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DURAND Gilbert O Imaginario PDF
DURAND Gilbert O Imaginario PDF
Editoração: DFL
2004
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Sumário
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
L S
o imaginário
3. A gramática do imaginário 88
4 5
o imaginário Introdução
icônica (o figurativo pintado, desenhado, esculpido e Todas estas civilizações não-ocidentais, em vez de
fotografado...). fiiiuiamentarem seus princípios de realidade numa ver-
- Esta inovação permitiu recensear, e eventualmente d.uli- única, num único processo de dedução da verda-
classificar n u m trabalho exaustivo e que possibilitou o de, num modelo único do Absoluto sem rosto e por
estudo dos processos de produção, transmissão e recep- vc/es inominável, estabeleceram' seu universo mental,
ção, o "museu" — que denominamos o imaginário — iiKlividual e social em fundamentos pluralistas, portan-
de todas as imagens passadas, possíveis, produzidas e a to, diferenciados. Aqui, toda diferença (alguns mencio-
serem produzidas. Contudo, não terá sido este mesmo iMin um "politeísmo de valores"^) é percebida como
processo que provocou uma ruptura, uma verdadeira uma figuração diferenciada com qualidades figuradas e
revolução "cultural", nesta filosofia de livros e escritos imaginárias. Portanto, todo "politeísmo" ipso facto é
que constituiu o privilégio bimilenar do Ocidente? receptivo às imagens (iconófilo) quando não aos ídolos
As civilizações não-ocidentais nunca separaram as i n - (cidôlon, em grego, significa "imagem"). Ora, o Ociden-
formações (digamos, "as verdades") fornecidas pela ima- ti-, isto é, a civilização que nos sustenta a partir do racio-
gem daquelas fornecidas pelos sistemas da escrita. Os cínio socrático e seu subsequente batismo cristão, além
ideogramas (o signo escrito copia algo num desenho qua- de desejar ser considerado, e com muito orgulho, o úni-
se estilizado sem limitar-se a reproduzir os signos con- co herdeiro de uma única Verdade, quase sempre desa-
vencionais, alfabéticos e os sons da língua falada) dos hie- fiou as imagens. É preciso frisar este paradoxo de uma
róglifos egípcios ou os caracteres chineses, por exemplo, civilização, a nossa, que, por um lado, propiciou ao
misturam com eficácia os signos das imagens e as sinta- mundo as técnicas, em constante desenvolvimento, de
^.xes abstratas.2 Em contrapartida, antigas e importantes reprodução da comunicação das imagens e, por outro,
civilizações como a América pré-colombiana, a Africa do lado da filosofia fundamental, demonstrou uma des-
negra, a Polinésia etc, mesmo possuindo uma linguagem confiança iconoclasta (que "destrói" as imagens ou,
e u m sistema rico em objetos simbólicos, jamais utiliza- pelo menos, suspeita delas) endémica.^
ram uma escrita.
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I
O PARADOXO D O IMAGINÁRIO
NO OCIDENTE
1. Um iconoclasmo endémico
9
o imaginário o paradoxo do imaginário no Ocidente
de Aristóteles (século 4 a.C), a via de acesso à verdade l',nil(), o "segundo fundador" do cristianismo, era um
foi a experiência dos fatos e, mais ainda, das certezas da Jiidfii lu-lenizado. O texto dos Evangelhos só nos foi
lógica para, finalmente, chegar à verdade pelo raciocínio lirtiisinitido na sua forma primitiva em grego. Além dis-
binário que denominamos de dialética e no qual se de- mi, .mlts da grande redescoberta dos textos de Aristóte-
senrola o princípio "da exclusão de um terceiro" na les pelo Ocidente cristão no século 13, não espanta que,
íntegra ("Ou... ou", propondo apenas duas soluções: d p.iitir do século 8, a questão das imagens tenha se co-
uma absolutamente verdadeira e outra absolutamente Idc.ido com grande precisão na região mais helenizada
falsa, que excluem a possibilidade de toda e qualquer d.< iii.standade: o Oriente bizantino (a Igreja ainda não
terceira solução). Lógico que, se um dado da percepção « • Ncparara de Roma e do Papa) que estava ameaçado
ou a conclusão de um raciocínio considerar apenas as l.into espiritual quanto materialmente pela invasão
propostas "verdadeiras", a imagem, que não pode ser liiiiçiilinana. Os imperadores de Bizâncio, sob o pretex-
reduzida a um argumento "verdadeiro" ou " falso" for- to dl- enfrentar a pureza iconoclasta do Islã ameaçador,
mal, passa a ser desvalorizada, incerta e ambígua, tor- (Icstruirão, durante quase dois séculos ( 7 3 0 - 7 8 0 e 813-
nando-se impossível extrair pela sua percepção (sua 8 4 3 ) , as imagens santas guardadas pelos monges que
"visão") uma única proposta "verdadeira" ou "falsa" rtiabarão perseguidos como idólatras. Contudo, e volta-
formal. A imaginação, portanto, muito antes de Male- rnnos ao assunto mais adiante, os iconólatras (adorado-
branche,* é suspeita de ser "a amante do erro e da falsi- res de ícones) acabaram triunfando. De certa forma,
dade". A imagem pode se desenovelar dentro de uma esta famosa "querela"^ é um exemplo dos motivos e
descrição infinita e uma contemplação inesgotável. Inca- i.i/õcs que ao longo dos séculos levaram o Ocidente a
paz de permanecer bloqueada no enunciado claro de um minimizar e perseguir as imagens dos seus defensores, f )
silogismo, ela propõe uma "realidade velada" enquanto Não podemos deixar de lembrar outro momento da
a lógica aristotélica exige "claridade e diferença". construção da base sólida do iconoclasmo: a escolástica
Não devemos esquecer que a mensagem cristã foi medieval. As obras de Aristóteles quase desapareceram
difundida em grego, a língua de Aristóteles. Para alguns .IO longo dos treze séculos de peripécias que cobrem a
foi a sintaxe grega que permitiu a lógica aristotélica! São
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O paradoxo do imaginário no Ocidente
o imaginário
história do Ocidente, a qual acompanhou, sucessivamen- • II H's — invadiu todas as áreas de pesquisa do "verda-
te, o naufrágio da ci\ilização grega e do Império de Ale- • \ I I n " saber A imagem, produto de uma "casa de lou-
xandre, o surgimento e a destruição do Império romano, i (•,«(", V abandonada em favor da arte de persuasão dos
o nascimento do Cristianismo, o cisma de Bizâncio e jiifjMdorcs, poetas e pintores. Ela nunca ascenderá à
Roma, o aparecimento do Islamismo e das Cruzadas etc. iIljMiidado de uma arte demonstrativa.
De repente, eis que Averroes de Córdoba (1126-1198), ( ) legado do universo mental, as experiências de Ga-
um sábio m u ç u l m a n o da Espanha conquistada pelos lileu (lembremo-nos da demonstração da "lei da queda
mouros, descobre e traduz para o árabe os escritos do I li IS (orpos" no plano inclinado) e o sistema geométrico
filósofo grego. Os filósofos e teólogos cristãos passaram a dl-1 )cscartes (na geometria analítica, uma equação algé-
ler avidamente as traduções. O mais famoso e influente liii(a corresponde a cada imagem e a cada movimento,
foi São Tomás de Aquino. Numa tentativa enorme para ili Ilide a cada objeto físico) representam u m universo
conciliar o racionalismo aristotélico e as verdades da fé iiii( ânico no qual não há espaço para a abordagem p o é -
numa "suma" teológica, seu sistema tornou-se a filosofia I I I .1. A mecânica de Galileu e Descartes d e c o m p õ e o
oficial da Igreja Romana e o eixo de reflexão de toda a objeto estudado no jogo unidimensional de uma única •
escolástica (a doutrina da escola, isto é, das universidades (.msalidade: assim, tomando como modelo de base bolas
controladas pela Igreja) dos séculos 13 e 14. lie sinuca que se chocam, o universo concebível seria re-
' M u i t o mais tarde. Galileu e Descartes fundaram as gulo por um único determinismo, e Deus é relegado ao (
bases da física moderna e o terceiro momento do icono- I i.ipel de "dar o e m p u r r ã o z i n h o " inicial a todo o sistema.
clasmo ocidental. Embora corrigissem muitos erros O século 18 acrescentará outra coluna da tradição
cometidos por Aristóteles, nenhum dos dois jamais con- aristotélica a esta h e r a n ç a cristã de cinco séculos de
tradisse sua meta filosófica nem a de seu seguidor, Tomás racionalismo incontornável: o empirismo factual (que
de Aquino, pois consideravam a razão como o ú n i c o delimitará os "fatos" e fenómenos). Os grandes nomes
meio de legitimação e acesso à verdade. A partir do de David Hume e Isaac Newton permanecem atrelados
século 17, o imaginário passa a ser excluído dos proces- •IO empirismo e com eles esboça-se o início do quarto
sos intelectuais. O exclusivismo de u m único m é t o d o , o momento (no qual ainda estamos mergulhados) do ico-
m é t o d o , "para descobrir a verdade nas ciências" — este noclasmo ocidental. O "fato", aliado ao argumento ra-
é o título completo do famoso Discurso (1637) de Des- cional, surge como outro obstáculo para u m imaginário
12 13
(' jhiradoxo do imaginário no Ocidente
o imaginário
cada vez mais confundido com o delírio, o fantasma do iiic. ((Iniiiiina que só reconhece as causas reais expressas
sonho e o irracional. Este "fato" pode ser de dois tipos: il. Ini in,\a por um evento histórico). Qualquer
o primeiro, derivado da percepção, poderá ser tanto o "liii.ijyin" que não seja simplesmente um cliché modes-
1" ilc- uin fato passa a ser suspeita. Neste mesmo movi-
fruto da observação e da experiência como um "evento"
l i i f i i l o as divagações dos "poetas" (que passarão a ser
relacionado ao fato histórico. Mas, se o século das
t niisiticr.ulos os "malditos"), as alucinações e os delírios
Luzes6 nem sempre atingiu o frenesi iconoclasta dos
t i t i s tlociitcs mentais, as visões dos místicos e as obras de
"enraivecidos" de 1793, colocou, cuidadosamente —
com Emmanuel Kant, por exemplo — , um limite in- «Mão expulsas da terra firme da ciência. Vale obser-
transponível entre o que pode ser explorado (o mundo \1 ( n a lei francesa que regulamentava as construções
do fenómeno) pela percepção e a compreensão, pelos d o s rdilícios públicos, apenas 1% das despesas destina-
recursos da Razão pura, e o que permanecerá desconhe- v.i M - à decoração e ao embelezamento artístico. O recal-
cido para sempre, como o campo das grandes questões . .iiiuiito e a depreciação são tenazes que ainda influen-
metafísicas — a morte, o além e Deus (o universo do I i.iiii ,1 teoria da imaginação e do imaginário de um filó-
M i i o contemporâneo como Jean-Paul Sartre.''
"númeno")... — as quais, com suas soluções possíveis e
contraditórias, constituem as "antinomias" da Razão. límbora, por um lado, tenha sido a lenta erosão do
O positivismo e as filosofias da História, às quais |i.i|)cl do imaginário na filosofia e epistemologia do Oci-
nossas pedagogias permanecem tributárias (Jules Ferry ilciilo que possibilitou o impulso enorme do progresso
era discípulo de Auguste Comte), serão frutos do casa- (('•(•nico, por outro, o domínio deste poder material
Hobre as outras civilizações atribuiu uma característica
mento entre o factual dos empiristas e o rigor iconoclas-
in.ircante ao "adulto branco e civilizado", separando-o,
ta do racionalismo clássico. As duasfilosofiasque desva-
.issim como sua "mentalidade lógica", do resto das cul-
lorizarão por completo o imaginário, o pensamento sim-
turas do mundo tachadas de "pré-lógicas", "primitivas"
bólico e o raciocínio pela semelhança, isto é, a metáfora,
ou "arcaicas".
são o cientificismo (doutrina que só reconhece a verda-
de comprovada por métodos científicos) e o historicis-
' l.-P. Sartre, L'imaginaire (O imaginário), Callimard, 1940. Para Sar-
tre a imagem não passa de uma "quase observação", um "nada",
uma "degradação do saber" com um caráter "imperioso e infantil" e
"parecida ao erro em Spinoza (s/c)", acrescenta ele, optando assim
6 G. Cusdorf, Les Príncipes de la pensée au siècle des Lumières (Os
pela tese clássica a partir de Aristóteles.
princípios do pensamento no século das Luzes), Payot, 1 9 7 1 .
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o imaginário (' paradoxo do imaginário no Ocidente
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o imaginário (' píiradoxo do imaginário no Ocidente
mo tempo uma estética da imagem "santa" que a arte b i - lon^cs não enclausurados, serão os propagado-
zantina perpetuaria durante vários séculos e bem depois (Iffil.i nova sensibilidade religiosa — devotio moderna
do cisma de 1054, assim como, com a mariolatria (o cul- • ou rriadores de inúmeras "transposições para ima-
to da Virgem) e as hiperdulias dos santos, u m culto g r i i n " d o s mistérios da fé (representações teatrais dos
pluralista às virtudes da santidade divina que por vezes "Ml«il«'i i o s " , das quatorze estações do "Caminho da
beirava a idolatria ou, pelo menos, introduzia as variantes l ' r ( i / " , criação da devoção ao presépio da Natividade,
politeístas no monoteísmo estrito e originário do judaís- W)( r n . i ç ã o no Sacro Monte dos episódios da vida do santo
mo. E, por último, a oração diante dos ícones privilegia- liMMl.idor, divulgação das "bíblias moralizadas" ricamen-
dos constituía u m acesso direto e não sacramental (pois li (III,II,idas e t c ) . Entrementes, no Ocidente, os pro-
escapava à administração eclesiástica dos sacramentos) iiicildics de uma das raras filosofias da imagem darão
que ultrapassava o sacrossanto...^ llili lo com os yioretti" de São Francisco à abertura para
A esta resistência bizantina à destruição da imagem « iiiiliinvii, cantando nosso irmão Sol e nossa irmã Lua,
somou-se, nos séculos 13 e 14 da cristandade do Oci- (jiif .ihrangerá o Itinerarium mentis in Deum (Itinerário da
dente, a grandiosa floração do culto à imaginária sacra 111II 1,1 a t é Deus) de São Boaventura, o Superior Geral da
(iconodulie)* gótica sustentada, em grande parte, pelo ' ii.liiii V sucessor de São Francisco. Ao ser contempla-
êxito da mentalidade da jovem e fraterna ordem de São '1.1, ,1 imagem da santidade não apenas instiga, como em
Francisco de Assis (1226). A "época das catedrais" pre- Jo.io, o Damasceno, e na tradição platónica, a penetrar
gada por São Bernardo, com sua rica ornamentação fi- iiii própria santidade (o naturalismo empírico aristoté-
gurativa (estátuas, vitrais, iluminuras e t c ) , substituirá ilro já passou por isso!). Como toda representação da
progressivamente o iconoclasmo gentil da estética cis- iMiiiicza e da criação, ela é u m convite para seguir o ca-
terciense do século 12. Aos poucos ela suplantará no minho até o Criador. Qualquer contemplação, qualquer
coração da cidade a clausura austera dos m o n a s t é r i o s vl,sã() da Criação, mesmo no seu grau mais baixo, é u m
isolados nas terras agrestes e nos vales rurais. Os francis- "vestígio" (vestigium) de Toda a Bondade do Criador. Mas
6 pc-la imagem (imago) que a alma humana representa
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(' p.iríiLloxo do imaginário no Ocidente
o imaginário
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o imaginário i> juiuidtno (/() imaginário no Ocidente
e a extensão do sacrilégio do culto aos santos. O icono- litt* i ' d i i l l i u s " ) c, sobretudo, um investimento religioso
clasmo evidente traduz-se nas destruições das estátuas e MH i i i t i N i t ,t lio i ulto e mesmo na música denominada
também era músico, colocava a Senhora Música {Frau t¥ imitji ,il — o tão poética! — da obra de Johann-
l | » i | t i i « i l , i i i It.u h (1685-1750), o maior compositor pro-
Musika) imediatamente atrás da teologia! De passagem,
podemos observar que, nas grandes religiões teístas com ttmlitiiii H,u h, músico e protestante tardio da Reforma,
um iconoclasmo bem solidificado como no Islamismo e mrtitlrvf i i U . K tas a inspiração e a teoria estética de Lute-
M i ( ) N t c H l o s e as músicas de suas duzentas cantatas e
Judaísmo, a necessidade de uma representação relacio-
" 1 ' i i l M i r s " são testemunhas magníficas da existência de
na-se tanto à imagem literária quanto à linguagem musi-
i i i n "iiii.i|'iiiário" protestante de uma profundidade in-
cal. Henry Corbin, protestante fi-ancês e grande estudio-
so do Islamismo, não se enganou neste ponto. O I livrl III,IS (|ue se destaca na pureza iconoclasta de um
l i i j M i de oração do qual as imagens visuais — os qua-
Islamismo compensava a proibição das imagens pintadas
i l l i i N , ,is tstátuas e os santos — foram expulsos.
