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Uma perspectiva latino-

americana para as políticas


sociais: quão distante está o
horizonte?
A Latin American perspective for social
policies: how far is the horizon?

R esumo A bstract
Este artigo propõe-se a analisar as This article proposes to analyze social
políticas sociais na América Latina em suas policies in Latin America in their
determinações fundamentais operadas pela fundamental determinations as operated
ordem capitalista, a partir, porém, de um by the capitalist order, from an original
ângulo original: o que reconhece a angle: one which recognizes dependency
dependência como principal contradição as the principal determining contradiction
determinante dos problemas da região. Para of the region’s problems. To decipher the
decifrar as determinações fundamentais das basic determinations of the social policies
políticas sociais e sua viabilidade histórica and their historic viability in the context
no contexto dos arranjos político- of contemporary political-institutional
institucionais contemporâneos na América arrangements in Latin America, the
Latina, o referencial teórico-metodológico theoretical-methodological reference of
de análise deriva diretamente do pen- the analysis is derived directly from
samento de Marx. Nessa medida, a reflexão Marx’s thinking. To this degree, the
marxiana e o pensamento social latino- Marxist reflection and Latin American
Beatriz Augusto de Paiva
americano caminharam juntos com um social thought have proceeded together
amplo movimento político de índole e with a broad political movement of
conteúdo libertários, que encontrou nas libertarian content and temperament, Doutora em Serviço Social pela Pontifícia
formulações sobre a teoria da dependência which found in the formulations about the Univ. Católica de São Paulo-PUC/SP.
seu momento de maior conexão em termos theory of dependence their moment of Professora do Dep. de Serviço Social da
de práxis política. O caráter crítico desse greatest connection in terms of political Universidade Federal de Santa Catarina-
pensamento e sua vinculação com o praxis. The critical character of this UFSC.
marxismo foram fundamentais para thinking and its link with Marxism were
consolidá-lo como uma das melhores fundamental for consolidating it as one
Nildo Domingos Ouriques
tradições críticas para interpretar e, o que é of the best critical traditions to interpret
mais importante, transformar a realidade and, more importantly, transform Latin
latino-americana American reality. Doutor em Economia pela Univ. Nacional
Autónoma de México – UNAM.
Palavras-chave: América Latina, políticas Key words: Latin America, social policies,
sociais, Teoria Marxista da Dependência. Marxist Theory of Dependency. Professor do Dep. Economia da UFSC.
Coordenador do Observatório Latino-
Americano (OLA/UFSC).

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...no dia ou noite em que o esquecimento estale de maior conexão em termos de práxis política, já que, na
salte em pedaços ou crepite América Latina, o caráter crítico desse pensamento e sua
as recordações atrozes e as de maravilhamento vinculação com o marxismo foram fundamentais para
quebrarão as trancas de fogo consolidá-lo como uma das melhores tradições críticas para
arrastarão afinal a verdade pelo mundo interpretar e, o que é mais importante, transformar a rea-
e essa verdade será a de que não há esquecimento lidade latino-americana.
Mário Benedetti Em resumo, a análise marxista aqui realizada está isen-
ta do eurocentrismo que durante muito tempo também

E
ste artigo se propõe a analisar as políticas afetou as melhores contribuiçoes dos marxistas no Brasil,
sociais em suas determinações fundamentais mas também se verificou, ainda que em escala menor, em
operadas pela ordem capitalista, porém a par- outros países latino-americanos. Em conseqüência, o con-
tir de um ângulo original: o que reconhece a dependência ceito de dependência é central na elaboraçao de políti-
como principal contradição e problema da região, tema cas sociais como também na interpretação de qualquer
constante do programa de pesquisa do Observatório Lati- aspecto da vida social que se pretenda concreto relativa-
no-Americano (OLA/UFSC)1 . mente às codições de vida dos povos latino-americanos.
Assim, a perspectiva latino-americana aqui adotada
pretende demonstrar as razões pelas quais os modelos
teóricos e os arranjos institucionais de políticas públicas,
1 Determinações das políticas sociais no
que tentem reproduzir o modelo social europeu, malgrado capitalismo
sua inequívoca gênese história, serão sempre insuficien-
tes na explicação e no enfrentamento da questão social O primeiro registro histórico-conceitual a ser proposto
nos países latino-americanos. Neles a realidade singular, é a compreensão de que as políticas sociais – conforme
nos marcos da modernização capitalista, engendra padrões uma das formas típicas de intervenção estatal – são origi-
e regulações bastante distintas dos países centrais, distin- nárias não só das transformações determinadas genetica-
ção esta que repõem em escala ampliada as contradições mente no trânsito da fase concorrencial do capitalismo à
da sociedade de classes e, nessa medida, obstáculos e fase monopolista, ocorrido na passagem do século XIX para
desafios ímpares para luta pelos direitos sociais e sua tra- o XX, mas, também – em estreita relação com isso – pela
dução e termos de políticas públicas. dinâmica das lutas políticas que se expressam nos pro-
Nesta crítica das políticas sociais não se pode perder cessos de ampliação dos direitos sociais. Trata-se de um
de vista as tarefas que a construção da soberania dos processo capturado pelo melhorismo, nos termos que de-
povos e países da América Latina impõe: a plena sociali- signa Fernandes (1985, p. 49), ao questionar: “Uma nova
zação da riqueza e o exercício do poder, nos seus níveis utopia – a de uma sociedade civil igualitária sob o capita-
políticos, culturais, econômicos e sociais. Assim, nas tri- lismo? É evidente que não. O melhorismo só toma conta
lhas abertas pela luta dos povos latino-americanos em di- das cabeças radicais movidas pela fantasia”.
reção à emancipação humana, a análise crítica das políti- A captura da luta de classes pela lógica dos ganhos
cas sociais tem como horizonte a realização de uma práxis legais no campo das políticas sociais é fruto, portanto, de
teórica e política potencializada pelas estratégias um incipiente estágio da luta de classes, que precisa ser
organizativas populares de pertencimento a um projeto reconhecido como tal, ainda que a consciência liberal que
coletivo de classe, radicalmente democrático, portanto re- domina os intelectuais e parte importante dos movimentos
volucionário e anticapitalista (PAIVA, 2005, p. 116), sem- sociais tente escamotear tal renúncia como uma conquis-
pre orientada por seu compromisso emancipatório, liberador, ta da cidadania. A idéia de uma plenitude de direitos so-
pela práxis e pelas idéias que divulgavam e defendiam a ciais é totalmente improvável no capitalismo operado nos
liberação e constituição da Pátria Grande, para dizê-lo com países centrais, é ainda mais inconcebível nas condições
Bolívar, ou de uma Segunda Emancipação, com Mariátegui de periferia do sistema capitalista mundial. Como o poeta
(OURIQUES, 1995). já disse, “ninguém, ninguém é cidadão” 2 .
Para decifrar as determinações fundamentais das po- No que diz respeito às transformações processadas
líticas sociais e sua viabilidade histórica no contexto dos na fase inaugurada com a monopolização intensa do capi-
arranjos político-institucionais contemporâneos na Améri- tal, a luta por maiores lucros, a concentração de capital
ca Latina, o referencial teórico-metodológico de análise nas mãos de capitalistas mais poderosos, o aumento da
deriva diretamente do pensamento de Marx. Nessa medi- produtividade, assim como fatores conjunturais os mais
da, a reflexão marxiana e o pensamento social latino-ame- complexos, como a crise que eclodiu no primeiro pós-guer-
ricano caminharam juntos com um amplo movimento po- ra, foram alguns dos elementos que propiciaram a forma-
lítico de índole e conteúdo libertários, que encontrou nas ção dos grandes monopólios e sua disseminação em nível
formulações sobre a teoria da dependência seu momento global nesse estágio de mundialização do capital financei-

