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HISTÓRIA E MEMÓRIAS

DO BAIRRO PADRE CRUZ


Construir cidade à escala humana
Fátima Freitas
“A partir do momento em que uma comunidade
tem orgulho no seu bairro, o bairro está salvo.”
Helena Roseta (vereadora, CML)

“Este bairro não é melhor nem pior do que outros bairros.


O que digo é que este é um bairro diferente dos outros bairros.”
Paulo Quaresma (ex-morador, Presidente da Junta de Freguesia de Carnide)

“O que é mais positivo é essa cultura de bairro,


essencial e de fundo,
que vai continuar a influenciar os mais novos.”
Elisete Andrade (moradora, Presidente da Associação de Moradores do Bairro Padre Cruz)

“Por trás disto tudo está a vida.


A vida das pessoas, as sensações e a realidade concreta.
É isso que faz o bairro.
E que é importante descobrir, também nos documentos.”
Padre Araújo (em funções no Bairro Padre Cruz de 1968 a 1981)

“Este bairro lembra-me um fado.”


Fernando Pereira (ex-morador)
HISTÓRIA E MEMÓRIAS DO BAIRRO PADRE CRUZ
Construir cidade à escala humana

são as pessoas que trazem as casas dentro

Fátima Freitas
ÍNDICE - Apresentação
- Agradecimentos
- Clubes e colectividades – um património singular na história local
Andorinhas Futebol Clube
Clube de Futebol “Os Unidos”
CONSTRUIR CIDADE À ESCALA HUMANA Grupo Recreativo “Os Amigos da Luz”
- Com que matéria se constrói um bairro?
- Bairro Padre Cruz – diálogo e confronto entre paisagens 1968 a 1974: Os artesãos do Bairro Padre Cruz – “o bairro éramos
- Sobre a biografia do Bairro Padre Cruz – testemunho a várias vozes nós”
- O direito à memória – uma questão central num “bairro periférico” - O ambiente do bairro – “O bairro vivia! O bairro respirava!”
A forte identidade de rua – “os rios solidários”
(Fase 0) Até 1958: NO INÍCIO ERA O CAMPO As rosas nos quintais e as couves nas hortas
- Quinta da Pentieira – o termo do Termo de Lisboa - Estórias das infâncias – as chinchadas, os esconderijos entre trigos e
- Lisboa, uma capital à escala do Império papoulas
- … e a escala das “aldeias de folhas de lusalite” - Festas, estórias e personagens emblemáticas
- O Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da Penteeira – uma - A nova dinâmica da paróquia: “as escolhas eram das pessoas”
polémica origem - O Centro Social Paroquial de Carnide: a consolidação do apoio social
- Síntese cronológica - Síntese cronológica

(Fase 1) 1959 A 1974: CONSTRUTORES DA CIDADE, ARTESÃOS DO (Fase 2) 1974-1990: A VIVÊNCIA LOCAL DO(S) PODERE(S) E DAS
BAIRRO CULTURA(S)
- O 25 de Abril e a “nova ordem urbana”
1959-67: Do bairro anónimo ao bairro das inaugurações - Memórias do 25 de Abril – o dia em que o “bairro parou”
- O bairro de lusalite – “o Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da
Penteeira” 1974-1980: Do silêncio à reivindicação da voz – do morador ao
- O bairro de alvenaria – “tudo à moda da nossa aldeia” cidadão
- As primeiras gerações – “davam-se à confiança com muita facilidade” - Formas alternativas de gestão – a primeira Comissão de Moradores
- As primeiras impressões – “quando aqui chegámos…” - O desinvestimento municipal e a progressiva degradação do bairro
- O interior das casas – “tudo muito minúsculo” - O movimento associativo e os novos clubes – “muita carolice e orgulho
- A gestão do bairro – “uma aldeia… um “gueto”? bom”
- Os primeiros apoios sociais – “criar um sentido de comunidade” Clube Atlético e Cultural – “todos iguais, sendo diferentes”
- Equipamentos sociais – “as inaugurações foram muito bonitas” Grupo Recreativo Escorpiões Futebol Clube – “os “toupeiras”
A capela do Bairro Padre Cruz – “o pulmão do bairro” Clube de Futebol Os Unidos – “os anos de boa memória
A Escola Primária 167 – “Bom dia, senhora professora!” Grupo “Amigos da Malha” – “não queremos que a tradição se
Centro Cívico – “o nosso salão de festas!” perca”
O Cinema – “do tempo do bilhete a sete-e-quinhentos. E até - Novo comércio: os mesmos espaços, outras funções
menos!” A mercearia do senhor Fonseca
A Biblioteca Popular Fixa de Carnide – “a nossa Sala de Leitura” O velho mercado
Oficinas da Acção Social da Câmara Municipal de Lisboa O café do Quim
Posto médico, dispensário e creche do Centro Social, CML - Outros projectos pioneiros – o primeiro apoio domiciliário da SCML
- O comércio local – principais referências
A mercearia “casa branca” – “um monte alentejano” 1980-1990: A(s) cultura(s) de bairro, o capital social comunitário
O mercado, “os ambulantes” e os aviamentos em Carnide - As festas, os santos populares – “cada rua era um palco”
- Os caminhos e as acessibilidades ao bairro – “as azinhagas das - O reanimar da paróquia – “uma paróquia de relação”
memórias” - A gestão do bairro – uma gestão comparticipada
- A inauguração do autocarro – “lá vai o quarenta-e-um!” O Grupo Comunitário – reunir para prevenir
- Vivências e apoios sociais - Síntese cronológica
A paróquia, a catequese e a dimensão assistencial – “o bairro
tem trabalhos pioneiros”
Outros apoios assistenciais – “as irmãzinhas da Assunção”
Movimentos e grupos de reflexão da paróquia

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(Fase 3) 1990-2000: BAIRRO DE CONTRASTES – - O associativismo no Bairro – novos parceiros
O ALVORECER DO BAIRRO NOVO E O ANOITECER DO BAIRRO ANTIGO Associação Nacional de Futebol de Rua – a bola sempre pr’a
- Novas políticas, velhas heranças – os “mal alojados” das periferias frente!
sociais LUA CHEIA – teatro para todos & mais alguns
- O alvorecer do bairro novo – velhos problemas, novos impactos - … E os antigos clubes desportivos – Unidos, Escorpiões e CAC
A paisagem física do bairro novo – o bairro dos blocos coloridos - As hortas do Bairro – “porque a Natureza dá tudo!”
A paisagem vivencial do bairro novo – tensões e conflitos - Síntese cronológica
- O “bairro antigo” vs “ bairro novo” – nós e os outros - Notas e referências
- Vale do Forno – os “príncipes do nada” em terra de ninguém - Bibliografia e fontes
- As relações entre bairros – as novas dinâmicas associativas
Estar Alerta – o Agrupamento de Escuteiros 933
Renascer – o associativismo é preciso
- Os novos equipamentos de apoio
A esquadra 36 da PSP –a segurança na proximidade
A Ludoteca – “aprender a brincar”
A Biblioteca Municipal Natália Correia – “uma conquista difícil”
As escolas e a “ilha de cultura” bairrista
- A gestão local do Bairro
O Grupo Comunitário e o trabalho de parceria
A nova entidade gestora – a Gebalis
- As transformações no bairro e a acção paroquial – um reencontro
comprometido
- Síntese cronológica

(Fase 4) 2000 a 2012: A REQUALIFICAÇÃO DO BAIRRO PADRE CRUZ


– O FUTURO E A MEMÓRIA
- O Bairro Padre Cruz nas políticas da cidade – o contexto da intervenção
- O fim do Vale do Forno – “uma história muito triste”
- Sobre a intervenção no bairro antigo – tempos e projectos
Primeiro impasse – requalificar ou reabilitar?
O primeiro projecto de requalificação e o segundo impasse
A requalificação e o papel do Grupo Comunitário
- O Bairro Padre Cruz, hoje – antigas e novas comunidades
Os bairros do bairro – diálogos a construir
A requalificação – segundo projecto e terceiro impasse
O actual projecto de requalificação – criar um “Bairro
Integrado”
O GABIP e o pioneirismo do Bairro Padre Cruz
O contributo do capital social comunitário
Sobre o processo de requalificação – o parecer dos moradores
- O futuro do Bairro Padre Cruz e os (novos) compromissos da Gebalis
- Outros equipamentos centrais na vida do Bairro
O papel da escola – “valorizar a escola na comunidade”
Biblioteca Municipal Natália Correia – estimular literacias, criar
oportunidades
Centro Social Polivalente do Bairro Padre Cruz – um suporte
continuado da SCML
A paróquia: reconquistar relação com a comunidade

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APRESENTAÇÃO

F oi numa de muitas reuniões do Grupo Comunitário do


Bº. Padre Cruz que este projecto nasceu…
Recuperar, valorizar, divulgar e partilhar a riqueza do
trabalho comunitário, das relações de vizinhança e das
experiências de vida presentes no maior bairro municipal
A Junta de Freguesia em boa hora tomou a decisão
de produzir e editar este livro como forma de dar mais um
alento à esperança de uma requalificação plena da zona
mais antiga do bairro que respeite o passado, orgulhe o
presente e prepare o futuro sempre a pensar nas pessoas.
da Península Ibérica… Um território onde cerca de 8.000 Uma palavra muito especial a todos aqueles que
pessoas continuam a viver os seus sonhos, as suas colaboraram para a concretização deste livro. Desde logo
alegrias, e uma inabalável esperança no futuro! ao trabalho incansável da Fátima Freitas mas também à
Em Outubro de 2010 editámos o livro infanto- colaboração e à partilha de testemunhos, fotografias e de
juvenil que recuperou estórias, acontecimentos, factos e diversos materiais por parte de muitos moradores.
momentos do Bº. Padre Cruz. Foi lançado em simultâneo É para mim, enquanto ex-morador do Bairro e
com a inauguração da nova escola do Bº. Padre Cruz. Presidente da Junta de Freguesia, uma honra “apadrinhar”
Em Setembro de 2013 editamos este novo livro. mais este livro que agora passa a ser de todos, em
Desta vez em simultâneo com a “devolução” à população particular daqueles, moradores ou não do Bairro, que
do edifício da antiga Escola Primária Rio Tejo. Uma escola continuam a ter um carinho muito especial pela freguesia
que, tal como o bairro, sofreu momentos de construção, de de Carnide e pelo Bairro Padre Cruz em particular.
alegrias, de ensinamentos, de utilização mas que Este livro é seu, é da freguesia, é de todos quantos
infelizmente também de abandono e de vandalismo. amam e sentem Carnide.
Agora, após requalificada pela Junta de Freguesia, Aproveite-o, usufrua-o e partilhe o gosto de ler e
volta a estar ao serviço da população. Há símbolos que não sobre ele conversar com os seus amigos.
podemos deixar perder e esta escola é um deles. O local
onde muitos moradores estudaram e, depois, sempre Paulo Quaresma
votaram... Presidente da Junta de Freguesia

