
Deus sem um intercessor. E Jesus Cristo é o Mediador que intercede por nós e
pelo qual nos oferecemos ao Pai, com tudo o que é nosso. Ele é o nosso su-
mo sacerdote, o qual, tendo entrado no santuário do céu, abre a porta para
nós e nos dá acesso. Ele é o nosso altar, sobre o qual colocamos as nossas
ofertas. Em suma, é Ele que faz de nós reis e sacerdotes para o Pai (Ap
690 691
1.6).” Portanto: “Fora de Cristo nada existe senão ídolos”.

Jesus Cristo é o único e último Mediador entre Deus e os homens. Nele o sacer-
692
dócio se cumpre e permanece imutável e para sempre (Hb 7.15-17,24-28; 8.1-6;

686
Vd. Martin Luther, “Table Take,” The Master Christian Library, Volume 6 [CD-ROM], (Albany, OR:
Ages Software, 1997), 171, p. 74.
687
João Calvino, As Institutas, II.6.1.
688
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 9.18), p. 238.
689
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 13.15), p. 393.
690
João Calvino As Institutas, (1541), IV.12.
691
João Calvino, Efésios, (Ef 2.12), p. 68.
692
“15 E isto é ainda muito mais evidente, quando, à semelhança de Melquisedeque, se levanta ou-
tro sacerdote,
16 constituído não conforme a lei de mandamento carnal, mas segundo o poder de vida indissolúvel.
17 Porquanto se testifica: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque.
24 este, no entanto, porque continua para sempre, tem o seu sacerdócio imutável.
25 Por isso, também pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para
interceder por eles.
26 Com efeito, nos convinha um sumo sacerdote como este, santo, inculpável, sem mácula, separado
dos pecadores e feito mais alto do que os céus,
27 que não tem necessidade, como os sumos sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios, pri-
meiro, por seus próprios pecados, depois, pelos do povo; porque fez isto uma vez por todas, quando
a si mesmo se ofereceu.
28 Porque a lei constitui sumos sacerdotes a homens sujeitos à fraqueza, mas a palavra do juramen-
to, que foi posterior à lei, constitui o Filho, perfeito para sempre” (Hb 7.15-17, 24-28).
“Ora, o essencial das coisas que temos dito é que possuímos tal sumo sacerdote, que se assentou
à destra do trono da Majestade nos céus, como ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo
que o Senhor erigiu, não o homem. Pois todo sumo sacerdote é constituído para oferecer tanto dons
como sacrifícios; por isso, era necessário que também esse sumo sacerdote tivesse o que oferecer.
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9.11-28). Quando Cristo regressar, consumando assim a salvação de seu povo, não
haverá mais santuário, “porque o santuário é o Senhor, o Deus Todo-poderoso e o
Cordeiro” (Ap 21.22). “Quando Deus e seu povo estiverem para sempre juntos,
então as profecias veterotestamentárias concernentes ao templo ideal se
cumprirão plenamente em Jesus Cristo. Então a presença de Deus e de Cris-
693
to serve como seu templo”.

9.5. Encher-nos do Espírito: (Ef 5.18)


17
.... procurai compreender qual a vontade do Senhor. 18 E não vos embriagueis com vinho,
no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito, 19 falando entre vós com salmos, entoando e
louvando de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais, 20 dando sempre graças por tudo
a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, 21 sujeitando-vos uns aos outros no
temor de Cristo. (Ef 5.17-21)

“O enchimento do Espírito é essencial à genuína qualidade cristã em


694
nossa vida”, ressalta Jones. Por sua vez, o conhecimento da vontade de Deus é
695
responsabilizador (Lc 12.47/At 22.14-15).
696
Conforme já comentamos em outro lugar, o fato da vontade de Deus estar re-
velada nas Escrituras não quer dizer que a Bíblia seja um manual cheio de regrinhas
para a nossa vida, através do qual possamos encontrar sempre uma regra explícita
para a nossa situação específica. Não. A Bíblia sendo a fonte e norma de todo o co-
nhecimento e prática cristã, nos apresenta os princípios de Deus que se adequam a
todas as nossas necessidades, em quaisquer épocas e circunstâncias. Todavia, a
Bíblia não é um livro mágico, através do qual exercitamos a nossa “sorte espiritual”
abrindo-o ao acaso, e procurando saber qual a vontade de Deus para a nossa vida
em determinada situação, mediante o texto que o nosso dedo (“sensor espiritual”)
apontar.

Sem dúvida, precisamos conhecer a vontade de Deus, mas isto fazemos lendo e

Ora, se ele estivesse na terra, nem mesmo sacerdote seria, visto existirem aqueles que oferecem os
dons segundo a lei, os quais ministram em figura e sombra das coisas celestes, assim como foi Moi-
sés divinamente instruído, quando estava para construir o tabernáculo; pois diz ele: Vê que faças to-
das as coisas de acordo com o modelo que te foi mostrado no monte. Agora, com efeito, obteve Je-
sus ministério tanto mais excelente, quanto é ele também Mediador de superior aliança instituída com
base em superiores promessas” (Hb 8.1-6).
693
Simon Kistemaker, Apocalipse, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, (Ap 21.22-27), p. 719-
720. Ver também: John M. Frame, Worship in Spirit and Truth, Phillipsburg, NJ.: P & R. Publishing,
1996, especialmente p. 27; William Hendriksen, Mais que Vencedores, São Paulo: Casa Editora
Presbiteriana, 1987, p. 239.
694
David M. Lloyd-Jones, Deus o Espírito Santo, p. 311.
695
“Aquele servo, porém, que conheceu a vontade (qe//lhma) (thélema) seu senhor e não se apron-
tou, nem fez segundo a sua vontade será punido com muitos açoites” (Lc 12.47). “Então, ele disse: O
Deus de nossos pais, de antemão, te escolheu para conheceres a sua vontade (qe//lhma) (thélema),
veres o Justo e ouvires uma voz da sua própria boca, porque terás de ser sua testemunha diante de
todos os homens, das coisas que tens visto e ouvido” (At 22.14-15).
696
Hermisten M. P. Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 176-177.
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meditando na Sua Palavra, fazendo-o com discernimento, com entendimento. É isto


que Paulo recomenda à Igreja de Éfeso: “...Vede prudentemente como andais, não
como néscios, e, sim, como sábios, remindo o tempo, porque os dias são maus. Por
697
esta razão não vos torneis insensatos, mas procurai compreender (Suni/hmi) qual
698
a vontade (Qe/lhma) do Senhor” (Ef 5.15-17). MacArthur resume: “O cresci-
mento espiritual não é místico, sentimental, devocional, psicológico ou resul-
tado de truques secretos. Vem através da compreensão e da prática de
699
princípios dados pela Palavra de Deus”.

Paulo estimula a Igreja a usar positivamente a sua capacidade de raciocínio a fim


de compreender a vontade de Deus; de aplicar à sua existência os ensinamentos de
Deus.

Negativamente considerando, podemos dizer que o mesmo princípio de


discernimento deve ser aplicado às mensagens, que ouvimos com frequência, a
respeito da “vontade de Deus para a nossa vida”. A nossa mente não é um
“acessório” descartável de nossa existência, o qual deixamos em casa quando
vamos à Igreja, lemos livros, ouvimos mensagens ou simplesmente conversamos
sobre aspectos da vida cristã. Deus criou o homem completo a fim de que ele possa,
com o auxílio do Espírito Santo, usar todos os recursos que Ele lhe outorgou.

Parece-me que, a despeito de todo o nosso zelo, o que nos tem faltado é o “en-
tendimento”, o mesmo conhecimento acurado que também faltara aos judeus. O zelo
é algo extremamente importante quando acompanhado de entendimento e motiva-
ções corretas (Jo 2.17; At 21.20; Gl 1.14); quando não, pode ser a causa de muitos
males e atrocidades. Paulo diz: “Irmãos, a boa vontade do meu coração e a minha
súplica a Deus a favor deles é para que sejam salvos. Porque lhes dou testemunho

697
Suni/hmi (syniêmi) envolve a ideia de reunir as coisas, analisá-las, tentando chegar a uma conclu-
são através de uma conexão das partes. (* Mt 13.13,14,15,19,23,51; 15.10; 16.12; 17.13; Mc 4.12;
6.52; 7.14; 8.17,21; Lc 2.50; 8.10; 18.34; 24.45; At 7. 25 (duas vezes); 28.26,27; Rm 3.11; 15.21; 2Co
10.12; Ef 5.17). A LXX geralmente emprega esta palavra para traduzir o verbo (‫( )בּין‬bîyn) [O substan-
tivo é (‫( )בּינה‬bîynâh)]. O verbo e o substantivo apresentam a ideia de um entendimento, fruto de uma
observação demorada, que nos permite discernir para interpretar com sabedoria e conduzir os nossos
atos. “O verbo se refere ao conhecimento superior à mera reunião de dados. (...) Bîn é uma
capacidade de captação julgadora e perceptiva e é demonstrada no uso do conheci-
mento” (Louis Goldberg, Bîn: In: Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do An-
tigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 172). ‫( בּין‬bîyn) permite diversas traduções (ARA):
Acudir (Sl 5.1) (No sentido de considerar); Ajuizado (Gn 41.33,39); Atentar (Dt 32.7,29; Sl 28.5); Ati-
nar (Sl 73.17; 119.27); Considerar (Jó 18.2; 23,15; 37.14); Contemplar (Sl 33.15); Cuidar (Dt 32.10);
Discernir (1Rs 3.9,11; Jó 6.30; 38.20; Sl 19.12); Douto (Dn 1.4); Ensinar (Ne 8.7,9); Enten-
der/entendido/entendimento (Dt 1.13;4.6; 1Sm 3.8; 2Sm 12.19; 1Rs 3.12;1Cr 15.22; 27.32; 2Cr 26.5;
Ed 8.16; Ne 8.2,3,8,12; 10.28; Jó 6.24;13.1; 15.9; 23.5; 26.14; 28.23; 32.8,9; 42.3); Fixar no sentido
de pensar detidamente (Jó 31.1); Inteligência (Dn 1.17); Mestre (no sentido de expert) (1Cr 25.7,8);
Penetrar (com o sentido de discernir) (1Cr 28.9; Sl 139.2); Perceber (Jó 9.11;14.21; 23.8); Perito (Is
3.3); Procurar (Sl 37.10); Prudentemente (2Cr 11.23); Reparar (1Rs 3.21); Revistar (procurar atenta-
mente) (Ed 8.15); Saber/Sabedoria (Ne 13.7; Pv 14.33); “Sisudo” em palavras (1Sm 16.18); Superin-
tender (por ter maior conhecimento) (2Cr 34.12).
698
O substantivo Qe/lhma e o verbo Qe/lw (“Vontade”, “intenção”, “desejo”) acentuam mais o ele-
mento volitivo do que o deliberativo.
699
John F. MacArthur, Jr. Chaves para o Crescimento Espiritual, 2ª ed. São José dos Campos, SP.:
Fiel, 1986, p. 7.
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de que eles têm zelo por Deus, porém não com entendimento” (Rm 10.1-2).

O nosso desejo de servir a Deus não nos deve tornar presas fáceis de qualquer
ensinamento ou doutrina; precisamos cientificar-nos se aquilo que é-nos transmitido
procede ou não de Deus. Para este exame, temos as Escrituras Sagradas como fon-
te de todo conhecimento revelado a respeito de Deus e do que Ele deseja de nós; foi
assim que a nobre Igreja de Beréia procedeu ao ouvir Paulo e Silas, ainda que aque-
les irmãos tenham recebido a Palavra com avidez, isto não os impediu de exami-
700
nar “as Escrituras todos os dias para ver se as cousas eram de fato assim” (At
701
17.11). “Eles combinavam receptividade com questionamento crítico”.

Jesus Cristo afirma que aquele que deseja fazer a vontade de Deus deve
examinar a doutrina: “Se alguém quiser fazer a vontade (Qe/lhma) dele (Deus),
conhecerá a respeito da doutrina (didaxh/), se ela é de Deus” (Jo 7.17).

Já na década de 60 do primeiro século encontramos em Colossos vestígios de


uma heresia que tentava fundir a simplicidade do Evangelho com especulações filo-
sóficas – caracterizadas por práticas ascéticas – estando estes ensinamentos a pre-
judicar a Igreja (Cl 2.8, 16,18,20,21). Paulo, acompanhado por Timóteo e Epafras (Cl
1.1; 4.12), escreve aos colossenses, mostrando a supremacia de Cristo sobre todas
as coisas (Cl 1.15,19; 2.3,19). Juntamente com o ensino correto, Paulo declara que
ele próprio, Timóteo e Epafras estão orando pela Igreja: “... Não cessamos de orar
por vós, e de pedir que transbordeis de pleno conhecimento da sua vontade
702
(Qe/lhma), em toda a sabedoria (Sofi/a) e entendimento (Su/nesij)” (Cl 1.9). “Sa-
úda-vos Epafras que é dentre vós, servo de Cristo Jesus, o qual se esforça
sobremaneira, continuamente, por vós, nas orações, para que vos conserveis
perfeitos e plenamente convictos em toda a vontade (Qe/lhma) de Deus” (Cl 4.12).

Por isso, insistimos: é necessário discernimento para interpretar as doutrinas que


nos são transmitidas a fim de saber se são de Deus ou não (Jo 7.17). Portanto, de-
vemos desejar conhecer a vontade de Deus (Ef 5.17). Paulo orava para que os co-
lossenses “transbordassem” [plhrwqh=te]. A voz passiva indica aqui a ação de

700
A palavra traduzida por “examinando” é a)nakri/zw (anakrizõ), que tem o sentido de “fazer uma
pesquisa cuidadosa”, um “exame criterioso”, “inquirir”. (* Lc 23.14; At. 4.9; 12.19; 17.11; 24.8; 28.18;
1Co 2.14,15 (duas vezes); 4.3 (duas vezes),4; 9.3; 10.25,27; 14.24). Conforme vemos em Lc 23.14;
At 4.9 e 24.8, o verbo era usado para “investigações judiciais”. “Este verbo implica em integridade
e ausência de preconceito. Desde então, o adjetivo ‘bereano’ tem sido aplicado a pessoas
que estudam as Escrituras com imparcialidade e cuidado” [John R.W. Stott, A Mensagem de
Atos: até os confins da terra, São Paulo: ABU Editora, 1994, (At 17.11), p. 308].
701
John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: até os confins da terra, São Paulo: ABU Editora, 1994, (At
17.11), p. 308.
702
Su/nesij (synesis), ocorre 7 vezes no NT.: Mc 12.33; Lc 2.47; 1Co 1.19; Ef 3.4; Cl 1.9; 2.2; 2Tm
2.7, significando, discernimento, inteligência, envolvendo, conforme vimos, a ideia de reunir as evi-
dências para avaliar e chegar a uma conclusão. Este “entendimento” deve ser fruto de uma reflexão,
recorrendo, contudo, à iluminação de Deus (2Tm 2.7). Esta palavra é da mesma raiz de Suni/hmi
(syniêmi).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 174/233

703
Deus; para que ”Deus encha vocês” deste genuíno conhecimento (Cl 1.9 /Cl
4.12/Hb 13.21).

O enchimento do Espírito pressupõe o selo e o batismo definitivos do Espírito; por


704
isso mesmo, não se confunde com eles (Ef 1.13; 4.30; 1Co 12.13). O batismo e o
705
selo do Espírito são realidades efetivas para todos os crentes em Cristo; já o
enchimento é um dever de cada cristão que reconhece a sua eleição eterna para a
salvação em santificação (Ef 1.4/2Ts 2.13).

A ideia expressa em Ef 5.18, é a de ter o Espírito em todas as áreas da nossa


706
vida, de forma plena e abundante. Aqui, quatro observações devem ser feitas:

a) O Verbo “encher” (plhro/w) está no modo imperativo; portanto, o “enchimen-


to” não é algo facultativo ao crente – podendo ou não realizá-lo –, antes, é uma or-
dem expressa de Deus, consistindo em desobediência voluntária o não esforçar-se
por fazê-lo;

b) O verbo está no tempo presente, expressando uma ordem imperativa e, tam-


bém, indicando uma experiência que se renova num processo permanente, contí-
nuo, através do qual vamos, cada vez mais, sendo dominados por Ele, passando a
ter a nossa mente, o nosso coração e a nossa vontade – o homem integral –, sub-
metidos ao Espírito. Por isso, podemos interpretar o texto de Ef 5.18, como que Pau-
lo dizendo: “Sede constantemente, momento após momento, controlados
pelo Espírito”. Hoekema (1913-1988) observa que, “o imperativo presente ensi-
na-nos que ninguém pode, jamais, reivindicar ter sido cheio do Espírito de
uma vez por todas. Estar sendo continuamente cheio do Espírito é, de fato, o
707
desafio de uma vida toda e o desafio de cada dia”.

c) O verbo está no plural, logo, esta ordem é para todos os cristãos, não apenas
para os líderes; todos nós sem exceção devemos ser enchidos do Espírito. Aqui te-

703
“Quando todo o espaço das nossas mentes for preenchido até transbordar com o co-
nhecimento da vontade do Senhor, já não teremos muito interesse em satisfazer egoistica-
mente a nossa própria vontade.” (R. P. Shedd, Andai Nele: Exposição bíblica de Colossenses,
São Paulo: ABU., 1979, p. 22).
704
“Em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salva-
ção, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa” (Ef 1.13). “E não
entristeçais o Espírito de Deus, no qual fostes selados para o dia da redenção” (Ef 4.30). “Pois, em
um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos,
quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito” (1Co 12.13).
705
"A essência do cristianismo é que o Espírito Santo nos é dado, está em nós, quer tenha-
mos consciência dele quer não" (D. Martyn Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publica-
ções Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 123).
706
Vejam-se: Kenneth S. Wuest, Jóias do Novo Testamento Grego, São Paulo: Imprensa Batista
Regular, 1979, p. 29-32; A.A. Hoekema, Salvos pela Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 58-59;
John R.W. Stott, Batismo e Plenitude do Espírito Santo, 2ª ed. ampl. São Paulo: Vida Nova, 1986, p.
44-45; John R.W. Stott, A Mensagem de Efésios, São Paulo: ABU Editora, 1986, p. 156-157; Wayne
A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 650; John F. MacArthur Jr., Chaves para o Crescimento Espiri-
tual, 2ª ed. São Paulo: Fiel, 1986, p. 67ss.
707
A.A. Hoekema, Salvos pela Graça, p. 58.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 175/233

mos um mandamento explícito para toda a Igreja – “enchei-vos do Espírito” –, não


uma opção de vida cristã para alguns, que pode ser seguida ou não. A ordem bíblica
708
é categórica e para todos os crentes em Cristo.

d) O verbo está na voz passiva, indicando que o sujeito da ação é passivo; Deus
é o autor do enchimento. Notemos, contudo, que nesta progressividade espiritual,
haverá sempre a participação voluntária do crente que, consciente de suas
necessidades espirituais, procurará cada vez mais intensamente submeter-se à
influência do Espírito, recorrendo aos recursos fornecidos pelo próprio Deus para o
nosso aperfeiçoamento piedoso (2Pe 1.3-4).

“O Espírito Santo nos coloca em um relacionamento correto com Deus e


709
as pessoas”. A sequência do texto de Efésios nos mostra os frutos práticos e
concretos desse “enchimento”. Paulo, portanto, está nos dizendo que a solução para
qualquer problema em nossa vida passa pelo enchimento do Espírito; aqui temos um
princípio universal para todo e qualquer problema particular: Enchei-vos do Espíri-
710
to! Este enchimento nunca será definitivo nesta existência, daí a ordem contínua
para todos os crentes, que deve ser uma experiência renovada: Enchei-vos do Espí-
rito! A vida cristã tem algo a dizer sobre qualquer área de nossa existência; o Cristi-
anismo não é uma religião das brechas, mas de todas as facetas da vida.

Apenas para evidenciar alguns indicativos apresentados por Paulo,


mencionamos:

1) COMUNHÃO SANTA: (EF 5.19)

A nossa comunhão não é partidária: contra ou favor do pastor, do Conse-


lho, ou dos Diáconos. É antes, gerada pelo Espírito, manifestando-se numa conver-
sa santa que produz a edificação mútua (Cl 3.16/Ef 4.29; Tt 2.8/Sl 141.3/Cl 3.8). Aqui
temos o intercâmbio de pensamentos, sentimentos e desejos que se manifestam
711
num louvor santo. "Quando o Espírito de Deus está presente, os crentes
amam-se uns aos outros e não há lutas entre nós, a não ser a luta que cada
712
um tem, por desejar amar cada vez mais", acentua Spurgeon (1834-1892).

708
Vd. A.A. Hoekema, Salvos pela Graça, p. 58.
709
John R.W. Stott, Batismo e Plenitude do Espírito Santo, p. 44.
710
D.M. Lloyd-Jones, Vida no Espírito, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p.
22.
711
Ver: Charles Hodge, “Epistle to the Ephesians,” The Master Christian Library, Version 8 [CD-
ROM], (Albany, OR: Ages Sofware, 2000), (Ef 5.19), p. 205.
712
C.H. Spurgeon, Firmes na Verdade, p. 77.
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2) LOUVOR SINCERO:

“Os hinos e salmos que são cantados


na adoração são músicas espirituais, isto
é, elas são as músicas do Santo Espírito
(Atos 4.25; Ef 5.19).” – Hughes Oliphant
713
Old.

Paulo nos mostra que o cântico é uma expressão da adoração cristã mar-
cada pela plenitude do Espírito Santo. Mais: A genuína adoração é operada pelo
Espírito Santo em nós. O mesmo Espírito que falou através de Davi, inspirando-o a
escrever, é o que nos ilumina na adoração a Deus (At 4.25): “E não vos embriagueis
com vinho, no qual há dissolução, mas enchei-vos do Espírito, falando entre vós com
714
salmos [yalmo/j], entoando e louvando de coração ao Senhor, com hinos
715 716
[u(/mnoj] e cânticos [%)dh] espirituais” (Ef 5.18-19).

713
Hughes Oliphant Old, Worship: That Is Reformed According to Scripture, Atlanta: John Knox
Press, 1984, p. 6
714
yalmo/j [* Lc 20.42; 24.44; At 1.20;13.33; 1Co 14.26; Ef 5.19; Cl 3.16] [Cântico de louvor, salmo].
A palavra é usada para referir-se ao Livro de Salmos ou a algum Salmo específico (Cf. Lc 20.42;
24.44; At 1.20; 13.33), contudo em outras referências não são especificações daquele, parecendo in-
dicar com isso, que além dos Salmos canônicos outros “salmos” (hinos cristãos) eram cantados na I-
greja. Os salmos eram empregados apenas para hinos de louvor. O verbo ya/llw [* Rm 15.9; 1Co
14.15; Ef 5.19; Tg 5.13], tem o sentido básico de cantar, cantar louvores. Outra palavra da mesma ra-
iz usada no NT. é yhlafa/w [* Lc 24.39; At 17.27; Hb 12.18; 1Jo 1.1], que tem o sentido de “mão” ou
ato de tocar, apalpar. Parece-nos, portanto, que o louvor a Deus aqui caracterizado, envolvia o em-
prego de algum instrumento que fosse tocado com as mãos. Curiosamente encontrei posteriormente
esta definição de yalmo/j em Isidro: “ação de sacudir as cordas de um instrumento”. [Isidro Pereira,
Dicionário Grego-Português e Português-Grego, 7ª ed. Braga: Livraria Apostolado da Imprensa,
(1990), p. 636]. Na literatura clássica o verbo parece estar associado ao ato de tanger as cordas de
um instrumento musical. Agostinho comentando o Salmo 66.2, diz: “Salmodiar é tomar um instru-
mento chamado saltério, e fazer a voz concordar com o toque e o movimento das mãos.”
[Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, 1997, Vol. II, (Sl (66) 67.3), p. 336].
Inclino-me a crer que os salmos aludidos por Paulo eram canções de adoração feitas por composi-
tores cristãos, que eram cantadas, ainda que não estritamente, com acompanhamento musical; o seu
estilo se assemelhava e se inspirava no Saltério e, outras vezes, ao invés de composições contempo-
râneas, fosse o próprio Saltério cantado. Aqui, talvez tenhamos a força da herança judaica na adora-
ção cristã modelada pelo Espírito Santo.
715
u(/mnoj [* Ef 5.19; Cl 3.16][Uma canção, hino de louvor a Deus (Sl 40.3; Is 42.10), “hino festivo de
louvor”]. O verbo é u(mne/w [* Mt 26.30; Mc 14.26; At 16.25; Hb 2.12] [Cantar o louvor de, cantar um hi-
no, celebrar (Sl 22.22)]. No Novo Testamento, ambas as palavras estão associadas a cânticos a
Deus. A origem da palavra é incerta, sendo aplicada no grego clássico desde Homero englobando
uma gama variada de formas poéticas, sendo aplicada à poesia cantada e recitada, referindo-se ge-
ralmente aos hinos cantados em honra a alguma divindade ou a heróis. (Vd. Platão, A República,
607a. p. 475).
716
%)dh [* Ef 5.19; Cl 3.16; Ap 5.9; 14.3 (2 vezes); 15.3] [“Ode”, “canção”, “hino”]. O verbo é #)/dw [* Ef
5.19; Cl 3.16; Ap 5.9; 14.3; 15.3] [“Cantar”]. Em Ap 15.3 o verbo e o substantivo ocorrem conjunta-
mente referindo-se ao cântico de Moisés (Cf. Ex 15.1; Sl 145.7) e ao cântico do Cordeiro. %)dh é uma
contração de a)oidh/ [arte de cantar, canto], proveniente de a)ei/dw, do verbo #)/dw [cantar, celebrar, e-
logiar]. Das três esta é a palavra mais genérica; a %)dh pode ser de lamentação, luxo, queixa ou ale-
gria. A palavra na literatura grega secular não estava limitada ao “cântico” do ser humano, podendo
referir-se a todo tipo de sons: ao coaxar do sapo, ao som de um instrumento (harpa), o silvo produzi-
do pelo vento nas árvores ou de uma pedra. Talvez “hinos” e “cânticos” descritos por Paulo refiram-se
principalmente aos cânticos neotestamentários, estando refletido neles elementos da herança grega –
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 177/233

Essas três palavras empregadas também conjuntamente em Cl 3.16 é difícil, se-


não impossível de se determinar com precisão a diferença entre elas e estabelecer a
sua distinção na adoração cristã, considerando inclusive que elas também eram em-
717
pregadas no culto pagão. Ainda que a compreensão desta distinção não seja fun-
damental para a nossa adoração, segundo nos parece o que estabelece o contraste
da adoração cristã neste texto, é que esta é promovida pelo Espírito Santo, com
coração sincero e, como não poderia deixar de ser, de modo espiritual. Portanto, os
três termos parecem resumir a variedade e harmonia dos cânticos cristãos sob o
impulso e direção do Espírito em fidelidade à Palavra revelada de Deus.

