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REVISTA HISTÓRIA HOJE, SÃO PAULO, N 1, 2003. ISSN 1806.3993

IMAGENS DIVINAS, PODER HUMANO: BOYER, Régis. Héros et dieux du Nord: guide
iconographique (Tout l’art encyclopédie). Paris: Flammarion, 1997. Ilustrado, 190 p.

Johnni Langer
Professor da Facipal -Faculdades Integradas de Palmas, PR
UnC - Universidade do Contestado, SC.

Os estudos de imagem se tornaram quase obrigatórios para os historiadores e


professores de História em nosso mundo. Saber manipular e interpretar uma imagem é
uma necessidade recorrente, numa sociedade onde grande parte dos valores são regidos
por signos visuais.1 Particularmente as disciplinas de história antiga e medieval ainda
carecem de estudos analíticos sobre a relação entre imagem, documento e ensino. Em
parte, essa lacuna vem sendo preenchida pela publicação de Héros et dieux du Nord:
guide iconographique, do historiador francês Régis Boyer. Professor de literatura e
civilização escandinava na Universidade de Paris-Sorbonne, é considerado um dos
maiores especialistas sobre cultura Viking em todo o mundo, com dezenas de publicações
nos últimos 30 anos.
O livro foi organizado em forma alfabética, com indicação do conteúdo mitológico
original (forma textual), uma descrição das principais representações iconográficas e ao
final, a referência da fonte e da bibliografia de cada imagem. A estrutura gráfica é
excepcional, apresentando gravuras, pinturas, ilustrações, esculturas e arte mobilar de
diversos períodos da História.
Um dos destaques da obra é a publicação de pinturas muito pouco divulgadas, mesmo
em livros especializados, a exemplo da magnífica tela à óleo A ronda dos elfos (1866), do
pintor sueco A. Malmström (p. II-III), e A morte de Siegfried (1830), do alemão Schnorr
von Carolsfeld (p. 137). Outra grande qualidade do livro é a inclusão de muitas fotografias
de obras artísticas produzidas originalmente pelos próprios Vikings, resgatando a
verdadeira concepção que esta cultura tinha de sua religião e mitologia.
As possibilidades instrumentais a partir da leitura do livro são vastas. Em primeiro
lugar podemos perceber como o Ocidente construiu as muitas imagens sobre os deuses
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nórdicos. Passando pelas representações da Idade Média – onde as divindades


apresentam-se dentro do referencial da Europa cristão - até o advento do neo-
classicismo, que retoma o interesse pela mitologia germânica, mas sempre dentro de uma
estética tipicamente greco-romana. Uma das imagens mais curiosas e anacrônicas no
livro de Boyer é uma ilustração anônima do século XVI (p. 119), onde o deus Odin foi
representado portando armadura medieval completa! E durante o romantismo, os seres
míticos são resgatados pela ótica do poder barbárico, originando o mais conhecido
estereótipo relacionado aos povos escandinavos - o fantasioso capacete com chifres
laterais2 - que perdura até nossos dias.
Outra direção interpretativa é o uso político das imagens mitológicas,
principalmente durante o Oitocentos, personificada nas nascentes nações européias. O
pintor norueguês Peter Arbo, por exemplo, realizou uma vasta quantidade de obras
pictóricas que refletem o resgate dos antigos temas míticos como suporte ideológico para
o presente histórico. Sua famosa A caçada selvagem de Odin (1872) (p. XXVI-XXVII),
surgiu no momento da crescente tentativa de autonomia política da Noruega em relação à
Suécia: desespero e desejo de liberdade confundem-se nesta pintura, onde os deuses
nórdicos cavalgam furiosos sobre o céu. Outro momento marcante durante o século XIX é
a ópera O anel dos Nibelungos (1865-1876), de Richard Wagner (p. 165), onde o trágico
herói Siegfried encarna os valores de uma sociedade que necessita de sacrifícios
pessoais. A unificação da Alemanha em 1871 é a concretização desse ideal. Mesmo os
posteriores cenários da ópera de Wagner e outras pinturas ainda continuam a perpetuar
essa imagem, como O adeus do Viking, de H. Gandy (p. 169) e A licença de Odin (1875),
de F. Leeke.
Em terceiro lugar, podemos discutir a relação entre imagem e texto, fundamental
quando pensamos na atual produção de livros didáticos.3 Algumas entidades nórdicas,
como o deus Loki, eram realmente maléficas – como o representaram ilustrações do
século XVIII (p. XVIII) e histórias em quadrinho atuais? Os manuscritos que perpetuaram
a tradição oral anterior ao século XIII são fontes preciosas para refletirmos a origem de
muitos símbolos na civilização ocidental. Nem sempre uma imagem reflete diretamente a
sua fonte textual, pois “a forma de uma representação não pode estar divorciada da sua
finalidade e das exigências da sociedade na qual a linguagem visual dada tem curso”.4
Desta maneira, as utilizações de imagens da História e na História sempre
obedeceram a certos parâmetros definidos pelas sociedades, seja em sua forma política
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mais objetiva (discursos, símbolos legitimadores) como na própria sobrevivência de


estereótipos em manuais de ensino. Atento a todas essas questões, Régis Boyer
procurou explicitar em seu livro o papel social da imagem na herança da civilização
Viking. Sendo um dos principais discípulos do mitólogo Georges Dumézil, sua
preocupação com os aspectos da tripla funcionalidade social é algo recorrente em todo o
texto.
Concluindo, a obra é um recurso precioso para os especialistas em História
medieval, pesquisadores de História da arte ou educadores que discutem os usos da
imagem no ensino universitário. E não esquecendo também o público que cada vez mais
se interessa pela mitologia germânica. Na trajetória da arte ocidental, os deuses nórdicos
quase sempre se curvaram perante os homens!

1
Remetemos os leitores à extensa produção teórica do professor Elias Thomé Saliba,
especialmente: As imagens canônicas e o ensino de História. In: III ENCONTRO: Perspectivas do
ensino de História. Curitiba: UFPR, 1999; Experiências e representações sociais: reflexões sobre o
uso e o consumo das imagens. In: BITTENCOURT, Circe (org.) O saber histórico na sala de aula.
São Paulo: Contexto, 1998.
2
Sobre este estereótipo (ou imagem canônica, nas palavras de Elias Thomé Saliba), ver:
LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine. Centre for Baltic
Studies/Gotland University, Visby, Sweden, n. 4, 2002; WAWN, Andrew. The Vikings and the
Victorians: inventing the Old North in 19TH-Century Britain. 2ª edição, Cambridge: D.S. Brewer,
2002; BOYER, Régis. Le mythe Viking dans les lettres françaises. Paris: Editions du Porte-Glaive,
1986.
3
“(...) as imagens, principalmente a dos livros didáticos, são, descontadas as raríssimas
excessões, também estereotipadas e canônicas”. SALIBA, 1999, p. 447. A quantidade de imagens
estereotipadas nos livros didáticos do Brasil ainda é muito grande, sobretudo as vinculadas aos
conteúdos de História Antiga e Medieval. Imagens de faraós egípcios louros e brancos, Vikings
com capacetes de chifres, celtas com capacetes de asas laterais, os imperadores romanos como
loucos e depravados, os romanos e hunos como seres sádicos, confusão imagética entre
normandos e escandinavos, homens pré-históricos como seres bestiais, entre outras.
4
GOMBRICH, Ernest. Verdade e estereótipo. In: _____ Arte e ilusão: um estudo da psicologia da
representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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