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AGRADECIMENTOS
F oi perante o grande desafio do processo de
r e q u a l i f i c a ç ã o d o B a i r r o Pa d r e C r u z q u e
preocupações comuns surgiram. A Junta de
Freguesia, na pessoa do Presidente Paulo Quaresma, o
Grupo Comunitário (de onde recebemos informações
António José, António Martins, Armando Artur Mendes,
Armando Cipriano, Cândida Sanches, Carminda Prado,
Carlos “Canhoto”, Carlos Faria, Carlos Pedro, Catarina
Pereira, Cremilda, Cristina Santos (professora/directora do
agrupamento escolar), Cristina Santos (moradora),
valiosas) e a Associação de Moradores do Bairro Padre Cruz Custódia Pereira, Domingas Ferreira, Emídio Pereira,
(com a indispensável colaboração da professora Elisete Ermelinda Cristino, Ernesto Costa, Etelviro de Jesus, Fátima
Andrade), o apoio da Câmara Municipal de Lisboa, na Martins, Fernando Pereira, prof. Freitas, Helena Gomes,
pessoa da vereadora do pelouro da Habitação e Acção Ilda Silva, Isabel Dias, Isabel Maria, Isaura Marques,
Social, arquitecta Helena Roseta, tomaram por prioritária a Joaquim Fonseca e Maria Rosalina, Joaquim Libório,
salvaguarda do património humanamente vivido num dos Joaquim Marques, Jorge Humberto, José Augusto
bairros mais emblemáticos da freguesia de Carnide. A que Gonçalves, José Ferreira dos Santos, José Lamelas, José
se uniu o singular interesse e acompanhamento por parte Martins, José Rodrigues (Zé Lagarto), José Valente, Júlio
de Maria Vilar, ex-presidente da Junta de Freguesia, e Vaz, Joaquim Cruz, Leonor Olivença, Laurinda Vaz, Leocádia
actual presidente da Assembleia Municipal. Conceição, Lídia Pereira, Lucinda Lamelas, Lurdes
Desta motivação conjunta surgiu, em Março de 2010, o Rodrigues, Manuel Campos, Manuel Cebola, Manuel João,
projecto comunitário “Construir cidade à escala humana – Manuel Martins, Maria do Carmo Costa, Maria da Graça
História e memórias do Bairro Padre Cruz, em Carnide” que Cristino, Maria da Graça Pereira, Maria de Lurdes
pretende registar e divulgar as memórias colectivas num Quaresma, Maria Pilar, Maria Piedade, Maria Santos,
momento decisivo da vida do Bairro. O documentário “Um Marieta Ferreira, Maximiana Lopes, Natália Santos,
bairro que seja nosso” (Fátima Freitas e Telmo Botelho) Nazaré, Nuno Diogo, Olinda, Paula Rodrigues, Prof. Freitas,
editado pela Junta de Freguesia em Setembro de 2012 Renata Lajas, Rui Gato, Teresa Correia, Teresa Martins,
complementa, visualmente, algumas das informações e Teresa Pedra, Vanda Ramalho, Vasco Estevão, Vítor Aveiro,
testemunhos aqui reunidos. Vítor Cacito… são presenças vivas, entre outras mais,
Posteriormente, este projecto enquadrou-se na “Agenda neste comum lugar da memória – e que também já se fez
local 21”, uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa (minha) paisagem interior.
em associação com a Faculdade de Ciências e Aos técnicos da CML, Drs. Carlos Inácio, Estela Gonçalves,
Tecnologia/Departamento de Ciências e Engenharia do Isabel Santana, arqs. Lídia Pereira, Maria Rosa Leitão e
Ambiente, e ficou incluído na “Estratégia para a Cidadania Jorge Subtil; arqº Nuno Ventura Bento (EPUL); dras.Helena
e Participação”, previsto no Plano de Acção para o Bairro Gomes e Cláudia Rocha (Gebalis); prof. Rogério Roque
Padre Cruz, sob a responsabilidade da equipa do Prof. João Amaro (Proact/ISCTE) pela partilha dos respectivos saberes
Farinha. e experiências.
À valiosa disponibilidade de dras. Ana Viana, Isabel Geada,
A todos os moradores e ex-moradores, responsáveis Natália Nunes e Sofia Júdice (SCML); de Júlia Silva (Irmãs
diversos e pessoas intervenientes que, directa ou da Assunção); dras. Elfrida Reis e Natália Amorim
indirectamente, colaboraram no percurso deste livro, o (Biblioteca Municipal Natália Correia); de sub-comissária
meu reconhecimento sincero pela confiança partilhada. Luísa Monteiro (PSP). E, ainda, o interesse do pessoal da
As conversas com Adelaide Ferreira, Alfredo Amaral, biblioteca do Gabinete de Estudos Olissiponenses (G.E.O),
Agostinho Cristino, António Almendra, António Araújo, sempre prestável e colaborador.
António Baptista, Amália Lemos, Amélia, António Cristino, À cumplicidade singularmente amiga de Albertina Lopes,

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Ana Enes, Elisabete Santos, Cristina Virgílio, Carlos e
Fernanda Silva, Domingas Ferreira, Fernando Ferreira,
Fernando d’Oliveira, Hugo Guerra, João Gualdino, Jorge
Nicolau, Jorge Humberto e Ilda Santos, Lurdes Faria, Maria
João Trindade, Maria Manuel Passas, Mário Alves, Mário
Guerra, Manuel Oliveira, Rosalina Nunes, Teresa Guerra e
Vítor (Bom Norte) e, claro, de Zé Luís.
Um agradecimento muito reconhecido a Prazeres Sousa,
moradora e funcionária da biblioteca Natália Correia,
companheira sempre amiga na partilha e descoberta dos
“segredos” do Bairro.
Aos membros dos grupos no facebook “Intas&Entas”,
“Bairro Padre Cruz”, a informação e os diálogos divertidos.
Renovado e sincero agradecimento, também, aos
empenhos cúmplices de João Oliveira (técnico da Cultura)
e Gonçalo Ferreira (designer gráfico) e a todos os demais
funcionários da Junta de Freguesia de Carnide que, de
algum modo, estiveram envolvidos na feitura deste livro.
Encontrados alguns fios que entretecem as vidas comuns
com a linha de vida do Bairro é, também, um artesanato
feito de momentos e de memórias.

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CONSTRUIR CIDADE À ESCALA HUMANA garridas têm por mau vizinho o baldio triste e abandonado.
Com que matéria se constrói um bairro? Algumas casas ainda respiram saúde, outras estão
doentes de corpo e de alma aprisionada por tijolos
“O que faz a diferença no Bairro Padre Cruz? sinistros. Árvores frondosas e altaneiras incomodam-se ao
É um bairro de sucesso. E porquê?” aperto das ruas mal calcetadas, as suas belas copas e
Jorge Nicolau(1) (ex-morador) fundas raízes invadem quintais vizinhos. Os resistentes e
generosos limoeiros tentam os caminhantes com os seus

P ercorrer, nos dias de hoje, as ruas mais antigas do frutos lembrando os rios de águas que correm nestes
B.º PADRE CRUZ, 2010 Bairro Padre Cruz, em Carnide, desperta-nos uma subsolos.
sensação de estranheza, um sentir inquieto. Porém O primor de algumas poucas ruas contrasta com o
talvez seja precisamente esta perturbação que anima a desleixo e acentuada degradação de umas quantas mais
curiosidade para além daquilo que os olhos alcançam no onde, agora, os cheiros evocam sensações confusas que
primeiro instante. repelem. Os espaços públicos – que antes haviam sido
Rumando ao limite noroeste da cidade de Lisboa, cuidados jardins – cederam aos matos e gatos bravios.
e após atravessar um verde-mar de hortas, encontramos Escutam-se fados na voz da rádio que canta naquela
um nicho retirado da freguesia de Carnide. O busto do garagem. Os carros mal estacionados protegem os portões
santo padroeiro serve de farol. Tem a bondade acesa num da insegurança mas acanham as passagens. Aqui e ali os
discreto sorriso que alumia moradores e viajantes. Invade- cães ladram e os gatos fogem à caça da maior ratazana.
nos a nítida sensação de que estamos a aportar numa Algumas pessoas cumprimentam-se nas ruas –
aldeia-ilha fora da cidade. É o Bairro do Padre Cruz. Está ainda se cumprimentam! – e outras espreitam curiosas a
debruçado para o vale da Paiã a janelas meias com o cada passo “estrangeiro”. Respondemos aos sorrisos
concelho de Odivelas e de Loures. antigos e as mais curiosas convidam à conversa. Ouvem-se
Aproximamo-nos. Numa teia densa de ruas bons dias com nomes próprios e o apelo ó vizinha! serve de
alinhadas a eito e a direito, correndo pelos nomes dos rios e guia entre as ruas desta aldeia semeada em terra de
afluentes – em direcção a que mar? – estão ainda cidade.
plantadas em paredes meias as casinhas outrora quase- Observamos melhor. No ar paira a indefinida
brancas, multiplica-se o que resta dos quintais e hortas sensação de que estaremos a caminhar num caos
importados das saudades da aldeia, amanham-se os ordenado ou numa ordem caótica… “O bairro hoje está em
alpendres e anexos que cresceram ao gosto, necessidades mísero estado”; “A tristeza que isto dá! Se o visse como era
e posses de cada um. Curiosos, caminhamos por um dantes, tínhamos tanto orgulho nele”, desabafam
espaço a que, na gíria local, chamam bairro antigo. repetidamente. “Era o príncipe dos bairros de Lisboa!”,
suspira-se entre as ruas. Esta geografia de emoções
“Este bairro lembra-me um fado.” justifica a interior indignação do viajante que aqui aporta
Fernando Pereira (ex-morador) pela primeira vez… – Mas porque estará hoje este bairro
assim? Que forças e mãos do tempo por aqui passaram?
Cada casa, igual à do vizinho, conseguiu o seu Nas segundas visitas vamos prevenidos. Levamos
rosto singular à custa do trabalho nos ferros forjados dos interrogações que servem de roteiro para captar a tal “vida
portões, e os hábitos íntimos dos moradores expõem-se concreta” que lembrou o padre Araújo. Perguntas,
nas peças de roupa dos coloridos estendais. Os periquitos indagações que atravessam tempos, lugares, emoções,
esvoaçam chilreios nas gaiolas. Os vasos das flores vivas e afectos, memórias… Quando, quem foram e quem são

