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Copyright © Hatier, 1994


Título original: Vimaginaire
Capa: Raul Fernandes

Editoração: DFL

2004
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Sumário

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Durand, Gilbert INTRODUÇÃO 3 - ^-^o


^5^' O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da
imagem / Gilbert Durand; tradução Renée Eve Levié. - 3'' ed.
- Rio de Janeiro: DIFEL, 2004. I. O P A R A D O X O D O IMAGINÁRIO N O O C I D E N T E 9 c'^
I28p. - (Qileção Enfoques. Filosofia)
1. U m iconoclasmo endémico 9 \ • - ' ' '
Tradução de: L'imaginaire
Inclui bibliografia
2. As resistências do imaginário 16
ISBN 85-7432-003.X 3. O efeito perverso e a explosão do vídeo 31
1. Imaginação. 2. Imagem (Filosofia). 3. Simbolismo
(Psicologia). I. Título. II. Sírie. I I . As CIÊNCIAS D O I M A G I N Á R I O 35

1^^-'^^ CDD-153.3 1. As psicologias das profundezas 35


C D U - 159.954
2. As confirmações anatomofisiológicas e
etológicas 40
Todos os direitos reservados pela: 3. As sociologias do selvagem e do comum 46
EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. 4. As "Novas Críticas": da mitocrítica à
Rua Argentina, 1 7 1 - 1 " andar - São Cristóvão
mitoanálise 57
20921-380 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: (Oxx21) 2585-2070-Fax: (Oxx21) 2585-2087 5. O imaginário da ciência 68
6. Os confins da imagem e do absoluto do símbolo:
Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por
quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora homo religiosus 71

Atendemos pelo Reembolso Postal.


'Fi BiBLÍO' 3

L S
o imaginário

I I I . O BALANÇO CONCEITUAL E O NOVO MÉTODO PARA


A ABORDAGEM DO MITO 79
A/ O alógico do imaginário 79
1. O pluralismo específico e as classificações 79 Introdução
2. A lógica do mito 82

3. A gramática do imaginário 88

B/ A tópica sociocultural do imaginário 92

Seria muito banal afirmar que os enormes progres-


C/ A dinâmica do imaginário: a bacia semântica 100
sos das técnicas de reproduções por imagens (a fotogra-
CONCLUSÃO 117 fia, o cinema, os vídeos, "as imagens de síntese" etc.) e
BIBLIOGRAFIA 121 tlc seus meios de transmissão (o belinógrafo,* a televi-
são, o fax etc.) permitiram ao século 20 acompanhar a
construção de uma "civilização da imagem". Por conse-
guinte, torna-se fácil imaginar que uma inflação de ima-
gens prontas para o consumo tenha transtornado com-
pletamente as filosofias, que até então dependiam do
que alguns denominam "a galáxia Gutenberg"', isto é, a
supremacia da imprensa e da comunicação escrita —
com sua enorme riqueza de sintaxes, retóricas e todos
os processos de raciocínio — sobre a imagem mental (a
imagem perceptiva, das lembranças, das ilusões etc.) ou

* A n t i g o a p a r e l h o (e ancestral d o f a x atual). I n v e n t a d o p o r E d o u a r d Be-


l i n ( 1 8 7 6 - 1 9 6 3 ) , d e s t i n a d o à transmissão d e i m a g e n s fixas d e d o c u -
m e n t o s ( e s p e c i a l m e n t e fotografias) p e l a rede telefónica. (N.T.)
I M c L u h a n , Understanding Media ( E n t e n d e n d o a mídia), T o r o n t o , 1 9 6 4 .

4 5
o imaginário Introdução

icônica (o figurativo pintado, desenhado, esculpido e Todas estas civilizações não-ocidentais, em vez de
fotografado...). fiiiuiamentarem seus princípios de realidade numa ver-
- Esta inovação permitiu recensear, e eventualmente d.uli- única, num único processo de dedução da verda-
classificar n u m trabalho exaustivo e que possibilitou o de, num modelo único do Absoluto sem rosto e por
estudo dos processos de produção, transmissão e recep- vc/es inominável, estabeleceram' seu universo mental,
ção, o "museu" — que denominamos o imaginário — iiKlividual e social em fundamentos pluralistas, portan-
de todas as imagens passadas, possíveis, produzidas e a to, diferenciados. Aqui, toda diferença (alguns mencio-
serem produzidas. Contudo, não terá sido este mesmo iMin um "politeísmo de valores"^) é percebida como
processo que provocou uma ruptura, uma verdadeira uma figuração diferenciada com qualidades figuradas e
revolução "cultural", nesta filosofia de livros e escritos imaginárias. Portanto, todo "politeísmo" ipso facto é
que constituiu o privilégio bimilenar do Ocidente? receptivo às imagens (iconófilo) quando não aos ídolos
As civilizações não-ocidentais nunca separaram as i n - (cidôlon, em grego, significa "imagem"). Ora, o Ociden-
formações (digamos, "as verdades") fornecidas pela ima- ti-, isto é, a civilização que nos sustenta a partir do racio-
gem daquelas fornecidas pelos sistemas da escrita. Os cínio socrático e seu subsequente batismo cristão, além
ideogramas (o signo escrito copia algo num desenho qua- de desejar ser considerado, e com muito orgulho, o úni-
se estilizado sem limitar-se a reproduzir os signos con- co herdeiro de uma única Verdade, quase sempre desa-
vencionais, alfabéticos e os sons da língua falada) dos hie- fiou as imagens. É preciso frisar este paradoxo de uma
róglifos egípcios ou os caracteres chineses, por exemplo, civilização, a nossa, que, por um lado, propiciou ao
misturam com eficácia os signos das imagens e as sinta- mundo as técnicas, em constante desenvolvimento, de
^.xes abstratas.2 Em contrapartida, antigas e importantes reprodução da comunicação das imagens e, por outro,
civilizações como a América pré-colombiana, a Africa do lado da filosofia fundamental, demonstrou uma des-
negra, a Polinésia etc, mesmo possuindo uma linguagem confiança iconoclasta (que "destrói" as imagens ou,
e u m sistema rico em objetos simbólicos, jamais utiliza- pelo menos, suspeita delas) endémica.^
ram uma escrita.

2 P. A r o n e a n u , Le MaTtre des signes ( O m e s t r e d o s s i g n o s ) , Syros, ' Famosa expressão d o s o c i ó l o g o a l e m ã o M a x W e b e r .


Paris, 1 9 8 9 ; M . G r a n e t , La Pensée chinoise (O pensamento chinês), " H . C o r b i n , Les Paradoxes du monothéisme (Os paradoxos d o
1934, Albin Michel, 1988. monoteísmo), L'Herne, 1 9 8 1 .

6 7
I
O PARADOXO D O IMAGINÁRIO
NO OCIDENTE

1. Um iconoclasmo endémico

Sem d ú v i d a que nossa h e r a n ç a ancestral mais antiga


«* i n c o n t e s t á v e l é o m o n o t e í s m o da Bíblia. A p r o i b i ç ã o
d l ' c r i a r qualquer i m a g e m (eidôlon) c o m o u m s u b s t i t u t o
para o d i v i n o encontra-se impressa n o segundo m a n d a -
m e n t o da l e i de M o i s é s (Êxodo, X X . 4 - 5 ) . O u t r o s s i m , c o -
m o p o d e m o s constatar n o C r i s t i a n i s m o (João, V. 2 1 ; I .
Coríntios, V I I I 1-13; Atos, X V 2 9 . . . ) e n o I s l a m i s m o
(Corão, I I I . 4 3 ; V I I . 1 3 3 - 1 3 4 ; X X . 9 6 e t c ) , a i n f l u ê n c i a
l i o j u d a í s m o nas r e l i g i õ e s m o n o t e í s t a s e que se o r i g i n a -
ram nele f o i e n o r m e . O m é t o d o da verdade, o r i u n d o d o ^
socratismo e baseado n u m a lógica b i n á r i a ( c o m apenas i
dois valores: um falso e um v e r d a d e i r o ) , uniu-se desde o
i n í c i o a esse iconoclasmo religioso, t o r n a n d o - s e c o m a
h e r a n ç a de S ó c r a t e s , p r i m e i r a m e n t e , e P l a t ã o e A r i s t ó -
teles e m seguida, o ú n i c o processo eficaz para a busca da
verdade. D u r a n t e m u i t o s s é c u l o s e especialmente a p a r t i r ^ '

9
o imaginário o paradoxo do imaginário no Ocidente

de Aristóteles (século 4 a.C), a via de acesso à verdade l',nil(), o "segundo fundador" do cristianismo, era um
foi a experiência dos fatos e, mais ainda, das certezas da Jiidfii lu-lenizado. O texto dos Evangelhos só nos foi
lógica para, finalmente, chegar à verdade pelo raciocínio lirtiisinitido na sua forma primitiva em grego. Além dis-
binário que denominamos de dialética e no qual se de- mi, .mlts da grande redescoberta dos textos de Aristóte-
senrola o princípio "da exclusão de um terceiro" na les pelo Ocidente cristão no século 13, não espanta que,
íntegra ("Ou... ou", propondo apenas duas soluções: d p.iitir do século 8, a questão das imagens tenha se co-
uma absolutamente verdadeira e outra absolutamente Idc.ido com grande precisão na região mais helenizada
falsa, que excluem a possibilidade de toda e qualquer d.< iii.standade: o Oriente bizantino (a Igreja ainda não
terceira solução). Lógico que, se um dado da percepção « • Ncparara de Roma e do Papa) que estava ameaçado
ou a conclusão de um raciocínio considerar apenas as l.into espiritual quanto materialmente pela invasão
propostas "verdadeiras", a imagem, que não pode ser liiiiçiilinana. Os imperadores de Bizâncio, sob o pretex-
reduzida a um argumento "verdadeiro" ou " falso" for- to dl- enfrentar a pureza iconoclasta do Islã ameaçador,
mal, passa a ser desvalorizada, incerta e ambígua, tor- (Icstruirão, durante quase dois séculos ( 7 3 0 - 7 8 0 e 813-
nando-se impossível extrair pela sua percepção (sua 8 4 3 ) , as imagens santas guardadas pelos monges que
"visão") uma única proposta "verdadeira" ou "falsa" rtiabarão perseguidos como idólatras. Contudo, e volta-
formal. A imaginação, portanto, muito antes de Male- rnnos ao assunto mais adiante, os iconólatras (adorado-
branche,* é suspeita de ser "a amante do erro e da falsi- res de ícones) acabaram triunfando. De certa forma,
dade". A imagem pode se desenovelar dentro de uma esta famosa "querela"^ é um exemplo dos motivos e
descrição infinita e uma contemplação inesgotável. Inca- i.i/õcs que ao longo dos séculos levaram o Ocidente a
paz de permanecer bloqueada no enunciado claro de um minimizar e perseguir as imagens dos seus defensores, f )
silogismo, ela propõe uma "realidade velada" enquanto Não podemos deixar de lembrar outro momento da
a lógica aristotélica exige "claridade e diferença". construção da base sólida do iconoclasmo: a escolástica
Não devemos esquecer que a mensagem cristã foi medieval. As obras de Aristóteles quase desapareceram
difundida em grego, a língua de Aristóteles. Para alguns .IO longo dos treze séculos de peripécias que cobrem a
foi a sintaxe grega que permitiu a lógica aristotélica! São

' B. D u b o r g e l , L'lcône, art et pensée de l'invisible{0 í c o n e , arte e


• N i c o l a s M a l e b r a n c h e ( 1 6 3 8 - 1 7 1 5 ) , filósofo cartesiano francês. (N.T.) |)i'nsamento d o invisível), C I E R E C , Saint-Étienne, 1 9 9 1 .

10 11
O paradoxo do imaginário no Ocidente
o imaginário

história do Ocidente, a qual acompanhou, sucessivamen- • II H's — invadiu todas as áreas de pesquisa do "verda-
te, o naufrágio da ci\ilização grega e do Império de Ale- • \ I I n " saber A imagem, produto de uma "casa de lou-
xandre, o surgimento e a destruição do Império romano, i (•,«(", V abandonada em favor da arte de persuasão dos
o nascimento do Cristianismo, o cisma de Bizâncio e jiifjMdorcs, poetas e pintores. Ela nunca ascenderá à
Roma, o aparecimento do Islamismo e das Cruzadas etc. iIljMiidado de uma arte demonstrativa.
De repente, eis que Averroes de Córdoba (1126-1198), ( ) legado do universo mental, as experiências de Ga-
um sábio m u ç u l m a n o da Espanha conquistada pelos lileu (lembremo-nos da demonstração da "lei da queda
mouros, descobre e traduz para o árabe os escritos do I li IS (orpos" no plano inclinado) e o sistema geométrico
filósofo grego. Os filósofos e teólogos cristãos passaram a dl-1 )cscartes (na geometria analítica, uma equação algé-
ler avidamente as traduções. O mais famoso e influente liii(a corresponde a cada imagem e a cada movimento,
foi São Tomás de Aquino. Numa tentativa enorme para ili Ilide a cada objeto físico) representam u m universo
conciliar o racionalismo aristotélico e as verdades da fé iiii( ânico no qual não há espaço para a abordagem p o é -
numa "suma" teológica, seu sistema tornou-se a filosofia I I I .1. A mecânica de Galileu e Descartes d e c o m p õ e o
oficial da Igreja Romana e o eixo de reflexão de toda a objeto estudado no jogo unidimensional de uma única •
escolástica (a doutrina da escola, isto é, das universidades (.msalidade: assim, tomando como modelo de base bolas
controladas pela Igreja) dos séculos 13 e 14. lie sinuca que se chocam, o universo concebível seria re-
' M u i t o mais tarde. Galileu e Descartes fundaram as gulo por um único determinismo, e Deus é relegado ao (
bases da física moderna e o terceiro momento do icono- I i.ipel de "dar o e m p u r r ã o z i n h o " inicial a todo o sistema.
clasmo ocidental. Embora corrigissem muitos erros O século 18 acrescentará outra coluna da tradição
cometidos por Aristóteles, nenhum dos dois jamais con- aristotélica a esta h e r a n ç a cristã de cinco séculos de
tradisse sua meta filosófica nem a de seu seguidor, Tomás racionalismo incontornável: o empirismo factual (que
de Aquino, pois consideravam a razão como o ú n i c o delimitará os "fatos" e fenómenos). Os grandes nomes
meio de legitimação e acesso à verdade. A partir do de David Hume e Isaac Newton permanecem atrelados
século 17, o imaginário passa a ser excluído dos proces- •IO empirismo e com eles esboça-se o início do quarto
sos intelectuais. O exclusivismo de u m único m é t o d o , o momento (no qual ainda estamos mergulhados) do ico-
m é t o d o , "para descobrir a verdade nas ciências" — este noclasmo ocidental. O "fato", aliado ao argumento ra-
é o título completo do famoso Discurso (1637) de Des- cional, surge como outro obstáculo para u m imaginário

12 13
(' jhiradoxo do imaginário no Ocidente
o imaginário

cada vez mais confundido com o delírio, o fantasma do iiic. ((Iniiiiina que só reconhece as causas reais expressas
sonho e o irracional. Este "fato" pode ser de dois tipos: il. Ini in,\a por um evento histórico). Qualquer
o primeiro, derivado da percepção, poderá ser tanto o "liii.ijyin" que não seja simplesmente um cliché modes-
1" ilc- uin fato passa a ser suspeita. Neste mesmo movi-
fruto da observação e da experiência como um "evento"
l i i f i i l o as divagações dos "poetas" (que passarão a ser
relacionado ao fato histórico. Mas, se o século das
t niisiticr.ulos os "malditos"), as alucinações e os delírios
Luzes6 nem sempre atingiu o frenesi iconoclasta dos
t i t i s tlociitcs mentais, as visões dos místicos e as obras de
"enraivecidos" de 1793, colocou, cuidadosamente —
com Emmanuel Kant, por exemplo — , um limite in- «Mão expulsas da terra firme da ciência. Vale obser-

transponível entre o que pode ser explorado (o mundo \1 ( n a lei francesa que regulamentava as construções
do fenómeno) pela percepção e a compreensão, pelos d o s rdilícios públicos, apenas 1% das despesas destina-
recursos da Razão pura, e o que permanecerá desconhe- v.i M - à decoração e ao embelezamento artístico. O recal-
cido para sempre, como o campo das grandes questões . .iiiuiito e a depreciação são tenazes que ainda influen-
metafísicas — a morte, o além e Deus (o universo do I i.iiii ,1 teoria da imaginação e do imaginário de um filó-
M i i o contemporâneo como Jean-Paul Sartre.''
"númeno")... — as quais, com suas soluções possíveis e
contraditórias, constituem as "antinomias" da Razão. límbora, por um lado, tenha sido a lenta erosão do
O positivismo e as filosofias da História, às quais |i.i|)cl do imaginário na filosofia e epistemologia do Oci-
nossas pedagogias permanecem tributárias (Jules Ferry ilciilo que possibilitou o impulso enorme do progresso
era discípulo de Auguste Comte), serão frutos do casa- (('•(•nico, por outro, o domínio deste poder material
Hobre as outras civilizações atribuiu uma característica
mento entre o factual dos empiristas e o rigor iconoclas-
in.ircante ao "adulto branco e civilizado", separando-o,
ta do racionalismo clássico. As duasfilosofiasque desva-
.issim como sua "mentalidade lógica", do resto das cul-
lorizarão por completo o imaginário, o pensamento sim-
turas do mundo tachadas de "pré-lógicas", "primitivas"
bólico e o raciocínio pela semelhança, isto é, a metáfora,
ou "arcaicas".
são o cientificismo (doutrina que só reconhece a verda-
de comprovada por métodos científicos) e o historicis-
' l.-P. Sartre, L'imaginaire (O imaginário), Callimard, 1940. Para Sar-
tre a imagem não passa de uma "quase observação", um "nada",
uma "degradação do saber" com um caráter "imperioso e infantil" e
"parecida ao erro em Spinoza (s/c)", acrescenta ele, optando assim
6 G. Cusdorf, Les Príncipes de la pensée au siècle des Lumières (Os
pela tese clássica a partir de Aristóteles.
princípios do pensamento no século das Luzes), Payot, 1 9 7 1 .

14 15
o imaginário (' paradoxo do imaginário no Ocidente

' Todavia, esta c o n s o l i d a ç ã o exclusiva de u m "pensa- nn i i i i s i c i i o s d o amor... A l i o n d e a d i a l é t i c a b l o q u e a d a

m e n t o sem i m a g e m " , » de u m a r e j e i ç ã o — da natureza e llAu l o i í s c m i r |jenetrar, a i m a g e m m í t i c a fala d i r e t a m e n -

de tantas civilizações i m p o r t a n t e s — dos valores e p o d e - k ,\Uiu\.

res d o i m a g i n á r i o e m p r o l dos e s b o ç o s da r a z ã o e da I'st.1 lu-rança p l a t ó n i c a a n i m a r á u m a parte d o s é c u l o


b r u t a l i d a d e dos fatos e n c o n t r o u m u i t a s r e s i s t ê n c i a s n o H .1 l.iMio.sa " q u e r e l a " dos iconoclastas v i t o r i o s o s . N a
p r ó p r i o Ocidente. iii.ti'. pura t r a d i ç ã o d o idealismo p l a t ó n i c o , n o qual paira
i i i i i n u i i u l o ideal que justifica e i l u m i n a o m u n d o a q u i
2 . As resistências do imaginário n n l Mixo o n d e r e i n a m a " r e p r o d u ç ã o e a c o r r u p ç ã o " , S ã o
Ju.io, o Damasceno ( s é c u l o 8 ) , f o i arauto e vencedor da
• D e s d e o alvorecer s o c r á t i c o d o r a c i o n a l i s m o o c i - (Iclfs.i das imagens c o n t r a u m a teologia da a b s t r a ç ã o , da
dental e c o m o objetivo de dar u m a l e g i t i m i d a d e à i m a - H , o i u l i i ç ã o pelo í c o n e para u m " o u t r o l u g a r " a l é m des-
g e m , o p r ó p r i o P l a t ã o — n o qual reconhece-se a filoso- i< i n i i i u l o v i l . í c o n e cujo p r o t ó t i p o foi a i m a g e m de D e u s
fia de S ó c r a t e s , seu m e s t r e — defende u m a d o u t r i n a r j u ,ir nada na pessoa visível de Jesus, seu filho. Essa mes-
mais matizada d o que a de A r i s t ó t e l e s , seu sucessor. E ni.i líiiagcm viva, projetada e r e p r o d u z i d a n o v é u c o m o
verdade que os famosos Diálogos d i f u n d i r ã o e g a r a n t i r ã o <|ual a m i s e r i c o r d i o s a Santa V e r ô n i c a t e r i a enxugado o
a legitimidade do raciocínio dialético. Afinal, n ã o é à toa iDslo d o C r i s t o supliciado. G r a ç a s à e n c a r n a ç ã o d o C r i s -
q u e P l a t ã o é o m e s t r e de A r i s t ó t e l e s ! M a s P l a t ã o sabe ii > <ni lace da antiga t r a d i ç ã o iconoclasta d o m o n o t e í s m o
que m u i t a s verdades escapam à filtragem l ó g i c a d o m é - pi.leu estava criada u m a das p r i m e i r a s r e a b i l i t a ç õ e s das
t o d o , p o i s l i m i t a m a R a z ã o à a n t i n o m i a e revelam-se, imagens n o O c i d e n t e c r i s t ã o . Pois, à i m a g e m d o C r i s t o , a
p a r a assim dizer, p o r u m a i n t u i ç ã o v i s i o n á r i a da a l m a Imagem concreta da santidade de Deus, logo acrescentar-
que a antiguidade grega conhecia m u i t o b e m : o m i t o . A o Nt'-ia a v e n e r a ç ã o das imagens de todas as pessoas santas
c o n t r á r i o de K a n t , e g r a ç a s à l i n g u a g e m i m a g i n á r i a d o (a(|iielas q u e tivessem a t i n g i d o u m a certa s e m e l h a n ç a
m i t o , P l a t ã o a d m i t e u m a via de acesso para as verdades l o m D e u s ) , da V i r g e m M a r i a , m ã e de C r i s t o (théotokos, "a
i n d e m o n s t r á v e i s : a e x i s t ê n c i a da alma, o a l é m , a m o r t e , iiiai- tle D e u s " ) , seguida pelas d o precursor J o ã o Batista,
(los a p ó s t o l o s e, p o r ú l t i m o , de t o d o s os santos... Por-

8 A . B u r l o u d , La Pensée d'après les recherches expêrimentales de tanto, na cristandade, e paralelamente à c o r r e n t e t ã o p o -


H.J. Watt, Messer et Buhler ( O p e n s a m e n t o s e g u n d o as p e s q u i s a s derosa d o iconoclasmo racionalista, g e r m i n a v a m ao mes-
e x p e r i m e n t a i s d e H.J. W a t t , M e s s e r e B u h l e r ) , A l c a n , 1 9 2 7 .

