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História: A memória científica do passado

Bárbara Maffessoni
A frase que fornece nome ao título, foi dita originalmente pelo historiador alemão Jörn Rüsen,
como uma forma de debater os métodos de como a história normalmente é contada, isto é, com
o objetivo de checar se esta realmente é válida, através de avaliações criteriosas de cada fato
importante que nos é relatado ao longo de nossas vidas, pois ela é uma ciência rigorosa que
trabalha através de provas concretas de que determinados acontecimentos realmente
estiveram presentes ao longo do tempo. É exatamente sobre este tipo de conflito dramático
que o filme brasileiro “Narradores de Javé” se baseia.

Lançado no ano de 2004, em coprodução com estúdios franceses e roteiro da renomada diretora
brasileira, Eliane Caffé, o filme conta a história de um humilde vilarejo fictício de Javé, o qual
está situado no sertão baiano, próximo a cidade de Bom Jesus da Lapa, a vida desses moradores
toma um rumo desesperador, quando o personagem Zaqueu – interpretado pelo ator Nelson
Xavier – descobre que o pequeno povoado será inundado pelas águas, com o objetivo de
construir uma represa para gerar um contingente maior de energia elétrica para as cidades da
região, além disso, como seus moradores não possuíam documentos que atestassem a posse de
suas terras, por consequência, não seriam notificados pelos órgãos públicos e nem pela empresa
responsável pela obra da usina hidrelétrica. Inconformados com a situação, a única alternativa
encontrada por esses habitantes, foi a de elaborar um dossiê que comprovasse que o local
poderia ser preservado, por possuir um patrimônio histórico de valor inestimável para a
humanidade, comprovado em um documento científico, no caso, o referido dossiê.

Porém, havia um problema; poucas pessoas sabiam ler com precisão e apenas um sabia
escrever, no caso, o atrapalhado carteiro Antônio Biá (José Dumont), justamente o morador
mais desprezado pelos demais habitantes, já que no passado, Biá teria escrito cartas
difamatórias contando inverdades a respeito dos cidadãos, enviando-as para conhecidos de
cidades vizinhas para salvar o seu emprego, pois como o fluxo de cartas era nulo nos arredores
de Javé, seu posto seria desativado. A princípio, a maioria da população se demonstrou receosa
em confiar a ele, a missão de escrever o “Livro Javérico” que salvaria o vilarejo baiano de afundar
nas águas da represa, contudo, foi constatado que não havia outro voluntário com capacidade
intelectual disponível para redigir o documento, sendo assim, Biá foi recrutado pelos
personagens Zaqueu e Vado (Rui Resende) para a nobre tarefa.

No desenrolar do enredo, Biá começa a visitar morador por morador, atrás de informações,
especialmente os mais antigos do povoado, porém, ele percebe que os entrevistados não
conseguem lhe dar provas concretas dos acontecidos relatados, esse ponto de vista pode ser
notado, especialmente quando ele profere a frase "uma coisa é o fato acontecido, outra é o fato
escrito", conforme o carteiro vai se deparando com a mesma história do fundador do vilarejo
de Javé contada de cinco maneiras diferentes e incompatíveis entre si, retratadas de forma
parcial. Nestas múltiplas versões, o primeiro entrevistado afirma que o fundador era Idalécio,
um guerreiro que lutou contra a coroa portuguesa, na da segunda sabatinada era a de que havia
sido a peregrina Maria Dina, por fim, um homem negro descendente de tribos africanas jurou
em seus dialetos cantados, traduzidos por outro membro da comunidade, que outro homem
negro chamado Indalêo havia sido o grande pioneiro. Sem argumentos convincentes para
comprovar essas histórias, além dos descritos através da memória dos moradores, Biá entrega
um livro em branco para Zaqueu, os moradores novamente tentam linchar o escrivão, porém já
munido da mais completa desesperança, este grita descontrolado, afirmando que o fim do
povoado é inevitável, pois nada pararia a passagem do “progresso” representado pela
construção da represa.

Através do filme, podemos perceber dois pontos totalmente distintos quanto a metodologia
científica, o primeiro é o de que a história nem sempre é contada com imparcialidade, já o
segundo nos mostra que alguns fatos não podem ser comprovados por manuscritos, mas sim
somente pela oralidade de quem os conta, é a mensagem que as cenas mencionando as “divisas
cantadas” e a riquíssima tribo africana com seus cantos consegue passar ao espectador. De
qualquer forma, de uma coisa é possível ter certeza, oralidade e escrita são elementos que
trabalham juntos para a história ser feita, são elementos culturais da mais rica qualidade, logo,
ambos são importantes para a construção de um patrimônio de caráter imaterial para a
sociedade.

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