BUSTO DO PADRE CRUZ, 2010 11


(FOTOGRAFIA DE HUGO GUERRA)
estes moradores? Porque vieram residir para este bairro? E afectos, que sentimos vividamente presente nos caminhos
que relação foi o bairro mantendo com as azinhagas e das ruas, nos arranjos das casas, nos enfeites das janelas,
hortas envolventes? E com a vizinha freguesia de Carnide – nos portões e portadas, mas também nas expressões dos
são cúmplices e próximos ou serão vizinhos distantes? E rostos, nas confissões e desabafos, nos retratos de
que diálogos têm os seus moradores com a “cidade gerações, nas cenas domésticas, nas glórias das festas e
grande”? letras dos seus cantares, hinos e poemas, convívios e
Destes primeiros passeios mais impressionistas passeios… mas também nos lutos, lidas e lutas diárias,
pelo bairro resultou também outra surpresa: afinal, o rigor nas partidas e nos regressos, nas saudades e nas
do traçado das ruas sempre a direito que evitavam curvas distâncias, nas conquistas, anseios e expectativas…, em
ou desvios; afinal, o padrão aprumado e repetido das múltiplos fragmentos destas biografias, reais e sensíveis,
moradias que lembram uma “aldeia dos pequeninos”, que preenchem esta “cultura de bairro”, conforme referiu
caiada num tempo social onde tudo e todos deveriam Elisete Andrade.
ocupar o “seu lugar”; afinal, as distâncias até ao centro de Um bairro, que é, afinal, um território de partilha
Carnide – percorridas a pé em companheirismos por entre de memórias e de representações, sentidos e significados,
azinhagas… tudo isso e muito mais que um primeiro experiências de vida ancoradas numa terra que assim, mas
instantâneo fotográfico captou…, revela-se múltiplo e só assim, se transforma em lugar. Em um lugar a que,
variado quando observado e escutado em maior intimidade teimosamente, ouvimos chamar... nosso bairro. Nosso,
e convívio físico. mas de quem?
Afinal, o desenho comum e unificador entre as Responder a algumas daquelas questões e lançar
ruas (que ainda hoje confundem os moradores mais as sementes para outras mais, foi o que aqui procurámos
antigos!) revela-se, no passo concreto, tão diferentemente amanhar a nosso tempo, modo e jeito. Um trabalho que
vivido, oferecendo uma paisagem vincadamente representa um primeiro caminhar na busca do(s) sentido(s)
humanizada – não existe um único portão igual! – porque a do habitar dessa tal diferença escutando, no bairro vivo, as
casa fixou o rosto e a experiência do humano, de cada memórias, os testemunhos do seu passado e anseios do
morador, no seu território. seu presente. Como tal, procurou-se um registo de
Dizem-nos: “Este bairro lembra-me um fado”. E linguagem o mais abrangente possível para envolver os RUA DO RIO CORGO, 2010
damos inteira razão. Porque não é só o hoje do bairro que moradores e alcançar um público leitor amplo.
ali está presente, não… Pressentimos vozes e gestos que
ecoam tempos de antanho que acordam a pergunta Bairro Padre Cruz – diálogo e confronto entre
fundamental: com que matéria se constrói um bairro? E, paisagens
afinal, onde mora a tal diferença deste bairro? No fado de
que casa, no rio de que rua? O Bairro Padre Cruz faz parte da freguesia de
Então, após aquela primeira estranheza, Carnide, já foi dito. E Carnide fica no limite noroeste do
confirmamos: este é um lugar habitado porque transmite a concelho de Lisboa, integra a Região de Lisboa e Vale do
intensa experiência de quem nele viveu, e vive. Mas, além Tejo e a Área Metropolitana de Lisboa. O Bairro localiza-se
disso, reflecte as condições que esse lugar foi impondo às na extrema norte da freguesia, na antiga Quinta da
suas gentes. É, por isso um lugar que carece de ser Penteeira ou Alto da Penteeira, que fazia fronteira entre os
conhecido. E interpretado. concelhos de Lisboa e Loures (e Odivelas, a partir de
É precisamente esse colectivo de memórias, que 1998). Actualmente, o Bairro Padre Cruz é um dos maiores
tem valor de património(2). Um património, mapas de bairros de realojamento municipal da Península Ibérica. No

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amplo território da freguesia (400 hectares) o Bairro ocupa qualidade das convivências – é, por isso, um território que
uma zona de 37,2 hectares onde residem 6 468 evoca experiências de vida comuns, representa modos de
habitantes (Censos, 2011). Um número que corresponde a vida. Como tal, o território do Bairro Padre Cruz tem sido um
quase 30% dos residentes na freguesia de Carnide (22 415 elemento importante na criação de fortes laços sociais
habitantes, Censos 2011) e mais de 1% da população entre os residentes, de património sensível e afectivo e que
residente no concelho de Lisboa. as memórias, os poemas, quadras e marchas que lhe são
A ocupação de qualquer território resulta sempre dedicados tão bem ilustram.
de processos vários de desenvolvimento social e De facto, o interesse em percorrer a biografia do
ambiental. E as transformações da paisagem – construída Bairro tem, necessariamente, que incluir as experiências e
ou “natural” – expõem a história da diferenciação dos condições de vida das várias gerações de moradores. Estes
lugares. testemunhos, representam aquilo a que chamámos de
O Bairro Padre Cruz foi um bairro criado de raiz, em “paisagens interiores”, e são um “valor em si”, um
1959-60, para acolher populações transferidas de outros património fundamental, que também compõe o tom da
bairros precários da cidade, alguns deles, também história e a(s) identidade(s) do Bairro Padre Cruz.
provisórios. Na sua origem foi um bairro de propriedade Concordamos: “Todo o território (…) que não tenha o
inteiramente municipal. Esta “vocação” original manteve- respeito pelos seus elementos patrimoniais não poderá
se ao longo de toda a sua história. Uma história com mais servir de base para um desenvolvimento local equilibrado e
de 50 anos. Durante este período, o crescimento, sustentável.” (Varine, H. (2012): 18). Como tal, foi nosso
transformação e ocupação do Bairro resultaram e serviram objectivo contribuir para que as populações residentes (e
sempre – até ao presente recente – de território de não residentes) ganhassem maior conhecimento sobre si
acolhimento, de solução estratégica para os desafios mais mesmas, sobre a sua história.
ou menos complexos gerados pelo crescimento e gestão Por tudo isso, mais do que identificar a sucessão
da cidade de Lisboa. Por isso, apesar da paisagem do dos acontecimentos (vd. síntese cronológica no final de
Bairro Padre Cruz, ainda hoje, sugerir uma ilha periférica, a cada capítulo), interessou-nos identificar os “ambientes
respectiva história é consequente e faz parte do contexto sociais”, os momentos mais intensos na transformação do
LOCALIZAÇÃO DE CARNIDE, da narrativa da cidade e, em alguns aspectos, do país. Bairro Padre Cruz. Neste processo foi fundamental a
MAPA DE FREGUESIAS DE LISBOA, 1987 (CML)
recolha de memórias, a escuta de várias vozes(5) –
Sobre a biografia do Bairro Padre Cruz – testemunho a moradores e ex-moradores, responsáveis locais, dirigentes
várias vozes associativos, funcionários técnicos, políticos, autarcas... E,
apesar de somarem mais de 100 testemunhos, ficou-nos a
Esta pesquisa, de carácter monográfico, não teve ingrata sensação de que muitos mais haveria que escutar.
a pretensão de reconstruir a história factual do Bairro Padre Por outro lado, também seria desejável que esta
Cruz(3) pois reconhece-se que não existirá apenas uma só pesquisa contribuísse para contextualizar aqueles
interpretação da respectiva história, nem o “bairro” é testemunhos expondo razões sociais que a razão individual
matéria concreta e palpável. Todavia, já se percebeu que o desconhece. Neste sentido, reafirmamos a necessidade e
bairro pode ser identificado pelo desenho da paisagem e o interesse em enquadrar os testemunhos individuais no
por um certa vivência e conteúdo social. Afinal, um bairro respectivo período identificado na biografia geral do Bairro.
representa, fundamentalmente, uma ideia que, ao longo A saber:
do tempo, vai sendo construída e fixada pela intensidade (Fase 0) Até 1958: No início era o campo
dos quotidianos partilhados e adquirindo consistência na Nesta fase prévia percorremos um pouco da ante-