718
Em Ef 5.18, Paulo faz um contraste entre a embriaguez, ainda que “religiosa” –

considerando que muitos dos cristãos tinham esta formação –, no entanto, sob a direção do Espírito,
tendo como elemento aferidor a Palavra de Cristo (Cl 3.16).
717
Calvino admitindo a dificuldade de se estabelecer a distinção [João Calvino, Efésios, (Ef 5.19), p.
165], diz: salmo é o que é cantado com acompanhamento de algum instrumento musical; o hino é
uma canção de louvor sem acompanhamento de instrumento; a ode além de louvor, contém exorta-
ções e outros assuntos [Cf. John Calvin, Epistle to the Colossians, Grand Rapids, Michigan: Baker
Book House, (Calvin’s Commentaries, Vol. XXI), 1996 (Reprinted), (Cl 3.16), p. 217]. Hodge, com dis-
cernimento, comenta: “O antigo uso das palavras yalmo>v, u[mnov, w|jdh, parece ter sido
tão livre como o é para nós o uso dos termos ingleses correspondentes salmo, hino e cânti-
co. Um salmo era um hino, e um hino, um cântico. Apesar disso, havia uma distinção entre
eles” [Charles Hodge, “Epistle to the Ephesians,” The Master Christian Library, Version 8 [CD-ROM],
(Albany, OR: Ages Sofware, 2000), (Ef 5.19), p. 205]. Vejam-se também as pertinentes observações
de MacArthur (John F. MacArthur Jr., et. al. Ouro de Tolo? Discernindo a Verdade em uma Época de
Erro, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2006, p. 127-129).
718
No paganismo a relação entre o excesso de bebida e a prática religiosa era comum, especial-
mente nos serviços ao deus Dionísio (Dio/nusoj) – [= Baco (Ba/kxoj), filho de Zeus (= Júpiter, na sua
forma latina)] –, na bacanália, estando a embriaguez também associada à nudez e prostituição (Vd.
Ap 17.2). Segundo a mitologia grega Baco fazia uso do vinho para embriagar pessoas a fim de que
estas realizassem os seus desejos, inclusive de conquista. Paulo Matos Peixoto resume algumas ca-
racterísticas das festividades em homenagem a Baco: “As festas báquicas foram as primeiras re-
presentações teatrais, ainda inconscientes do sentido que continham. Baco, o deus boêmio,
precisava de movimento, de alegria, de tumulto, de máscaras, de paixões. Seus adeptos,
guiados pelos seus sacerdotes, organizam festas ao ar livre, com baile, vinho, mulheres, a fim
de proclamar-se o delírio, atributo do deus da alegria desenfreada. Entre interjeições de a-
legria, sons de flautas, cantos confusos, a multidão representava a corte de Baco, o seu le-
gendário reino de prazeres e uma forma de vida que era a sua característica” [Paulo Matos
Peixoto em Introdução à obra:Teatro Grego, São Paulo: Paumape, 1993, p. 10-11. Mais detalhes so-
bre as bacanálias podem ser encontrados em Jocelyn Santos, Deuses Antigos, Rio de Janeiro: Livros
do Mundo Inteiro, 1970, p. 91-92]. “O culto a Dionísio, com sua ênfase sobre a embriaguez reli-
giosa, era conhecido em Corinto e em outros lugares, e é razoável ver dentro destes textos
das Epístolas do NT a preocupação no sentido de traçar uma linha divisória entre todos esses
cultos helenísticos, e a vida do cristão no Espírito” (J.P. Budd, Sóbrio: In: NDITNT., Vol. IV, p.
518). (Vd. também: Augustus N. Lopes, Cheios do Espírito, São Paulo: Os Puritanos/Editora Cultura
Cristã, 1998, p. 17). As festas em homenagem a Baco eram tão promíscuas que o Senado romano as
proibiu por decreto; no entanto, o costume estava tão arraigado no povo que a lei foi ineficaz. (Cf. P.
Commelin, Mitologia Greco-Romana, p. 72; Jocelyn Santos, Deuses Antigos, p. 91). Baco, na mitolo-
gia esteve associado à musica e ao teatro: “Afirma-se que foi Baco o primeiro a estabelecer
uma escola de Música; as primeiras representações teatrais foram feitas em sua homena-
gem” (P. Commelin, Mitologia Greco-Romana, p. 69). Ele foi sagrado protetor das belas-artes, espe-
cialmente do teatro (Ver: Baco: Dicionário de Mitologia Greco-Romana, São Paulo: Abril Cultural,
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 178/233

comportamento habitual entre os pagãos e ainda sobrevivente em alguns círculos da


Igreja (Cf. 1Co 11.21) –, que gera a dissolução de todos os bons costumes, devassi-
719
dão e libertinagem (a)swti/a), e o enchimento do Espírito. Portanto, ao invés dos
720
homens procurarem a excitação desenfreada da bebida, ou a embriaguez como
recurso para fugirem de seus problemas por meio do entorpecimento de suas men-
tes, devem buscar o discernimento do Espírito para compreender a vontade de
Deus, que deve ser o grande objetivo de nossa existência (Ef 5.17). O homem com o
discernimento próprio de Deus, não buscará alegria no vinho, antes, no Espírito San-
to. O enchimento do Espírito exige consciência, não a perda do controle através do
exacerbamento da emoção em detrimento da razão. O ato de cantar infindavelmente
pode se tornar num meio de excessivo estímulo emocional que nos conduziria à em-
briaguez mental e emocional, tornando-nos presas fáceis de manipulações. Lamen-
721
tavelmente a música tem sido usada com muita frequência com este propósito.
MacArthur conclui acertadamente: “O sentimentalismo irracional, estimulado ge-
ralmente pela repetição e ‘liberação’, se aproxima mais do paganismo dos
722
gentios (ver Mt 6.7) do que de alguma forma de adoração bíblica”.

1973, p. 21). Devido à elaboração musical e ao embelezamento do culto oferecido ao Deus Apolo, ele
foi escolhido como o patrono dos cantores e poetas. (Cf. Johannes Quasten, Music & Worship in
Pagan & Christian Antiquity, p. 3). [Quanto à origem etimológica dos nomes “Dionísio” e “Baco”, ver:
Junito de Souza Brandão, Mitologia Grega, 2ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1988, Vol. 2, p. 113].
719
a)swti/a é constituída de duas palavras: a = “não” & sw/zw = “libertar”, “salvar”, “curar”. O sentido
literal da palavra é de alguém que não consegue poupar, economizar; é, portanto, perdulário, dissolu-
to. [* Ef 5.18; Tt 1.6; 1Pe 4.4. (Vd. LXX: Pv 28.7)]. A forma adverbial a)sw/toj (dissolutamente), é em-
pregada em sua única aparição no Novo Testamento, para se referir ao modo de vida do filho pródigo
longe de sua casa (Lc 15.13). [Vd. Richard C. Trench, Synonyms of the New Testament, Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans, 1985 (Esta edição reproduz a 9ª, de 1880), p. 53-58]. Portanto, a pala-
vra está geralmente associada ao modo devasso e libertino de viver. Ela descreve a condição da
mente e do corpo que foram arrastados à uma situação vil sendo decorrente daí uma total insensibili-
dade espiritual. [Vd. R.C.H. Lenski, St. Paul´s Epistle To the Ephesians, Peabody, Massachusetts:
Hendrickson Publishers, (Commentary on the New Testament), 1998, (Ef 5.18), p. 618]. C. S. Lewis
faz um oportuno contraste: "Precisamos divertir-nos. Mas nossa alegria deve ser aquela (aliás, a
maior de todas) que existe entre pessoas que sempre se levaram a sério – sem leviandade,
sem superioridade, sem presunção (...) a leviandade parodia a alegria" (C.S. Lewis, Peso de
Glória, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 23). Recentemente (julho de 2005) vimos um caso ilus-
trativo. A torcida de um grande time da cidade de São Paulo, alegre com a conquista do tricampeona-
to da “Taça Libertadores da América”, externou sua euforia depredando na Avenida Paulista – a mais
famosa e cara da capital paulistana –, lojas, carros, bancas de revista, etc. O prejuízo foi de centenas
de milhares de reais. Fica a pergunta: E se o seu time tivesse perdido o título, como seria a manifes-
tação de tristeza e frustração?
720
Calvino comenta: “[Paulo] quer dizer, pois, que os beberrões logo perdem a modéstia e
não mais conseguem conter-se pelo pudor: que onde o vinho reina, o desregramento pre-
valecerá: e, consequentemente, que todos aqueles que cultivam algum respeito pela mo-
deração ou decência, devem fugir e abominar a bebedice” [João Calvino, Efésios, (Ef 5.18),
p. 164]. Em outro contexto, Calvino escreve: “Beber com excesso não é só indecoroso num pas-
tor, mas geralmente resulta em muitas coisas ainda piores, tais como rixas, atitudes néscias,
ausência de castidade e outras que não carecem de menção” [João Calvino, As Pastorais,
(1Tm 3.3), p. 88].
721
Ver D.M. Lloyd-Jones, Cantando ao Senhor, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
2003, p. 47ss.
722
John F. MacArthur Jr., et. al. Ouro de Tolo? Discernindo a Verdade em uma Época de Erro, São
José dos Campos, SP.: Fiel, 2006, p. 137.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 179/233

Para que o contraste ficasse bem claro, Paulo não usa para o enchimento do Es-
pírito o verbo “embriagar” – que envolve a diminuição da consciência e dos reflexos,
além de ser uma expressão que baratearia por demais a sua mensagem e também,
723
inadequada para se referir à terceira Pessoa da Trindade –, antes nos fala de um
enchimento consciente e santamente voluntário. Enquanto a embriaguez produz
uma dissolução completa de nosso autocontrole, nos conduzindo à insatisfação, in-
conveniência e posterior sentimento de culpa; o Espírito produz uma alegria santa
que se expressa em salmos, hinos e cânticos espirituais. A expressão do Espírito
conduz-nos à emoções santas; a emoção mundana limita toda a sua vida ao corpo,
724
substituindo a alegria do Espírito pela intoxicação alcoólica. O médico e pastor L-
loyd-Jones, comenta: “A bebida não é um estimulante, é um agente de de-
pressão. Deprime antes de tudo os núcleos mais elevados do cérebro. Estes
são os primeiros a serem influenciados e afetados pela bebida. Eles contro-
lam tudo que dá ao homem o domínio próprio, a sabedoria, o entendimen-
to, a discriminação, o juízo, o equilíbrio, a capacidade de avaliar tudo; nou-
tras palavras, controlam tudo que faz o homem comportar-se no nível máxi-
725
mo e melhor”. À frente: “Apanhem algum livro de farmacologia, vejam
‘álcool’, e sempre verão que ele vem classificado entre os depressivos. Não
é um estímulo. ‘Bem’, vocês dirão, ‘por que as pessoas tomam álcool em
busca de estímulo?’ (...) Eis o que o álcool faz: ele abate os centros mais ele-
vados e, assim, os elementos mais primitivos do cérebro vêm à tona e assu-
mem o controle; e o homem se sente melhor, temporariamente. Perde o seu
senso de temor, perde sua capacidade de discriminação, perde sua capa-
cidade de avaliação. O álcool simplesmente abate os seus centros mais ele-
vados e libera os elementos instintivos, mais primitivos; mas o homem acredi-
ta que está sendo estimulado. O que realmente é verdade a respeito dele é
726
que ele se tornou mais animalesco; seu controle sobre si mesmo diminuiu”.

723
Por isso considero inadequada a analogia feita por Horton, chamando a direção do Espírito em
nossa vida de “graça embriagante” (Michael Horton, As Doutrinas da Maravilhosa Graça, São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 137ss.). Parece-me oportuno recordar a orientação de Calvino
emitida em outro contexto: “Se, pois, um dia pretendermos adentrar os eternos conselhos de
Deus, pela instrumentalidade de um discurso, que o façamos moderando nossa linguagem
e mesmo nossa maneira de pensar, de modo que nossa argumentação seja sóbria e respei-
te os limites da Palavra de Deus, e cuja conclusão seja repassada e saturada daquela ex-
pressão de assombro. Indubitavelmente, não devemos nos sentir constrangidos caso nossa
sabedoria não exceda a daquele que uma vez foi arrebatado até ao terceiro céu, donde
ouviu e contemplou mistérios que aos homens não lhe fora possível relatar [2Co 12.4]. Toda-
via, ele não encontrou nenhuma outra saída, aqui, senão humilhar-se como o fez” [João
Calvino, Romanos, 2ª ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 11.33), p. 426].
724
Vd. William Hendriksen, Exposição de Efésios, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, (Ef.
5.18), p. 297.
725
D.M. Lloyd-Jones, Vida No Espírito: No Casamento, no Lar e no Trabalho, São Paulo: Publicações
Evangélicas Selecionadas, 1991, (Ef 5.18), p. 12. Em outro contexto, Lloyd-Jones escreveu: “O ál-
cool não é um estimulante, é um depressivo – esta é uma declaração farmacológica, um
fato científico. O álcool libera o que há de mais primitivo em você, eliminando seus mais e-
levados centros de controle. Essa é só uma ilustração, porém é a pura verdade com relação
ao pecado em todo o setor e departamento” (D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus não o
nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 93).
726
D.M. Lloyd-Jones, Vida No Espírito, p. 16.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 180/233

O cristão, ao contrário, busca o sentido da plenitude da sua existência, na plenitude


do Espírito. É pelo Espírito que nos tornamos verdadeiros seres humanos no empre-
go correto e intenso de nossa capacidade. “Sendo assim cheios com o Espírito, os
crentes não somente serão esclarecidos e alegrados, mas também darão
727
jubilosa expressão a seu vivificante conhecimento da vontade de Deus”.
728
Sob o Espírito não perdemos o controle, antes o ganhamos. O Espírito não nos a-
liena, antes conduz-nos à percepção mais aprimorada e intensa da Palavra de Cristo
que habita ricamente em nós. O Espírito nos estimula e capacita espiritual e intelec-
tualmente a entender e obedecer a Palavra de Deus. “O Espírito Santo estimula a
mente. Ele é um estímulo direto para o intelecto. Ele realmente desperta as
faculdades da pessoa e as desenvolve. Ele não reproduz sobre eles o efeito
que o álcool e outras drogas produzem. É o oposto exato disso; é um estímu-
729
lo verdadeiro”.

Erroll Hulse comenta:

“O Espírito Santo opera diferentemente. Não exige uma mente vazia; ao


contrário, enche e controla a mente. Traz ordem e profundidade ao co-
nhecimento, às afeições e às emoções. (...) O álcool é destruidor dos sen-
730
tidos, mas o Espírito Santo é construtivo”.
“O enchimento do Espírito Santo leva ao aprimoramento e alargamento
dos poderes do intelecto e ao discernimento, à melhoria da memória, efi-
ciência na execução do trabalho, ao aquecimento das afeições, ao au-
mento do zelo, e ao aumento geral do fruto do Espírito, descrito em Gála-
731
tas 5.22”.

Aliás, Calvino, considerando a complexidade e a riqueza da experiência cristã, en-


tendia que “os salmos constituem uma expressão muito apropriada da fé re-
732
formada”, e que “Tudo quanto nos serve de encorajamento, ao nos por-
733
mos a buscar a Deus em oração, nos é ensinado neste livro [Salmos].” Por-
tanto, no Livro de Salmos temos um guia seguro para a edificação da Igreja que po-
de cantá-lo sem correr o risco de proferir heresias melodiosas. “Não existe outro li-
vro onde mais se expressem e magnifiquem as celebrações divinas, seja da
liberalidade de Deus sem paralelo em favor de sua Igreja, seja de todas as
suas obras. (...) Não há outro livro em que somos mais perfeitamente instruí-
dos na correta maneira de louvar a Deus, ou em que somos mais poderosa-

727
William Hendriksen, Exposição de Efésios, (Ef. 5.18), p. 299. “Para fazer os corações dos san-
tos rejubilar-se, o favor divino é o único sobejamente suficiente” [João Calvino, O Livro dos
Salmos, Vol. 2, (Sl 48.2), p. 355].
728
Cf. John R.W. Stott, A Mensagem de Efésios, São Paulo: ABU Editora, 1986, p. 152.
729
D.M. Lloyd-Jones, Vida No Espírito, p. 16.
730
Erroll Hulse, O Batismo do Espírito Santo, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1995, p. 113.
731
Erroll Hulse, O Batismo do Espírito Santo, p. 114.
732
John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 336.
733
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p. 34.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 181/233

734
mente estimulados à realização desse sacro exercício.” Calvino considerava
735
os Salmos como “Uma Anatomia de Todas as Partes da Alma”. Creio que is-
so explica, ainda que parcialmente, o seu tom tão pastoral no Comentário de Sal-
mos. Nos Salmos, Calvino, dentro da sua discrição característica, se expõe de um
modo mais pessoal. Acredito que em nenhum outro de seus comentários temos a-
cesso tão direto ao coração de Calvino como nesses. Retornando: No Prefácio do
seu comentário ao Livro de Salmos, diz: “Se a leitura destes meus comentários
conferem algum benefício à Igreja de Deus como eu obtive vantagem da
composição deles, eu não terei nenhuma razão para lamentar por ter em-
736
preendido este trabalho.”

Quanto à questão da música na Igreja, Calvino seguiu de perto o pensamento de


Agostinho (354-430) que, nas Confissões, havia dito:

“Quando ouço cantar essas vossas santas palavras com mais piedade e
ardor, sinto que o meu espírito também vibra com devoção mais religiosa
e ardente do que se fossem cantadas doutro modo. Sinto que todos os
afetos da minha alma encontram, na voz e no canto, segundo a
diversidade de cada um, as suas próprias modulações, vibrando em razão
dum parentesco oculto, para mim desconhecido, que entre eles existe.
Mas o deleite da minha carne, ao qual se não deve dar licença de
enervar a alma, engana-me muitas vezes. Os sentidos, não querendo
colocar-me humildemente atrás da razão, negam-se a acompanhá-la. Só
porque, graças à razão, mereceram ser admitidos, já se esforçam por
precedê-la e arrastá-la! Deste modo peco sem consentimento, mas
advirto depois.
“Outras vezes, preocupando-me imoderadamente com este embuste,
peco por demasiada severidade. Uso às vezes de tanto rigor que desejaria
desterrar meus ouvidos e da própria igreja todas as melodias dos suaves
cânticos que ordinariamente costuma acompanhar o saltério de Davi.
Nessas ocasiões parece-me que o mais seguro é seguir o costume de
Atanásio, bispo de Alexandria. Recordo-me de muitas vezes me terem dito
que aquele prelado obrigava o leitor a recitar os salmos com tão diminuta
inflexão de voz que mais parecia um leitor que um cantor.
“Porém, quando me lembro das lágrimas derramadas ao ouvir os cânti-
cos da vossa Igreja nos primórdios da minha conversão à fé, e ao sentir-me
agora atraído, não pela música, mas pelas letras dessas melodias, canta-
das em voz límpida e modulação apropriada, reconheço, de novo, a
737
grande utilidade deste costume”.

734
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p. 35-36.
735
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p. 33.
736
John Calvin, Commentary on the Book of Psalms, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House
(Calvin’s Commentaries, Vol. IV), 1996 (Reprinted), Prefácio, p. XXXV. (Tradução brasileira, João
Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p. 31).
737
Agostinho, Confissões, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. VI), 1973, X.33. p. 219-
220.
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A seguir, Agostinho relata o seu impasse:

“Assim flutuo entre o perigo do prazer e os salutares efeitos que a expe-


riência nos mostra. Portanto, sem proferir uma sentença irrevogável, incli-
no-me a aprovar o costume de cantar na Igreja, para que, pelos deleites
do ouvido, o espírito, demasiado fraco, se eleve até aos afetos da pieda-
de. Quando, às vezes, a música me sensibiliza mais do que as letras que se
cantam, confesso com dor que pequei. Neste caso, por castigo, preferiria
738
não ouvir cantar. Eis em que estado me encontro.”

Assim, Calvino escreveu:

“Nem, contudo, aqui condenamos a voz ou o canto, senão que antes,


muito os recomendamos, desde que acompanhem o afeto da alma. Ora,
assim exercitam a mente na cogitação de Deus e a retêm atenta, a qual,
como é escorregadia e versátil, facilmente se afrouxa e a variadas dire-
ções se distrai, a menos que seja de variados adminículos sustentada. A-
demais, como em cada parte de nosso corpo, uma a uma, deva luzir, de
certo modo, a glória de Deus, convém especialmente seja a língua, que
foi criada peculiarmente para declarar e proclamar o louvor de Deus, ad-
739
judicada e devotada a este ministério, quer cantando, quer falando....”.

“E, certamente, se a essa gravidade que convém à vista de Deus e dos


anjos haja sido temperado o canto, por um lado, concilia dignidade e
graça aos atos sacros, por outro, muito vale para incitar os ânimos ao ver-

738
Agostinho, Confissões, X.33. p. 220.
739
J. Calvino, As Institutas, III.20.31. “.... o falar e o cantar, se acompanham a oração, de na-
da valem diante de Deus e não Lhe são de nenhum proveito, se não são fruto do amor e se
não vêm do fundo do coração. Muito ao contrário, porém, causam ao Senhor grande in-
dignação e provocam fortemente a Sua ira, se só procedem da boca e dela saem, porque
isso é abusar do Seu sacratíssimo nome e zombar da Sua majestade, como Ele o declara por
intermédio do Seu profeta, dizendo: ‘Visto que este povo se aproxima de mim e com a sua
boca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim, e o seu temor
para comigo consiste só em mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu,
continuarei a fazer obra maravilhosa no meio deste povo; sim, obra maravilhosa e um por-
tento; de maneira que a sabedoria dos seus sábios perecerá, e a prudência dos seus pru-
dentes se esconderá’ (Is 29.13,14; Mt 15.7-9). Todavia, não dizemos que a palavra e o canto
não são bons; antes, os prezamos muito, desde que sigam o amor de coração e a este a-
tendam. Porque, assim procedendo, eles ajudam a intenção do homem e a mantém ligada
à reflexão sobre Deus e em Sua contemplação, advertidos como devemos estar de que
aquela boa intenção tende a desviar-se facilmente desse propósito, se não for fortalecida
por todos os meios disponíveis. Além disso, tendo em vista que todos os membros do nosso
corpo devem glorificar a Deus, bom será que a própria língua, criada por Deus especialmen-
te para anunciar e glorificar o Seu nome, seja empregada nesse mister, quer falando quer
cantando. E, principalmente, ela é necessária para as orações que se fazem publicamente
nas assembléias dos cristãos, aos quais devemos mostrar que, como honramos a Deus com
um mesmo espírito e com a mesma fé, também O louvamos com uma mesma palavra, co-
mum a todos, e, pode-se dizer, com a mesma boca. E isso diante dos homens, para que ca-
da um ouça declaradamente a confissão da fé que seu irmão tem, e seja edificado e inci-
tado a imitá-la” [João Calvino, As Institutas, (1541), III.9].
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dadeiro zelo e ardor de orar. Contudo, impõe-se diligentemente guardar


que não estejam os ouvidos mais atentos à melodia que a mente ao sen-
tido espiritual das palavras. [...] Aplicada, portanto, esta moderação, dú-
vida nenhuma há de que seja uma prática muito santa e sadia, da mes-
ma forma que, por outro lado, todos e quaisquer cantos que hão sido
compostos apenas para o encanto e o deleite dos ouvidos nem são com-
patíveis com a majestade da Igreja, nem podem a Deus não desagrada-
740
rem sobremaneira”.

Em outro lugar:

“E, na verdade, conhecemos por experiência que o canto possui gran-


de força e poder de comover e inflamar o coração dos homens para in-
vocar e louvar a Deus com zelo mais veemente e ardoroso. Há sempre a
considerar-se que o canto não seja frívolo e leviano; pelo contrário, tenha
peso e majestade, como diz Santo Agostinho. E, assim, haja grande dife-
rença entre música feita para alegrar os homens à mesa ou em casa e os
salmos que se cantam na Igreja, na presença de Deus e de Seus anjos... se
bem que o uso do cântico vai bem mais longe. Mesmo nas casas e nos
campos é-nos ele um incitamento e dir-se-á um órgão para louvar a Deus
e elevar-Lhe o coração para que nos console enquanto meditamos em
Seu poder, bondade, sabedoria e justiça. Mais necessário é isso do que se
poderia dizer. Acima de tudo, não é sem causa que o Santo Espírito exor-
ta-nos tão cuidadosamente pelas Sagradas Escrituras a regozijar-nos em
Deus e que toda nossa alegria a isso se reporte, como a seu verdadeiro
fim. Sabe Ele quanto somos inclinados a regozijar-nos em frivolidades.
Tanto quanto, pois, nos inclina e induz nossa própria natureza a procurar
todos os meios de alegria leviana e viciosa, apresenta-nos o Senhor nosso,
para detrair-nos e demover-nos das seduções da carne e do mundo,
todos os meios possíveis, a fim de ocupar-nos nessa alegria espiritual que
Ele tanto no recomenda. Ora, entre outras coisas própria para recrear o
homem e proporcionar-lhe prazer, a música é ela dom de Deus delegado
a este uso. Eis porque tanto mais devemos tomar tanto a dela não
abusarmos, temendo conspucá-la e contaminá-la, convertendo-a à
condenação nossa onde foi dedicada a nosso proveito e benefício. Outra
consideração não houvesse senão esta, deve-nos ela bem mover a
moderar o uso da música, de sorte a fazê-la servir a tudo que é decente e
não nos seja ocasião de soltar-nos a rédea à dissolução, ou de efeminar-
nos em deleites desregrados, e que seja instrumento de devassidão nem
741
de qualquer impudicícia”.

Continua:

740
J. Calvino, As Institutas, III.20.32.
741
John Calvin, Opera Calvini, Volume VI, p. 167. Apud André Biéler, O Pensamento Econômico e
Social de Calvino, p. 577.
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“Eis porque devemos ser tanto mais diligentes em regulá-la, de tal sorte
que nos seja ela útil e de maneira alguma perniciosa. Por esta razão, quei-
xaram-se frequentemente os antigos doutores da Igreja de que o povo de
seu tempo era dado a canções indecorosas e impudicas, que não sem
causa consideram e chamam veneno mortal e satânico para corromper o
mundo. Ora, falando particularmente da música, admito-lhe duas partes:
a letra, ou conteúdo e matéria; em segundo lugar, o canto, ou melodia.
Verdade é que toda palavra má (como diz São Paulo) perverte os bons
costumes; quando, porém, se lhe associa a melodia, muito mais profun-
damente penetra ela o coração e de tal modo se instila dentro de nós
que, assim como por um funil é o vinho entornado na vasilha, assim tam-
bém, através da melodia, são lançados ao fundo do coração o veneno e
a corrupção. Quê se há, pois, de fazer? É de ter canções não apenas de-
corosas, mas também santas, que nos sejam como aguilhões a instigar-nos
a orar e louvar a Deus, a meditar em Suas obras, a fim de amá-lo, temê-lo,
honrá-lo e glorificá-lo... Eis porque exorta Crisóstomo tanto a homens como
a mulheres e crianças a acostumarem-se a cantá-las, para que lhes seja is-
so como pia meditação e associá-los à companhia dos Anjos. Quanto ao
mais, importa lembrar-nos do que São Paulo diz: que as canções espirituais
se não podem cantar bem senão de coração. O coração, porém, requer
o entendimento. E nisto (diz Santo Agostinho) está a diferença entre o can-
to dos homens e o cantar das aves, um pintarroxo, um rouxinol, um papa-
gaio, cantarão bem, mas sem entenderem o que cantam. Ora, o próprio
dom do homem é cantar, sabendo o que está a dizer; ao entendimento
deve seguir-se o coração e a afeição, o que se não pode dar a menos
que tenhamos o cântico impresso em nossa memória para jamais cessar
742
de cantar”.