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ro, com poucos, porém grandes e poderosos, conglomera- talista, cujo eixo de articulação está constituído pelos países
dos de empresas monopolistas. Esta monopolização de- industriais e centrado então sobre o mercado mundial, a
monstrou que a possibilidade de um equilíbrio entre os produção latino-americana não depende, para sua reali-
múltiplos capitais singulares, no interior do capital em seu zação, da capacidade interna de consumo”. Esta deter-
conjunto – equilíbrio que antes era requisitado no nível minação específica será decisiva para o deciframento
do mercado, através da formação de uma taxa média de das contradições que cercam o campo das políticas so-
lucro -, tornou-se cada vez mais difícil. ciais na América Latina.
O movimento conflituoso e contraditório que coloca É necessário precisar as circunstâncias em que o Es-
permanentemente em xeque a hegemonia do capital em tado recorre a e aciona tais mecanismos, conectados com
seu conjunto3 exigiu a modificação da intervenção estatal a sofisticada estrutura de dominação econômica e política
na economia, no sentido de que fosse administrado o pro- burguesa. Uma das proposições mais importantes sobre
cesso de acumulação emergente e as implicações essa questão enfatiza que o ordenamento das estratégias
sociopolíticas que daí decorressem. O financiamento pú- do Estado obedece precisamente à necessidade de ga-
blico de parte do capital variável, para favorecer o incre- rantir a integração da força de trabalho na relação de
mento da acumulação privada, consistiu, então, em uma assalariamento, portanto submetida à ordem do capital.
engrenagem modelar no desenho do Estado capitalista, Nesse sentido, Netto (1992, p.27) observa que a marca
sobretudo dos países centrais nessa fase monopolista, desde essencial da funcionalidade da política social do Estado
o segundo quartel do século XX. burguês, em sua ordem capitalista monopólica, “[...] se
A política social, como mecanismo que socializa os expressa nos processos referentes à preservação e ao
custos da reprodução da força de trabalho para o conjun- controle da força de trabalho ocupada, mediante a regula-
to da sociedade, é uma dessas estratégias acionadas nes- mentação das relações capitalistas/trabalhadores”. Ain-
sa nova fase da regulação capitalista. Tornada não so- da aqui Marini (2000, p. 119) esclarece que “[...] o uso da
mente necessária, devido ao acirramento da luta de clas- força para submeter a massa trabalhadora ao capital di-
ses, mas sobretudo possível, com a expansão da extração minui à medida que passam a operar mecanismos econô-
da mais-valia, é fundamental para o aproveitamento pro- micos que consagram essa subordinação”. Entretanto,
dutivo do excedente econômico a ser valorizado. como se observará mais adiante, a expansão da moderni-
Em estudo clássico acerca da questão do aproveita- zação capitalista de tipo monopolista na América Latina
mento lucrativo do excedente de capital produzido, Baran apresentará uma aguda e singular contradição:
e Sweezy (1966, p. 223) revelam que existe uma incapa-
cidade crônica do sistema para absorver o excedente Chamada a coadjuvar a acumulação do capi-
que efetivamente produz, pois “Somente no capitalismo tal com base na capacidade produtiva do tra-
monopolista o ‘excesso’ surge como problema geral afe- balho nos países centrais, a América Latina teve
tando a todos, em qualquer época”. Para eles, um dos que fazê-lo mediante uma acumulação fundada
problemas em relação a esse excedente – ou seja, a dife- na superexploração do trabalhador. Nesta con-
rença para mais entre o que a sociedade produz e os cus- tradição radica-se a essência da dependência
tos dessa produção – incide sobre as decisões acerca do latino-americana (MARINI, 2000, p. 132).
seu aproveitamento: trata-se de impedir que ele fique sem
utilização produtiva, e, com isso, perca a capacidade de Tal configuração histórico-social sobre a qual se as-
abreviar as crises cíclicas do sistema capitalista. senta a economia exportadora será decisiva para explicar
Nas economias centrais, realizar lucrativamente o ex- a natureza específica das políticas sociais nos países lati-
cedente significa, dentre outros aspectos, manter o salá- no-americanos, no que desafia abertamente os esquemas
rio dentro dos parâmetros aceitáveis à reprodução do analíticos eurocêntricos predominantes, a partir dos quais
capital e, ao mesmo tempo, criar um mercado potencial sobressaem duas mistificações: a primeira, que aparece
onde o excedente possa ser realizado, nos limites objeti- como subproduto das ‘políticas e partidos progressistas’,
vos da ordem burguesa. Nessa perspectiva, as políticas reivindica políticas sociais de corte social-democrata, ilu-
sociais – fortemente inscritas na regulação salarial for- dindo o fato de que mesmo a melhor política social ainda
mal – desempenham um papel estratégico na manuten- está no âmbito de reprodução da força de trabalho como
ção dos esquemas de coesão social, mas também con- mercadoria, logo, aprisionada pela lógica da exploração e
tribuem para a organização do mercado capitalista, ao dominação burguesas. Tal perspectiva demanda a com-
favorecer a participação dos trabalhadores como con- posição de políticas sociais assentadas no direito ao tra-
sumidores. Essa é uma dinâmica inteiramente distinta balho, sem questionar que tal relação corresponde a um
daquela que se processará nas economias exportadoras estágio histórico de exploração do trabalho pelo capital
latino-americanas. Como mostra Marini (2000, p. 132), conseqüentemente avesso a qualquer pretensão
“nascida para atender as exigências da circulação capi- dignificante, como se costuma atribuir.