ou esculpidas com poetas de primeira grandeza (Attar,
Hafiz, Saadi), a prática de recitais sagrados da música , A Coiilra-Reforma da Igreja Romana tomou exata-
i i H i i i c ,1 .ititude oposta a essa decisão iconoclasta dos
espiritual {sama) e a "recitação visionária" por meio de
imagens literárias, portanto sem um suporte icônico, Kflormadores. Num primeiro momento, felizmente lo-
que consistia em uma técnica de recondução (tawil) à Ipi rs(iuc'cido, chegara mesmo a suspeitar da onipresen-
santidade inefável. Da mesma forma há no Judaísmo, ao ( f Senhora Música no ofício luterano.'^ Mas será princi-
|iiilmciile a imaginária sacra das imagens carnais da San-
lado das exegeses puramente legais, uma exegese "poé-
lii I .imília "jesuítica" (Jesus, Maria e José), dos santos
tica" das Escrituras (nas quais incluem-se os "livíos" I »c luiorcs e Confessores da Igreja que se oporá ao imagi-
poéticos tais como o famoso e tão decantado "Cântico
'' ()s Oradores (daí o termo oratório) de são Felipe Neri Impuseram
12 E. Weber, La Musique protestante en langue allemande (A música .1 iiiiísica religiosa como um poderoso instrumento de conversão e
protestante em alemão), Champion, 1980. | i i i ( ; , i i , , i o contra a Contra-Reforma.
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I
o imaginário (' i'iii,hli>.\o do imaginário no Ocidente
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o imaginário ^^^^B o /i./i,/(/fi\() (/o imaginário no Ocidente
crucificação e da raríssima representação da aparição de ^ ^ ^ ^ H | f l lie m i l idcil clássico. O neoclassicismo reintro-
Jesus à sua mãe (uma aparição concreta, segundo u m ^^^^B tlrítct|uilíl)rio iconoclasta entre os poderes da
exercício de a p a r i ç õ e s ) . N e s s a mesma época, o imagi- ^^^^^pP rt | i i i r l c devida à imaginação no século das Luzes.
nário teatral de um certo Shakespeare apresentará duran- ^^^Wfpli\,iii.l.i d e s d e logo uma funcionalidade pura,'"' o
te a encenação principal de uma peça uma cena secundá- • I I" ' 1 1 n (juilcturas austeras é substituído pela ale-
ria. Isso é tão verdadeiro que, para atingir a profundida- . 11 I I I . i | i i i l . i .
de da iluminação pela própria aparência e pelo sentido, a t miiuilo, no século das Luzes, os movimentos co-
sensibilidade e a espiritualidade "barrocas" comprazem- ' I 'II II 'iii.intismo (Sturm und Drang, na Alemanha) e
se na multiplicação das aparências "por abismos". <i HiiMi.iiiliMiK) foram portos privilegiados e triunfantes.
No entanto, apesar da concorrência tão proveitosa A i<»ltMl( .1 p r é - r o m â n t i c a e os movimentos românticos
do imaginário da Reforma e da Contra-Reforma, a rup- t l i H III Ientes demarcam perfeitamente a quarta resis-
tura definitiva com a cristandade medieval, as "Guerras irt d l ) imaginário aos ataques maciços do racionalis-
das Religiões" e a Guerra dos 30 Anos particularmente MU »• d i i positivismo. Pela segunda vez, esta estética]
— que arruinou e cobriu de sangue a Europa até o tra- ffidiiliei e e descreve u m "sexto sentido" além dos cin-
tado da Westfália (1648) — obrigou os valores visioná- n i ijiie ,\póiam classicamente a p e r c e p ç ã o . M a s este
rios do imaginário a procurarem refúgio longe dos com- "«'sid sentido", que possui a faculdade de atingir o belo, '
bates fratricidas das Igrejas. Eram individualismos rei- irirt, ij^\o jacto, ao lado da razão e da percepção costumei-''^
vindicando a independência, hostilidades contra os I 1, i i i i i . i terceira via de conhecimento, permitindo a en-
jesuítas ou calvinistas ou movimentos à margem de qual- (I.MI.I de uma nova ordem de realidades. Uma via que
quer instituição religiosa. Claro que este imaginário |ii IvileiMa mais a intuição pela imagem do que a demons-;
autónomo junto com a desvalorização dos seus suportes liflt,,ii) p e l n sintaxe. Será com a Razão pura e prática que
confessionais enfraqueceram os poderes da imagem, e o I liiinanuel Kant irá teorizar este procedimento de
preço desta autonomia foi, com freqiiência, o neo-racio-
nalismo dos filósofos que, no século 18, retomaram a
I ' d , Durand, "Notes pour Tétude de la romanomanie" (Notas para
II n'.iu(l() da romanomania), in Les Imaginaires des Latins [Os ima-
(liKlrios latinos], EPRIL, U n i v e r s i t é d e Perpignan, 1 9 9 2 .
16 Lima de Freitas, 5 7 5 , le lieu du miroir, art et numérologie ( 5 1 5 , o '« V . Basch, Essai critique sur l'esthétique de Kant (Ensaio crítico
lugar do espelho, da arte e da numerologia), Albin Michel, 1 9 9 3 . i i i l i i f ,1 estética de Kant), Vrin, 1 9 2 7 .
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o imaginário (' Ihinnloxo (/() imaginário no Ocidente
conhecimento pelo "juízo de gosto". Mas não apenas. ' I H ) , ! positivista e o esgotamento das religiões
No âmago do processo do juízo racional da Razão pura, I I I do ()ti(lcnte. Mas isto não aconteceu de u m
e para permitir a união entre as "formas a priori" da per- ' l i t n nutro.
cepção (espaço e tempo) e as categorias da Razão, Kant I i i i l x i i , ) ,is primeiras insurreições do Sturm und
reabilita a imaginação como uma "esquematização" pre- (1770) — a etapa da doutrina romântica da "arte
parando, de certa forma, a integração da simples per- .lie" McjMiida de seu herdeiro imediato, o perfec-
cepção nos processos da Razão. Os sistemas filosóficos iiiii "p.iriiasiano" — explorassem e consolidassem
mais importantes do século 19, como os de Schelling, ' I ilrtiln imaginai do "sexto sentido", elas não foram
Schopenhauer e Hegel, terão uma participação régia nas lAêlU d.i pc-rfoição imanente das imagens. Será preciso
obras da imaginação e da e s t é t i c a . O poeta Hõlderlin I I I .1 (liegada da corrente "simbolista" para des-
afirmará, no alvorecer do século: "Os poetas autenticam | i i > .11 .1 pt-iloição formal e elevar a imagem icónica,
o que permanece"* e será retomado por Baudelaire e . .1, .ilr musical, a vidência e conquistados sentidos.
Rimbaud. O primeiro coroará a imaginação com o títu- - lítiilo <le " s í m b o l o " à imagem artística significa'
lo de "A Rainha das Faculdades", enquanto o segundo | | t # i i i t i i l i i / i r do significante banal a manifestação de u m
constatará que "qualquer poeta tende a tornar-se u m i l M i l i i i l i N i n o inefável.''S^egundo u m especialista em Sim-"
visionário". N ã o há dúvida de que o artista tornou-se NllUino, seria o mesmo que reencontrar "a galáxia das
"maldito" devido ao sucesso insolente das ciências e téc- l l ^ i i l l l i .nuias [...] o rumor dos deuses...".20 A obra de)
nicas que inauguraram uma inquisição política e uma «II»' l i . i lil)i'rtar-se aos poucos dos serviços antes presta-
ditadura económica novas. Mas nem por isso todos os iliiN h r e l i g i ã o e, nos séculos 18 e 19, à política. Esta
artistas deixam de reivindicar ferozmente os títulos de i m a i u i p a ç ã o Iiicida das artes será o feito tanto de u m
" g é n i o " , "vidente", "profeta", "mago" e "guia"... No Ouulrtvc Moreau, Odilon Redon ou u m Gauguin na p i n -
final do século 19, a arte passa a uma "religião" autóno- lurn como de u m Richard Wagner ou seu rival Claude
ma, revezando-se com seus cenáculos e suas capelas com Urbiissy na música... O Surrealismo da primeira metade
(lo ulo 20 será o resultado natural e reconhecido d o
28 29
o imaginário f ihiKiihni) ih) imaginário no Ocidente
Simbolismo. Este "sexto sentido", que no século das > ftii» iwiwrso e a explosão do vídeo
Luzes revelou ingenuamente a estética, desabrochou
numa filosofia de um universo "completamente diferen- Nii m n l l u r n c i a desta corrente dupla poderosíssima
t e " do pensamento humano e definido p o r A n d r é • Midniia (lo iconoclasmo ocidental e da afirmação do
Breton, no Manifesto de 1924, como o "funcionamento |.» I •'( ((;"MÍliv()" (que produz consciência) da imagem
realista do pensamento".2' Contudo, podemos imaginar iiiiiiin mais esporádica e dominada por aquela
os constantes entraves sofridos por este movimento de I -.III."III.i, pas.sado mais de meio século, sob nossos
um retorno ao Surrealismo, que se posiciona do outro iillin», n i|iii- podemos denominar de "a revolução do
lado de u m empirismo institucionalizado na todo-pode- I <) q u e i i ã o deixa de ser extraordinário é que esta
rosa corrente positivista com sua pedagogia obrigatória, I K . .,n I d,i " t iviji^ação da imagem" tenha sido u m efei-
até ser finalmente marginalizado durante quase todo o t' u n i "ffiMlo perverso" (que contradiz ou desmente
século 20. A prova encontra-se no campo das belas-artes • n i c . n | u r i K Í a s teóricas da causa), do... iconoclasmo
e, por vezes, entre os detentores do Surrealismo e no iili o t icntífico, e cujo resultado triunfante será a
desenvolvimento d o g m á t i c o de toda uma p i n t u r a e I M" M i l positivista. A descoberta da imagem fotográfi-
música n ã o imaginárias, cujas abstrações g e o m é t r i c a s . I , j i i i m i MO em preto ( N . Niepce, 1823; J. Daguerre,
como o Cubismo, o dodecafonismo e o desconstrutivis- I M l / ) f depois em cores (L. Ducos de Hauron, 1869;
mo foram, até o último quarto do século, suas manifes- 1 , I l|ipman, 1891) está estreitamente ligada ao progres-
tações mais ferrenhas.22 XII ijiiiiiiKo (|ue permitiu a gravação da imagem projeta-
I I " A N avessas" pela objetiva da câmara escura numa pla-
1 irnsihilizada — u m f e n ó m e n o muito conhecido a
l> I I III (lo século 15. A animação da imagem reproduzida
(|iiliiii( .iiiiente (A. e L. Lumière, 1885) resulta da aplica-
\,^^t mecânica de u m f e n ó m e n o fisiológico conhecido,
icmi/Hído em 1828 por Joseph Antoine Plateau, o cria-
21 G. Picon, Le Journal du surréalisme (O diário do surrealismo),
1919-1939, Skira, Genebra, 1974. iliii lie i m i dos primeiros cinematógrafos, o fenacistocó-
22 M . Ragon, L'Aventure de 1'art abstrait (A aventura da arte abstrata). plii, iiiii aparelho formado por dois discos que dão a i l u -
Paris, 1956; R. L e i b o w i u , Introduction à la musique de douze tons
(Introdução à música de doze tons), L'Arche, 1949. »Ao (le movimento pela continuidade das imagens da
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() luii.iiluxo do imaginário no Ocidente
o imaginário
retina. A transmissão instantânea destas imagens e " f i l - ^ ( n U l'>l p H v i s i o nem mesmo considerado. Embora a
mes" à distância será o fruto da aplicação da telecomuni- pit|ttUii h l i i i i l . i l decorrente do positivismo tenha se
cação oral (É. Branly, 1890; A. S. Popov, 1895; G. Mar- 4)Ml«HM>iiln p r l o s nicios técnicos (óticos, físico-quími-
coni, 1901) e depois das imagens na televisão (B. Rosing, I I I 111 i ; ' n c licos etc.) da p r o d u ç ã o , reprodução e
1907; V K. Zworykin, 1910-1927) e a descoberta da II iiiiiii ...111 il.i.s imagens, ela continuou desprezando e
onda eletromagnética considerada "inútil e puramente ' ' " " l o o |>n)(luto de suas descobertas. Fato comum
teórica" por H . Hertz. (1888), seu inventor. Eis um belo . pcil.igogias técnico-científicas: foi necessário
exemplo de cegueira de um sábio educado nas escolas e •jH»' > (Mite da p o p u l a ç ã o de H i r o x i m a fosse des-
laboratórios positivistas que se recusou a ver — e prever Mtt(il>i p.ii.i (|iu- os físicos se horrorizassem com os efei-
— o importante resultado civilizacional de sua descober- IH* til' iii.i.s (iiscíibertas inocentes sobre a radioatividade
ta, que permitirá a inesperada "explosão" da comunica- jiMiviii i i i l . i . . .
ção e difusão das imagens. Estas receberiam ainda os . ( ) qiic n,i() ocorreu com a "explosão" do imaginá-
suportes magnéticos dos progressos da física e passariam C u i u d .1 imagem sempre foi desvalorizada, ela ainda
por uma expansão gigantesca com o advento do videocas- lni|ui(t,iva a consciência moral de u m Ocidente que
sete (1972) e videodisco. Se nos detivemos detalhada- Ml «t if.lií.iv.i vacinado por seu iconoclasmo endémico. A
mente nesses inventores e suas invenções foi para marcar f i t n i i i i r p i o d u ç ã o obsessiva de imagens encontra-se
bem a "perversidade" dos efeitos do progresso da física e llflliiill.id.i ao campo do "distrair". Todavia, as difusoras
da química, bem como das experiências e teorizações lliiii^M-iis — digamos a "mídia" — encontram-se oni-
matemáticas do racionalismo iconoclasta do Ocidente. jlfpliriilc.s cm todos os níveis de representação e da psi-
Aos nossos olhos, a ultrapassagem, quando n ã o o ijiir d o l i o m e m ocidental ou ocidentalizado. A imagem
" f i m " da "galáxia de Gutenberg", pelo reino onipresen- lUPtll.ílica está presente desde o b e r ç o a t é o t ú m u l o , ;
te da informação e da imagem visual teve consequências illliiiido ,is intenções de produtores anónimos ou ocul- \
cujos prolongamentos são apenas entrevistos pela pes- Itm i i i i despertar pedagógico da criança, nas escolhas
quisa.25 A razão é muito simples: este "efeito perverso" «oiiAinicas e profissionais do adolescente, nas escolhas
lllMilógicas (a aparência) de cada pessoa, até nos usos e
((Wliinu-s públicos ou privados, às vezes como "informa- /
23 A . L e r o i - C o u r h a n , Le Ceste et la parole ( O gesto e a p a l a v r a ) , 2
(,»n", iVs vezes velando a ideologia de uma "propaganda", /
vols., A l b i n M i c h e l , 1 9 6 4 .