16 17
o imaginário (' píiradoxo do imaginário no Ocidente

mo tempo uma estética da imagem "santa" que a arte b i - lon^cs não enclausurados, serão os propagado-
zantina perpetuaria durante vários séculos e bem depois (Iffil.i nova sensibilidade religiosa — devotio moderna
do cisma de 1054, assim como, com a mariolatria (o cul- • ou rriadores de inúmeras "transposições para ima-
to da Virgem) e as hiperdulias dos santos, u m culto g r i i n " d o s mistérios da fé (representações teatrais dos
pluralista às virtudes da santidade divina que por vezes "Ml«il«'i i o s " , das quatorze estações do "Caminho da
beirava a idolatria ou, pelo menos, introduzia as variantes l ' r ( i / " , criação da devoção ao presépio da Natividade,
politeístas no monoteísmo estrito e originário do judaís- W)( r n . i ç ã o no Sacro Monte dos episódios da vida do santo
mo. E, por último, a oração diante dos ícones privilegia- liMMl.idor, divulgação das "bíblias moralizadas" ricamen-
dos constituía u m acesso direto e não sacramental (pois li (III,II,idas e t c ) . Entrementes, no Ocidente, os pro-
escapava à administração eclesiástica dos sacramentos) iiicildics de uma das raras filosofias da imagem darão
que ultrapassava o sacrossanto...^ llili lo com os yioretti" de São Francisco à abertura para
A esta resistência bizantina à destruição da imagem « iiiiliinvii, cantando nosso irmão Sol e nossa irmã Lua,
somou-se, nos séculos 13 e 14 da cristandade do Oci- (jiif .ihrangerá o Itinerarium mentis in Deum (Itinerário da
dente, a grandiosa floração do culto à imaginária sacra 111II 1,1 a t é Deus) de São Boaventura, o Superior Geral da
(iconodulie)* gótica sustentada, em grande parte, pelo ' ii.liiii V sucessor de São Francisco. Ao ser contempla-
êxito da mentalidade da jovem e fraterna ordem de São '1.1, ,1 imagem da santidade não apenas instiga, como em
Francisco de Assis (1226). A "época das catedrais" pre- Jo.io, o Damasceno, e na tradição platónica, a penetrar
gada por São Bernardo, com sua rica ornamentação fi- iiii própria santidade (o naturalismo empírico aristoté-
gurativa (estátuas, vitrais, iluminuras e t c ) , substituirá ilro já passou por isso!). Como toda representação da
progressivamente o iconoclasmo gentil da estética cis- iMiiiicza e da criação, ela é u m convite para seguir o ca-
terciense do século 12. Aos poucos ela suplantará no minho até o Criador. Qualquer contemplação, qualquer
coração da cidade a clausura austera dos m o n a s t é r i o s vl,sã() da Criação, mesmo no seu grau mais baixo, é u m
isolados nas terras agrestes e nos vales rurais. Os francis- "vestígio" (vestigium) de Toda a Bondade do Criador. Mas
6 pc-la imagem (imago) que a alma humana representa

9 B. D u b o r g e l , op. cit. (om maior exatidão amda as virtudes da santidade. Por


* I c o n o d u l i e : 1 . i c o n o - [ D o gr. eikón, onos.]E\. comp.'imagem': ico- lim atinge-se a etapa suprema do caminho: Deus tem o
n ó l a t r a , i c o n o t e c a ; 2 . d u l i a [ D o g r . douleía.]S. f. T e o l . 1 . C u l t o p r e s t a -
d o a o s santos e a o s a n j o s . ( N . T.)
poder de conceder à alma santa uma " s e m e l h a n ç a "

18 19
(' p.iríiLloxo do imaginário no Ocidente
o imaginário

(similitudo) a sua p r ó p r i a i m a g e m e a a l m a c r i a d a s e r á i t i i t i i .11) .11 livre p a s s a r á a d o m i n a r p a u l a t i n a m e n t e nas


r e c o n d u z i d a ao Deus C r i a d o r seguindo os graus das t r ê s | t l i i l i i i . i ' . d e lemas religiosos (a Fuga d o E g i t o , o S e r m ã o
r e p r e s e n t a ç õ e s imaginárias: o vestígio, a imagem p r o - tlii M i i i i i . i i i l i . i , as Pescas Milagrosas, os Judeus n o Deser-
p r i a m e n t e d i t a e a s e m e l h a n ç a . Esta d o u t r i n a p r o p i c i a r á Ut, (I S.ii(,.i A r d e n t e etc.) e p r e d o m i n a r á progressivamen-
o i m p u l s o para as v á r i a s receitas de u m a Imitatio Christi e , \ r t ( ( * Invadir t o d a a s u p e r f í c i e da i m a g e m . A l i b e r d a d e
o florescimento de cultos aos santos nos quais os d o m i - ilii . t l i r r l u r . i voltada para a natureza e suas r e p r e s e n t a ç õ e s
nicanos e franciscanos rivalizarão c o m suas "lendas d o u - j i i H V d i ,11,1 u i n a e s p é c i e de efeito perverso d u p l o : p o r u m
radas" 1° c o n c o r r e n t e s . Ela p a s s a r á a ser t ã o d e t e r m i n a n - U i l i ) , .1 i m a g e m d o h o m e m apaga-se cada vez mais da
t e , especialmente na e s t é t i c a da iconografia e da c r i s t a n - j w U i i ^ c n i natural das á g u a s , florestas e m o n t a n h a s ; p o r
d a d e o c i d e n t a l , q u a n t o a e s t é t i c a e o c u l t o ao í c o n e M M i í i i , |)aradoxalmente, o culto à natureza facilita o
' f o r a m para a Igreja d o O r i e n t e . D e certa f o r m a essas Mtiii no das divindades elementais mas a n t r o p o m ó r f i c a s
duas e s t é t i c a s da i m a g e m , a de B i z â n c i o e da cristandade liou antigos paganismos. O h u m a n i s m o d o Renascimen-
d e R o m a , desenvolveram-se e m s e n t i d o i n v e r s o . E n - l i i d o (liuittrocento ( s é c u l o I S ) v e r á , sempre p a r a d o x a l -
q u a n t o B i z â n c i o concentrava-se na figuração e contem- i i H i i l c , a e x a l t a ç ã o ao h o m e m n a t u r a l e sua paisagem
p l a ç ã o da i m a g e m d o h o m e m transfigurado pela santida- *j{H'slc, m a s , t a m b é m , o r e t o r n o ao paganismo e à t e o -
de, da qual Jesus C r i s t o é o p r o t ó t i p o v i v o . S ã o Francisco logia iMtural das f o r ç a s a n t r o p o m ó r f i c a s q u e r e g e m a
de Assis e u m a R o m a p o n t i f i c a l i n t r o d u z i a m a "senhora" n,i(m(v..i...

natureza nas pinturas. E a sensibilidade dos p a í s e s celtas A lu-cessidade de u m a R e f o r m a e o que d e n o m i n a -


(a F r a n ç a , a B é l g i c a , os P a í s e s Baixos, a I r l a n d a , a Es- I I m o s de terceira r e s i s t ê n c i a à i m a g i n á r i a sacra e x p l o d i -
c ó c i a . . . ) m e r g u l h a r á deliciada nessa o p ç ã o , p o i s a m e n - 1.11) i K ' s t e m o m e n t o de crise da teologia c r i s t ã e p r o v o c a -
talidade da antiga c u l t u r a dos celtas investia-se, e m g r a n -
i . i i ) ,1 C \ ) n t r a - R e f o r m a . A R e f o r m a Luterana, s o b r e t u d o
de parte, d o c u l t o e das m i t o l o g i a s das divindades da flo-
.1 d o s seus sucessores, c o m o C a l v i n o , r e p r e s e n t a uma
resta, d o mar, das t e m p e s t a d e s . . . A preferência por
I i i | i ( i i r a c o m os maus h á b i t o s a d q u i r i d o s pela Igreja ao
l o n g o dos s é c u l o s , n o t a d a m e n t e p e l a c o n t a m i n a ç ã o
10 D e n t r e as q u a i s a m a i s c é l e b r e é a d o d o m i n i c a n o J a c q u e s d e V o -
r a g i n e q u e , c i u m e n t a , e x c l u i q u a l q u e r alusão à o r d e m c o n c o r r e n t e
liumanista dos grandes papas d o Renascimento ( P i o I ,
de São Francisco... Alexandre Borgia, J ú l i o I I , L e ã o X , filho de L o u r e n ç o , o
1' C . D u r a n d , Beaux-Arts et archétypes, la religion de /'art (As belas-
artes e o s arquétipos, a religião d a arte), P.U.F., 1 9 8 9 . M.ignífico). A R e f o r m a c o m b a t e r á a e s t é t i c a da i m a g e m "

20

^3
o imaginário i> juiuidtno (/() imaginário no Ocidente
e a extensão do sacrilégio do culto aos santos. O icono- litt* i ' d i i l l i u s " ) c, sobretudo, um investimento religioso
clasmo evidente traduz-se nas destruições das estátuas e MH i i i t i N i t ,t lio i ulto e mesmo na música denominada

pdos quadros. Todavia, devemos assinalar que,"ho meio


I protestante, este iconoclasmo, no sentido estrito de ( n m n |Miiii() (ic comparação com essas "imagens"
"destruição de imagens", diminui de intensidade com o iltu i M i M K i l c i s m o . s judeu e muçulmano, que poderíamos
culto às Escrituras e também à música'2 — Lutero, que • ( • " M n i i i l i i . i r "f.spirituais", podemos citar a imensa exege-

também era músico, colocava a Senhora Música {Frau t¥ imitji ,il — o tão poética! — da obra de Johann-
l | » i | t i i « i l , i i i It.u h (1685-1750), o maior compositor pro-
Musika) imediatamente atrás da teologia! De passagem,
podemos observar que, nas grandes religiões teístas com ttmlitiiii H,u h, músico e protestante tardio da Reforma,
um iconoclasmo bem solidificado como no Islamismo e mrtitlrvf i i U . K tas a inspiração e a teoria estética de Lute-
M i ( ) N t c H l o s e as músicas de suas duzentas cantatas e
Judaísmo, a necessidade de uma representação relacio-
" 1 ' i i l M i r s " são testemunhas magníficas da existência de
na-se tanto à imagem literária quanto à linguagem musi-
i i i n "iiii.i|'iiiário" protestante de uma profundidade in-
cal. Henry Corbin, protestante fi-ancês e grande estudio-
so do Islamismo, não se enganou neste ponto. O I livrl III,IS (|ue se destaca na pureza iconoclasta de um
l i i j M i de oração do qual as imagens visuais — os qua-
Islamismo compensava a proibição das imagens pintadas
i l l i i N , ,is tstátuas e os santos — foram expulsos.
ou esculpidas com poetas de primeira grandeza (Attar,
Hafiz, Saadi), a prática de recitais sagrados da música , A Coiilra-Reforma da Igreja Romana tomou exata-
i i H i i i c ,1 .ititude oposta a essa decisão iconoclasta dos
espiritual {sama) e a "recitação visionária" por meio de
imagens literárias, portanto sem um suporte icônico, Kflormadores. Num primeiro momento, felizmente lo-
que consistia em uma técnica de recondução (tawil) à Ipi rs(iuc'cido, chegara mesmo a suspeitar da onipresen-
santidade inefável. Da mesma forma há no Judaísmo, ao ( f Senhora Música no ofício luterano.'^ Mas será princi-
|iiilmciile a imaginária sacra das imagens carnais da San-
lado das exegeses puramente legais, uma exegese "poé-
lii I .imília "jesuítica" (Jesus, Maria e José), dos santos
tica" das Escrituras (nas quais incluem-se os "livíos" I »c luiorcs e Confessores da Igreja que se oporá ao imagi-
poéticos tais como o famoso e tão decantado "Cântico
'' ()s Oradores (daí o termo oratório) de são Felipe Neri Impuseram
12 E. Weber, La Musique protestante en langue allemande (A música .1 iiiiísica religiosa como um poderoso instrumento de conversão e
protestante em alemão), Champion, 1980. | i i i ( ; , i i , , i o contra a Contra-Reforma.

22 23
I
o imaginário (' i'iii,hli>.\o do imaginário no Ocidente

n á r i o " e s p i r i t u a l " protestante d o c u l t o . C o m a c o d i f i c a - B lUrrAiio o u musical, a C o n t r a - R e f o r m a t a m b é m


ç ã o d o famoso C o n c í l i o de T r e n t o , n o s é c u l o 16, o Hln^'.'*'*' " |''ip<il e s p i r i t u a l c o n f e r i d o à s imagens e ao
t r i u n f o da C o n t r a - R e f o r m a p o d e ser considerado c o m o B i i i i i ,s.mtt)s. As imagens esculpidas o u pintadas, o u
o t e r c e i r o grande m o m e n t o da r e s i s t ê n c i a ao iconoclas- B | r N >\s imagens p i n t a d a s q u e i m i t a m esculturas à
m o d o O c i d e n t e . A p a r t i r de agora, esta r e s i s t ê n c i a pos- B|M /'(!<•//, i n v a d e m o vasto e s p a ç o d e s o c u p a d o das
sui u m alvo preciso. Ela o p o r á aos excessos da R e f o r m a WH il.i', i K i v a s basílicas de "estilo j e s u í t a " e os v i r t u o -
os excessos inversos da arte e da espiritualidade b a r r o -
«ItiiiMs ,ii(|uiU'turais c o m os quais o B a r r o c o b e n e f i c i a r á
cas. D o i s famosos especialistas neste p e r í o d o ^ ' * d e r a m à s
t I | M— o famoso "crescente b a r r o c o " — , e que
suas a n á l i s e s s u b t í t u l o s que c i r c u n s c r e v e m e m duas i m a -
-1^ I ' . i i n i i c r á d u r a n t e quase t r ê s s é c u l o s p e l a I t á l i a ,
gens as qualidades deste n o v o i m a g i n á r i o . O B a r r o c o é
I M i n | M ( ' e n t r a i e... A m é r i c a d o Sul. Por t r á s das obras de
realmente " u m b a n q u e t e dos anjos" — t í t u l o q u e u n e
.iit|tilliiiis tais c o m o B o r r o m i n i e o cavalheiro B e r n i n e
duas imagens a n t i t é t i c a s ( o u " o x i m o r o s " ) : as dos seres
| i | i i l n i i s i o r n o Veronese, T i c i a n o e T i n t o r e t t o , Rubens e
de e s p í r i t o p u r o , os anjos, e aquela d o banquete, total-
\ni 111,1 1'()/,/.o encontram-se os Exercitia spiritualia ( 1 5 4 8 )
m e n t e carnal — mas, ao m e s m o t e m p o , é a " p r o f u n d i -
• I»' Siinio I n á c i o de Loyola, o fundador da sociedade —
dade da a p a r ê n c i a " ( t í t u l o n ã o m e n o s e n i g m á t i c o , pois a
uti ('nni|>anhia — de Jesus. Trata-se de u m v e r d a d e i r o
p r o f u n d i d a d e nos é sugerida p e l o q u e h á de mais super-
I H l . I I l o de c o n t e m p l a ç ã o imaginativa que, c o m o Itine-
ficial: apesar de t o d a p o m p a a a p a r ê n c i a nega e m m o s -
i.iiiiiiM de S ã o Boaventura, t o r n o u - s e u m a das duas C a r -
trar-se...). Estas s ã o as qualidades da i m a g e m propostas
liiK ni.iis i m p o r t a n t e s apoiadas p r i m e i r o pelos francisca-
pelo Barroco: u m a pletora profundamente carnal, trivial
1(1 I N e d e p o i s pelos j e s u í t a s , as duas o r d e n s religiosas
m e s m o , da r e p r e s e n t a ç ã o , mas que t a m b é m d á acesso à
Miitis poderosas da d e v o ç ã o m o d e r n a e d o i m a g i n á r i o
p r o f u n d i d a d e d o sentido p o r m e i o destes efeitos super-
IMINIÍIo d o O c i d e n t e c r i s t ã o . O c o m p a n h e i r o de Jesus é
ficiais de jogos de e p i d e r m e e v i r t u o s i s m o s triunfalistas.
i>iil>nii'tido a e x e r c í c i o s de i m a g i n a ç ã o s i s t e m á t i c o s des-
D i a n t e desse i m a g i n á r i o protestante v o l t a d o para o
'\i o noviciado: visualização seguida de c o n t e m p l a ç ã o de
M p t i i . i s d o I n f e r n o , da N a t i v i d a d e , da fuga d o E g i t o , da
i"» C l . - C . D u b o i s , Le Baroque, profondeur de 1'apparence ( O barroco
e a p r o f u n d i d a d e d a a p a r ê n c i a ) , Larousse, 1 9 7 3 ; D . F e r n a n d e z , Le
Banquet des anges, l'Europe baroque de Rome à Prague ( O ban-
q u e t e d o s a n j o s , a E u r o p a b a r r o c a d e R o m a a Praga), P I o n , Paris, '* I' (liarpentrat, Baroque ( O barroco), O f f i c e d u Livre, Fribure
1984.

24 25
o imaginário ^^^^B o /i./i,/(/fi\() (/o imaginário no Ocidente
crucificação e da raríssima representação da aparição de ^ ^ ^ ^ H | f l lie m i l idcil clássico. O neoclassicismo reintro-
Jesus à sua mãe (uma aparição concreta, segundo u m ^^^^B tlrítct|uilíl)rio iconoclasta entre os poderes da
exercício de a p a r i ç õ e s ) . N e s s a mesma época, o imagi- ^^^^^pP rt | i i i r l c devida à imaginação no século das Luzes.
nário teatral de um certo Shakespeare apresentará duran- ^^^Wfpli\,iii.l.i d e s d e logo uma funcionalidade pura,'"' o
te a encenação principal de uma peça uma cena secundá- • I I" ' 1 1 n (juilcturas austeras é substituído pela ale-
ria. Isso é tão verdadeiro que, para atingir a profundida- . 11 I I I . i | i i i l . i .

de da iluminação pela própria aparência e pelo sentido, a t miiuilo, no século das Luzes, os movimentos co-
sensibilidade e a espiritualidade "barrocas" comprazem- ' I 'II II 'iii.intismo (Sturm und Drang, na Alemanha) e
se na multiplicação das aparências "por abismos". <i HiiMi.iiiliMiK) foram portos privilegiados e triunfantes.
No entanto, apesar da concorrência tão proveitosa A i<»ltMl( .1 p r é - r o m â n t i c a e os movimentos românticos
do imaginário da Reforma e da Contra-Reforma, a rup- t l i H III Ientes demarcam perfeitamente a quarta resis-
tura definitiva com a cristandade medieval, as "Guerras irt d l ) imaginário aos ataques maciços do racionalis-
das Religiões" e a Guerra dos 30 Anos particularmente MU »• d i i positivismo. Pela segunda vez, esta estética]
— que arruinou e cobriu de sangue a Europa até o tra- ffidiiliei e e descreve u m "sexto sentido" além dos cin-
tado da Westfália (1648) — obrigou os valores visioná- n i ijiie ,\póiam classicamente a p e r c e p ç ã o . M a s este
rios do imaginário a procurarem refúgio longe dos com- "«'sid sentido", que possui a faculdade de atingir o belo, '
bates fratricidas das Igrejas. Eram individualismos rei- irirt, ij^\o jacto, ao lado da razão e da percepção costumei-''^
vindicando a independência, hostilidades contra os I 1, i i i i i . i terceira via de conhecimento, permitindo a en-
jesuítas ou calvinistas ou movimentos à margem de qual- (I.MI.I de uma nova ordem de realidades. Uma via que
quer instituição religiosa. Claro que este imaginário |ii IvileiMa mais a intuição pela imagem do que a demons-;
autónomo junto com a desvalorização dos seus suportes liflt,,ii) p e l n sintaxe. Será com a Razão pura e prática que
confessionais enfraqueceram os poderes da imagem, e o I liiinanuel Kant irá teorizar este procedimento de
preço desta autonomia foi, com freqiiência, o neo-racio-
nalismo dos filósofos que, no século 18, retomaram a
I ' d , Durand, "Notes pour Tétude de la romanomanie" (Notas para
II n'.iu(l() da romanomania), in Les Imaginaires des Latins [Os ima-
(liKlrios latinos], EPRIL, U n i v e r s i t é d e Perpignan, 1 9 9 2 .
16 Lima de Freitas, 5 7 5 , le lieu du miroir, art et numérologie ( 5 1 5 , o '« V . Basch, Essai critique sur l'esthétique de Kant (Ensaio crítico
lugar do espelho, da arte e da numerologia), Albin Michel, 1 9 9 3 . i i i l i i f ,1 estética de Kant), Vrin, 1 9 2 7 .

26 27
o imaginário (' Ihinnloxo (/() imaginário no Ocidente

conhecimento pelo "juízo de gosto". Mas não apenas. ' I H ) , ! positivista e o esgotamento das religiões
No âmago do processo do juízo racional da Razão pura, I I I do ()ti(lcnte. Mas isto não aconteceu de u m
e para permitir a união entre as "formas a priori" da per- ' l i t n nutro.
cepção (espaço e tempo) e as categorias da Razão, Kant I i i i l x i i , ) ,is primeiras insurreições do Sturm und
reabilita a imaginação como uma "esquematização" pre- (1770) — a etapa da doutrina romântica da "arte
parando, de certa forma, a integração da simples per- .lie" McjMiida de seu herdeiro imediato, o perfec-
cepção nos processos da Razão. Os sistemas filosóficos iiiii "p.iriiasiano" — explorassem e consolidassem
mais importantes do século 19, como os de Schelling, ' I ilrtiln imaginai do "sexto sentido", elas não foram
Schopenhauer e Hegel, terão uma participação régia nas lAêlU d.i pc-rfoição imanente das imagens. Será preciso
obras da imaginação e da e s t é t i c a . O poeta Hõlderlin I I I .1 (liegada da corrente "simbolista" para des-
afirmará, no alvorecer do século: "Os poetas autenticam | i i > .11 .1 pt-iloição formal e elevar a imagem icónica,
o que permanece"* e será retomado por Baudelaire e . .1, .ilr musical, a vidência e conquistados sentidos.
Rimbaud. O primeiro coroará a imaginação com o títu- - lítiilo <le " s í m b o l o " à imagem artística significa'
lo de "A Rainha das Faculdades", enquanto o segundo | | t # i i i t i i l i i / i r do significante banal a manifestação de u m
constatará que "qualquer poeta tende a tornar-se u m i l M i l i i i l i N i n o inefável.''S^egundo u m especialista em Sim-"
visionário". N ã o há dúvida de que o artista tornou-se NllUino, seria o mesmo que reencontrar "a galáxia das
"maldito" devido ao sucesso insolente das ciências e téc- l l ^ i i l l l i .nuias [...] o rumor dos deuses...".20 A obra de)
nicas que inauguraram uma inquisição política e uma «II»' l i . i lil)i'rtar-se aos poucos dos serviços antes presta-
ditadura económica novas. Mas nem por isso todos os iliiN h r e l i g i ã o e, nos séculos 18 e 19, à política. Esta
artistas deixam de reivindicar ferozmente os títulos de i m a i u i p a ç ã o Iiicida das artes será o feito tanto de u m
" g é n i o " , "vidente", "profeta", "mago" e "guia"... No Ouulrtvc Moreau, Odilon Redon ou u m Gauguin na p i n -
final do século 19, a arte passa a uma "religião" autóno- lurn como de u m Richard Wagner ou seu rival Claude
ma, revezando-se com seus cenáculos e suas capelas com Urbiissy na música... O Surrealismo da primeira metade
(lo ulo 20 será o resultado natural e reconhecido d o

19 L. C u i c h a r d , La Musique et les lettres au temps du romantisme


(A m ú s i c a e as letras n a é p o c a d o R o m a n t i s m o ) , P.U.F., 1 9 5 5 . ! • R,-L, D e l v o y , Le Journal du symbolisme (O diário do simbolismo),

* "Ce qui demeure les poetes le (ondent." (N.T.) Ikira, 1977.