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história do território e das fronteiras onde o Bairro Padre que atrás percorremos, cuja semelhança com uma aldeia
Cruz viria a ser instalado – a Quinta da Penteeira. portuguesa era evidente. O intencional (e regulador)
Procuraram-se as razões políticas que justificaram a afastamento geográfico, associado a outros factores,
aquisição de um terreno afastado relativamente ao centro acabaria por motivar forte coesão social entre a população
da cidade de Lisboa, a qual crescia aceleradamente residente, a qual ainda persiste como uma “âncora
tomando formas de moderna capital do Império. A identitária”. Importará então “retratar” quem foram estes
necessidade de mão-de-obra barata encontra nos primeiros moradores, estes artesãos-construtores do
migrantes rurais das décadas de 40-50 a população bairro, como se relacionaram e humanizaram o território,
disponível para as obras da capital, sendo a respectiva quem com eles interagiu, as relações de sociabilidade mais
Câmara Municipal a grande empregadora. O Bairro Padre significativas, a importância fundamental dos clubes e dos
Cruz resulta, por isso, das ambições maiores de um regime núcleos recreativos e as relações entre o bairro e a cidade.
político – o Estado Novo – onde a ordem e a regulação
sociais ordenavam o território – porque fazer cidade era (Fase 2) 1974 a 1990: A vivência local do(s) poder(es)
“arrumar” a sociedade. e cultura(s)
Subdivide-se em dois períodos:
(Fase 1) 1959 a 1974: Construtores da cidade, 1974 a 1980: Do silêncio à reivindicação da voz – do
artesãos do bairro morador ao cidadão
Subdivide-se em dois períodos: 1980 a 1990: A(s) cultura(s) de bairro(s) e o capital social
1959 a 1967: Do bairro anónimo ao bairro das comunitário
inaugurações Os meados da década de 70 trazem as grandes
1968 a 1974: Os artesãos do Bairro Padre Cruz: “o bairro transformações sociais da revolução de Abril. Tal como
éramos nós” sucedeu por todo o país, o Bairro Padre Cruz foi palco para
Numa primeira fase o Bairro ocupava apenas uma experimentação de novas expressões de liberdade e de
pequena área de antigas quintas e terrenos de cultivo novos poder(es). A paisagem humana vibra e agita-se; as
adquiridos, em 1958, pela Câmara Municipal de Lisboa. O relações de sociabilidade politizam-se e conhecem novos
processo de construção teve início no ano imediato, em contornos; surgem vários conflitos, pontos de tensão, RUA DO RIO CORGO, 2010
1959. A primeira geração de moradores era composta por fracturas nas relações sociais; os moradores procuram
ex-migrantes rurais (do Norte e Centro do país mas conquistar voz de cidadãos. A dimensão política e partidária
também uns quantos alentejanos…) que já habitavam a inscreve- no território, anima debates e confirma
cidade. Na sua grande maioria estavam alojados em outros contestações. O modelo original do edificado é readaptado
(anteriores) bairros provisórios que viriam a ser afectados às necessidades das famílias. Nos finais da década de 80
pela expansão da Lisboa dos anos 50-60 Daí a são colocadas as fundações para construção de uma
necessidade de transferir os respectivos agregados ampla e nova parcela e a paisagem do Bairro Padre Cruz
familiares para o novo provisório “Bairro das Casas (física e vivencial) transfigura-se irreversivelmente.
Desmontáveis da Quinta da Penteeira”, em 1960. Esse
primitivo bairro, apenas com 200 casas, é hoje inexistente (Fase 3) 1990 a 2000: Bairro(s) de contraste(s) – o
e correspondeu à zona original construída em fibrocimento. alvorecer do “bairro novo” e o anoitecer do “bairro
Por isso, ficou conhecido como “bairro de lusalite”. antigo”
Logo após, a partir de 1960-61, deu-se início à Previa-se o crescimento da Lisboa dos anos 90, as
edificação da zona de moradias em alvenaria (917 fogos), transformações impostas pela Expo de 94, a construção do

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eixo Norte-Sul e os planos P.I.M.P (Plano de Intervenção a um modelo de “Bairro Integrado” e contempla um
Médio Prazo) e, mais tarde, o P.E.R. (Plano Especial de calendário faseado a prolongar-se para além da dezena de
Realojamentos) viabilizam a sua concretização. Estes anos. Também por isso é o momento da mais brusca e
planos permitiram o programa camarário dos anos 80-90 violenta transformação nas paisagens – interiores e
para “erradicação das barracas” e os consequentes exteriores – constituindo singular oportunidade de estudo
realojamentos, massivos, das famílias com geografias sobre o valor social da escala e humana nos actuais modos
humanas diferentes (quer entre si, quer relativamente às de conceber, planear e construir a Cidade.
primeiras gerações de moradores) que trouxe novas
problemáticas sociais. O direito à memória – uma questão central num
Nasce uma nova zona no Bairro que ficaria ”bairro periférico”
conhecida como “bairro novo” por contraste com o “bairro Para além da sucessão das transformações e
antigo” (primeiras zonas de lusalite e de alvenaria). intervenções no espaço físico identificáveis no tempo e no
Apresenta um desenho e recorte do horizonte totalmente território, percebeu-se existir um espólio de vivências,
diferentes – prédios de blocos coloridos alinhados em memórias, cumplicidades, simbolismos e representações
quarteirões, largas avenidas e amplos espaços públicos. As sociais… que muito têm consolidado uma identidade de
tensões entre “os filhos do bairro” e as populações recém- território, uma certa “cultura de bairro”, conforme dizem. E,
instaladas estruturam as conflituosas sociabilidades esta, revelou-se uma referência fundante para outros
durante este período que envolveu, também, o trabalhos, pioneiros, que o Bairro tem desenvolvido. A
realojamento de famílias ciganas alojadas no sítio vizinho qualidade das relações de vizinhança, o associativismo, a
do Alto do Forno. Os anos 90 correspondem a um período participação comunitária… determinaram a qualidade da
especialmente crítico e muito acelerado na vida do Bairro malha de relações sociais que o Bairro foi gerando e longo
que se transforma, e “encerra”, uma “cidade dentro da dos anos dando consistência à ideia de “cultura de bairro”
cidade”. e, por isso, de uma certa “sustentabilidade social”.
Mas essa identidade original também possibilitou
(Fase 4) 2000 a 2012: A requalificação do Bairro acumular referências e amadurecer con-vivências que, ao
Padre Cruz: o futuro e a memória longo do tempo, se foi constituindo como outro valioso
O decurso da década de 2000 inclui vários capital. Um capital social comunitário, uma mais-valia
momentos decisivos e de grande impacto nas paisagens sobre a qual importará reflectir no contexto da
físicas e vivenciais do Bairro Padre Cruz. A resolução dos requalificação em curso.
problemas do Bairro – a integração das novas populações e Por consequência, assumimos particular atenção
a degradação da zona de alvenaria – exigiam urgente e às memórias dos primeiros anos da vida do Bairro por várias
eficaz intervenção camarária. As condições de vida dignas razões: o facto do “bairro antigo” ser, no presente, alvo das
para uma população envelhecida está fortemente intervenções de requalificação e, portanto, objecto de
comprometida. Mas é também outro período decisivo. transformações irreversíveis; o facto de encontrarmos
Após vários impasses políticos, é o momento em que o naquelas convivências a matriz de referência, a “âncora
Bairro pressiona a gestão da cidade a pensá-lo como um identitária” que permite compreender aquilo que o Bairro
“lugar em si mesmo” e o mês de Janeiro de 2012 marca o foi sendo, como é imaginado e representado, e como isso
início do processo de requalificação com a primeira fase de influiu (e influi) na relação com populações posteriormente
demolição das casas de alvenaria. Este plano de instaladas.
requalificação (sujeito a reformulações e impasses) propõe Porém, também desbravámos informação original

RUA DO RIO CORGO, 2010 15


sobre a história mais recente. E, aqui, a intenção pioneira bairros”… “Para os seus habitantes, Lisboa precisa de se
de reunir, escutar e fazer dialogar a voz e as razões entre transformar numa cidade de bairros, realçando o caráter
moradores das várias gerações e diferentes fases – existente, plantando as sementes do futuro. O bairro deve
procurando as proximidades e as divergências – talvez seja ser a unidade estruturante, no espaço e no tempo,
o maior contributo: o reconhecimento de que estas vozes, definidor do orgulho e do prazer da cidadania (…) O
plurais, todas elas fazem parte do património humano, cidadão deve gostar de viver e/ou trabalhar no seu bairro
afectivo e vivencial não só do Bairro Padre Cruz mas, (…) e os bairros devem ter uma escala humana, não
também, da história de Lisboa. Porque “o Bairro é o palco excedendo a dimensão espacial das cidades medievais.”
desta memória colectiva que se reflecte na memória da E chegámos ao último propósito. Desconstruam-
cidade.” (Nicolau, J. (2012): 39). se estigmas e ideias preconcebidas sobre realidades
São vozes que irrompem dos silêncios omissos ou sociais que, afinal, pouco se conhecem. O Bairro Padre
ainda hoje esquecidos e que são fundamentais porque Cruz não pode servir de cenário por onde desfilam
revelam as limitações da narrativa única, quantas vezes personagens “marginais” e de onde apenas se retiram ou
confundida com “verdade histórica”. E são fundamentais, noticiam histórias sobre “delinquências urbanas”. Porque a
também, porque resgatam o elementar direito à (sua) história do Bairro Padre Cruz completa e anima a narrativa
memória por parte das pessoas comuns, dos moradores e da cidade, multipliquem-se os ângulos de observação e
não moradores, actores locais… capacitados a intervir nos consolidemos uma outra consciência social – mais ampla
destinos das comunidades onde se inserem – porque a e, por isso, mais inclusiva nestes tempos agrestes que
memória, não esqueçamos, é um poder e, por (nos) exigem a verdadeira sensibilização humana na
conseguinte, um capital no campo social. Como tal, o construção e vivência dos territórios, seja à escala do
direito à memória, e o reconhecimento do seu valor de bairro, da cidade, do país ou do planeta.
narrativa, inscrevem-se como questões fulcrais da vida em Uma Cidade onde os lugares, os seus bairros…,
democracia. sejam construídos e vivenciados à escala da dignidade
Por tudo isto, reafirma-se a importância do vínculo humana em sério compromisso no respeito pelo ambiente
entre patrimónios locais, acção comunitária/participada e envolvente. Lembremos – se a casa fixa o rosto do humano
desenvolvimento local – só uma comunidade que dispõe de no seu território, os bairros fixam o rosto do humano na
um lugar para a memória, uma comunidade que pensa Cidade. Este, um projecto nosso.
sobre si mesma, é capaz de usar e rentabilizar os recursos
(humanos, materiais e imateriais…) a fim de promover
futuros, criar novas e melhores condições para um maior
número de pessoas, sejam vizinhos, sejam concidadãos.
“Sei que a cidade está perder os seus bairros e
isso é muito preocupante. Porque aqui eu nunca estava
sozinha, sentia-me sempre acompanhada e isso é que é o
maior desenvolvimento de uma cidade, acredito…”
(Olinda, moradora).
Curiosamente pertinente e actual este aviso num
contexto em que a política urbana deste início de século XXI
– a Carta Estratégica de Lisboa (2010-2014) – propõe uma
vocação humanista para Lisboa: a de ser “uma cidade de