32 33
o imaginário
WH I l l i M i h c r g e r , v e r Bibliografia.
34 35
o imaginário A\ do imaginário
36 37
o imaginário Al f/ííif/u.v do imaginário
38 39
o imaginário Ai ciências do imaginário
como confirma os resultados teóricos que havíamo H^IK l.is dt- I'avl()v com cães) — assim como
criado pessoalmente para as "estruturas" do imaginário; '.Inilidljí .IS e praticamente ilimitadas exis-
todo imaginário humano articula-se por meio de estru- Uoino \.//i/(7iv adulto, especialmente a ligação
turas plurais e irredutíveis, limitadas a três classes cjiic tltm Hlslcmas representativos — o visual e o
gravitam ao redor dos processos matriciais do "separar" I, MMMII» f s i r último muito pobre nos outros
(heróico), " i n c l u i r " (místico) e "dramatizar" (dissenii- i''ltlrii (|,-(". lãbary).
nador), ou pela distribuição das imagens de uma narra- • MUIIÍIÍTO não-humano — répteis e peixes ajor-
tiva ao longo do tempo. .(((iMi/iM provoca uma reação direta: a agressivi-
I I H I h i i iidilo, a emotividade no cão etc. No ho-
2. As confirmações anatomofisiológicas e etológicas MMi Iodas as informações são controladas pelo
I. ( I r i r b r o " (ou "cérebro noemático") (P Chau-
O estudo anatomofisiológico do sistema nervoso I),'" f l . i s p.issam a ser indiretas. Todo pensamento
humano, em particular do encéfalo, confirmou e espe- MM r imia /c-presentação, isto é, passa por articula-
cificou algumas observações clínicas dos psicólogos. Por « I I M I K I I I Í as. Ao contrário do que afirmou um psi- \
um lado, o estudo demonstrou a singularidade anatómi- liliii I fsteve durante algum tempo na moda, no
ca do "cérebro humano volumoso", segundo o termo , I M M i n hild l i á uma solução de continuidade entre o
usado H . Laborit. Podemos afirmar tratar-se aqui de um l o " (• o "simbólico". Por conseqiiência, o ima-^^
"volume" ao "quadrado". Ele capitaliza sob o "cérebro rln t o i í s i i t u i o conector obrigatório pelo qual f o r - y
pré-fi-ontal" (ou "terceiro cérebro") os dois outros cé- M Dm i | M , i l i | u t T representação humana.
rebros: o palencéfalo (centro da agressividade "repti- |íin Kc^iindo lugar, e embora hoje sejamos extrema-
liana") e o mesencéfalo (centro da emotividade "mamí- D iIiIlIi
U | i i u d c n U ' s quanto às "localizações cerebrais" tão
fera"). Este "terceiro c é r e b r o " ocupa dois terços da | - | | | | i lida', pelo filósofo Henri Bergson e prefiramos con-
massa cerebral e controla todas as informações filtradas I I I Í P I Í I I as iiilluências do meio exterior sobre as especiali-
pelas outras esferas do sistema nervoso por meio de Mcuioccrebrais (a emergência "epigenética", J.-C.
suas ligações neurológicas (as fibras de mielina). A r i -
queza' das articulações permite a ligação simbólica entre
I I ii MM l i . i i d , Précis de bioiogie tiumaine (Enunciado da biologia
dois objetos diferentes — fato comum a muitos animais
liiiliiiiiial. I'aiis, 1952. •
40 41
o imaginário A* ilfncidx do imaginário
42 43
o imaginário dl ilcnciíis do imaginário
sapiens, as o b s e r v a ç õ e s dos e t ó l o g o s (especialistas que sfl IV» iiao l i . i " a r t i c u l a ç õ e s s i m b ó l i c a s " complexas,
interessam pelos usos, costumes e c o m p o r t a m e n t o s ) , I l i i n i o s , " l i g a ç õ e s s i m b ó l i c a s " inatas e r u d i m e n -
q u e c o n s t a t a r a m a e x i s t ê n c i a de grandes imagens pri« t|lir IMÍ 111,1111 a base de u m universo i m a g i n á r i o
m o r d i a i s (Urbildêr), que s ã o as diretrizes dos gestos e dai ii < l o s c o m p o r t a m e n t o s vitais da e s p é c i e .
-^atitudes e s p e c í f i c a s n o s c o m p o r t a m e n t o s d o s animais, H m , (ii-vcMTios levar e m c o n s i d e r a ç ã o u m f e n ô -
O s trabalhos d e K. Lorenz^^^ N . T i n b e r g e n e K. von tjtic liistilica a m p l a m e n t e as afirmativas de u m a
Friesch sobre estas imagens diretrizes que i m p l i c a m um <'|il^;c'iu''tica da r e p r e s e n t a ç ã o estudada p o r t o d o s
" m e c a n i s m o i n a t o d e desencadeamento" m u i t o próxi* hillsiologistas: a f o r m a ç ã o d o "grande c é r e b r o "
m o aos a r q u é t i p o s j u n g u i a n o s e aos "esquemas a r q u e t í - Kiiiiio <• m u i t o lenta (neotenia). Se a ligação s i m b ó l i c a
p i c o s " q u e n ó s h a v í a m o s assinalado ( 1 9 5 9 ) s e r i a m co- Mti.ii. ,1 | M i i i i - (los d e z o i t o meses, a a r t i c u l a ç ã o s i m b ó H -
roados p o r u m P r é m i o N o b e l ( 1 9 7 3 ) . N o s c o n h e c i d í s - M 1. i i i c so manifesta p o r volta dos q u a t r o o u c i n c o
simos estudos sobre o c o m p o r t a m e n t o dos gansos selva- it ^ l " i m a ç ã o a n a t ó m i c a d o c é r e b r o h u m a n o se e n -
gens, d o lagarto verde e d o p e i x i n h o carapau, eles des- M.M.i | " M v o l t a dos sete anos, e as r e a ç õ e s e n c e f a l o g r á f i -
c o b r i r a m as imagens stimuli desencadeadoras d o s pode- 141 w I I I >i i i i . i i i / . a m aos vinte anos... " O h o m e m é o ú n i c o
rosos reflexos d o m i n a n t e s . P o r e x e m p l o , u m a pequena m loiíi iiiii.i m a t u r a ç ã o t ã o lenta que p e r m i t e ao m e i o ,
i l | H M l.ilmente ao m e i o social, desempenhar u m grande
32 K. L o r e n z , Le cornportement animal et humain ( O comportamento
animal e humano), Seuil, 1 9 7 6 .
l"|" I i p r e n d i z a d o c e r e b r a l " ( P C h a u c h a r d , op. cit).
44 45
o imaginário 1» ilíhuliis Jo imaginário
A consequência desta neotenia lenta é dupla: não apcii.i» l.t ' . u | M M sii o l i i r a l . Ambos se inserem sub-
requer a educação dos "sistemas" da simbolização como ntti h i i iiiiln inelutável do progresso providen-
faz com que esta educação, dependendo das cultunis P i> 111 | i i i i | i i ) s i ( ) pelo abade Joachim de Flore^^^
até dos momentos culturais de uma mesma cultura, M |,i ' I ' I .i( n u l o fundador do pensamento mo-
muito variável. Isto foi apontado pela "escola culturali •t ti pio^Mvsso inelutável da humanidade e m
ta" americana, obrigando as ciências sociais a voltarem |.... t«" ((inNcciilivas da Revelação, a saber: p r i -
se para outros lados além de sua própria área cultural. 1 • 1" t'(»l, ilcpois a do Filho e, por último, a do Es-
será ao pluralismo de u m imaginário bem fundamenl.i • •, l u t o a época da paz universal por vir.
do pela psicologia e anatomofisiologia que reagirá um.i I i i i i . i | M i Ilda, situar o poder do imaginário —
sociologia do longínquo, do "selvagem". I • «•'tiM^flo .sini!)ólica — na base do pensamento
' ijMiilii ,1 recusar, num único movimento, os
É
ii .iiMH Irtnl.iN ([iianto as perspectivas muito curtas e
46 47
o imaginário iléiít liis do imaginário
caixas cranianas e sua anatomia — as zonas cerebrais l l l i i i n il. I inologia, Paris, 1932). Enquanto os
Broca e Wernicke (temporal-parietal esquerdo) loi.ill |í»>«i|til>i.iilur«'s de campo constatarão a inexis-
zam-se no grande cérebro donde, por conseqiiênci.i, H MiMii illli iciii^.i (|uanto à natureza d o " p r ó x i m o
homo erectus ser dotado da fala. Além disso, as decoi.i ', l4'vy Uriilil atribui aos "primitivos" u m a
ções dos sítios funerários indicam sua capacidade i h " l i i l r i i o i " e "pré-lógica" que os diferencia
acompanhar a morte com um conjunto de signos i i d i i h n h i . i i i c o e civilizado".^5
objetos rituais. Por conseguinte, o cérebro do Im Hiitiiic ,i|K)s a exorcização da "inferiorida-
mem, um ser marcadamente diferente das demais cii.i c especialmente dos processos de
turas vivas, torna-o um homo symbohcus desde suas o i i •.iniiliiude e homeologia (que permitem à
gens mais remotas. I. i(iii|p.ii uMi lugar legítimo, de "terceiro dado",
Estes achados numa vizinhança fraterna dos anu. 11(11 i l f "Kinfusão"), a ciência do homem social
trais do homo sapiens moderno perseguirão literalmtiiu I ,IIM 1(11,11 Iodas as declinações (as "derivações")
toda a nova sociologia causando a explosão do seu euKx i i " imaginário. Muito significativa, e já há
centrismo natal. O paradoxo desta descolonização ili 1 l i i c | i i ( I l l a anos, é a mudança de valor das ter-
telectual coincide com a colonização, pelas potência '1(1», ( ) s Kinceitos pejorativos "pré-lógico", " p r i -
europeias, dos povos que consideram "inferiores". Alt.i V "pfn.sanicnto mítico" v ã o sendo aos poucos
mente significativo destas mudanças e descobertas é ( l(m |)<ir "arquétipo", "a outra lógica", "partici-
intervalo m í n i m o — apenas vinte anos e às vezes n.i( Vli lòilos estes "ancestrais", o u melhor, estas
mais que dois ou três anos — que separa a obra (1( IIIlilas à distância pelas ciências sociais clássicas,
grande etnólogo e teórico Lucien Lévy-Briihl, autor (l( gl.i Ir.uicesa em particular, readquirem sua dig-
Fonctions mentales dans les sociétés injérieures [As funçõc nni.s direitos. Durante muito tempo seu signifi-
mentais nas sociedades inferiores] (Alcan, Paris, 1910) (» de "barbárie" c o m conotações de infantilis-
daquela do grande etnólogo e pesquisador de cam|5i Id.ule, grosseria e incultura, opondo-se radical-
Mareei Griaule {Masques dogons [As máscaras dos Do- rto ili- "livilizada". Os últimos cinqiienta anos i n -
Irtiii |>(ir completo esta relação. Claude Lévi-Strauss
48 49
o imaginário As ciências do imaginário
afirma, no seu famoso livro O pensamento selvagem (1962), E será nesta brecha enorme aberta no flanco da
que, em oposição a qualquer eurocentrismo, "os ho- Nociologia positivista que muitas pesquisas de campo,
mens sempre souberam pensar muito bem" e que em i((t'- iiitão negligenciadas, acabariamprecipitando-se.
cada homem subsiste um patrimônio "selvagem" infini- I:sta corrente oriunda da sociologia do "conheci-
tamente respeitável e precioso. A partir de então, este mento pelo imaginário" do sociólogo da cidade de São
título e esta posiçãofilosóficafizeramescola. ^6 l'.iulo teve duas ramificações: uma retomaria imediata-
Esta reviravolta de valores permitiria fundar uma
mente os estudos americanos de Bastide, impregnando
"sociologia do imaginário" deliberada e complementar,
de forma exógena, os imperativos do imaginário sendo (<)(la a etnologia contemporânea, e a outra se voltaria
evidenciados pela pesquisa psicológica e etológica. Foi o por inteiro, por assim dizer, para os domínios deixados
que percebeu com lucidez o grande sociólogo francês |)()r conta da sociologia.
Roger Bastide (1898-1974), que passou muitos anos no A primeira ramificação inserirá as reservas do ima-
meio da sociedade policultural brasileira; a partir do final ginário — os símbolos, os mitos e os rituais das socie-
da década de 50, ele introduziu com veemência nas terrae dades distantes — no centro dos estudos. Aqui, não
incognitae a pesquisa sociológica "do pensamento obscuro podemos deixar de abrir um grande espaço no rico jazi-
e confuso" do sonho,^'' dos fantasmas das doenças men- go dos americanistas para os trabalhos de Roger Caillois
tais, dos transes religiosos, do símbolo, dos mitos e das e Jacques Soustelle, Alfred Métraux e Jean Cazeneuve.
utopias. Além de inserir este setor importante do imagi- Estes, porém, devem ser considerados mais como gene-
nário na "sociologia do conhecimento", construindo ralistas do que especialistas. Aliás, seus trabalhos per-
desse modo uma ponte entre a sociologia e as psicologias maneceram durante muito tempo em segredo universi-
das profundidades, sua vasta erudição e grande curiosi- tário, um sinal da resistência que a Universidade france-
dade permitiram-lhe criar passarelas entre a sociologia sa, teimosamente, ancorada no seu positivismo natal,
do símbolo e do sonho e as produções literárias. insistia em manter. Era inevitável que Caillois, que ainda
não era diretor da UNESCO nem académico, Michel
36 R. Bastide, Le Sacré sauvage (O sagrado selvagem), Payot, 1975;
M. Hulin, La Mystique sauvage {A mística selvagem), P.U.F., 1993.
Leiris, Alexandre Kojève e Georges Bataille, depois de
37 R. Bastide, "La pensée obscure et confuse" {O pensamento obs- um longo "flerte" com o Surrealismo fundador do
curo e confuso), in Le Monde non chrétien (O mundo não-cristão),
nos 75/76, Paris, 1965. CoUège de Sociologie [Escola de Sociologia] (1937) e vol-
50 51
As ciências do imaginário
o imaginário
tados para "a pesquisa dos Fenómenos humanos das Ainda na esteira de Griaule, é preciso lembrar a
grandes profundezas" (sic) fossem considerados suspei- expansão da nova sociologia entre os africanistas e espe-
tos das piores intenções subversivas devido à ortodoxia cialistas da Oceania e a grande figura de Maurice Lec-
da Sorbonne — onde reinava Leon Brunschvicg — e nhardt ( 1 8 7 8 - 1 9 5 4 ) a quem devemos um dos livros
"suas particularidades de caráter maníaco e puramente mais importantes sobre o imaginário dos melanésios: Do
ritualísticas". O sagrado, o lúdico, o mito, a "incerteza" Kamo, Ia personne et le mythe dans le monde mélanésien [Do
dos sonhos, o fantástico: tantas regiões do Imaginário Kamo, a pessoa e o mito no mundo melanésio] (Paris,
exploradas — poderíamos até di/er "criadas" — por 1947). Dentre os discípulos de Griaule, além de D.
