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Educação infantil Andreas Schleicher Linguagem neutra

O impacto da Investimento em ‘Todes’ ganha espaço


pandemia educação no Brasil de discussão entre
nas crianças está distorcido especialistas

EDUCACAO
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ANO 25 Nº281

Formar
novos leitores
O desafio para escola e família é despertar
nas crianças e jovens o gosto pela leitura
enquanto uma experiência estética – tarefa
ainda mais necessária na era digital
LINGUAGEM NEUTRA

Luta identitária na linguagem


A língua não binária tem se popularizado e o ‘todes’ ganha espaço de
discussão entre especialistas brasileiros que defendem a necessidade
de uma gramática mais inclusiva
| Por Sandra Seabra Moreira

A
linguagem não binária, também deno- Regional Nordeste 1 da ABGLT – Associação Brasileira de
minada linguagem neutra, é um fenôme- Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, e In-
no social, político e linguístico vinculado tersexos. “A finalidade da linguagem não binária é atender
às lutas identitárias de grupos LGBTQ+. a um público que precisa dela: as pessoas que questionam
Criada há cerca de 10 anos, no contexto das o seu gênero. Queremos uma linguagem comunicativa,
redes sociais e do surgimento de coletivos inclusiva e que questione padrões. Não nos interessa, por
militantes, grafa ‘x’, ‘@’ ou ‘e’ em substan- ora, mudar a gramática normativa, porque ela é machista,
tivos para neutralizar o gênero gramatical. elitista, construída por homens brancos”, diz.
O ‘e’ é a primeira experimentação pronun- Ferreira não quer, necessariamente, ver Eça de
ciável e vem conquistando falantes. ‘Todes’ já é uma pa- Queiroz publicado na linguagem não binária. E refle-
lavra popular, utilizada para substituir o masculino ge- te acerca da criatividade: “todo o léxico de João Gui-
nérico – “Bom dia a todes” –, ou em contexto no qual o marães Rosa é mutável; Osman Lins escreveu Avalova-
falante quer contemplar todos os gêneros, especifican- ra, que também tem um léxico incomum, assim como
do-os: “Bom dia a todas, todes e todos”. Também propõe James Joyce em Ulysses ou Marcel Proust, na obra Em
os pronomes pessoais Ile e Elu e suas derivações. busca do tempo perdido. O autor tem liberdade para es-
Cleber Ferreira é pessoa não binária, docente atuante crever. Só o escritor pode ser criativo?” Ferreira tam-
de língua portuguesa, militante do Mel (Movimento Espí- bém cita O senhor dos anéis, de J. R. R. Tolkien: “nessa
rito Lilás), em João Pessoa, PB, e integrante da Diretoria obra há aproximadamente oito idiomas. Nas notas, que
são mais abrangentes do que a narrativa, há sistemas
complexos de gramática, Tolkien era um filólogo”. E
questiona: “Afinal, por que não criar uma nova língua?”
A binaridade de gênero masculino/feminino é im-
posta na sociedade e a língua espelha e reforça essa im-
posição. “Gênero é categoria fundamental na socieda-
de, a cognição social é pautada por ele, por isso é muito
difícil a pessoa se agenerificar”, diz Iran Melo, profes-
sor de língua portuguesa e linguística da Universidade
Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e coordenador
do Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais. Entre as
pessoas que não se encaixam no binarismo de gêne-
ro estão as agêneras, transgêneras binárias e não bi-
Cleber Ferreira, nárias, travestis; há inúmeras intersecções e a lingua-
da ABGLT: por gem não binária tem como objetivo, também, dar conta
que não uma dessa diversidade. “É uma prática de inclusão; acima
nova língua? de tudo é uma atitude que busca fugir da maneira

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tradicional, colonial, de representar, que é centrali-
zada no masculino genérico. Sendo um projeto políti-
co de designação, a linguagem não binária sempre irá
propor a reestruturação da língua.” Desde os anos 80,
lembra Melo, as feministas vêm propondo estratégias:
“a tentativa de generalizar no feminino também era um
contradiscurso. Já temos isso na história, então a gente
prevê que outros modos aconteçam”.
A norma padrão está a serviço de um grupo domi-
nante, porém, ela é uma das muitas variações linguísti- Para Iran Melo,

cas. Novas palavras e expressões surgem o tempo todo, da UFRPE, a

entretanto, para que integrem a norma padrão há um linguagem

longo processo. Na Suécia, por exemplo, o pronome não binária é

neutro ‘hen’, usado desde os anos 60 nas comunidades uma prática

LGBTs, foi incluído no dicionário em 2017. No Brasil, a de inclusão

linguagem não binária está sendo observada pela lin-


guística formal, aquela que se atém à estrutura da lin-
guagem. Os linguistas denominam esse fenômeno de
estratégias de neutralização de gênero. Há opiniões di-
vergentes e contribuições.
Para o estudo de gênero gramatical no português
brasileiro, a obra seminal é a de Joaquim Mattoso Câ-
mara Jr., que nos anos 70 disse o seguinte: o masculino
é o gênero não marcado, o feminino é o gênero marca- Ana Pessotto:
do, específico. Melo explica que, na linguística, o con- atraso na
ceito de marcação é aquilo que não é convencional, discussão sobre
é o outro, o anormal, o disruptivo. Não sendo mar- a expressão de
cado, o masculino representa o genérico. Para Melo, gênero na língua
“o que Mattoso Câmara Jr. não disse é que temos essa portuguesa