28 29
o imaginário f ihiKiihni) ih) imaginário no Ocidente

Simbolismo. Este "sexto sentido", que no século das > ftii» iwiwrso e a explosão do vídeo
Luzes revelou ingenuamente a estética, desabrochou
numa filosofia de um universo "completamente diferen- Nii m n l l u r n c i a desta corrente dupla poderosíssima
t e " do pensamento humano e definido p o r A n d r é • Midniia (lo iconoclasmo ocidental e da afirmação do
Breton, no Manifesto de 1924, como o "funcionamento |.» I •'( ((;"MÍliv()" (que produz consciência) da imagem
realista do pensamento".2' Contudo, podemos imaginar iiiiiiin mais esporádica e dominada por aquela
os constantes entraves sofridos por este movimento de I -.III."III.i, pas.sado mais de meio século, sob nossos
um retorno ao Surrealismo, que se posiciona do outro iillin», n i|iii- podemos denominar de "a revolução do
lado de u m empirismo institucionalizado na todo-pode- I <) q u e i i ã o deixa de ser extraordinário é que esta
rosa corrente positivista com sua pedagogia obrigatória, I K . .,n I d,i " t iviji^ação da imagem" tenha sido u m efei-
até ser finalmente marginalizado durante quase todo o t' u n i "ffiMlo perverso" (que contradiz ou desmente
século 20. A prova encontra-se no campo das belas-artes • n i c . n | u r i K Í a s teóricas da causa), do... iconoclasmo
e, por vezes, entre os detentores do Surrealismo e no iili o t icntífico, e cujo resultado triunfante será a
desenvolvimento d o g m á t i c o de toda uma p i n t u r a e I M" M i l positivista. A descoberta da imagem fotográfi-
música n ã o imaginárias, cujas abstrações g e o m é t r i c a s . I , j i i i m i MO em preto ( N . Niepce, 1823; J. Daguerre,
como o Cubismo, o dodecafonismo e o desconstrutivis- I M l / ) f depois em cores (L. Ducos de Hauron, 1869;
mo foram, até o último quarto do século, suas manifes- 1 , I l|ipman, 1891) está estreitamente ligada ao progres-
tações mais ferrenhas.22 XII ijiiiiiiKo (|ue permitiu a gravação da imagem projeta-
I I " A N avessas" pela objetiva da câmara escura numa pla-
1 irnsihilizada — u m f e n ó m e n o muito conhecido a
l> I I III (lo século 15. A animação da imagem reproduzida
(|iiliiii( .iiiiente (A. e L. Lumière, 1885) resulta da aplica-
\,^^t mecânica de u m f e n ó m e n o fisiológico conhecido,
icmi/Hído em 1828 por Joseph Antoine Plateau, o cria-
21 G. Picon, Le Journal du surréalisme (O diário do surrealismo),
1919-1939, Skira, Genebra, 1974. iliii lie i m i dos primeiros cinematógrafos, o fenacistocó-
22 M . Ragon, L'Aventure de 1'art abstrait (A aventura da arte abstrata). plii, iiiii aparelho formado por dois discos que dão a i l u -
Paris, 1956; R. L e i b o w i u , Introduction à la musique de douze tons
(Introdução à música de doze tons), L'Arche, 1949. »Ao (le movimento pela continuidade das imagens da

30
() luii.iiluxo do imaginário no Ocidente
o imaginário

retina. A transmissão instantânea destas imagens e " f i l - ^ ( n U l'>l p H v i s i o nem mesmo considerado. Embora a
mes" à distância será o fruto da aplicação da telecomuni- pit|ttUii h l i i i i l . i l decorrente do positivismo tenha se
cação oral (É. Branly, 1890; A. S. Popov, 1895; G. Mar- 4)Ml«HM>iiln p r l o s nicios técnicos (óticos, físico-quími-
coni, 1901) e depois das imagens na televisão (B. Rosing, I I I 111 i ; ' n c licos etc.) da p r o d u ç ã o , reprodução e
1907; V K. Zworykin, 1910-1927) e a descoberta da II iiiiiii ...111 il.i.s imagens, ela continuou desprezando e

onda eletromagnética considerada "inútil e puramente ' ' " " l o o |>n)(luto de suas descobertas. Fato comum
teórica" por H . Hertz. (1888), seu inventor. Eis um belo . pcil.igogias técnico-científicas: foi necessário
exemplo de cegueira de um sábio educado nas escolas e •jH»' > (Mite da p o p u l a ç ã o de H i r o x i m a fosse des-
laboratórios positivistas que se recusou a ver — e prever Mtt(il>i p.ii.i (|iu- os físicos se horrorizassem com os efei-
— o importante resultado civilizacional de sua descober- IH* til' iii.i.s (iiscíibertas inocentes sobre a radioatividade
ta, que permitirá a inesperada "explosão" da comunica- jiMiviii i i i l . i . . .
ção e difusão das imagens. Estas receberiam ainda os . ( ) qiic n,i() ocorreu com a "explosão" do imaginá-
suportes magnéticos dos progressos da física e passariam C u i u d .1 imagem sempre foi desvalorizada, ela ainda
por uma expansão gigantesca com o advento do videocas- lni|ui(t,iva a consciência moral de u m Ocidente que
sete (1972) e videodisco. Se nos detivemos detalhada- Ml «t if.lií.iv.i vacinado por seu iconoclasmo endémico. A
mente nesses inventores e suas invenções foi para marcar f i t n i i i i r p i o d u ç ã o obsessiva de imagens encontra-se
bem a "perversidade" dos efeitos do progresso da física e llflliiill.id.i ao campo do "distrair". Todavia, as difusoras
da química, bem como das experiências e teorizações lliiii^M-iis — digamos a "mídia" — encontram-se oni-
matemáticas do racionalismo iconoclasta do Ocidente. jlfpliriilc.s cm todos os níveis de representação e da psi-
Aos nossos olhos, a ultrapassagem, quando n ã o o ijiir d o l i o m e m ocidental ou ocidentalizado. A imagem
" f i m " da "galáxia de Gutenberg", pelo reino onipresen- lUPtll.ílica está presente desde o b e r ç o a t é o t ú m u l o , ;
te da informação e da imagem visual teve consequências illliiiido ,is intenções de produtores anónimos ou ocul- \
cujos prolongamentos são apenas entrevistos pela pes- Itm i i i i despertar pedagógico da criança, nas escolhas
quisa.25 A razão é muito simples: este "efeito perverso" «oiiAinicas e profissionais do adolescente, nas escolhas
lllMilógicas (a aparência) de cada pessoa, até nos usos e
((Wliinu-s públicos ou privados, às vezes como "informa- /
23 A . L e r o i - C o u r h a n , Le Ceste et la parole ( O gesto e a p a l a v r a ) , 2
(,»n", iVs vezes velando a ideologia de uma "propaganda", /
vols., A l b i n M i c h e l , 1 9 6 4 .

32 33
o imaginário

e noutras escondendo-se atrás de uma "publicidade"


sedutora... A importância da " m a n i p u l a ç ã o icônic.\
•O(relativa à imagem) todavia não inquieta. No entanto c
II
dela que dependem todas as outras valorizações — das
A s ( 'IÍ:NCIAS D O IMAGINÁRIO
"manipulações genéticas", inclusive. Felizmente e apesai
de tudo, nos últimos 25 anos uma minoria de pesquisa
dores, que cresce a cada dia, interessou-se pelo estudo
deste fenómeno fundamental da sociedade e pela revo
lução cultural que implica.
I 4> oloffias das profundezas

' h li,isliòi's da resistência dos valores do imaginário


Ill reino triunfante do cientificismo racionalista
l l K H t i i I ' Kiiiiiantismo, o Simbolismo e o Surrealismo. E
Itii I I I MC d e s s e s movimentos que uma reavaliação
|li)«||lv,i d o sonho, do onírico, até mesmo da alucinação
I du,s alucinógenos — estabeleceu-se progressiva-
Itimle, ( i i j o resultado, segundo o belo título de Henri
I III M l i f r g e r , ^ 4 foi a "descoberta do inconsciente". A
I 11 e rts experiências do "funcionamento concreto do
ji#li»iiiiient()" comprovaram que o psiquismo humano
n.tii liiiK ioiia apenas à luz da percepção imediata e de
u n i i n i a d i - a m e n t o racional de ideias mas, também, na
|HMmnil)ra ou na noite de um inconsciente, revelando,
iH|iil e ali, as imagens irracionais do sonho, da neurose

WH I l l i M i h c r g e r , v e r Bibliografia.

34 35
o imaginário A\ do imaginário

o u da c r i a ç ã o p o é t i c a . C l a r o que esta descoberta funda- w j j t i i i c l c i I ) ( i t i i l o c é l e b r e , "as formas e as m e -


m e n t a l e s t á ligada ao n o m e de S i g m u n d F r e u d ( 1 8 5 6 - Swt ild l l l i i t l o " — , que a ú n i c a v i r t u d e da i m a -
1939).2S O s estudos c l í n i c o s de F r e u d e a r e p e t i ç ã o das •ilti KIIIUINIIII na s u b l i m a ç ã o de u m recalcamento
e x p e r i ê n c i a s t e r a p ê u t i c a s — o famoso " d i v ã " — com- |Hii'. n |)sic|uismo n o r m a l c o n t i n h a u m a f u n -
p r o v a r a m o papel decisivo das imagens c o m o mensagens 'I (• p o é t i c a (poiesis: " c r i a ç ã o " ) .
que afloram d o f u n d o d o inconsciente d o psiquismo (t iM j i n d i iiiiis deixar de m e n c i o n a r o papel d o p s i -
recalcado para o consciente. Q u a l q u e r m a n i f e s t a ç ã o da IHM Mili.ii ('.iil tiustav J u n g ( 1 8 7 5 - 1 9 6 1 ) 2 6 , o q u a l
' i m a g e m representa u m a e s p é c i e de i n t e r m e d i á r i o entre M i w l l ' " " " " P'i|)<.'l da i m a g e m e f o i o p r i m e i r o a p l u -
u m inconsciente n ã o manifesto e u m a t o m a d a de cons- ' I l i l i l i l i i i o i n clareza. Para Jung, a i m a g e m , p o r
c i ê n c i a ativa. D a í ela possuir o status de u m s í m b o l o e i ^|Frt|irlA l o n s t r u ç ã o , é u m m o d e l o da autocons-
c o n s t i t u i r o m o d e l o de u m pensamento i n d i r e t o n o qual t i ( t t i i " I n d i v i d u a ç ã o " ) da psique. Os doentes c o m
u m significante ativo r e m e t e a u m significado obscuro. i i i !•, de ( u r a t ê m sonhos e s p o n t â n e o s o u dese-
E m t e r m o s m é d i c o s , este s í m b o l o significa u m " s i n t o - Ii 1 . <|u,idrangulados c o m o aqueles usados nas
m a " . Por conseguinte, a i m a g e m p e r d e sua desvaloriza- HM^Of» <l() b u d i s m o t i b e t a n o (mandalas). Portanto,
ç ã o clássica e deixa de ser u m a simples "louca da casa" i «I^Mini.i l<ii m a , a i m a g e m representa u m " s i n t o m a ao
para transformar-se na chave que d á acesso ao aposento M l I n " (• u m i n d i c a d o r da boa s a ú d e p s í q u i c a . M a s
mais secreto e mais recalcado d o p s i q u i s m o . C o n t u d o , a (HO »»'! Ifli) lcr,>|)cutica e c o m o o p s i q u i s m o n ã o é o r i e n -
i m a g e m l i m i t a - s e a ser o i n d i c a d o r dos v á r i o s e s t á g i o s d o M t l i i | M i i u m a l i b i d o ú n i c a e t o t a h t á r i a , ela abandona a
desenvolvimento da p u l s ã o ú n i c a e fundamental (a " l i b i - l l l l l i I t l r t d r obsessiva e se pluraliza. O p s i q u i s m o d i v i d e -
d o " ) o n d e a c o n c r e t i z a ç ã o n o r m a l d o desejo encontra-se H pm, |iil<i n u M i o s , duas s é r i e s de impulsos: aqueles que
r e p r i m i d a p o r u m t r a u m a t i s m o afetivo. m ni\yh\.\u\a parte mais ativa, mais conquistadora,
Muitos discípulos de Freud esforçaram-se para > | l l l l i u l n ( I animus mostra-se frequentemente sob os t r a -
m o s t r a r que, p o r u m lado, o p s i q u i s m o h u m a n o n ã o era dii j M . u u l c i m a g e m a r q u é t i p a ( d o t i p o arcaico, p r i -
passível de u m a ú n i c a l i b i d o ( o pansexualismo) e, p o r M l l l l v t i r p r i m o r d i a l ) d o h e r ó i que d e r r o t a o m o n s t r o e,
(Hlf ( t u d o lado, aqueles elaborados na parte mais passi-
25 S. Freud, ver Bibliografia. N . Dracoulidès, UAnalyse de l'artiste
et de son oeuvre CAnálise do artista e sua obraj, Mont Blanc, Ge-
nebra, 1952. "'I I , |iIIiK, ver Bibliografia.

36 37
o imaginário Al f/ííif/u.v do imaginário

va, mais f e m i n i n a e mais t o l e r a n t e , a anima, a qual surjM- } 1% 1* i i i l i H | , , . I I liiiu o s l o i a m c o n f i r m a d o s p e l o m é t o d o


m u i t a s vezes sob a figura da m ã e o u , ainda, da Virgem,., . I , i l I U \ I r u t f s "de p r o j e ç ã o " , nos quais u m sti-
Por conseguinte, a i m a g e m passou de u m simples pa|)cl > iiiii.i II 1,1 i n f e s t a ç ã o e s p o n t â n e a dos c o n -

de s i n t o m a ao de agente t e r a p ê u t i c o , e t o d a u m a escol.i I •| M i i M , l.iiciiics. o teste mais conhecido é o


de pesquisadores, os estudiosos d o " s o n h o a c o r d a d o " , ' ' I ' l l r l i , ( i . i ( l o pelo psiquiatra s u í ç o Hermann
t e n t a r á guiar os sonhos de u m paciente para que est<' l i , m i I ' ' , ' 1 . ( ) sujeito recebe dez pranchas c o m
l i b e r e , p o r m e i o de u m a s e c r e ç ã o , p o r assim dizer, as illihrt d e l i i i l . i c m cada u m a (selecionadas, é cla-
imagens-anticorpos que c o n t r a b a l a n ç a r ã o o u d e s t r u i r ã o |i|)j.Miiiillv,is, sendo algumas coloridas. D e p e n -
as imagens n e u r ó t i c a s obsessivas. I ' ' • l l i . i lie c o r o u f o r m a , d o c o n j u n t o o u dos

O s seguidores de J u n g a p e r f e i ç o a r a m ainda mais o i< , " |ii()lissional classificará o sujeito n u m

p l u r a l i s m o p s í q u i c o d o mestre de Z u r i q u e . N ã o s ó h,i t I i p . i ' , p.sicológicos.


duas matrizes a r q u e t í p i c a s p r o d u t o r a s de imagens e que ^1 I i • I r ( c s l e famoso, v á r i o s o u t r o s "testes de
se o r g a n i z a m e m dois esquemas m í t i c o s , animus e anima, • • h i i i i . i i i i ,scr usados para p r o v o c a r a s s o c i a ç õ e s
mas que se p l u r a l i z a m n u m v e r d a d e i r o "politeísmo" Mr liii.iiicii.s. Tanto p o d e ser a c o n s t r u ç ã o de u m a
p s i c o l ó g i c o : a anima, p o r e x e m p l o , p o d e ser J u n o , Diana I" . M i n i i n i jogo de c o n s t r u ç ã o p r o n t o , o u o dese-
o u V é n u s . . . O p s i q u i s m o n ã o se l i m i t a a ser " t i g r a d o " luiliii á r v o r e , casa o u paisagem. Neste florilégio
p o r dois c o n j u n t o s s i m b ó l i c o s opostos, mas é t a m b é m ^Kli' i\r lestes de p r o j e ç ã o devemos ainda assina-
mosqueado p o r u m a i n f i n i d a d e de n u a n ç a s que r e m e - lo li.itar de u m dos florões da Escola de
t e m ao p a n t e ã o das r e l i g i õ e s p o l i t e í s t a s e das quais as lilc, o " i c s l e a r q u é t i p o dos nove e l e m e n t o s " 2 9 d o
astrologias m o d e r n a s m a n t i v e r a m alguns t r a ç o s . 2 8 p ^ l n ^ M i Yves I J u r a n d , que consiste e m e n u n c i a r nove
I ^ I t i I i | i i c c o r r e s p o n d e m a imagens ( u m a queda, u m
i ) H ( i i ' l i o , .i!'u,i, u m m o n s t r o que devora...) e p e d i r ao
27 R. Desoille, Le Rêve éveillé en psychothérapie (O sonho acordado
na psicoterapia), PUF, 1945. i | i i r , .1 |)<irtir destas iscas s e m â n t i c a s , faça u m de-
28 J. Hillman, Le Polythêisme de l'âme (O politeísmo da almaj, Mer- I f l l l i i i l i M i - s r g u i d o de u m a narrativa. Este teste n ã o
cure de France, Paris, 1982; G. Durand, L'Âme tigrée, les pluriels de
psyché (A alma tigrada e os plurais da psiqueA Denoèl, 1 9 8 1 ; P. IfWiiii'. t o i í . s i i l u i u m d i a g n ó s t i c o p s i q u i á t r i c o excelente
Solié, La Femme essentielle, mythanalyse de la grande mère et de
ses fíls amants (A mulher essencial, mitoanálise da grande mãe e
seus filhos amantes), Seghers, 1948. ver bibliografia.

38 39
o imaginário Ai ciências do imaginário

como confirma os resultados teóricos que havíamo H^IK l.is dt- I'avl()v com cães) — assim como
criado pessoalmente para as "estruturas" do imaginário; '.Inilidljí .IS e praticamente ilimitadas exis-
todo imaginário humano articula-se por meio de estru- Uoino \.//i/(7iv adulto, especialmente a ligação
turas plurais e irredutíveis, limitadas a três classes cjiic tltm Hlslcmas representativos — o visual e o
gravitam ao redor dos processos matriciais do "separar" I, MMMII» f s i r último muito pobre nos outros
(heróico), " i n c l u i r " (místico) e "dramatizar" (dissenii- i''ltlrii (|,-(". lãbary).
nador), ou pela distribuição das imagens de uma narra- • MUIIÍIÍTO não-humano — répteis e peixes ajor-
tiva ao longo do tempo. .(((iMi/iM provoca uma reação direta: a agressivi-
I I H I h i i iidilo, a emotividade no cão etc. No ho-
2. As confirmações anatomofisiológicas e etológicas MMi Iodas as informações são controladas pelo
I. ( I r i r b r o " (ou "cérebro noemático") (P Chau-
O estudo anatomofisiológico do sistema nervoso I),'" f l . i s p.issam a ser indiretas. Todo pensamento
humano, em particular do encéfalo, confirmou e espe- MM r imia /c-presentação, isto é, passa por articula-
cificou algumas observações clínicas dos psicólogos. Por « I I M I K I I I Í as. Ao contrário do que afirmou um psi- \
um lado, o estudo demonstrou a singularidade anatómi- liliii I fsteve durante algum tempo na moda, no
ca do "cérebro humano volumoso", segundo o termo , I M M i n hild l i á uma solução de continuidade entre o
usado H . Laborit. Podemos afirmar tratar-se aqui de um l o " (• o "simbólico". Por conseqiiência, o ima-^^
"volume" ao "quadrado". Ele capitaliza sob o "cérebro rln t o i í s i i t u i o conector obrigatório pelo qual f o r - y
pré-fi-ontal" (ou "terceiro cérebro") os dois outros cé- M Dm i | M , i l i | u t T representação humana.
rebros: o palencéfalo (centro da agressividade "repti- |íin Kc^iindo lugar, e embora hoje sejamos extrema-
liana") e o mesencéfalo (centro da emotividade "mamí- D iIiIlIi
U | i i u d c n U ' s quanto às "localizações cerebrais" tão
fera"). Este "terceiro c é r e b r o " ocupa dois terços da | - | | | | i lida', pelo filósofo Henri Bergson e prefiramos con-
massa cerebral e controla todas as informações filtradas I I I Í P I Í I I as iiilluências do meio exterior sobre as especiali-
pelas outras esferas do sistema nervoso por meio de Mcuioccrebrais (a emergência "epigenética", J.-C.
suas ligações neurológicas (as fibras de mielina). A r i -
queza' das articulações permite a ligação simbólica entre
I I ii MM l i . i i d , Précis de bioiogie tiumaine (Enunciado da biologia
dois objetos diferentes — fato comum a muitos animais
liiiliiiiiial. I'aiis, 1952. •

40 41
o imaginário A* ilfncidx do imaginário

Tabary), n e m p o r isso os trabalhos de R. S p e r r y ( P r ê n i i d I | . H iiiilx' l o d o s os o u t r o s reflexos)^' nas p r i -


N o b e l de M e d i c i n a , 1982) e E. T. R o l l i m p e d e m que dis- I (iliiK ilit Nt''(iilo 19, a reflexologia da Escola de
tingamos as zonas cerebrais mais favoráveis para esl.is I . |M I i i i K i u ,1 c i r c u n s c r i ç ã o das matrizes o r i g i -
a r t i c u l a ç õ e s s i m b ó l i c a s que, a p a r t i r de 1959, denomin.i- I st i ã o c o n s t r u í d o s progressivamen-
m o s " d i u r n a s " e "noturnas". Os trabalhos de Sperry, It* I oiijiiMtos s i m b ó l i c o s . W Betcherev e sua
ratificados pelo neurologista francês Paul Chauchard, .iijiMiv.ir.iin dois reflexos d o m i n a n t e s n o r e -
situam estas duas a r t i c u l a ç õ e s nos h e m i s f é r i o s cerebrais I" o |)i u n e i r o , da " p o s i ç ã o " , privilegia a ver-
" d i r e i t o " e "esquerdo", reciprocamente. O esquerdo, . ,( liori/.ontalidade. Q u a l q u e r p e r t u r b a ç ã o da
"mais privilegiado p o r nossas culturas e pedagogias oci- (lint e m p u r r ã o b r u t a l , u m a queda...) p r o v o c a
dentais" (E Chauchard) seria a sede (a famosa " c i r c u n v o - H"t(t " i l o m j n a n t e " de postura. O segundo e n ã o
l u ç ã o frontal esquerda" que Broca j á descobrira n o sécu- liii|Miit.iMti' é o da " n u t r i ç ã o " , que se manifesta
l o 19) d o pensamento verbalizado, da c o n s c i ê n c i a pensa-
da e d o aspecto s i n t á t i c o da escrita, enquanto o d i r e i t o , o
r • •'. IIc s u c ç ã o labial e u m a o r i e n t a ç ã o adequada
. I 111 .uni)os os casos qualquer r e a ç ã o estranha
" c é r e b r o m u d o " , seria o dos pensamentos e das lingua- IN • • i l l i i i i i l o m i n a n t e encontra-se m u i t a s vezes i n i b i d a
gens n ã o - l ó g i c a s (musical, i c ô n i c a . . . ) , das r e p r e s e n t a ç õ e s t ^ , j t r l i i Miruos, retardada.
carregadas de emotividade e d o processo c o r p o r a l . É ver- l l i M i (< i i c i r a d o m i n a n t e , mas que s ó f o i estudada
dade que estes "dois c é r e b r o s " ligam-se p o r "corpos MH rtiiliii.il . i t l i i l t o , mais precisamente na r ã m a c h o , é a
calosos" c o n f o r m e c o n f i r m a r a m as e x p e r i ê n c i a s de Roll "lIltMiliiiuilf copulativa". A p a r t i r de e n t ã o , acostuma-
c o m macacos. Q u a l q u e r que seja a r e l a ç ã o de indepen- ^ < l l i i i i rt observar u m a d o m i n a n t e m u i t o poderosa na
d ê n c i a o u hierarquia entre os dois campos da simboliza- M l l i l t i l . i vil.il da p u l s ã o sexual. Os "esquemas p r o p u l s o -
ç ã o , a "alma [ p e r m a n e c e r á ] tigrada" (segundo o t í t u l o de i K t it>. .!< .isciiamento s ã o processos inatos [ . . . ] que d e -
u m dos meus livros, inspirado n u m a m e t á f o r a a V i c t o r |«^lttlrin d o a m a d u r e c i m e n t o das c o n e x õ e s nervosas, a t é
H u g o ) . E m b o r a certamente n ã o indefinidas, as línguas N i l l i i l . i l n i l e s , na e s t r u t u r a inata d o o r g a n i s m o " . Es-
m ú l t i p l a s da s i m b o l i z a ç ã o s ã o suficientemente pluralistas m i M i t i dl.uilc d ç t r ê s grandes s é r i e s de "gestos d o m i n a n -
para p r o p o r c i o n a r u m a classificação dos "processos" de
funcionamento d o s i m b o l i s m o .
í ^ K i i M i l o o s trabalhos de W. Betcherev e J. M . Oufland, cf. C. D u -
A o e x p o r o conceito de "gesto" o u " r e f l e x o d o m i - f«Mil, MlMld^rafla.