Caillois, o autor deste pequeno livro liilgurante de 180 Zahan e Viviana Pâques, devemos citar o livro de Jean
páginas, Le Mythe et /'/lomme^^ [ O mito e o homem], u m Servier, especialista em tribos berberes. Servier também
dos maiores arquivos comparativos imagináveis e onde se baseia no "Ensaio geral de etnologia", de 1964, cujo
se cotejam desordenadamente a psicofisiologia, a psi- título LHomme et Vinvisible [O homem e o invisível] pode
copatologia, a etno-sociologia, a estética ou... a ento- parecer iconoclasta. Na verdade, os capítulos consti-
mologia! Este combate do imaginário, dos mitos e do tuem um florilégio de grandes imagens que reconduzem
lúdico contra o "particularismo maníaco", este combate ao símbolo absoluto, como, por exemplo, a descrição
de um "saber em diagonal" contra as cspeciali/.a(jões ce- dos rituais funerários em "Os itinerários para o invisí-
gas encontraria novamente um eco na epistemologia do vel" e dos rituais iniciáticos, os passos e os graus evoluti-
"transversal" de Edgar M o r i n e no vigoroso e luxuriante vos dos rituais xamanísticos etc. em "As portas de san-
"alegre saber" do africanista Louis-Vincent Thomas^^^ gue". Trata-se de u m vasto conjunto imaginário de todas
discípulo de Bastide, especialista do imaginário da mor- as forças e provas da etnologia que se opõe às abrevia-
te e nosso mui saudoso amigo. ções das constatações fortuitas da paleontologia. Neste
ensaio demente, de uma ironia mordaz e um florilégio
38 R. C a i l l o i s , v e r B i b l i o g r a f i a , e Roger Caillois et /es .ipproches de
1'imaginaire (Reger C a i l l o i s e as a b o r d a g e n s d o i m a g i n . i r i o ) , C a h i e r s de exemplos irrefutáveis, as reivindicações de um evolu-
de rimaginaire n ° 8 , L'Harmattan, 1992. cionismo são admitidas como dogma. A orientação de
39 L.V. T h o m a s , Fantasmes au quotidien (As f a n t a s m a g o r i a s d o c o -
t i d i a n o ) , M é r i d i e n s , 1 9 8 4 ; G . A u c l a i r , Le Mana quotidien, structures todos os simbolizadores rituais e míticos para o invisível
et fonctions du fait divers ( O m a n a c o t i d i a n o , as e s t r u t u r a s e f u n ç õ e s
arrebata a espécie humana do determinismo animal e
das c r ó n i c a s policiais), A n t h r o p o s , 1 9 7 0 .
52 53
^ 5 ciências do imaginário
o imaginário
vulgar. Aqui percebemos como a obra do etnólogo do Veneza...), do "aventureiro", do "jogador", do "retrato"
Invisível conduz ao campo das revalorizações modernas etc. A posteridade dessa corrente reinstalará — e devol-
das "ciências religiosas". Antes, todavia, examinaremos verá — , no coração do imaginário, uma "forma" aos
a outra grande corrente do pensamento que inaugurará campos de pesquisa especialmente ricos, mas bastante
u m domínio para uma "sociologia do imaginário". abandonados, dos sociólogos da Escola de Grenoble: os
O primeiro, como acabamos de ver, desdobrava-se trabalhos de Jacques Bril, cuja tese, Sjmbolisme et Qvili-
na prospeção do "longínquo" e na reabilitação do "sel- sation. Essai sur Vefficacité anthropologique de Vimaginaire
vagem" e do "primordial". O segundo, ao contrário, [Simbolismo e civilização. Ensaio sobre a eficácia antro-
embora com u m resultado idêntico, fecha-se sobre a pológica do imaginário] (Champion, Paris, 1977), abre
prospecção do mais próximo e do mais "comum", rea- toda uma série de trabalhos referentes aos objetos an-
bilitando o "cotidiano" dos "desfavorecidos". Seus pro- tropológicos como "a tela e o fio", os instrumentos m u -
pósitos podem ser comparados ao reaJy-made (uma obra sicais etc. e que se posicionam entre a mitoanálise tão
ou u m objeto pronto para consumo) que os surrealistas cara aos pesquisadores de Grenoble e a psicanálise;
elevavam ao nível de obras de arte. Mas, entre os e t n ó - Pierre Sansot, o sociólogo da "mostra" poética do sen-
logos do "longínquo", o imaginário prevalecerá quando sível Formes sensibles de Ia vie sociale [As formas sensíveis
se tratar de tornar disfuncionais e menos banais os ob- da vida social] (PUF, 1986) e, por consequência, do
jetos modestos — como o famoso "porta-garrafas" de imaginário respigado numa vasta colheita transversal,
i Mareei Duchamp — e tão familiares que já não susci- tanto na Poétique de la ville [A poética da cidade] (Klinck-
y tam mais nenhuma imagem. O sociólogo alemão Geor- sieck, 1972) como nas Variations pajsagères [As variações
ges Simme^o, precursor desta sociologia "surrealista", paisagísticas] (1980), com seus trabalhos sobre as lem-
foi quem, no início do século, atraiu a reflexão filosófica branças da "infância" provinciana, o jogo de rugby ou
e a análise sociológica para as futilidades da "moda", do ainda dos "desprovidos"; e Michel Maffesoli'^', funda-
"galanteio", das "grandes cidades" (Roma, Florença, dor simultâneo de uma "estética sociológica" atenta às
54 55
As ciências do imaginário
o imaginário
menores imagens do cotidiano, ao frívolo, efémero, gurativa"'*4 (P Tacussel), fundamentando-se num "co-
conquistadora do presente e do atual e de u m neobar- nhecimento comum" ( M . Maffesoli) onde sujeito e obje-
roquismo epistemológico ligado, este t a m b é m , ao Au to formam um só no ato do conhecer e no qual o estatu-
creux des apparences [No vazio das aparências] (Pion, to simbólico da imagem constitui o paradigma (o mode-
1990). Para esta corrente sociológica original convergirá lo perfeito, a demonstração satisfatória pelo exemplo).
a sociologia denominada de "as histórias da vida"'*^ na
qual a investigação do sociólogo cede diante do ima- 4. As "Novas Críticas":
ginário recitativo e representante de uma amostragem da mitocrítica à mitoanálise
de u m grupo social. Finalmente, com Cornélius Cas-
toriadis ou Georges Balandier, as razões políticas dos Este horizonte "figurativo" inaugurado pelas recen-
poderes aparentes serão tão racionalizadas que se desta- tes sociologias repercutiria junto com toda uma corren-
carão sobre u m fundo imaginário mais ou menos pas- te literária e artística denominada a "nova crítica irrita-
sional.43 Nas sociologias mais recentes há um esforço da" — o termo pertence a Lévi-Strauss — , tendo por
para um "reencantamento" (Bezauberung) do mundo da única justificativa as obras culturais, as filiações históri-^
pesquisa e seu objeto ("social" e "wdeta/"*), tão desen- cas e as genealogias dos vários letrados. Gaston Bache-'
cantado pelo conceptualismo e as dialéticas rígidas e lard (1884-1962) foi o pioneiro incontestável desta
unidimensionais dos positivistas. E este "reencantamen- "nova crítica" tão ávida de documentos (texto, obra de
t o " passa acima de tudo pelo imaginário, o lugar-co- arte), em particular dos conteúdos imaginários e das
m u m do p r ó x i m o , da proximidade e do longínquo "sel- heranças estéticas. Será ao redor das imagens poéticas e
literárias dos quatro elementos clássicos que, ainda an-
vagem". A partir de agora, a sociologia passará a ser " f i -
tes da 2? Guerra Mundial (A psicanálise do Jogo'^^), Ba-
chelard construirá uma análise literária na qual a imagem
42 F. F e r r a r o t i , Histoires et histoires de vie, la méthode biographique surge para iluminar a própria imagem, criando assim
des sciences sociales (Histórias e histórias d a v i d a , o m é t o d o b i o -
gráfico d a s c i ê n c i a s s o c i a i s ) , K l i n c k s i e c k , 1 9 8 3 .
« C . B a l a n d i e r , Pouvoirs sur scéne ( O s p o d e r e s e m c e n a ) , Balland,
1 9 9 0 ; C. C a s t o r i a d i s , Llnstitution imaginaire de la sociétè (A i n s t i t u i - '•'» P. T a c u s s e l , L'Attraction sociale, le dynamisme de l'imaginaire
dans la société monocéphale (A a t u a ç ã o s o c i a l , o d i n a m i s m o d o
ç ã o imaginária d a s o c i e d a d e ) , S e u i l , 1 9 7 5 .
imaginário na s o c i e d a d e m o n o c é f a l a ) , M é r i d i e n s , 1 9 8 4 .
• O i m p a c t o n o nível d a s o c i e d a d e ; as d i f i c u l d a d e s e c o n ó m i c a s , s o -
« Psychanalyse du feu (A psicanálise d o f o g o ) , C a l l i m a r d , 1 9 3 8 .
ciais o u a m b i e n t a i s , d e natureza setorial o u r e g i o n a l . (N.T.)
56 57
o imaginário As ciências do imaginário
uma espécie de determinismo transversal na história e "irritação" provocada pela crítica historicista, nem por
na biografia. Trata-se de uma elaboração poética ao lon- isso deixaram de recair nos caminhos habituais do posi-
go das famílias das imagens simbólicas e da qual a obra tivismo mascarado pelas supostas "ciências" da literatura
escrita em 1960, La Poétique de la rêverie [A poética do (a gramatologia, a semiótica, a fonologia etc.) onde os
devaneio] seria o testamento. Com freqiiência, esses tra- poderes "poéticos" da imagem se perdem de novo nos
balhos fundadores convergiam com a crítica psicanalítica mistérios de u m sistema que esvazia a pluralidade antro-
da qual Charles Mauron^^, o criador da "psicocrítica", pológica e m prol deste novo "monoteísmo" que é a
foi o representante mais obstinado. Contudo, com Ba- "estrutura" abstrata todo-poderosa. Esta considera-se
chelard e seus discípulos e ao contrário das contestações "órfa de pai e mãe" enquanto, na realidade, insere-se de
psicanalíticas à obra devidas aos incidentes biográficos forma banal numa velha lógica binária obcecada pelo
do seu autor, ocorre uma liberação da imagem realmen- silogismo. O s discípulos de Bachelard, Jean Pierre
te criadora — "poética" — da obra, do seu autor e seu Richard {Littérature et sensation [Literatura e sensação],
tempo. Esta mesma confluência deu-se também — pelo 1954), uma das figuras de popa da "Nova Crítica", e nós
menos com uma certa condescendência para com o for- mesmos (Le Décor mythique de La Chartreuse de Parme [O
malismo — com a Escola de Genebra e foi ilustrada ambiente mítico da Cartuxa de Parma], Corti, 1960)
seguindo a esteira de Mareei Raymond (1897-1984), permanecerãofiéisaos conteúdos imaginários dos traba-
Jean Rousset, Jean Starobinski e o belga Georges Pou- lhos. Mais adiante veremos como esta fidelidade à "ges-
let47 e, porfim,com a convergência com os trabalhos de tação simbólica" (E. Cassirer) permitirá o acesso a uma
Michel Cazenave sobre o mito de Tristão. outra lógica totalmente diferente daquela, binária, do
Todavia, a originalidade de Bachelard e sua posteri- "ou... ou" e com base na "exclusão de um terceiro". N o
dade foi a de nunca terem se sacrificado ao canto das se- entanto, na pessoa de Claude Lévi-Strauss^s, devemos
reias "estruturalistas". Estas, desejando libertar-se da restituir ao estruturalismo o que há de mais fecundo na
sua exploração do mito. De fato, será ele quem apontará
"6 Ch. Mauron, Des Métaphores obsêdantes au mylhe personnel a qualidade essencial do sermo mythicus, isto é, da redun-
íDas metáforas obsessivas a o m i t o p e s s o a i j , C o r t i , 1 9 6 3 .
"•^ J. Rousset, Forme et signification ( F o r m a e s i g n i f i c a d o ) , J. C o r t i ,
1 9 6 2 ; C . P o u l e t , Études sur le temps humain (Estudos s o b r e o t e m p o
h u m a n o ) , R o c h e r , 1 9 5 0 ; J. S t a r o b i n s k i , L'CIil vivant {O o l h o vivo), da C l . Lévi-Strauss, UAnthropologie structurale {A a n t r o p o l o g i a e s t r u -
Gallimard, 1 9 6 1 .
tural), PIon, 1 9 5 8 .
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As ciências do imaginário
o imaginário
dância. Como o mito não é nem u m discurso para xa de ser a propedêutica indispensável para qualquer tra-
demonstrar nem uma narrativa para mostrar, deve ser- tamento do mito. E interessante notar que Victor H u -
vir-se das instâncias de persuasão indicadas pelas varia- go'^^ já observara em Shakespeare este "fato muito estra-
ções simbólicas sobre u m tema. Estes "enxames", "pa- nho" de uma "ação dupla que se repete em menor ao
cotes" e "constelações" de imagens podem ser reagru- longo do drama", e em Hamlet e no Rei Lear, "junto a u m
pados em séries coerentes ou "sincrônicas" — os " m i - drama menor que copia e acompanha o drama principal,
temas" de Lévi-Strauss (a menor unidade semântica ocorre o desenrolar de uma ação que arrasta consigo,
num discurso e que se distingue pela redundância) — como uma lua, uma ação menor, sua semelhante". Sem
além do fio temporal do discurso (diacronia). Foi assim saber, o grande poeta, que Lévi-Strauss iguala a Richard
que o etnólogo dos Nanbikwara* classificou, em tabelas Wagner, seria o ancestral das nossas mitocríticas moder-
divididas em duas partes (diacrônica e sincrônica), os nas que se apoiam nas redundâncias constitutivas das
mitos ameríndios como também examinou à "america- "sincronicidades".
na" os mitos clássicos como o de Édipo ou Parsifal. N o Neste movimento sólido de uma mitocrítica (que
entanto, aprisionado à lógica binária, Lévi-Strauss recu- permanece bachelardiana) assinalemos o departamento
sou-se a perceber que estas ligações transversais à narra- das "línguas e letras" da Escola de Grenoble, mais co-
tiva diacrônica criavam pelo menos uma terceira dimen- nhecida pelo seu antigo nome, "Centro de Pesquisas do
são, u m "terceiro dado". Nem por isso este m é t o d o dei- Imaginário" [Centre de Recberche sur Flmaginaire — C.R.I.].
« Fundado em 1966 por três professores da Universidade
de Grénoble, u m dos quais foi Leon Cellier, o departa-
* NAMBIQUARA — Nambikwára ou Nhambiquara. Nome genérico,
em tupi, de diversos povos cujas línguas tonais são agrupadas numa mento apresentou u m grande n ú m e r o de trabalhos —
mesma família, não incluída em unidades maiores. Vivem, na maio- iniciados dez anos antes com nosso O ambiente mítico da
ria, no oeste de Mato Grosso, na fronteira com Rondônia. Os Nam-
blquaras do Campo vivem nas áreas indígenas Nambikwára e Ti- Cartuxa de Parma, Corti, 1961 — d o s "mitocríticos" so-
racatinga; os principais grupos são Halotesu, Kitaulhu, Wakalitesu e bre autores tão diversos como Júlio Verne (S. Vierne,
Sauentesu. Os Nambiquaras do Norte vivem nas áreas indígenas Pi-
rinéus de Souza, Tubarão-Latundê e Vale do Guaporé; os principais 1972); Shelley (J. Perrin, 1973); Proust (C. Robin,
grupos são Negarote, Mamaindê, Latundê, Sabanê e Manduka. O 1977); Baudelaire (P Mathias, 1977); Blake ( D . Chau-
Nambiquara do Sul ou do Vale vive nas áreas indígenas Vale do
Guaporé e Sararé; os principais grupos são Hahaintesu, Alantesu,
Waikisu, Alanketesu, Wassusu, Sararé, Katitauriu e Nuntatesu. Em
1990, segundo a Funai, eram 885 índios. (N. T.) « V. Hugo, William Shakespeare, Flammarion, 1973.