Calvino na elaboração do que seria conhecido como Saltério Genebrino, traduziu


743
alguns salmos [Sl 25,36,43,46,91, 113, 120, 138 e 142], valendo-se efetivamente
do talento do poeta francês Clément Marot (c. 1496-1544) – que conhecera na Corte
744
da Duquesa de Ferrara em 1536 –, e Theodoro de Beza (1519-1605) e, posteri-
ormente recorreu ao precioso trabalho do compositor francês Loys Bourgeois
745 746
(c.1510-c. 1560), “pai do moderno hino de louvor”, – que adaptou as canções

742
John Calvin, Opera Calvini, Volume VI, p. 167. Apud André Biéler, O Pensamento Econômico e
Social de Calvino, p. 578.
743
Cf. John T. McNeill, The History and Character of Calvinism, p. 148; Philip Schaff, History of the
Christian Church, Vol. VIII, p. 374. Não nos esqueçamos de que Calvino, ao contrário de seu amigo
Viret, tinha pendor poético, no entanto, reconhecida o pouco tempo disponível para se dedicar a isso
[Ver: John Calvin, To Conrad Hubert, “Letters,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages
Software, 1998), 19/05/1557, nº 462]. Quanto à sensibilidade estética de Calvino, ver: John T.
McNeill, The History and Character of Calvinism, p. 148, 231-232.
744
Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. VIII, p. 374; André Biéler, O Pensamento Eco-
nômico e Social de Calvino, p. 133. Marot musicou 81 salmos (Cf. Jouberto Heringer da Silva, A Mú-
sica na Liturgia de Calvino em Genebra: In: Fides Reformata, VII.2 (2002), p. 97]. Ver: T.H.L. Parker,
The Oracles of God: An Introduction to the Preaching of John Calvin, Cambridge, England: James
Clark & Co. © 1947 (Reprinted: 2002), p. 36-37.
745
Ver: Abraham Kuyper, Calvinismo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, 176-177.
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747
populares de fácil assimilação e antigos hinos latinos e, também, compôs outras
748
músicas para a métrica dos salmos de Marot – e Claude Goudimel (1510-1572),
que aderindo à Igreja Reformada em 1562, viria morrer em Lyon no massacre da
noite de São Bartolomeu. As lindas melodias de Goudimel tornaram-se um ingredi-
ente enriquecedor do Saltério e, também, contribuíram em muito para a sua divulga-
ção. “Goudimel, particularmente, tinha em mente, em suas composições,
749
uma família cantando no lar.” O Saltério iniciado por Calvino em 1539, dispu-
nha de 19 salmos. Mais tarde, seriam impressas várias edições em Genebra, con-
tendo 50 salmos (1543) e uma outra em Estrasburgo (1545). As edições foram sen-
750
do aumentadas, até a definitiva, concluída por Beza (c. 1561-1562). Ele tornou-
751
se “um dos livros mais importantes da reforma”, e um protótipo dos hinários
752
procedentes da Reforma, tendo um verdadeiro “dom de línguas”, sendo traduzido
para o alemão, holandês, italiano, espanhol, boêmio, polonês, latim, hebraico, ma-
laio, tamis, inglês, etc., sendo usado por católicos, luteranos e outras denomina-
753
ções. Posteriormente os Salmos de Marot foram anexados em forma de apêndice
ao Catecismo de Genebra, tornando-se uma marca característica da expressão de
754
fé no culto reformado.

No Prefácio à edição de 1542 do Saltério Genebrino, Calvino escreveu:

746
Conforme expressão citada por Silva [Jouberto Heringer da Silva, A Música na Liturgia de Calvino
em Genebra: In: Fides Reformata, VII.2 (2002), p. 98].
747
Isso foi feito com o objetivo de que “agora o povo não cantaria mais no bar ou na rua, mas no
santuário, e assim, em suas melodias levaram a seriedade do coração a triunfar sobre o calor das
paixões inferiores” (Abraham Kuyper, Calvinismo, p. 176).
748
Cf. Frank Dobbins, Loys Bourgeois: In: Stanley Sadie, ed. The New Grove Dictionary of Music and
Musicians, New York: Macmillan Publishers, 1980, Vol. III, p. 111; Abraham Kuyper, Calvinismo, p.
175-176. A tradução de Marot tornou-se extremamente popular na corte e na cidade, advogando “ma-
terialmente” a causa da Reforma na França (Cf. F.J.B. Watson, Clément Marot: In: Harry S. Ashmore,
Editor in Chief, Encyclopaedia Britannica, (1962), Vol. 14, p. 936), ainda que ele não fosse propria-
mente Reformado, tendo um comportamento ambíguo (Vd. Edward Dickinson, Music in The History of
The Western Church, London: Smith, Elder & Co., 1902, p. 359-360).
749
Pierre Courthial, A Idade de Ouro do Calvinismo na França: (1533-1633): In: W.S. Reid, ed. Cal-
vino e sua Influência no Mundo Ocidental, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 107.
750
Edward Dickinson, Music in The History of The Western Church, p. 360; Philip Schaff, History of
the Christian Church, Vol. VIII, p. 374. Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, p. 26.
751
John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 299. Também,
p. 40.
752
Cf. Hughes Oliphant Old, Worship: That Is Reformed According to Scripture, p. 51ss.
753
Cf. John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 299. Ele
também se tornou um grande sucesso editorial, sendo publicadas 25 edições já no primeiro ano de
sua edição. Nos quatro anos seguintes foram publicadas 62 edições. (Vd. mais detalhes In: John H.
Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 336). Curiosamente, S-
chaff diz que o “Saltério de Genebra” nunca se tornou popular. (Vd. Philip Schaff, History of the
Christian Church, Vol. VIII, p. 265-266). Talvez Schaff possa estar se referindo ao possível fato do
“Saltério Genebrino”, mesmo tendo sido traduzido para vários idiomas, jamais ter usufruído maciça-
mente do gosto popular, o que de fato não é impossível, tendo acontecido fatos semelhantes em nos-
sa própria igreja no Brasil.
754
Cf. Nota ao Livro dos Salmos, de João Calvino, Vol. 3, Sl 92.4, p. 462 extraída do livro Thomas
Worton, ed., Warthon’s History of English Poetry, Vol. III, p. 164-165.
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“.... Nós sabemos por experiência que o canto tem grande força e vigor
para mover e inflamar os corações dos homens, a fim de invocar e louvar
755
a Deus com um mais veemente e ardente zelo”.

Comentando o Livro de Gênesis, diz:

“Embora a invenção da harpa e de similares instrumentos de música,


possa servir antes ao deleite e ao prazer que à necessidade, ainda assim
não se pode tê-los por de todo supérfluos e ainda menos merece ser
756
condenados. É verdade que se impõe condenar a voluptuosidade que
não se afina com o temor de Deus e o benefício comum da comunidade
humana. A música entretanto, é de tal natureza que pode ser aplicada
aos exercícios de piedade e pode beneficiar aos homens, escoimada dos
viciosos engodos e, também, da vã deleitação que detrai os homens de
757
melhores exercícios para ocupá-los com a vaidade.”

Um estudante francês refugiado, que visitou a Igreja de Calvino em Estrasburgo


(1545), descreveu emocionado o que viu:

“Todos cantam, homens e mulheres, e é um belo espetáculo. Cada um


tem um livro de cânticos nas mãos. (...) Olhando para esse pequeno grupo
de exilados, chorei, não de tristeza, mas de alegria, por ouvi-los todos
cantando tão sinceramente, enquanto cantavam agradecendo a Deus
758
por tê-los levado a um lugar onde seu nome é glorificado”.

Os salmos tiveram um papel extremamente marcante na formação espiritual dos


Reformados, constituindo-se também, em uma de suas grandes demonstrações de
fé. Schaff resume: “A introdução do Saltério na língua vernácula foi um dos
mais importantes feitos, e o começo de um longo e heróico capítulo na histó-
ria do culto e da vida cristã. O Saltério ocupa um lugar tão importante na
759
Igreja Reformada como os hinos entre os Luteranos. Ele foi a fonte de con-
forto e força para a Igreja dos Huguenotes do Deserto, e para os Covenan-
760
ters presbiterianos da Escócia, nos dias de amargo sofrimento e persegui-

755
Apud John T. McNeill, The History and Character of Calvinism, p. 148.
756
Em outro ponto: “A invenção das artes e outras coisas que servem ao uso comum e ao conforto
desta vida é um dom de Deus que não é de desprezar e uma virtude digna de louvor.” [John Calvin,
Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), Vol.
I, (Gn 4.20), p. 217].
757
John Calvin, Calvin’s Commentaries, Vol. I, (Gn 4.20), p. 218.
758
Apud T. George, Teologia dos Reformadores, p. 181. Vd. também: John T. McNeill, The History
and Character of Calvinism, p. 147; Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. VIII, p. 373.
759
Lutero foi o criador do primeiro hinário alemão (1524), e, depois, também elaborou o Hinário de
Wittenberg (1529). Ele pode ser considerado o fundador da hinologia alemã e o grande difusor da
música na Igreja. Lutero compôs 36 hinos e várias melodias, as quais adaptou aos hinos.
760
Presbiterianos escoceses que lutaram contra o estabelecimento do sistema episcopal de governo
na Igreja da Escócia. Sustentavam a manutenção do presbiterianismo, conforme fora acordado pelos
Parlamentos da Escócia e Inglaterra, respectivamente em 1638 e 1649.
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761
ção”.

Em 7 de julho de 1553, Calvino escreve mais uma carta aos “prisioneiros de Lyon”
que aguardavam a sua condenação por terem aderido à Reforma Protestante. Esta
ele dirige em especial a dois deles: Denis Peloquin de Blois e Louis de Marsac. A
certa altura, diz:

“Meus irmãos (...), estejam certos de que Deus, que se manifesta em


tempos de necessidade e aperfeiçoa Sua força em nossa fraqueza, não
vos deixará desprovidos daquilo que poderosamente glorificará o Seu
nome. (...) E como você sabe, temos resistido firmemente as abominações
do Papado, a menos que nós renunciássemos o Filho de Deus, que nos
comprou para Si mesmo pelo precioso preço. Medite, igualmente, naque-
la glória celestial e imortalidade para as quais nós somos chamados, e é
certo de alcançar pela Cruz –– por infâmia e morte. De fato, para a ra-
zão humana é estranho que os filhos de Deus sejam tão intensamente afli-
gidos, enquanto os ímpios divertem-se em prazeres; porém, ainda mais,
que os escravos de Satanás esmaguem-nos sob seus pés, como diríamos,
e triunfem sobre nós. Contudo, temos meios de confortar-nos em todas as
nossas misérias, buscando aquela solução feliz que está prometida para
nós, que Ele não apenas nos libertará mediante Seus anjos, mas pessoal-
762
mente enxugará as lágrimas de nossos olhos. E, assim, temos todo o di-
reito de desprezar o orgulho desses pobres homens cegos, que para a
própria ruína levantam seu ódio contra o céu; e, apesar de não estar nes-
te momento em suas condições, nem por isso deixamos de lutar junto com
vocês em oração, com ansiedade e suave compaixão, como compa-
nheiros, percebendo que agradou a nosso Pai celeste, em Sua bondade
infinita, unir-nos em um só corpo sob Seu Filho, nossa cabeça. Pelo que eu
lhe suplicarei que possa garantir a vocês essa graça; que Ele os conserve
sob Sua proteção e lhes dê tal segurança disso que possam estar aptos a
desprezar tudo o que é deste mundo. Meus irmãos os saúdam mui afetuo-
763
samente, e assim também muitos outros. –– Seu irmão, João Calvino.”

Louis de Marsac, na prisão, responde-lhe: “Senhor e irmão, eu não posso ex-


pressar o grande conforto que recebi... da carta que você enviou para meu
irmão Denis Peloquin que passou-a a um de nossos irmãos que estavam nu-
ma cela abobadada acima de mim, e leu-a para mim em voz alta, porque
eu não pude lê-la por mim mesmo, sendo incapaz de ver qualquer coisa em
meu calabouço. Então, eu lhe peço que persevere nos ajudando com se-

761
Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. VIII, p. 374.
762
Comentando o salmo 56.8, Calvino assim se expressou: “.... Se Deus concede tal honra às lágri-
mas de seus santos [lembrar-se delas], então pode ele contabilizar cada gota do sangue que eles
derramaram. Os tiranos podem queimar sua carne e seus ossos, mas seu sangue continua a clamar
em altos brados por vingança; e as eras intervenientes jamais poderão apagar o que foi escrito no re-
gistro divino das memórias.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 56.8), p. 501].
763
John Calvin, To the Prisoners of Lyons, “Letters,” John Calvin Collection, [CD-ROM], nº 320.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 188/233

764
melhante consolação, pois isso nos convida a chorar e orar."

Posteriormente, Louis de Marsac, Etienne Gravot de Gyen, e Marsac, primo de


Louis serão condenados à morte, sendo queimados: Morreram cantando um hino.
Aliás, o canto em meio às chamas tornou-se um testemunho fervoroso da fé
calvinista na França.

Do mesmo modo, Leith comenta que,

“O cântico dos salmos contribuiu para moldar o caráter e a piedade re-


formada e sua influência dificilmente poderia ser superestimada. Os salmos
eram as orações do povo na liturgia de Calvino. Por meio deles, os
adoradores respondiam à Palavra de Deus e afirmavam sua confiança,
765
gratidão e lealdade a Deus.”
“O cântico de salmos tornou-se essencial para a piedade calvinista. Os
protestantes franceses, ao serem levados para a prisão ou para a
fogueira, cantavam salmos com tanta veemência que foi proibido por lei
cantar salmos e aqueles que persistiam tinham sua língua cortada. O
766
salmo 68 era a Marselhesa huguenote.”

Na França, em diversas ocasiões os protestantes foram atacados enquanto


prestavam culto a Deus, orando, lendo a Palavra e cantando salmos. Depois de
narrar algumas dessas perseguições, Baird constata: “A Liturgia do
767
protestantismo francês foi banhada com o sangue de seus mártires.”

Do mesmo, no Brasil, quando os calvinistas franceses Jean du Bourdel, Matthieu


Verneuil, Pierre Bourdon, André Lafon não negaram à sua fé diante de Nicolas Du-
768
rand de Villegaignon (1510-1571), foram presos. Jean Crespin registra: “Entre-
tanto, os condenados consolavam-se e regozijavam-se em suas cadeias, o-
769
rando e cantando, com extraordinário fervor, salmos e louvores a Deus.”

764
In: To the Prisoners of Lyons, “Letters,” John Calvin Collection, [CD-ROM], nº 320. Calvino aten-
deu à solicitação e, em 22/08/1553, escreveu-lhes novamente [Vd. John Calvin, To Denis Peloquin
and Louis de Marsache, “Letters,” John Calvin Collection, [CD-ROM], nº 323].
765
John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 301. Ver al-
guns exemplos significativos em: Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, p. 67ss.
766
John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 299. Foi o pró-
prio Calvino que adaptou a melodia de um dos corais de Greiter ao Salmo 68. (Cf. Henriqueta R.F.
Braga, Contribuição da Reforma ao Desenvolvimento Musical: In: Bill H. Ichter, org. A Música Sacra e
Sua História, Rio de Janeiro: JUERP., 1976, p. 77). O hino de Lutero baseado no Salmo 46 foi cha-
mado por H. Heine (1797-1856) de “Marselhesa da Reforma”. [Cf. W.J.R.T., Hymnology: In: Rev.
John McClintock & James Strong, eds. Cyclopedia of Biblical, Theological and Ecclesiastical
Literature, [CD-ROM], (Rio, WI., Ages Software, 2000), Vol. 4, p. 130].
767
Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, p. 65.
768
O alfaiate André Lafon terminou por ser persuadido a retratar-se. Foi poupado. Permaneceu en-
tão preso na fortaleza “como alfaiate do almirante e de toda sua gente.” (Jean Crespin, A Tragédia da
Guanabara ou Historia dos Protomartyres do Christianismo no Brasil, Rio de Janeiro: Typo-Lith, Pi-
menta de Mello & C., 1917, p. 81).
769
Jean Crespin, A Tragédia da Guanabara ou Historia dos Protomartyres do Christianismo no Brasil,
p. 74. Ver também: Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, 3ª ed., São Paulo: Livraria Martins Fon-
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 189/233

Na manhã de sexta-feira, 9 de fevereiro de 1558, quando Jean du-Bourdel, o au-


770
tor da Confissão de Fé, ia sendo conduzido ao rochedo para ser executado, a-
companhado por Villegaignon e seu pajem, narra Crespin: “ao passar junto da pri-
são em que estavam os seus companheiros, gritou-lhes em alta voz que tives-
sem coragem, pois iam ser logo libertados desta vida miserável. E, cami-
nhando para a morte, entoava salmos e louvores a Deus, o que causava
771
grande espanto a Villegaignon e ao carrasco”.

Quanto aos cânticos, devemos observar, contudo, que os hinos da Igreja não
precisam estar limitados ao Livro de Salmos, mesmo reconhecendo o seu
indiscutível valor como Palavra inspirada de Deus; além disso, deve ser observado,
que muitos dos salmos refletem de modo evidente, a expressão de fé de servos de
Deus na Antiga Aliança, que ainda não se plenificara em Cristo, Aquele que selou a
Nova Aliança com o Seu próprio sangue.

Todas as partes do culto devem ser a expressão daquilo que cremos, conforme é-
nos ensinado nas Escrituras. Portanto, é necessário que tenhamos consciência da-
quilo que falamos, cantamos e ouvimos. O nosso "Amém" não pode se transformar
772
em “vãs repetições” desconexas, antes, deve ser fruto da fé e da compreensão do

tes, (1960), p. 245.


770
Elaborada entre 04/01/1558 e 09/02/1558. Ver: Jean Crespin, A Tragédia da Guanabara ou Histo-
ria dos Protomartyres do Christianismo no Brasil, p. 63-64.
771
Jean Crespin, A Tragédia da Guanabara ou Historia dos Protomartyres do Christianismo no Brasil,
p. 77.
772
A expressão usada por Cristo em Mt 6.7, Battaloge/w, que só ocorre aqui, parece ser onomato-
péica, significando “falar sem sentido”, “balbuciar”, “repetir palavras ou sons inarticulados”, “falar sem
pensar”, “falar futilmente”, “gaguejar”, “dizer sempre a mesma coisa”, “tagarelar”, “uma repetição su-
pérflua e exagerada”, “repetir uma fórmula muitas vezes”. [John Calvin, Commentary on a Harmony of
the Evangelists, Mattew, Mark, and Luke, Grand Rapids, Michigan: Baker, (Calvin’s Commentaries,
Vol. XVI), 1981, Vol. I, p. 313], etc. Tyndale traduz: “Tagareleis demais”; Knox: “Useis muitas frases”;
Velha Versão Siríaca: “Não digais coisas ociosas”. O verbo Battaloge/w é constituído de (Ba/ttoj =
“gago” & loge/w = “falar”). Ele é de derivação incerta; Erasmo (c. 1469-1536), por exemplo, entendia
que esta expressão era proveniente de “Bato”, personagem descrito por Heródoto: “Chegando a Te-
ras, Polineto, homem de alta posição, tomou a jovem como concubina, e o casal teve, no fim de certo
tempo, um filho que gaguejava e sibilava. Essa criança, segundo os Tereus e Cireneus, recebeu o
nome de Bato” (Heródoto, História, IV.155. Vd. Ba/ttoj: In: A Lexicon Abridged from Liddell and
Scott’s Greek-English Lexicon, London: Clarendon Press, 1935, p. 128b). No entanto, Heródoto, que
discorda desta explicação para o nome do menino, diz que “batus significa rei na língua dos Líbios.”
(Heródoto, História, IV.155). Também especula-se que esta expressão viria por derivação de um poe-
ta medíocre, Battus, que teria feito hinos extensos, cheios de repetições (Vd. A.B. Bruce, The Gospel
According to Matthew: In: W. Robertson Nicoll, ed. The Expositor’s Greek Testament, Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. I, p. 118-119; John R.W. Stott, A Mensagem do Sermão
da Montanha, 3ª ed. São Paulo: ABU., 1985, p. 146). O fato é que ninguém consegue precisar a ori-
gem da palavra. [Para maiores detalhes, vejam-se: G. Delling, Battaloge/w: In: G. Kittel & G.
Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Vol. I, p. 597; Battologe/w: In: James
Hope Moulton & George Mulligan, The Vocabulary of the Greek New Testament, Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans, 1982 (reprinted), p. 107; H. Balz, Battaloge/w, In: Horst Balz & Gerhard
Schneider, eds. Exegetical Dictionary of New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1978-
1980, Vol. I, p. 209; Battaloge/w: In: Walter Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament,
5ª ed. Chicago: The Chicago Press, 1958, p. 137]. Para maiores detalhes, Vd. Hermisten M.P. Costa,
O Pai Nosso, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 190/233

que foi falado e cantado. Deste modo, o culto deve ser compreensível aos partici-
pantes a fim de que todos possam fazer ressoar em seus lábios a oração de seus
corações: Amém! O apóstolo Paulo enfatiza que o culto deve ser prestado no idioma
dos participantes, ou seja; deve ser inteligível (1Co 14.9-11); dirigir o culto de forma
não compreensível aos participantes é um ato de desrespeito para com os adorado-
773
res; é uma atitude de barbárie.

Calvino (1509-1564) resumiu e aplicou esse ensino, dizendo: “Disto também


fica claro que as orações públicas devem ser formuladas não em grego
entre os latinos, nem em latim entre os franceses ou ingleses, como até aqui
a cada passo se tem feito, mas na fala popular, que possa ser
generalizadamente entendida por toda a assembléia, uma vez que, na
verdade, importa isso se faça para edificação de toda a Igreja, à qual de
774
um som não compreendido nenhum fruto absolutamente advém.”

Leith comenta:

“Calvino abandonou muitos recursos litúrgicos que não atendiam sufici-


entemente a adoradores disciplinados e comprometidos. O culto calvinis-
ta exigia uma congregação disciplinada que sustentasse o diálogo da fé
775
com o mínimo de apoio exterior”.

Portanto, para nós Calvinistas soa no mínimo estranho que, enfatizando correta-
mente como fazemos a centralidade das Escrituras em todas as coisas, sendo a Pa-
lavra a norma de nosso pensar, sentir e atuar, estejamos com demasiada frequência
avaliando o nosso culto pelo grau de entretenimento e prazer concedidos ao “adora-
776 777
dor”. Em suma, queremos um “bom espetáculo”. Enfim, a igreja parece con-

773
Calvino comenta: “... É fora de propósito e um absurdo que alguém fale numa assembléia
da Igreja sem que os ouvintes entendam sequer uma palavra do que ele diz. (...) Não impor-
ta quão refinada uma língua venha ser, mesmo assim uma pessoa será descrita como ‘bár-
bara’ se ninguém a pode entender!” [J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.11), p. 415].
774
J. Calvino, As Institutas, III.20.33. A Segunda Confissão Helvética (1562-1566), tendo em vista o
ensinamento bíblico, nos capítulos XXII e XXIII, exorta:
"Calem-se, pois, todas as línguas estranhas nas reuniões de culto, e sejam, todas as coisas ex-
pressas na língua do povo, compreendida por todas as pessoas presentes.
"Certo é que se permite a quem quer que seja orar em particular em qualquer língua que entenda,
mas as orações públicas nas reuniões do culto devem ser feitas em vernáculo, a língua conhecida do
povo."
O Diretório de Culto de Westminster (1645), falando sobre a leitura dos livros da Bíblia no culto,
prescreve: “serão lidos publicamente na língua do povo, na melhor tradução permitida, distintamente,
para que todos possam ouvir e entender” (O Diretório de Culto de Westminster, São Paulo: Editora os
Puritanos, 2000, p. 29).
775
John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 303. Vd. Philip
Schaff, History of the Christian Church, Vol. VIII, p. 371. O eminente teólogo puritano John Owen
(1616-1683) em um sermão, disse: “Quão pouco pensam os homens sobre Deus e seus cami-
nhos, se imaginarem que um pouco de tinta e de verniz fazem uma beleza aceitável!” (John
Owen, Sermon IV. In: The Works of John Owen, Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust,
1982, Vol. IX, p. 78). Vd. João Calvino, As Institutas, Carta ao Rei Francisco I, p. 28.
776
"O culto cristão contemporâneo é motivado e julgado por padrões diversos: seu valor de
entretenimento, seu suposto apelo evangélico, sua fascinação estética, até mesmo, talvez,
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 191/233

vencida de que seu objetivo final e promover espetáculos e entreter as pessoas até
778
à próxima reunião. Neste propósito, os dirigentes tornam-se animadores de audi-
tório esforçando-se por distrair o seu público. A popularidade substitui a fidelidade; a
ficção (fábula) ocupa o lugar da palavra profética. A pregação, se é que podemos
chamar assim o que é feito, se propõe a distrair, aliviar as tensões e, algumas vezes,
comover a platéia. Para isso, o sermão é repleto de ilustrações para não cansar o
auditório. É claro que nestes “cultos” não podemos esperar o impacto transformador
da Palavra em nossa vida. Quando o culto é praticado com estes subterfúgios, es-
tamos usando o nome de Deus em vão, de forma vazia e pecaminosa; quebramos
assim, o terceiro mandamento. John MacArthur com a sua costumeira veemência
acentua: “.... Não ousemos menosprezar o principal instrumento de evange-
lismo: a proclamação direta e cristocêntrica da genuína Palavra de Deus.
Aqueles que trocam a Palavra por entretenimento ou artifícios descobrirão
que não possuem um meio eficaz de alcançar as pessoas com a verdade
779
de Cristo.” Mais à frente continua: “Os que desejam colocar a dramatiza-
780
ção, a música e outros meios mais sutis no lugar da pregação deveriam
levar em conta o seguinte: Deus, intencionalmente, escolheu uma mensa-
gem e uma metodologia que a sabedoria deste mundo considera como
loucura. O termo grego traduzido por ‘loucura’ [1Co 1.21] é mõria, de onde
o idioma inglês tira a sua palavra moronic (imbecil). O instrumento que Deus
utiliza para realizar a salvação é, literalmente, imbecil aos olhos da sabedoria
humana. Mas é a única estratégia de Deus para proclamar a mensa-
781
gem.”

seu rendimento econômico. A herança litúrgica da Reforma nos recorda a convicção de


que, acima de tudo, o culto deve servir para o louvor do Deus vivo" (Tymothy George, Teologia
dos Reformadores, p. 317).
777
Cf. R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, Grand Rapids, Michigan: SLC., 1985, p. 327.
778
No século XIX, Spurgeon (1834-1892) já escrevera: “O novo método consiste em incorporar o
mundo à igreja e, deste modo, incluir grandes áreas em seus limites. Por meio de apresenta-
ções dramatizadas, os pastores fazem com que as casas de oração se assemelhem a tea-
tros; transformam o culto em shows musicais e os sermões, em arengas políticas ou ensaios fi-
losóficos. Na verdade, eles transformam o templo em teatro e os servos de Deus, em atores
cujo objetivo é entreter os homens. Não é verdade que o Dia do Senhor está se tornando,
cada vez mais, um dia de recreação e de ociosidade; e a Casa do Senhor, um templo pa-
gão cheio de ídolos ou um clube social onde existe mais entusiasmo por divertimento do
que o zelo de Deus?” [C.H. Spurgeon, Um Templo ou um Teatro?: In: Fé para Hoje, São José dos
Campos, SP.: Fiel, nº 18, 2003, p. 30]. Veja-se também: John MacArthur, Cristianismo e Entreteni-
mento: In: Fé para Hoje, São José dos Campos, SP.: Fiel, nº 18, 2003, p. 27-29.
779
John F. MacArthur Jr., Com Vergonha do Evangelho, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1997, p.
117-118.
780
“Quando o teatro, a música, a comédia e outras atividades têm a permissão de usurpar
o lugar da pregação da Palavra, a verdadeira adoração inevitavelmente é prejudicada. E,
quando a pregação é subjugada à pompa e à circunstância, ela também obstrui a adora-
ção genuína. Um culto de adoração sem o ministério da Palavra tem um valor questioná-
vel.” (John MacArthur, Como Devemos Cultuar a Deus?: In: Fé para Hoje, São José dos Campos,
SP.: Fiel, nº 10, 2001, p. 13).
781
John F. MacArthur Jr., Com Vergonha do Evangelho, p. 130.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 192/233

782
Em 1984, observávamos que tem-se esquecido com muita facilidade e fre-
quência o lugar central da Palavra de Deus, como se a pregação fosse algo ultra-
passado para o mundo moderno em que vivemos, algo de somenos importância, o
“ponto baixo” do culto, onde a Igreja tem que exercitar a sua paciência. O resultado
deste conceito mundano tem se materializado em igrejas superficiais que não
conhecem as suas doutrinas e, por conseguinte, têm uma vida sem profundidade
espiritual (1Co 3.1-2; Hb 5.11-14). Admitia, então, que parte da culpa estava em nós
ministros que, ao invés de apresentarmos à igreja uma mensagem que é fruto de
uma meditação séria, profunda e piedosa da Palavra de Deus, dando-lhe assim, um
alimento sólido, temos, muitas vezes, entrado num ritmo ativista e que, no fundo, é
mais cômodo e superficial.