42 43
o imaginário dl ilcnciíis do imaginário

tes" ( p o s t u r a l , digestivo, c o p u l a t i v o ) , nas quais a m a i o i i iiliiíH d.i .ibcrtura a u r i c u l a r d o lagarto verde


dos p s i c o f i s i ó l o g o s e p s i c ó l o g o s , p a r t i d á r i o s de u m a orl | I M i v t M , n . i .1 .it;rcssividade de u m o u t r o m a c h o ,
g e m c e n t r a l e exclusiva d o f e n ó m e n o d a d o m i n â n c i a <i l i l l « l i M n i M i s i t . i i l o (|uando p i n t a r a m propositada-
de u m a t e o r i a p e r i f é r i c a ( o n d e o c o r p o i n t e i r o partic i|» IIMirt d i K h . i s iii.inchas n u m a f ê m e a , p r o v o c a n d o a
na c o n s t r u ç ã o d o f e n ó m e n o ) , observaram os processt HtUilt I I .11 l u ) e m vez de u m a a t i t u d e q u e se-
m a t r i c i a i s das grandes categorias das r e - p r e s e n t a ç õ e s . it l i i n i i i i i c , M i i i i i o mais galante. O m e s m o f e n ô m e -
>f D e v e m o s ainda acrescentar aos resultados dest <t I' • ' ^ . " ' l i ' n o carapau m a c h o , desta vez c o m a
o b s e r v a ç õ e s que c o n f i r m a m de f o r m a e x t r e m a o im|)c H » ' l l i . t , o < | i i c p r o v o c o u u m ataque de c ó l e r a h e -

rialismo da r e - p r e s e n t a ç ã o , portanto da imagem e d , | i i i i ' . 11 ,ii.iv,i-.se de u m a bola de c e l u l ó i d e dez vezes


e x i s t ê n c i a d e esquemas i m a g i n á r i o s d i s t i n t o s n o hom i l i i i | i i r e l e . P o r t a n t o , se n o m u n d o das v é r t e b r a s '

sapiens, as o b s e r v a ç õ e s dos e t ó l o g o s (especialistas que sfl IV» iiao l i . i " a r t i c u l a ç õ e s s i m b ó l i c a s " complexas,
interessam pelos usos, costumes e c o m p o r t a m e n t o s ) , I l i i n i o s , " l i g a ç õ e s s i m b ó l i c a s " inatas e r u d i m e n -
q u e c o n s t a t a r a m a e x i s t ê n c i a de grandes imagens pri« t|lir IMÍ 111,1111 a base de u m universo i m a g i n á r i o
m o r d i a i s (Urbildêr), que s ã o as diretrizes dos gestos e dai ii < l o s c o m p o r t a m e n t o s vitais da e s p é c i e .
-^atitudes e s p e c í f i c a s n o s c o m p o r t a m e n t o s d o s animais, H m , (ii-vcMTios levar e m c o n s i d e r a ç ã o u m f e n ô -
O s trabalhos d e K. Lorenz^^^ N . T i n b e r g e n e K. von tjtic liistilica a m p l a m e n t e as afirmativas de u m a
Friesch sobre estas imagens diretrizes que i m p l i c a m um <'|il^;c'iu''tica da r e p r e s e n t a ç ã o estudada p o r t o d o s
" m e c a n i s m o i n a t o d e desencadeamento" m u i t o próxi* hillsiologistas: a f o r m a ç ã o d o "grande c é r e b r o "
m o aos a r q u é t i p o s j u n g u i a n o s e aos "esquemas a r q u e t í - Kiiiiio <• m u i t o lenta (neotenia). Se a ligação s i m b ó l i c a
p i c o s " q u e n ó s h a v í a m o s assinalado ( 1 9 5 9 ) s e r i a m co- Mti.ii. ,1 | M i i i i - (los d e z o i t o meses, a a r t i c u l a ç ã o s i m b ó H -
roados p o r u m P r é m i o N o b e l ( 1 9 7 3 ) . N o s c o n h e c i d í s - M 1. i i i c so manifesta p o r volta dos q u a t r o o u c i n c o
simos estudos sobre o c o m p o r t a m e n t o dos gansos selva- it ^ l " i m a ç ã o a n a t ó m i c a d o c é r e b r o h u m a n o se e n -
gens, d o lagarto verde e d o p e i x i n h o carapau, eles des- M.M.i | " M v o l t a dos sete anos, e as r e a ç õ e s e n c e f a l o g r á f i -
c o b r i r a m as imagens stimuli desencadeadoras d o s pode- 141 w I I I >i i i i . i i i / . a m aos vinte anos... " O h o m e m é o ú n i c o
rosos reflexos d o m i n a n t e s . P o r e x e m p l o , u m a pequena m loiíi iiiii.i m a t u r a ç ã o t ã o lenta que p e r m i t e ao m e i o ,
i l | H M l.ilmente ao m e i o social, desempenhar u m grande
32 K. L o r e n z , Le cornportement animal et humain ( O comportamento
animal e humano), Seuil, 1 9 7 6 .
l"|" I i p r e n d i z a d o c e r e b r a l " ( P C h a u c h a r d , op. cit).

44 45
o imaginário 1» ilíhuliis Jo imaginário

A consequência desta neotenia lenta é dupla: não apcii.i» l.t ' . u | M M sii o l i i r a l . Ambos se inserem sub-
requer a educação dos "sistemas" da simbolização como ntti h i i iiiiln inelutável do progresso providen-
faz com que esta educação, dependendo das cultunis P i> 111 | i i i i | i i ) s i ( ) pelo abade Joachim de Flore^^^
até dos momentos culturais de uma mesma cultura, M |,i ' I ' I .i( n u l o fundador do pensamento mo-
muito variável. Isto foi apontado pela "escola culturali •t ti pio^Mvsso inelutável da humanidade e m

ta" americana, obrigando as ciências sociais a voltarem |.... t«" ((inNcciilivas da Revelação, a saber: p r i -
se para outros lados além de sua própria área cultural. 1 • 1" t'(»l, ilcpois a do Filho e, por último, a do Es-
será ao pluralismo de u m imaginário bem fundamenl.i • •, l u t o a época da paz universal por vir.
do pela psicologia e anatomofisiologia que reagirá um.i I i i i i . i | M i Ilda, situar o poder do imaginário —
sociologia do longínquo, do "selvagem". I • «•'tiM^flo .sini!)ólica — na base do pensamento
' ijMiilii ,1 recusar, num único movimento, os

3 . As sociologias do selvagem e do comum " . 1 Ir u m a consciência" cujos objetivos seriam

É
ii .iiMH Irtnl.iN ([iianto as perspectivas muito curtas e

H ^ I M rt^j^ionais de u m historicismo fruto do de-


Antes de mais nada, qualquer teoria do imaginário
I p i l l l i ) «"in mão única da Europa moderna.
deve esboçar rapidamente o eurocentrismo que acalen-
A | i i i i l l t desta nova esfera de influências científicas
tou o nascimento da sociologia e da história. O século
||^HMi|<iinliaicm()s a abertura da história à pré-história, o
19 acompanhou o desabrochar do positivismo paralela-
llhi lilsloriador francês denominou de "a longa
mente à sociologia unidirecional de Auguste Comte e ao
•Itir^t Sn", V veremos a sociologia transvazar seu acon-
historicismo unidimensional de Karl Marx. Contudo,
I' IM I (^() parisiense e escapar para o vasto campo
como aqui nosso objetivo não consiste em detalhar esta
l i i n . r , exóticas. Depois da confirmação do apare-
apresentação, nós nos limitaremos a expor a corrente
MiM ( i t ' i da e s p é c i e homo na África há dois milhões de
que foi " a l é m " dos pressupostos positivistas e materia-
iMim, ,1 p i e liistória mostrou a aptidão do homem para
aV^ listas. Basta acrescentar que para Comte e Marx, seus
Uloli iti K l ranientas e que — graças à descoberta das
pais fundadores, o imaginário e seus trabalhos situam-se
bem " à margem" da civilização tanto na idade "teológi- ' I I I i l i ' l u h a c , La Postérité spirituelle de Joachim de Flore
1^ |H)H('ii(l.i(lo espiritual d e Joachim de Flore), 2 vols., Lethielíeux,
ca" do primitivismo humano quanto na superfície da
l«l*N l'IM().

46 47
o imaginário iléiít liis do imaginário

caixas cranianas e sua anatomia — as zonas cerebrais l l l i i i n il. I inologia, Paris, 1932). Enquanto os
Broca e Wernicke (temporal-parietal esquerdo) loi.ill |í»>«i|til>i.iilur«'s de campo constatarão a inexis-
zam-se no grande cérebro donde, por conseqiiênci.i, H MiMii illli iciii^.i (|uanto à natureza d o " p r ó x i m o
homo erectus ser dotado da fala. Além disso, as decoi.i ', l4'vy Uriilil atribui aos "primitivos" u m a
ções dos sítios funerários indicam sua capacidade i h " l i i l r i i o i " e "pré-lógica" que os diferencia
acompanhar a morte com um conjunto de signos i i d i i h n h i . i i i c o e civilizado".^5
objetos rituais. Por conseguinte, o cérebro do Im Hiitiiic ,i|K)s a exorcização da "inferiorida-
mem, um ser marcadamente diferente das demais cii.i c especialmente dos processos de
turas vivas, torna-o um homo symbohcus desde suas o i i •.iniiliiude e homeologia (que permitem à
gens mais remotas. I. i(iii|p.ii uMi lugar legítimo, de "terceiro dado",
Estes achados numa vizinhança fraterna dos anu. 11(11 i l f "Kinfusão"), a ciência do homem social
trais do homo sapiens moderno perseguirão literalmtiiu I ,IIM 1(11,11 Iodas as declinações (as "derivações")
toda a nova sociologia causando a explosão do seu euKx i i " imaginário. Muito significativa, e já há
centrismo natal. O paradoxo desta descolonização ili 1 l i i c | i i ( I l l a anos, é a mudança de valor das ter-
telectual coincide com a colonização, pelas potência '1(1», ( ) s Kinceitos pejorativos "pré-lógico", " p r i -
europeias, dos povos que consideram "inferiores". Alt.i V "pfn.sanicnto mítico" v ã o sendo aos poucos
mente significativo destas mudanças e descobertas é ( l(m |)<ir "arquétipo", "a outra lógica", "partici-
intervalo m í n i m o — apenas vinte anos e às vezes n.i( Vli lòilos estes "ancestrais", o u melhor, estas
mais que dois ou três anos — que separa a obra (1( IIIlilas à distância pelas ciências sociais clássicas,
grande etnólogo e teórico Lucien Lévy-Briihl, autor (l( gl.i Ir.uicesa em particular, readquirem sua dig-
Fonctions mentales dans les sociétés injérieures [As funçõc nni.s direitos. Durante muito tempo seu signifi-
mentais nas sociedades inferiores] (Alcan, Paris, 1910) (» de "barbárie" c o m conotações de infantilis-
daquela do grande etnólogo e pesquisador de cam|5i Id.ule, grosseria e incultura, opondo-se radical-
Mareei Griaule {Masques dogons [As máscaras dos Do- rto ili- "livilizada". Os últimos cinqiienta anos i n -
Irtiii |>(ir completo esta relação. Claude Lévi-Strauss

3" Y. C o p p e n s , Le Singe, l'Afrique et l'homme ( O m a c a c o , a África o |i I t . r i i i l r , ver B i b l i o g r a f i a , e Sociologie et psychanalyse (Sociolo-


o h o m e m ) , Fayard, 1983. « j i D l i ,iM,llise), P,U.F., 1 9 4 9 - 1 9 5 0 .

48 49
o imaginário As ciências do imaginário
afirma, no seu famoso livro O pensamento selvagem (1962), E será nesta brecha enorme aberta no flanco da
que, em oposição a qualquer eurocentrismo, "os ho- Nociologia positivista que muitas pesquisas de campo,
mens sempre souberam pensar muito bem" e que em i((t'- iiitão negligenciadas, acabariamprecipitando-se.
cada homem subsiste um patrimônio "selvagem" infini- I:sta corrente oriunda da sociologia do "conheci-
tamente respeitável e precioso. A partir de então, este mento pelo imaginário" do sociólogo da cidade de São
título e esta posiçãofilosóficafizeramescola. ^6 l'.iulo teve duas ramificações: uma retomaria imediata-
Esta reviravolta de valores permitiria fundar uma
mente os estudos americanos de Bastide, impregnando
"sociologia do imaginário" deliberada e complementar,
de forma exógena, os imperativos do imaginário sendo (<)(la a etnologia contemporânea, e a outra se voltaria
evidenciados pela pesquisa psicológica e etológica. Foi o por inteiro, por assim dizer, para os domínios deixados
que percebeu com lucidez o grande sociólogo francês |)()r conta da sociologia.
Roger Bastide (1898-1974), que passou muitos anos no A primeira ramificação inserirá as reservas do ima-
meio da sociedade policultural brasileira; a partir do final ginário — os símbolos, os mitos e os rituais das socie-
da década de 50, ele introduziu com veemência nas terrae dades distantes — no centro dos estudos. Aqui, não
incognitae a pesquisa sociológica "do pensamento obscuro podemos deixar de abrir um grande espaço no rico jazi-
e confuso" do sonho,^'' dos fantasmas das doenças men- go dos americanistas para os trabalhos de Roger Caillois
tais, dos transes religiosos, do símbolo, dos mitos e das e Jacques Soustelle, Alfred Métraux e Jean Cazeneuve.
utopias. Além de inserir este setor importante do imagi- Estes, porém, devem ser considerados mais como gene-
nário na "sociologia do conhecimento", construindo ralistas do que especialistas. Aliás, seus trabalhos per-
desse modo uma ponte entre a sociologia e as psicologias maneceram durante muito tempo em segredo universi-
das profundidades, sua vasta erudição e grande curiosi- tário, um sinal da resistência que a Universidade france-
dade permitiram-lhe criar passarelas entre a sociologia sa, teimosamente, ancorada no seu positivismo natal,
do símbolo e do sonho e as produções literárias. insistia em manter. Era inevitável que Caillois, que ainda
não era diretor da UNESCO nem académico, Michel
36 R. Bastide, Le Sacré sauvage (O sagrado selvagem), Payot, 1975;
M. Hulin, La Mystique sauvage {A mística selvagem), P.U.F., 1993.
Leiris, Alexandre Kojève e Georges Bataille, depois de
37 R. Bastide, "La pensée obscure et confuse" {O pensamento obs- um longo "flerte" com o Surrealismo fundador do
curo e confuso), in Le Monde non chrétien (O mundo não-cristão),
nos 75/76, Paris, 1965. CoUège de Sociologie [Escola de Sociologia] (1937) e vol-

50 51
As ciências do imaginário
o imaginário

tados para "a pesquisa dos Fenómenos humanos das Ainda na esteira de Griaule, é preciso lembrar a
grandes profundezas" (sic) fossem considerados suspei- expansão da nova sociologia entre os africanistas e espe-
tos das piores intenções subversivas devido à ortodoxia cialistas da Oceania e a grande figura de Maurice Lec-
da Sorbonne — onde reinava Leon Brunschvicg — e nhardt ( 1 8 7 8 - 1 9 5 4 ) a quem devemos um dos livros
"suas particularidades de caráter maníaco e puramente mais importantes sobre o imaginário dos melanésios: Do
ritualísticas". O sagrado, o lúdico, o mito, a "incerteza" Kamo, Ia personne et le mythe dans le monde mélanésien [Do
dos sonhos, o fantástico: tantas regiões do Imaginário Kamo, a pessoa e o mito no mundo melanésio] (Paris,
exploradas — poderíamos até di/er "criadas" — por 1947). Dentre os discípulos de Griaule, além de D.
Caillois, o autor deste pequeno livro liilgurante de 180 Zahan e Viviana Pâques, devemos citar o livro de Jean
páginas, Le Mythe et /'/lomme^^ [ O mito e o homem], u m Servier, especialista em tribos berberes. Servier também
dos maiores arquivos comparativos imagináveis e onde se baseia no "Ensaio geral de etnologia", de 1964, cujo
se cotejam desordenadamente a psicofisiologia, a psi- título LHomme et Vinvisible [O homem e o invisível] pode
copatologia, a etno-sociologia, a estética ou... a ento- parecer iconoclasta. Na verdade, os capítulos consti-
mologia! Este combate do imaginário, dos mitos e do tuem um florilégio de grandes imagens que reconduzem
lúdico contra o "particularismo maníaco", este combate ao símbolo absoluto, como, por exemplo, a descrição
de um "saber em diagonal" contra as cspeciali/.a(jões ce- dos rituais funerários em "Os itinerários para o invisí-
gas encontraria novamente um eco na epistemologia do vel" e dos rituais iniciáticos, os passos e os graus evoluti-
"transversal" de Edgar M o r i n e no vigoroso e luxuriante vos dos rituais xamanísticos etc. em "As portas de san-
"alegre saber" do africanista Louis-Vincent Thomas^^^ gue". Trata-se de u m vasto conjunto imaginário de todas
discípulo de Bastide, especialista do imaginário da mor- as forças e provas da etnologia que se opõe às abrevia-
te e nosso mui saudoso amigo. ções das constatações fortuitas da paleontologia. Neste
ensaio demente, de uma ironia mordaz e um florilégio
38 R. C a i l l o i s , v e r B i b l i o g r a f i a , e Roger Caillois et /es .ipproches de
1'imaginaire (Reger C a i l l o i s e as a b o r d a g e n s d o i m a g i n . i r i o ) , C a h i e r s de exemplos irrefutáveis, as reivindicações de um evolu-
de rimaginaire n ° 8 , L'Harmattan, 1992. cionismo são admitidas como dogma. A orientação de
39 L.V. T h o m a s , Fantasmes au quotidien (As f a n t a s m a g o r i a s d o c o -
t i d i a n o ) , M é r i d i e n s , 1 9 8 4 ; G . A u c l a i r , Le Mana quotidien, structures todos os simbolizadores rituais e míticos para o invisível
et fonctions du fait divers ( O m a n a c o t i d i a n o , as e s t r u t u r a s e f u n ç õ e s
arrebata a espécie humana do determinismo animal e
das c r ó n i c a s policiais), A n t h r o p o s , 1 9 7 0 .

52 53
^ 5 ciências do imaginário
o imaginário

vulgar. Aqui percebemos como a obra do etnólogo do Veneza...), do "aventureiro", do "jogador", do "retrato"
Invisível conduz ao campo das revalorizações modernas etc. A posteridade dessa corrente reinstalará — e devol-
das "ciências religiosas". Antes, todavia, examinaremos verá — , no coração do imaginário, uma "forma" aos
a outra grande corrente do pensamento que inaugurará campos de pesquisa especialmente ricos, mas bastante
u m domínio para uma "sociologia do imaginário". abandonados, dos sociólogos da Escola de Grenoble: os
O primeiro, como acabamos de ver, desdobrava-se trabalhos de Jacques Bril, cuja tese, Sjmbolisme et Qvili-
na prospeção do "longínquo" e na reabilitação do "sel- sation. Essai sur Vefficacité anthropologique de Vimaginaire
vagem" e do "primordial". O segundo, ao contrário, [Simbolismo e civilização. Ensaio sobre a eficácia antro-
embora com u m resultado idêntico, fecha-se sobre a pológica do imaginário] (Champion, Paris, 1977), abre
prospecção do mais próximo e do mais "comum", rea- toda uma série de trabalhos referentes aos objetos an-
bilitando o "cotidiano" dos "desfavorecidos". Seus pro- tropológicos como "a tela e o fio", os instrumentos m u -
pósitos podem ser comparados ao reaJy-made (uma obra sicais etc. e que se posicionam entre a mitoanálise tão
ou u m objeto pronto para consumo) que os surrealistas cara aos pesquisadores de Grenoble e a psicanálise;
elevavam ao nível de obras de arte. Mas, entre os e t n ó - Pierre Sansot, o sociólogo da "mostra" poética do sen-
logos do "longínquo", o imaginário prevalecerá quando sível Formes sensibles de Ia vie sociale [As formas sensíveis
se tratar de tornar disfuncionais e menos banais os ob- da vida social] (PUF, 1986) e, por consequência, do
jetos modestos — como o famoso "porta-garrafas" de imaginário respigado numa vasta colheita transversal,
i Mareei Duchamp — e tão familiares que já não susci- tanto na Poétique de la ville [A poética da cidade] (Klinck-
y tam mais nenhuma imagem. O sociólogo alemão Geor- sieck, 1972) como nas Variations pajsagères [As variações
ges Simme^o, precursor desta sociologia "surrealista", paisagísticas] (1980), com seus trabalhos sobre as lem-
foi quem, no início do século, atraiu a reflexão filosófica branças da "infância" provinciana, o jogo de rugby ou
e a análise sociológica para as futilidades da "moda", do ainda dos "desprovidos"; e Michel Maffesoli'^', funda-
"galanteio", das "grandes cidades" (Roma, Florença, dor simultâneo de uma "estética sociológica" atenta às

M. Maffesoli, La Conquête du présent, pour une sociologie de la


•w) C . S i m m e l , Philosophie de la modernité (A filosofia d a m o d e r n i - vie quotidienne (A c o n q u i s t a d o presente: para u m a s o c i o l o g i a d a
d a d e ) , 2 v o l s . ; textos reunidos e t r a d u z i d o s por J.-L. V i e i l l a r d - B a r o n , v i d a c o t i d i a n a A P.U.F., 1 9 7 9 ; cf. A . Bailly, L'Humanisme em géogra-

Payot, 1 9 9 0 . phie (O h u m a n i s m o n a geografia;, A n t h r o p o s , 1 9 9 0 .

54 55
As ciências do imaginário
o imaginário
menores imagens do cotidiano, ao frívolo, efémero, gurativa"'*4 (P Tacussel), fundamentando-se num "co-
conquistadora do presente e do atual e de u m neobar- nhecimento comum" ( M . Maffesoli) onde sujeito e obje-
roquismo epistemológico ligado, este t a m b é m , ao Au to formam um só no ato do conhecer e no qual o estatu-
creux des apparences [No vazio das aparências] (Pion, to simbólico da imagem constitui o paradigma (o mode-
1990). Para esta corrente sociológica original convergirá lo perfeito, a demonstração satisfatória pelo exemplo).
a sociologia denominada de "as histórias da vida"'*^ na
qual a investigação do sociólogo cede diante do ima- 4. As "Novas Críticas":
ginário recitativo e representante de uma amostragem da mitocrítica à mitoanálise
de u m grupo social. Finalmente, com Cornélius Cas-
toriadis ou Georges Balandier, as razões políticas dos Este horizonte "figurativo" inaugurado pelas recen-
poderes aparentes serão tão racionalizadas que se desta- tes sociologias repercutiria junto com toda uma corren-
carão sobre u m fundo imaginário mais ou menos pas- te literária e artística denominada a "nova crítica irrita-
sional.43 Nas sociologias mais recentes há um esforço da" — o termo pertence a Lévi-Strauss — , tendo por
para um "reencantamento" (Bezauberung) do mundo da única justificativa as obras culturais, as filiações históri-^
pesquisa e seu objeto ("social" e "wdeta/"*), tão desen- cas e as genealogias dos vários letrados. Gaston Bache-'
cantado pelo conceptualismo e as dialéticas rígidas e lard (1884-1962) foi o pioneiro incontestável desta

unidimensionais dos positivistas. E este "reencantamen- "nova crítica" tão ávida de documentos (texto, obra de

t o " passa acima de tudo pelo imaginário, o lugar-co- arte), em particular dos conteúdos imaginários e das

m u m do p r ó x i m o , da proximidade e do longínquo "sel- heranças estéticas. Será ao redor das imagens poéticas e
literárias dos quatro elementos clássicos que, ainda an-
vagem". A partir de agora, a sociologia passará a ser " f i -
tes da 2? Guerra Mundial (A psicanálise do Jogo'^^), Ba-
chelard construirá uma análise literária na qual a imagem
42 F. F e r r a r o t i , Histoires et histoires de vie, la méthode biographique surge para iluminar a própria imagem, criando assim
des sciences sociales (Histórias e histórias d a v i d a , o m é t o d o b i o -
gráfico d a s c i ê n c i a s s o c i a i s ) , K l i n c k s i e c k , 1 9 8 3 .
« C . B a l a n d i e r , Pouvoirs sur scéne ( O s p o d e r e s e m c e n a ) , Balland,
1 9 9 0 ; C. C a s t o r i a d i s , Llnstitution imaginaire de la sociétè (A i n s t i t u i - '•'» P. T a c u s s e l , L'Attraction sociale, le dynamisme de l'imaginaire
dans la société monocéphale (A a t u a ç ã o s o c i a l , o d i n a m i s m o d o
ç ã o imaginária d a s o c i e d a d e ) , S e u i l , 1 9 7 5 .
imaginário na s o c i e d a d e m o n o c é f a l a ) , M é r i d i e n s , 1 9 8 4 .
• O i m p a c t o n o nível d a s o c i e d a d e ; as d i f i c u l d a d e s e c o n ó m i c a s , s o -
« Psychanalyse du feu (A psicanálise d o f o g o ) , C a l l i m a r d , 1 9 3 8 .
ciais o u a m b i e n t a i s , d e natureza setorial o u r e g i o n a l . (N.T.)