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o imaginário As ciências do imaginário
vin, 1981) e t c , e os trabalhos mais recentes de Ph. Wal- Bordeaux III, dirigido por Claude-G. Dubois. Fundado
ter sobre a literatura da época do rei Artur; e de J. Siga- sete anos mais tarde e irmão caçula do Centro de Gre-
nos, autor de uma tese importante sobre o simbolismo noble, o Laboratório edita há mais de vinte anos o
do inseto. Outrossim, há ainda as pesquisas que se en- Boletim de Pesquisas Eidôlon, publica as pesquisas volta-
tremeiam nas "mitoanálises", ultrapassando a obra de das para a "mitocrítica", como ilustra muito b e m o tra-
um único autor, como o mito da infância na literatura balho monumental de Patrice Cambronne sobre as es-
narrativa italiana do século 20 (G. Bosetti); o conjun- truturas do imaginário de Auguste Comte. Devemos
to dos romances afro-negros de língua francesa (A. e ainda acrescentar que os trabalhos de Claude-G. Dubois
R. Chemain, 1973); a mitologia japonesa (A. Rocher, servirão como exemplo para a simultaneidade da aber-
1989); e a literatura anglo-saxã (J. Marigny, 1 9 8 3 ) , tura e ampliação da mitocrítica para a mitoanálise e dos
cujos objetivos confluem para o Laboratório de Pesquisa nossos métodos em colaboração com os da Escola de
sobre o Imaginário Americano [Laboratoire de Recherche Constança,so o berço da "teoria da recepção".
sur I'Imaginaire Américain] dirigido por Viola Sachs de A partir do "longínquo" século 16, tão importante
Paris VIIL Se nós nos permitimos dedicar meia página para nossa civilização ocidental, Claude Dubois pode
ao ,C.R.L de Grenoble é porque ele foi o embrião de dar conta da fragilidade dos historicismos e das explica-
cerca dos quarenta e três centros de Pesquisa sobre o ções históricas que quase não conseguiram libertar-se
Imaginário que, em 1982, se reuniram na Associação de do "mítico" do século de Bodin, Aubigné e Postei. Além
Pesquisa Coordenada [Groupement de Recherche Coor- disso, ele demonstrou que a determinante do "Imagi-
donnée — G.RE.CO.] (um centro de pesquisa que, infe- nário do Renascimento" [LImaginaire de la Rennaissance]
lizmente, já não existe mais) no C.N.R.S. Não se trata P U . E , 1985, foi uma espécie de "meta-história" (uma
aqui de catalogar todos os Centros espalhados pelos cin- história além ou ao lado da cadeia unidimensional dos
co continentes, de Seul a Sidney, de Montreal ao Recife acontecimentos) e que criou u m campo receptivo mui-
ou de Brazzaville a Lublin. N o entanto, como exemplo to tipificado, o do "barroco" e do "maneirismo", o que
das pesquisas da mitocrítica chamamos a atenção para o conduziu a uma leitura sistemática do que chamaremos
Laboratório Pluridisciplinar de Pesquisa do Imaginário mais adiante de "campos semânticos". Os trabalhos do
Literário [Laboratoire Pluridisciphnaire de la Recherche sur
rimaginaire Littéraire — LAPRIL] da Universidade de 50 H . R. Jauss, Pour une esthétique de la réception (Para u m a estética
d a r e c e p ç ã o ) , prefácio d e ). S t a r o b i n s k i , G a i i i m a r d , 1 9 7 8 .
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o imaginário As ciências do imaginário
latinista Joel Thomas, fundador da "Equipe para a pano de fundo, um conjunto mítico relativo à infância.
Pesquisa do Imaginário dos Latinos" [Equipe pour Ia Aurore Frasson, no seu trabalho sobre Italo Calvino, já
recherche sur Vimaginaire des Latins — EPRIL] devem ser pressentia até que ponto a obra de um grande roman-
inseridos nas perspectivas desta mitoanálise formadora cista reforça a história de uma época com um conjunto
de uma história completamente diferente e não eventual. mítico e imaginário. Por outro lado, o já citado sociólo-
No seu trabalho magistral, "As estruturas do Imaginário go Alain Pessin mostrava que, por detrás de toda a his-
na Eneida" \Les Stmctures de Vimaginaire dans rÉneide, Bel- tória do século 19 e seus maiores expoentes — Hugo,
les Lettres, Paris, 198151], Thomas mostra como a con- Michelet, Ballanche, Lamennais, Daumier, Pierre Le-
fluência de uma obra poética e a ação política de Auguste roux, Blanqui ou George Sand — seguia, como o fio
Comte fundamentam e restabelecem o mito cíclico da vermelho de um colar, o mito do Povo.52
era de Saturno e proporcionam à restauração do Im- Em Grenoble, o estudo das "mitologias" do século
pério uma ética da iniciação. 19 — já abordadas por M. Maffesoli e Jean Brun no
Ao voltarmos para o domínio de Grenoble, deve- retorno de Dioniso — foi a especialidade de Françoise
mos ainda assinalar o esforço para reconciliar um novo Bornadel e Jean-Pierre Sironneau, que estudaram jun-
olhar histórico e sociológico com o mito da "mitoanáli- tos e "a contrapelo": enquanto Bornadel examinava as
se". Leon Cellier abriu um caminho ao liberar os gran- esperanças míticas escondidas no século, Sironneau
des "mitos românticos" (1954) com os vários trabalhos dedicava-se aos desastres das mitologias oficiais. Em um
de Ballanche, Soumet, Lamartine etc. Anteriormente, a livro magistral e fenomenal, Philosophie de Valchimie [A
enorme pesquisa de Gilbert Bosetti, condensada num filosofia da alquimia] (RU.R, 1993), subintitulado de
"livrinho" de 360 páginas, mostrava e evidenciava à forma esclarecedora de "Grand-CEuvre et modernité"
exaustão que, apesar da tenacidade das oposições ideo- [A grande obra e a modernidade], a especialista em filo-
lógicas do ''Ventennio nero^\, como num sofia hermética mostra como os pensadores mais sérios
da nossa modernidade e tão "desocupados" — não
5 1 J . T h o m a s (sob a d i r e ç ã o de), Les Imaginaires des Latins ( O s i m a g i -
nários d o s latinos;, P. U n i v . P e r p i g n a n , 1 9 9 2 ; C l . - G . D u b o i s , La Con-
ception de l'histoire de France au XVIf siècle (A c o n c e p ç ã o
história d a França n o século X V I ) , N i z e t , Paris, 1 9 7 7 ; Mots
da
et régies,
52 A . P e s s i n , i e Mythe du Peuple et la société française au X/X? siè-
cle [ O mito d o p o v o e a s o c i e d a d e francesa no século 1 9 ] , P.U.F.,
jeux et delires (Palavras e regras, jogos e delírios), P a r a d i g m e , C a e n ,
1 9 9 2 ; La Revêrie anarchiste {1848-1914) ( O onírico anarquista
1992.
(1848-1914)], Méridiens, 1 9 8 2 . •
64 65
o imaginário As ciências do imaginário
apenas os inovadores de correntes ocultas como Eliade, Em contrapartida, Jean-Pierre Sironneau, na sua
Corbin, Jung e Bachelard, mas também Wagner, Nietzs- tese Sécularisation et religions politiques [A secularização e
che, Artaud, T h . Mann, Caillois, Bousquet, Heidegger as religiões políticas], atém-se aos dois grandes mitos
ou Bonnefoy... — buscaram a inspiração para suas obras que ocuparam oficialmente a Europa e uma parte do
num consenso mítico difuso mas profundo que não é mundo: o nacionalsocialismo de u m lado e, de outro, o
outro senão a velha filosofia "imaginária" da alquimia. "comunismo leninista-stalinista". Causa-nos grande es-
Em todos estes autores que compõem nossa moderni- panto que estes mitos — que consideravam-se expli-
dade ainda que "pós-moderna" há uma intuição "filo- citamente u m " m i t o " , segundo Alfred Rosenberg, ou
sofal" que ultrapassa os conceitualismos filosóficos, u m apoiavam-se numa lógica afetiva e num mito milenar,
"imaginar (uma "transcendência do imaginar", segun- porque não dizer joaquinista, inconfessos mas presentes
do a definição de Corbin) que sustenta as imagens. em Marx — regeram de acordo com suas normas tanto
Segue uma observação sobre os ressurgimentos de anti- o cientificismo alemão ou russo quanto as Igrejas. 54
gos mitos que atualizam a mitoanálise no seio de uma Mas nessas duas séries de trabalhos, o que devemos ter
história obcecada pelo único mito do progresso: que em mente é a própria superposição num mesmo século
estes retornos, estas "dissimilitudes" (Entgleichzigkeit) de duas vigas míticas antagonistas: uma, oficializada pe-
são, como Lévi-Strauss e P Soroldn^^ já haviam obser- los poderes políticos, e a outra, subterrânea e "latente".
vado, a conseqiiência da estreiteza de escolhas possíveis Aquela encontrando conforto nas teorias cientistas e
no âmago de um estoque mítico próprio ao sapiens e pseudocientíficas, esta mascarando os problemas e as
limitado pelas leis da coerência das imagens. Estas inse- angústias da nossa modernidade debaixo de soluções e
rem-se em algumas raras possibilidades (em três, segun- imagens de teorias herméticas antiquíssimas.
do P Sorokin e nós mesmos) definidas pelos regimes
Esta "superposição" será um tema de reflexão quan-
das imagens. As mudanças do imaginário são regidas
do abordarmos a questão da "tópica" sociocultural. (Ver
por um "princípio dos limites" duplo: um "limita" no
página 92.)
tempo a gestação de uma viga mítica e o outro, as esco-
lhas das mudanças míticas.
54 H . D e s r o c h e , Socialisme etsociologie religieuse (O socialismo e a
s o c i o l o g i a r e l i g i o s a ) . C u j a s , 1 9 6 3 ; A . B e s a n ç o n , Les Origines inte-
lectuelles du léninisme (As o r i g e n s i n t e l e c t u a i s d o l e n i n i s m o ) , C a l -
53 P. S o r o k i n , v e r B i b l i o g r a f i a . man-Lévy, 1977.
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As ciências do imaginário
o imaginário
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As ciências do imaginário
o imaginário
como o trajeto de u m pássaro consiste na continuidade
(que ele denomina "pressupostos temáticos" ou thêma-
do seu vôo e paradas. Podemos ainda citar a influência
ta) na orientação singular da descoberta. Estes thêmata
do célebre filósofo dinamarquês Kierkegaard, para
contribuíram para o que Einstein chamava de Weitbild, a
quem, ao contrário da "síntese" hegeliana, são as con-
"imagem do mundo" (não apenas do Universo, mas
tradições e as descontinuidades da vida que tecem a
"do mundo", do ambiente cotidiano e humano). Na sua
generalidade formal, os thêmata se aproximam (descon- continuidade da existência. Este estudo minucioso de
cia-evolução etc.) dos "arquétipos junguianos" ou do e para explicar suas próprias orientações, o pensamento
que denominamos de "esquemas". Holton, ao retomar científico vê-se constrangido a pedir auxílio ao mesmo
uma diferença célebre entre os imaginários "dionisía- imaginário durante tanto tempo reprovado, no século
cos" e "apolíneos", demonstrou, de maneira muito m i - 17, pelo iconoclasmo das teorias originárias... No p r ó -
nuciosa e corroborada por amplas pesquisas de psicos- prio santuário da física, que esteve longamente voltado
sociólogos, que as descobertas dos especialistas mais apenas para o seu mecanismo, as imagens irreconciliá-
importantes (Kepler, Newton, Copérnico e sobretudo veis da onda (contínua) e do corpúsculo (descontínuo)
Niels Bohr e Einstein...) foram de alguma forma pres- vêem-se obrigadas a se associarem a u m "mecanismo
sentidas pela formação e as fontes imaginárias de cada ondulatório". Dessa forma, a precisão científica não
pesquisador (freqiiências, educação, leituras...). Desta pode abrir m ã o de uma "realidade velada" (Bernard
maneira evidencia-se a discussão irredutível entre u m d'Espargnat), onde os símbolos, estes objetos do imagi-
Einstein partidário do "deus da ordem" de Newton, e nário humano, servem como modelo... ^
muito próximo do Jeová bíblico, e u m Niels Bohr parti-
dário de u m Deus jogador de dados, "intolerável" aos 6. Os confins da imagem e do absoluto
olhos de Einstein. Esta posição de Niels Bohr, ao optar do símbolo: homo religiosus
por uma física do descontínuo, do "salto" quântico, foi
acalentada na sua infância pelo filósofo e psicólogo Numa primeira abordagem teríamos a impressão de
dinamarquês Harald Hõffding — u m amigo da família que as psicologias das profundidades, estas sociologias
Bohr — , adepto da psicologia de William James, o "figurativas" e epistemologias abertas aos "pressupostos
famoso "fluxo de consciência", onde a unidade é com- temáticos", terminam em linha reta e se r e ú n e m ao reli-
plementar aos eventos descontínuos e dispersos, assim giosus da ciência das religiões, pois desde os tempos ime-
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o imaginário As ciências do imaginário
moriais — pelo menos desde o alvorecer da espécie ho- de sua tese Sacré et désacralisation [O sagrado e a dessacra-
^ mo sapiens — as manifestações religiosas sempre foram lização], analisou muito bem estes movimentos de dessa-
consideradas como provas da principal faculdade de cralização e secularização que atingem a teologia em
simbolização da espécie. Ora, acontece que não é nada cheio. Não deixa de ser significativo que o revisionismo
disso: no Ocidente, tanto o domínio do religioso como teológico tenha se originado fora das diretrizes das Igre-
o do profano passaram pelas mesmas perversões positi- jas. Nos primeiros anos do nosso século, as dificuldades
; vistas e materialistas. Ao aceitar o aggiornamento por para as explicações historicistas do sagrado produziram
concordatas (doutrina que tenta conciliar os dados reli- uma corrente inteira de análises "fenomenológicas" (que
giosos com os da ciência), o Ocidente calculou mal e se atêm "à coisa em si", ao próprio objeto do religiosas)
acabou sendo relegado ao "teológico", à época mais do Sagrado. E é nesta corrente que se situam dois dos
arcaica do conhecimento ou a um nível de superestru- principais inovadores do papel do imaginário nas apari-
tura soporífica e nociva. No Ocidente, a partir do final ções (hierofanias) do "religioso" no centro do pensa-
do século 18, as religiões institucionalizadas passaram a mento humano: o romeno Mircea Eliade (1907-1986) e
ser consideradas conforme o gosto historicista e cientis- o francês Henry Corbin (1903-1978).58
ta do dia. Estas tentações, que reagrupamos sob o nome Numa obra monumental, ambos resgataram o ima-
de "modernismo", almejam, segundo as palavras do filó- ginário constitutivo na sua relação com o Absoluto, o
sofo Jean Guitton, "fundar a fé sobre o espírito dos tem- * religiosas. Eliade, ao retomar as conclusões de filologia
pos". Donde, claro, o esforço dobrado dos teólogos para comparada de Georges Dumézil — que, em 1949,
"desmitificar" as verdades da fé e fundamentá-las em escreveu o prefácio do célebre Traité d'histoire des religions
fatos históricos positivos. Os teólogos ocidentais só con- [Tratado da história das religiões] do mestre romeno —
seguiram exorcizar as tentações modernistas e iconoclas- mostra que em todas as religiões, mesmo nas mais
tas recentemente. Com o questionamento da "moderni- arcaicas, há uma organização de uma rede de imagens
dade", o "monoteísmo" do futuro científico fragmen- simbólicas coligidas em mitos e ritos que revelam uma
tou-se em pluralismos, foi renegado por uma "filosofia trans-história por detrás de todas as manifestações da
do não" (G. Bachelard), e as grandes "religiões secula-
res", o nacional-socialismo e o leninismo-stalinista, des-
moronaram. Jean-Pierre Sironneau, na primeira parte 58 Duas revistas do "Cahiers de THerne" lhes foram respeitosamente
dedicadas.
