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Uma exposição sobre um mundo em que “tudo está feito para falhar”, mas “nós temos de ser excelentes”

| Artes | PÚBLICO 11/01/22, 13:06

Uma exposição sobre um mundo em


que “tudo está feito para falhar”,
mas “nós temos de ser excelentes”
Erro 417: expectativa falhada tem a ver com as
pressões que levam ao medo do fracasso, o muitas
vezes nocivo (porque desmedido) desejo de
sucesso que tende a surgir como antídoto e, ainda, a
marginalização de que são alvo corpos não
normativos ou vistos como desviantes. Está patente
na Galeria Municipal do Porto até 13 de Fevereiro.
10 de Janeiro de 2022, 21:00

Marta Espiridião tinha apenas cinco anos quando se deu a Expo-98, mas
lembra-se bem do evento que comemorou os 500 anos dos
Descobrimentos e, através de um investimento considerável na
construção de infra-estruturas, reabilitou o agora designado Parque das
Nações. A jovem curadora, que cresceu em Benavente, vila pertencente
ao distrito de Santarém, deslocou-se a Lisboa quase uma dezena de
vezes para assistir a vários dos seus eventos, entre exposições e
espectáculos de rua. “A experiência marcou-me imenso: uma menina do
campo dentro da Expo é outra coisa”, recorda ao PÚBLICO.

Foi no âmbito do projecto concursal Expo-98 no Porto que Espiridião


obteve o apoio necessário para desenvolver a exposição que inaugurou
há cerca de um mês na Galeria Municipal do Porto. Erro 417: expectativa
falhada, que está patente até 13 de Fevereiro, parte da forma como a
jovem começou a olhar para a Expo quando se mudou para a capital, no
início da década passada. Foi nessa altura, salienta, que começou a

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“perceber que a agitação cultural que havia reanimado o Parque das


Nações nunca se prolongou no tempo”. “Comecei a ver na Expo um
projecto falhado”, frisa.

12 artistas em "Erro 417", 11 dos quais fizeram novos trabalhos especificamente para
a Galeria Municipal do Porto

Quando pensa no Parque das Nações em termos de actividade turístico-


cultural, Marta identifica apenas o Altice Arena, que alberga “concertos
massivos”, e o Oceanário de Lisboa, “o espaço cultural que anualmente
mais lucra com visitantes” em Portugal. Não é capaz de encontrar a
oferta artística abrangente com que se deparou quando visitou a Expo,
que, aproveita para lembrar a curadora nascida em 1993, “foi construída
sobre um sítio onde eram despejados resíduos químicos” — o que,
comenta, é “irónico”, tendo em conta que o tema do evento tinha que ver
com a preservação dos oceanos. “A Expo-98, enquanto projecto cultural,
ambiental, social e habitacional, revelou-se um dos maiores falhanços do
início do milénio”, escreveu Espiridião em Setembro do ano passado, num
texto em que tentava resumir o conceito da sua exposição (e que
partilhou com o PÚBLICO).

Nós temos de ser excelentes, a toda a hora. É isso que nos


impingem desde que somos crianças”

Marta Espiridião, curadora

Erro 417, que reúne trabalhos de 12 artistas (Alice dos Reis, Aliza
Shvarts, Ana Hipólito, Carlota Bóia Neto, Catarina Real, Daniela Ângelo,
Elisa Azevedo, Gisela Casimiro, Hilda de Paulo, Jota Mombaça, Odete e
Xavier Paes), 11 dos quais criaram obras novas especificamente para a
mostra — apenas Shvarts não o fez —, esmiúça o falhanço de uma ideia
para estudar o “medo de errar”, que, argumenta a curadora, “é muito
alimentado por esta procura constante do sucesso” que o “sistema
capitalista” promove. “Esta ideia de que temos de chegar ao sítio ‘x’,

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fazer ‘y’ ou ascender ao cargo ‘z’, esta sede incessante de realização


pessoal e validação”, assinala, “está muito ligada ao sistema capitalista,
que objectifica os nossos corpos”, reduzindo-os a conceitos como
“eficiência” ou “produtividade”.