56 57
o imaginário As ciências do imaginário
uma espécie de determinismo transversal na história e "irritação" provocada pela crítica historicista, nem por
na biografia. Trata-se de uma elaboração poética ao lon- isso deixaram de recair nos caminhos habituais do posi-
go das famílias das imagens simbólicas e da qual a obra tivismo mascarado pelas supostas "ciências" da literatura
escrita em 1960, La Poétique de la rêverie [A poética do (a gramatologia, a semiótica, a fonologia etc.) onde os
devaneio] seria o testamento. Com freqiiência, esses tra- poderes "poéticos" da imagem se perdem de novo nos
balhos fundadores convergiam com a crítica psicanalítica mistérios de u m sistema que esvazia a pluralidade antro-
da qual Charles Mauron^^, o criador da "psicocrítica", pológica e m prol deste novo "monoteísmo" que é a
foi o representante mais obstinado. Contudo, com Ba- "estrutura" abstrata todo-poderosa. Esta considera-se
chelard e seus discípulos e ao contrário das contestações "órfa de pai e mãe" enquanto, na realidade, insere-se de
psicanalíticas à obra devidas aos incidentes biográficos forma banal numa velha lógica binária obcecada pelo
do seu autor, ocorre uma liberação da imagem realmen- silogismo. O s discípulos de Bachelard, Jean Pierre
te criadora — "poética" — da obra, do seu autor e seu Richard {Littérature et sensation [Literatura e sensação],
tempo. Esta mesma confluência deu-se também — pelo 1954), uma das figuras de popa da "Nova Crítica", e nós
menos com uma certa condescendência para com o for- mesmos (Le Décor mythique de La Chartreuse de Parme [O
malismo — com a Escola de Genebra e foi ilustrada ambiente mítico da Cartuxa de Parma], Corti, 1960)
seguindo a esteira de Mareei Raymond (1897-1984), permanecerãofiéisaos conteúdos imaginários dos traba-
Jean Rousset, Jean Starobinski e o belga Georges Pou- lhos. Mais adiante veremos como esta fidelidade à "ges-
let47 e, porfim,com a convergência com os trabalhos de tação simbólica" (E. Cassirer) permitirá o acesso a uma
Michel Cazenave sobre o mito de Tristão. outra lógica totalmente diferente daquela, binária, do
Todavia, a originalidade de Bachelard e sua posteri- "ou... ou" e com base na "exclusão de um terceiro". N o
dade foi a de nunca terem se sacrificado ao canto das se- entanto, na pessoa de Claude Lévi-Strauss^s, devemos
reias "estruturalistas". Estas, desejando libertar-se da restituir ao estruturalismo o que há de mais fecundo na
sua exploração do mito. De fato, será ele quem apontará
"6 Ch. Mauron, Des Métaphores obsêdantes au mylhe personnel a qualidade essencial do sermo mythicus, isto é, da redun-
íDas metáforas obsessivas a o m i t o p e s s o a i j , C o r t i , 1 9 6 3 .
"•^ J. Rousset, Forme et signification ( F o r m a e s i g n i f i c a d o ) , J. C o r t i ,
1 9 6 2 ; C . P o u l e t , Études sur le temps humain (Estudos s o b r e o t e m p o
h u m a n o ) , R o c h e r , 1 9 5 0 ; J. S t a r o b i n s k i , L'CIil vivant {O o l h o vivo), da C l . Lévi-Strauss, UAnthropologie structurale {A a n t r o p o l o g i a e s t r u -
Gallimard, 1 9 6 1 .
tural), PIon, 1 9 5 8 .

58 59
As ciências do imaginário
o imaginário

dância. Como o mito não é nem u m discurso para xa de ser a propedêutica indispensável para qualquer tra-

demonstrar nem uma narrativa para mostrar, deve ser- tamento do mito. E interessante notar que Victor H u -

vir-se das instâncias de persuasão indicadas pelas varia- go'^^ já observara em Shakespeare este "fato muito estra-
ções simbólicas sobre u m tema. Estes "enxames", "pa- nho" de uma "ação dupla que se repete em menor ao
cotes" e "constelações" de imagens podem ser reagru- longo do drama", e em Hamlet e no Rei Lear, "junto a u m
pados em séries coerentes ou "sincrônicas" — os " m i - drama menor que copia e acompanha o drama principal,
temas" de Lévi-Strauss (a menor unidade semântica ocorre o desenrolar de uma ação que arrasta consigo,
num discurso e que se distingue pela redundância) — como uma lua, uma ação menor, sua semelhante". Sem
além do fio temporal do discurso (diacronia). Foi assim saber, o grande poeta, que Lévi-Strauss iguala a Richard
que o etnólogo dos Nanbikwara* classificou, em tabelas Wagner, seria o ancestral das nossas mitocríticas moder-
divididas em duas partes (diacrônica e sincrônica), os nas que se apoiam nas redundâncias constitutivas das
mitos ameríndios como também examinou à "america- "sincronicidades".
na" os mitos clássicos como o de Édipo ou Parsifal. N o Neste movimento sólido de uma mitocrítica (que
entanto, aprisionado à lógica binária, Lévi-Strauss recu- permanece bachelardiana) assinalemos o departamento
sou-se a perceber que estas ligações transversais à narra- das "línguas e letras" da Escola de Grenoble, mais co-
tiva diacrônica criavam pelo menos uma terceira dimen- nhecida pelo seu antigo nome, "Centro de Pesquisas do
são, u m "terceiro dado". Nem por isso este m é t o d o dei- Imaginário" [Centre de Recberche sur Flmaginaire — C.R.I.].
« Fundado em 1966 por três professores da Universidade
de Grénoble, u m dos quais foi Leon Cellier, o departa-
* NAMBIQUARA — Nambikwára ou Nhambiquara. Nome genérico,
em tupi, de diversos povos cujas línguas tonais são agrupadas numa mento apresentou u m grande n ú m e r o de trabalhos —
mesma família, não incluída em unidades maiores. Vivem, na maio- iniciados dez anos antes com nosso O ambiente mítico da
ria, no oeste de Mato Grosso, na fronteira com Rondônia. Os Nam-
blquaras do Campo vivem nas áreas indígenas Nambikwára e Ti- Cartuxa de Parma, Corti, 1961 — d o s "mitocríticos" so-
racatinga; os principais grupos são Halotesu, Kitaulhu, Wakalitesu e bre autores tão diversos como Júlio Verne (S. Vierne,
Sauentesu. Os Nambiquaras do Norte vivem nas áreas indígenas Pi-
rinéus de Souza, Tubarão-Latundê e Vale do Guaporé; os principais 1972); Shelley (J. Perrin, 1973); Proust (C. Robin,
grupos são Negarote, Mamaindê, Latundê, Sabanê e Manduka. O 1977); Baudelaire (P Mathias, 1977); Blake ( D . Chau-
Nambiquara do Sul ou do Vale vive nas áreas indígenas Vale do
Guaporé e Sararé; os principais grupos são Hahaintesu, Alantesu,
Waikisu, Alanketesu, Wassusu, Sararé, Katitauriu e Nuntatesu. Em
1990, segundo a Funai, eram 885 índios. (N. T.) « V. Hugo, William Shakespeare, Flammarion, 1973.

60
o imaginário As ciências do imaginário
vin, 1981) e t c , e os trabalhos mais recentes de Ph. Wal- Bordeaux III, dirigido por Claude-G. Dubois. Fundado
ter sobre a literatura da época do rei Artur; e de J. Siga- sete anos mais tarde e irmão caçula do Centro de Gre-
nos, autor de uma tese importante sobre o simbolismo noble, o Laboratório edita há mais de vinte anos o
do inseto. Outrossim, há ainda as pesquisas que se en- Boletim de Pesquisas Eidôlon, publica as pesquisas volta-
tremeiam nas "mitoanálises", ultrapassando a obra de das para a "mitocrítica", como ilustra muito b e m o tra-
um único autor, como o mito da infância na literatura balho monumental de Patrice Cambronne sobre as es-
narrativa italiana do século 20 (G. Bosetti); o conjun- truturas do imaginário de Auguste Comte. Devemos
to dos romances afro-negros de língua francesa (A. e ainda acrescentar que os trabalhos de Claude-G. Dubois
R. Chemain, 1973); a mitologia japonesa (A. Rocher, servirão como exemplo para a simultaneidade da aber-
1989); e a literatura anglo-saxã (J. Marigny, 1 9 8 3 ) , tura e ampliação da mitocrítica para a mitoanálise e dos
cujos objetivos confluem para o Laboratório de Pesquisa nossos métodos em colaboração com os da Escola de
sobre o Imaginário Americano [Laboratoire de Recherche Constança,so o berço da "teoria da recepção".
sur I'Imaginaire Américain] dirigido por Viola Sachs de A partir do "longínquo" século 16, tão importante
Paris VIIL Se nós nos permitimos dedicar meia página para nossa civilização ocidental, Claude Dubois pode
ao ,C.R.L de Grenoble é porque ele foi o embrião de dar conta da fragilidade dos historicismos e das explica-
cerca dos quarenta e três centros de Pesquisa sobre o ções históricas que quase não conseguiram libertar-se
Imaginário que, em 1982, se reuniram na Associação de do "mítico" do século de Bodin, Aubigné e Postei. Além
Pesquisa Coordenada [Groupement de Recherche Coor- disso, ele demonstrou que a determinante do "Imagi-
donnée — G.RE.CO.] (um centro de pesquisa que, infe- nário do Renascimento" [LImaginaire de la Rennaissance]
lizmente, já não existe mais) no C.N.R.S. Não se trata P U . E , 1985, foi uma espécie de "meta-história" (uma
aqui de catalogar todos os Centros espalhados pelos cin- história além ou ao lado da cadeia unidimensional dos
co continentes, de Seul a Sidney, de Montreal ao Recife acontecimentos) e que criou u m campo receptivo mui-
ou de Brazzaville a Lublin. N o entanto, como exemplo to tipificado, o do "barroco" e do "maneirismo", o que
das pesquisas da mitocrítica chamamos a atenção para o conduziu a uma leitura sistemática do que chamaremos
Laboratório Pluridisciplinar de Pesquisa do Imaginário mais adiante de "campos semânticos". Os trabalhos do
Literário [Laboratoire Pluridisciphnaire de la Recherche sur
rimaginaire Littéraire — LAPRIL] da Universidade de 50 H . R. Jauss, Pour une esthétique de la réception (Para u m a estética
d a r e c e p ç ã o ) , prefácio d e ). S t a r o b i n s k i , G a i i i m a r d , 1 9 7 8 .

62 63
o imaginário As ciências do imaginário
latinista Joel Thomas, fundador da "Equipe para a pano de fundo, um conjunto mítico relativo à infância.
Pesquisa do Imaginário dos Latinos" [Equipe pour Ia Aurore Frasson, no seu trabalho sobre Italo Calvino, já
recherche sur Vimaginaire des Latins — EPRIL] devem ser pressentia até que ponto a obra de um grande roman-
inseridos nas perspectivas desta mitoanálise formadora cista reforça a história de uma época com um conjunto
de uma história completamente diferente e não eventual. mítico e imaginário. Por outro lado, o já citado sociólo-
No seu trabalho magistral, "As estruturas do Imaginário go Alain Pessin mostrava que, por detrás de toda a his-
na Eneida" \Les Stmctures de Vimaginaire dans rÉneide, Bel- tória do século 19 e seus maiores expoentes — Hugo,
les Lettres, Paris, 198151], Thomas mostra como a con- Michelet, Ballanche, Lamennais, Daumier, Pierre Le-
fluência de uma obra poética e a ação política de Auguste roux, Blanqui ou George Sand — seguia, como o fio
Comte fundamentam e restabelecem o mito cíclico da vermelho de um colar, o mito do Povo.52
era de Saturno e proporcionam à restauração do Im- Em Grenoble, o estudo das "mitologias" do século
pério uma ética da iniciação. 19 — já abordadas por M. Maffesoli e Jean Brun no
Ao voltarmos para o domínio de Grenoble, deve- retorno de Dioniso — foi a especialidade de Françoise
mos ainda assinalar o esforço para reconciliar um novo Bornadel e Jean-Pierre Sironneau, que estudaram jun-
olhar histórico e sociológico com o mito da "mitoanáli- tos e "a contrapelo": enquanto Bornadel examinava as
se". Leon Cellier abriu um caminho ao liberar os gran- esperanças míticas escondidas no século, Sironneau
des "mitos românticos" (1954) com os vários trabalhos dedicava-se aos desastres das mitologias oficiais. Em um
de Ballanche, Soumet, Lamartine etc. Anteriormente, a livro magistral e fenomenal, Philosophie de Valchimie [A
enorme pesquisa de Gilbert Bosetti, condensada num filosofia da alquimia] (RU.R, 1993), subintitulado de
"livrinho" de 360 páginas, mostrava e evidenciava à forma esclarecedora de "Grand-CEuvre et modernité"
exaustão que, apesar da tenacidade das oposições ideo- [A grande obra e a modernidade], a especialista em filo-
lógicas do ''Ventennio nero^\, como num sofia hermética mostra como os pensadores mais sérios
da nossa modernidade e tão "desocupados" — não
5 1 J . T h o m a s (sob a d i r e ç ã o de), Les Imaginaires des Latins ( O s i m a g i -
nários d o s latinos;, P. U n i v . P e r p i g n a n , 1 9 9 2 ; C l . - G . D u b o i s , La Con-
ception de l'histoire de France au XVIf siècle (A c o n c e p ç ã o
história d a França n o século X V I ) , N i z e t , Paris, 1 9 7 7 ; Mots
da
et régies,
52 A . P e s s i n , i e Mythe du Peuple et la société française au X/X? siè-
cle [ O mito d o p o v o e a s o c i e d a d e francesa no século 1 9 ] , P.U.F.,
jeux et delires (Palavras e regras, jogos e delírios), P a r a d i g m e , C a e n ,
1 9 9 2 ; La Revêrie anarchiste {1848-1914) ( O onírico anarquista
1992.
(1848-1914)], Méridiens, 1 9 8 2 . •

64 65
o imaginário As ciências do imaginário

apenas os inovadores de correntes ocultas como Eliade, Em contrapartida, Jean-Pierre Sironneau, na sua
Corbin, Jung e Bachelard, mas também Wagner, Nietzs- tese Sécularisation et religions politiques [A secularização e
che, Artaud, T h . Mann, Caillois, Bousquet, Heidegger as religiões políticas], atém-se aos dois grandes mitos
ou Bonnefoy... — buscaram a inspiração para suas obras que ocuparam oficialmente a Europa e uma parte do
num consenso mítico difuso mas profundo que não é mundo: o nacionalsocialismo de u m lado e, de outro, o
outro senão a velha filosofia "imaginária" da alquimia. "comunismo leninista-stalinista". Causa-nos grande es-
Em todos estes autores que compõem nossa moderni- panto que estes mitos — que consideravam-se expli-
dade ainda que "pós-moderna" há uma intuição "filo- citamente u m " m i t o " , segundo Alfred Rosenberg, ou
sofal" que ultrapassa os conceitualismos filosóficos, u m apoiavam-se numa lógica afetiva e num mito milenar,
"imaginar (uma "transcendência do imaginar", segun- porque não dizer joaquinista, inconfessos mas presentes
do a definição de Corbin) que sustenta as imagens. em Marx — regeram de acordo com suas normas tanto
Segue uma observação sobre os ressurgimentos de anti- o cientificismo alemão ou russo quanto as Igrejas. 54
gos mitos que atualizam a mitoanálise no seio de uma Mas nessas duas séries de trabalhos, o que devemos ter
história obcecada pelo único mito do progresso: que em mente é a própria superposição num mesmo século
estes retornos, estas "dissimilitudes" (Entgleichzigkeit) de duas vigas míticas antagonistas: uma, oficializada pe-
são, como Lévi-Strauss e P Soroldn^^ já haviam obser- los poderes políticos, e a outra, subterrânea e "latente".
vado, a conseqiiência da estreiteza de escolhas possíveis Aquela encontrando conforto nas teorias cientistas e
no âmago de um estoque mítico próprio ao sapiens e pseudocientíficas, esta mascarando os problemas e as
limitado pelas leis da coerência das imagens. Estas inse- angústias da nossa modernidade debaixo de soluções e
rem-se em algumas raras possibilidades (em três, segun- imagens de teorias herméticas antiquíssimas.
do P Sorokin e nós mesmos) definidas pelos regimes
Esta "superposição" será um tema de reflexão quan-
das imagens. As mudanças do imaginário são regidas
do abordarmos a questão da "tópica" sociocultural. (Ver
por um "princípio dos limites" duplo: um "limita" no
página 92.)
tempo a gestação de uma viga mítica e o outro, as esco-
lhas das mudanças míticas.
54 H . D e s r o c h e , Socialisme etsociologie religieuse (O socialismo e a
s o c i o l o g i a r e l i g i o s a ) . C u j a s , 1 9 6 3 ; A . B e s a n ç o n , Les Origines inte-
lectuelles du léninisme (As o r i g e n s i n t e l e c t u a i s d o l e n i n i s m o ) , C a l -
53 P. S o r o k i n , v e r B i b l i o g r a f i a . man-Lévy, 1977.

66 67
As ciências do imaginário
o imaginário

p o s i t i v i s m o — para Bachelard, a h e r d e i r a era a ciência


5. O imaginário da ciência
físico-química, d o u t o r a e m m e d i c i n a e não e m q u í m i c a
Q u a n d o pesquisamos os m i t o s c o n s t i t u t i v o s d o s é -
— , afirmava que, na biologia, a pesquisa e a descoberta
c u l o 19, estes últimos p r o c e d i m e n t o s da mitoanálise,
ocasional d e p e n d i a m d o sistema da i m a g e m na qual es-f
bem como a lenta constituição pluridisciplinar das
tavam inscritas " t a n t o a i m a g e m de u m a substância plási''
" c i ê n c i a s d o i m a g i n á r i o " , levaram-nos a reconsiderar o
tica f u n d a m e n t a l q u a n t o u m a c o m p o s i ç ã o de partes dos
imperialismo ideológico conferido pelo Ocidente à
á t o m o s . . . " estanques e individualizados. O antagonismo
c i ê n c i a c o m o a única dona de u m a verdade iconoclasta e
— que beirava as raias da i n c o m p r e e n s ã o — e n t r e os
o f u n d a m e n t o s u p r e m o dos valores. J á d e m o n s t r a m o s
citologistas (aqueles que p a r t e m d o estudo da célula)
c o m o , mais cedo o u mais tarde, todas as ciências d o
mais o u m e n o s m e c â n i c o s e os histologistas (aqueles
imaginário se e m a n c i p a r a m d o " m o n o t e í s m o " cientista.
que p a r t e m d o c o n j u n t o de u m t e c i d o ) , adeptos d o c o n -
H á m u i t o t e m p o que a ciência o c i d e n t a l d e f r o n t o u - s e
t í n u o , deve-se apenas, ao que parece, à valorização p o s i -
c o m as c o n c e p ç õ e s imaginárias. Para Bachelard sempre
tiva (dos citologistas) o u negativa (dos histologistas)
f o i m u i t o difícil separar seus " d o i s a m o r e s " , a ciência e
dada à i m a g e m de u m a m e m b r a n a celular. Este papel da
as imagens, chegando ao p o n t o de escrever u m l i v r o i n -
i m a g e m c o m o o e m b r i ã o imaginário da criação científi-
t e i r o , La Formation de Vesprit scientifique [ A f o r m a ç ã o d o
ca — c o m o constataram quase t o d o s os sábios desde
espírito científico] ( V r i n , 1 9 4 7 ) , para t e n t a r m o s t r a r
Francis Bacon n o século 17 a Poincaré e m 1908 o u m a -
que a ciência somente se f o r m a v a q u a n d o as imagens
t e m á t i c o J. H a d a m a r d e m 1945 — e c o m o a regra p a r -
e r a m repudiadas. A nosso ver f o i u m trabalho e m vão,
ticularizadora de u m a lógica, u m a estratégia, até de u m
pois as imagens, expulsas pela p o r t a da f r e n t e , r e e n t r a -
m é t o d o de invenção, f o i mais o u m e n o s a p o n t a d o p o r
v a m pela janela para atacar os conceitos científicos mais
M i c h e l Foucault, A b r a h a m Moles^^ e F. H a l l y n . Mas
m o d e r n o s c o m o as ondas, os corpúsculos, as catástro-
G e r a l d Holton^"?, m é d i c o a m e r i c a n o , f o i q u e m m e l h o r
fes, o bootstrap, a t e o r i a dos superstrings... O e s p i s t e m ó l o -
d e t e r m i n o u , c o m u m a seriedade e exaustão t o t a l m e n t e
g o Georges Canguilhem^s, p o r e x e m p l o , c o m o estava
científicas, o papel d i r e c i o n a l dos sistemas da i m a g e m
m e n o s c o m p r o m e t i d o c o m o sistema d o imaginário d o

56 A . M o l e s , La Création scientifique (A c r i a ç ã o c i e n t í f i c a ) , Kister,


1 9 5 6 ; F. H a l l y n , Les Structures poétiques du monde (As e s t r u t u r a s
55 G . C a n g u i l h e m , Connaissance de la vie ( O c o n h e c i m e n t o d a v i - poéticas do m u n d o ) , Seuil, 1987.
d a ) , H a c h e t t e , 1 9 5 2 ; ] . S c h l a n g e r , Les Métaphores de l'organisme (As 57 G . H o l t o n , v e r B i b l i o g r a f i a ; cf. M . C a z e n a v e , La Science et lame
metáforas d o organismo), V r i n , 1977. du monde (A c i ê n c i a e a a l m a d o m u n d o ) . I m a g o , 1 9 8 3 .