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A segunda mistificação é decorrente da primeira e Ao desvelar o caráter social subjacente ao processo


implica no reconhecimento de uma especificidade latino- de produção de mercadorias, Marx comprovou que o ca-
americana: na medida em que a maioria da força de tra- pital não é uma coisa material, mas sim uma relação soci-
balho4 na América Latina é submetida à superexploração, al que se concretiza através da interação com o outro
os direitos sociais a ela destinados só podem corresponder termo da relação, o trabalho assalariado. A articulação
a esquemas próprios. Ao contrário das configurações di- entre as políticas sociais públicas e o processo de regula-
retamente contributivas, conforme os modelos clássicos mentação da força de trabalho revela um aspecto funda-
das sociedades que experimentaram o pleno emprego ou mental da lógica capitalista, que é o controle das relações
que se encontram no centro do mercado mundial. A Amé- sociais de produção, seja no nível ideológico ou político,
rica Latina possui cerca de dois terços da sua força de seja no nível da dominação econômica em si. Como foi
trabalho submetida à informalidade, desemprego estru- sinalizado, existe um vínculo genético entre as políticas
tural alto, salários baixíssimos. sociais no capitalismo e os processos de legitimação que
Todavia, referenciar o estatuto político de direitos sociais o Estado e as classes dominantes programam junto às
para as massas populares, numa cena acadêmica e política classes assalariadas.
que só reconhece os direitos sancionados pelo mercado ca- As estratégias de intervenção do Estado, organizadas
pitalista, ou que estejam imbricados diretamente na dinâmica de acordo com as exigências da acumulação ampliada do
de reprodução do capital, não é uma empreitada simples. capital, não são alheias à dimensão de luta de classes em
Contraditoriamente, os especialistas nas políticas sociais, se- cada sociedade e em cada época determinada. É sabido
jam conservadores ou não, atribuem um desvalor às políti- que Marx, na célebre Introdução de 1857 (1974, p.109-
cas sociais voltadas aos segmentos populares não só por tra- 131) à Contribuição à Crítica da Economia Política,
zerem a maldição do assistencialismo ou do populismo (seja acentua o primado da produção sobre a circulação e a
lá o que for isso), sempre invocados quando se trata de des- distribuição, na totalidade concreta de um modo de produ-
tinar fundo público às massas expropriadas e superexploradas, ção dado. Porém, como pensador dialético, Marx insiste
mas também porque representam desperdícios, ilegítimas do não só na ação recíproca que existe entre essas três de-
ponto de vista do gasto social. terminações fundamentais da esfera da economia, mas
Para além da indignação aos padrões erráticos, pon- também no fato de que qualquer totalidade, implicando
tuais e alienadores que predominam nas políticas soci- múltiplas determinações, constitui uma unidade contradi-
ais – este não é o centro da questão – do que se trata é tória, sendo precisamente dessa contradição que resul-
refletir sobre a relação entre política social e reprodu- tam os processos dinâmicos de estruturação e de
ção da força de trabalho na América Latina, sem negli- desestruturação dessa totalidade.
genciar a natureza específica da dependência nos paí- Nessa totalidade contraditória há uma questão central
ses periféricos, de maneira a apontar os limites sobre que deve ser mencionada, ainda que rapidamente: em que
os quais se reproduzem as mistificações nas análises medida a discussão da propriedade e suas conexões com
correntes sobre o tema. a reprodução das relações de exploração podem ser refe-
rências fundamentais para se pensar e atuar no campo
das políticas sociais?
2 Políticas sociais e luta de classes Este questionamento não é desimportante nem
extemporâneo porque é voz corrente nos meios burocrá-
Um vínculo igualmente determinante das políticas so- ticos e acadêmicos pleitear para a política social um esta-
ciais, em parte contraditório ao anterior, corresponde ao tuto exclusivamente normativo, como mero mecanismo
seu registro histórico-político, no qual se observa que sua de intervenção estatal, exclusivamente técnico. Tal
implantação resulta também dialeticamente da luta dos distorção, obviamente, atende à lógica de esterilização da
trabalhadores por direitos sociais. Se o excedente econô- conflitualidade própria do antagonismo permanente entre
mico do capital sustentou o financiamento das políticas capital e trabalho, que ademais encontra na propriedade
sociais em seu estágio mais dilatado, certamente atendeu privada – fundiária e dos meios de produção – sua base
à intensa e demorada luta política dos trabalhadores. Essa material estrutural.
determinação política, e não apenas econômica, das po- Por outro lado, se a política social se inscreve como
líticas sociais já havia sido ressaltada numa importante um processo determinado pelos antagonismos fundamen-
(embora nem sempre lembrada) afirmação de Marx (1956, tais da sociedade capitalista (classe, gênero e etnia), é
p.354): “A lei da jornada de dez horas [a restrição legal da preciso reconhecer que alterações na correlação de for-
jornada de trabalho] não foi apenas um grande êxito prá- ças no âmbito das relações de reprodução social, decor-
tico; foi a vitória de um princípio; pela primeira vez, em rentes dos processos políticos concretos em torno dos di-
plena luz do dia, a economia política burguesa sucumbiu reitos sociais, não possuem capacidade orgânica de atuar
ante a economia política da classe operária”. decisivamente junto às estruturas, aos aspectos essenci-