72 73
o imaginário — As ciências do imaginário —
religiosidade na história. U m processo mítico que se faculdade humana que permite a algumas pessoas atin-
manifesta pela redundância imitativa de u m modelo ar- girem u m universo espiritual, uma realidade divina — ,
quetípico (perceptível mesmo no cristianismo, onde os a essência do religiosus, a qual, por vezes, "olha para o
"eventos" do Novo Testamento se repetem sem " e l i m i - homem" e, por outras, é o objeto de sua "contempla-
nar" aqueles do longínquo Antigo Testamento) e pela ção". O "imaginai", imaginatio vera, a faculdade "celes-
substituição do tempo profano por u m tempo sagrado: tial" — confirmada por vários místicos protestantes
' o illud tempus da narrativa ou ato ritual. Estes elementos como Jakob Bõhme ou Emmanuel Swedenborg — en-
encontram-se ainda no comportamento cristão, onde o contra seu campo privilegiado no islamismo, onde não
tempo litúrgico substituirá o porvir profano. Como em pesam os intermediários eclesiásticos e a "inteligência
Dumézil — quando, o que havíamos considerado d u - espiritual" tem acesso direto ao objeto do seu desejo.
rante muito tempo a história romana positiva, como em Todas as "narrativas visionárias" orientais, tanto as pré-
Tito Lívio, por exemplo, será absorvido pelos grandes islâmicas do zoroastrismo quanto, e sobretudo, as sufis-
mitos indo-europeus — "a história das religiões" revela tas (sunitas) e chiitas baseiam-se nesta faculdade da
a perenidade das imagens e dos mitos fundadores do "imaginação criadora" que permite ao contemplativo o
fenómeno religioso. Eliade, que é também u m grande acesso a u m mundus imaginalis, um mundo "intermediá-
romancista, mostra que há uma continuidade entre os r i o " , o malakut da tradição iraniana, onde "os corpos se
imaginários: o do romancista, do mitógrafo, do conta- espiritualizam e os espíritos se corporalizam".
dor, do sonhador... Q que é admirável, tanto em Eliade como em Cor-
No islamólogo Henry Corbin^^ há uma preferência bin, para uma teoria do imaginário, é que eles conse-
— como em Bachelard, que já distinguia nitidamente a guem mostrar, com uma erudição gigantesca, que o
nobreza criadora do devaneio da banalidade pouco coe- imaginário dispõe, ou tem acesso a, de u m tempo —
rente do sonho — por uma "eletividade" de uma parte illud tempus — específico que escapa à entropia da dissi-
da imaginação criadora em relação ao venha-como-vier metria newtoniana (sem o "depois" que necessita o
do imaginário. Esta preferência é a do "imaginai" — a "antes"), e a uma extensão figurativa (na koja abad =
"não-onde" em persa) diferente do espaço das localiza-
59 H. Corbin, Avicenne et le récit visionnaire (Avicena e a narrativa ções geométricas. Não há dúvida de que o mundo do
visionária), 1954, Berg, 1979; Terre celeste et corps de réssurectíon
(A terra celeste e o corpo da ressurreição), Buchet-Chastel, 1960.
imaginário que coloca em evidência o estudo das reli-
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o imaginário As ciências do imaginário
76 77
III
o BALANÇO CONCEITUAL E O NOVO
MÉTODO PARA A ABORDAGEM DO M I T O
A/ O alógico do imaginário
79
o imaginário O balanço conceituai e o novo método
foi demonstrado por Kant, este modelo de raciocínio como foi constatado pela física contemporânea em cer-
assenta-se sobre as "formas a priori'" da percepção, ou tas áreas materiais (B. d'Espagnat). O resultado a priori
seja, no espaço euclidiano onde os círculos de Euler ins- desta "simetria" e "não-separabilidade" é que, embora
crevem as relações identificadoras (o "círculo" mortal identificados, os elementos do discurso (sermo mjthicus),
c o n t é m o do homem, que contém Sócrates...) e indi- nem por isso são menos solidários. Segundo os lógicos,
cam as exclusões: não-mortal ou imortal, rochedo, está- o status da identidade deixa de ser uma "extensão" do
tua etc. Aqui, a identificação localiza-se e separa-se do objeto/conceito para tornar-se uma " c o m p r e e n s ã o " (o
resto nas coordenadas de um espaço-tempo universal e conjunto de suas qualidades e seus "atributos"). Se-
h o m o g é n e o (Euclides e Newton). A identidade consti- gundo a velha fórmula, "in subjeao" (praedicatum inest
tui uma espécie de ficha do "estado civil" (René Thom) subjecto...), a identificação já não reside mais "num su-
que fixa seu objeto no tempo e o circunscreve no espa- jeito", mas na trama relativa dos atributos que consti-
ço (a separabilidade).
tuem o "sujeito" ou, melhor, o objeto...
No pluralismo é totalmente diferente; é o que Ao estudarmos o mundo imaginário, os maus hábi-
constatamos — como Eliade e Corbin, entre outros — tos herdados do "terceiro excluído" vão se atenuando
pela existência de fenómenos que se situam num espaço aos poucos. Muito significativa em Freud, esta segunda
e tempo completamente diversos. Aqui, trata-se do illud tópica composta de três elementos (o isto, o eu e o su-
tempus do mito, que — segundo Eliade, o qual t a m b é m perego) substituirá a primeira tópica dualista: conscien-
é um romancista e escreveu narrativas profanas como o te-inconsciente. N ó s t a m b é m substituímos a contradi-
conto, a legenda, o romance... — c o n t é m seu próprio ção, fácil demais, do "diurno" e "noturno" — herança
tempo numa espécie de relatividade (generalizada!) bem de Guy Michaud^' — por uma tripartição estrutural
específica e "não-assimétrica" (Olivier Costa de Beau- (esquizomorfa ou heróico-mística ou participativo-sin-
regard), onde o passado e o futuro independem entre si
tética ou, melhor ainda, "disseminadora"). Aliás, a pas-
e os eventos são passíveis de reversão, de uma releitura,
sagem para u m pluralismo tripartite é sinal do abando-
de litanias e rituais repetitivos... como foi apontado pela
no do dualismo "exclusivo" em Georges Dumézil e Pi-
filosofia pré-socrática com o termo enantiodromia ou re-
trocesso ou "dar a meia-volta". É t a m b é m o " n ã o -
onde", caro a Corbin, dos fenómenos "não-separáveis" 61 C. Michaud, Introduction à une science de la littérature (Intro-
dução a uma ciência da literatura), Puhlan, Istambul, 1950.
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o imaginário O balanço conceituai e o novo método
t i r i m Sorokin ou na taxinomia que compartilhamos A alogia do mito ou do sonho sempre foi rejeitada
com Yves Durand e Dominique Raynaud e, de maneira no purgatório (quando não no inferno) do "pré-lógico"
mais complexa, com Pierre Gallais, o especialista em e da "participação mística" onde, como todos sabem, os
literatura medieval, que acrescenta dois outros valores índios bororós, por causa de uma confusão mental, se
às oposições "exclusivas" das proposições contraditó- tomam por araras (L. Lévy-Bruhl, É. Durkheim...). Já
rias: a disjunção e a conjunção que permitem à narrati- devíamos ter sido alertados por esta agressividade e este
va se "desenrolar".62 combate heurístico que assumem os ares de uma cruza-
Desta concepção resultou, além da identidade, uma da "heróica": quando evocamos o Diabo em nome do
lógica — ou melhor, uma alógica — do imaginário, seja ' b o m Deus é porque precisamos dele! Como Freud já
ele o sonho, o onírico, o mito ou a narrativa da ima- observara, o herói depende do monstro ou do dragão
para transformar-se num herói, e os trabalhos de Yves
ginação.
Durand mostram que, quando o monstro é minimizado
— "guliverizado", como diz Bachelard — , o herói pen-
2. A lógica do mito dura a espada no vestiário e calça os chinelos... Na afeti-
0/idade (Freud), como em qualquer projeção imaginária,
há uma conivência dos contrários, uma cumplicidade
A lógica do mito encontra-se exatamente na sua
onde u m elemento existe pelo outro. Segundo u m título
diferença em relação à lógica clássica ensinada desde
de Bachelard, todo "pluralismo" é "coerente", e o pró-
Aristóteles até Leon Brunschvicg e que provocou, e
prio dualismo, ao tornar-se consciente, transforma-se
continua provocando, tanto uma desconfiança quase re-
numa "dualidade" onde cada termo antagonista precisa
ligiosa em relação ao imaginário como hostilidades vio-
do outro para existir e para se definir E o que denomi-
lentas contra os pesquisadores do imaginário nas múlti-
namos u m "sistema" e que é inverso à acepção do ter-
plas disciplinas.
mo em francês onde significa uma certa rigidez ideo-
lógica. Para os especialistas da "teoria dos sistemas",^^
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o imaginário O balanço conceituai e o novo método
este vocábulo implica, ao contrário, a ideia de uma taoístas (um círculo dividido por um S que forma dois
abertura necessária e uma flexibilidade: trata-se de um setores simétricos e de cores diferentes, cada um con-
conjunto relacional entre vários elementos que podem tendo um círculo pequeno com a cor do outro), como
até ser contrários ou contraditórios. Por conseguinte, a brasão no qual cada figura simétrica e oposta contém
origem da coerência dos plurais do imaginário encon- uma parcela do outro. Um outro físico, Fritjof Capra,
tra-se na sua natureza sistémica, e esta, por sua vez, fun- deu o título de O Tao da Física a um de seus livros. Na
da-se no princípio do "terceiro dado", na ruptura da física, este anfibólio consiste nas famosas "relações de
lógica bivalente onde A exclui não-A. Com efeito, per- incerteza" de Heisenberg, no qual, quanto mais um ele-
mitir um conjunto de qualidades intermediárias signifi- mento do sistema for conhecido, isto é, analisado nos
ca permitir a A, e a não-A, participar em B. Temos: A = seus parâmetros, tanto mais o outro torna-se vago e
A + B e A + B = A . B coloca uma ponte entre a A e Ã. "velado". Num eloqiiente "ensaio de sociologia quânti-
Por exemplo, se A = animal (um boi) e A = não-ani- ca", um jovem "sociólogo do imaginário"64 resumiu
mal (um arado), o "terceiro dado" pode estar associado suas conivências por uma chamada irreverente: "A críti-
ao boi e ao arado. Pois, na verdade, ambos são definidos ca da Razão impura".
por lavra, lavrar, lavragem... Este "terceiro dado" não É desta lógica^^ comum ao topo da ciência e ao
representa toda uma classe inclusiva (um "género vizi- imaginário que origina-se o princípio da redundância
nho") como na lógica clássica, mas uma qualidade que observado por todos os mitólogos (os que praticam a ^
pertence a A e a A e que denominamos + B. mitocrítica e a mitoanálise), de Victor Hugo a Lévi-
Não apenas todo "objeto" imaginário é constituti- Strauss, e que outros denominarão o "surgimento".^^ O
vamente "dilemático" (Claude Lévi-Strauss) ou "anfi-^ sermo mythicus, assim como as sequências de um ritual
bológico" (isto é, "ambíguo" ao compartilhar com seu fundamentado sobre um tempo "simétrico" e um espa-
oposto uma qualidade comum), mas é a física contem- ço "não separável", também não consegue acompanhar
porânea que, pelos seus conceitos de "complementari-
dade" (Niels Bohr), antagonismo e "contraditariedade",
introduziu o status científico do anfibólio. Muito signi- 64 S. Joubert, La Raison polythéiste (A razão politeísta), L'Harmattan,
1991.
ficativo, como observa Gerard Holton, é o fato de o 65 j.-]. Wunenberger, ver Bibliografia.
grande físico dinamarquês ter escolhido o Tai ki dos 66 p. Brunei, Mythocritique, théorie et parcours (A mitocrítica: teoria
e percurso), P.U.F., 1992.
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O balanço conceituai e o novo método
o imaginário
O processo de uma demonstração analítica nem seguir porta-se como u m holograma (Edgar Morin) no qual
aquele de uma descrição histórica ou localizável. Os cada fragmento e cada parte c o n t é m em si a totalidade
processos do mito, onírico ou do sonho consistem na do objeto.
repetição (a sincronicidade) das ligações simbólicas que ' Portanto, o imaginário, nas suas manifestações mais"^
os c o m p õ e m . Por conseguinte, a redundância aponta sem- típicas (o sonho, o onírico, o rito, o mito, a narrativa da
pre para um "mitema"*. Assim, no mito de Hermes, o imaginação etc.) e em relação à lógica ocidental desde
mitema do mediador emerge da bastardia do deus das Aristóteles, quando não a partir de Sócrates, é alógico.
encruzilhadas, das trocas e do comércio. Filho de Zeus e A identidade não-localizável, o tempo não-assimétrico e j
uma mortal, Hermes é o protetor do bastardo Dioniso, o a redundância e metonímia "halográfica" definem uma
intermediário de Zeus junto a Alcmena, o intérprete entre lógica "inteiramente outra" em relação àquela, por
Zeus e as três deusas, e o pai de u m ser ambíguo: Her- exemplo, /lo silogismo ou da descrição eventualista, mas
mafrodita... muito próxima, por alguns lados, daquela da música. A
A partir de então a distinção famosa e u m pouco música, da mesma forma como o mito e o onírico, re-
rápida de Roman Jakobson entre a metáfora e a m e t o n í - pousa sobre as inversões simétricas dos "temas" desen-
mia será reabsorvida, de alguma forma, por uma meto- volvidos ou "variados", u m sentido que somente pode
nímia generalizada (a c|ue designa um objeto pela. sua ser conquistado pela redundância (o refrão, a sonata, a
relação semântica com outro objeto). O mito não racioci- fuga, o Leitmotiv etc.) persuasiva de u m tema. A música,
na nem descreve: ele tenta convencer pela repetição de acima de qualquer coisa, procede por uma ação de ima-
uma relação ao longo de todas as nuanças (as "deriva- gens sonoras "obsessivas".
ções", como diria um sociólogo) possíveis. A contrapar-
tida desta particularidade é que cada mitema — ou
cada ato ritual — é o portador de uma mesma verdade
relativa à totalidade do mito ou do rito. O mitema com- 67 G. Durand, "Le cothurne musical", entrefien avec Monique
Veaute ( O c o t u r n o musical, u m a entrevista c o m M o n i q u e Veaute),
Avant-Scène Opera (n° 7 4 ) , 1 9 8 5 ; M . G u i o m a r , i.e Masque et le
* Mitema — U m a narrativa puramente ficcional. Geralmente e n - fantasme, l'imagination de la matière sonore dans la pensée musi-
v o l v e pessoas, a ç õ e s o u e v e n t o s s u p e r n a t u r a i s e i n c o r p o r a alguma cale d'Hector Berlioz (A máscara e o fantasma, a i m a g i n a ç ã o d a
ideia p o p u l a r referente a u m f e n ô n e m o natural o u histórico, in E O D matéria sonora no pensamento musical de Hector Berlioz), Corti,
(English Oxford Dictionary). (N.T.) 1970.
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Esta hierarquia das "partes do discurso" imaginário pio, para tornar-se u m símbolo, a estrutura de posição
vem sendo corroborada há muito tempo, e m particular fornecida pelo posicionamento do reflexo dominante
pelas observações de Théodule Ribot e pelo seu adver- na vertical necessita a contribuição do imaginário cós-
sário, Henri Bergson. Na afasia progressiva, elas consta- mico (a montanha, o precipício, a ascensão...) e socio-
tam primeiro o desaparecimento dos nomes próprios, cultural (todas as pedagogias da elevação, da queda, do
depois dos nomes comuns e dos adjetivos e, por último, infernal...) sobretudo. Reciprocamente, o precipício, a
do verbo. Como diz Ribot (Maladies de la mémoite [Do- ascensão e o inferno ou o céu somente adquirem u m
enças da memória] I, 1881), "a destruição da memória significado de acordo com a estrutura da posição inata
decresce, progressivamente, do instável ao estável". da criança.