16 RUA DO RIO LENA, 2010


Fase 0 tinha umas botas, e o meu pai ensinou-me como se abriam
ATÉ 1958: NO INÍCIO ERA O CAMPO os regos. Eu andava ali a pastar o gado e vi o bairro a
crescer. Tinha muita curiosidade…”(António José, filho do
“É importante perceber que não se trata só de preservar Arménio, rendeiro da Quinta da Penteeira, morador em
e estudar o edificado. É importante perceber que o Carnide)
território também guarda memórias e é património (…)
Nesta freguesia é ainda possível estudar o passado “Aquilo era tudo terra de lavoura, era do Castanheira de
através do estudo da génese do bairro – as azinhagas Moura. Aquilo era lavrado com bois… era cá uma remessa
são vestígios dessa memória… vestígios da malha de bois! Naquele tempo era um terreno muito grande, era
antiga, das divisões em quintas…” terreno de sequeiro, cultura de trigo.
Jorge Nicolau (ex-morador do Bairro) Conheci o Arménio. E o filho! O António José nasceu aqui
ao lado da minha casa, em Carnide. E quando eu tinha a
“Era o meu patrão, o senhor Arménio. Era ele quem oficina de serralharia, ele andava por aí a gatinhar… E
semeava isto aqui tudo. Era trigo, centeio e cevada e ainda aqui têm família. E o Cebola? Então não sei quem é o
alpista. Ele arrendava isto ao Castanheira de Moura. O Cebola! Ele trabalhou para ali para a cerâmica… aqui, a de
mercado foi uma vacaria onde o Castanheira de Moura Carnide. Porque havia outra fábrica de cerâmica, ali mais
punha os bois de trabalho. Depois, iam por estas encostas para o Lumiar. Era do Santos, ali para a Azinhaga dos
até ao Lumiar. Era tudo dele, até ao Lumiar… Tinha uma Lameiros. E havia lá um tanque que nós, em miúdos,
fábrica de azeites e farinhas lá no Paço do Lumiar. Dizem fazíamos de piscina. Eu aprendi lá a nadar com os da
que foi ele quem deu os terrenos para fazer casas para minha criação. Quando tiravam o barro… ficavam
pobres. Toda a vida ouvimos dizer que ele ou a viúva deram barreiras, e a gente aprendia a nadar. E até houve dois
o terreno à Câmara para fazer um bairro para os miúdos da nossa idade que ficaram lá…
pobres.”(Manuel Cebola (morador(1)) E havia a Rosa Ginja que também era cá de Carnide, e do
outro lado havia a azinhaga escura, as Hortenses que era
“Sou o filho do Arménio. Nós cultivávamos ali aqueles de uns africanos, de Angola… e a quinta do Serrado. E o
QUINTA DA PENTEEIRA, 1967 (AF-CML) terrenos… Era a Quinta da Penteeira. engenheiro Santana era o dono do terreno onde agora
Nós éramos rendeiros da Câmara de Lisboa. Sempre fizeram o condomínio da Quinta das Camareiras. Era de um
pagámos a renda à Câmara. Pagava-se uma vez por ano e engenheiro agrónomo… Nós chamávamos a “Quinta do
havia registos nuns cartõezinhos com furos… Paraíso”, era o nome. A Quinta da Mal Penteada era mais
Havia um regueirão que passava ali que chegava até chegada à Pontinha… Eu ia para os lados da Penteeira
Benfica. Perto da casa branca havia uma grande lagoa. porque ia aos pássaros. Quando veio o bairro e acabaram
Eram várias courelas e havia uma courela que pertencia à os pássaros e eu deixei de ir para lá…” (Rogério Cipriano,
cerâmica que, depois, nós também cultivávamos. Vinham vizinho do Arménio e do filho, José António, moradores em
pessoas do Norte, de Pombal, trabalhar aqui no Inverno Carnide)
porque eles tinham as culturas da Primavera. Faziam aqui

O
hortas, eram vaqueiros… trabalhavam nas quintas que ano de 1958 assinala a aquisição da Quinta da
havia por aqui… Chegámos a ir vender para o mercado do Pentieira/Alto da Pentieira – depois, Penteeira – por
Campo Grande, para o mercado abastecedor. Depois, o parte da Câmara Municipal de Lisboa (durante a
meu pai começou a cultivar os terrenos: trigo, aveia, transição da presidência de Álvaro Salvação Barreto para
cevada, milho nas baixas… e eu lá ia com o meu sachinho, António França Borges). A Câmara Municipal de Lisboa

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adquiriu esta Quinta (cuja área total deveria ser próxima Castanheira de Moura? A sua viúva?) foi, por diversas
dos 40 hectares) com o propósito de construir, em duas vezes, referida e defendida pelos moradores mais antigos.
fases, um bairro de realojamento – o “Bairro das Casas Disseram: “Foi o proprietário da Quinta que a
Desmontáveis da Quinta da Penteeira”. deixou à Câmara para serem feitas casas sociais.” (Júlio
A Quinta pertencia à viúva Elisa Augusta Soares Vaz, morador no Bairro); “E eu cá sempre ouvi dizer – era o
Castanheira de Moura e foi adquirida pelo preço de três que se contava por aqui – que estes terrenos tinham sido
milhões e quinhentos mil escudos (3.500.000$00(2)). No do Padre Cruz e foi o santo padre que os deu à Câmara para
documento ficou salvaguardado o direito à colheita fazer um bairro para os pobres. E, ao final de alguns anos,
daquele mesmo ano (não especificada, mas supomos que acho que 50, as casas ficavam para eles.” Maria da Graça
fosse de trigo). Conforme consta da escritura, o terreno era Pereira (moradora no Bairro).
composto por várias courelas ou prédios rústicos Houve inclusivamente quem afirmasse que os
maioritariamente pertença da freguesia de Carnide e terrenos haviam sido doados ao Padre Francisco da Cruz
alguns inscritos na freguesia do Lumiar. (patrono do Bairro, conforme homenagem póstuma) para
Nessa época apenas existiam duas edificações na Quinta que neles desenvolvesse a sua obra assistencialista em
da Penteeira: uma antiga vacaria (actual mercado), e uma favor dos mais carenciados.
velha casa de serventia aos trabalhos agrícolas onde fora Porém, estas referências – que a existência de
instalada a mercearia “casa branca” ainda em tempos escritura demonstra não terem qualquer fundamento – são
anteriores ao bairro. exemplares do modo como os primeiros moradores se
foram relacionando e apropriando deste território –
Após a leitura destas linhas já se compreendeu – recriando “estórias”, episódios da história e até
toda a paisagem traz memórias, todo o território tem uma construindo as suas lendas, mitos e heróis locais.
história. Até mesmo os territórios mais remotos e distantes Ora, estes “mitos” são tanto mais interessantes
terão uma história. Essa história desenha-se e lê-se na quanto percebemos que, no início, este terreno da Quinta
paisagem. Na paisagem física, na paisagem exterior. da Penteeira era um território ermo e despovoado de
Mas também existem as paisagens interiores. E as gentes. Era uma finisterra, uma terra de limites, semeada
QUINTA DA PENTEEIRA, 1949
paisagens interiores resultam dos modos como nos na periferia da também periférica freguesia Carnide, tal
(INSTITUTO GEOGRÁFICO CADASTRAL)
relacionamos com os territórios, quando transformamos como assinalámos. Era um amplo terreno cultivado de
um território em “lugar” e, depois, em “nosso lugar”.No trigo, isso sim, mas desabitado – “Dantes, não havia ali
momento em que faz parte dos nossos afectos, e das nada. Era tudo campo…”, repetiram frequentemente
nossas memórias – é vivenciado como uma “paisagem muitos dos primeiros moradores.
interior”. Mas por tantas vozes insistirem nesta informação
E mesmo que essas paisagens e memórias, esses (“aqui, não havia nada!”) acabámos por suspeitar que,
lugares “interiores” se confundam com o passar dos anos afinal, talvez pudéssemos encontrar algo. Alguma “coisa”
pelas vidas (afinal, o Arménio seria um rendeiro do que escapava à vista desarmada … mas que, afinal, podia
Castanheira de Moura ou da Câmara Municipal de Lisboa? justificar a amplidão da paisagem, dava-lhes nomes
Ou, afinal, terá sido de ambos em fases diferentes…?) são (Quinta da Mal-Penteada, Penteeira, Ribeiro dos Murtais,
sempre referências importantes para a história de qualquer Azinhaga das Bruxas…), distanciava as casas, despovoava
lugar. os terrenos, conhecia os riachos e as alagoas, desenhava
Por exemplo, a questão da doação do terreno à tímidos carreiros, escolhia os cultivos e plantava as
Câmara por um benemérito particular (o próprio oliveiras.