Continuávamos: Sobre nós pesa a responsabilidade intransferível de pregar a


Palavra. Estremeço, quando penso no fato de que é através da Palavra que Deus
fala, despertando a fé salvadora no seu povo através da ação do Espírito Santo (Rm
10.17; Ef 2.8). Contudo, há também um conforto para nós pregadores; apesar da
nossa debilidade e fraqueza diante da missão que temos, Deus fala!

A história aponta para o fato de que onde a pregação bíblica se expande, a igreja
se fortalece; onde ela é minimizada ou substituída, a igreja retrocede em sua espiri-
tualidade, perdendo sua dimensão de povo de Deus no mundo. “Onde quer que a
783
Igreja tem progredido espiritualmente, tem-se dado ênfase à pregação.”
A tendência moderna no entanto, é de se querer menos a Palavra de Deus e sua
exposição, substituindo-a pela música que assume, cada vez mais intensamente, o
784
papel de “alma do culto”. Nessa prática, consideramos a nossa expressão vocal e
física mais importante do que ouvir o que Deus deseja nos falar. E, além disso,
quantas vezes nos perguntamos para onde nos conduz as nossas práticas e ele-
785
mentos que inserimos no culto? Repare que aqui não estamos emitindo juízo de
valor a respeito da sinceridade dos adoradores – isto pertence a Deus –, antes, es-
tamos pontuando a substituição da Palavra por outros elementos que, com grande
facilidade adquirem um status de essencialidade. Nos chamados “períodos de lou-
vor”, há uma espécie de culto dentro do culto, visto que independentemente do que
foi feito antes liturgicamente, aquele roteiro tem que ser seguido; por exemplo, se o
dirigente orou e passou a palavra ao “grupo”, este, se tiver programado começar o-
rando, orará novamente. O mesmo ocorrerá se antes a igreja houver cantado um hi-
no e o seu roteiro começar por um cântico, ele fatalmente fará isso. Ou seja: há um
isolamento intelectual e espiritual do antes e depois. Aquele período é o culto; o res-
to pode ser até dispensado. Dentro dessa lógica, alguns dos componentes do con-
junto, não se constrangem até mesmo de irem embora após o termino de sua parti-
cipação. Nesse “período de louvor”, ainda que não exclusivamente, vêem-se com
frequência o uso de chavões, expressões fisionômicas que parecem misturar dor e
alegria; erguem-se as mãos enquanto cantam, fecham-se os olhos para louvar, etc.
Temos, também, uma limitação da amplitude da experiência cristã, dando a impres-

782
Hermisten M.P. Costa, Teologia do Culto, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1987, p. 37-38.
783
A. W. Blackwood, A Preparação de Sermões, São Paulo: ASTE, 1965, p. 19. Ver também: p. 17.
784
Expressão de W. Robert Godfrey (Ver: W. Robert Godfrey, A Reforma do Culto: In: Reforma Hoje,
São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 159).
785
Ver: James M. Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 179-181.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 193/233

são que temos apenas vitórias, conquistas e sucesso nesta vida. Cantamos, com
muita frequência, um amontoado de clichês repetitivos e fáceis de decorar, reprodu-
786
zindo sempre a mesma experiência. Uma série de gestos empiricamente apren-
didos, que supostamente denotam uma comunhão mais intensa e sensorial com
Deus, são repetidos. As melodias, independentemente de sua qualidade, são em ge-
ral marcadas por grandes batalhas nas quais o Senhor, o nosso grande líder, nos
comunica a vitória. O amém é indagado, não declarado. Se a resposta do auditório
for considerada “fraca” pelo dirigente, ele pode perguntar de forma estimulante: “a-
mém?!” A intensidade sonora da resposta serve como aferidor ao líder da espirituali-
dade do culto. O puxador de amém transforma o culto em um programa de auditório
– obviamente com menos carisma e recursos do que os televisivos –, onde ele “inte-
rage” com o auditório de forma sensorial, transformando-se o culto, supostamente di-
rigido a Deus, numa academia aeróbica, nem sempre bem ritmada. As minhas e-
moções afloram e o meu suor o atesta. Confesso minha ignorância quanto à possí-
veis pesquisas sobre o quanto de calorias podemos perder neste “exercício espiri-
tual”...

Esses “cultos”, onde a Palavra de Deus é cada vez mais esquecida, são em geral
considerados uma “bênção”. De fato, esta prática, excita e relaxa. A sensação é de
grande conforto, assim como se você praticasse determinado esporte que
envolvesse intensa movimentação física e depois, entrasse numa banheira de
hidromassagem. Sem dúvida, em seguida você dormiria de forma intensa. É natural:
depois de grande tensão física na prática esportiva, descansou, relaxou. Boa noite!
Bons sonhos; você não precisa pensar em mais nada.

Culto não pode ser confundido com emoção. Porque me emocionei com algo não
quer dizer que cultuei a Deus. A dificuldade nesta questão está no fato de que não
787
existe culto sem emoção; e que emoção! Como me relacionar com Deus sem me
sentir fortemente emocionado? Como cantar hinos sem me sentir comovido pelo
significado da letra? Como orar sem me sentir carente e desejoso de maior comu-
nhão com Deus? Como entregar meus dízimos e ofertas sem me alegrar com a fiel
provisão de Deus? No entanto, o culto não começa pela emoção destituída de com-
preensão: culto a Deus leva-nos a pensar. A lógica não é que nos emocionemos e
agora entendamos, antes, que nos emocionemos porque pela graça de Deus enten-
demos o que Deus nos disse através da Sua Palavra e respondemos a Ele com fé,
inteligência e emoção. “Emoções fortes despertadas durante o culto não cons-
tituem necessariamente uma evidência de que houve verdadeira adoração.
(...) Adorar significa atribuir glória a Deus por causa dessas verdades; significa
louvá-Lo por aquilo que Ele é, aquilo que tem feito e aquilo que tem prome-
tido. Por conseguinte, adoração tem de ser uma resposta à verdade que Ele
revelou a respeito de Si mesmo. Tal adoração não pode resultar de um vazio.
É motivada e vitalizada pela verdade objetiva da Palavra de Deus. Cerimô-
nias mortas e entretenimento também são incapazes de provocar essa ado-
ração, não importa quão emocionantes tais coisas sejam. Elas não edificam.

786
Ver: Michael S. Horton, O Cristianismo e a Cultura, p. 108.
787
Ver: James M. Boice, O Evangelho da Graça, p. 179.
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788
No máximo, elas podem despertar emoções. Mas isso não é adoração.”

No entanto, a observação de Godfrey serve-nos de alerta e desafio: “Numa cul-


tura antiintelectual e pragmática, irão parecer mais apropriadas as formas
de culto que mais apelam às emoções do que à mente, as que são imedia-
tamente acessíveis e que atraem o povo, e não as que apresentam um de-
789
safio ou que são disciplinadas. O entretenimento substitui a edificação.”

Segundo nos parece, é preciso que estejamos vigilantes para que não caminhe-
mos em direção oposta à satisfação de Deus, ao Seu agrado. A beleza é uma ques-
tão de harmonia e proporções. A origem do senso de beleza está em Deus. Ainda
que possamos elaborar um livro, uma peça, um quadro ou música de qualidade du-
vidosa com o objetivo de distrair, comover ou entreter, não podemos simplesmente
apresentar isso a Deus como expressão de culto, visto que é Deus mesmo quem es-
tabelece o modo como deve ser adorado. A Confissão de Westminster (1647) capta
bem isso ao dizer: “... O modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é institu-
ído por Ele mesmo, e é tão limitado pela sua própria vontade revelada, que
Ele não pode ser adorado segundo as imaginações e invenções dos ho-
mens, ou sugestões de Satanás, nem sob qualquer representação visível, ou
790
de qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras”(XXI.1). Adorar
a Deus de modo não prescrito em Sua Palavra é um ato idólatra, pois deste modo,
791
adoramos na realidade a nossa própria vontade e gosto; tornamo-nos “auto-
adoradores” (Hug Binning). Aqui há uma inversão total de valores: em nome de
792
Deus buscamos satisfazer os nossos caprichos e desejos; Deus se tornou um

788
John MacArthur, Como Devemos Cultuar a Deus?: In: Fé para Hoje, São José dos Campos, SP.:
Fiel, nº 10, 2001, p. 14.
789
W. Robert Godfrey, A Reforma do Culto: In: Reforma Hoje, p. 161-162.
790
Vd. também: Catecismo Maior de Westminster, Perg. 109 e Catecismo de Heidelberg, Perg. 96.
Hodge comentando o Capítulo XXI.1 da Confissão de Westminster, diz: “Por isso, necessariamente
segue-se: visto que Deus prescreveu o modo como devemos aceitavelmente adorá-lo e
servi-lo, é uma ofensa e um pecado contra ele que negligenciemos seu método ou, em pre-
ferência, pratiquemos o nosso próprio. (...) Como demonstramos anteriormente à luz da Es-
critura, não só todo o ensino humano em termos de doutrinas e de mandamentos, mas
também toda forma de culto próprio, de atos e formas de culto estabelecidos pelo homem,
são abomináveis para Deus. (...) Não temos, em nenhuma circunstância, qualquer direito,
com base nos gostos, na moda [fashion] ou conveniência, de ir além da clara autoridade
da Escritura.” [Archibald A. Hodge, Confissão de Fé Comentada por A.A. Hodge, São Paulo: Editora
Os Puritanos, 1999, Cap. XXI, p. 369]. “Deus em muitas passagens proíbe qualquer novo culto
desprovido da sanção da Sua Palavra, e declara-Se gravemente ofendido pela presunção
de tal culto inventado, ameaçando-o de severa punição....”. [John Calvin, “The Necessity of
Reforming the Church,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p.
218].
791
Vd. J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 37; Paulo Angla-
da, O Princípio Regulador do Culto, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (1998), p.
28ss.
792
Calvino pergunta: “Que pecado cometemos se não queremos aceitar que a maneira legí-
tima de servir a Deus seja ordenada pelo capricho dos homens, o que Paulo ensinou ser into-
lerável?” (João Calvino, As Institutas, IV.10.9).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 195/233

mero instrumento para a expressão de nossa vontade; a lógica dessa atitude é a se-
guinte: desde que estejamos satisfeitos, descontraídos e leves, é isso o que importa.
Quem assim procede, já recebeu a sua recompensa: a satisfação momentânea do
seu desejo pecaminoso.

Calvino, comentando a expressão “Culto racional” (Rm 12.1), diz:

“.... Se Deus só é corretamente adorado à medida que regulamos nos-


sas ações pelo prisma de seus mandamentos, então de nada nos valerão
todas as demais formas de culto que porventura engendrarmos, as quais
ele com toda razão abomina, visto que põe a obediência acima de
793
qualquer sacrifício. O ser humano deleita-se com suas próprias inven-
ções e (como diz o apóstolo alhures) com suas vãs exibições de sabedori-
a; mas aprendemos o que o Juiz celestial declara em oposição a tudo isso,
quando nos fala por boca do apóstolo. Ao denominar o culto que Deus
ordena de racional, ele repudia tudo quanto contrarie as normas de sua

793
Comentado Rm 5.19, Calvino diz: “Só quando seguimos o que Deus nos ordenou é que
verdadeiramente o adoramos e rendemos obediência à sua Palavra.” [J. Calvino, Exposição
de Romanos, (Rm 5.19), p. 198]. Em outro lugar: “... Quando os homens se permitem cultuar a
Deus conforme suas próprias fantasias, e não obedecem os Seus mandamentos, pervertem
a verdadeira religião. (…) Se admitissem esse princípio, que não podemos adorar a Deus
corretamente exceto obedecendo a Sua Palavra, eles seriam salvos desse seu tão grande
abismo de erros. Então, as palavras do profeta são de grande importância quando ele diz
que Deus não ordenou tal coisa, nem jamais passou pela Sua mente. É como se tivesse dito
que os homens se arrogam muita sabedoria quando inventam o que Ele jamais exigiu, ou
melhor, o que Ele jamais soube”. [John Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the
Lamentations, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries, Vol. IX), 1996
(reprinted), Vol. 1, (Jr 7.31), p. 414]. “A maioria dos homens de hoje opõe as suas próprias fan-
tasias à Palavra de Deus.” [John Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the
Lamentations, Vol. IX/1, (Jr 7.21-24), p. 398]. “Deus rejeita, condena, abomina toda adoração
fictícia, e usa a sua Palavra como cabresto para nos manter em absoluta obediência.
Quando sacudimos de nós esse jugo, andamos erráticos após as nossas próprias fantasias e
Lhe oferecemos um culto, obra da precipitação humana, que, por mais que nos possa de-
leitar, é, à Sua vista, frivolidade, ou antes, vileza e corrupção.” [John Calvin, “The Necessity of
Reforming the Church,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p.
201-202]. “É evidente, à luz desse fato, que os homens cultuarão a Deus inutilmente, se por-
ventura não observarem o modo correto; e que todas as religiões que não contêm o genuí-
no conhecimento de Deus são não só fúteis, mas também perniciosas, visto que todas aque-
las que não sabem distinguir Deus dos ídolos estão sendo impedidas de se aproximarem de-
le. Não pode haver religião alguma onde não reine a verdade. Se um genuíno conhecimen-
to de Deus habita os nossos corações, seguir-se-á inevitavelmente que seremos conduzidos
a reverenciá-lo e a temê-lo. Não é possível ter genuíno conhecimento de Deus exceto pelo
prisma de sua majestade. É desse fator que nasce o desejo de servi-lo, e daqui sucede que
toda a vida é direcionada para ele como seu supremo alvo.” [João Calvino, Exposição de He-
breus, (Hb 11.6), p. 305-306]. “Para o Senhor os cultos mal orientados, realizados segundo o
apetite dos homens, são uma verdadeira abominação para Ele. Porque, embora os que O
adoram dessa forma mostrem uma certa espécie de humildade ao se sujeitarem às leis ou
normas dos homens para Lhe prestarem honra, não obstante não são humildes diante de
Deus, porque eles próprios impõem as leis ou normas que observam.” [João Calvino, As Institu-
tas, (1541), IV.15].
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 196/233

794
Palavra, como sendo mero esforço insensato, insípido e inconsequente”.

Em outro lugar:

“São falsas e espúrias todas as formas de culto que os homens permitem


a si mesmos inventar movidos por sua ingenuidade, mas que são contrá-
rias ao mandamento de Deus. Quando Deus estabelece que tudo deve
ser feito em consonância com sua norma, não nos é permitido fazer qual-
quer coisa diferente: Olha que faças tudo segundo o modelo; e: Vê que
não faças nada além do modelo [Ex 25.40]. E assim, ao enfatizar a norma
que estabelecer, Deus nos proíbe afastar-nos dela, mesmo que seja um
mínimo. Por essa razão, todas as formas de culto produzidas pelos homens
caem por terra, bem como aquelas coisas a que chamam sacramentos, e
795
contudo não têm sua origem em Deus.”

794
J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 12.1), p. 424-425. Para Calvino, a racionalidade legítima,
consistia em submeter o nosso intelecto a Deus: “Quanto tem avançado aquele homem que
tem aprendido a não pertencer-se a si mesmo, nem a ser governado por sua própria razão,
senão que submete a sua mente a Deus! (...) O serviço do Senhor não só implica uma autên-
tica obediência, senão também a vontade de pôr aparte seus desejos pecaminosos e sub-
meter-se completamente à direção do Espírito Santo.” (John Calvin, Golden Booklet of the True
Christian Life, 6ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1977, p. 21). A Confissão Belga
(1561), após dizer o que entende por Escritura – os 66 livros Canônicos –, acrescenta: “Cremos,
que esta Sagrada Escritura contém de um modo completo a vontade de Deus, e que tudo
o que o homem está obrigado a crer para ser salvo se ensina suficientemente nela. Pois, já
que toda forma de culto que Deus exige de nós ali está extensamente descrita, assim não é
permitido aos homens, ainda que sejam Apóstolos, ensinar de outra maneira que como ago-
ra se nos ensina pela Sagrada Escritura. (...) Sua doutrina é perfeitíssima e completa em to-
das suas formas.” (Art. 7).
Anglada observa com pertinência, que “A história das religiões demonstra que quando o pró-
prio homem se arroga o direito de conceber formas de adoração a Deus, os maiores absur-
dos podem acontecer. Prostitutas cultuais, luxúria, sacrifícios humanos, auto-flagelação, a-
doração da própria natureza, culto a demônios e a espíritos imundos, são alguns exemplos.”
[Paulo Anglada, O Princípio Regulador do Culto, p. 7-8].
795
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 8.5), p. 208. Do mesmo modo, comentando Dt 4.1: “Só
honram legitimamente a Lei os que não aceitam nada que se oponha ao seu sentido natu-
ral. É uma passagem notável, condenando abertamente tudo aquilo que a ingenuidade
humana possa inventar para o culto a Deus” [John Calvin, Commentaries on The First Book of
Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., 1996 (Reprinted), Vol. I-
I/1, (Dt 4.1), p. 345]. “.... Suponha-se que, deixando de lado todas as máscaras e disfarces, a-
tentássemos verdadeiramente para aquilo que deveria ser a nossa primeira preocupação e
que é de grande importância para nós, isso é, o tipo de igreja que Cristo queria para que
pudéssemos nos moldar e ajustar ao padrão dela. Veríamos, então, facilmente que não é i-
greja a que, ultrapassando os limites da Palavra de Deus, formula, a seu irresponsável capri-
cho novas leis [Dt 12.32; Pv 30.6].” (João Calvino, As Institutas, IV.10.17). “.... se pretendemos
ter a Sua aprovação à nossa adoração, esse estatuto, que Ele em todo lugar reitera com o
maior rigor, tem que ser cuidadosamente obedecido. Há uma dupla razão pela qual o Se-
nhor, ao condenar e proibir todo culto fictício, exige que obedeçamos apenas à Sua voz. A
primeira tende grandemente a estabelecer a Sua autoridade de modo que não sigamos
nosso próprio arbítrio, mas dependamos inteiramente da Sua soberania; e, em segundo lu-
gar, a nossa insensatez é tanta que, ao sermos deixados livres, tudo de que somos capazes
de fazer é desviarmo-nos. E uma vez que tenhamos nos apartado da reta vereda, não terá
fim a nossa peregrinação, até que estejamos soterrados sob uma multidão de superstições.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 197/233

“.... consideramos a Deus como o único governante das nossas almas;


(...) consideramos a Sua lei como a única regra e diretório para as nossas
796
consciências, não O servindo segundo as tolas invenções de homens.”

Comentando Rm 14.23:

“Visto que uma mente crente em Deus jamais encontrará seguro


repouso em algo que não seja a Palavra de Deus, todas as formas de
culto engendradas pelo homem, bem como toda as obras que se
originam na mente humana, desaparecem aqui. Condenar tudo quanto
não provém de fé significa rejeitar tudo quanto não pode encontrar o
797
apoio e a aprovação da Palavra de Deus.”

Comentando o entulho ritual acrescentado ao culto através dos séculos pela igre-
ja romana, escreve: “Toda a doutrina dos apóstolos tem esse objetivo: não so-
brecarregar as consciências com novas observâncias, nem contaminar o
798
culto a Deus com as nossas próprias invenções.”

O culto a Deus é caracterizado pela submissão às Escrituras: “É dever de todo


crente apresentar seu corpo como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus,
799
como indica as Escrituras. Nisto consiste a verdadeira adoração.”

Calvino nos adverte quanto à tentativa de adorar a Deus conforme o “senso


comum”:

“Pelo que, nada de surpreendente, se o Espírito Santo repudie como


degenerescências a todos os cultos inventados pelo arbítrio dos homens,
pois que em se tratando dos mistérios celestes, a opinião humanamente
concebida, ainda que nem sempre engendre farto amontoado de erros,
800
é, não obstante, a mãe do erro.” “O culto que não tem uma distinta re-
ferência à Palavra outra coisa não é senão uma corrupção das coisas sa-

Portanto – para fazer valer o Seu direito de domínio absoluto – é merecidamente que o Se-
nhor impõe com rigor aquilo que Ele quer que façamos e rejeita, de pronto, todos os meios
humanos em desacordo com Seu mandamento. É também com justiça que define expres-
samente quais sejam os nossos limites, para que não nos seja permitido – ao inventarmos
perversos modos de culto – provocar a Sua ira contra nós” [John Calvin, “The Necessity of Re-
forming the Church,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 197-
198].
796
John Calvin, “To the Proctetor Somerset,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages
Software, 1998), Letters, 229, p. 202.
797
João Calvino, Romanos, 2ª ed., São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 14.23), p. 494.
798
João Calvino, As Institutas, IV.10.18.
799
João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 29.
800
J. Calvino, As Institutas, I.5.13. “Portanto, uma vez que, de seguir-se na adoração de
Deus, nimiamente fraco e frágil vínculo da piedade seja ou a praxe da cidade, ou o consen-
so da antiguidade, resta que o próprio Deus dê do céu testemunho de Si.” (J. Calvino, As Ins-
titutas, I.5.13).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 198/233

801
cras.” “Deus só aceita a aproximação daqueles que o buscam com
802
sincero coração e de maneira correta”.

Calvino comentando o segundo Mandamento, diz:

“Portanto, o fim deste mandamento é que Deus não quer que Seu legí-
timo culto seja profanado mediante ritos supersticiosos. Pelo que, em sínte-
se, Ele nos recambia e afasta totalmente das insignificantes observâncias
materiais que nossa mente bronca, em razão de sua crassitude, costuma
inventar quando concebe a Deus. E, daí, nos instrui a Seu legítimo culto, is-
to é, ao culto espiritual e estabelecido por Si Próprio. Assinala, ademais, o
803
que é mais grosseiro defeito nesta transgressão: a idolatria exterior”.

Em outro lugar:

“São falsas e espúrias todas as formas de culto que os homens permitem


a si mesmos inventar movidos por sua ingenuidade, mas que são
contrárias ao mandamento de Deus. Quando Deus estabelece que tudo
deve ser feito em consonância com sua norma, não nos é permitido fazer
qualquer coisa diferente: Olha que faças tudo segundo o modelo; e: Vê
que não faças nada além do modelo [Ex 25.40]. E assim, ao enfatizar a
norma que estabelecer, Deus nos proíbe afastar-nos dela, mesmo que seja
um mínimo. Por essa razão, todas as formas de culto produzidas pelos
homens caem por terra, bem como aquelas coisas a que chamam
sacramentos, e contudo não têm sua origem em Deus.” não podem
804
agradar a Deus”.

Segundo Calvino, o problema está no padrão que o homem estabelece para


Deus: ele O analisa partindo de si mesmo, do seu gosto e preferências, não perce-
bendo o salto qualitativo entre nós, pecadores que somos, e o soberano Deus, o
Senhor da Glória. “Os homens se dispõem naturalmente a exibição exterior da
religião, e, medindo Deus segundo a própria medida deles, imaginam que
805
alguma atenção para as cerimônias constitui a suma de seu dever.” “Tal é
a característica do mundo, sempre imaginando que Deus pode ser cultuado
806
de uma forma carnal, como se Ele mesmo fosse carnal.”

801
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 50.5), p. 403.
802
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 50.23), p. 420. Horton esá correto ao dizer: “É Deus,
e não os de fora da igreja, que nos dá o modelo de culto.” (Michael S. Horton, O Cristão e a Cultura,
São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 82).
803
João Calvino, As Institutas, II.8.17. Do mesmo modo, ver também: J. Calvino, As Institutas, II.8.16;
Breve Catecismo, Pergs. 49-52; Catecismo Maior, Pergs. 108-110; Confissão Belga, 7; Confissão de
Westminster, 21.1.
804
João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 8.5), p. 208.
805
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 50.1-2), p. 398.
806
João Calvino, As Pastorais, (1Tm 4.3), p. 110.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 199/233

Antes do povo de Israel entrar na Terra Prometida, Deus o adverte para que não
imite o modelo pagão. Então, Deus o exorta estabelecendo um princípio positivo que
deveria seguir: “Tudo o que eu te ordeno, observarás; nada lhe acrescentarás nem
diminuirás” (Dt 12.32). Este é o princípio que deve governar todo o nosso relaciona-
mento com Deus: a obediência. A desobediência será sempre estéril em nos condu-
zir a Deus em submissão, adoração e gratidão. No culto a Deus, portanto, “o pri-
807
meiro e supremo princípio é a obediência....”. Por outro lado, a desobediên-
cia é pródiga na geração de superstição, idolatria e dissolução. Apartar-se de Deus
caminhando em direção à superstição e idolatria consiste numa “fornicação espiri-
808
tual”. Portanto, não nos iludamos; o amor a Deus é mais do que mero sentimen-
to, é obediência em amor. O conhecimento de Deus é uma experiência de amor, que
se revela em nossa obediência aos Seus mandamentos. Calvino comentando o tex-
to de Deuteronômio diz: “Nesta pequena cláusula Ele ensina que não há ou-
tro ato de culto considerado lícito por Deus a não ser aquele que Ele deu
Sua aprovação na Sua Palavra, e que a obediência é a mãe da piedade; é
como se Ele tivesse dito que todos os modos de devoção são absurdos e in-
fectados com superstição, quando não são dirigidos por esta regra. (...) Ao
proibir o acréscimo ou a diminuição de qualquer coisa, Ele claramente con-
dena como ilegítimo tudo o que os homens inventam pela sua própria ima-
809
ginação”. “Porque sempre que entra no coração dos homens a supersti-
ção de querer adorar a Deus com as suas próprias invenções, todas as leis
decretadas com esse propósito degeneram imediatamente nesses graves
810
abusos”. “Os que primeiramente inventaram novas formas de culto, segui-
ram sem dúvida às suas próprias e tolas imaginações; como quando se per-
gunta hoje aos papistas por que se fatigam tanto com suas superstições, o
escudo deles sempre é a boa intenção. ‘Oh achamos que isso seja agradá-
vel a Deus’. Deus, portanto, repudia as invenções deles como totalmente i-
811
núteis, pois nada possuem de sólido ou permanente”. “Deve-se defender
a obediência como a base de toda verdadeira religião. Se, então, por outro
lado, desejamos apresentar a Deus o nosso culto por Ele aprovado, apren-
damos a lançar fora tudo que for de nós mesmos, de modo que a Sua auto-

807
John Calvin, Commentary on a Harmony of the Evangelists, Mattew, Mark, and Luke, Vol. XVI/2,
(Mt 15.1), p. 246. “Em vão se tentam novas modalidades de obras para ganhar-se o favor de
Deus, Cujo culto genuíno consta da só obediência.” (João Calvino, As Institutas, II.8.5).
808
Juan Calvino, O Catecismo de Genebra, Perg. 152. In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Bue-
nos Aires: La Aurora, 1962.
809
John Calvin, Commentaries on the Four Last Books of Moses, Vol. II/1, (Dt 12.32), p. 453.
810
João Calvino, As Institutas, IV.10.16.
811
John Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations, Vol. IX/2, (Jr 19.4-5),
p. 439. “Uma parte da reverência que Lhe é devida consiste simplesmente em adorá-Lo da
forma que Ele ordena, sem misturar as nossas próprias invenções. (…) Não obstante muitas
vezes no culto inventado pelos homens a impiedade não seja claramente vista, ainda assim
ela é condenada severamente pelo Espírito, porque desvia-se do preceito de Deus. (…) As
invenções humanas no culto a Deus são outras tantas corrupções. E quanto mais a vontade
de Deus nos é revelada, tanto menos inescusável é a nossa ousadia ao tentar alguma coi-
sa.” (João Calvino, As Institutas, IV.10.23).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 200/233

812
ridade prevaleça acima de todas as nossas razões”. Em outro lugar insiste
na necessidade de sermos obedientes a Deus se quisermos apresentar-Lhe um cul-
to agradável: “Deus só é corretamente servido quando sua lei for obedeci-
813
da. Não se deixa a cada um a liberdade de codificar um sistema de reli-
gião ao sabor de sua própria inclinação, senão que o padrão de piedade
814
deve ser tomado da Palavra de Deus”. “Portanto, em nosso curso de a-
ção, deve-se-nos ter em mira esta vontade de Deus que Ele declara em Sua
Palavra. Deus requer de nós unicamente isto: o que Ele preceitua. Se inten-
tamos algo contra o Seu preceito, obediência não é; pelo contrário, contu-
815
mácia e transgressão”.