U m a observação que vai ao encontro da lei de regres- As estruturas verbais primárias representam, de al-
são, a qual afirma que o esquecimento atinge primeiro guma forma, os moldes ocos que aguardam serem pre-
as lembranças mais recentes. enchidos pelos símbolos distribuídos pela sociedade,
Ora, seguindo a ordem da afasia progressiva e da lei sua história e situação geográfica. Reciprocamente, con-
da regressão, estas duas observações e m conjunto con- tudo, para sua formação todo símbolo necessita das es-
firmam nossas constatações de 1960 e 1974 quanto ao truturas dominantes do comportamento cognitivo inato
"trajeto antropológico" e os níveis formativos do sím- do sapiens. Assim, os níveis "da educação" se sobrepõem
bolo. O "trajeto antropológico" representa a afirmação na formação do imaginário: em primeiro lugar encon-
na qual o símbolo deve participar de forma indissolúvel tra-se o ambiente geográfico (clima, latitude, localiza-
para emergir numa espécie de "vaivém" contínuo nas ções continentais, oceânicas, montanhosas e t c ) , mas
raízes inatas da representação do sapiens e, na outra desde já regulamentado pelos simbolismos parentais da
"ponta", nas várias interpelações do meio cósmico e so- educação, o nível dos jogos (o lúdico) e das aprendiza-
cial. Na formulação do imaginário, a lei do "trajeto an- gens por último. E, finalmente, pelo nível que René
tropológico", típica de uma lei sistémica, mostra muito Alleau denomina de "sintomático", ou o grau dos sím-
bem a complementaridade existente entre o status das bolos e alegorias convencionais determinados pela so-
aptidões inatas do sapiens, a repartição dos arquétipos ciedade para a boa comunicação dos seus membros
verbais nas estruturas "dominantes" e os complementos entre si.
/pedagógicos exigidos pela neotenia humana. Por exem- Mas, nesta primazia do verbo sobre seu sujeito, há
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ainda mais: as "vozes" verbais passiva e ativa são substi- esquema do funcionamento da psique nas duas tópicas
tuídas com uma maior facilidade do que nas realidades sucessivas e famosas. No primeiro quadro, ele mostrou
psicanalíticas, onde o amor pode inverter-se em ódio. É o nível do consciente solidário com um inconsciente;
assim que as divindades das tempestades tanto prote- uma espécie de infra-estrutura que o satisfaz. Na segun-
gem dos raios como, ao mesmo tempo, os lançam. Elas da tópica, o esquema se complicava em três níveis: o
fazem parte, uma por vez, do fascínio (fascinendum) e do consciente dividia-se em "ego" e "superego", enquanto o
terror (tremendum). Como bom hagiógrafo e mitógrafo, inconsciente era denominado "isso" (id). Estas instâncias
Philippe Walter69 examinou muitas "inversões de voz". coincidem com as duas "pontas" do "trajeto antropoló-
Nas lendas cinegéticas, o mito do caçador caçado é fre- g c o " onde o inconsciente e o "isso" situam-se, de pre-
qijente. Num poema de Maria de França, o caçador ferência, na ponta inata do trajeto inconsciente, enquan-
Guigemar é ferido por uma flecha destinada a uma cor- to o ego e o superego situam-se na "ponta" educada.
ça. A dramaturgia de Parsifal, explorada por Richard Se desenharmos um círculo para representar o con-
Wagner, baseia-se na cura do rei ferido pela mesma lan- junto imaginário cobrindo uma determinada época de
ça que provocou o ferimento... uma sociedade, podemos dividi-lo em duas "fatias" na
horizontal, as quais correspondem, de baixo para cima,
B/ A tópica sociocultural d o imaginário às três instâncias freudianas e que aqui serão aplicadas
metaforicamente a uma sociedade. A fatia inferior, a
Em 1980 elaboramos um esquema da "tópica" das mais "profunda", representa um "isso" antropológico,
utilizações classificadas do imaginário numa sociedade o lugar que Jung denomina o "inconsciente coletivo",
dada e num momento (a "médio prazo", o que exami- mas que nós preferimos denominar de o "inconsciente
naremos mais adiante) dado. O conceito de tópica (de específico" e que está ligado à estrutura psicopsicológi-
topos, "lugar") situa os elementos complexos de um sis- ca do animal social, o Sapiens sapiens. É neste campo que
tema num diagrama. Foi assim que Freud apresentou o os esquemas arquetípicos provocam as "imagens arque-
típicas", Urbilder. As estruturas destas imagens, con-
69 Ph. W a l t e r , Mythologie chrétienne. Rites et mythes du Moyen
quanto embaçadas, nem por isso são menos precisas, tal
Ãge (A mitologia cristã, o s rituais e mitos d a I d a d e M é d i a ) , Enterite, como aquelas divindades da Roma antiga que, segundo
1992.
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Georges Dumézil, são "pobres em representações figu- nos etc. do Terceiro Estado ou os soldados das legiões
radas mas ricas em suas coerências estruturalmente fun- romanas do Baixo Império. Contudo, não há, por um
cionais".™ lado, papéis predestinados ao conservadorismo das ins-
Este "inconsciente específico" forma-se quase no tituições e, por outro, outros reservados às reviravoltas
estado de origem (tal como o gesso "adquire a forma" e revoluções. Neste caso, os papéis desempenhados pe-
num molde) das imagens simbólicas sustentadas pelo los militares e pela guarda pretoriana são conservadores
meio ambiente, especialmente pelos papéis, as personae da sociedade. Em outras circunstâncias serão os solda-
(as máscaras), desempenhados no jogo social, e consti- dos que suscitarão os pronunciamentos. Na história do
tuem a segunda "fatia" horizontal do nosso diagrama, Ocidente cristão — na famosa querela do Sacerdócio
correspondendo, metaforicamente, ao "ego" freudiano. com o Império — os papéis positivos foram às vezes
É a zona das estratificações sociais onde são modelados desempenhados pelos clérigos e noutras, pelos barões.
os diversos papéis conforme às classes, castas, faixas etá- Porfimcolocaremos na "fatia" horizontal superior do
rias, sexos e graus de parentesco ou em papéis valoriza- nosso diagrama o "superego" da assim chamada socie-
dos e papéis marginalizados, de acordo com o corte ver- dade. Este superego organizará e racionalizará em códi-
tical do círculo por u m diâmetro. Devemos insistir bas- gos, planos, programas, ideologias e pedagogias, os pa-
tante num ponto: enquanto as imagens dos papéis posi- péis positivos do "ego" sociocultural.
tivamente valorizados tendem a se institucionalizarem A estas duas dimensões da tópica, a vertical que di-
n u m conjunto muito coerente e com códigos próprios, vide as duas metades "sistémicas" do círculo, isto é, os
os papéis marginalizados permanecem num Undergwund dois hemisférios das contradições sociais que consti-
mais disperso com um "tluxo" pouco coerente. Con- tuem uma sociedade, e a horizontal que reparte o ima-
tudo, estas imagens de papéis marginalizados são os fer- ginário sociocultural em três "fatias" de diversas quali-
mentos, bastante anárquicos, das mudanças sociais e do dades, acrescentaremos uma terceira dimensão, dessa
mito condutor como, por exemplo, em 1789, a multi- vez temporal: partimos do pólo inferior do nosso hexa-
dão confusa de girondinos, frades bernardinos, jacobi- grama, cujo eixo é o diâmetro vertical, percorremos a
periferia do círculo no sentido dos ponteiros do relógio
e subimos pela esquerda ao longo do círculo. Ao partir
no C . D u m é z i l , La religion romaine archaique (A r e l i g i ã o romana
a r c a i c a ) , Payot, 1 9 6 6 . de uma extremidade repleta de fluxos de imagens do
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O balanço conceituai e o novo método
o imaginário
valores e ideologias oficiais. Em Gide, são as imagens Cristóvão Colombo que, à procura da rota para as í n -
inspiradas na ética cristã do despojamento: a poda do dias Ocidentais, encontra um novo mundo. E Saul que
jardineiro, a sede ascética do deserto, a nudez que não parte à procura de suas jumentas perdidas e volta do
tolera nem a barba, as imagens de pobreza evangélica deserto com uma coroa real... Nesta mitocrítica exem-
que levam o escritor movido por u m ódio à propriedade plar e que repousa na mitoanálise subjacente da França
a aderir ao comunismo. E m toda a ética deste ima- protestante da primeira metade do século, percebemos
ginário protestante — como outrora no jansenista Pas- muito bem como o imaginário atualizado reprime e
cal — "procura-se exatamente o que já se encontrou". exclui o imaginário em potencial. A partir de então,
Mas quando o despojamento é exacerbado pelo autor marginalizado, este entra na clandestinidade da latência
de Llmmoraliste (O imoralista) e Les Caves du Vatican (Os e mal consegue classificar-se sob a denominação de u m
subterrâneos do Vaticano) para uma espécie de "princí- mito preciso. Ele multiplica tanto suas redundâncias
pio dos limites", isto é, para uma saturação das possibi- como as vicariantes: Saul ocupa o lugar de Cristóvão
lidades semânticas, transparecerá uma ética proibida, Colombo, que ocupa o lugar de Édipo, que ocupa o l u -
ainda que envergonhada e bloqueada pela censura exer- gar de Cora etc. H á ainda as premissas de uma "mudan-
cida pelo imaginário conformista. Então, ao esbarrar na ça do mito": o mito — tão luterano — de Deus Todo-
predestinação augustiniana e luterana que se esconde Poderoso e do "servo arbítrio" do homem vai se apa-
sob a procura hesitante de u m nome próprio mítico, a gando aos poucos por detrás do mito da gratuidade fer-
máxima blasfematória será: "você s ó ' e n c o n t r a aquilo vorosa da ação humana, até agora censurado.
que não procura". Verdade que o escritor tenta camu- Como observamos nas tensões sistémicas dos ele-
flar os pretextos evangélicos desta máxima com as pará- mentos da tópica, tanto o imaginário oficial codificado e
bolas da "Ovelha Perdida" ou o "Festim de Casamen- manifesto quanto seu oposto, o imaginário recalcado,
to", mas na obra há ainda u m monte de outros nomes "selvagem" e latente, necessitam de uma dinâmica que
que tentam esconder a brutalidade insustentável desta responda pela mudança.
ética. Na obra de Gide é Cora, a Compassiva, que nos
Infernos mostra-se a implacável Perséfone; é Édipo que
não encontra outros meios a não ser o horror do par-
ricídio, do incesto e do olho vazado para salvar Tebas. É
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(o encaminhamento formativo necessário para a matu- de formação e deformação das fases permanecem inde-
ração do embrião) ou "forma causativa" (a causa que finidos.
não se situa no montante do fenómeno, como na causa- Assim, levando em consideração estas várias consta-
lidade eficiente, mas "a jusante" ou pelo menos "em tações, aperfeiçoamos o conceito de "bacia semântica".
outro lugar"). Estes conceitos estão muito próximos do Ele já estava implícito na nossa "tópica", matizando em
logoi do matemático René Thom e da "re-injeção" do subconjuntos o movimento sistémico, o qual, por u m
físico inglês David Bohm. Ora, para entender esses sis- lado, conduz o "isso" imaginário ao esgotamento no
temas, os embriólogos utilizam a metáfora da "bacia flu- "superego" institucional e, por outro, suspeita desse
vial", que determina o curso do rio, o qual, por sua vez, "superego" e o erode pelos escoamentos abundantes de
é regulado pelo fluxo dos afluentes. u m "isso" marginalizado. Em contrapartida, é preciso
Pitirim Sorokin ( c í Bibliografia), após uma pesquisa, encontrar u m padrão de medida para esta "duração me-
sociológica gigantesca efetuada por sua equipe de Har- dial" que descreve u m percurso cíclico ao redor do nos-
vard, foi o primeiro a elaborar uma classificação da so diagrama da tópica.
"dinâmica sociocultural" de uma entidade sócio-históri- Mantendo a metáfora potamológica (referente a rio
ca num n ú m e r o de fases bem restrito (três: sensate / idea- = potamos), em primeiro lugar o conceito de "bacia
tional / idealistic). Será esta restrição que exigirá u m semântica" permite a integração das evoluções científi-
retorno inevitável quando as três ocorrências se esgota- cas supracitadas e, em seguida, uma análise mais deta-
rem. Este retorno, p o r é m , é indeterminado: B n ã o se- lhada em subconjuntos — seis, para ser exato — de
gue necessariamente A, nem C segue necessariamente B. uma era e área do imaginário: seu estilo, mitos condu-
Assim, pela ordem dos ricorsi, obteremos combinações tores, motivos pictóricos, temáticas literárias etc. numa
diferentes: A B, B ''«*C, C A, C B, B A etc. mitoanálise generalizada, isto é, propondo uma "mctli-
Contudo, no estudo do sociólogo americano, estas da" para justificar a mudança de modo mais pertinente
fases permanecem vagas quanto à sua duração e sobre- do que o menos explícito "princípio dos limites".
tudo quanto ao seu conteúdo pouco dirigido para os Antes, p o r é m , devemos tomar uma precaução re-
índices imaginários mais sólidos (as figuras míticas, os dobrada: por u m lado, nossas pesquisas examinaram as
estilos e motivos pictóricos, os temas literários e t c ) . sociedades mais ricas em documentos e monumentos,
Como resultado deste indeterminismo, os mecanismos como t a m b é m as mais acessíveis, as assim chamadas
"BIBLIOTECA Í ^ '
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_JCENTRAL
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sociedades ocidentais "quentes". Alguns estudos seme- zados transparece uma eflorescência de pequenas cor-
lhantes começam a dar frutos em certas sociedades ori- rentes descoordenadas, disparatadas e freqiienliMiK-nte
entais com uma ordenação histórica e cultural como a antagonistas. Elas ressurgem no setor "marginali/ado"
China, o Japão e a índia. Mas, por enquanto, nossa pes- da nossa tópica e testemunham a usura de u m imaginá-
quisa obteve bons resultados somente nas sociedades rio localizado, cada vez mais imobilizado em códigos,
europeias e suas extensões coloniais americanas. Segun- regras e convenções. Assim, enquanto no século 12, no
da precaução: precisar com exatidão a escala do terreno estado monacal rural, o ascetismo estético dos cister-
de pesquisa. U m sistema sociocultural imaginário desta- cienses se esgotava em proveito do urbano e do luxo
ca-se sempre de u m conjunto mais vasto e contém os eclesiástico do "tempo das catedrais", fervilhavam cor-
conjuntos mais restritos. E assim ao infinito. U m imagi- rentes religiosas efilosóficasde todo tipo: osfraticelli*,
nário social, mitológico, religioso, ético e artístico sem- os "irmãos de espírito livre" ou os cátaros etc. Apesar
pre tem u m pai, mãe e filhos... Por exemplo, o imaginá- da disparidade das teorias e dos usos e costumes, todos
rio do barroco dos séculos 16 e 17 se insere na cristan- esses "escoamentos" tinham u m ponto em comum:
dade latina e na sua ruptura reformadora que, por sua com o desenvolvimento nascente da luxuriante arquite-
vez, se insere no mito gibelino do império do Ocidente tura gótica no final do século 12, o rude ascetismo cis-
e t c , mas este barroco insere suas derivações venezianas, terciense será aos poucos submergido pelo naturalismo
alemãs, ibéricas, americanas... H quando passamos do dos celtas e normandos. "O sabor da felicidade terres-
Império do Ocitlente do mar Mediterrâneo para as tre" e a emancipação estética que o acompanhavam per-
nações modernas voltadas para o grande e vasto oceano mitirão a inclusão da beleza profana e de formas na-
Atlântico, ocorre uma mudança na escala demográfica, turais e vegetais nos arabescos e capitéis, e a cor se irra-
económica e geográfica... Portanto, não devemos jamais diará nas rosáceas e vitrais do imaginário europeu no
perder de vista esta prudência limitativa quanto à esco- limiar do século 13.
lha de nossos campos e amostragens. Bem antes da metade do século 18, as múltiplas
Depois destas precauções examinaremos com pre- correntes começaram a "escoar" de forma análoga —
cisão as fases da bacia semântica. A primeira denomina-
mos escoamento. Em qualquer conjunto imaginário deli- * Uma minoria franciscana adepta do uso da violência e qu<' expres-
sava (de várias formas) sua desat)rova(,-,io contra a ri(|U(va dos líde-
mitado sob os movimentos gerais oficiais institucionali- res eclesiásticos. (N.T.)
lOS
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Spengler diria "contemporânea" — em oposição ao final do século e atingirá rapidamente a superioridade
ideal clássico e ao século das Luzes: na Alemanha, o no neoclássico.