18
Esse “algo” está inscrito na paisagem e faz parte
da(s) história(s) – dos territórios, das cidades, dos países. E Já foi referido que o “Alto da Pentieira” – ou “Quinta
das pessoas que os habitam. Ora, foi isso que nos levou a da Pentieira” – onde viria a nascer o futuro Bairro Padre
querer saber o que era, afinal, este imenso “descampado” Cruz situava-se na coroa norte da periferia da cidade de
antes de ali ser semeado “o nosso bairro”. Lisboa, no extremo noroeste da freguesia de Carnide(4), a
Nesta primeira etapa do percurso entre tempos, qual integrara o Termo de Lisboa(5).
paisagens e memórias distantes é isso mesmo que Na origem da Quinta da Penteeira poderia ter
indagaremos: por que razões o bairro “nasceu” nesta tão estado uma outra. Em 1724 é referida a Quinta dos
distante e recôndita Quinta da Penteeira, onde nada havia? Bargados (também Bragados ou Bergados) cujo caseiro
seria Manoel de Oliveira e, em 1738, era o seu proprietário
Quinta da Pentieira ou Alto da Pentieira: o termo do Manuel de Souza (Pereira, J.B “Memórias de Carnide”).
Termo Ao que consta, foi posteriormente Manuel Gomes
Pinheiro (em 1752-55) que teria alterado o nome do
Quinta da Penteeira terreno para “Quinta da Penteeira”. Após outros
Foi em 1762 que encontrei a primeira refereencia proprietários, chegou à viúva de Castanheira de Moura, que
a esta quinta, onde, nesse anno, residia Manoel Simões a vendeu à Câmara Municipal de Lisboa. O último
Álvaro. Seria este o fabricante de pentes, que lhe deu o proprietário, Castanheira de Moura, era natural do norte do
nome? Torna-se fallar-se nella em 1782. país e, naquela altura, um abastado proprietário, ligado à
Há, porém, no aspecto venerando d’aquella indústria da panificação, em Lisboa(6).
residência campestre umas como rugas e cans de velhice, É dessa época o primeiro registo fotográfico que
que parecem dizer-me que ella vae muito alem do meado conhecemos desta Quinta: um vasto terreno de trigo e de
do século. Foi conhecida então por outro nome, por algum centeio, forros de pastagens, atravessados por estreitas
daquelles que mencionei e que hoje não se sabe que azinhagas ladeadas por algumas árvores de fruto,
quinta designavam. maioritariamente oliveiras. Ao fundo, o gado pastava
Em 1820 residia ali D. Luiza Goes. tranquilo – cavalos, bois e vacas, cabras e ovelhas
Em 1833, em terreno seu, por ficar bastante afastado da conviviam pacificamente entre quintas. Eram terrenos de
povoação estabelecia-se o cemitério dos coléricos, onde cultura fértil com um subsolo rico em linhas de água que as
foram sepultadas, quasi na sua totalidade, as victimas várias alagoas e charcos evidenciavam – “O terreno do
d’essa terrível e mortífera epidemia. bairro é muito fértil. É um terreno com muita água. Abria-se
Em 1855 apparace já o nome do actual possuidor. um buraco com metro e meio e aparecia água…”,
Nesse anno era padrinho d’um Duarte, filho do cazeiro da confirmaram.
quinta da Pentieira, Duarte de Souza Lobo, solteiro, Lugar ermo e despovoado, mas nem por isso vazio
morador na rua dos Anjos, 36. É este o actual proprietário de história. Muito antes pelo contrário. Toda esta ampla
desta quinta, onde reside a maior parte do anno, entregue paisagem foi cenário de povoamentos remotos e, com o
ao tratamento do seu esplendido aviário, notabilisismo auxílio da bússola da memória percorreremos, a passos
pelas espécies raras. largos, as antigas fronteiras desta Quinta, procurando
Também em 1863 era padrinho d’uma filha dos respostas para as questões que o presente nos coloca.
mesmos um irmão d’aquelle senhor, Augusto de Souza Sabemos que pelos séculos XVIII e XIX foi cenário
Lobo, notável professor do Curso Superior de Letras. para quintas centenárias das quais ainda restam vestígios,
(Pereira, J.B.: 80-81)(3) casas senhoriais ou edificações mais humildes de apoio ao

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cultivo. Um local outrora afamado e muito apreciado pelos “saloio” (herdeiro da tal designação árabe) era,
bons ares e beleza paisagística, convidando aristocratas, e precisamente, o agricultor do arrabalde que se dirigia à
depois abastados burgueses em refúgio do bulício da cidade para comerciar os produtos das suas hortas e
cidade. pomares. Para escoar este trânsito comercial, esta “rota
Porém, se já desaparecidas muitas dessas saloia”, desenvolveram-se vias de acesso que incluíam a
quintas, na toponímia da freguesia de Carnide ainda se passagem por Carnide. Pelo raiar da manhã ou findar das
preservam muitas dessas memórias – Quinta de São tardes, as carroças dos saloios percorriam os caminhos
Lourenço, de Santo António, da Luz, dos Azulejos, do Bom que lhes permitiam entrar (após passar na barreira
Nome, do Machado, da Marquesa de Fora, do Conde de fiscalizadora e pagar o chamado “imposto de consumo” (cf. SALOIOS EM FRENTE AO COLÉGIO MILITAR (sd AF-CML)
Carnide, Morgado, Mal penteada… (vizinha da Quinta da Espírito Santo: 55) ou sair da cidade, “uma vez que Carnide
Penteeira), … entre tantas outras. Aliás, todo o percurso era uma das referências para passagem e até de
entre as azinhagas que ligava a Quinta da Penteeira até paragem.”(8)
Carnide é (ainda hoje) rico em vestígios dessa presença
senhorial e, depois, aburguesada. Mas também esta Aproveitando esse natural declive a norte e
paisagem, herança dos séculos XVIII e XIX, não é fruto do fazendo fronteira com a Quinta, desenha-se a referida
acaso… Estrada da Circunvalação/Estrada Militar (fronteira
Vale, pois, recuar e relembrar que esta extensa territorial e fiscal desde 1895(9). Era a linha onde estava o
zona norte da cidade de Lisboa que incluía Carnide Posto dos Guardas-fiscais que dava passagem às entradas
correspondera a uma fértil região agrícola. Durante o ou saídas de Lisboa, e por onde comerciavam, também, os
período muçulmano (secs. XVIII-IX) foi designada por saloia tradicionais saloios.
(“çahroi” – habitante do campo, em árabe). Sabe-se que os De sublinhar que esse Posto Fiscal é hoje o
mouros terão habitado estes territórios e, depois, mais centenário e célebre quartel da Pontinha (atualmente do
terão vindo refugiados quando Lisboa foi tomada pelos Regimento de Engenharia nº 1) que, demarca a fronteira
exércitos cristãos de Afonso Henriques, a partir de 1147. noroeste da Quinta e tem um relevo muito especial entre as
O antigo local da Quinta da Penteeira debruçado memórias nacionais (10).
sobre um acentuado “antiquíssimo e formosíssimo vale” No curso da história – da cidade e do país – as ESTRADA DA CIRCUNVALAÇÃO, 1967 (AF-CML)
integrava o território onde “se encontram em grande tropas deste quartel tiveram várias intervenções decisivas:
abundância vestígios da residência que os árabes, por em 1967, nas cheias em Lisboa e auxílio das vítimas das
muito tempo, fizeram nestes sítios.” (Pereira, J. B.: 30-31) inundações na Paiã; após o terramoto de 1969, que
e que a antiga toponímia de uma outra quinta vizinha – a afectou o concelho de Lisboa; e, a mais recente e marcante
“Quinta do Mata-Mouros” – pode confirmar. – o facto de estar vivamente ligado ao processo da
Ao longo dos muitos anos toda esta ampla área – revolução do 25 de Abril, a que abriu portas. Foi a partir
que abrangia seis concelhos da Grande Lisboa (Lisboa, deste quartel que o Movimento das Forças Armadas (MFA)
Oeiras, Cascais, Loures, Sintra e Mafra) e respectivas foi comandado, deixando também memórias singulares em
freguesias de limite (no caso de Lisboa, as freguesias rurais alguns moradores do Bairro, conforme escutaremos
da Ameixoeira, Benfica, Carnide, Charneca Lumiar e adiante.
Olivais) – fazia parte do sistema abastecedor da capital (cf. Mas para além da presença deste quartel da
Martins, Jorge: 46) sendo considerada “Terra Saloia”, uma Pontinha, a fronteira norte da Quinta com o concelho de
identificação que perduraria até ao século XX (6). Durante o Loures (e, a partir de 1998, concelho de Odivelas) ficou
século XIX e ainda inícios do século XX mantém-se que o também conhecida por alguma “perigosidade”. Ali perto

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estava armazenado material bélico destinado à guerra que outra atenção) – de que apenas resta a toponímia da sua
Portugal teimava em manter nos territórios ultramarinos azinhaga – que terá sido casa de campo da família do
(1961-74). A propósito, o único morador com quem Marquês Sá da Bandeira, já no século XIX ( 1 1 ) .
conversámos e que conheceu o local antes de ser bairro, o Curiosamente e apesar da proximidade geográfica a “mui
senhor Manuel Cebola, relembra: nobre” freguesia do Lumiar é uma “vizinha distante”.
Mereceu poucas referências nas memórias dos
“Eu estava na Pontinha quando os paióis do exército foram moradores. Excepção para a fábrica de cerâmica que
lá colocados. Era tudo gente do Minho que veio para cá… “empregou alguns miúdos do bairro” e para a Quinta dos
QUINTA DA PENTEEIRA, 1967 (AF-CML) andava calçada com uns tarecos abertos atrás e lá Covões, cujos pomares tentavam as célebres e
andavam eles a carregar todo o dia… Lembro-me de os ver memoráveis chinchadas… Um passatempo tão bem
a trabalhar. Foi em 1946. Uma vez, houve uma grande lembrado mas que valeu gozos e sustos valentes conforme
explosão. Um pedaço dos destroços da granada foi ter na adiante escutaremos – “ai, as chinchadas! Que fruta boa
porta da cozinha económica, da sopa para os pobres de tinha a Quinta dos Covões! Era a melhor fruta, sem dúvida!
Carnide era a sopa do Sidónio… Eram sopas bem boas…” Mas tinha o guarda! E os tiros de sal!”