O culto reflete a nossa maneira de perceber a Palavra de Deus, visto que no culto
816
respondemos com fé em adoração e gratidão a Deus; o nosso responder revela a
817
nossa teologia; é impossível uma genuína teologia bíblica divorciada de uma ado-
ração bíblica; a chamada “flexibilidade litúrgica” nada mais é do que uma “flexibilida-
de teológica” que envolverá sempre uma “teologia” de remendos, distante da pleni-
tude da revelação Bíblica, em acordo, quem sabe, com a cultura que nos circunda.

Num documento publicado pela Igreja Presbiteriana Ortodoxa, lemos:

“O culto, então, não é algo feito superficialmente ou sem séria conside-


ração. No culto os crentes professam e honram o caráter de Deus, em cu-
ja presença eles entram, e quem os tirou de um estado de pecado e misé-
ria. O culto sempre reflete a concepção que as pessoas têm de Deus. A
verdadeira teologia produz um culto verdadeiro e aceitável. A teologia

812
John Calvin, Commentaries on the Prophet Jeremiah and the Lamentations, Vol. 1, (Jr 7.21-24),
p. 398. Ver também: O Catecismo de Genebra, Pergs. 149,152. In: Catecismos de la Iglesia Refor-
mada, Buenos Aires: La Aurora, 1962.
813
“Ninguém, pois, será tido como (verdadeiro) discípulo da Lei, a não ser os que somente
dela obtêm sua sabedoria” [John Calvin, Commentaries on the Four Last Books of Moses, Vol.II/1,
(Dt 4.1), p. 345].
814
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 1.2), p. 53.
815
João Calvino, As Institutas, I.17.5.
816
Vd. J. Calvino, As Institutas, II.8.16. O princípio de que devemos ser agradecidos a Deus conside-
rando os seus feitos para conosco, é enfático no pensamento de Calvino: “Depois de Deus nos
conceder gratuitamente todas as coisas, ele nada requer em troca senão uma grata lem-
brança de seus benefícios.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 6.5), p. 129]; “Sempre
que Deus manifesta sua liberalidade para conosco, também nos encoraja a render-lhe gra-
ças; e prossegue agindo em nosso favor de forma semelhante quando vê que somos gratos
e cônscios do que ele nos tem feito.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 40.9), p. 231].
“Embora Deus de forma alguma careça de nossos louvores, contudo sua vontade é que es-
te exercício, por diversas razões, prevaleça em nosso meio.” [João Calvino, O Livro dos Salmos,
Vol. 2, (Sl 40.9), p. 232]; “Seja qual for a maneira em que Deus se agrada em socorrer-nos, ele
não exige nada mais de nós senão que sejamos agradecidos pelo socorro e o guardemos
na memória.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 40.3), p. 216]. Vd. também: João Cal-
vino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 56.12), p. 503-504].
817
“O culto reflete a teologia eclesiológica e deve marcar a fronteira entre o mundano concupiscente
e o sagrado espiritualizado.” (Onezio Figueiredo, Culto (Opúsculo II), p. 25).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 201/233

imprópria ou errônea produz falsa adoração. O culto não é uma questão


818
de gosto: é uma declaração de convicção teológica”.

O enchimento do Espírito evidencia-se no louvor a Deus com cânticos, os quais


expressam a integridade e biblicidade da nossa fé. Lembremos mais uma vez o
contraste feito por Paulo entre a embriaguez dissoluta e a integridade da alegria
produzida pelo Espírito, que nos conduz ao conhecimento da vontade de Deus na
Palavra. “O conhecimento de Deus não está posto em fria especulação,
819
mas lhe traz consigo o culto”. Portanto, se o conhecimento de Deus nos con-
duz ao culto, não podemos adorar e servir a um Deus desconhecido: “a menos que
haja conhecimento, não é a Deus a quem adoramos, mas um fantasma ou
ídolo. Todas as boas intenções, como são chamadas, são golpeadas por es-
ta sentença, como por um raio; disto nós aprendemos que, os homens nada
podem fazer senão errar, quando são guiados pela sua própria opinião sem
820
a palavra ou mandamento de Deus”. À frente continua: “se nós desejamos
que nossa religião seja aprovada por Deus, ela tem que descansar no co-
821
nhecimento obtido de Sua Palavra.” A piedade não pode estar dissociada da
fé que confessa que Deus é o autor de todo o bem. Portanto podemos nEle descan-
822
sar sendo conduzidos pela Sua Palavra.

A “Palavra de Cristo” deve nos guiar também em nossa adoração (Cl 3.16). Isto
só se torna possível pelo enchimento do Espírito em nós: O enchimento do Espírito
não é nada mais do que a Palavra de Cristo no centro de nossa vida, apontando de
forma vibrante para a obediência a Cristo. Portanto, o nosso cântico não visa a sim-
plesmente ser agradável e, de modo algum, ter um tom de alegria jovial e frívola,
antes deve estar repleto de sentimento espiritual, orientado pelo Espírito na Palavra
de Cristo.

Insistimos: O culto cristão é sempre na liberdade do Espírito e nos limites regis-


823
trados pelo Espírito na Palavra. (Jo 4.23-24; Fp 3.3). O Espírito que inspirou as
824
Escrituras (2Tm 3.16; 2Pe 1.21) é o mesmo Espírito que nos selou e nos “enche”.
Não há contradição no Espírito; por isso, os limites da nossa experiência espiritual
estarão sempre dentro da amplitude da revelação bíblica. O que queremos dizer é
que: Toda experiência subjetiva com o Espírito tem a sua objetividade na Sua Pala-
vra escrita; ninguém em nome do Espírito pode contrariar a Palavra, que é do Espíri-
to (1Co 12.3). Portanto, o louvor a Deus deve ser sempre dentro dos princípios da
revelação bíblica, praticado com o coração sincero (Am 5.21-23). A verdadeira orto-

818
A Igreja Presbiteriana Ortodoxa e o Culto, tradução de Sonedi H. Evangelista, p. 8a.
819
João Calvino, As Institutas, I.12.1.
820
John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company,
1981, Vol. XVII, (Jo 4.22), p. 159.
821
John Calvin, Calvin’s Commentaries, Vol. XVII, (Jo 4.22), p. 160-161.
822
Cf. John Calvin, Calvin's Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company,
1996 (Reprinted), Vol. II/1, (Dt 6.16), p. 422.
823
Vd. Hermisten M. P. Costa, Teologia do Culto, p. 38-40.
824
Sobre a Inspiração da Bíblia, Vd. Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras:
Uma Perspectiva Reformada, passim.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 202/233

doxia é bíblica e é corretamente vivida: a vida cristã não pode excluir a doutrina nem
esta pode perdurar sem aquela. Conforme acentuou Horton: “A ortodoxia fria é o
825
resultado da absorção da doutrina sem gratidão. O emocionalismo é o re-
sultado da gratidão sem a doutrina. Precisamos tanto da doutrina quanto da
resposta. A primeira tendência conduz a uma obsessão pelos dados intelec-
tuais sem expressão no amor, humildade, caridade, boas obras, e adoração
genuína. A última é como dizer ‘obrigado’ 142 vezes, sem saber exatamente
826
a razão”. O remédio para ambos equívocos está no apego ao ensino de Jesus
Cristo: adorar a Deus no Espírito através da verdade.

Toda a criatividade humana, que é um dos reflexos da imagem de Deus em


827
nós, deve estar submissa à instituição divina, pois, o Deus Trino que é adorado,
estabelece os princípios e as normas para este ato; deste modo, o que determina a
828
forma do culto, não pode ser um critério puramente estético ou sentimental; mas
sim, espiritual, teológico e racional; todos subordinados à Revelação: O Culto cris-
tão deverá ser sempre na liberdade do Espírito, dentro dos parâmetros da Palavra e
829 830
na integridade de nosso ser (Jo 4.23-24; Fp 3.3). Não existe culto “em verda-
de” divorciado das Escrituras, a qual prescreve a forma, o conteúdo e a integridade
de nossa adoração a Deus. Kuyper comenta: “....Quando este ministério de
sombras cumpriu os propósitos do Senhor, Cristo vem para profetizar a hora
quando Deus não mais será adorado no monumental templo em Jerusalém,
pelo contraio, será adorado em espírito e em verdade. E em conformidade
com esta profecia vocês não encontram nenhum vestígio ou sombra de arte
com propósito de adoração em toda literatura apostólica. O sacerdócio vi-
sível de Arão dá lugar ao sumo sacerdócio invisível segundo a ordem de
Melquisedeque no céu. O puramente espiritual abre caminho através da

825
“É nosso dever denunciar sempre o emocionalismo, mas que Deus não permita que des-
cartemos a emoção” (D.M. Lloyd-Jones, Deus o Espírito Santo, São Paulo: Publicações Evangéli-
cas Selecionadas, 1998, p. 191).
826
Michael Horton, As Doutrinas da Maravilhosa Graça, , p.87.
827
Cf. Harold M. Best, Christian Responsability in Music. In: Leland Raken, ed., The Christian
Imagination: essays on literature and the arts, 2ª ed., Grand Rapids, Michigan: Baker Book House,
1986, p. 403.
828
"O culto cristão contemporâneo é motivado e julgado por padrões diversos: seu valor de
entretenimento, seu suposto apelo evangélico, sua fascinação estética, até mesmo, talvez,
seu rendimento econômico. A herança litúrgica da Reforma nos recorda a convicção de
que, acima de tudo, o culto deve servir para o louvor do Deus vivo". (Tymothy George, Teolo-
gia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 317).
829
“Porque Deus é espírito, a adoração deve também ser praticada com integridade em
relação à fidelidade para com a revelação própria de Deus, porque ela deve ser ‘em ver-
dade’”. (Terry L. Johnson, Adoração Reformada: A adoração que é de acordo com as Escrituras, p.
29).
830
“Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em
verdade; porque são estes que o Pai procura para seus adoradores. Deus é espírito; e importa que os
seus adoradores o adorem em espírito e em verdade” (Jo 4.23-24). “g.nós é que somos a circunci-
são, nós que adoramos a Deus no Espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus, e não confiamos na
carne” (Fp 3.3).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 203/233

831 832
neblina do simbólico”. O culto espiritual é estabelecido por Deus mesmo.
Portanto, a genuína adoração é submissa à auto-revelação de Deus, tanto quanto à
forma como quanto ao espírito. Não podemos separar o Espírito da Palavra. O Espí-
rito honra exclusivamente a Sua Palavra, não a nossa. Calvino, conforme vimos,
comentando o Livro de Isaías, escreve: “Da mesma forma, ‘a Palavra’ não pode
ser separada ‘do Espírito’, como imaginam os fanáticos, que, desprezando a
palavra, ufanam-se do nome do Espírito, e incrementam coisas, como confi-
denciais, em suas próprias imaginações. É o espírito de Satanás que é sepa-
833
rado da palavra, a qual o Espírito de Deus está continuamente unido”.
Lembremo-nos o que já vimos na Confissão de Westminster (1647): “... O modo
aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por Ele mesmo, e é tão li-
mitado pela sua própria vontade revelada, que Ele não pode ser adorado
segundo as imaginações e invenções dos homens, ou sugestões de Satanás,
nem sob qualquer representação visível, ou de qualquer outro modo não
prescrito nas Santas Escrituras” (XXI.1).

Por mais impressionante que seja a adoração planejada pelo homem, se ela não
for dirigida por Deus, por meio do Seu Espírito, não será aceita; não passará de uma
tentativa de boa obra humana no afã de conseguir o favor divino. O culto ao Senhor
não pode ser a nosso bel-prazer, como quis Jeroboão e, também, de certa forma
834
Uzias, pois Deus o rejeita (1Rs 12.33-13.5; 2Cr 26.16-21). “Do Seu caminho
estão bem longe aqueles que pensam que podem agradar-lhe com obser-

831
Abraham Kuyper, Calvinismo, p. 155.
832
Vd. João Calvino, As Institutas, II.8.17.
833
John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah, Grand Rapids, Michigan: Baker Book
House Company, (Calvin's Commentaries), 1996, Vol. VIII/4, (Is 59.21), p. 271.
834
“No décimo quinto dia do oitavo mês, escolhido a seu bel-prazer, subiu ele ao altar que fizera em
Betel e ordenou uma festa para os filhos de Israel; subiu para queimar incenso. Eis que, por ordem do
SENHOR, veio de Judá a Betel um homem de Deus; e Jeroboão estava junto ao altar, para queimar
incenso. Clamou o profeta contra o altar, por ordem do SENHOR, e disse: Altar, altar! Assim diz o
SENHOR: Eis que um filho nascerá à casa de Davi, cujo nome será Josias, o qual sacrificará sobre ti
os sacerdotes dos altos que queimam sobre ti incenso, e ossos humanos se queimarão sobre ti. Deu,
naquele mesmo dia, um sinal, dizendo: Este é o sinal de que o SENHOR falou: Eis que o altar se fen-
derá, e se derramará a cinza que há sobre ele. Tendo o rei ouvido as palavras do homem de Deus,
que clamara contra o altar de Betel, Jeroboão estendeu a mão de sobre o altar, dizendo: Prendei-o!
Mas a mão que estendera contra o homem de Deus secou, e não a podia recolher. O altar se fendeu,
e a cinza se derramou do altar, segundo o sinal que o homem de Deus apontara por ordem do SE-
NHOR” (1Rs 12.33-13.5). “Mas, havendo-se já fortificado, exaltou-se o seu coração para a sua pró-
pria ruína, e cometeu transgressões contra o SENHOR, seu Deus, porque entrou no templo do SE-
NHOR para queimar incenso no altar do incenso. Porém o sacerdote Azarias entrou após ele, com oi-
tenta sacerdotes do SENHOR, homens da maior firmeza; e resistiram ao rei Uzias e lhe disseram: A
ti, Uzias, não compete queimar incenso perante o SENHOR, mas aos sacerdotes, filhos de Arão, que
são consagrados para este mister; sai do santuário, porque transgrediste; nem será isso para honra
tua da parte do SENHOR Deus. Então, Uzias se indignou; tinha o incensário na mão para queimar in-
censo; indignando-se ele, pois, contra os sacerdotes, a lepra lhe saiu na testa perante os sacerdotes,
na Casa do SENHOR, junto ao altar do incenso. Então, o sumo sacerdote Azarias e todos os sacer-
dotes voltaram-se para ele, e eis que estava leproso na testa, e apressadamente o lançaram fora; até
ele mesmo se deu pressa em sair, visto que o SENHOR o ferira. Assim, ficou leproso o rei Uzias até
ao dia da sua morte; e morou, por ser leproso, numa casa separada, porque foi excluído da Casa do
SENHOR; e Jotão, seu filho, tinha a seu cargo a casa do rei, julgando o povo da terra” (2Cr 26.16-21).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 204/233

835
vâncias formuladas ao bel-prazer dos homens”. Se quisermos agradar o Se-
nhor por meio do Culto somente a Ele devido, devemos procurar saber por intermé-
dio da Sua Palavra como Ele deseja ser cultuado...

Na Antiguidade, o filósofo Sócrates (469-399 a.C.), fez uma pergunta, que revela
uma percepção correta: "Haverá culto mais sublime e piedoso que o que pres-
836
creve a própria divindade?".

O culto é no espírito e pelo Espírito Santo. O homem foi criado para prestar culto
837
e isto o distingue dos animais. O culto deve ser dentro da iluminação do Espírito,
com o dinamismo que Lhe é próprio, em harmonia com a Palavra de Deus registrada
conforme a inspiração do mesmo Espírito (2Tm 3.16; 2Pe 1.20-21). “O único que
verdadeiramente adora a Deus em espírito é aquele cujo espírito está sob o
838
controle do Espírito Santo”.

Hendriksen (1900-1982), comentando o texto de Filipenses 3.3, diz: “Sua


adoração religiosa é guiada pelo Espírito. Ela procede de personalidades
renovadas e energizadas pelo Espírito Santo. Portanto, ela emana
839
completamente do coração, e não é afetada por considerações físicas”.

10. A TRINDADE E AS NOSSAS ORAÇÕES:

“Quando o Espírito nos testifica que


somos filhos de Deus, ele, ao mesmo
tempo, imprime esta confiança em nos-
sos corações, para que ousemos invo-
car a Deus como nosso Pai” – João Cal-
840
vino.

O Espírito é Quem nos ensina a orar como convém; ou seja: orar segundo a
vontade de Deus. A oração é educativa, pois nos desafia a confiar nas promessas
de Deus registradas na Sua Palavra e, assim, na medida em que confiamos, pode-
mos amadurecer a nossa fé através do aprendizado experiencial, de que Deus cum-
pre fielmente as Suas promessas... “Com a oração encontramos e desenter-
ramos os tesouros que se mostram e descobrem à nossa fé pelo Evangelho”,
841
observou Calvino. Portanto, este tesouro não pode ser negligenciado como se

835
João Calvino, As Institutas, (1541), IV.15.
836
Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, IV.3.16. p. 149.
837
João Calvino, As Institutas, I.3.3.
838
R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 332.
839
William Hendriksen, Exposição de Filipenses, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, p.
198. Vejam-se: João Calvino, As Institutas, III.20.30; IV.10.14; Confissão de Westminster, 21.6.
840
João Calvino, Romanos, 2ª ed. São Paulo: Edições Parakletos, 2001, (Rm 8.16), p. 288.
841
João Calvino, As Institutas, III.20.2.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 205/233

842
“enterrado e oculto no solo!”. “Agora, quanto é necessário, e de quantas
maneiras o exercício da oração é útil para nós, não se pode explicar satisfa-
843
toriamente com palavras.”

Outro ponto relevante, é que a oração do Espírito é sempre por intermédio de


Cristo; isto significa que quando oramos, o fazemos por iniciativa do Espírito, através
de Cristo, no nome de Cristo; portanto, fazer tal oração significa harmonizar a nossa
vontade com a do Filho. “Solicitar algo a Deus, em nome de Cristo, quer dizer
solicitar-lhe algo em harmonia com a natureza de Cristo! Pedir algo em no-
me de Cristo, a Deus Pai, é como se o próprio Cristo estivesse formulando a
petição. Só podemos pedir a Deus aquilo que Cristo pediria. Pedir em nome
de Cristo, pois, significa deixar de lado nossa vontade própria, aceitando a
844
vontade do Senhor!”.

O Espírito nos dirige para que não usemos o nome do Filho em vão; porque
somente Ele pode nos mostrar qual é a vontade de Deus e nos capacitar a aceitá-la
com fé. Quando oramos no Espírito estamos confessando a nossa pequenez e, ao
mesmo tempo, testemunhando a nossa fé na soberania de Deus.

“O Espírito constrói uma determinada atmosfera em torno de toda a


oração autêntica, e dentro desse círculo próprio é que a oração vive e
triunfa; fora dele, a oração é apenas uma formalidade morta”, comentou
845
Spurgeon.

Agostinho (354-430), comentando o Salmo 102.2 – quando o salmista diz: “... incli-
na-me os teus ouvidos; no dia em que eu clamar; dá-te pressa em acudir-me” –, faz
uma paráfrase: “Escuta-me prontamente, pois peço aquilo que queres dar.
Não peço como um homem terreno bens terrenos, mas já redimido do pri-
846
meiro cativeiro, desejo o reino dos céus”.

Paulo, discorrendo sobre a fraqueza humana, a exemplifica na vida cristã no fato


de nem ao menos sabermos orar como convém (Rm 8.26-27). Por isso o Espírito
que em nós habita nos auxilia em nossas orações, fazendo-nos pedir o que convém,
capacitando-nos a rogar de acordo com a vontade de Deus. A oração eficaz é aque-
la que tem o Espírito como seu autor. Sem o auxílio do Espírito jamais oraríamos
com discernimento. Calvino (1509-1564), analisando o fato de que pedimos tantas
coisas erradas a Deus e que, se Ele nos concedesse o que solicitamos, traria muitos
847
males sobre nós, enfatiza: “Não podemos nem sequer abrir a boca diante

842
João Calvino, As Institutas, III.20.1.
843
João Calvino, As Institutas, (1541), III.9.
844
A.W. Pink, Deus é Soberano, p. 134.
845
C.H. Spurgeon, Firmes na Verdade, p. 85.
846
Agostinho, Comentários aos Salmos, Vol. III, p. 12.
847
Bernardo de Claraval (1090-1153), disse: "Não permitam que eu tenha tamanha miséria,
pois dar a mim o que desejo, dar a mim o que meu coração almeja, é um dos mais terríveis
julgamentos do mundo.” (Apud Jeremiah Burroughs, Aprendendo a Estar Contente, São Paulo:
Publicações Evangélicas Selecionadas, 1990, p. 28).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 206/233

de Deus sem grande perigo para nós, a não ser que o Espírito Santo nos guie
848
à forma devida de orar”. A oração genuína é sempre precedida do senso de
849
necessidade e de uma fé autêntica nas promessas de Deus.

Graças a Deus porque todos nós, em Cristo, temos o Espírito de oração (Zc
12.10), porque sem Ele jamais poderíamos orar de modo aceitável ao Pai. “A pró-
850
pria oração é uma forma de adoração”. Por outro lado, o auxílio do Espírito
não deve servir de pretexto para a nossa indolência e irresponsabilidade espiritual.
Interpreta Calvino: “Aqui não se diz que, lançando o ofício da oração sobre
o Espírito de Deus, podemos adormecer negligentes ou displicentes, como
alguns se acostumaram a blasfemar, dizendo: Devemos ficar à espera, sem
nenhuma preocupação, até que o Espírito chame a atenção da nossa men-
te, até então ocupada e distraída com outras coisas. Muito ao contrário,
aqui somos induzidos a desejar e a implorar tal auxílio, com aversão e
851
desgosto por nossa preguiça e displicência.” Exorta-nos: “Quando nos
sentirmos frios, e indispostos para orar, supliquemos logo ao Senhor que nos
inflame com o fogo de seu Espírito, pelo qual sejamos dispostos e suficientes
852
para orar como convém”.

Muitas vezes estamos tão confusos diante das opções que temos, que não
sabemos nem mesmo como apresentar os nossos desejos e as nossas dúvidas
diante de Deus. Todavia o Espírito nos socorre. Ele “ora a nosso favor quando
853
nós mesmos deveríamos ter orado, porém não sabíamos para que orar.”

Comentando o Salmo 91.12, diz: “Nunca podemos aquilatar os sérios obstá-


culos que Satanás poria contra nossas orações não nos sustentasse Deus da
854
maneira aqui descrita”. Ele ilustra a sua tese: “Chamo tentação espiritual
quando não somente somos açoitados e afligidos em nossos corpos; senão
quando o diabo opera de tal modo em nossos pensamentos que Deus se
nos converte em inimigo mortal, ao que já não podemos ter acesso, con-
855
vencidos de que nunca mais terá misericórdia de nós”.

Precisamos, portanto, “Que o mesmo Deus nos ensine, conforme ao que Ele
sabe que convém, e que Ele nos leve guiando como que pela mão, e que

848
J. Calvino, Institución, III.20.34. Comentando o texto de Romanos 8.26, Calvino diz: “O Espírito,
portanto, é Quem deve prescrever a forma de nossas orações.” [João Calvino, Exposição de
Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 8.26), p. 291]. Ver também, J. Calvino, O Catecismo de
Genebra, Perg. 254.
849
Vd. João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, p. 34.
850
R.C. Sproul, O Ministério do Espírito Santo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997, p. 187.
851
João Calvino, As Institutas, (1541), III.9.
852
J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 245.
853
Edwin H. Palmer, El Espiritu Santo, p. 190.
854
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl 91.12), p. 454.
855
Juan Calvino, El Carácter de Job, Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Ser-
mon nº 1), p. 28.
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856
nós o sigamos.” Orar como convém é orar segundo a vontade de Deus, colo-
857
cando os nossos desejos em harmonia com o santo propósito de Deus; isto só é
858
possível pelo Espírito de Deus que Se conhece perfeitamente (1Co 2.10-12). As-
sim, toda oração genuína é sob a orientação e direção do Espírito (Ef 6.18; Jd 20). O
Catecismo Maior de Westminster, diz: “Não sabendo nós o que havemos de
pedir, como convém, o Espírito nos assiste em nossa fraqueza, habilitando-
nos a saber por quem, pelo quê, e como devemos orar; operando e desper-
tando em nossos corações (embora não em todas as pessoas, nem em to-
dos os tempos, na mesma medida) aquelas apreensões, afetos e graças que
859
são necessários para o bom cumprimento do dever”.

O Espírito ora conosco e por nós; Ele, juntamente com Cristo, em esferas diferen-
tes, intercede por nós: “Cristo intercede por nós no céu, e o Espírito Santo na
terra. Cristo nosso Santo Cabeça, estando ausente de nós, intercede fora de
nós; o Espírito Santo nosso Consolador intercede em nosso próprio coração
860
quando Ele o santifica como Seu templo”, contrasta Kuyper (1837-1920).

A intercessão de Cristo respalda-se nos Seus merecimentos, obtendo para os


861
Seus eleitos, os frutos da Sua Obra expiatória (Rm 8.34; Hb 7.25; 1Jo 2.1). O Es-
pírito intercede por nós considerando as nossas necessidades vitais e
costumeiramente imperceptíveis aos nossos próprios olhos.

Calvino (1509-1564) observou que na oração, "a língua nem sempre é neces-
sária, mas a oração verdadeira não pode carecer de inteligência e de afeto
862
de ânimo", a saber: "O primeiro, que sintamos nossa pobreza e miséria, e

856
J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 254.
857
"A oração não é um recurso conveniente para impormos a nossa vontade a Deus, ou pa-
ra dobrar a Sua vontade à nossa, mas, sim, o meio prescrito de subordinar a nossa vontade
à de Deus. É pela oração que buscamos a vontade de Deus, abraçamo-la e nos alinhamos
com ela. Toda oração verdadeira é uma variação do tema, ‘Faça-se a tua vontade'." (John
R.W. Stott, I,II e III João, Introdução e Comentário, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1982, p.
159).
858
Leenhardt, comenta: “Para orar ‘como convém’ é preciso orar ‘segundo a vontade de
Deus’; isto, entretanto, não pode advir senão de Deus, Que só Se conhece. O mais é ação
estéril.” (Franz J. Leenhardt, Epístola aos Romanos, São Paulo: ASTE., 1969, p. 226).
859
Catecismo Maior de Westminster, Perg. 182.
860
Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, p. 670.
861
“Não temos como medir esta intercessão pelo nosso critério carnal, pois não podemos
pensar do Intercessor como humilde suplicante diante do Pai, com os joelhos genuflexos e
com as mãos estendidas. Cristo contudo, com razão intercede por nós, visto que compare-
ce continuamente diante do Pai, como morto e ressurreto, que assume a posição de eterno
intercessor, defendendo-nos com eficácia e vívida oração para reconciliar-nos com o Pai e
levá-lo a ouvir-nos com prontidão.” [J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.34), p. 304].
862
J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 240. Para uma interpretação alternativa do texto de
Romanos 8.26-27, consulte Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 916-917, que associa a pas-
sagem a “suspiros e gemidos inarticulados que nós mesmos emitimos em oração, que então
o Espírito Santo transforma em intercessão efetiva diante do trono divino” (p. 916).
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que este sentimento gere dor e angústia em nossos ânimos. O segundo, que
estejamos inflamados com um veemente e verdadeiro desejo de alcançar
863
misericórdia de Deus, e que este desejo acenda em nós o ardor de orar."