Um longo caminho
Enquete espontânea realizada no site da re- “Acho que é algo a ser discutido.”
vista Educação entre setembro e outubro des-
te ano perguntou: você aprova o uso de “todes” “Se eu estiver me comunicando com alguém que se
como gênero neutro, sim ou não? Das pessoas identifique com esse pronome sim!”
que participaram, 74% disseram não ao uso do
termo “todes” e, possivelmente, são contra a “Eu acho que deve saber usar no momento certo.
adoção do gênero neutro no dia a dia. Escrita formal não, mas na escrita informal, talvez...”
Em 1º de novembro foi feita a mesma pergunta
nos stories do Instagram desta publicação só que “Contra, já que a linguagem é para todos, e vai além de
aberta. Confira algumas respostas espontâneas gêneros. Linguagem representa educação.”
escritas exatamente como enviaram:
“Contra, podemos falar todas e todos.”

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construção na língua porque fazemos parte de uma so- ção da nova linguagem: “‘@’ não representa um som no
ciedade secular masculinista”. português e ‘x’ não se adapta às regras fonotáticas, não
Ana Pessotto, doutora em linguística pela Universida- serve como núcleo de sílaba; ‘e’ é a melhor estratégia”.
de Federal de Santa Catarina (UFSC), conta que entendia O masculino como gênero neutro não está presen-
a expressão do gênero gramatical no português como te em todos os idiomas, há idiomas que sequer codifi-
resolvida, mas hoje em dia acredita que essa discussão cam gênero e outros que não associam gênero a sexo,
está atrasada em relação a outros países. A sua percep- informa Luiz Schwindt, professor da Universidade Fe-
ção começou a mudar em 2016, ao final de uma aula de deral do Rio Grande do Sul (UFRG). No português, o
linguística. A turma se preparava para sair da sala quan- subgrupo de substantivos que se referem a seres sexu-
do uma aluna levantou a mão e perguntou sobre a neu- ados representa apenas 4,5 % dos substantivos existen-
tralização de gênero. “Comecei a explicar o que já estava tes. Entre eles, nem todos terminam com as vogais ‘a’
sistematizado e vi que todo o pessoal começou a pres- ou ‘o’ marcando o gênero; há substantivos em que a vo-
tar atenção.” Ela precisou organizar aulas extras. Desde gal final não marca gênero: ‘criança’ e ‘testemunha’, por
2016, Pessotto pesquisa as estratégias de neutralização exemplo. Analisando os limites do sistema linguístico,
de gênero. A análise a seguir pode explicar a populariza- Schwindt afirma: “no subgrupo dos substantivos sexu-
ados que fazem oposição entre ‘a’ e ‘o’ é possível que o
substantivo venha, um dia, a assimilar a marca ‘e’. Mor-
fologicamente, neste mesmo subgrupo, o ‘e’ é perfeito,
porque troca a oposição de ‘o’ e ‘a’, – que tem apenas
dois polos – por uma oposição gradual, com três está-
gios: masculino, feminino e neutro, como em ‘amiga’,
‘amigo’, ‘amigue’. Schwindt enfatiza que há obstáculos,
entre eles, substantivos terminados em ‘e’, como ‘pre-
sidente’ e ‘tenente’: o que faremos com eles?
Raquel Freitag, professora da Universidade Federal
de Sergipe, traz uma imagem: “a língua é como um re-
lógio mecânico, se uma peça quebra, as outras peças
vão se desgastando”. Com o uso do ‘e’, a necessidade
Luiz Schwindt:
de novas formas gramaticais pode emperrar o siste-
o ‘e’ pode ser
ma. Freitag considera também que muitas mulheres
assimilado no
não se veem representadas pelo ‘todes’ e alerta: “a for-
substantivo
ma genérica tem a função de manter o fluxo cognitivo,
do processamento das informações. A linguagem não
binária pode cumprir com uma demanda identitária,
mas tornar o entendimento complexo, excluindo mais
pessoas”. Freitag ressalta, entretanto, que ela pode ser
apresentada em sala de aula: “o direito à diversidade
está muito bem expresso na Base Nacional Comum
Curricular; pode procurar, está lá”.
De fato, a diversidade é enfatizada ao longo de todo
o texto da BNCC. Na página 70, trecho acerca do ensino
da língua portuguesa no ensino fundamental preconi-
za o seguinte: “... é importante contemplar o cânone, o
Segundo Raquel marginal, o culto, o popular, a cultura de massa, a cul-
Freitag, a BNCC tura das mídias, a cultura digital, as culturas infantis e
preconiza a juvenis, de forma a garantir uma ampliação de repertó-
diversidade rio e uma interação e trato com o diferente”.

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