Por vizinhas, a oeste, a Quinta da Penteeira Finalmente, seguindo para sul saltamos o Ribeiro
conhecia apenas outras quintas de casario raro e disperso dos Murtais(12) e percorremos as velhinhas azinhagas
(Quinta da Malpenteada, Quinta da Torre do Fato), a fábrica (Azinhaga dos Cerejais, Azinhaga das Freiras, Estrada do
de cerâmica Dias Coelho (cf. doc. escritura, a Cerâmica de Poço do Chão, Travessa da Cova da Onça, Azinhaga das
Carnide), em funcionamento naquele tempo. Esta fábrica, Murtas…) que conduziam ao sítio velho de Carnide, do qual
juntamente com a fábrica de cerâmica do Lumiar, a Quinta da Penteeira distava perto de 2km e em cuja
empregou alguns moradores do Bairro – “eu andava por lá a freguesia sempre se inscreveu administrativamente. Mas a
cozer tijolo” – nalguns casos, muito jovens. E, conforme relação com o núcleo histórico da freguesia merece mais
adiante será relembrado, os desperdícios da fábrica viriam atenção por várias razões.
a ser reaproveitados, pelos moradores, na construção de O lugar de Carnide é o ponto original da paróquia e
QUINTA DA PENTEEIRA, 1967 (AF-CML) muros e muretes das respectivas casas. o coração da freguesia. Nunca é demais relembrar que o
lugar de Carnide era outro “sítio muito antigo” de
“Quando víamos o fumo da chaminé da fábrica do tijolo povoamentos remotos e originário de uma paróquia rural.
seguir para o lado esquerdo era sinal que vinha chuva e Pelo caminhar dos séculos, Carnide foi sendo lugar de
para o direito, vinha bom tempo. Era o que os mais antigos encontro entre culturas, credos, religiões… romanos,
diziam e batia certo” (José Martinho, morador) mouros, cristãos… (13)
Marco simbólico e histórico da freguesia, em 1463
Caminhando na direcção este vemos teve início a devoção a Nossa Senhora da Luz (com o
prolongarem-se as azinhagas (a azinhaga da Penteeira, a respectivo santuário e singular igreja) que “cristianizou”
azinhaga dos Lameiros, a azinhaga das Bruxas (“devia antigas celebrações. A romaria das colheitas de Setembro
chamar-se assim porque os ramos das árvores, ao perdura até hoje e é acompanhada pela afamada Feira da
escurecer, metiam medo…”) que, atravessando a vizinha Luz (com mais de 500 anos!). Associada a esta função de
Quinta das Camareiras, conduziam ao lugar do Lumiar – lugar do sagrado, o povoado de Carnide foi, durante largos
que era outra “freguesia do Termo”. Neste percurso séculos, território de ricas quintas, inicialmente, pertença
situava-se a Quinta da Torre do Fato (cuja história merece das ordens religiosas que justificaram a construção de

LOCALIZAÇÃO QUINTA DA PENTEEIRA, EM CARNIDE (CML) 21


vários conventos. as “vocações” dos lugares. Foi o que aconteceu com a
Porém já pelo século XIX, a partir do núcleo da Quinta da Penteeira quando chegamos ao tempo das
freguesia (hoje conhecido como “Centro Histórico” ou preocupações urbanistas da década de 40, do século XX,
“Carnide Velho”) evidenciaram-se contrastes entre a durante o regime do Estado Novo, que vigorou a partir de
persistente ruralidade e as exigências de um povoamento, 1933 sob a figura de António Oliveira Salazar(16).
mais urbano. E o núcleo de Carnide permaneceu, Durante o Estado Novo impôs-se um outro modo
longamente, como único território urbanizado na freguesia de pensar e de fazer cidade em que a função e distância ao
até surgir o Bairro Padre Cruz, o que fomentou fortes coração de Lisboa são, em grande parte, aferidores do valor
vínculos entre estes dois bairros.(14) do território. E, portanto, as tais características de AZINHAGAS EM REDOR DE CARNIDE, 1963 (AF-CML)
No início dos anos 60 – quando o Bairro Padre Cruz ruralidade (ares aprazíveis, terrenos férteis e disponíveis
foi “montado” – a freguesia de Carnide já era uma das para o cultivo, escasso povoamento, separados da malha
maiores freguesias da cidade em extensão urbana, antiguidade e historicidade …) passam a ter outros
(aproximadamente 400 hectares) mas com uma lenta valores (fundiário, comercial, social, simbólico…). Neste
evolução no crescimento populacional. A instalação do novo contexto sócio-político os terrenos da Quinta são
Bairro Padre Cruz alterou significativamente esta situação. considerados periféricos (geográfica e socialmente de
Em apenas uma década, quase duplicou o número de menor valor) em relação a um centro que, em contraste, é
residentes na freguesia (em 1961 eram 4 263; em 1971 muito valorizado. E esse centro será a baixa histórica e toda
registam-se 8 325; ibidem). a renovada zona de Lisboa (eixo da avenida da Liberdade, e
Durante este período os dois centros – o Carnide avenidas novas…) onde se concentram os serviços, o
Velho e o Bairro Padre Cruz – partilhariam várias principal comércio, os centro de decisão, a raiz histórica e
referências… o bilhete operário do elétrico 13, os trajectos simbólica da cidade e a partir da qual se desenvolvem os
diários pelas azinhagas, as aulas da professora na antiga horizontes de modernização da cidade…
escola primária (onde hoje está instalada a Junta de Este era um modo de pensar e fazer cidade que
Freguesia), os rebuçados da mercearia do Teixeira(15)… e seguia as modernas referências europeias e que o Plano de
tantos mais, adiante lembrados. Mas também as Desenvolvimento da Cidade (1938-48) confirmaria. Fácil
referências simbólicas e culturais, vividas e interiorizadas, será perceber, então, que a finisterra da Quinta Penteeira – PARAGEM DO ELÉCTRICO 13, CARNIDE, 1967 (AF-CML)
aquando dos casamentos e os baptizados celebrados na o tal território localizado no termo do Termo – está incluída,
Igreja de N. Senhora da Luz, as fotografias no Jardim da precisamente, nessa distante coroa periférica (e
Luz, as idas aos doces e barros na Feira da Luz,… que desvalorizada) do concelho de Lisboa
perduram na memória do presente e adiante melhor
escutaremos. “Quando aqui cheguei… ai, menina!, foi uma grande
desilusão…! Eu vivia em Lisboa, ali perto das cortes, tinha
Se demorámos a percorrer as fronteiras da Quinta os meus lugares das compras, eu ia ao Chiado… e quando
da Penteeira foi para justificar, precisamente, a raiz vim ver o bairro e passei do campo de futebol do Benfica
histórica e situar o ambiente do lugar onde irá ser montado para lá, ai… Até ali tudo bem, porque eu já conhecia. Mas,
o Bairro Padre Cruz. E, com isso, perceber como o valor depois não havia carros, só o eléctrico e vínhamos aquele
histórico e conteúdo social desta paisagem foram alterados pedaço todo a pé. Ai, senti que estava a chegar ao fim do
com a mudança dos contextos político-sociais. Mudados mundo! Foi uma tristeza e confusão vir para aqui. Nem
os tempos, mudados os costumes. E também as imagina…” (Teresa Pedra, moradora)
orientações, as preocupações políticas e por conseguinte

22 SANTUÁRIO N. SENHORA DA LUZ, 1960 (AF-CML)


Finalmente chegámos ao que mais interessa: habitação existia e persistia como “o grande problema da
apesar de estar localizada administrativamente dentro da cidade.” (cf. Actas CML de 1959 e 1960). É justamente aí
cidade, a Quinta da Penteeira era um lugar exterior e que nos situaremos para abrir o ponto seguinte.
distante aos usos e funcionalidades da cidade de Lisboa,
compreendeu-se. Lisboa, uma capital à escala do Império
Por isso, retomando a questão inicial – tantas
vezes relembrada pelos moradores! – “aquilo era só “Lisboa é uma cidade em obra, desenvolvendo-se e
campo, no início não havia lá nada…” convém entender alindando-se dia-a-dia sem interrupção. Novas ruas,
que esse terreno, outrora povoado por antiquíssimas e novos jardins, novos prédios multiplicam-se por toda a
valiosas referências históricas, passou a ser um território parte. Lisboa renova-se (…) Lisboa é cada vez mais
geográfica e socialmente desvalorizado à luz dos novos Lisboa, apta a cumprir a sua vocação universal.” (in,
critérios urbanistas do Estado Novo. Lisboa de Hoje e de Amanhã, documentário de António
Além disso, não esqueçamos, os documentos Lopes Ribeiro, CML, 1948)
antigos referiram os terrenos da Quinta da Penteeira para
outros usos que também os penalizava: cemitério Mas a história da cidade também não é
improvisado para os vitimados da peste de Lisboa de 1833; independente da história do país. E a história recente do
estava circunscrito e limitado pela Estrada Militar da país contou-nos que, a partir da década de 1930, as zonas
Circunvalação e pela presença dos quartéis do Regimento rurais e interiores evidenciavam o subdesenvolvimento que
de Engenharia 1, na Pontinha; localizava-se perto dos foi conduzindo ao desemprego e ruína de muitos
paióis do exército – quer do antigo posto fiscal do Vale do trabalhadores rurais.
Forno, quer da Ameixoeira – onde estava guardado material Os ventos da “modernidade” impeliam à
bélico. apressada transição de um país essencialmente rural para
Conforme fomos percebendo, a história deste um país industrial sem que houvesse tempo para reajustar
bairro não é independente da história da freguesia, nem tão a mão-de-obra e o aparelho produtivo. (vd. bibliografia
pouco da história da cidade. Aliás, está-lhes Rosas, Fernando; Amaral, Luciano). Por conseguinte, as
LARGO DAS PIMENTEIRAS, ANTIGA ESCOLA PRIMÁRIA, umbilicalmente ligada. Mas também não é independente condições económico-sociais vividas em Portugal durante
CARNIDE, 1963 (AF-CML
dos percursos de vida dos seus (futuros) moradores. os anos 40 (com agravamento nas duas décadas
Veremos que o critério de selecção – “o onde?” – não pode seguintes) empurraram os trabalhadores rurais
ser desligado da intenção do plano – “porquê?” – nem dos empobrecidos para os maiores centros urbanos – Lisboa e
destinatários – “para quem?” – estava decidido atribuir Porto. Ou para as rotas da emigração (primeiro, américas e
este terreno. depois, europas). Grande parte da primeira geração de
A história – e a paisagem – da antiga Quinta da moradores do Bairro Padre Cruz confirmaria isto mesmo –
Penteeira vai prolongar-se e transformar-se, mas sempre “A emigração era para a cidade. Ganhava-se melhor”.
num diálogo tenso e intenso com a cidade – seja pelos
recortes e limites geográficos, pelo desenho de aldeia que “Era quase tudo gente da província, que tinha vindo para a
ali veremos crescer, seja pelo perfil social das populações cidade à procura de uma vida melhor”. “Este bairro tinha
que ali irão residir. Por isso, defendemos que tais gente de muitas regiões do país – Beira Alta, Trás-os-
transformações jamais podem ser entendidas à margem Montes, Minho… e com as misérias das suas terras, com
do contexto da história recente, do desenvolvimento e os empregos que conseguiram aqui, embora com
expansão da cidade de Lisboa onde o problema da vencimentos ignóbeis, conseguiam ter alguma maior