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ais da luta de classes, em termos do combate à explora- tes institucionais do Estado burguês, encontra nas políti-
ção capitalista e às relações de propriedade e de poder cas sociais um campo impregnado de desafios, dos pon-
sobre as quais ela se assenta. “As relações de proprieda- tos de vista teórico e político. Assim, como explicar os
de privada são o trabalho, o capital e as interconexões processos de transformação social na América Latina,
entre os dois” diz Marx (2002, p.129), como explicitação desde a Revolução Cubana até a Revolução Bolivariana
da centralidade da propriedade tal qual mediação particu- na Venezuela, sem o exame acurado crítico das políticas
lar na totalidade do processo de produção capitalista. sociais em sua formação latino-americana?
Mesmo que pontualmente, a remissão a essa análise Nessa medida, a natureza orgânica das políticas sociais
torna-se valiosa para auxiliar na recomposição das con- para a funcionalidade da ordem capitalista não lhe esvazia
tradições que perpassam a relação entre as esferas da o potencial estratégico, na condição de importante suporte
produção e da reprodução social da riqueza e da pobreza, do processo de saturação das contradições econômicas e
cenário concreto que estabelece os parâmetros de políticas presentes na sociedade. É nessa dimensão que as
regulação do conflito entre capital e trabalho, na forma de políticas sociais, embora incapazes de portar por si sós a
políticas sociais. A mútua interconexão entre as duas di- envergadura necessária para processar a ultrapassagem
mensões do processo de valorização encontra, pois, na do estatuto da propriedade privada, revelam-se como me-
manutenção das relações de propriedade na sua forma diações fundamentais para a luta, no âmbito do reconheci-
capitalista assim privada, a demarcação objetiva para sua mento progressivo dos direitos sociais dos trabalhadores.
reprodução. Essa passagem de Marx (2002, p.138-9) é Embora não apareça como conflito direto entre capital
elucidativa a esse respeito: e trabalho, o que está em jogo é o próprio estatuto de pro-
priedade privada, sobre o qual são praticadas e sanciona-
A propriedade privada material, imediatamente das as regulações econômicas da produção e acumulação
perceptível, é a expressão material e sensível da capitalistas. Assim, nos é facultado dizer que se põem as
vida humana alienada. O seu movimento – a seguintes alternativas: ou 1) as transformações ocorridas
produção e o consumo – é a manifestação sen- no processo distributivo são minimizadas ou abandonadas,
sível do movimento de toda a produção anteri- restabelecendo-se o primado exclusivo da lógica da produ-
or, quer dizer a realização ou realidade do ho- ção capitalista; ou 2) essas transformações da distribuição
mem. A religião, a família, o Estado, o Direito, a permitem uma ruptura com essa lógica, criando as condi-
moral, a ciência, a arte, etc., constituem apenas ções para a emergência de um novo modo de produção.
modos particulares da produção e submetem-se Mas não se trata de acatar essa polarização binária como
à sua lei geral. A eliminação positiva da propri- únicos caminhos de enfrentamento da luta no campo do
edade privada, tal como apropriação da vida acesso à riqueza social. Talvez não seja impróprio dizer que
humana, constitui, portanto, a eliminação posi- também Trotski (apud CHESNAIS, 1999, p.10) chegou a
tiva de toda a alienação [...] à sua existência reconhecer a dimensão político-institucional da luta operá-
humana, ou seja, social. ria no jogo democrático, insistindo na qualificação dessa
conforme um momento importante na construção da de-
Não há ilusões quanto à impossibilidade ou incapacida- mocracia operária no interior do Estado capitalista:
de de alteração do estatuto de propriedade privada no con-
texto da institucionalidade burguesa, ou seja, da organiza- [...] Durante várias décadas, no interior da de-
ção dos meios de produção sobre o princípio da proprieda- mocracia burguesa, servindo-se dela e ' lutando
de socializada. Isso demarca um limite intransponível ao contra ela', os operários edificaram as suas for-
potencial transformador das políticas sociais, aprisionadas tificações, suas bases, seus focos de democracia
que estão ao âmbito das relações sociais de reprodução proletária: sindicatos, partidos, clubes de edu-
capitalista. Porém, tal limite não invalida a contraditoriedade cação, organizações esportivas, cooperativas,
que a disputa política entre as classes sociais expressa em [...] bases de apoio da democracia ao proletari-
torno dos processos de expansão dos direitos sociais e das ado para a via revolucionária (grifo nosso).
conseqüentes respostas que o Estado elabora em termos
do enfrentamento da questão social nos países da região. Igualmente importante, ao se pretender atingir um grau
Logo, a impossibilidade de se alterar o estatuto de pro- maior de concreticidade, é determinar a lógica da relação
priedade por meio das medidas de políticas públicas não entre o Estado e a sociedade civil, naquele contexto político
suprime o potencial político do processo de disputa decor- mais abrangente e mais concreto no qual as classes sociais
rente da luta pelos direitos sociais para as maiorias. O fundamentais, através do conflito político, articulam-se ten-
protesto social em curso na região, como resposta ao con- do em vista o enfrentamento das questões decisivas, que
flito aberto das maiorias exploradas com o capital pelo certamente surgem na esfera da produção e reprodução
acesso à riqueza socialmente produzida, dentro dos limi- das relações sociais. Como Marx (1956, p.35) observou:

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É preciso distinguir sempre entre as mudanças mecanismos operados no âmbito do processo de produ-
materiais ocorridas nas condições econômicas ção de mais-valia, a partir dos quais pode inferir sobre a
de produção e que podem ser apreciadas com a especificidade das políticas sociais na América Latina.
exatidão própria das ciências naturais, e as Inscritas como uma estratégia potente de regulação
formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas política do sistema capitalista, as políticas sociais possuem
ou filosóficas, numa palavra, as formas ideoló- na realidade latino-americana um conjunto de característi-
gicas em que os homens adquirem consciência cas e determinações absolutamente específicas, delineadas
desse conflito e lutam para resolvê-lo. pela sua formação social de tipo capitalista nos marcos do
subdesenvolvimento, que, mais do que em qualquer outro
Cabe ressaltar que esse tipo de ação do Estado está contexto, desnudam os limites das soluções reformistas e
condicionado não só pelo que Marx definiu como “mu- pseudo-integradoras, nos moldes do que hoje se atribui às
danças materiais ocorridas nas condições econômicas de mal denominadas políticas de “inclusão social”.
produção”, mas também pelo desenvolvimento das lutas No Brasil, e na América Latina em geral, as históricas
de classes, pelo movimento social organizado, pelas dis- estruturas de poder político e econômico estabeleceram
putas dos partidos no âmbito da implementação dos perti- padrões extremamente injustos e assimétricos de usufru-
nentes interesses de classe e, complementarmente, pela to da riqueza, além de processos cada vez mais adversos
adoção das regras, medidas e dinâmicas socioinstitucionais, de acesso ao trabalho. No caso das formações sociais
através das quais se estrutura o regime político – demo- periféricas do sistema capitalista mundial, as modalidades
crático ou não – de um país. Em suma, foi o que Marx de acumulação e de exploração da força de trabalho so-
chamou de “formas ideológicas” (jurídicas, políticas, etc.), brepõem novas contradições à já conhecida impossibili-
nas quais os homens e mulheres tomam consciência e dade do capitalismo de organizar de forma clássica os
encaminham a solução dos conflitos econômicos. mercados – com acesso quase-pleno ao trabalho e certo
Desta forma, cabe nível de renda – na pro-
pensar as políticas soci- porção de seu desenvol-
ais para além do horizonte ... a atual fase de acumulação de vimento, reproduzindo em
da mera estratégia de escala crescente a ten-
acomodação de conflitos capital na periferia capitalista latino- dência ao pauperismo.
ou caridade social, o que Marini (2000, p. 97) cap-
requer referenciá-las no americana indica de maneira clara que tou com precisão esta ca-
processo de disputa polí- racterística do capitalis-
tica pelo excedente eco- o mercado interno perde dinamismo mo na América Latina:
nômico real pelas mas-
sas historicamente expro- para o mercado externo, razão pela O desenvolvimen-
priadas, de maneira que to dessa contradi-
as políticas sociais não qual os direitos sociais são ção essencial do
possibilitem somente re- capitalismo brasi-
duzir as manifestações considerados como “custos” e leiro o leva a mais
mais agudas da pobreza, total irracionali-
através da ampliação dos necessitam, portanto, desaparecer. dade, isto é, ex-
serviços sociais básicos pandir a produ-
e do seu acesso, mas, ção, restringindo
sobretudo, permitam que cada vez mais a
“[...] a política social torne-se um instrumento de transfor- possibilidade de criar para ela um mercado naci-
mação social que mobiliza e organiza as massas a partir de onal, comprimindo os níveis internos de consumo
seus interesses mais fortes” (OURIQUES, 2005, p.140). e aumentando constantemente o exército industri-
al de reserva.
3 Dependência e políticas sociais na América Este é um elemento básico da lógica de modernização
Latina capitalista na América Latina5 : a forte e contraditória re-
lação de subordinação com o mercado externo. Mesmo
Assim, ao questionar a densidade político- no Brasil, onde o desenvolvimento capitalista atingiu está-
emancipatória das políticas sociais, na sua condição de gio mais avançado, quando comparado aos demais paí-
mecanismo básico de distribuição das riquezas produzi- ses, as tendências para o fortalecimento de uma econo-
das coletivamente, torna-se imprescindível a crítica dos mia exportadora confirmam o que tem sido uma regra

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muito mais intensa nos países de desenvolvimento relati- A diferença do que acontece nos países capita-
vo menor, como os centro-americanos, por exemplo. Em listas centrais, onde a atividade econômica está
suma, a atual fase de acumulação de capital na periferia sujeita à relação existente entre as taxas inter-
capitalista latino-americana indica de maneira clara que o nas de mais-valia e de investimento, nos países
mercado interno perde dinamismo para o mercado exter- dependentes o mecanismo econômico básico
no, razão pela qual os direitos sociais são considerados deriva da relação exportação-importação: ain-
como “custos” e necessitam, portanto, desaparecer6 . da que se obtenha no interior da economia, a
De partida os países ingressaram no circuito capitalis- mais-valia se realiza na esfera do mercado ex-
ta internacional em condições de inferioridade competiti- terno mediante a atividade de exportação, e se
va evidentes, e até hoje insuperáveis, não somente pela traduz em receitas que se aplicam, em sua mai-
tardia modernização, com reduzido alcance no desenvol- or parte, em importações. A diferença entre o
vimento das forças produtivas (a partir da década de 1930), valor da exportação e das importações, isto é,
mas pela conseqüentemente atrasada participação no o excedente aplicável, sofre, pois, a ação direta
mercado mundial. A alternativa adotada pelas classes do- de fatores externos à economia nacional
minantes latino-americanas para compensar esse déficit (MARINI, 1999, p.115).
tem sido a da superexploração do trabalho, com a intensi-
ficação dos processos de extração de mais-valia (na sua No atual ciclo de dependência, o endividamento público
forma absoluta e relativa combinadas e o fundo de acu- vem a se somar como elemento de dominação burguesa
mulação) possíveis, sobretudo, pelo rebaixamento salarial junto ao Estado latino-americano, intensificando a captura
e pelo elevado índice de desemprego e subemprego. dos governos aos interesses da aristocracia financeira,
Esse modelo econômico – periférico e dependente – que, a partir dos problemas da acumulação, tiveram a ca-
revela a situação do país e da região: a classe trabalha- pacidade de “[...] avançar ainda mais na transformação da
dora na América Latina (que seria o sujeito de direitos profunda crise social em uma necessidade de Estado”
num país central) é composta por um expressivo contin- (OURIQUES, 2001, p. 36). É por esta razão que “[...] a cada
gente de trabalhadores informais e de desempregados, nova tentativa de ‘estabilizar a economia’ novas dívidas são
para os quais não há sequer vínculo salarial formal nem incorporadas pelo Estado, aprofundando a dependência e
muito menos acesso à proteção social, decorrentes da impedindo-o de praticar políticas sociais. Com efeito, estas
sociedade salarial. Enfim, para a grande maioria da po- perderam sentido em função da opção recolonizadora da
pulação, pobreza e miséria vêm acompanhadas da omis- elite na América Latina” (OURIQUES, 2001, p. 38).
são do Estado, expressa, sobretudo, na ausência de polí- A partir da crítica marxista, iluminada pela teoria da
ticas sociais, ou, na maioria das vezes, num tipo determi- dependência, um núcleo de determinações ganha enorme
nado de política social, cujo horizonte não pode ser pre- relevância, em função da natureza da extração da mais-
tensioso em termos sociais e políticos e no qual todo ra- valia por meio da superexploração da força de trabalho.
dicalismo deve ser combatido, seja em termos da com- O alcance e o escopo das políticas sociais são restringi-
posição do gasto social seja em função da dimensão dos por propósitos sensivelmente distintos das políticas
emancipadora que elas poderiam conter. Para ir mais sociais nos países centrais. Como afirma Marini (2000, p.
longe nesse quadro, deve-se lembrar que o atual estágio 134), “Na economia exportadora latino-americana, as coi-
de produção e de acumulação de riquezas para a região, sas se dão de outra maneira. Como a circulação se sepa-
conforme diretrizes do FMI, é em si mesmo a principal ra da produção e se efetua basicamente no âmbito do
razão do empobrecimento e aumento dos processos de mercado externo, o consumo individual do trabalhador não
desigualdade social. O desenho das políticas sociais su- interfere na realização do produto.”
bordinadas a esta lógica reproduz igualmente as orienta- Assim, as sucessivas ondas modernizantes impulsiona-
ções desde fora, e o esboço de proteção social permitido das de fora para dentro e aplicadas sem reservas a partir do
não vai além das ações focalistas e pontuais somente Estado latino-americano não somente são incapazes de re-
ofertadas nas situações extremas. solver os problemas da desigualdade e da injustiça, senão
A incipiência dos direitos sociais, diferentemente do que são precisamente as causas pelas quais estas caracte-
que se tem habitualmente considerado como decorrente rísticas se perpetuam sem solução definitiva em curto prazo.
das restrições orçamentárias e da sua institucionalidade
burocratizante, ou como produto da incapacidade política
dos povos latino-americanos de defenderem seus interes-
4 O horizonte da latinoamericanização das
ses coletivos, encontra-se no centro mesmo da luta de políticas sociais
classes, mas com uma dimensão adicional. A construção
de políticas sociais nos Estados latino-americanos encon- Pode-se dizer que está em curso um importante pro-
tra-se obstaculizada pela perpetuação da dependência: cesso de mobilização coletiva, com altos níveis de