68 69
As ciências do imaginário
o imaginário
como o trajeto de u m pássaro consiste na continuidade
(que ele denomina "pressupostos temáticos" ou thêma-
do seu vôo e paradas. Podemos ainda citar a influência
ta) na orientação singular da descoberta. Estes thêmata
do célebre filósofo dinamarquês Kierkegaard, para
contribuíram para o que Einstein chamava de Weitbild, a
quem, ao contrário da "síntese" hegeliana, são as con-
"imagem do mundo" (não apenas do Universo, mas
tradições e as descontinuidades da vida que tecem a
"do mundo", do ambiente cotidiano e humano). Na sua
generalidade formal, os thêmata se aproximam (descon- continuidade da existência. Este estudo minucioso de

tínuo-contínuo; simplicidade-complexidade; invariân- Gerald Holton permite-nos perceber que, atualmente,

cia-evolução etc.) dos "arquétipos junguianos" ou do e para explicar suas próprias orientações, o pensamento
que denominamos de "esquemas". Holton, ao retomar científico vê-se constrangido a pedir auxílio ao mesmo
uma diferença célebre entre os imaginários "dionisía- imaginário durante tanto tempo reprovado, no século
cos" e "apolíneos", demonstrou, de maneira muito m i - 17, pelo iconoclasmo das teorias originárias... No p r ó -
nuciosa e corroborada por amplas pesquisas de psicos- prio santuário da física, que esteve longamente voltado
sociólogos, que as descobertas dos especialistas mais apenas para o seu mecanismo, as imagens irreconciliá-
importantes (Kepler, Newton, Copérnico e sobretudo veis da onda (contínua) e do corpúsculo (descontínuo)
Niels Bohr e Einstein...) foram de alguma forma pres- vêem-se obrigadas a se associarem a u m "mecanismo
sentidas pela formação e as fontes imaginárias de cada ondulatório". Dessa forma, a precisão científica não
pesquisador (freqiiências, educação, leituras...). Desta pode abrir m ã o de uma "realidade velada" (Bernard
maneira evidencia-se a discussão irredutível entre u m d'Espargnat), onde os símbolos, estes objetos do imagi-
Einstein partidário do "deus da ordem" de Newton, e nário humano, servem como modelo... ^
muito próximo do Jeová bíblico, e u m Niels Bohr parti-
dário de u m Deus jogador de dados, "intolerável" aos 6. Os confins da imagem e do absoluto
olhos de Einstein. Esta posição de Niels Bohr, ao optar do símbolo: homo religiosus
por uma física do descontínuo, do "salto" quântico, foi
acalentada na sua infância pelo filósofo e psicólogo Numa primeira abordagem teríamos a impressão de
dinamarquês Harald Hõffding — u m amigo da família que as psicologias das profundidades, estas sociologias
Bohr — , adepto da psicologia de William James, o "figurativas" e epistemologias abertas aos "pressupostos
famoso "fluxo de consciência", onde a unidade é com- temáticos", terminam em linha reta e se r e ú n e m ao reli-
plementar aos eventos descontínuos e dispersos, assim giosus da ciência das religiões, pois desde os tempos ime-

70 71
o imaginário As ciências do imaginário

moriais — pelo menos desde o alvorecer da espécie ho- de sua tese Sacré et désacralisation [O sagrado e a dessacra-
^ mo sapiens — as manifestações religiosas sempre foram lização], analisou muito bem estes movimentos de dessa-
consideradas como provas da principal faculdade de cralização e secularização que atingem a teologia em
simbolização da espécie. Ora, acontece que não é nada cheio. Não deixa de ser significativo que o revisionismo
disso: no Ocidente, tanto o domínio do religioso como teológico tenha se originado fora das diretrizes das Igre-
o do profano passaram pelas mesmas perversões positi- jas. Nos primeiros anos do nosso século, as dificuldades
; vistas e materialistas. Ao aceitar o aggiornamento por para as explicações historicistas do sagrado produziram
concordatas (doutrina que tenta conciliar os dados reli- uma corrente inteira de análises "fenomenológicas" (que
giosos com os da ciência), o Ocidente calculou mal e se atêm "à coisa em si", ao próprio objeto do religiosas)
acabou sendo relegado ao "teológico", à época mais do Sagrado. E é nesta corrente que se situam dois dos
arcaica do conhecimento ou a um nível de superestru- principais inovadores do papel do imaginário nas apari-
tura soporífica e nociva. No Ocidente, a partir do final ções (hierofanias) do "religioso" no centro do pensa-
do século 18, as religiões institucionalizadas passaram a mento humano: o romeno Mircea Eliade (1907-1986) e
ser consideradas conforme o gosto historicista e cientis- o francês Henry Corbin (1903-1978).58
ta do dia. Estas tentações, que reagrupamos sob o nome Numa obra monumental, ambos resgataram o ima-
de "modernismo", almejam, segundo as palavras do filó- ginário constitutivo na sua relação com o Absoluto, o
sofo Jean Guitton, "fundar a fé sobre o espírito dos tem- * religiosas. Eliade, ao retomar as conclusões de filologia
pos". Donde, claro, o esforço dobrado dos teólogos para comparada de Georges Dumézil — que, em 1949,
"desmitificar" as verdades da fé e fundamentá-las em escreveu o prefácio do célebre Traité d'histoire des religions
fatos históricos positivos. Os teólogos ocidentais só con- [Tratado da história das religiões] do mestre romeno —
seguiram exorcizar as tentações modernistas e iconoclas- mostra que em todas as religiões, mesmo nas mais
tas recentemente. Com o questionamento da "moderni- arcaicas, há uma organização de uma rede de imagens
dade", o "monoteísmo" do futuro científico fragmen- simbólicas coligidas em mitos e ritos que revelam uma
tou-se em pluralismos, foi renegado por uma "filosofia trans-história por detrás de todas as manifestações da
do não" (G. Bachelard), e as grandes "religiões secula-
res", o nacional-socialismo e o leninismo-stalinista, des-
moronaram. Jean-Pierre Sironneau, na primeira parte 58 Duas revistas do "Cahiers de THerne" lhes foram respeitosamente
dedicadas.

72 73
o imaginário — As ciências do imaginário —

religiosidade na história. U m processo mítico que se faculdade humana que permite a algumas pessoas atin-
manifesta pela redundância imitativa de u m modelo ar- girem u m universo espiritual, uma realidade divina — ,
quetípico (perceptível mesmo no cristianismo, onde os a essência do religiosus, a qual, por vezes, "olha para o
"eventos" do Novo Testamento se repetem sem " e l i m i - homem" e, por outras, é o objeto de sua "contempla-
nar" aqueles do longínquo Antigo Testamento) e pela ção". O "imaginai", imaginatio vera, a faculdade "celes-
substituição do tempo profano por u m tempo sagrado: tial" — confirmada por vários místicos protestantes
' o illud tempus da narrativa ou ato ritual. Estes elementos como Jakob Bõhme ou Emmanuel Swedenborg — en-
encontram-se ainda no comportamento cristão, onde o contra seu campo privilegiado no islamismo, onde não
tempo litúrgico substituirá o porvir profano. Como em pesam os intermediários eclesiásticos e a "inteligência
Dumézil — quando, o que havíamos considerado d u - espiritual" tem acesso direto ao objeto do seu desejo.
rante muito tempo a história romana positiva, como em Todas as "narrativas visionárias" orientais, tanto as pré-
Tito Lívio, por exemplo, será absorvido pelos grandes islâmicas do zoroastrismo quanto, e sobretudo, as sufis-
mitos indo-europeus — "a história das religiões" revela tas (sunitas) e chiitas baseiam-se nesta faculdade da
a perenidade das imagens e dos mitos fundadores do "imaginação criadora" que permite ao contemplativo o
fenómeno religioso. Eliade, que é também u m grande acesso a u m mundus imaginalis, um mundo "intermediá-
romancista, mostra que há uma continuidade entre os r i o " , o malakut da tradição iraniana, onde "os corpos se
imaginários: o do romancista, do mitógrafo, do conta- espiritualizam e os espíritos se corporalizam".
dor, do sonhador... Q que é admirável, tanto em Eliade como em Cor-
No islamólogo Henry Corbin^^ há uma preferência bin, para uma teoria do imaginário, é que eles conse-
— como em Bachelard, que já distinguia nitidamente a guem mostrar, com uma erudição gigantesca, que o
nobreza criadora do devaneio da banalidade pouco coe- imaginário dispõe, ou tem acesso a, de u m tempo —
rente do sonho — por uma "eletividade" de uma parte illud tempus — específico que escapa à entropia da dissi-
da imaginação criadora em relação ao venha-como-vier metria newtoniana (sem o "depois" que necessita o
do imaginário. Esta preferência é a do "imaginai" — a "antes"), e a uma extensão figurativa (na koja abad =
"não-onde" em persa) diferente do espaço das localiza-
59 H. Corbin, Avicenne et le récit visionnaire (Avicena e a narrativa ções geométricas. Não há dúvida de que o mundo do
visionária), 1954, Berg, 1979; Terre celeste et corps de réssurectíon
(A terra celeste e o corpo da ressurreição), Buchet-Chastel, 1960.
imaginário que coloca em evidência o estudo das reli-

74 75
o imaginário As ciências do imaginário

g i õ e s c o n s t i t u i u m m u n d o e s p e c í f i c o e cujos f u n d a m e n - d o qual J u l i e n Ries é o entusiasta mais expressivo c o m a


tos localizam-se n o p r ó p r i o m u n d o p r o f a n o . Apesar das p u b l i c a ç ã o de "Homo Rehgiosus", sob sua d i r e ç ã o . 6 0
i n ú m e r a s r e t i c ê n c i a s de u m c r i s t i a n i s m o i n q u i e t o c o m a
possibilidade de ser ultrapassado pela m o d e r n i d a d e , a l - Portanto, constatamos e m todas as disciplinas d o sa^
guns t e ó l o g o s oficiais das Igrejas a d e r i r a m — p o r r a z õ e s b e r (a psicologia, a etno-sociologia, a h i s t ó r i a das ideias, i
diferentes e que n ã o examinaremos aqui — ao m o v i - as c i ê n c i a s religiosas, a epistemologia e t c ) , a f o r m a ç ã o \ ^ ' ^•
m e n t o " p ó s - m o d e r n o " da r e s s u r r e i ç ã o d o s i m b ó l i c o . progressiva e n ã o p r e m e d i t a d a de u m a " c i ê n c i a d o i m a -
C o m o seus precursores imediatos citaremos os padres g i n á r i o " e que desmistifica as p r o i b i ç õ e s e os e x í l i o s
Jean D a n i é l o u ( 1 9 0 5 - 1 9 7 5 ) e Jacques V i d a l (1925- i m p o s t o s à i m a g e m pela civilização que c r i o u estas mes-
1 9 8 7 ) . O p r i m e i r o , j e s u í t a e cardeal da Igreja Romana, mas disciplinas deste saber. Resta-nos apenas apresentar
teve o m é r i t o de redescobrir o que o segundo d e n o m i - o b a l a n ç o conceituai e a x i o m á t i c o destes progressos
n o u de o " g é n i o d o paganismo" e Sublinhar que o t e c i - heurísticos t ã o importantes.
d o s i m b ó l i c o nada mais era que o t e c i d o c o m u m a todas
as r e l i g i õ e s . O segundo, franciscano e sucessor de D a -
n i é l o u na d i r e ç ã o d o I n s t i t u t o de C i ê n c i a e Teologia das
R e l i g i õ e s de Paris [Institui de Science et de Théologie des
Religions de Paris], t r a b a l h o u para m o s t r a r a c o r r e l a ç ã o
i n d i s p e n s á v e l entre o homo rehgiosus e o homo symbohcus,
especialmente q u a n d o f o i o presidente d o C o m i t é de
R e d a ç ã o d o Dictionnaire des rehgions [ D i c i o n á r i o das r e l i -
g i õ e s ] nas e d i ç õ e s RU.F. ( 1 9 4 8 ) , sob a d i r e ç ã o d o car-
deal Paul Poupard. Estes p i o n e i r o s de u m a r e l e i t u r a
" a n a g ó g i c a " (que destaca u m significado espiritual p o r
d e t r á s d o m a t e r i a l i s m o das imagens) das r e l i g i õ e s , e m
p a r t i c u l a r d o c r i s t i a n i s m o , t i v e r a m seus seguidores na
Escola de L o u v a i n - l a - N e u v e , especialmente n o " C e n t r o 60 J. Ries et al., L'Expression du sacré dans les grandes religions
(A expressão do sagrado nas grandes religiões;, 3 vols., Louvain-la-
de H i s t ó r i a das R e l i g i õ e s " [Centre d'Histoire des Religions],
Neuve, 1978-1985.

76 77
III
o BALANÇO CONCEITUAL E O NOVO
MÉTODO PARA A ABORDAGEM DO M I T O

A/ O alógico do imaginário

1. O pluralismo específico e as classificações

Deve-se a Bachelard o conceito de "pluralismo coe-


rente" tal como ele o aplica à "química moderna". Uma
aplicação a uma ciência da matéria e reveladora de uma
reviravolta epistemológica, que não atinge apenas as
ciências do homem. Por ora, examinaremos apenas o
"pluralismo". Ao contrário do que ocorre com a taxino-
mia clássica das espécies animais ou vegetais e que se
baseia no princípio de uma identidade "exclusiva" e
exclui qualquer "terceiro" [elemento], o pluralismo não
indica uma classificação simples de vários elementos sob
um género comum. Esta identidade repousa sobre o
fundamento de base de todo o racionalismo ocidental
é o u no famoso "silogismo": "Sócrates pertence ao géne-
ro humano, todo homem é mortal, então... etc". Como

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o imaginário O balanço conceituai e o novo método

foi demonstrado por Kant, este modelo de raciocínio como foi constatado pela física contemporânea em cer-
assenta-se sobre as "formas a priori'" da percepção, ou tas áreas materiais (B. d'Espagnat). O resultado a priori
seja, no espaço euclidiano onde os círculos de Euler ins- desta "simetria" e "não-separabilidade" é que, embora
crevem as relações identificadoras (o "círculo" mortal identificados, os elementos do discurso (sermo mjthicus),
c o n t é m o do homem, que contém Sócrates...) e indi- nem por isso são menos solidários. Segundo os lógicos,
cam as exclusões: não-mortal ou imortal, rochedo, está- o status da identidade deixa de ser uma "extensão" do
tua etc. Aqui, a identificação localiza-se e separa-se do objeto/conceito para tornar-se uma " c o m p r e e n s ã o " (o
resto nas coordenadas de um espaço-tempo universal e conjunto de suas qualidades e seus "atributos"). Se-
h o m o g é n e o (Euclides e Newton). A identidade consti- gundo a velha fórmula, "in subjeao" (praedicatum inest
tui uma espécie de ficha do "estado civil" (René Thom) subjecto...), a identificação já não reside mais "num su-
que fixa seu objeto no tempo e o circunscreve no espa- jeito", mas na trama relativa dos atributos que consti-
ço (a separabilidade).
tuem o "sujeito" ou, melhor, o objeto...
No pluralismo é totalmente diferente; é o que Ao estudarmos o mundo imaginário, os maus hábi-
constatamos — como Eliade e Corbin, entre outros — tos herdados do "terceiro excluído" vão se atenuando
pela existência de fenómenos que se situam num espaço aos poucos. Muito significativa em Freud, esta segunda
e tempo completamente diversos. Aqui, trata-se do illud tópica composta de três elementos (o isto, o eu e o su-
tempus do mito, que — segundo Eliade, o qual t a m b é m perego) substituirá a primeira tópica dualista: conscien-
é um romancista e escreveu narrativas profanas como o te-inconsciente. N ó s t a m b é m substituímos a contradi-
conto, a legenda, o romance... — c o n t é m seu próprio ção, fácil demais, do "diurno" e "noturno" — herança
tempo numa espécie de relatividade (generalizada!) bem de Guy Michaud^' — por uma tripartição estrutural
específica e "não-assimétrica" (Olivier Costa de Beau- (esquizomorfa ou heróico-mística ou participativo-sin-
regard), onde o passado e o futuro independem entre si
tética ou, melhor ainda, "disseminadora"). Aliás, a pas-
e os eventos são passíveis de reversão, de uma releitura,
sagem para u m pluralismo tripartite é sinal do abando-
de litanias e rituais repetitivos... como foi apontado pela
no do dualismo "exclusivo" em Georges Dumézil e Pi-
filosofia pré-socrática com o termo enantiodromia ou re-
trocesso ou "dar a meia-volta". É t a m b é m o " n ã o -
onde", caro a Corbin, dos fenómenos "não-separáveis" 61 C. Michaud, Introduction à une science de la littérature (Intro-
dução a uma ciência da literatura), Puhlan, Istambul, 1950.
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o imaginário O balanço conceituai e o novo método

t i r i m Sorokin ou na taxinomia que compartilhamos A alogia do mito ou do sonho sempre foi rejeitada
com Yves Durand e Dominique Raynaud e, de maneira no purgatório (quando não no inferno) do "pré-lógico"
mais complexa, com Pierre Gallais, o especialista em e da "participação mística" onde, como todos sabem, os
literatura medieval, que acrescenta dois outros valores índios bororós, por causa de uma confusão mental, se
às oposições "exclusivas" das proposições contraditó- tomam por araras (L. Lévy-Bruhl, É. Durkheim...). Já
rias: a disjunção e a conjunção que permitem à narrati- devíamos ter sido alertados por esta agressividade e este
va se "desenrolar".62 combate heurístico que assumem os ares de uma cruza-

Desta concepção resultou, além da identidade, uma da "heróica": quando evocamos o Diabo em nome do

lógica — ou melhor, uma alógica — do imaginário, seja ' b o m Deus é porque precisamos dele! Como Freud já

ele o sonho, o onírico, o mito ou a narrativa da ima- observara, o herói depende do monstro ou do dragão
para transformar-se num herói, e os trabalhos de Yves
ginação.
Durand mostram que, quando o monstro é minimizado
— "guliverizado", como diz Bachelard — , o herói pen-
2. A lógica do mito dura a espada no vestiário e calça os chinelos... Na afeti-
0/idade (Freud), como em qualquer projeção imaginária,
há uma conivência dos contrários, uma cumplicidade
A lógica do mito encontra-se exatamente na sua
onde u m elemento existe pelo outro. Segundo u m título
diferença em relação à lógica clássica ensinada desde
de Bachelard, todo "pluralismo" é "coerente", e o pró-
Aristóteles até Leon Brunschvicg e que provocou, e
prio dualismo, ao tornar-se consciente, transforma-se
continua provocando, tanto uma desconfiança quase re-
numa "dualidade" onde cada termo antagonista precisa
ligiosa em relação ao imaginário como hostilidades vio-
do outro para existir e para se definir E o que denomi-
lentas contra os pesquisadores do imaginário nas múlti-
namos u m "sistema" e que é inverso à acepção do ter-
plas disciplinas.
mo em francês onde significa uma certa rigidez ideo-
lógica. Para os especialistas da "teoria dos sistemas",^^

62 p. G a l l a i s , Dialectique du récit medieval, 1'hexagone logique (A


dialética da narrativa medieval, o hexágono lógico), R o d o p i , A m s -
t e r d a m , 1 9 8 2 ; R. B l a n c h e , Structures intellectuelles (As e s t r u t u r a s i n - 63 L. v o n B e r t a l a n f f y , Théorie générale des systèmes (A t e o r i a g e r a l
telectuais), V r i n (1922), 1969. dos sistemas), D u n o d , 1 9 7 3 .

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o imaginário O balanço conceituai e o novo método
este vocábulo implica, ao contrário, a ideia de uma taoístas (um círculo dividido por um S que forma dois
abertura necessária e uma flexibilidade: trata-se de um setores simétricos e de cores diferentes, cada um con-
conjunto relacional entre vários elementos que podem tendo um círculo pequeno com a cor do outro), como
até ser contrários ou contraditórios. Por conseguinte, a brasão no qual cada figura simétrica e oposta contém
origem da coerência dos plurais do imaginário encon- uma parcela do outro. Um outro físico, Fritjof Capra,
tra-se na sua natureza sistémica, e esta, por sua vez, fun- deu o título de O Tao da Física a um de seus livros. Na
da-se no princípio do "terceiro dado", na ruptura da física, este anfibólio consiste nas famosas "relações de
lógica bivalente onde A exclui não-A. Com efeito, per- incerteza" de Heisenberg, no qual, quanto mais um ele-
mitir um conjunto de qualidades intermediárias signifi- mento do sistema for conhecido, isto é, analisado nos
ca permitir a A, e a não-A, participar em B. Temos: A = seus parâmetros, tanto mais o outro torna-se vago e
A + B e A + B = A . B coloca uma ponte entre a A e Ã. "velado". Num eloqiiente "ensaio de sociologia quânti-
Por exemplo, se A = animal (um boi) e A = não-ani- ca", um jovem "sociólogo do imaginário"64 resumiu
mal (um arado), o "terceiro dado" pode estar associado suas conivências por uma chamada irreverente: "A críti-
ao boi e ao arado. Pois, na verdade, ambos são definidos ca da Razão impura".
por lavra, lavrar, lavragem... Este "terceiro dado" não É desta lógica^^ comum ao topo da ciência e ao
representa toda uma classe inclusiva (um "género vizi- imaginário que origina-se o princípio da redundância
nho") como na lógica clássica, mas uma qualidade que observado por todos os mitólogos (os que praticam a ^
pertence a A e a A e que denominamos + B. mitocrítica e a mitoanálise), de Victor Hugo a Lévi-
Não apenas todo "objeto" imaginário é constituti- Strauss, e que outros denominarão o "surgimento".^^ O
vamente "dilemático" (Claude Lévi-Strauss) ou "anfi-^ sermo mythicus, assim como as sequências de um ritual
bológico" (isto é, "ambíguo" ao compartilhar com seu fundamentado sobre um tempo "simétrico" e um espa-
oposto uma qualidade comum), mas é a física contem- ço "não separável", também não consegue acompanhar
porânea que, pelos seus conceitos de "complementari-
dade" (Niels Bohr), antagonismo e "contraditariedade",
introduziu o status científico do anfibólio. Muito signi- 64 S. Joubert, La Raison polythéiste (A razão politeísta), L'Harmattan,
1991.
ficativo, como observa Gerard Holton, é o fato de o 65 j.-]. Wunenberger, ver Bibliografia.
grande físico dinamarquês ter escolhido o Tai ki dos 66 p. Brunei, Mythocritique, théorie et parcours (A mitocrítica: teoria
e percurso), P.U.F., 1992.

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O balanço conceituai e o novo método
o imaginário
O processo de uma demonstração analítica nem seguir porta-se como u m holograma (Edgar Morin) no qual
aquele de uma descrição histórica ou localizável. Os cada fragmento e cada parte c o n t é m em si a totalidade
processos do mito, onírico ou do sonho consistem na do objeto.
repetição (a sincronicidade) das ligações simbólicas que ' Portanto, o imaginário, nas suas manifestações mais"^
os c o m p õ e m . Por conseguinte, a redundância aponta sem- típicas (o sonho, o onírico, o rito, o mito, a narrativa da
pre para um "mitema"*. Assim, no mito de Hermes, o imaginação etc.) e em relação à lógica ocidental desde
mitema do mediador emerge da bastardia do deus das Aristóteles, quando não a partir de Sócrates, é alógico.
encruzilhadas, das trocas e do comércio. Filho de Zeus e A identidade não-localizável, o tempo não-assimétrico e j
uma mortal, Hermes é o protetor do bastardo Dioniso, o a redundância e metonímia "halográfica" definem uma
intermediário de Zeus junto a Alcmena, o intérprete entre lógica "inteiramente outra" em relação àquela, por
Zeus e as três deusas, e o pai de u m ser ambíguo: Her- exemplo, /lo silogismo ou da descrição eventualista, mas
mafrodita... muito próxima, por alguns lados, daquela da música. A
A partir de então a distinção famosa e u m pouco música, da mesma forma como o mito e o onírico, re-
rápida de Roman Jakobson entre a metáfora e a m e t o n í - pousa sobre as inversões simétricas dos "temas" desen-
mia será reabsorvida, de alguma forma, por uma meto- volvidos ou "variados", u m sentido que somente pode
nímia generalizada (a c|ue designa um objeto pela. sua ser conquistado pela redundância (o refrão, a sonata, a
relação semântica com outro objeto). O mito não racioci- fuga, o Leitmotiv etc.) persuasiva de u m tema. A música,
na nem descreve: ele tenta convencer pela repetição de acima de qualquer coisa, procede por uma ação de ima-
uma relação ao longo de todas as nuanças (as "deriva- gens sonoras "obsessivas".
ções", como diria um sociólogo) possíveis. A contrapar-
tida desta particularidade é que cada mitema — ou
cada ato ritual — é o portador de uma mesma verdade
relativa à totalidade do mito ou do rito. O mitema com- 67 G. Durand, "Le cothurne musical", entrefien avec Monique
Veaute ( O c o t u r n o musical, u m a entrevista c o m M o n i q u e Veaute),
Avant-Scène Opera (n° 7 4 ) , 1 9 8 5 ; M . G u i o m a r , i.e Masque et le
* Mitema — U m a narrativa puramente ficcional. Geralmente e n - fantasme, l'imagination de la matière sonore dans la pensée musi-
v o l v e pessoas, a ç õ e s o u e v e n t o s s u p e r n a t u r a i s e i n c o r p o r a alguma cale d'Hector Berlioz (A máscara e o fantasma, a i m a g i n a ç ã o d a
ideia p o p u l a r referente a u m f e n ô n e m o natural o u histórico, in E O D matéria sonora no pensamento musical de Hector Berlioz), Corti,
(English Oxford Dictionary). (N.T.) 1970.