Spener (1635-1705), falando sobre a oração, segue uma linha semelhante: “Não
é suficiente que se ore exteriormente, com a boca, pois a oração verdadeira
e mais necessária acontece no nosso ser interior, podendo expressar-se em
palavras ou permanecer na alma, mas, de qualquer maneira, lá acha e
864
encontra Deus.”

O Espírito, que procede do Pai e do Filho, é Quem nos guia em nossas orações,
fazendo-nos orar corretamente ao Pai. De fato, Deus propiciou para nós todos os
elementos fundamentais para a nossa santificação (2Pe 1.3); a ação do Espírito
aponta nesta direção, indicando também, que as nossas orações são “imperfeitas,
imaturas, e insuficientes”, por isso Ele nos auxilia, nos ensinando a orar como
convém.

Paulo fala que nós, os crentes em Cristo, recebemos o Espírito de ousada confi-
ança em Deus, que nos leva, na certeza de nossa filiação divina, a clamar ”Aba,
Pai”. ”Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez ate-
morizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba,
Pai” (Rm 8.15). O fato de Paulo usar a mesma expressão de Cristo para nós “signi-
fica que, quando Jesus deu a Oração Dominical aos Seus discípulos, tam-
bém lhes deu autoridade para segui-Lo em se dirigirem a Deus como ‘abbã’,
865
dando-lhes, assim, uma participação na Sua condição de Filho”. Somente
pelo Espírito poderemos nos dirigir a Deus desta forma, como uma criança que se
lança sem reservas nos braços do seu Pai amoroso.

Quando oramos sabemos que estamos falando com o nosso Pai. Desta forma, a
oração é uma prerrogativa dos que estão em Cristo. Somente os que estão em Cris-
to pela fé, têm a Deus como o seu legítimo Pai (Jo 1.12; Rm 8.14-17; Gl. 4.6; 1Jo
3.1-2). De onde se segue que esta oração (Pai Nosso), apesar de não mencionar
explicitamente o nome de Cristo, é feita no Seu nome, visto que somos filhos de
Deus – e é nesta condição que nos dirigimos a Deus –, através de Cristo Jesus (Gl
866
3.26). Portanto, quando oramos o Pai Nosso sinceramente, na realidade estamos
orando no nome de Jesus Cristo pois, foi Ele mesmo quem nos ensinou a fazê-lo.
Assim, devemos, pelo Espírito – nosso intercessor –, no nome de Jesus – nosso
Mediador –, orar: “Pai nosso que estás no céu....”.

O Espírito que em nós habita e nos leva à oração testemunha em nós que somos
filhos de Deus. “O próprio Espírito testifica (summarture/w) com o nosso espírito

863
J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 243.
864
Ph. J. Spener, Mudança para o Futuro: Pia Desideria, São Paulo/Curitiba. PR.: Encontrão Edito-
ra/Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, São Bernardo do Campo, SP.:
1996, p. 119.
865
O. Hofius, Pai: In: NDITNT., III, P. 383.
866
Vd. Calvino, As Institutas, III.20.36.
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867
que somos filhos de Deus” (Rm 8.16); O Pai Nosso é a “Oração dos Filhos”.

Orar ao Pai não significa simplesmente usar o Seu nome, mas, sim, dirigir-nos de
fato a Ele conforme os Seus preceitos, em submissão à Sua vontade. Uma oração
francamente oposta aos ensinamentos de Jesus não pode ser considerada de fato
uma oração dirigida ao Pai, por mais que usemos e repitamos o nome de Jesus.

O problema, dentro do contexto vivido por Jesus, é que muitos dos judeus, na
realidade, ofereciam as suas orações aos homens, mesmo usando o nome de Deus.
Usar o nome de Deus não é garantia de estarmos nos dirigindo a Ele. Do mesmo
modo, podemos estar tão preocupados com a forma de nossas orações que nos es-
quecemos do Pai; é a Ele que a nossa oração é destinada; portanto, cabe a Ele, que
vê em secreto, julgá-la. A nossa oração não necessita ter publicidade para que Deus
a ouça; Ele vê em secreto e nos recompensa conforme o que vê (Mt 6.6).

No Antigo Testamento, por intermédio de Isaías, Deus recrimina os judeus


dizendo que eles sacrificavam simplesmente porque gostavam de fazê-lo, não
porque quisessem agradá-Lo. O ritual é que era prazeroso, não a satisfação de
Deus: “Como estes escolheram os seus próprios caminhos, e a sua alma se deleita
nas suas abominações, assim eu lhes escolherei o infortúnio e farei vir sobre eles o
que eles temem; porque clamei e ninguém respondeu, falei, e não escutaram; mas
fizeram o que era mau perante mim, e escolheram aquilo em que eu não tinha
prazer” (Is 66.3-4).

Bonhoeffer (1906-1945) comenta: “Uma criança aprende a falar porque seu


pai fala com ela. Ela aprende a falar a língua paterna. Assim também nós
aprendemos a falar com Deus, porque Deus falou e fala conosco. Pela
palavra do Pai no céu seus filhos aprendem a comunicar-se com Ele. Ao
repetir as próprias palavras de Deus, começamos a orar a Ele. Não oramos
com a linguagem errada e confusa de nosso coração, mas pela palavra
clara e pura que Deus falou a nós por meio de Jesus Cristo, devemos falar
868
com Deus, e Ele nos ouvirá”.

“Orar é exercitar a nossa confiança no Deus da Providência, sabendo que


869
nada nos faltará, porque Ele é o nosso Pai”. A oração tem sempre uma cono-
tação de submissão confiante. Portanto, orar ao Pai, significa sintonizar a nossa
vontade com a dEle; sabendo que Ele é santo e a Sua vontade também o é (Mt
6.9,10).

A presença e direção do Espírito na vida do povo de Deus é uma realidade. Des-


considerar este fato significa desprezar o registro bíblico e o testemunho do Espírito
em nós (Rm 8.16). “A vida cristã é companheirismo com o Pai e com o Filho,

867
Conforme expressão de Lloyd-Jones (1899-1981) (D.M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do
Monte, São Paulo: FIEL., 1984, p. 358). Vd. a relação feita por Calvino entre a oração e a convicção
de nossa filiação divina (João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.16), p. 279-280).
868
Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos, Curitiba, PR.: Encontrão Editora, 1995, p. 12-13.
869
Hermisten M.P. Costa, Providência de Deus: Governo ou Fatalismo? São Paulo: 1989, p. 27.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 210/233

870
Jesus Cristo, por meio do Espírito Santo”.

O Espírito em nós é uma fonte de consolo e estímulo à perseverança e


obediência devida a Deus. Consideremos este fato – à luz da Palavra e da nossa
experiência – em todos os nossos caminhos, e o Espírito mesmo nos iluminará.

11. O DEUS MISTERIOSO E A PREGAÇÃO DA IGREJA:

11.1. O Deus Misterioso:

A aceitação do paradoxo ou antinomia faz parte da própria limitação


nossa diante da Revelação de Deus. Reconhecemos a clareza de temas individuais
nas Escrituras, mas, ao mesmo tempo, confessamos a nossa incapacidade em rela-
871
cioná-los de forma perfeita em nossa mente bastante limitada. A Escritura é sufi-
cientemente clara, mas, não absolutamente clara em todas as coisas. A própria
Confissão de Westminster nos instrui: “Na Escritura não são todas as coisas
igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo,
as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a
salvação, em uma ou outra passagem da Escritura são tão claramente
expostas e aplicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no
devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente
compreensão delas” (I.7).

A Bíblia apresenta verdades antinômicas (verdades que aparentemente se con-


tradizem), sem ter a preocupação de nos explicar a relação entre ambas; e, tanto o
872
crente sem maiores estudos teológicos, como o teólogo, são, cada um à sua ma-
neira, tentados a explicar o que Deus não diz em Sua Palavra. Por isso, tenho afir-
mado com veemência, que a Teologia não é explicativa, mas sim, descritiva; isto
porque se ela explica o que já foi explicado por Deus, está na realidade descrevendo
a explicação e, se por outro lado, tenta explicar o que Deus não explicou, está aden-
trando aos mistérios de Deus o que, além de ser inútil, visto que nada conseguimos
de positivo com isso, é um ato pecaminoso. Então, alguém perguntaria: para que a
Teologia? Se ela é apenas descritiva, quem precisa dela? Entendemos que a Teolo-

870
D.M. Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
2005 (Certeza Espiritual: Vol. 1), p. 98.
871
Esta compreensão é bastante forte no pensamento de Calvino. Vejam-se: Edward A. Dowey, Jr.,
The Knowledge of God in Calvin’s Theology, New York: Columbia University Press, 1952, p. 39-40.
George comenta: “Com toda sua reputação de teólogo de lógica rigorosa, Calvino preferiu
viver com o mistério e a incoerência de lógica a violar os limites da revelação ou imputar
culpa ao Deus que as Escrituras retratam como infinitamente sábio, completamente amoro-
so e absolutamente justo” (Timothy George, A Teologia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova,
1994, p. 209).
872
Para uma classificação útil a respeito dos níveis de teologia, ver: Stanley J. Grenz & Roger C. Ol-
son, Quem Precisa de Teologia? Um convite ao estudo sobre Deus e sua relação com o ser humano,
São Paulo: Vida, 2002, especialmente, p. 25-39.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 211/233

873
gia, especialmente a conhecida tecnicamente como Teologia Sistemática, se pro-
põe a estudar a verdade bíblica em seu todo, tentando relacionar as partes com o
todo e o todo com as suas partes, declarando, assim, de forma mais ou menos sis-
temática, as doutrinas que não foram criadas por homens, mas sim, reveladas por
Deus, do Gênesis ao Apocalipse. Creio que foi neste sentido que escreveu Lloyd-
Jones (1899-1981): “O estudo bíblico é de bem pouco valor se termina em si
próprio e se é principalmente uma questão de sentido das palavras. O pro-
874
pósito do estudo das Escrituras é chegar à doutrina”.

Tratando da doutrina da Predestinação, Calvino delimita o campo da sua teologi-


a: “A Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual, como nada é omitido
não só necessário, mas também proveitoso de conhecer-se, assim também
875
nada é ensinado senão o que convenha saber”.

Nas Institutas, orienta e adverte àqueles que querem discutir com Deus,
limitando-O ao seu raciocínio:

“Ponderem, por uns instantes, aqueles a quem isto se afigura áspero,


quão tolerável lhes seja a impertinência, quando, porque lhes excede a
compreensão, rejeitam matéria atestada de claros testemunhos da Escri-
tura e inquinam de vício o serem a público trazidas cousas que, a não ser
que houvesse reconhecido serem proveitosas de conhecer-se, Deus ja-
mais haveria ordenado fossem ensinadas através de Seus Profetas e Após-
tolos. Ora, nosso saber não deve ser outra cousa senão abraçar com
branda docilidade e, certamente, sem restrição, tudo quanto foi ensinado
876
nas Sagradas Escrituras”.

Após falar da soberania de Deus na Criação e na eleição, Isaías exclama:


“Verdadeiramente tu és Deus misterioso....” (Is 45.15). Em outro lugar: “Não se pode
esquadrinhar o seu entendimento” (Is 40.28/Is 55.9; Pv 25.2; Rm 11.33).

873
Pessoalmente entendo a Teologia como o estudo sistemático da Revelação Especial de Deus
conforme registrada nas Escrituras Sagradas tendo como fim último o glorificar a Deus por meio do
Seu conhecimento e obediência à Sua Palavra. Operacionalmente podemos dizer que a Teologia Sis-
temática é o estudo sistematizado da Revelação Especial de Deus conforme registrada nas Escrituras
Sagradas, buscando uma compreensão real e harmônica de "todo o desígnio de Deus" e de suas re-
lações intrínsecas e extrínsecas, realçando a sua relevância para a vida do povo de Deus. Cabe ain-
da uma palavra explicativa: a nomenclatura “sistemática”, que pode parecer redundante para alguns,
é proveniente do verbo grego sunista/w, que significa: organizar, coligar, congregar. Portanto, a de-
signação de Teologia Sistemática é pertinente visto que ela se propõe a organizar em um sistema
unificado os ensinamentos bíblicos.
874
D.M. Lloyd-Jones, Por Que Prosperam os Ímpios?, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecio-
nadas, 1983, p. 101.
875
J. Calvino, As Institutas, III.21.3.
876
J. Calvino, As Institutas, I.18.4. "'A Escritura é proveitosa.' Segue-se daqui que é errôneo usá-
la de forma inaproveitável. Ao dar-nos as Escrituras, o Senhor não pretendia satisfazer nossa
curiosidade, nem alimentar nossa ânsia por ostentação, nem tampouco deparar-nos uma
chance para invenções místicas e palavreado tolo; sua intenção, ao contrário, era fazer-nos
o bem. E assim, o uso correto da Escritura deve guiar-nos sempre ao que é proveitoso” [J.
Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.16) p. 263].
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11.2.Uma Proclamação Poderosamente Submissa e Inteligente:

A Bíblia apresenta o Evangelho como uma mensagem que deve ser a-


nunciada a todos os homens a fim de que eles possam entendê-la e crer. Deus não
simplesmente arrasta o pecador para Si sem que ele deseje. Ninguém será salvo a
877
contragosto. Deus não simplesmente nos “nocauteia”; Ele nos convence. O ho-
mem precisa desejar a salvação e recebê-la pela fé. Sabemos que a fé é um dom de
Deus (Ef 2.8) e é Deus mesmo Quem desperta em nós a consciência de nossa
necessidade de salvação e, ao mesmo tempo, a capacitação para crer no
878
Evangelho.

A proclamação compete a nós; é uma responsabilidade inalienável e essencial de


879
toda a Igreja. Como temos visto, não compreendemos exaustivamente a relação
entre a Soberania de Deus e a responsabilidade humana, contudo, a Bíblia ensina
estas duas verdades: Deus é Soberano e o homem é responsável diante de Deus
880
por suas decisões (Rm 1.18-2.16). O nosso confronto com os mistérios da Pala-
vra deve nos conduzir à adoração sincera (Rm 11.33-36).

Em nosso testemunho, procuramos anunciar o Evangelho de forma inteligível, nos


dirigindo a seres racionais a fim de que entendam a mensagem e creiam; por isso,
ao mesmo tempo em que sabemos que é Deus Quem converte o pecador, devemos
usar os recursos de que dispomos − que não contrariem a Palavra de Deus −, para
atingir a todos os homens. A nossa proclamação deve ser apaixonada, no sentido de
que queremos alertar os homens para a realidade do Evangelho, “persuadindo-os”
pelo Espírito, a se arrependerem de seus pecados e a se voltarem para Deus. (Vd.
881 882
Lc 5.10; Rm 11.13-14; 1Co 9.19-23; 2Co 5.11) . Cremos que o Espírito da Ver-

877
Para usar uma expressão de Lloyd-Jones (D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus não o Nosso,
São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 161).
878
“Ninguém jamais foi convertido ao cristianismo à força. Todo verdadeiro converso volta-
se para Cristo porque quer – embora seja certo que este querer é dom de Deus, transmitido
a ele por ocasião do seu novo nascimento” (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 27).
879
“A evangelização é a inalienável responsabilidade de toda comunidade cristã, bem
como de todo indivíduo crente” (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 21).
880
Vd. J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 16-27; R.B. Kuiper, Evangelização Teo-
cêntrica, p. 27.
881
“....Disse Jesus a Simão: Não temas; doravante serás pescador de homens” (Lc 5.10). “Dirijo-me a
vós outros, que sois gentios! Visto, pois, que eu sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério,
para ver se, de algum modo, posso incitar à emulação os do meu povo e salvar alguns deles” (Rm
11.13-14). “Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número
possível. Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem sob
o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora
não esteja eu debaixo da lei. Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com
Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei. Fiz-me fraco pa-
ra com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por to-
dos os modos, salvar alguns. Tudo faço por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador
com ele” (1Co 9.19-23). “E assim, conhecendo o temor do Senhor, persuadimos os homens e somos
cabalmente conhecidos por Deus; e espero que também a vossa consciência nos reconheça” (2Co
5.11).
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dade nos capacita a proclamar o Evangelho com fidelidade e sabedoria. Evangeli-


zar não é um exercício de aniquilamento da razão, antes é um desafio à utilização
de uma mente sã, que só pode ser restaurada pelo poder do Espírito. Toda verdade
procede de Deus e, o Espírito de Deus nos concede este discernimento na compre-
ensão e no uso da verdade. “O Espírito Santo é o Espírito da verdade, que se
883
importa com a verdade, ensina a verdade e dá testemunho da verdade”.

O Livro de Atos registra que Paulo por três semanas pregou, conforme seu
costume, na sinagoga de Tessalônica. Lucas usa alguns termos muito interessantes
para descrever a pregação de Paulo: “Tendo passado por Anfípolis e Apolônia,
chegaram a Tessalônica, onde havia uma sinagoga de judeus. Paulo, segundo o seu
costume, foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou (diale/gomai) com eles
acerca das Escrituras, expondo (dianoi/gw) e demonstrando (parati/qhmi) ter sido
necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos; e este, dizia ele,
é o Cristo, Jesus, que eu vos anuncio. Alguns deles foram persuadidos (pei/qw) e
unidos a Paulo e Silas, bem como numerosa multidão de gregos piedosos e muitas
distintas mulheres” (At 17.1-4). Analisemos os verbos usados por Lucas:
884
a) “Arrazoar” (diale/gomai). No grego clássico a palavra tinha o emprego usual
de “conversar” ou “discutir”. (Ver: Mc 9.34). A partir de Sócrates (469-399 a.C.) pas-
sou a ser usada com o sentido de persuasão através de perguntas e respostas. Em
Aristóteles (384-322 a.C.), tem o sentido de investigação dos fundamentos últimos
885
do conhecimento. Daí o sentido de argumentar, conduzir uma discussão e discur-
sar, envolvendo sempre a ideia de estímulo intelectual através do intercâmbio de i-
886
deias. Enfim, envolvia uma argumentação com o fim de persuadir, sendo permiti-
887
da à congregação fazer perguntas. Paulo, portanto, passou três semanas fazendo
perguntas, ouvindo indagações, respondendo, argumentando com respeito ao Anti-
go Testamento e à Pessoa de Cristo. A pregação do Evangelho envolve raciocínios
e argumentos. Lucas registra também que em Corinto: “Todos os sábados [Paulo]
discorria (diale/gomai) na sinagoga, persuadindo tanto judeus como gregos” (At
18.4). Este era o método habitual de Paulo. Ele usou do mesmo recurso na sinagoga
888 889
de Tessalônica (At 17.2); na sinagoga de Atenas e na praça (At 17.17); na si-

882
Vd. J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 36-37.
883
John R.W. Stott, A Verdade do Evangelho: um apelo à Unidade, Curitiba, PR./São Paulo, SP.:
Encontro/ABU., 2000m p. 130.
884
A palavra tem o sentido de “dissertar” (At 17.17; 19.8; 24.25); “discorrer” (At 18.4; 19.9; Hb 12.5);
“pregar” (At 18.19); “exortar” (At 20.7); “discursar” (At 20.9); “discutir” (At 24.12); “disputar” (Jd 9).
885
Ver: Gottlob Schrenk, diale/gomai: In: Gerhard Kittel & G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of
the New Testament, Vol. II, p. 93.
886
Cf. A.T. Robertson, “Word Pictures in the New Testament, Volume 3 – Acts,” The Master Christian
Library, [CD-ROM], Version 8 (Rio, Wi: Ages Software, 2000), in loc.
887
Cf. D. Furst, Pensar: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do No-
vo Testamento, Vol. III, p. 515.
888
“Paulo, segundo o seu costume, foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou com (diale/gomai)
eles acerca das Escrituras” (At 17.2).
889
“Por isso, dissertava (diale/gomai) na sinagoga entre os judeus e os gentios piedosos; também
na praça, todos os dias, entre os que se encontravam ali” (At 17.17).
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890
nagoga de Éfeso e na escola de Tirano durante dois anos (At 18.19; 19.8-10), na
891 892
igreja em Trôade (At 20.7,9) e diante de violento Procurador Félix (At 24.25).
893
b) “Expor” (dianoi/gw). “Abrir completamente”. Tem o sentido figurado de
“explanar” e “interpretar”. Ou seja: pelo Espírito, a exposição de Paulo tornava a
mensagem compreensível, “abria o significado” do texto, evidenciado a sua
894
aplicabilidade ao contexto de seus ouvintes (Cf. Lc 24.31-32). As pessoas
poderiam não crer no que foi proclamado; contudo, não poderiam alegar falta de
compreensão.
895
c) “Demonstrar” (parati/qhmi). “Colocar ao lado”, “colocar diante de”. Figura-
damente tem o sentido de apresentar evidências; ou seja, provar com passagens bí-
blicas a veracidade de seu argumento. “Citar para provar”, “demonstrar”. Ou seja:
Paulo argumentava biblicamente o que ensinava, demonstrando, por exemplo, o
cumprimento das profecias em Cristo e, ao mesmo tempo, confrontava as teses de
seus oponentes com textos bíblicos.

d) “Persuadir” (pei/qw), que significa convencer despertando a confiança de al-


guém sobre o quê foi persuadido, “dar crédito” (At 27.11). Lucas também registra
que alguns dos judeus e numerosa multidão de gregos – homens e mulheres distin-
tas –, “foram persuadidos (pei/qw) e unidos a Paulo e Silas....” (At 17.4). Paulo es-
forçava-se por persuadir os seus ouvintes a respeito do Evangelho (At 13.43;

890
“Chegados a Éfeso, deixou-os ali; ele, porém, entrando na sinagoga, pregava (diale/gomai) aos
judeus” (At 18.19). “Durante três meses, Paulo frequentou a sinagoga, onde falava ousadamente, dis-
sertando (diale/gomai) e persuadindo com respeito ao reino de Deus. Visto que alguns deles se mos-
travam empedernidos e descrentes, falando mal do Caminho diante da multidão, Paulo, apartando-se
deles, separou os discípulos, passando a discorrer (diale/gomai) diariamente na escola de Tirano.
Durou isto por espaço de dois anos, dando ensejo a que todos os habitantes da Ásia ouvissem a pa-
lavra do Senhor, tanto judeus como gregos” (At 18.8-10).
891
“No primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de partir o pão, Paulo, que devia se-
guir viagem no dia imediato, exortava-os (diale/gomai) e prolongou o discurso até à meia-noite. (...)
Um jovem, chamado Êutico, que estava sentado numa janela, adormecendo profundamente durante
o prolongado discurso (diale/gomai) de Paulo, vencido pelo sono, caiu do terceiro andar abaixo e foi
levantado morto” (At 20.7,9).
892
“Dissertando (diale/gomai) ele acerca da justiça, do domínio próprio e do Juízo vindouro, ficou
Félix amedrontado e disse: Por agora, podes retirar-te, e, quando eu tiver vagar, chamar-te-ei” (At
24.25).
893
A palavra tem o sentido de “expor” (Lc 24.32) e, especialmente, de “abrir”: abrir o ventre (Lc 2.23);
abrir o céu (At 7.56). No sentido figurado: abrir os ouvidos (Mc 7.34-35); abrir os olhos para que com-
preenda (Lc 24.31/Gn 3.5,7); abrir o coração (At 16.14); abrir a mente (Lc 24.45).
894
Comentando At 16.14, onde a mesma palavra é empregada, Stott escreve: “Percebemos que a
mensagem era de Paulo, mas a iniciativa salvadora vinha de Deus. A pregação de Paulo
não era efetiva em si mesma; o Senhor operava através dela. E a obra do Senhor não era di-
reta em si; Ele preferiu operar por intermédio da pregação de Paulo. Sempre é assim” [John
R.W. Stott, A Mensagem de Atos: até os confins da Terra, São Paulo: ABU Editora, 1994, (At 16.13-
15), p. 296].
895
Significa “propor” (Mt 23.24,31); “distribuir” (Mc 6.41; 8.6-7); oferecer (Lc 10.8; 11.6); confiar (Lc
12.48); entregar (Lc 23.46); encomendar (At 14.23; 20.32; 1Pe 4.19); “pôr diante de” (1Co 10.27);
“encarregar” (1Tm 1.18); transmitir (2Tm 2.2).
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896
18.4;19.8,26; 26.28; 28.23-24; 2Co 5.11). “Paulo não procurava dar origem à
fé no Deus único e, sim, persuadir os ouvintes quanto à graça que acabava
897
de ser dada por meio de Cristo”. Seus ouvintes são seriam levados à fé sim-
plesmente pela sabedoria humana. No entanto, devemos estar conscientes que a
898
proclamação não exclui de forma alguma a nossa razão.