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radicalização política, em busca da criação de um regime ção do gasto social público dos países latino-americanos,
de propriedade social e coletiva. como Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
O novo cenário latino-americano oferece fortes indíci- e Banco Mundial. Tanto o Programa Nacional de
os de nossa hipótese, pois, a partir dos protestos popula- Solidaridad (Pronasol), no México, como o Programa Co-
res, que em dezembro de 2001 permitiram uma saída po- munidade Solidária, no Brasil, são exemplos desta orien-
pular à crise Argentina, assistimos na região à ascensão tação. Levados a cabo ao longo dos anos 90, produziram
da mobilização de massas das classes subalternas em um alto custo para a sociedade, pois o reverso da moeda
defesa de melhores condições de vida e trabalho. Logo, da participação tão exaltada era a desresponsabilização
foi possível observar que no Equador, na Bolívia, na estatal e a precarização dos serviços básicos, relegados
Venezuela, entre outros países, esta decidida atuação em à esfera da solidariedade. Esta, não se pode esquecer, era
defesa de direitos básicos superou o tradicional limite es- invocada magicamente, ainda que se apresentasse como
tabelecido pelas políticas sociais e exigiu uma disputa muito uma solidariedade sem sujeitos e sem projetos, que enco-
mais clara pelo excedente econômico. É por esta razão bria a reedição de potentes mecanismos de subalternização
que governos, como os dos presidentes Evo Morales ou das populações e dos trabalhadores sociais ali atuantes.
Hugo Chávez, encabeçaram o protesto popular e exigi- Está inaugurada, por outro lado, o reverso desta
ram um novo patamar de política social onde a proprieda- neofilantropia transclassista. O momento da América
de privada – inicialmente a estrangeira – e os recursos Latina hoje, como propõe, por exemplo, o governo
oriundos da propriedade estatal sobre recursos naturais, bolivariano da Venezuela é “Queremos acabar com a po-
configuram um novo ponto de partida para novas políticas breza? Demos poder aos pobres” (FRÍAS, 2004).
sociais. Observe-se o contraste com a situação brasileira O povo em luta, vivendo o curso de socialização da po-
onde a economia exportadora ganhou legitimidade social lítica numa dinâmica revolucionária, malgrado todas as
que se expressa no orgulho de superávits comerciais fan- distorções que são atribuídas ao processo venezuelano, pres-
tásticos os quais, não obstante, não permitem volume maior supõe a população efetivamente organizada, que reivindica
de recursos para políticas sociais. Quando somamos o su- e toma, de forma protagônica, as decisões mais fundamen-
perávit comercial aos inéditos superávits fiscais, observa- tais, com respostas decisivas do governo bolivariano.
mos que a soma de recursos no Brasil é muito maior do
que em qualquer país latino-americano, incluindo aqui os Esta advertência é importante porque em gran-
que se beneficiam do aumento dos preços de petróleo. de medida as críticas ácidas ou mesmo certas
Sem embargo, no Brasil, a lógica das migalhas dá o tom desconfianças contra o processo liderado pelo
das políticas sociais. Presidente Hugo Chávez Frias, decorre deste
O movimento popular ainda não se deu conta do fato fato elementar: para democratizar o Estado
de que a conjuntura econômica e o ciclo dos negócios venezuelano, as forças populares deverão con-
permitem, e inclusive exigem, um novo nível de combate quistar maior grau de autonomia nacional [...].
em defesa de seus direitos. Afinal, nenhuma autoridade Esta condição geral a todo processo de demo-
pode alegar que no Brasil faltam recursos para atender cratização passava, nas condições específicas
demandas de habitação, assistência social, saúde ou edu- da Venezuela, pelo controle presidencial do ex-
cação. Trata-se, aqui, de enfrentar o limite político dos cedente econômico, que nos anos anteriores
movimentos sociais e sua timidez ideológica e organizativa havia sido seqüestrado pela elite nacional/in-
para enfrentar o caráter de classe do Estado e as limita- ternacional. [...] O ponto central é que na
ções políticas de um governo que atende prioritariamente Venezuela a ainda modesta política de subsídi-
a valorização do capital. os realizada pelo atual governo confere senti-
Se preferirmos examinar mais de perto as experiênci- do de pátria a milhões e torna a disputa pelo
as organizadas diretamente no campo das políticas soci- excedente real e favorável às classes populares
ais, um dado precioso precisa ser aferido. Trata-se da (OURIQUES, 2005, p. 138,140).
experiência de organização do protagonismo popular, na
perspectiva de socialização das estruturas de poder políti- É inquestionável que as políticas sociais na Venezuela,
co, capazes de afetar, em favor das maiorias, as decisões por meio das misiones, estão não só reduzindo a pobreza,
vitais no espaço dos direitos sociais, para muito além do mas subsidiando uma nova práxis política, onde a popula-
que se tem pleiteado como participação social. ção é protagonista da construção de políticas públicas, muito
As estratégias participacionistas, sabemos, por si só, além dos tradicionais direitos alcançados pela via do mer-
não são portadoras de capacidade transformadora, até cado capitalista e sancionados pelo Estado burguês.
porque encontram uma confortável acolhida por parte das A combinação entre soberania popular e a luta política
agências burocráticas estatais e dos organismos multila- radical pela justiça social, sob a salvaguarda do Estado, se
terais que se ocupam de influir na orientação e composi- este for efetivamente democrático, anunciam pilares vigo-