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o imaginário O balanço conceituai e o novo método

^3. A gramática do imaginário uma espécie de revestimento atributivo: virgo prudentíssi-


ma, virgo veneranda, virgo clemens etc. e, por outro, a u b i -
Como já mencionamos, a narrativa "imaginária" e o qiiidade e as vicariantes (a "substituição por...", o "vigá-
mito em particular, ao repudiarem o velho adágio "prae- r i o " substitui o pároco numa paróquia). Uma ubiqiiida-
dicatum inest subjecto" e dando outros valores às "partes de que é encontrada em múltiplas situações geográficas:
do discurso", causaram o transtorno da hierarquia de Lourdes, Loreta, Fátima etc. para a Virgem Maria; e as
nossos gramáticos indo-europeus, especialmente da vicariantes devidas à insignificância do nome próprio na
gramática francesa. No sermo mjthicus, o substantivo dei- atribuição de qualidades: a âncora é o atributo tanto de
xa de ser o determinante, o "sujeito" da ação e, afortio- são Clemente como de são Nicolau, santa Filomena ou
ri, o "nome próprio", para dar lugar a muitos atributos santa Rosa de Lima; o cachorro, o de santo Eustáquio,
— os "adjetivos" — , sobretudo à "ação" expressa pelo são Lázaro, são Roque ou são Juliano, o Hospitaleiro.
verbo. Nas mitologias e lendas religiosas, o assim chama- Portanto, não é o "estado civil" indicado pelo nome
do "nome p r ó p r i o " não passa de um atributo substanti- próprio o que importa na identificação de um deus,
vado pela ignorância ou a usura de sua etimologia: H é r - herói ou santo, mas as litanias "compreensivas" dos
cules significa a "glória de Hera"; Afrodite, a que "nas- seus atributos. Mas o atributo quase sempre é suben-
ceu da espuma" (ék oú aphrôu); Efesto, "aquele que não tendido por u m verbo: afastar, avisar, atrair, ungir etc. E
envelhece" (atributo de Agni, o deus védico do íogo:ja- o nível verbal que desenha a verdadeira matriz arquetí-
vishthd); Apolo, "aquele que afasta (o mal)" (apellôn)... pica. Dominique Raynaud evidenciou muito bem na sua
Por fim, é preciso lembrar que Zeus (da raiz Dif) signifi- tese este primado da "esquematização verbar'68 do qual
ca "o brilhante", e Christos, o "ungido"... Por conseguin- derivam secundariamente o que, em 1990, denomina-
te, este atributo substantivado vem a ser reforçado por mos de as "imagens arquetípicas epítetas", seguidas das
outros epítetos: stator, "que pára" (os sabinos); elicius "substantivas" e, por fim, dos símbolos supradetermi-
"que atrai a multidão"; moneta "a que adverte" (graças nantes pelo meio geográfico e social, e o momento so-
aos gansos do Capitólio); lucina, "a que esclarece" etc. ciocultural.

Desta relativização do nome próprio surge o fenó-


68 D. Raynaud, "Essai de schématologie" (Ensaio de esquemalologia)
meno duplo que pode ser muito bem observado na ha-
in L'lmagination architecturale {A imaginação arquitetural), Universi-
giografia: por u m lado, como em todas as litanias, há té des sciences sociales de Grenoble, 1990.

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o imaginário O balanço conceituai e o novo método
Esta hierarquia das "partes do discurso" imaginário pio, para tornar-se u m símbolo, a estrutura de posição
vem sendo corroborada há muito tempo, e m particular fornecida pelo posicionamento do reflexo dominante
pelas observações de Théodule Ribot e pelo seu adver- na vertical necessita a contribuição do imaginário cós-
sário, Henri Bergson. Na afasia progressiva, elas consta- mico (a montanha, o precipício, a ascensão...) e socio-
tam primeiro o desaparecimento dos nomes próprios, cultural (todas as pedagogias da elevação, da queda, do
depois dos nomes comuns e dos adjetivos e, por último, infernal...) sobretudo. Reciprocamente, o precipício, a
do verbo. Como diz Ribot (Maladies de la mémoite [Do- ascensão e o inferno ou o céu somente adquirem u m
enças da memória] I, 1881), "a destruição da memória significado de acordo com a estrutura da posição inata
decresce, progressivamente, do instável ao estável". da criança.
U m a observação que vai ao encontro da lei de regres- As estruturas verbais primárias representam, de al-
são, a qual afirma que o esquecimento atinge primeiro guma forma, os moldes ocos que aguardam serem pre-
as lembranças mais recentes. enchidos pelos símbolos distribuídos pela sociedade,
Ora, seguindo a ordem da afasia progressiva e da lei sua história e situação geográfica. Reciprocamente, con-
da regressão, estas duas observações e m conjunto con- tudo, para sua formação todo símbolo necessita das es-
firmam nossas constatações de 1960 e 1974 quanto ao truturas dominantes do comportamento cognitivo inato
"trajeto antropológico" e os níveis formativos do sím- do sapiens. Assim, os níveis "da educação" se sobrepõem
bolo. O "trajeto antropológico" representa a afirmação na formação do imaginário: em primeiro lugar encon-
na qual o símbolo deve participar de forma indissolúvel tra-se o ambiente geográfico (clima, latitude, localiza-
para emergir numa espécie de "vaivém" contínuo nas ções continentais, oceânicas, montanhosas e t c ) , mas
raízes inatas da representação do sapiens e, na outra desde já regulamentado pelos simbolismos parentais da
"ponta", nas várias interpelações do meio cósmico e so- educação, o nível dos jogos (o lúdico) e das aprendiza-
cial. Na formulação do imaginário, a lei do "trajeto an- gens por último. E, finalmente, pelo nível que René
tropológico", típica de uma lei sistémica, mostra muito Alleau denomina de "sintomático", ou o grau dos sím-
bem a complementaridade existente entre o status das bolos e alegorias convencionais determinados pela so-
aptidões inatas do sapiens, a repartição dos arquétipos ciedade para a boa comunicação dos seus membros
verbais nas estruturas "dominantes" e os complementos entre si.
/pedagógicos exigidos pela neotenia humana. Por exem- Mas, nesta primazia do verbo sobre seu sujeito, há
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o imaginário O balanço conceituai e o novo método
ainda mais: as "vozes" verbais passiva e ativa são substi- esquema do funcionamento da psique nas duas tópicas
tuídas com uma maior facilidade do que nas realidades sucessivas e famosas. No primeiro quadro, ele mostrou
psicanalíticas, onde o amor pode inverter-se em ódio. É o nível do consciente solidário com um inconsciente;
assim que as divindades das tempestades tanto prote- uma espécie de infra-estrutura que o satisfaz. Na segun-
gem dos raios como, ao mesmo tempo, os lançam. Elas da tópica, o esquema se complicava em três níveis: o
fazem parte, uma por vez, do fascínio (fascinendum) e do consciente dividia-se em "ego" e "superego", enquanto o
terror (tremendum). Como bom hagiógrafo e mitógrafo, inconsciente era denominado "isso" (id). Estas instâncias
Philippe Walter69 examinou muitas "inversões de voz". coincidem com as duas "pontas" do "trajeto antropoló-
Nas lendas cinegéticas, o mito do caçador caçado é fre- g c o " onde o inconsciente e o "isso" situam-se, de pre-
qijente. Num poema de Maria de França, o caçador ferência, na ponta inata do trajeto inconsciente, enquan-
Guigemar é ferido por uma flecha destinada a uma cor- to o ego e o superego situam-se na "ponta" educada.
ça. A dramaturgia de Parsifal, explorada por Richard Se desenharmos um círculo para representar o con-
Wagner, baseia-se na cura do rei ferido pela mesma lan- junto imaginário cobrindo uma determinada época de
ça que provocou o ferimento... uma sociedade, podemos dividi-lo em duas "fatias" na
horizontal, as quais correspondem, de baixo para cima,
B/ A tópica sociocultural d o imaginário às três instâncias freudianas e que aqui serão aplicadas
metaforicamente a uma sociedade. A fatia inferior, a
Em 1980 elaboramos um esquema da "tópica" das mais "profunda", representa um "isso" antropológico,
utilizações classificadas do imaginário numa sociedade o lugar que Jung denomina o "inconsciente coletivo",
dada e num momento (a "médio prazo", o que exami- mas que nós preferimos denominar de o "inconsciente
naremos mais adiante) dado. O conceito de tópica (de específico" e que está ligado à estrutura psicopsicológi-
topos, "lugar") situa os elementos complexos de um sis- ca do animal social, o Sapiens sapiens. É neste campo que
tema num diagrama. Foi assim que Freud apresentou o os esquemas arquetípicos provocam as "imagens arque-
típicas", Urbilder. As estruturas destas imagens, con-
69 Ph. W a l t e r , Mythologie chrétienne. Rites et mythes du Moyen
quanto embaçadas, nem por isso são menos precisas, tal
Ãge (A mitologia cristã, o s rituais e mitos d a I d a d e M é d i a ) , Enterite, como aquelas divindades da Roma antiga que, segundo
1992.

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o imaginário O balanço conceituai e o novo método
Georges Dumézil, são "pobres em representações figu- nos etc. do Terceiro Estado ou os soldados das legiões
radas mas ricas em suas coerências estruturalmente fun- romanas do Baixo Império. Contudo, não há, por um
cionais".™ lado, papéis predestinados ao conservadorismo das ins-
Este "inconsciente específico" forma-se quase no tituições e, por outro, outros reservados às reviravoltas
estado de origem (tal como o gesso "adquire a forma" e revoluções. Neste caso, os papéis desempenhados pe-
num molde) das imagens simbólicas sustentadas pelo los militares e pela guarda pretoriana são conservadores
meio ambiente, especialmente pelos papéis, as personae da sociedade. Em outras circunstâncias serão os solda-
(as máscaras), desempenhados no jogo social, e consti- dos que suscitarão os pronunciamentos. Na história do
tuem a segunda "fatia" horizontal do nosso diagrama, Ocidente cristão — na famosa querela do Sacerdócio
correspondendo, metaforicamente, ao "ego" freudiano. com o Império — os papéis positivos foram às vezes
É a zona das estratificações sociais onde são modelados desempenhados pelos clérigos e noutras, pelos barões.
os diversos papéis conforme às classes, castas, faixas etá- Porfimcolocaremos na "fatia" horizontal superior do
rias, sexos e graus de parentesco ou em papéis valoriza- nosso diagrama o "superego" da assim chamada socie-
dos e papéis marginalizados, de acordo com o corte ver- dade. Este superego organizará e racionalizará em códi-
tical do círculo por u m diâmetro. Devemos insistir bas- gos, planos, programas, ideologias e pedagogias, os pa-
tante num ponto: enquanto as imagens dos papéis posi- péis positivos do "ego" sociocultural.
tivamente valorizados tendem a se institucionalizarem A estas duas dimensões da tópica, a vertical que di-
n u m conjunto muito coerente e com códigos próprios, vide as duas metades "sistémicas" do círculo, isto é, os
os papéis marginalizados permanecem num Undergwund dois hemisférios das contradições sociais que consti-
mais disperso com um "tluxo" pouco coerente. Con- tuem uma sociedade, e a horizontal que reparte o ima-
tudo, estas imagens de papéis marginalizados são os fer- ginário sociocultural em três "fatias" de diversas quali-
mentos, bastante anárquicos, das mudanças sociais e do dades, acrescentaremos uma terceira dimensão, dessa
mito condutor como, por exemplo, em 1789, a multi- vez temporal: partimos do pólo inferior do nosso hexa-
dão confusa de girondinos, frades bernardinos, jacobi- grama, cujo eixo é o diâmetro vertical, percorremos a
periferia do círculo no sentido dos ponteiros do relógio
e subimos pela esquerda ao longo do círculo. Ao partir
no C . D u m é z i l , La religion romaine archaique (A r e l i g i ã o romana
a r c a i c a ) , Payot, 1 9 6 6 . de uma extremidade repleta de fluxos de imagens do

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o imaginário O balanço conceituai e o novo método

" i s s o " constatamos tratar-se d o e s b o ç o confuso de u m estivesse recalcado, ressurge o m i t o alquímico o u h e r -


imaginário que, aos poucos, irá regularizar-se na sua metista. A d o t a n d o a t e r m i n o l o g i a de Stéphane Lupasco,
parte mediana de acordo c o m os vários papéis, s o m e n t e p o d e r í a m o s a f i r m a r que vários m i t o s (pelo m e n o s dois)
para t e r m i n a r m u i t o e m p o b r e c i d o na e x t r e m i d a d e s u - se s o b r e p õ e m n u m a c u l t u r a e a qualquer m o m e n t o .
p e r i o r o n d e o alógico d o m i t o tende a atenuar-se e m E n q u a n t o uns são "atualizados", isto é , expressam-se à
p r o l da lógica e m curso. Portanto, os c o n t e ú d o s i m a g i - luz d o d i a , p e r d e n d o a lógica de qualquer " p e n s a m e n t o
nários (os sonhos, desejos, m i t o s etc.) de u m a socieda- selvagem" para se classificarem na lógica da razão causal
de nascem d u r a n t e u m percurso t e m p o r a l e u m fluxo e da narrativa descritiva, o u t r o s são " p o t e n c i a l i z a d o s " e
c o n f u s o , p o r é m i m p o r t a n t e , para finalmente se r a c i o n a - obrigados a p e r m a n e c e r e m na s o m b r a , sendo, p o r isso,
l i z a r e m n u m a "teatralização" (Jean D u v i g n a u d , M i c h e l m u i t o mais carregados de possibilidades riquíssimas d o
Maffesoli) de usos "legalizados" (Algirdas, Greimas, " a l ó g i c o " d o m i t o . Nietzsche já observara que a civiliza-
Yves D u r a n d ) , positivos o u negativos, os quais r e c e b e m ç ã o helénica só subsistiu devido ao seu c o n f r o n t o c o m
suas estruturas e seus valores das várias " c o n f l u ê n c i a s " Apolo, o Luminoso, e Dioniso, o Noturno...
sociais (apoios políticos, e c o n ó m i c o s , m i l i t a r e s e t c ) , Ninguém m e l h o r d o que o grande sociólogo Roger
p e r d e n d o assim sua espontaneidade mitogênica em Bastide''' e v i d e n c i o u , na mitocrítica d o famoso e s c r i t o r
c o n s t r u ç õ e s filosóficas, ideologias e codificações. André G i d e , o c o n f r o n t o dos mecanismos desta tensão
Q u a n d o m e n c i o n a m o s os trabalhos de Françoise sistémica n u m a psique (é inútil m e n c i o n a r se é " c o l e t i -
B o n a r d e l e j e a n - P i e r r e Sironneau que, separadamente, v a " o u " i n d i v i d u a l " , pois estas duas nuanças apagam-se
c o l o c a r a m e m evidência os dois grandes m i t o s antagó- n o trajeto antropológico) situada entre u m imaginário
nicos d o século 2 0 , esta organização e s p a ç o - t e m p o r a l atualizado e u m imaginário potencializado. O u , c o m o
de u m a tópica d o imaginário era previsível. N a superfí- escreveu Bastide ao r e t o m a r os conceitos da psicanálise,
cie t r i u n f a n t e encontra-se o m i t o p r o m e t é i c o l o n g a - u m " m i t o " que se manifesta e u m m i t o " l a t e n t e " . O
m e n t e a m a d u r e c i d o n o século 19 e que c u l m i n a c o m a m i t o manifesto é aquele que deixa passar o c o n j u n t o de
seleção eugênica de u m a raça de senhores, m a r c a n d o
assim o apogeu d o c i e n t i s m o c o m Lênin, o discípulo de
71 R. Bastide, Anatomie d'André Cide (Anatomia de André Cide),
M a r x , e da "secularização" c o m o Kulturkamfyf. N a p r o - P.U.F., Paris, 1972; cf. C. Durand, te lointain el Ivs ãnesscs (O
f u n d i d a d e , nas terras marginalizadas da arte, e c o m o se
longínquo e as jumentas), Bastidiana n" 4, Association Roger Bastide,
Paris V, 1993.

96 97
O balanço conceituai e o novo método
o imaginário

valores e ideologias oficiais. Em Gide, são as imagens Cristóvão Colombo que, à procura da rota para as í n -
inspiradas na ética cristã do despojamento: a poda do dias Ocidentais, encontra um novo mundo. E Saul que
jardineiro, a sede ascética do deserto, a nudez que não parte à procura de suas jumentas perdidas e volta do
tolera nem a barba, as imagens de pobreza evangélica deserto com uma coroa real... Nesta mitocrítica exem-
que levam o escritor movido por u m ódio à propriedade plar e que repousa na mitoanálise subjacente da França
a aderir ao comunismo. E m toda a ética deste ima- protestante da primeira metade do século, percebemos
ginário protestante — como outrora no jansenista Pas- muito bem como o imaginário atualizado reprime e
cal — "procura-se exatamente o que já se encontrou". exclui o imaginário em potencial. A partir de então,
Mas quando o despojamento é exacerbado pelo autor marginalizado, este entra na clandestinidade da latência
de Llmmoraliste (O imoralista) e Les Caves du Vatican (Os e mal consegue classificar-se sob a denominação de u m
subterrâneos do Vaticano) para uma espécie de "princí- mito preciso. Ele multiplica tanto suas redundâncias
pio dos limites", isto é, para uma saturação das possibi- como as vicariantes: Saul ocupa o lugar de Cristóvão
lidades semânticas, transparecerá uma ética proibida, Colombo, que ocupa o lugar de Édipo, que ocupa o l u -
ainda que envergonhada e bloqueada pela censura exer- gar de Cora etc. H á ainda as premissas de uma "mudan-
cida pelo imaginário conformista. Então, ao esbarrar na ça do mito": o mito — tão luterano — de Deus Todo-
predestinação augustiniana e luterana que se esconde Poderoso e do "servo arbítrio" do homem vai se apa-
sob a procura hesitante de u m nome próprio mítico, a gando aos poucos por detrás do mito da gratuidade fer-
máxima blasfematória será: "você s ó ' e n c o n t r a aquilo vorosa da ação humana, até agora censurado.
que não procura". Verdade que o escritor tenta camu- Como observamos nas tensões sistémicas dos ele-
flar os pretextos evangélicos desta máxima com as pará- mentos da tópica, tanto o imaginário oficial codificado e
bolas da "Ovelha Perdida" ou o "Festim de Casamen- manifesto quanto seu oposto, o imaginário recalcado,
to", mas na obra há ainda u m monte de outros nomes "selvagem" e latente, necessitam de uma dinâmica que
que tentam esconder a brutalidade insustentável desta responda pela mudança.
ética. Na obra de Gide é Cora, a Compassiva, que nos
Infernos mostra-se a implacável Perséfone; é Édipo que
não encontra outros meios a não ser o horror do par-
ricídio, do incesto e do olho vazado para salvar Tebas. É

98 99
o imaginário o balanço conceituai e o novo método

C / A dinâmica do imaginário: "contemporâneas", isto é, que reaparecem de uma cul-


a bacia semântica tura a outra — mas cada uma com fases bem marcadas
de estações culturais: primavera, verão, outono e inver-
Todos os pesquisadores que se debruçaram sobre a no. Além do painel sombrio de Spengler,-muitos espe-
história sempre constataram que as mudanças numa cialistas, como os economistas e historiadores da arte,
determinada sociedade nunca se efetuavam de modo observaram numa sociedade dada tanto os ciclos econó-
amorfo e anômico (sem forma nem regra), mas que micos, as tendências (trends) que se repetem periodica-
entre os eventos instantâneos e os "tempos muito lon- mente (infelizmente os economistas não chegaram a u m
gos" (Fernand Braudel) há períodos médios e homogé- acordo sobre a duração desses trends), os estilos de épo-
neos quanto aos estilos, as modas e os meios de expres- cas muito bem definidos pelos historiadores da arte
são. Daí, a partir da existência de uma ciência histórica, como o clássico, o barroco, o romantismo etc. E verda-
a divisão tradicional da história de uma sociedade, da de que as artes pictóricas, plásticas e musicais permiti-
nossa sociedade ocidental, em "Antiguidade", "Idade ram captar diretamente — pelo olhar e o ouvido! — as
Média" e "Tempos Modernos". Uma divisão que integra diferenças dos estilos de época marcantes. A grande
inconscientemente o mito progressista joaquimista (a querela "do barroco" consolidou a divisão em fases do
época do Pai, do Filho e Espírito Santo), o qual, por sua imaginário sócio-histórico futuro. E mais, a generaliza-
vez, inspirava-se na profecia bíblica do profeta Daniel ção inevitável do barroco (Eugénio d'Ors), fora de sua
que aguarda a Era do Ouro, depois a do Bronze, Ferro e situação privilegiada (séculos 16 e 17 europeus), e a ex-
Argila. Uma divisão de uma pobreza incrível, pois consi- tensão dos termos a montante (o gótico resplandecente)
dera apenas as cronologias e nem u m pouco os conteú- e a jusante (barocus românticas!) definiram a teoria do
dos estilísticos e semânticos, e que foi contestada pelo " r e t o r n o " das grandes fases do imaginário que foi entre-
historiador alemão Oswald Spengler (1880-1936)72 ao vista por Jean-Baptiste Vico (ricorso) no século 18.
substituir este modelo etnocêntrico demais por uma Por fim, os embriólogos — J . Henri Watldington e
pluralidade de civilizações com culturas diferentes — e Rupert Sheldrake^í — propõem conceitos como chréode

72 O . S p e n g l e r , Le Déclin de l'Occident ( O declínio d o O c i d e n t e ) , 73 R. S h e l d r a k e , Une nouvelle science de la vie ( U m a n o v a c i ê n c i a


1916-1920, Callimard, 1948. d a v i d a ) , t r a d . f r . , Le R o c h e r , 1 9 8 5 .