Mesmo havendo um tipo de linguagem que propiciava a persuasão, Paulo não se


valia deste método. Diz aos coríntios: “A minha palavra e a minha pregação não
consistiram em linguagem persuasiva (peiqo/j) de sabedoria, mas em demonstração
do Espírito e de poder” (1Co 2.4). Há sempre o risco de substituir o poder de Deus
pela “técnica”, pela capacidade de convencer os nossos ouvintes. Neste caso, subs-
tituiríamos o conteúdo pelo sucesso; a soberania de Deus pelo poder de nossos ar-
899
gumentos. É preciso um cuidado especial neste ponto. Calvino se detêm especi-

896
“Despedida a sinagoga, muitos dos judeus e dos prosélitos piedosos seguiram Paulo e Barnabé, e
estes, falando-lhes, os persuadiam (pei/qw) a perseverar na graça de Deus” (At 13.43). “E todos os
sábados discorria na sinagoga, persuadindo (pei/qw) tanto judeus como gregos” (At 18.4). “Durante
três meses, Paulo frequentou a sinagoga, onde falava ousadamente, dissertando e persuadindo
(pei/qw) com respeito ao reino de Deus” (At 19.8). Demétrio insuflando o povo: “e estais vendo e ou-
vindo que não só em Éfeso, mas em quase toda a Ásia, este Paulo tem persuadido (pei/qw) e desen-
caminhado muita gente, afirmando não serem deuses os que são feitos por mãos humanas” (At
19.26). “Então, Agripa se dirigiu a Paulo e disse: Por pouco me persuades (pei/qw) a me fazer cristão”
(At 26.28). “Havendo-lhe eles marcado um dia, vieram em grande número ao encontro de Paulo na
sua própria residência. Então, desde a manhã até à tarde, lhes fez uma exposição em testemunho do
reino de Deus, procurando persuadi-los (pei/qw) a respeito de Jesus, tanto pela lei de Moisés como
pelos profetas. Houve alguns que ficaram persuadidos (pei/qw) pelo que ele dizia; outros, porém, con-
tinuaram incrédulos” (At 28.23-24). “E assim, conhecendo o temor do Senhor, persuadimos (pei/qw)
os homens e somos cabalmente conhecidos por Deus; e espero que também a vossa consciência
nos reconheça” (2Co 5.11).
897
O. Becker, Fé: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Tes-
tamento, Vol. II, p. 214.
898
Veja-se o excelente tópico do livro de Stott: John R.W. Stott, Crer é também Pensar, São Paulo:
ABU., 1984 (2ª impressão), p. 45-51.
899
Packer desenvolve este tema de forma pertinente:
“Se considerarmos que nossa tarefa consiste não simplesmente em apresentar Cristo, mas
realmente em produzir convertidos – evangelizando não apenas fielmente, mas também
com sucesso – então nossa maneira de evangelizar tornar-se-á pragmática e calculista.
Terminaríamos por concluir que nosso equipamento básico, tanto para tratar pessoalmente
como para pregar publicamente, deve ser duplo. Precisaríamos possuir não apenas uma
compreensão clara do significado e aplicação do evangelho, mas igualmente uma técnica
irresistível capaz de induzir os ouvinte a aceitá-lo. Assim sendo, precisaríamos nos esforçar por
experimentar e desenvolver tal técnica. E deveríamos avaliar toda evangelização, tanto a
nossa como a de outras pessoas, não pelo critério da mensagem pregada, mas também
dos resultados visíveis. E, se nossos próprios esforços não estivessem produzindo frutos, conclu-
iríamos que nossa técnica ainda precisa de melhoramentos. E caso estivessem produzindo
fruto, concluiríamos que isso justifica a técnica usada. Se assim fosse, deveríamos considerar
a evangelização como uma atividade que envolve uma batalha de vontades entre nós
mesmos e aqueles para quem pregamos, uma batalha cuja vitória dependeria de havermos
detonado uma barragem suficiente de efeitos calculados. Dessa maneira, nossa filosofia de
evangelização tornar-se-ia terrivelmente semelhante à filosofia da lavagem cerebral. E já
não poderíamos mais argumentar, quando tal semelhança fosse aceita como fato, que es-
sa não é a concepção certa de que seja evangelizar. Pois seria um conceito apropriado de
evangelização, se a produção de convertidos fosse responsabilidade nossa.
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almente nesta questão: “Para que possa haver eloquência, devemos estar
sempre em alerta a fim de impedir que a sabedoria de Deus venha sofrer
900
degradação por um brilhantismo forçado e corriqueiro”. A eloquência “é
um dom muito excelente, mas que, quando se vê divorciado do amor, de
901
nada serve para alguém obter o favor divino”. A questão está em não usar
desses meios como sendo a força do Evangelho, esquecendo-nos de sua simplici-
dade que é-nos comunicada pelo Espírito: “Não devemos condenar nem rejei-
tar a classe de eloquência que não almeja cativar cristãos com um requinte
exterior de palavras, nem intoxicar com deleites fúteis, nem fazer cócegas
em seus ouvidos com sua suave melodia, nem mergulhar a Cruz de Cristo em
902
sua vã ostentação”. “O Espírito de Deus também possui uma eloquência
903
particularmente sua”. Continua Calvino: “.... a eloquência que está em con-
formidade com o Espírito de Deus não é bombástica nem ostentosa, como
também não produz um forte volume de ruídos que equivalem a nada. An-
tes, ela é genuína e eficaz, e possui muito mais sinceridade do que refina-
904
mento”.

11.3. A Igreja como expressão e Agente da Glória do Deus


Triúno:

“A glória do Senhor deve permanecer inalterada em toda e qual-


905
quer parte”. Deus criou todas as coisas, inclusive a Igreja, para a Sua Glória.
“Glória é excelência manifestada. A excelência dos atributos de Deus é ma-

“Isso nos mostra o perigo de esquecermos as implicações práticas da soberania de Deus” (J.I.
Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 22-23).
900
João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 2.13), p. 91.
901
João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 13.1), p. 394.
902
João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 55. “Deus quer que sua Igreja seja edifica-
da com base na genuína pregação de sua Palavra, não com base em ficções humanas. (...) Nesta ca-
tegoria estão questões especulativas que geralmente fornecem mais para ostentação – ou algum
louco desejo – do que para a salvação de homens” [João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,
(1Co 3.12), p. 112]. “A pregação de Cristo é nua e simples; portanto, não deve ela ser ofus-
cada por um revestimento dissimulante de verbosidade” [João Calvino, Exposição de 1 Corín-
tios, (1Co 1.17), p. 54]. “[A] fé saudável equivale à fé que não sofreu nenhuma corrupção
proveniente de fábulas” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.14), p.
320]. “Se porventura desejarmos conservar a fé em sua integridade, temos de aprender com
toda prudência a refrear nossos sentidos para não nos entregarmos a invencionices estra-
nhas. Pois assim que a pessoa passa a dar atenção às fábulas, ela perde também a integri-
dade de sua fé” [João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320].
903
João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 56.
904
João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 56. Sobre esta questão, ver:
Hermisten M.P. Costa, A Construção do Pensamento Moderno e a Pregação Bíblica,
São Paulo, 2005.
905
João Calvino, Romanos, 2ª ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 11.36), p. 430.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 217/233

906
nifestada por sua operação”. A glória de Deus não lhe é atribuída, acrescen-
907
tada, diminuída ou mesmo esgotada em sua complexidade; é-Lhe totalmente in-
908
trínseca. Ele é o Rei, o Senhor e Pai da Glória (Sl 24.7-10; At 7.2; Ef 1.17) que,
através de Seu Filho “vestido de nossa carne, se revelou agora par ser o Rei
909 910
da glória e Senhor dos Exércitos”. (1Co 2.8; Tg 2.1/Jo 1.14).

O alvo final de todas as coisas é a glória Deus: nada é mais elevado ou importan-
te do que o próprio Deus. Como decorrência do tópico anterior, podemos afirmar que
há aqui um desafio extremamente difícil para todos nós individualmente e para a i-
greja como todo: abrir mão de nossos interesses aparentemente mais relevantes (a-
liás, em nossa ótica, o que há de mais importante do que os nossos interesses?
Qual a dor maior do que a minha?) pelo que, de fato, é urgentemente relevante em
sua própria essência. Lloyd-Jones ilustra este ponto positivamente partindo do e-
xemplo de Jesus Cristo, que na quinta feira antes de Sua entrega em favor do Seu
povo, ora ao Pai revelando a sua genuína preocupação: glorificar o Deus Pai (Jo
17.1): “Acima de nossa preocupação com as almas dos homens e com a
sua salvação deve estar a nossa preocupação com a glória de Deus. O que
devemos acentuar para os homens e para as mulheres que estão fora de
Cristo e para os pecadores do mundo atual não é, primariamente, o fato de
que eles são pecadores, e que são infelizes porque são pecadores, mas o fa-
to de que o pecado deles é uma agressão a Deus e uma difamação da gló-
ria de Deus. O nosso interesse pela glória de Deus deve vir antes do nosso in-
teresse pelo estado e condição do pecador. Isso foi verdade quanto ao nos-
911
so Senhor, e é Ele que nos envia”.

Jesus Cristo desafia a Igreja a assumir a sua identidade, não uma simples másca-
ra periódica: “Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe res-
taurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos
homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre

906
A.A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 223.
907
“Pois se homens e anjos juntassem sua eloquência em função deste tema, ainda assim
tocariam mui diminutamente em sua imensurabilidade” [João Calvino, Efésios, São Paulo: Pa-
racletos, 1998, (Ef 1.14), p. 39].
908
“Levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da
Glória. Quem é o Rei da Glória? O SENHOR, forte e poderoso, o SENHOR, poderoso nas batalhas.
Levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória.
Quem é esse Rei da Glória? O SENHOR dos Exércitos, ele é o Rei da Glória” (Sl 24.7-10). “Estêvão
respondeu: Varões irmãos e pais, ouvi. O Deus da glória apareceu a Abraão, nosso pai, quando esta-
va na Mesopotâmia, antes de habitar em Harã” (At 7.2). “Para que o Deus de nosso Senhor Jesus
Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele”
(Ef 1.17).
909
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 24.8), p. 536.
910
“Sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem co-
nhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (do/ca)” (1Co 2.8). “Meus irmãos, não tenhais a
fé em nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória (do/ca), em acepção de pessoas” (Tg 2.1). “E o
Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória (do/ca),
glória (do/ca) como do unigênito do Pai” (Jo 1.14).
911
D.M. Lloyd-Jones, Seguros Mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
2005 (Certeza Espiritual: Vol. 2), p. 20.
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um monte; nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no
velador, e alumia a todos os que se encontram na casa. Assim brilhe também a vos-
sa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem (do-
ca/zw) a vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.14-16).

A Igreja, como criação de Deus, é conclamada a viver de forma intencional para a


glória de Deus, sendo um sinal luminoso que aponta de forma efetiva para o Seu
Criador, a fim de que todos, por meio do nosso testemunho, possam glorificar a
Deus.

O modo como pregamos o Evangelho reflete o nosso conceito de Deus. Nada é


mais importante do que o caráter de Deus. Todavia, quando perdemos a dimensão
de Quem é Deus, as demais coisas são descaracterizadas; somente a compreensão
correta de quem é Deus pode conferir sentido à nossa existência e a todo o nosso
labor missionário. Diante da majestade de Deus todas as demais coisas tornam-se
912
aos nossos olhos, o que realmente são: pequenas. De fato: “Não há glória real
913
senão em Deus”. A perda da dimensão correta da Majestade de Deus, tem co-
mo causa primeira, o descrédito para com a Sua Palavra: quando não conhecemos
914
(cremos) nas Escrituras, também não conhecemos a Deus (Mt 22.29/Os 4.1,6).
Em 1996, um grupo de Evangélicos radicados nos Estados Unidos elaborou a Decla-
ração Teológica de Cambridge. Na Quinta Tese, lemos:

“Todas as vezes que a autoridade bíblica é perdida na igreja, Cristo é


despojado de seu lugar, o evangelho é distorcido, ou a fé pervertida, a
razão é uma só: nossos interesses substituíram os de Deus e estamos
fazendo seu trabalho à nossa maneira. A perda da centralidade de Deus
na vida da igreja de hoje é comum e lamentável. É esta perda que nos
permite transformar o culto em entretenimento, a pregação do evangelho
em marketing, a confiança em técnica, ser bom em sentir-se bem a
respeito de si mesmo e fidelidade em ser um sucesso. Como resultado,
Deus, Cristo e a Bíblia acabam significando muito pouco para nós e
permanecem muito inconsequentemente sobre nós.
“Deus não existe para satisfazer nossas ambições, desejos e apetites de
consumidores ou nossos interesses espirituais particulares. Devemos focar a
nossa adoração em Deus, ao invés de buscar na adoração a satisfação
de nossas necessidades pessoais. Deus é soberano na adoração; nós não

912
Comentando Dn 3.28 – quando Nabucodonosor admite que Sadraque, Mesaque e Abedenego
preferiram obedecer a Deus ao decreto real –, Calvino escreve: “Toda e qualquer pessoa que o-
lha para Deus, facilmente menospreza a todos os mortais e a tudo o que se afigura esplên-
dido e majestoso no mundo inteiro” [João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos,
2000, Vol. 1, (Dn 3.28), p. 228].
913
João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.17), p. 46.
914
“Respondeu-lhes Jesus: Errais, não conhecendo as Escrituras nem o poder de Deus” (Mt 22.29).
“Ouvi a palavra do SENHOR, vós, filhos de Israel, porque o SENHOR tem uma contenda com os ha-
bitantes da terra, porque nela não há verdade, nem amor, nem conhecimento de Deus. (...) O meu
povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento. Porque tu, sacerdote, rejeitaste o co-
nhecimento, também eu te rejeitarei, para que não sejas sacerdote diante de mim; visto que te es-
queceste da lei do teu Deus, também eu me esquecerei de teus filhos” (Os 4.1,6).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 219/233

o somos. Nossa preocupação absoluta deve ser pelo reino e a glória de


915
Deus, não por nossos impérios, popularidade ou sucesso”.

Portanto, o que anunciamos jamais será o Evangelho bíblico se consistir apenas


numa mensagem de alívio para as supostas necessidades do homem. Esta
concepção nos parece imperiosamente relevante. Quando proclamamos o
Evangelho, estamos glorificando a Deus por meio de nossa obediência ao Seu
mandamento de anunciar a mensagem de redenção a todos os homens. “O nome
de Deus nunca é melhor celebrado do que quando a verdadeira religião é
extensamente propagada e quando a Igreja cresce, a qual por essa conta é
916
chamada ‘plantações do Senhor, para que Ele seja glorificado’ [Is 61.3]”.

Contudo, devemos também ter em mente que o nosso propósito em assim fazê-lo
deve ser o de glorificar a Deus no anúncio de Sua mensagem redentiva. Deus é glo-
rificado não somente por intermédio dos que crêem, quando a Sua misericórdia res-
plandece, mas, mesmo através daqueles que rejeitam a mensagem, sendo glorifica-
917
da a sua paciência e justiça (Rm 9.22-24) que são tão santas como o seu amor e
misericórdia. Portanto, a Igreja de Deus, no seu ato essencial de proclamar as virtu-
des de Deus (1Pe 2.9-10), tem como objetivo final a Glória de Deus (Rm 11.36; 1Co
10.31). A Evangelização visa glorificar a Deus, através do anúncio da natureza de
Deus e de Sua obra eficaz efetivada em Cristo Jesus. Ousamos dizer, que a Evan-
gelização tem fundamentalmente como alvo final, glorificar a Deus; e Deus é glorifi-
cado através da salvação de Seu povo (Is 43.7; Jo 17.6-26; Ef 1.7/2Ts 1.10-12) e a
consequente confissão de Sua soberania (Fp 2.5-11). A glória de Deus é muito mai-
or do que a nossa salvação; mas, também sabemos que “a glória de Jesus é a
918
salvação de seus seguidores”.

O Espírito dirige a Igreja na glorificação de Cristo, ensinando-lhe a obediência


919
proveniente da fé. Para isto, temos no Filho o próprio paradigma a ser seguido:
Foi justamente na obediência perfeita ao Pai, que o Filho O glorificou. “Eu te glorifi-
quei (doca/zw) na terra, consumando a obra que me confiaste para fazer” (Jo 17.4).
Quando evangelizamos estamos revelando o nosso amor a Deus e ao nosso próxi-
mo, glorificando a Deus, sendo-Lhe obedientes na vivência de nossa natureza de
proclamação e serviço. “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é

915
Documento consultado em 08/11/07 no site: www.alliancenet.org
916
João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 102.21), p.
581.
917
“Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou
com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a
conhecer as riquezas da sua glória (do/ca) em vasos de misericórdia, que para glória (do/ca) preparou
de antemão, os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também
dentre os gentios?” (Rm 9.22-24).
918
William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, (Jo 17.6), p. 758.
919
“A principal obra do Espírito Santo é glorificar ao Senhor Jesus Cristo. Portanto, não have-
rá valor em nossas orações, se não crermos nEle, em Sua divindade singular, em Sua encar-
nação, nascimento virginal, milagres, morte expiatória, ressurreição e ascensão. O Espírito O
glorifica e, portanto, devemos crer nEle e ser ‘unânimes’ em nossa doutrina” [D. Martyn Lloyd-
Jones, A Unidade Cristã, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 72].
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 220/233

o que me ama” (Jo 14.21). A obediência é fruto da genuína fé. “Só o crente é o-
920
bediente, e só o obediente é que crê”. Na obediência a Cristo, a Igreja O glo-
921
rifica. O Espírito que cumpre Seu Ministério obedientemente (Jo 16.13-14), con-
922
duz a Igreja a ser a glorificação de Cristo em sua obediência (Jo 17.9,10).

Se pudéssemos imaginar na eternidade alguém perguntando sobre os frutos da


Obra do Pai, do Filho e do Espírito Santo, encontraríamos a resposta na indicação
jubilosa da Igreja de Deus, a qual Ele comprou com o Seu próprio sangue e
preservou até o fim (At 20.28/Is 43.7/Ef 1.3-14; 2.6,7). "A Igreja é o brilho mais
esplendente da sabedoria de Deus (...). A Igreja é a expressão final da
sabedoria de Deus, a realidade que, acima de todas as demais, capacita
923
até os anjos a compreenderem a sabedoria de Deus".

O Evangelho deve ser proclamado em sua inteireza a todos os homens e ao ho-


mem todo; a Teologia oferece solidez na transmissão desta verdade, mostrando
Quem é Deus e a real necessidade do homem. "Tudo o que as Escrituras dizem a
respeito do homem, e particularmente tudo o que elas dizem sobre a salva-
ção do homem, é afinal de contas para glória de Deus. Nossa teologia está
924
centralizada em Deus porque nossa vida está centrada em Deus".

Quando a evangelização transforma-se apenas em questão de estatística ―


número de membros, tamanho do edifício, arrecadação, relevância social das
pessoas que frequentam os cultos, etc. ―, há muito deixamos de compreender o
genuíno significado do Evangelho bíblico. A grandeza e importância da Igreja está
em Seu Senhor; as demais coisas são periféricas. A mensagem do Evangelho
propõe-se a anunciar a Deus na beleza de Sua santidade, sabendo que Deus será
glorificado através de nossa fidelidade à Sua Palavra.

O livro de Atos se constitui no maior relato da glorificação de Cristo pelo Espírito:


A expansão missionária e a edificação dos crentes. Quando cristãos sinceros
pregavam o Evangelho e, homens e mulheres eram transformados pelo seu poder,
sendo conduzidos a uma vida santa, Cristo estava sendo glorificado. E este ainda é
o modo efetivo de glorificar a Deus: obedecendo aos Seus mandamentos.

Nas páginas do Novo Testamento vemos que quando a liderança da Igreja de Je-
rusalém foi convencida por Pedro ― como este também o fora pelo Senhor ―, de
que a mensagem do Evangelho era para todos, sem exceção; com alegria glorifica-

920
Dietrich Bonhoeffer, Discipulado, 2ª ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1984, p. 25.
921
“Quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará
por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir. Ele me glori-
ficará (doca/zw), porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar” (Jo 16.13-14).
922
“É por eles que eu rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus;
ora, todas as minhas coisas são tuas, e as tuas coisas são minhas; e, neles, eu sou glorificado” (Jo
17.9-10).
923
D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas
Selecionadas, 1992, p. 77.
924
Cornelius Van Til, An Introduction to Systematic Theology, Phillipsburg, New Jersey: Presbyterian
and Reformed Publishing Co. 1974, p. 1.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 221/233

ram a Deus: “E, ouvindo eles estas coisas, apaziguaram-se e glorificaram (doca/zw)
a Deus, dizendo: Logo, também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimen-
to para vida” (At 11.18). Posteriormente, quando os gentios entenderam a mensa-
gem do Evangelho após a pregação de Paulo inspirada no profeta Isaías, relata Lu-
cas: “Os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam (doca/zw) a palavra do
Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At
13.48). Quando Paulo relata aos presbíteros de Jerusalém como Deus operara entre
os gentios por intermédio do seu ministério, “Ouvindo-o, deram eles glória (doca/zw)
a Deus e lhe disseram: Bem vês, irmão, quantas dezenas de milhares há entre os
judeus que creram, e todos são zelosos da lei” (At 21.20). Notemos que em todas
estas manifestações, Deus e a Sua mensagem é que eram engrandecidos: a glória
pertence unicamente a Deus!

Paulo no final da segunda carta aos tessalonicenses, roga àqueles irmãos que
conheciam o poder e glória do Evangelho: “Finalmente, irmãos, orai por nós, para
que a palavra do Senhor se propague e seja glorificada (doca/zw), como também
está acontecendo entre vós” (2Ts 3.1). A Igreja prega o Evangelho e ora para que
Deus, somente Deus seja glorificado por meio de sua missão. De fato, Deus o será
todas as vezes que a Igreja for-Lhe fiel.

Concluo este tópico com as contundentes palavras de R.B. Kuiper (1886-1966):

“A fé calvinista propõe o mais elevado objetivo da evangelização. E


não é a salvação de almas. Nem o crescimento da Igreja de Cristo.
Tampouco é a vinda do reino de Cristo. Todos estes objetivos da
evangelização são importantes, inestimavelmente importantes. Mas são
apenas meios para a consecução do fim para o qual todas as coisas
foram trazidas à existência e continuam existindo, para o qual Deus faz
tudo o que faz, no qual a história toda culminará um dia, e no qual estão
focalizadas todas as eras da eternidade sem fim – a glória de Deus. Em
resumo, de todos os cristãos, o calvinista tem de ser o mais zeloso pela
evangelização. É o que ele será, se for verdadeiramente calvinista – e não
925
só de nome”.

11.4. A Trindade e o Evangelho Proclamado:


926
11.4.1. AS INSONDÁVEIS RIQUEZAS DE CRISTO:

“A mim, o menor de todos os santos, me foi dada esta graça de

925
R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 149. Vejam-se também: R.B. Kuiper, Evangelização
Teocêntrica, p. 58-59; 90-91; Idem, El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 225-226; J.I. Packer, Evangeliza-
ção e Soberania de Deus, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 51ss.
926
Vd. D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangéli-
cas Selecionadas, 1992, especialmente, p. 53-55.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 222/233

927
pregar aos gentios o evangelho das insondáveis (a)necixni/astoj) riquezas
(plou=toj) de Cristo” (Ef 3.8).

O propósito não revelado de Deus e, da mesma forma, a Sua vontade revelada


no Evangelho, é por demais grandioso para poder ser plenamente compreendido e
“rastreado” por nós em toda a sua complexidade. O contraste deste conhecimento
em relação ao nosso é intensamente perceptível. Paulo extasiado com isso, em for-
ma de doxologia, resume: “Ó profundidade da riqueza (plou=toj), tanto da sabedoria
como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão ines-
crutáveis (a)necixni/astoj), os seus caminhos!” (Rm 11.33). O Evangelho revela
esta sabedoria que, por não ser compreendida por nós em nossa maneira limitada e
928
deturpada de pensar, soa como loucura (1Co 1.18-25). O Evangelho é o anúncio
da sabedoria de Deus em sua riqueza insondável.

1) A RIQUEZA DA ENCARNAÇÃO:

Paulo se considera um agraciado em poder anunciar o Evange-


lho aos gentios, levando a Boa Nova de Salvação a qual tem em seu conteúdo es-
929 930
sencial a incompreensível, inexaurível e inenarrável riqueza de Cristo. Não po-
demos pensar nesta insondável riqueza sem termos nossos olhos voltados para a
encarnação do Verbo; a perfeição única e inexplicável de Jesus Cristo, o Filho eter-
no de Deus que se encarnou para morrer pelo Seu povo, nos restaurando à comu-
nhão com Deus. Paulo fala de Cristo como o rico e glorioso mistério que agora foi
revelado aos gentios pelo Evangelho: “O mistério que estivera oculto dos séculos e
das gerações; agora, todavia, se manifestou aos seus santos; aos quais Deus quis
dar a conhecer qual seja a riqueza (plou=toj) da glória deste mistério entre os genti-
os, isto é, Cristo em vós, a esperança da glória” (Cl 1.26-27). Em outro lugar diz de
931
forma sublime: “Evidentemente, grande é o mistério da piedade (Eujsevbeia): Aque-
le que foi manifestado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos,
pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória” (1Tm 3.16). A nossa
relação correta com Deus e com o nosso próximo (este é o sentido bíblico da
palavra piedade) começa pela compreensão correta da grandeza do mistério da
encarnação. Calvino comentando esta passagem escreveu:

“A descrição mais adequada da pessoa de Cristo está contida nas pa-

927
*Rm 11.33; Ef 3.8.
928
“Enquanto o Senhor não os abrir, os olhos de nosso coração são cegos” [João Calvino, E-
fésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.16), p. 41].
929
A palavra aparece em três textos da LXX (Jó 5.9; 9.10; 24.34): “Ele faz coisas grandes e inescru-
táveis (a)necixni/astoj) e maravilhas que não se podem contar” (Jó 5.9). “Quem faz grandes coisas,
que se não podem esquadrinhar (a)necixni/astoj), e maravilhas tais, que se não podem contar” (Jó
9.10).
930
Stott faz boas analogias com a palavra grega (Ver. John R.W. Stott, A Mensagem de Efésios, São
Paulo: Aliança Bíblica Universitária, 1986, p. 84).
931
*At 3.12; 1Tm 2.2; 3.16; 4.7,8; 6.3,5,6,11; 2Tm 3.5; Tt 1.1; 2Pe 1.3,6,7; 3.11.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 223/233

lavras ‘Deus se manifestou em carne’. Em primeiro lugar, temos aqui uma


afirmação distinta de ambas as naturezas, pois o apóstolo declara que
Cristo é ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Em se-
gundo lugar, ele põe em evidência a distinção entre as duas naturezas,
pois primeiramente o denomina de Deus, e em seguida declara sua mani-
festação em carne. E, em terceiro lugar, ele assevera a unidade de sua
Pessoa, ao declarar que ela era uma e mesma Pessoa que era Deus e que
se manifestou em carne. Nesta única frase, a fé genuína e ortodoxa é po-
derosamente armada contra Ário, Marcião, Nestório e Êutico. Há forte ên-
fase no contraste das duas palavras: Deus e carne. A diferença entre Deus
e o homem é imensa, e todavia em Cristo vemos a glória infinita de Deus
unida à nossa carne poluída, de tal sorte que ambas se tornaram uma
932
só”.

2) A RIQUEZA DA MISERICÓRDIA DE DEUS:

Através do Evangelho Deus revela a riqueza de Sua


misericórdia em determinar salvar os pecadores, atraindo-os para Si. Paulo diz que
Deus é rico em sua bondade, tolerância e longanimidade visando conduzir os
homens ao arrependimento: “Ou desprezas a riqueza (plou=toj) da sua bondade, e
tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao
arrependimento?” (Rm 2.4). Na salvação do Seu povo Deus demonstra a riqueza de
Sua glória: “Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a
conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira,
preparados para a perdição,a fim de que também desse a conhecer as riquezas
(plou=toj) da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de
antemão” (Rm 9. 22-23).

Em Cristo temos de forma plena a riqueza da graça de Deus manifestada sobre o


povo de Deus: “5 nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de
Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, 6 para louvor da glória de sua
graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado, 7 no qual temos a redenção,
pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza (plou=toj) da sua
graça, 8 que Deus derramou abundantemente sobre nós em toda a sabedoria e
prudência” (Ef 1.5-8).

3) A RIQUEZA DO EVANGELHO E A IGREJA:

Paulo ora pelos efésios para que o “Pai da glória” lhes


concedesse a percepção correta do propósito glorioso de Deus para com a Sua
igreja: “Iluminados os olhos do vosso coração, para saberdes qual é a esperança do
seu chamamento, qual a riqueza (plou=toj) da glória da sua herança nos santos” (Ef
1.18).

932
João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 3.16), p. 100.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 224/233

A Igreja é o monumento que evidencia a riqueza da graça de Deus. A Igreja é o


resultado concreto da rica sabedoria e graça de Deus; somos o testemunho para to-
do o sempre desta graça. “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos
e pecados, 2 nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o
príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência;
3
entre os quais também todos nós andamos outrora, segundo as inclinações da
nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos, por
natureza, filhos da ira, como também os demais. 4 Mas Deus, sendo rico
(plou/sioj) em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, 5 e
estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, -- pela
graça sois salvos, 6 e, juntamente com ele, nos ressuscitou, e nos fez assentar nos
lugares celestiais em Cristo Jesus; 7 para mostrar, nos séculos vindouros, a
suprema riqueza (plou=toj) da sua graça, em bondade para conosco, em Cristo
Jesus” (Ef 2.1-7).