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174 Beatriz Augusto de Paiv
Paivaa e Nildo Domingos Ouriques

rosos sobre os quais se ergue o protesto social e os movi- Resignação e renúncia na ação política governamen-
mentos organizados hoje na América Latina. Nesta medi- tal, para atender o poder das elites, nos idênticos termos
da, não se espera, nessa saturação do interesse público jun- em sempre se beneficiaram na América Latina, nada mais
to ao Estado e à sociedade, que se diluam as fronteiras e se é do que a adesão aberta e consciente ao projeto burguês,
desmobilize a competência da sociedade para fomentar seus à dominação do capital. No território da práxis política, ao
organismos de criação de projetos societários e de governo eleito com e por causa do apoio das classes su-
hegemonia, nem muito menos se pretende assumir respon- balternas não cabe outra exigência: ser radicalmente de-
sabilidades governamentais no campo das políticas públi- mocrático e, assim, contribuir na luta revolucionária e
cas e da segurança da nação. Ao contrário, anticapitalista dos povos latino-americanos.

Revigorar a capacidade de controle social e de Recebido em 02.05.2006.


contestação política, que tão bem caracterizam Aprovado em 01.06.2006.
a atuação dos movimentos populares e dos insti-
tutos de organização classista e partidária, é o
que se pretende com a publicização dos meca-
Referências
nismos da política formal, como momento de sín-
tese política dos vários organismos democráti- BARAN, P.; SWEEZY, P. Capitalismo monopolista. Rio de
Janeiro: Zahar, 1966.
cos de base, local de resistência contra
burocratização e ocupação corrupta e clientelista FRÍAS, H. C. Reunião de Chefes de Estado Convocada pelo
do Estado. Um dos desafios da democracia de Presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva. Nações Unidas,
massas é, assim, resistir aos perigos da involução set. 2004. Mimeografado.
burocrática, contra os processos degenerativos CHESNAIS, F. Introdução geral. In:______. (Coord.). A mun-
do autoritarismo sempre latente do patriarcado dialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã,
burguês (PAIVA, 2005, p.125) 1999, p. 11-33.
FERNANDES, F. Nova República ? Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
Os mecanismos de desmobilização e de subalternização,
MARX, K. Manuscritos econômicos e filosóficos. São Paulo:
que descredenciam a socialização do poder junto aos seg- Editora Martin Claret, 2002.
mentos populares, são fartamente conhecidos. Entretan-
to, um projeto democrático-radical deve insistir na partici- MARX, K; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Revisão
pação popular como eixo da política pública, sem a qual da tradução e prefácio de José Paulo Netto. São Paulo: Cortez, 1998.
não se opera a ruptura com a lógica que desabilita o cará- ______. Introdução à crítica da economia política. In: Os pen-
ter protagônico das massas e que dá sustentação à domi- sadores. São Paulo: Abril Cultural, v.XXV, 1974.
nação de classes. ______. Manifesto de lançamento da Associação Internacional
Por esta razão, é desanimadora a constatação da timi- dos Trabalhadores. In: ______. Obras Escolhidas. Rio de Ja-
dez da política social do governo Lula, onde o tema da neiro: Vitória, v. 1, 1956.
pobreza, apartado da sua dimensão estrutural, permanece MARINI, R.M. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes, 2000.
confinado como um problema da esfera do consumo e da
estrutura familiar. Por mais que a pobreza seja aguda e ______. Subdesenvolvimento e revolução. In: BARSOTTI, P.;
PERICÁS, B. América Latina. História, idéias e revolução. São
na medida em que é uma questão explosiva, o melhor
Paulo: Xamã/NET, 1999.
mesmo, ao que parece, é esterilizá-la, sobrepondo ações
diversas e pulverizadas, que não atacam a raiz da questão NETTO, J. P. Prólogo: elementos para uma leitura crítica do
social. O risco de se atuar na lógica do ajustamento de Manifesto Comunista. In: MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do
Partido Comunista. São Paulo: Cortez, 1998.
comportamentos individuais não é pequeno, haja vista o
esforço em empreender e divulgar as chamadas ______. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo:
condicionalidades para que as famílias tenham acesso Cortez, 1992.
aos benefícios. OURIQUES, N. A revolução democrática bolivariana. Uma utopia
É grave constatar que, em função de sua opção de latino-americana, In: ______.(Org.) Raízes no Libertador. Boli-
classe a favor dos dominantes, o governo Lula não en- varianismo e poder popular na Venezuela. Florianópolis: Insular, 2005.
frentou os sistemas de privilégios historicamente assenta- ______. Estado e políticas sociais na América Latina. In: NO-
dos no poder no país. Por esta razão, perpetua-se a indi- GUEIRA, F. M. G. Estado e políticas sociais no Brasil. Cascavel:
ferença com a luta e os interesses dos trabalhadores e Edunioeste, 2001.
seu projeto de classe, reafirmando-os então como
______. La teoria marxista de la dependencia. 1995. Tese (Dou-
descartáveis, tanto quanto suas necessidades de bem usu- torado em Economia) – Universidade Nacional Autonoma do
fruir de trabalho, terra, liberdade e felicidade. México, México, 1995.