100 101
o imaginário O balanço conceituai e o novo método

(o encaminhamento formativo necessário para a matu- de formação e deformação das fases permanecem inde-
ração do embrião) ou "forma causativa" (a causa que finidos.
não se situa no montante do fenómeno, como na causa- Assim, levando em consideração estas várias consta-
lidade eficiente, mas "a jusante" ou pelo menos "em tações, aperfeiçoamos o conceito de "bacia semântica".
outro lugar"). Estes conceitos estão muito próximos do Ele já estava implícito na nossa "tópica", matizando em
logoi do matemático René Thom e da "re-injeção" do subconjuntos o movimento sistémico, o qual, por u m
físico inglês David Bohm. Ora, para entender esses sis- lado, conduz o "isso" imaginário ao esgotamento no
temas, os embriólogos utilizam a metáfora da "bacia flu- "superego" institucional e, por outro, suspeita desse
vial", que determina o curso do rio, o qual, por sua vez, "superego" e o erode pelos escoamentos abundantes de
é regulado pelo fluxo dos afluentes. u m "isso" marginalizado. Em contrapartida, é preciso
Pitirim Sorokin ( c í Bibliografia), após uma pesquisa, encontrar u m padrão de medida para esta "duração me-
sociológica gigantesca efetuada por sua equipe de Har- dial" que descreve u m percurso cíclico ao redor do nos-
vard, foi o primeiro a elaborar uma classificação da so diagrama da tópica.
"dinâmica sociocultural" de uma entidade sócio-históri- Mantendo a metáfora potamológica (referente a rio
ca num n ú m e r o de fases bem restrito (três: sensate / idea- = potamos), em primeiro lugar o conceito de "bacia
tional / idealistic). Será esta restrição que exigirá u m semântica" permite a integração das evoluções científi-
retorno inevitável quando as três ocorrências se esgota- cas supracitadas e, em seguida, uma análise mais deta-
rem. Este retorno, p o r é m , é indeterminado: B n ã o se- lhada em subconjuntos — seis, para ser exato — de
gue necessariamente A, nem C segue necessariamente B. uma era e área do imaginário: seu estilo, mitos condu-
Assim, pela ordem dos ricorsi, obteremos combinações tores, motivos pictóricos, temáticas literárias etc. numa
diferentes: A B, B ''«*C, C A, C B, B A etc. mitoanálise generalizada, isto é, propondo uma "mctli-
Contudo, no estudo do sociólogo americano, estas da" para justificar a mudança de modo mais pertinente
fases permanecem vagas quanto à sua duração e sobre- do que o menos explícito "princípio dos limites".
tudo quanto ao seu conteúdo pouco dirigido para os Antes, p o r é m , devemos tomar uma precaução re-
índices imaginários mais sólidos (as figuras míticas, os dobrada: por u m lado, nossas pesquisas examinaram as
estilos e motivos pictóricos, os temas literários e t c ) . sociedades mais ricas em documentos e monumentos,
Como resultado deste indeterminismo, os mecanismos como t a m b é m as mais acessíveis, as assim chamadas

"BIBLIOTECA Í ^ '
102 103
_JCENTRAL
o imaginário O balando conceituai e o novo método
sociedades ocidentais "quentes". Alguns estudos seme- zados transparece uma eflorescência de pequenas cor-
lhantes começam a dar frutos em certas sociedades ori- rentes descoordenadas, disparatadas e freqiienliMiK-nte
entais com uma ordenação histórica e cultural como a antagonistas. Elas ressurgem no setor "marginali/ado"
China, o Japão e a índia. Mas, por enquanto, nossa pes- da nossa tópica e testemunham a usura de u m imaginá-
quisa obteve bons resultados somente nas sociedades rio localizado, cada vez mais imobilizado em códigos,
europeias e suas extensões coloniais americanas. Segun- regras e convenções. Assim, enquanto no século 12, no
da precaução: precisar com exatidão a escala do terreno estado monacal rural, o ascetismo estético dos cister-
de pesquisa. U m sistema sociocultural imaginário desta- cienses se esgotava em proveito do urbano e do luxo
ca-se sempre de u m conjunto mais vasto e contém os eclesiástico do "tempo das catedrais", fervilhavam cor-
conjuntos mais restritos. E assim ao infinito. U m imagi- rentes religiosas efilosóficasde todo tipo: osfraticelli*,
nário social, mitológico, religioso, ético e artístico sem- os "irmãos de espírito livre" ou os cátaros etc. Apesar
pre tem u m pai, mãe e filhos... Por exemplo, o imaginá- da disparidade das teorias e dos usos e costumes, todos
rio do barroco dos séculos 16 e 17 se insere na cristan- esses "escoamentos" tinham u m ponto em comum:
dade latina e na sua ruptura reformadora que, por sua com o desenvolvimento nascente da luxuriante arquite-
vez, se insere no mito gibelino do império do Ocidente tura gótica no final do século 12, o rude ascetismo cis-
e t c , mas este barroco insere suas derivações venezianas, terciense será aos poucos submergido pelo naturalismo
alemãs, ibéricas, americanas... H quando passamos do dos celtas e normandos. "O sabor da felicidade terres-
Império do Ocitlente do mar Mediterrâneo para as tre" e a emancipação estética que o acompanhavam per-
nações modernas voltadas para o grande e vasto oceano mitirão a inclusão da beleza profana e de formas na-
Atlântico, ocorre uma mudança na escala demográfica, turais e vegetais nos arabescos e capitéis, e a cor se irra-
económica e geográfica... Portanto, não devemos jamais diará nas rosáceas e vitrais do imaginário europeu no
perder de vista esta prudência limitativa quanto à esco- limiar do século 13.
lha de nossos campos e amostragens. Bem antes da metade do século 18, as múltiplas
Depois destas precauções examinaremos com pre- correntes começaram a "escoar" de forma análoga —
cisão as fases da bacia semântica. A primeira denomina-
mos escoamento. Em qualquer conjunto imaginário deli- * Uma minoria franciscana adepta do uso da violência e qu<' expres-
sava (de várias formas) sua desat)rova(,-,io contra a ri(|U(va dos líde-
mitado sob os movimentos gerais oficiais institucionali- res eclesiásticos. (N.T.)

lOS
104
o imaginário O balanço conceituai e o novo método
Spengler diria "contemporânea" — em oposição ao final do século e atingirá rapidamente a superioridade
ideal clássico e ao século das Luzes: na Alemanha, o no neoclássico.
Sturtn und Drang; na França, o pré-romantismo; e em Outro período "contemporâneo" destas sensibilida-
toda a Europa, a filosofia de Rousseau. Já assinalamos des do imaginário, que vieram para contestar o icono-
que, assim como o final do século 12, este final de sécu- clasmo ocidental, é aquele que ainda irriga nossa bacia
lo 18 representa um período de resistência aos incono- semântica moderna e formou-se dos escoamentos dos
clasmos que o envolve. Ao contrário do que ocorreu no símbolos decadentes dos anos 1860 a 1914-1918. Sob o
final do século 12, não é mais a arquitetura que dá o imaginário estável, corroborado pelos sucessos da Re-
tom a um imaginário novamente naturalista e sentimen- volução Industrial e a partir de Les Fleurs du Mal (As flores
talista. Apesar dos caprichos do rococó na França do do mal, Ch. Baudelaire) e da pintura simbolista, assim
príncipe regente Luís Xiy e na Alemanha com os gran- como de seu contrário, o impressionismo naturalista, e
des arquitetos de um barroco muito tardio, como Neu- em oposição ao humanismo romântico que se esgota na
mann ou Cuvillès, por exemplo, no século de Haydn, superfície plana do moralismo positivista ou socialista,
Gluck e Mozart a música será a catedral invisível. É pre- escorre um novo imaginário pela esteira dos primeiros
ciso observar que o terreno muda de escala também: "re-mitologismos" de Freud, Wagner e Zola.
aqui não se trata mais da Cristandade de Inocêncio III A segunda fase da bacia semântica é a divisão das
que permeava toda a Europa antes da Reforma, mas de águas. Trata-se do momento da junção de alguns escoa-
nações e até de principados ainda menores. As premis-
mentos que formam uma oposição mais ou menos acir-
sas da estética romântica surgirão na Alemanha. Em
rada contra os estados imaginários precedentes e outros
contrapartida ao virtuosismo italiano, a ópera de Gluck
favorece a expressão natural dos sentimentos. A assim escoamentos atuais. Esta é a fase propícia para as quere-
chamada música "pura" medra entre os filhos de Bach, las das Escolas.
tornando-se, de algum modo, o santuário dos senti- Na nossa Idade Média não faltaram querelas, tais
mentalismos pré-românticos. Mas, na oposição velada como a que mencionamos e que opôs a austeridade cis-
dos escoamentos estéticos alemães contra o neoclassi- terciense do final do século às novas criações vitoriosas
cismo francês, já começa a esboçar-se uma clara divisão do imaginário gótico. No século 13, esta famosa c|ucrc-
das águas que sefirmaráno apogeu revolucionário do la, a "querela dos universais", retomou um novo impul-
so com o platonismo franciscano dos partidários e dis-
V
o imaginário O balanço conceituai e o novo método

cípulos de Duns Scot'''*, o qual se opunha ao aristotelis- canos, Michel de Césène, numa rebelião aberta contra o
mo dominicano, do qual são Tomás de Aquino foi o re- papa João X X I I .
presentante mais ilustre. No entanto, era uma querela O romantismo que desponta no final do século 18
de fachada, pois o imaginário gótico, embriagado de um não é menos rico em querelas. Depois das oposições de
naturalismo concreto e atento aos realismos e às curio- salão — Madame du Meffand contra Mademoiselle de
sidades da natureza, apoiava-se tanto na física de Aris- Lespinasse — , depois das terríveis e repentinas "divi-
tóteles como no empirismo franciscano, começando sões das águas" revolucionárias causadas pela guilhotina,
com Roger Bacon e depois Guilherme d'Occam. Mas a os girondinos contra os montanheses, Danton contra
divisão fundamental das águas, formada no imaginário Robespierre..., depois da querela exemplar do natura-
gótico, do qual os franciscanos são os porta-vozes e lismo místico de Rousseau contra o racionalismo dos
que os conduzirá, mais de dois séculos antes da Refor- Enciclopedistas, o Romantismo — tendo como pano
ma, à ruptura com Roma, representa sua oposição obs- de fundo as guerras napoleónicas — , cujo emblema na
tinada a uma Igreja ostensivamente coberta de riquezas França será tardiamente a famosa "querela de Hernâni",
que enclausura suas ordens ri-ligiosas nos vales e deser- abrirá uma profunda querela nacional entre a França de
tos do campo. Os discípulos de Francisco querem ser Napoleão, prudentemente iconoclasta no seu deísmo e
uma fraternidade e não uma ordem; querem livrar-se da racionalismo, e a Alemanha, as terras preferidas do ro-
clausura monacal; querem, entim, estar em contato mantismo — louvadas por Madame de Staél — , com
com o povo, os animais e a natureza através de uma arte seu abundante imaginário musical, místico e poético.
popular cuja manifestação viva pode ser pictorial, li-
Ao adquirir uma escala, ou pelo menos uma marca
túrgica ou teatral. Mas, e principalmente, revoltados
nacional exata, esta divisão das águas será, infelizmente,
pela opulência dos abades e seculares instalados nas
enfatizada na nossa modernidade pelas terríveis guerras
grandes cidades, eles se afirmam por um despojamento
franco-alemãs. Os conflitos entre França e Alemanha
liberador destas mesmas grandes cidades em fase de
acabarão perturbando o jogo franco de seus imaginários
surgimento: Radix omnium malorum est cupiditas, "a cobiça
recíprocos. Verdade que haverá uma disputa viva entre a
é a raiz de todo mal", proclamará o General dos francis-
visão do mundo cientista e a surrealista, entre formalis-
mos e fenomenologias de toda sorte.
71 John Duns Scot (1265(?) — 1308), teólogo e filósofo escocês. (N.T.) É exatamente neste instante, embora à primeira vis-

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O balanço conceituai e o novo método
o imaginário

sonagem real ou fictício caracteriza a bacia semântica co- Na nossa modernidade, esta ressonância, este espí-
mo um todo. Claro que, para o século fi-anciscano, o no- rito de síntese entre os sentimentos, esta experiência
me do pai é Francisco de Assis, que está respaldado por científica e sobretudo estas imagens devem, incontesta-
sua "lenda dourada" escrita por seus sucessores Tomás de velmente, retornar a Freud e à enorme e persistente
Celano (1260), Henrique d'Avranche (1234), o irmão hagiografia psicanalítica. Posicionar Freud no ponto
Elias e o prestigioso Boaventura (1274). É uma onda gi- mais profundo do rio não é, de nossa parte, uma garan-
gantesca de imagens que irá eclipsar a gesta e a iconogra- tia da verdade freudiana, mas apenas da sua formação
fia do próprio Cristo, a fonte de toda a renovação do ima- semântica.
ginário ocidental e que acompanha a integração de Fran- Quanto à organização dos rios, esta consiste numa
cisco de Assis, o "Pai Santíssimo", no mito joaquimita, consolidação teórica dos fluxos imaginários onde ocor-
como o fundador da "ordem dos Serafins" e o anuncia- rem, com frequência, os exageros de certas característi-
dor do "Papa Angelical" e da "época da flor-de-lis". cas da corrente pelos "segundos fiindadores", como são

Parece que neste desfraldar inusitado do imaginário Paulo e o prolongamento dos Evangelhos. Não insistire-

romântico somente nos resta a dificuldade da escolha mos aqui, pois já o mencionamos na primeira parte do

para eleger o nome do camjx-ão da Naturpbilosophie. A livro, no papel re-fundador e didático de são Boaven-

quem coroaremos? Beethoven, Novalis, Schelling, Schle- tura, o Doctor Seraphicus. Quanto ao romantismo, esse

gel ou Hegel? Que escolha difícil! No entanto, nós acha- não tem o que invejar ao século 13, tamanha sua riqueza

ríamos que o "nome do rio" devia permanecer coletivo de "organizadores de afluentes". Além de Kant, todos

e simbolizado pelo rio Reno, essa fonte de todas as ri- serão "filósofos da natureza" e cada qual fará mais e me-

quezas... No entanto, no início do século, será o brilho lhor: Fichte, Novalis, Schleiermacher — este "hiper-

de um poeta, cujo mito já tão "sistémico" assume as joaquimista" segundo P de Lubac — , Schlegel e o pró-

contradições da época e ressuscita o Doutor Fausto, que prio Hegel se incumbirão de teorizar uma filo.sofia da

se estenderá até Delacroix, Berlioz, Gounod e Nerval, e Darstellung, da "demonstração" da Divindade nas obras

que "confluirá" com os músicos em tantos Lieder e bala- do mundo. Mas, aparentemente, Schelling será o novo

das: Goethe, o profeta da "religião derradeira" e das Boaventura desta nova "exemplaridade" solidamente

nostalgias de tantos Werther, parece convir perfeita- fundamentada no mito joaquimita das "três épocas" e

mente à paternidade do rio romântico. cujo desenvolvimento não será outra coisa que a "ex-

112 113
O imaginário O balanço conceituai e o novo método
pansão do coração de Deus". As duas obras, Idées pour clero secular, o surgimento do humanismo e do neopa-
une Philosophie de Ia Nawre [Ideias para uma filosofia da ganismo até o trono pontifical de u m Nicolau V ou de
natureza] e Aphorismes pour Introduire à la Philosophie de Ia u m Pio II etc.)
Nature [Aforismos para a introdução à filosofia da natu- Intrinsecamente, a "bacia" romântica já traz em si
reza] de 1797 e 181S, respectivamente, servem de mapa este "verme dentro do fruto", ou o gosto pelas ruínas, o
para todo o imaginário romântico, sendo uma espécie catastrofismo que, a partir da metade do século 19, for-
de itinerário do espírito para a Darstellung divina. necerá os germes para o decadentismo, mas sobretudo
Quanto às "margens" do Imaginário na nossa m o - ao introduzir nela, como u m efeito perverso de sua ge-
dernidade, estas foram organiz<uias por toda uma plêia- nerosidade, uma Kulturphilosophie que desafia cada vez
de de pesquisadores — cujos tral)alhos já indicamos na mais a natureza e a contemplação em proveito da praxis
segunda parte deste livro, e dc-ntre os quais nos incluí- prometéica (apologias da Indústria, dos trabalhadores,
mos — que construíram, a partir da década de 50, o da "transformação do m u n d o " e t c . ) .
edifício de uma filosofia do imaginário e de uma "mito- Finalmente, na bacia semântica da nossa moderni-
dologia". dade, de forma latente e mascarados pelas vulgata freu-
E, assim, chegamos à scxt.i e última fase da "bacia diana, junguiana, eliadiana e a nossa, encontram-se cer-
semântica", os deltas e os niLMinlros. lista ocorre quando a tamente os meandros e escoamentos prenunciadores.
corrente mitogC-nica — o "inventor" dos mitos — que Agora, resta responder à pergunta que não foi re-
transportou o imaginário es|)ecífico ao longo de todo o solvida por Sorokin: a duração de uma "bacia semânti-
curso do rio se desgasta, atingindo, segundo Sorokin, ca". A mudança profunda do imaginário de uma época
uma saturação "limite", e deixa-se penetrar aos poucos foi, muitas vezes, equiparada a uma simples mudança de
pelos escoamentos anunciadores dos deuses por vir... gerações. Esta revolta periódica de "pais contra filhos" é
Sabemos como a "bacia semântica", gótica e franciscana curta demais para cobrir a amplitude de uma bacia
começou a se desagregar no Quattrocento, tanto por ra- semântica. Constatamos que sua duração, desde os pri-
zões intrínsecas (um nominalismo cada vez mais acen- meiros escoamentos perceptíveis até os meandros ter-
tuado, a ruptura seguida da guerra aberta contra o pa- minais, era de cento e cinquenta a cento e oitenta anos.
pado durante o Grande Cisma do Oriente etc.) quanto U m a duração justificada, por u m lado, pelo nútleo de
extrínsecas (as oposições e as críticas do monacato ao três ou quatro gerações que constituem as informações

114 115
o imaginário

" à boca p e q u e n a " , o " o u v i dizer q u e " f a m i l i a r e n t r e o


avô o u o mais velho e o neto, o u seja, n u m a c o n t i n u i d a -
de de c e m a cento e v i n t e anos à qual acrescenta-se, p o r
o u t r o l a d o , o t e m p o da institucionalização pedagógica Conclusão
de cinquenta a sessenta anos, que p e r m i t e ao imaginário
familiar, sob a pressão de eventos extrínsecos (a usura
da "bacia s e m â n t i c a " , as profundas mudanças políticas,
as guerras e t c ) , se t r a n s f o r m a r n u m imaginário mais
coletivo e invadir a sociedade a m b i e n t a l global.

F o i assim que, e m meados d o século 20, os t r a b a -


lhos pluridisciplinares convergentes p e r m i t i r a m t a n t o a
criação de u m balanço heurístico rico e m estudos d o
imaginário c o m o apresentar os conceitos-chaves de u m a
abordagem metódica das representações d o U n i v e r s o ,
o u de u m a " m i t o d o l o g i a " . O p l u r a l i s m o t a x i n ô m i c o , a
tópica e a dinâmica p e r m i t e m abarcar as bacias semânti-
cas que a r t i c u l a m aquilo que é " p r ó p r i o d o h o m e m " , o
^ imaginário, c o m u m a precisão mensurável. Este d e f i n e -
se c o m o u m a re-presentação incontornável, a faculdade
da simbolização de onde t o d o s os medos, todas as espe-
ranças e seus f r u t o s culturais j o r r a m c o n t i n u a m e n t e des-
de os cerca de u m milhão e m e i o de anos que o homo
erectus f i c o u e m pé na face da Terra.

C o n t u d o , não poderíamos c o n c l u i r c o m esta cons-


tatação triunfalista. Verdade que a "civilização da i m a -
g e m " p e r m i t i u a descoberta dos poderes da i m a g e m há

116 117
o imaginário Conclusão

tanto tempo recalcados, aprofundou as definições, os Trata-se do anonimato da "fabricação" destas ima-
mecanismos de formação, as deformações e as elipses da gens. Elas são distribuídas com tanta generosidade que
imagem. Por sua vez, a "explosão vídeo", fruto de u m escapam de qualquer "dignitário" responsável, seja ele
efeito perverso, está prenhe de outros "efeitos perver- religioso ou político, interditando assim qualquer deli-
sos" e perigosos que ameaçam a humanidade do Sapiens. mitação e qualquer estado de alerta, permitindo, por-
Em primeiro lugar porque ela impõe seu sentido a tanto, as manipulações éticas e as "desinformações" por
um espectador passivo, pois a imagem "enlatada" anes- produtores não-identificados. A famosa "liberdade de
tesia aos poucos a criatividade individual da imaginação, informação" é substituída por uma total "liberdade de
como já apontava Bachclard ao dar preferência à "ima- desinformação". Sub-repticiamente, os poderes tradi-
gem literária" sobre qua!c|uor outra imagem icônica cionais (éticos, políticos, judiciários e legislativos...) pa-
mesmo animada como a de um filme. recem ser os tributários de uma única veiculação de
Portanto, a imagem "enlatada" paralisa qualquer imagens "pela mídia".
julgamento de valor por parte do consumidor passivo, já Não deixa de ser paradoxal que tal "poder públi-
que o valor depende de uma escolha; o espectador então co", que se tornou absoluto por técnicas sofisticadas
será orientado pelas atitudes coletivas da propaganda: é que ele utiliza e por quantias colossais de dinheiro que
a temida "violentação das massas". Este nivelamento é ele drena, seja abandonado ao anonimato, quando não
perceptível no espectador de televisão, que engole com a ao oculto. De modo mais geral, o problema concreto da
mesma voracidade, ou melhor, com a mesma falta de ruptura entre o poder da mídia e os poderes sociais está
apetite, espetáculos de "variedades", discursos presi- ligado ao excesso de "informações" (no sentido muito
denciais, receitas de cozinha e notícias mais ou menos amplo, formações e desinformações, inclusive) das es-
catastróficas... É o mesmo "olho de peixe morto" que truturas das instituições. Como se sabe, por natureza a
contempla as crianças que morrem de fome na Somália, informação (L. Brouillin) é "não-entrópica" — isto é,
a "purificação étnica" na Bósnia ou o arcebispo de Paris ela aumenta indefinidamente, sem conter em si mesma
subindo a escadaria da Basílica de Montmartre carre- o germe da sua usura — enquanto as instituições, como
gando uma cruz... Esta anestesia da criatividade do ima- qualquer construção humana que precisa gastar suas
ginário e o nivelamento dos valores, numa indiferença energias, são entrópicas, isto é, condicionadas ao desa-
espetacular, são reforçados por outro e último perigo. parecimento e à morte. Então, a pletora indefinida de

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o imaginário

informações poderia ser um fator de entropia para as


instituições sociais que ela desestabiliza... Constatamos
que quanto mais uma sociedade é "informada" tanto
mais as instituições que as fundamentam se fragilizam...
Um perigo tríplice para as gerações do "zapping": Bibliografia
perigoso quando a imagem sufoca o imaginário, perigo-
so quando nivela os valores do grupo — seja de uma
nação, cantão ou "tribo"'^^ — e perigoso quando os
poderes constitutivos de toda a sociedade são submer-
sos e erodidos por uma revolução civilizacional que es- Mais de cem títulos Já foram citados no texto e nos rodapés deste livro. Na

capa ao seu controle... Ao menos se formou — como o bibliografia sumária a seguir somentefiguram as obras mais propícias a uma

demonstramos ao longo destas páginas — um "magis- teorização. -, , _ • i^i

tério" discreto de sábios competentes aos quais "os • G . Bachelard, I a PoetiqueJe/a rererie, P . U . F . , 1960. ».

políticos", aqueles que ainda pretendem "governar" os • K. Bastide, Le Prochain et le lointain, Cujas, 1910. .

grupos sociais, deveriam prestar atenção... • R. Caillois, Le Mythe et 1'homme, Gallimard, 1938.

• E . Cassirer, Philosophie desformes symboliques, (3 vols.), Minuit,

1972.

• H . Corbin, VImagination créatrice dans le soufisme d'Ibn Arabi,

Flammarion, 1958.

• B . Duborgel, Imaginaire et pédagogie, de Vinconochsme scolaire i) lu

culture des songes, Sourire qui mord, 1983.

• G . Dumézil,/upjíer, Mars, Quirinus, (3 vols.), Gallimard, 1941-

1948.

• G . Durand, Les Structures anthropologiques de 1'imaginaire, introduc-

tion à 1'archétypologiegénérak (1960), 11? ed., Dunod, 1993.

• M . ÉXiaàe., Aspects du mythe, Gallimard, 1966.


75 M . M a f f e s o l i , La Transfiguration du politique, la tribalisation du
monde (A t r a n s f i g u r a ç ã o d o p o l í t i c o e a t r i b a l i z a ç ã o d o m u n d o ) , • H . - F . Ellenberger, À la découverte de 1'lnconsciciu. Ihmnrc de la
C r a s s e t , 1992. psjchiatrie dynamique, Simep, 1974.

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