Jota Mombaça, "unfinished thesis on raw formalism"

Espiridião alega que almejamos a perfeição num mundo em que “tudo


está feito para falhar”. “Os transportes públicos atrasam-se, as
tecnologias têm a sua obsolescência programada [isto é, são
estrategicamente fabricadas para durarem menos tempo do que
deveriam, obrigando os consumidores a adquirirem novos produtos com
regularidade], mas nós não podemos ficar aquém das expectativas. Nós
temos de ser excelentes, a toda a hora. É isso que nos impingem desde
que somos crianças”, refere, afirmando acreditar que esta pressão que
mantém hierarquias, determinando vencedores e vencidos, tem vindo a
crescer nos últimos anos. O facto de cada vez mais jovens acusarem
problemas relacionados com ansiedade e depressão “quer dizer alguma

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coisa”, assevera a curadora: “É sinal de que estamos a crescer num


ambiente nocivo para o nosso bem-estar psicológico.”

Diferentes corpos, diferentes barreiras

A exposição reconhece que nem todos se encontram sujeitos à mesma


pressão, porque nem todos têm de superar os mesmos obstáculos. As
“noções de falhanço e sucesso”, pode ler-se na folha de sala, “nunca
estão livres de prerrogativas, uma vez que estão intrinsecamente ligadas
a diversas condicionantes estruturais cumulativas — a cor da pele, o
género e a orientação sexual, entre outras — e, acima de tudo, ao
cumprimento dos expectáveis papéis dentro destas categorias”. A obra
de Gisela Casimiro (n. 1984), por exemplo, debruça-se sobre isso
mesmo. A escritora e artista nascida na Guiné-Bissau colocou uma série
de maçanetas numa das paredes da sala-mãe de Erro 417. Mas todas
estão a uma altura que as torna intocáveis — e a ausência de chaves
também torna as metafóricas portas intransponíveis. Este projecto trata-
se de uma reflexão sobre os mecanismos sociais e políticos que, nos
mais diversos contextos, marginalizam corpos negros.

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Xavier Paes (n. 1994), por sua vez, conceptualizou o falhanço opondo
riqueza monetária a precariedade. O artista transdisciplinar inspirou-se
naquilo que tende a observar nas escadas da Igreja de Santo Ildefonso,
no Porto, onde está radicado. É lá que os jogadores de raspadinha
costumam ver se as cartelas adquiridas no quiosque ao lado do espaço
litúrgico é o seu bilhete para uma vida de maior capacidade financeira.
Quando a sorte não lhes pisca o olho, enterram os boletins por entre as
fendas das pedras que fazem as escadas, quase como se essas
formassem, nas palavras de Paes, “um muro das lamentações”. Fake,
Fiction, Fraud, Addiction (é esse o nome da sua obra) é uma instalação
composta por raspadinhas sem prémio, espalhadas pelo chão.

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Erro 417 encara o falhanço como “uma ferramenta de resistência contra-


hegemónica”, inspirando-se, admite Espiridião, na tese defendida por
Jack (ou Judith) Halberstam em The Queer Art of Failure, livro que,
sintetiza a curadora, reconhece no erro — isto é, naquilo que é não
normativo ou entendido como desviante — “um lugar que permite a
diferença, um lugar onde outros discursos” surgem. Os discursos que,
por exemplo, Hilda de Paulo (n. 1987) traz à mostra são discursos pós-
colonialistas e anti-transfóbicos. São da autoria desta artista,
pesquisadora e curadora brasileira duas obras: o texto-manifesto Eu
Gisberta — em que conta tanto a história da mulher trans brasileira que
foi violentamente assassinada no Porto, há quase 16 anos, como a da sua
própria adolescência, passada a tentar corresponder a padrões
heteronormativos com os quais nunca se identificou — e um mural in
situ, composto por três frases: “Eu estou na casa do colonizador. Então,
mexer nos móveis dessa casa é um pouco difícil. Mas eu vou mexer.”

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