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______. Modernização capitalista e dependência na América de empregos. [...] Esta tendência para uma informalização
Latina. Disponível em <http://www.ola.cse.ufsc.br/analise/ acentuada dos empregos pode também ser constatada a
20060403_nildo.htm>. Acesso em 14 abr. 2006. partir da análise da evolução do emprego aberto e total. O
argumento do desemprego aberto traduz a baixa de empregos
PAIVA, B. O poder popular na Venezuela e a práxis Bolivariana.
informais ‘mais informais’, uma vez que estes não permitem
In: OURIQUES, N. (Org.) Raízes no Libertador. Bolivarianismo
aos trabalhadores sobreviver e os levam a procurar empregos
e poder popular na Venezuela. Florianópolis: Insular, 2005.
suplementares que não chegam a encontrar. [...] O
SALAMA, P. Novas formas da pobreza na América Latina, In: crescimento, mesmo vivo, é muito pobre em emprego e os
GENTILI, P. Globalização excludente. Petrópolis: Vozes/LPP/ empregos criados são geralmente mais informais do que
Clacso, 2001. antes, com remuneração 40% inferior em média, aos que se
VELOSO, C. Haiti. In: Noites do Norte: ao vivo – Duplo. São beneficiam dos empregos formais.''
Paulo: Universal Music, 2001. Disco 1, faixa 6. 5 Para um detalhamento desta dinâmica, indica-se Ouriques
(2006).
Notas 6 Por esta razão podemos entender o discurso oficial tanto de
Lula como de Cardoso sobre a “necessidade de uma reforma
1 O Observatório Latino-Americano (OLA/UFSC) é um projeto previdenciária” ou o diminuto gasto com o social, mesmo
de pesquisa e extensão numa articulação interdisciplinar dos quando a “economia vai bem” e os superávits são festejados
Departamentos de Economia e Serviço Social, vinculado ao como “glória nacional”. Boicotes explícitos ao Sistema Único
Centro Sócio-Econômico, também integrado pelas jornalistas de Saúde (SUS) permanecem, assustadoramente, sob o
Elaine Tavares e Raquel Moysés, e por estudantes. Tem governo Lula. A definição do percentual de recursos
como objetivo a construção de análises que visam melhor financeiros federais, previstos na Constituição Federal para
compreender as políticas macroeconômicas e sociais o SUS, permanece descumprida pela política econômica. Na
adotadas pelos países da América Latina e o conseqüente comparação internacional os atuais 3,2% do PIB, destinados
movimento de resistência dos povos. A proposta à saúde, representam porcentagem menor do que as de
metodológica deste projeto é produzir e divulgar análises Bolívia, Colômbia, África do Sul, Rússia, Venezuela, Uruguai,
críticas sobre a lógica econômica dominante nas relações Argentina (cerca de 5.12%), Cuba (6,25%), EEUU (6,2%)
políticas dos e entre os países latino-americanos, e também Japão, Inglaterra, Austrália, Portugal, Itália, Canadá, França,
disponibilizá-las para a tomada de decisões pelos fóruns Alemanha (8,1%). Em termos de financiamento, os valores
acadêmicos e movimentos sociais, nos espaços de são expressivos, cerca de R$ 2,3 bilhões representam a
construção e mobilização político-intelectual. Assim, o OLA/ diferença acumulada pelo não cumprimento por parte do
UFSC se organiza como uma onda bolivariana de governo federal da EC. 29 nos anos de 2001 a 2005, porém só
pensamento crítico, que tem como inspiração o sonho de no governo Lula este déficit acumula a cifra de R$1.832.000,00.
Simón Bolívar de integração dos povos, agora articulado
com a busca do socialismo, com vida digna e riquezas Beatriz Augusto de Paiva
repartidas. Cf. <www.ola.cse.ufsc.br>.
biapaiva@cse.ufsc.br
2 VELOSO, Caetano (2001). Departamento de Serviço Social
3 Netto (1998, p.11-2)) ressaltou a capacidade de o Manifesto
Comunista antecipar, em mais de um século, um painel da Nildo Domingos Ouriques
modernidade capitalista. Ainda, segundo o autor, a respeito nildo@cse.ufsc.br
das crises de superprodução Marx e Engels afirmam: “A
sociedade vê-se de repente reconduzida a um estado de
Departamento de Economia
momentânea barbárie [...] As relações burguesas tornaram-
se demasiado estreitas para conterem as riquezas criadas no Centro Sócio-Econômico
seu interior. E como a burguesia supera as crises? De um Universidade Federal de Santa Catarina
lado, mediante a destruição violenta de grande quantidade Campus Univ. Reitor João David Ferreira Lima
de forças produtivas; de outro, pela conquista de novos Trindade – Florianópolis – Santa Catarina
mercados e pela exploração mais intensa de mercados CEP: 88010-970
antigos. E o que isto representa? Representa a preparação
de crises mais generalizadas e mais graves e a redução dos
meios para evitá-las”.
4 Salama (2001, p. 198–199), ao analisar as novas formas de
pobreza na América Latina, demonstra que “A evolução da
renda dos empregos informais no Brasil tende a estagnar
num segundo tempo, desde o fim de 1996, se não a regredir.
Paralelamente, a importância relativa destes empregos tende
a elevar-se. Esse movimento reflete, portanto, uma
participação mais elevada destes empregos informais no total

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KATÁLYSIS vv.. 9 n. 2 jul./dez. 2006 Florianópolis SC 166-175
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