933
Na igreja vemos aspectos sublimes da sabedoria de Deus: Ela em sua nature-
za e mensagem testemunha a “multiforme sabedoria de Deus”. Quer aqui, quer na
934
eternidade a igreja permanecerá como testemunho, inclusive para os anjos, das
diversas perfeições de Deus que se agenciam em perfeita sabedoria para constituir,
santificar e preservar a igreja: “Para que, pela igreja, a multiforme (polu-
935
poi/kiloj) sabedoria de Deus se torne conhecida, agora, dos principados e potes-
tades nos lugares celestiais” (Ef 3.10).

Lloyd-Jones comenta: "A Igreja é o meio pelo qual a sabedoria se torna ma-
nifesta. A Igreja é uma espécie de prisma posto no caminho da luz para re-
partir o resplendor nas cores do espectro. (...) É através da Igreja, como um
meio, que os anjos têm recebido esta nova concepção da transcendente
glória da sabedoria de Deus. (...) A Igreja Cristã é mais maravilhosa do que
qualquer coisa visível na natureza. (...) Como membros do corpo de Cristo
somos o mais maravilhoso fenômeno do universo, a coisa mais admirável que
Deus fez. (...) A Igreja é o brilho mais esplendente da sabedoria de Deus. (...)
A Igreja é a expressão final da sabedoria de Deus, a realidade que, acima
de todas as demais, capacita até os anjos a compreenderem a sabedoria

933
A sabedoria de Deus consiste na escolha dos melhores meios para a consecução de Seus santos
propósitos. Outras definições: “A sabedoria de Deus é Sua capacidade de selecionar os me-
lhores meios para a obtenção do alvo mais elevado” [William Hendriksen, Romanos, São Pau-
lo: Cultura Cristã, 2001, (Rm 11.33), p. 510]. “A sabedoria fala sobre o arranjo e a adaptação
de todas as coisas para o cumprimento de seus santos propósitos” [John Murray, Romanos,
São José dos Campos, SP.: Fiel, 2003, (Rm 11.33-36), p. 469]. “Podemos definir a sabedoria de
Deus dizendo que é o atributo pelo qual Ele dispõe os Seus propósitos e os Seus planos, e
dispõe os meios que produzem os resultados que Ele determinou” (D. Martyn Lloyd-Jones, As
Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 73).
934
“A igreja (...) é um espelho no qual os anjos contemplam a portentosa sabedoria de
Deus, a qual anteriormente não conheciam. Contemplam uma obra totalmente nova para
eles, cuja forma estava oculta em Deus” [João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef
3.10), p. 94].
935
* Ef 3.10.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 225/233

936
de Deus".

A riqueza da glória de Deus se manifesta também em nossa cotidianidade; em


nossa manutenção e preservação. Paulo ora para que Deus segundo a riqueza de
Sua glória nos fortaleça: “Por esta causa, me ponho de joelhos diante do Pai, de
quem toma o nome toda família, tanto no céu como sobre a terra, para que,
segundo a riqueza (plou=toj) da sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos com
poder, mediante o seu Espírito no homem interior” (Ef 3.14-16). Do mesmo modo Ele
suplica para que Deus supra as necessidades da igreja de Filipos: “E o meu Deus,
segundo a sua riqueza (plou=toj) em glória, há de suprir, em Cristo Jesus, cada
uma de vossas necessidades” (Fp 4.19).

Deste modo, evangelizar envolve necessariamente o anúncio do santo, glorioso e


eterno propósito de Deus para o Seu povo através de Jesus Cristo. De fato, ser o
portador comissionado desta mensagem é uma graça concedida por Deus a todos
os santos. Podemos, portanto, dizer de forma alegre e comprometida como Paulo:
“A mim, o menor de todos os santos, me foi dada esta graça de pregar aos gentios o
evangelho das insondáveis riquezas de Cristo” (Ef 3.8).

937
11.4.2. A GLÓRIA DE DEUS E DE CRISTO:

“A primeira e maior verdade acerca


da salvação é que ela nos revela a
glória de Deus, a majestade, o
esplendor de Deus” – D.M. Lloyd-Jones,
O Supremo Propósito de Deus, São Paulo:
Publicações Evangélicas Selecionadas,
1996, p. 125.

“....O Evangelho da Glória de Cristo, o qual é a imagem de


Deus” (2Co 4.4). “.... O evangelho da glória de Deus” (1Tm 1.11).

Deus, o nosso Pai, é o Deus glorioso (Mt 6.9,13), Aquele que habita o céu. A gló-
ria de Deus é a beleza harmoniosa de Suas perfeições e da Sua obra salvadora; “é
938
a refulgência da plenitude dos Seus atributos”.

A glória de Deus é tão eterna quanto Ele o é. O Deus a Quem oramos é


eternamente o Deus da glória: A Ele pertencem “o reino, o poder e a glória para
sempre” (Mt 6.13).

936
D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas
Selecionadas, 1992, p. 76-77.
937
Vd. John Owen, A Glória de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1989, es-
pecialmente, p. 17ss; J.I. Packer, O Plano de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Seleciona-
das, (s.d.), especialmente, p. 19ss.
938
J. Ridderbos, Isaías: Introdução e Comentário, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1986, (Is
6.1-4), p. 94.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 226/233

Jesus Cristo, nas horas que antecediam a Sua auto-entrega em favor do seu po-
vo, ora ao Pai: “... Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o Filho te glo-
rifique a ti (...). Eu te glorifiquei na terra, consumando a obra que me confiaste para
fazer; e agora, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de
ti, antes que houvesse mundo” (Jo 17.1,4,5). O Deus Trino é o Senhor da glória. “O
grande desejo de nosso Senhor em toda a Sua vida na terra era glorificar Seu
939
Pai”.

A glória de Deus se revela na Sua criação e na Sua obra salvadora, através da


qual Ele redime o Seu povo. Portanto, nós podemos chamá-lo de Pai, porque Ele, na
manifestação da Sua glória, nos salvou. A Palavra de Deus nos diz: “Os céus pro-
clamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos” (Sl 19.1).
“Em suas obras há glória e majestade, e a sua justiça permanece para sempre” (Sl
111.3). Deus declara diretamente: “A todos os que são chamados pelo meu nome, e
os que criei para minha glória, e que formei e fiz” (Is 43.7. Vd. Ef 1.6,12).

Portanto, a nossa oração deve vir acompanhada previamente do senso de


adoração: Deus é o Senhor da glória; e de gratidão: a nossa salvação é através de
Sua glória e para a Sua glória.

A glória do Evangelho começa em Deus Pai. O Evangelho é glorioso porque ori-


gina-se e pertence a Deus. “... O evangelho da glória de Deus” (1Tm 1.11). O Evan-
gelho também é “da Glória de Cristo”, porque Jesus Cristo é Deus: “é a imagem de
Deus” (2Co 4.4). “O Evangelho não começa nem mesmo pelo Senhor Jesus
Cristo, começa por Deus o Pai. Sempre e em toda parte da Bíblia começa
por Deus o Pai, e nós devemos fazer o mesmo, porque essa é a ordem pre-
sente na Trindade santa e bendita: Deus o Pai, Deus o Filho, Deus o Espírito
940
Santo”.

1) A GLORIOSA SINGULARIDADE DA PESSOA E OBRA DE


CRISTO:

Uma das expressões mais completas das “insondáveis ri-


quezas de Cristo” é-nos manifestada no fato da encarnação do Verbo eterno de
Deus. Daí que o Evangelho é a Boa Nova da glória de Cristo e da glória de Deus:
Jesus Cristo é Deus. Em Cristo resplandece a Majestade Divina: “E o Verbo se fez
carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória
941
como do unigênito do Pai” (Jo 1.14). Somente Deus é glorioso.

939
D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
2005 (Certeza Espiritual: Vol. 1), p. 47.
940
D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, p. 45.
941
“Não há glória real senão em Deus” [João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998,
(1Tm 1.17), p. 46]. “Os filósofos pagãos não condenam toda ambição por glória. Entre os cris-
tãos, porém, quem quer que seja ávido por glória é com justa razão acusado de ser possui-
dor de fútil e louca ambição, porquanto se divorcia da genuína glória. Para nós só a glória
de Deus é legítima. Fora de Deus só há mera vaidade” [João Calvino, Gálatas, São Paulo: Pa-
racletos, 1998, (Gl 5.26), p. 173]. “Todas as glórias dos homens e dos anjos, colocadas em seu
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 227/233

O Evangelho nos enriquece. Jesus Cristo, o Senhor da glória, rico em Sua glória
942
eterna (1Co 2.8; Tg 2.1/Jo 17.1-5) fez-se pobre por amor do Seu povo a fim de
943
que fôssemos enriquecidos na plenitude de Sua graça: “Pois conheceis a graça
de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico (plou/sioj), se fez pobre por amor
de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos (ploute\w)” (2Co 8.9). Na
realidade, a Sua humilhação (encarnação e morte) e exaltação (ressurreição, glorifi-
cação e ascensão) não afetaram a essência da Sua natureza Divina. “Quando Ele
tomou sobre Si a forma de um servo em nossa natureza, Ele se tornou aquilo
que nunca havia sido antes, mas não deixou de ser aquilo que sempre tinha
944
sido em Sua natureza divina. Ele, que é Deus, não pode deixar de ser
Deus. A glória da Sua natureza divina estava velada, de forma que aqueles
que O viram não acreditaram que Ele era Deus. Suas mentes não podiam
entender algo que eles nunca haviam conhecido antes, que uma e a mes-
ma pessoa pudesse ser Deus e homem ao mesmo tempo. Todavia, aqueles
que crêem sabem que Ele, que é Deus, humilhou-se ao assumir a nossa natu-
945
reza, a fim de salvar a Igreja para a eterna glória de Deus”.

Uma pergunta que surge naturalmente é: por que era necessário que o Mediador
fosse Deus e homem? Não poderia haveria um outro mediador?

A) A NECESSIDADE DA DIVINDADE DO REDENTOR:

No Catecismo Maior de Westminster, na pergunta 38,


lemos:

“Por que era indispensável que o Mediador fosse Deus?”

devido lugar, abrem caminho à glória de Cristo, para que somente ela venha a brilhar aci-
ma de todos eles incomparavelmente e sem impedimento algum” [João Calvino, Efésios, São
Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.21), p. 47].
942
“Sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem co-
nhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória” (1Co 2.8). “Meus irmãos, não tenhais a fé em
nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória, em acepção de pessoas” (Tg 2.1). “Tendo Jesus falado
estas coisas, levantou os olhos ao céu e disse: Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o
Filho te glorifique a ti, assim como lhe conferiste autoridade sobre toda a carne, a fim de que ele con-
ceda a vida eterna a todos os que lhe deste. E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único
Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste. Eu te glorifiquei na terra, consumando a obra
que me confiaste para fazer; e, agora, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive
junto de ti, antes que houvesse mundo” (Jo 17.1-5).
943
“A encarnação – e o entendimento de seu propósito, a crucificação – é o clímax da
graça condescendente de Deus” [William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura
Cristã, 2004, (Jo 1.14), p. 117].
944
Ver também: William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, (Jo
1.14), p. 118.
945
John Owen, A Glória de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1989, p. 30.
Vd. Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 465.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 228/233

“R: .... para poder sustentar a natureza humana e guardá-la de cair sob
a ira infinita de Deus e o poder da morte; para dar valor e eficácia aos
seus sofrimentos, obediência e intercessão; e para satisfazer a justiça de
Deus, conseguir o seu favor, adquirir um povo peculiar, dar a este povo o
seu Espírito, vencer todos os seus inimigos e conduzi-lo à salvação eterna”.

De forma resumida, podemos dizer que a Divindade do Redentor era necessária


para que:

1) Pudesse cumprir perfeitamente a Lei: É impossível a qualquer homem, cumprir


totalmente a Lei de Deus (Rm 7.14-25).
2) Revelasse Deus e a Sua salvação aos homens: Em Cristo nós conhecemos o
Pai e temos a salvação eterna (Mt 11.27; Jo 1.18; 14.11-18/1Co 2.9-11).
3) Derrotasse definitivamente a Satanás, tirando de seu domínio os pecadores
946
escravizados (Hb 2.14-15; Jo 12.31; 16.11/Jo 14.30).
4) Suportasse o peso da culpa do pecado de Seu povo bem como a ira de Deus
que cairia sobre Ele, como representante dos eleitos, libertando, assim, os
Seus da maldição decorrente do não comprimento da Lei (Is 53.1-12; Mt
27.46; Gl 3.10-13).
5) Pudesse se constituir num caminho perfeito e imaculado, conduzindo o ho-
mem a Deus. Esta obra ninguém poderia fazer, nenhum dos filhos de Adão,
947
nem mesmo um anjo (Jo 14.6; 1Tm 2.5;1Pe 3.18).
6) Para que pudesse apresentar-Se como sacrifício perfeito e, aplicasse de forma
eterna os Seus méritos ao Seu povo eleito (Hb 7.3,24-28; 9.24-25).

B) A NECESSIDADE DA HUMANIDADE DE CRISTO:

Na pergunta 39 do Catecismo Maior de Westminster,


lemos:

“Por que era indispensável que o Mediador fosse homem?

“R: .... para poder soerguer a nossa natureza e possibilitar a obediência


à lei, sofrer e interceder por nós em nossa natureza, e solidarizar-se com as
nossas enfermidades, para que recebêssemos a adoção de filhos, e
tivéssemos conforto e acesso, com confiança, ao trono da graça”.

Seguindo a mesma linha de pensamento, podemos, resumidamente, dizer que a


humanidade de Cristo era necessária:

946
“Cristo enfrentou satanás face a face num combate singular, e o derrotou; na cruz Ele
cumpriu a promessa feita ao homem no princípio, quando foi dito a Adão que a semente
da mulher feriria a cabeça da serpente – isso estava no plano da salvação” [D.M Lloyd-
Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza
Espiritual: Vol. 1), p. 54-55].
947
Ver: João Calvino, As Institutas, II.12.1.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 229/233

1) Para ser um exemplo humano perfeito para os Seus discípulos (Mt 11.29; Jo
13.13-15; Rm 8.29; Fp 2.5-8; Hb 12.2-4; 1Pe 2.21; 1Jo 2.6).
2) Cumprisse o propósito de Deus para o homem em relação à Sua criação. O
homem ao pecar perdeu o domínio sobre a criação; Jesus Cristo demonstra
948
em Sua vida o domínio sobre ela (Ef 1.22; Hb 2.8-9).
3) Representar genuinamente o Seu povo – sendo o segundo Adão –, através de
quem Deus trata com os eleitos, tornando-se o único Mediador entre Deus e
os homens (Rm 5.15-19; 1Co 15.21-23; 46-49; 1Tm 2.5). Se Jesus veio salvar
os homens, teria que se tornar homem, não um anjo.
4) Para que estivesse sob a Lei, a fim de poder cumpri-la pelo Seu povo (Gl 4.4-
5).
5) Para que pudesse arcar moral, física e espiritualmente com as consequências
do pecado de Seu povo, já que o pecado trouxe graves prejuízos sobre estas
três áreas. Todavia, tinha que ser homem sem pecado para que pudesse
apresentar-Se a Si mesmo como oferta santa e imaculada (Hb 7.26-27; 9.14).
Desta forma, morresse pelos pecadores eleitos, visto que somente a carne
pode morrer (1Pe 1.18-20).
6) Para simpatizar com os Seus, já que Ele estaria sujeito às mesmas tentações.
(Hb 2.16-18; 4.15-16).
949
7) “Para ser o padrão de nosso corpo redimido”. A ressurreição de Cristo
revela o padrão do nosso corpo redimido para todo o sempre (1Co 15.21-23;
42-44; Cl 1.18).

C) A NECESSIDADE DAS DUAS NATUREZAS NUMA SÓ


PESSOA:

Em resposta à questão 40 do Catecismo Maior de


Westminster – “Por que era indispensável que o Mediador fosse Deus e
homem em uma só pessoa?”, responde:

“.... para que as obras próprias de cada natureza pudessem ser aceitas
por Deus a nosso favor e que nós confiássemos nelas como obras da
pessoa inteira”.

Era necessário que fosse homem par que levasse sobre si a culpa do pecado,
cumprindo o aspecto condenatório da Lei; e, ao mesmo tempo, que fosse Deus para
poder cumpri-la, suportando a justa ira de Deus, conferindo um valor eterno ao Seu
sacrifício (Hb 9.23-28).

João Calvino escreveu sobre isso:

“Visto, então, que Deus por Si só não poderia provar a morte, e que o
homem por si só não poderia vencê-la, Ele tomou sobre Si a natureza hu-

948
Cf. Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 446.
949
Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 446.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 230/233

mana em união com a natureza divina, para que sujeitasse a fraqueza


daquela a uma morte expiatória, e que pudesse, pelo poder da natureza
divina, entrar em luta com a morte e ganhar para nós a vitória sobre e-
950
la”.

Em outro lugar, tratando deste assunto, Calvino resume: "Pois foi necessário que
o Filho de Deus se tornasse homem, e ser um participante de nossa carne,
para que pudesse ser o nosso irmão: foi necessário que, pela morte, ele se
tornasse um sacrifício, para que fizesse com que seu Pai fosse propício a
951
nós". Daí toda a tentativa de satanás de obscurecer a pessoa de Cristo: “.... Não
há nada que Satanás mais tente fazer do que levantar névoas para
obscurecer Cristo; pois ele sabe que dessa forma o caminho está aberto
para todo tipo de falsidade. Assim, o único meio de manter e também
restaurar a doutrina pura é colocar Cristo diante de nossos olhos,
exatamente como Ele é, com todas as Suas bênçãos, para que Seu poder
952
possa ser verdadeiramente percebido”.

D) A UNIPERSONALIDADE DE CRISTO:

Os escritores do Novo Testamento, em nenhum momento


demonstraram estar preocupados com as implicações metafísicas (transcendentes)
concernentes à Pessoa de Cristo. Quando eles falam de Cristo, fazem-no preocupa-
dos em demonstrar que a divindade e a humanidade de Cristo são verdades que se
constituem em condição básica e essencial para a Sua obra expiatória (Rm 8.3; Fp
953
2.5-11). (Vejam-se, também: Jo 1.18; Cl 1.13-22; Hb 1 e 2; 4.4-5.10; 7.1-10.18;
1Jo 1.1-2.2).

Por “unipersonalidade” queremos dizer que Jesus Cristo mesmo tendo duas natu-
rezas, possuía apenas uma personalidade, a qual reunia perfeitamente as Suas du-
as naturezas, sem haver fragmentação no Seu comportamento. Jesus Cristo sempre
agiu como Deus-Homem. “O que importa é sustentar que todos e quaisquer
atos de Cristo são atos da única Pessoa do Verbo encarnado: mesmo na
sangrenta paixão e na morte é ilícito separar a natureza humana da Divi-

950
João Calvino, As Institutas da Religião Cristã, edição abreviada por J.P. Wiles, São Paulo: Publi-
cações Evangélicas Selecionadas, 1984, II.12, p. 182.
951
John Calvin, Commentary on the Epistle to the Colossians, Grand Rapids, Michigan: Baker Book
House, 1996 (reprinted), Vol. XXI, (Cl 1.22), p. 159.
952
John Calvin, Commentary on the Epistle to the Colossians, (Cl 1.12), p. 145-146.
953
“Porquanto o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando
o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com efeito, con-
5
denou Deus, na carne, o pecado” (Rm 8.3). “ Tende em vós o mesmo sentimento que houve tam-
6
bém em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser i-
7
gual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em seme-
8
lhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obedi-
9
ente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome
10
que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra
11
e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai” (Fp
2.5-11).
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 231/233

954
na”.

As Escrituras evidenciam a unipersonalidade de Cristo da seguinte forma:

1) Jesus Cristo fala de Si mesmo como uma única pessoa; não havendo o
intercâmbio entre um “Eu” e um “Tu” entre as duas naturezas (Jo 17.1,4,5,22,23).

2) Os pronomes pessoais atribuídos a Ele são sempre referentes a uma pessoa.

3) Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, não havendo uma pre-
ponderância do divino sobre o humano nem do humano sobre o divino. Não pode-
mos falar biblicamente – como muitas vezes somos tentados a pensar –, em Jesus
agindo, pensando e falando como homem em alguns textos e, em outros como
Deus. Jesus é o verbo de Deus encarnado que vive, sofre, morre e ressuscita como
tal. Jesus Cristo não tem personalidade fragmentada, sendo em alguns momentos
Deus e em outros homem. Por isso, os atributos da Sua divindade bem como de Sua
humanidade, são atribuídos a uma só Pessoa. Observem nos textos seguintes como
as expressões são usadas de forma intercambiável:

 Lc 1.43 – Mãe do Senhor.


 Lc 2.11 – Nasceu o Senhor.
Jo 3.13 – O Filho do Homem está aqui e no céu (Vd. Jo 1.18; 6.62).
At 3.15 – Mataram o autor da vida.
At 20.28 – Sangue de Deus.
 Rm 9.5 – Cristo, Deus bendito.
 1Co 2.8 – Crucificaram o Senhor da Glória.
 Gl 4.4 – O Filho foi enviado para nascer.
 Hb 1.1-2 – O Filho é herdeiro de todas as coisas.
 Cl 1.13-20 – “Nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino
do Filho do seu amor.... Ele é a imagem do Deus invisível.... havendo
feito a paz pelo sangue da sua cruz....”.
 Cl 2.8-9 – Em Cristo habita a plenitude da divindade.

Além dos textos citados, leiam também: Mt 1.21; Lc 1.31-33; Fp 2.6-11, entre
outros.

4) Todos os que se referiam a Jesus Cristo, faziam menção de apenas uma só


pessoa (Mt 16.16; 1Jo 4.2).

2) A GLORIOSA SINGULARIDADE DO EVANGELHO:

O Evangelho é glorioso porque reflete a glória do Pai, do


Filho e do Espírito Santo em Cristo, o Deus encarnado. Anunciar o Evangelho
significa proclamar que o Deus Trino é glorioso e que esta glória nós vemos no
unigênito do Pai. Sem a contemplação dessa glória jamais entenderemos o
Evangelho e, por isso mesmo, jamais seremos salvos.

954
G.C. Berkouwer, A Pessoa de Cristo, São Paulo: ASTE., 1964, p. 221.
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Percebam então, que a encarnação faz parte essencial do Evangelho porque,


sem este ato de Deus, jamais haveria salvação para nenhum de nós.

Ninguém pode glorificar o Filho sem glorificar o Pai e ninguém pode glorificar o
Pai sem glorificar o Filho. Ninguém pode dizer que crê em Deus em detrimento de
Cristo. A suposta fé em Deus sem o reconhecimento da divindade de Cristo é uma
grande e pecaminosa falácia. Não há outro caminho para o Pai senão através de
Cristo. Ele é o único mediador competente para nos aproximar definitivamente do
Pai. À indagação de Tomé, Jesus responde: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a
vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6). Paulo declara a unicidade de
Deus e do Mediador: “Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os
homens, Cristo Jesus, homem” (1Tm 2.5). “Sem Cristo, nunca veríamos a Deus
por nenhum momento quer aqui ou na eternidade (...). Somente Ele torna
955
conhecida a anjos e seres humanos a glória do Deus invisível”.

A glorificação começa pelo conhecimento salvador a respeito de Cristo. Isto


ocorre pela graça: “Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho,
senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o
956
quiser revelar” (Mt 11.27). Jesus Cristo glorifica o Pai (Jo 17.4) e o Pai glorifica o
957
Filho (Jo 17.5). O Espírito faz-nos confessar o senhorio de Cristo. “Por isso, vos
faço compreender que ninguém que fala pelo Espírito de Deus afirma: Anátema,
Jesus! Por outro lado, ninguém pode dizer: Senhor Jesus!, senão pelo Espírito
Santo” (1Co 12.3).

No Evangelho temos a maturidade da revelação de Deus iniciada na Lei: “A


glória da lei é abolida quando produz o evangelho. Assim como a lua e as
estrelas, ainda que elas mesmas brilhem e espalhem sua luz sobre todo o
orbe, todavia desvanecem diante do brilho mais intenso do sol, assim
também a lei, não obstante ser gloriosa em si mesma, não resplandece em
958
face da maior grandeza do evangelho”.
959
A glória de Deus é totalmente invisível a nós, até que resplandeça em Cristo.
“A glória de duas naturezas de Cristo numa única pessoa é tão grande que
960
o mundo incrédulo não pode ver a luz e a beleza que irradiam dela”. O
Evangelho consiste no anúncio da grandeza e majestade de Deus e como podemos
conhecê-Lo em Cristo Jesus.

A mensagem do Evangelho não permite sínteses ou adaptações: O Evangelho ou


é glorioso em Sua singularidade ou não é Evangelho. O Evangelho revela a glória de

955
John Owen, A Glória de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1989, p. 17.
956
“Eu te glorifiquei (doca/zw) na terra, consumando a obra que me confiaste para fazer” (Jo 17.4).
957
“E, agora, glorifica-me, (doca/zw) ó Pai, contigo mesmo, com a glória (do/ca) que eu tive junto de
ti, antes que houvesse mundo” (Jo 17.5).
958
João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 3.10), p. 72-73.
959
Vd. João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 1.3), p. 33-34.
960
John Owen, A Glória de Cristo, p. 24.
A Santíssima Trindade: Apontamentos Introdutórios – Rev. Hermisten – 28/02/13 – 233/233

Cristo: o Deus encarnado que deu a Sua vida pelo Seu povo a fim de que agora,
restaurado à comunhão com Deus pudéssemos viver para a glória de Deus. Quando
barateamos o Evangelho o estamos esvaziando do seu sentido glorioso e majesto-
961
so, o transformando em uma mensagem de auto-ajuda ou num atalho espiritual
para as pessoas se sentirem melhor, sem de fato resolverem seu verdadeiro pro-
962
blema: a relação correta com Deus. Portanto, não há autênticos substitutos para o
Evangelho; haverá sempre o perigo de substituir a verdadeira mensagem de salva-
ção proveniente do próprio Deus por nossos paliativos que apenas mascaram tem-
porariamente as nossas verdadeiras carências.

Quando Cristo voltar, só serão admitidos nas Bodas do Cordeiro, aqueles que
foram vestidos com as vestes da justiça de Cristo (Mt 22.1-14). Sem elas revelamos
apenas os trapos e imundícias de nossos pecados: “Mas todos nós somos como o
imundo, e todas as nossas justiças, como trapo da imundícia; todos nós murchamos
como a folha, e as nossas iniquidades, como um vento, nos arrebatam” (Is 64.6).

A pregação sempre envolve a proclamação da grandeza gloriosa das perfeições


de Deus. “Evangelismo sempre requer a pregação dos atributos de Deus (...).
A exaltação do caráter de Deus é essencial para que Deus possa ser
963
honrado em nossa pregação”, enfatiza Chantry.

O Evangelho é glorioso porque revela a Gloriosa perfeição de Deus manifestada


em Cristo. Não existiria Evangelho sem a encarnação: “A Encarnação, este
milagre misterioso do coração do Cristianismo histórico, é o ponto central do
964
testemunho do Novo Testamento”.

Lembremo-nos: “Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo e nela não


permanece, não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem assim o Pai,
como o Filho” (2Jo 9).

Maringá, 21 de janeiro de 2013.


Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

961
“A Bíblia não é um livro de auto-ajuda, antes é a Palavra de Deus para juízo e salvação,
um meio de graça que cria tanto o arrependimento quanto a fé” (Gene Edward Veith, Jr, De
Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 9).
962
“Ser salvo não é primariamente ser feliz, não é primariamente ter uma experiência; a es-
sência da salvação é que estamos na correta relação com Deus” (David M. Lloyd-Jones,
Crescendo no Espírito, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2006, p. 8).
963
Walter J. Chantry, O Evangelho de Hoje: Autêntico ou Sintético?, São Paulo: Fiel, 1978, p. 22.
964
Encarnação: In: J.I. Packer, Teologia Concisa, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 99.

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