Sturtn und Drang; na França, o pré-romantismo; e em Outro período "contemporâneo" destas sensibilida-
toda a Europa, a filosofia de Rousseau. Já assinalamos des do imaginário, que vieram para contestar o icono-
que, assim como o final do século 12, este final de sécu- clasmo ocidental, é aquele que ainda irriga nossa bacia
lo 18 representa um período de resistência aos incono- semântica moderna e formou-se dos escoamentos dos
clasmos que o envolve. Ao contrário do que ocorreu no símbolos decadentes dos anos 1860 a 1914-1918. Sob o
final do século 12, não é mais a arquitetura que dá o imaginário estável, corroborado pelos sucessos da Re-
tom a um imaginário novamente naturalista e sentimen- volução Industrial e a partir de Les Fleurs du Mal (As flores
talista. Apesar dos caprichos do rococó na França do do mal, Ch. Baudelaire) e da pintura simbolista, assim
príncipe regente Luís Xiy e na Alemanha com os gran- como de seu contrário, o impressionismo naturalista, e
des arquitetos de um barroco muito tardio, como Neu- em oposição ao humanismo romântico que se esgota na
mann ou Cuvillès, por exemplo, no século de Haydn, superfície plana do moralismo positivista ou socialista,
Gluck e Mozart a música será a catedral invisível. É pre- escorre um novo imaginário pela esteira dos primeiros
ciso observar que o terreno muda de escala também: "re-mitologismos" de Freud, Wagner e Zola.
aqui não se trata mais da Cristandade de Inocêncio III A segunda fase da bacia semântica é a divisão das
que permeava toda a Europa antes da Reforma, mas de águas. Trata-se do momento da junção de alguns escoa-
nações e até de principados ainda menores. As premis-
mentos que formam uma oposição mais ou menos acir-
sas da estética romântica surgirão na Alemanha. Em
rada contra os estados imaginários precedentes e outros
contrapartida ao virtuosismo italiano, a ópera de Gluck
favorece a expressão natural dos sentimentos. A assim escoamentos atuais. Esta é a fase propícia para as quere-
chamada música "pura" medra entre os filhos de Bach, las das Escolas.
tornando-se, de algum modo, o santuário dos senti- Na nossa Idade Média não faltaram querelas, tais
mentalismos pré-românticos. Mas, na oposição velada como a que mencionamos e que opôs a austeridade cis-
dos escoamentos estéticos alemães contra o neoclassi- terciense do final do século às novas criações vitoriosas
cismo francês, já começa a esboçar-se uma clara divisão do imaginário gótico. No século 13, esta famosa c|ucrc-
das águas que sefirmaráno apogeu revolucionário do la, a "querela dos universais", retomou um novo impul-
so com o platonismo franciscano dos partidários e dis-
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o imaginário O balanço conceituai e o novo método
cípulos de Duns Scot'''*, o qual se opunha ao aristotelis- canos, Michel de Césène, numa rebelião aberta contra o
mo dominicano, do qual são Tomás de Aquino foi o re- papa João X X I I .
presentante mais ilustre. No entanto, era uma querela O romantismo que desponta no final do século 18
de fachada, pois o imaginário gótico, embriagado de um não é menos rico em querelas. Depois das oposições de
naturalismo concreto e atento aos realismos e às curio- salão — Madame du Meffand contra Mademoiselle de
sidades da natureza, apoiava-se tanto na física de Aris- Lespinasse — , depois das terríveis e repentinas "divi-
tóteles como no empirismo franciscano, começando sões das águas" revolucionárias causadas pela guilhotina,
com Roger Bacon e depois Guilherme d'Occam. Mas a os girondinos contra os montanheses, Danton contra
divisão fundamental das águas, formada no imaginário Robespierre..., depois da querela exemplar do natura-
gótico, do qual os franciscanos são os porta-vozes e lismo místico de Rousseau contra o racionalismo dos
que os conduzirá, mais de dois séculos antes da Refor- Enciclopedistas, o Romantismo — tendo como pano
ma, à ruptura com Roma, representa sua oposição obs- de fundo as guerras napoleónicas — , cujo emblema na
tinada a uma Igreja ostensivamente coberta de riquezas França será tardiamente a famosa "querela de Hernâni",
que enclausura suas ordens ri-ligiosas nos vales e deser- abrirá uma profunda querela nacional entre a França de
tos do campo. Os discípulos de Francisco querem ser Napoleão, prudentemente iconoclasta no seu deísmo e
uma fraternidade e não uma ordem; querem livrar-se da racionalismo, e a Alemanha, as terras preferidas do ro-
clausura monacal; querem, entim, estar em contato mantismo — louvadas por Madame de Staél — , com
com o povo, os animais e a natureza através de uma arte seu abundante imaginário musical, místico e poético.
popular cuja manifestação viva pode ser pictorial, li-
Ao adquirir uma escala, ou pelo menos uma marca
túrgica ou teatral. Mas, e principalmente, revoltados
nacional exata, esta divisão das águas será, infelizmente,
pela opulência dos abades e seculares instalados nas
enfatizada na nossa modernidade pelas terríveis guerras
grandes cidades, eles se afirmam por um despojamento
franco-alemãs. Os conflitos entre França e Alemanha
liberador destas mesmas grandes cidades em fase de
acabarão perturbando o jogo franco de seus imaginários
surgimento: Radix omnium malorum est cupiditas, "a cobiça
recíprocos. Verdade que haverá uma disputa viva entre a
é a raiz de todo mal", proclamará o General dos francis-
visão do mundo cientista e a surrealista, entre formalis-
mos e fenomenologias de toda sorte.
71 John Duns Scot (1265(?) — 1308), teólogo e filósofo escocês. (N.T.) É exatamente neste instante, embora à primeira vis-
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o imaginário
sonagem real ou fictício caracteriza a bacia semântica co- Na nossa modernidade, esta ressonância, este espí-
mo um todo. Claro que, para o século fi-anciscano, o no- rito de síntese entre os sentimentos, esta experiência
me do pai é Francisco de Assis, que está respaldado por científica e sobretudo estas imagens devem, incontesta-
sua "lenda dourada" escrita por seus sucessores Tomás de velmente, retornar a Freud e à enorme e persistente
Celano (1260), Henrique d'Avranche (1234), o irmão hagiografia psicanalítica. Posicionar Freud no ponto
Elias e o prestigioso Boaventura (1274). É uma onda gi- mais profundo do rio não é, de nossa parte, uma garan-
gantesca de imagens que irá eclipsar a gesta e a iconogra- tia da verdade freudiana, mas apenas da sua formação
fia do próprio Cristo, a fonte de toda a renovação do ima- semântica.
ginário ocidental e que acompanha a integração de Fran- Quanto à organização dos rios, esta consiste numa
cisco de Assis, o "Pai Santíssimo", no mito joaquimita, consolidação teórica dos fluxos imaginários onde ocor-
como o fundador da "ordem dos Serafins" e o anuncia- rem, com frequência, os exageros de certas característi-
dor do "Papa Angelical" e da "época da flor-de-lis". cas da corrente pelos "segundos fiindadores", como são
Parece que neste desfraldar inusitado do imaginário Paulo e o prolongamento dos Evangelhos. Não insistire-
romântico somente nos resta a dificuldade da escolha mos aqui, pois já o mencionamos na primeira parte do
para eleger o nome do camjx-ão da Naturpbilosophie. A livro, no papel re-fundador e didático de são Boaven-
quem coroaremos? Beethoven, Novalis, Schelling, Schle- tura, o Doctor Seraphicus. Quanto ao romantismo, esse
gel ou Hegel? Que escolha difícil! No entanto, nós acha- não tem o que invejar ao século 13, tamanha sua riqueza
ríamos que o "nome do rio" devia permanecer coletivo de "organizadores de afluentes". Além de Kant, todos
e simbolizado pelo rio Reno, essa fonte de todas as ri- serão "filósofos da natureza" e cada qual fará mais e me-
quezas... No entanto, no início do século, será o brilho lhor: Fichte, Novalis, Schleiermacher — este "hiper-
de um poeta, cujo mito já tão "sistémico" assume as joaquimista" segundo P de Lubac — , Schlegel e o pró-
contradições da época e ressuscita o Doutor Fausto, que prio Hegel se incumbirão de teorizar uma filo.sofia da
se estenderá até Delacroix, Berlioz, Gounod e Nerval, e Darstellung, da "demonstração" da Divindade nas obras
que "confluirá" com os músicos em tantos Lieder e bala- do mundo. Mas, aparentemente, Schelling será o novo
das: Goethe, o profeta da "religião derradeira" e das Boaventura desta nova "exemplaridade" solidamente
nostalgias de tantos Werther, parece convir perfeita- fundamentada no mito joaquimita das "três épocas" e
mente à paternidade do rio romântico. cujo desenvolvimento não será outra coisa que a "ex-
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pansão do coração de Deus". As duas obras, Idées pour clero secular, o surgimento do humanismo e do neopa-
une Philosophie de Ia Nawre [Ideias para uma filosofia da ganismo até o trono pontifical de u m Nicolau V ou de
natureza] e Aphorismes pour Introduire à la Philosophie de Ia u m Pio II etc.)
Nature [Aforismos para a introdução à filosofia da natu- Intrinsecamente, a "bacia" romântica já traz em si
reza] de 1797 e 181S, respectivamente, servem de mapa este "verme dentro do fruto", ou o gosto pelas ruínas, o
para todo o imaginário romântico, sendo uma espécie catastrofismo que, a partir da metade do século 19, for-
de itinerário do espírito para a Darstellung divina. necerá os germes para o decadentismo, mas sobretudo
Quanto às "margens" do Imaginário na nossa m o - ao introduzir nela, como u m efeito perverso de sua ge-
dernidade, estas foram organiz<uias por toda uma plêia- nerosidade, uma Kulturphilosophie que desafia cada vez
de de pesquisadores — cujos tral)alhos já indicamos na mais a natureza e a contemplação em proveito da praxis
segunda parte deste livro, e dc-ntre os quais nos incluí- prometéica (apologias da Indústria, dos trabalhadores,
mos — que construíram, a partir da década de 50, o da "transformação do m u n d o " e t c . ) .
edifício de uma filosofia do imaginário e de uma "mito- Finalmente, na bacia semântica da nossa moderni-
dologia". dade, de forma latente e mascarados pelas vulgata freu-
E, assim, chegamos à scxt.i e última fase da "bacia diana, junguiana, eliadiana e a nossa, encontram-se cer-
semântica", os deltas e os niLMinlros. lista ocorre quando a tamente os meandros e escoamentos prenunciadores.
corrente mitogC-nica — o "inventor" dos mitos — que Agora, resta responder à pergunta que não foi re-
transportou o imaginário es|)ecífico ao longo de todo o solvida por Sorokin: a duração de uma "bacia semânti-
curso do rio se desgasta, atingindo, segundo Sorokin, ca". A mudança profunda do imaginário de uma época
uma saturação "limite", e deixa-se penetrar aos poucos foi, muitas vezes, equiparada a uma simples mudança de
pelos escoamentos anunciadores dos deuses por vir... gerações. Esta revolta periódica de "pais contra filhos" é
Sabemos como a "bacia semântica", gótica e franciscana curta demais para cobrir a amplitude de uma bacia
começou a se desagregar no Quattrocento, tanto por ra- semântica. Constatamos que sua duração, desde os pri-
zões intrínsecas (um nominalismo cada vez mais acen- meiros escoamentos perceptíveis até os meandros ter-
tuado, a ruptura seguida da guerra aberta contra o pa- minais, era de cento e cinquenta a cento e oitenta anos.
pado durante o Grande Cisma do Oriente etc.) quanto U m a duração justificada, por u m lado, pelo nútleo de
extrínsecas (as oposições e as críticas do monacato ao três ou quatro gerações que constituem as informações
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o imaginário Conclusão
tanto tempo recalcados, aprofundou as definições, os Trata-se do anonimato da "fabricação" destas ima-
mecanismos de formação, as deformações e as elipses da gens. Elas são distribuídas com tanta generosidade que
imagem. Por sua vez, a "explosão vídeo", fruto de u m escapam de qualquer "dignitário" responsável, seja ele
efeito perverso, está prenhe de outros "efeitos perver- religioso ou político, interditando assim qualquer deli-
sos" e perigosos que ameaçam a humanidade do Sapiens. mitação e qualquer estado de alerta, permitindo, por-
Em primeiro lugar porque ela impõe seu sentido a tanto, as manipulações éticas e as "desinformações" por
um espectador passivo, pois a imagem "enlatada" anes- produtores não-identificados. A famosa "liberdade de
tesia aos poucos a criatividade individual da imaginação, informação" é substituída por uma total "liberdade de
como já apontava Bachclard ao dar preferência à "ima- desinformação". Sub-repticiamente, os poderes tradi-
gem literária" sobre qua!c|uor outra imagem icônica cionais (éticos, políticos, judiciários e legislativos...) pa-
mesmo animada como a de um filme. recem ser os tributários de uma única veiculação de
Portanto, a imagem "enlatada" paralisa qualquer imagens "pela mídia".
julgamento de valor por parte do consumidor passivo, já Não deixa de ser paradoxal que tal "poder públi-
que o valor depende de uma escolha; o espectador então co", que se tornou absoluto por técnicas sofisticadas
será orientado pelas atitudes coletivas da propaganda: é que ele utiliza e por quantias colossais de dinheiro que
a temida "violentação das massas". Este nivelamento é ele drena, seja abandonado ao anonimato, quando não
perceptível no espectador de televisão, que engole com a ao oculto. De modo mais geral, o problema concreto da
mesma voracidade, ou melhor, com a mesma falta de ruptura entre o poder da mídia e os poderes sociais está
apetite, espetáculos de "variedades", discursos presi- ligado ao excesso de "informações" (no sentido muito
denciais, receitas de cozinha e notícias mais ou menos amplo, formações e desinformações, inclusive) das es-
catastróficas... É o mesmo "olho de peixe morto" que truturas das instituições. Como se sabe, por natureza a
contempla as crianças que morrem de fome na Somália, informação (L. Brouillin) é "não-entrópica" — isto é,
a "purificação étnica" na Bósnia ou o arcebispo de Paris ela aumenta indefinidamente, sem conter em si mesma
subindo a escadaria da Basílica de Montmartre carre- o germe da sua usura — enquanto as instituições, como
gando uma cruz... Esta anestesia da criatividade do ima- qualquer construção humana que precisa gastar suas
ginário e o nivelamento dos valores, numa indiferença energias, são entrópicas, isto é, condicionadas ao desa-
espetacular, são reforçados por outro e último perigo. parecimento e à morte. Então, a pletora indefinida de
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capa ao seu controle... Ao menos se formou — como o bibliografia sumária a seguir somentefiguram as obras mais propícias a uma
tério" discreto de sábios competentes aos quais "os • G . Bachelard, I a PoetiqueJe/a rererie, P . U . F . , 1960. ».
políticos", aqueles que ainda pretendem "governar" os • K. Bastide, Le Prochain et le lointain, Cujas, 1910. .
grupos sociais, deveriam prestar atenção... • R. Caillois, Le Mythe et 1'homme, Gallimard, 1938.
1972.
Flammarion, 1958.
1948.
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