FEIRA DA LUZ, VENDA DE LOIÇAS DE BAIRRO, 1963 23


(AF-CML
qualidade do que nas suas terras.” (Manuel João, Lisboa”) que foi definida uma estrutura viária, se
morador). diferenciaram os espaços, definiram hierarquias de
prestígio e de rentabilidade (centro/periferias; zonas
Em alternativa às dificuldades do mundo rural, qualificadas/desqualificadas; avenidas ricas/bairros
estes migrantes do campo chegavam, foram chegando à pobres) determinadas por um “capitalismo fundiário em
cidade atraídos por outras oportunidades de emprego, as que Lisboa, muito mais do que capital do Império, passaria
quais eram possibilitadas pelas grandiosas obras da cidade depois a impor um “império da capital”. (Ferreira, Matias:
de Lisboa. “Constrói-se com frenesim. Não há desemprego 325-26).
na construção civil.” (in, Lisboa de Hoje e de Amanhã, Ano após ano, esta “monumentalizada” Lisboa por
documentário de António Lopes Ribeiro, CML, 1948) onde passavam “rios de ouro” (cf. Actas da Câmara de
Recordemos que no âmbito das políticas Lisboa, 1960) – crescia apoiada por recomendações,
económicas dos anos 30, o Estado Novo assentou o visões e estudos de urbanistas estrangeiros e os
progresso do país – a “modernização” – num enorme contributos (por vezes, críticos) de uma nova geração de
investimento em obras públicas. Nesse processo, a cidade arquitectos portugueses. A Lisboa do meio século XX era
de Lisboa foi conquistando um centralismo privilegiado. uma cidade que engrandecia e conquistava outros volumes
Aqui concentravam-se atenções e esforços na e (des)proporções. As construções da década de 40 – de
modernização da respectiva imagem não só desejada onde se destacam as gares marítima e fluvial, o aeroporto e
como capital europeia mas, também, como “Capital do as suas avenidas, a autoestrada para o Estoril e o viaduto, o
Império”, de vocação universal, que se pretendia manter e estádio nacional, a fonte luminosa da Alameda, as
consolidar a todo o custo (cf. Actas da CML, 1959 e avenidas António Augusto de Aguiar e Sidónio Pais… –
bibliografia). evidenciam o desejo de transformar Lisboa numa grandiosa
Para além disso, o facto de Duarte Pacheco e cosmopolita cidade que a Exposição Histórica do Mundo
acumular os cargos de ministro das Obras Públicas (1932- Português já ostentara em 1940 (vd. França, J.A. (2005):
36; 1938-1943) e de presidente da Câmara Municipal de 93-108). E esta ostentação era motivo de grande “orgulho
Lisboa (1938-1943), foi outro aspecto impulsionador nacional” atendendo a que “lá fora”, a Europa, estava a
desse centralismo de Lisboa. E os objectivos para o viver as enormes aflições da II Grande Guerra (1939-45). PLANO DIRECTOR MUNICIPAL, 1938-48 (CML)
alcançar tomaram peso de leis (Dec-lei 28 197, 1 de Julho Os edifícios da Cidade Universitária também o
de 1938 que possibilitava a determinação municipal do demonstram e, em particular, o Hospital de Santa Maria
“uso do solo” e a possibilidade da sua expropriação) (iniciado em 1940 e só concluído em 1953 e que obrigou à
A reformulação do Plano Director de Lisboa de transferência dos bairros provisórios ali instalados)
1945-48 (que inclui o contributo de urbanistas franceses e projectavam, no desenho urbano, a força de um poder do
as recomendações da Carta de Atenas(17) estabelecia, não qual “o futuro se orgulharia” e os “europeus respeitariam”,
só, uma nova concepção de cidade (organizada, aberta e acreditava-se (cf. Actas da Câmara Municipal de Lisboa,
arejada…; construção em altura, amplos espaços verdes e 1959).
arruamentos bem definidos…), como também estabelecia Em resultado deste grandioso investimento
uma diferenciação funcional para a cidade (zonas de compreende-se que o volume (e o tal “frenesim”) das obras
comércio, habitação, indústria…) e com isso implicava na capital atraía – e porque também dela necessitava! – a
novos zonamentos (e valorações) sociais com uma mão-de-obra espoliada dos trabalhos rurais e agrícolas.
evidente dependência do centro da cidade, conforme dito. Uma mão-de-obra, vulnerável e iletrada, com grandes
Foi também a partir daquele núcleo (“o coração de dificuldades em reconverter as capacitações e experiências

24
do mundo rural em salários adequados à sua empobrecida “(…) em que se englobavam antigos
sobrevivência, em contexto urbano. trabalhadores rurais das quintas, população imigrada de
Todavia, encontrado o trabalho que garantia as zonas rurais do país ou vinda do centro da cidade onde
modestas sobrevivências, impunha-se o problema do viviam em barracas (…) População de fracos recursos
alojamento a custos compatíveis com a manutenção do económicos com dificuldades estruturais de acesso ao
baixo nível dos salários. (cf. Actas da CML, 1960). Por isso, mercado habitacional, o que a condena a viver em
só foi possível encontrar essa “oferta” nos terrenos de baixo condições bastante precárias.” (CML (2010): 17).
valor social. Em grande parte, nos terrenos localizados nas Foi este contexto político e social que, em 1959,
CONSTRUÇÃO DO HOSPITAL DE SANTA MARIA,
1940-45 (AF-CML) tais zonas periféricas. Por isso a coroa de Lisboa surge justificou as decisões camarárias que estiveram na origem
como “solução” para acolher estes migrantes. do Bairro das Casas Desmontáveis na Quinta da Penteeira,
Será ali, em terras distantes onde “nada havia”; futuro Bairro Padre Cruz.
ali, nos tais arrabaldes desvalorizados que viriam a crescer Reafirma-se a ideia de que a origem e história do
e proliferar as iniciativas espontâneas por parte das Bairro fazem parte integrante da história da cidade – e do
populações carentes e aflitas, multiplicando os “bairros de país! – revelando, ao longo do tempo, expressões de
lata”. Na cintura externa de Lisboa àquela época – Olivais, poderes sociais (económicos, políticos, ideológicos…)
Marvila, Benfica, S. Domingos de Benfica, Carnide e Lumiar desigualmente inscritos nos territórios… pois “assim o
– cresceram os núcleos abarracados “em condições piores exigia o crescimento natural da cidade” (Lisboa de Hoje e
que as das “ilhas” ou “pátios oitocentistas, aliás não de Amanhã, documentário de António Lopes Ribeiro, CML,
desaparecidos nas cidades sucessivas.” (vd. França, J.-A. 1948; destaque nosso).
(1995): 98-99). “Numa apreciação resumida da política
Quando chegamos aos anos 40-50, do século XX, habitacional, até meados dos ano 60, podemos dizer que
milhares de famílias concentraram-se em zonas-limite, ela visou essencialmente objectivos políticos e ideológicos
socialmente desvalorizadas, “vivendo em barracas (normalização social e familiar, afirmação da capacidade
miseráveis, e na pior promiscuidade (…)”(cf. Actas da CML realizadora do Regime e do seu providencialismo social) e
(1959): 18). E às quais se somavam as populações fabris, só muito timidamente (…) se esboçaram acções no
AZINHAGA DAS MURTAS, CARNIDE, 1940 (AF-CML) já albergadas nos empobrecidos bairros operários (ou em sentido de melhorar as condições de reprodução da força
abarracamentos próximos) espalhados pelo miolo da de trabalho.” (Ferreira, A.F., 1988: 56). No ponto seguinte
cidade. Estes núcleos, desprovidos das condições mínimas é isto mesmo que iremos comprovar pela voz de quem
de habitabilidade, persistiam ainda durante a década de 60 decidia.
como o problema da cidade que urgia resolver – porque
perigavam a saúde pública, “envergonhavam” a cidade do … e a escala das “aldeias de folhas de lusalite”
regime e embaciavam o esplendor da tal modernidade. (Cf.
Actas da CML, 1959: 18). “Sabe-se como a falta de habitação condigna degrada o
Um estudo da CML de 1960 refere a situação de homem, afectando-lhe a saúde física e moral, e faz
43 470 pessoas a residir em 10 918 barracas (cf. Actas da progressivamente perder o sentido de dignidade que
CML, 1960). Embora reconhecendo que Carnide não importa preservar-lhe, em ordem aos seus altos
tenha sido das zonas da Grande Lisboa onde esses núcleos destinos.(…) tem a Câmara, como primeira entidade
mais se fixaram (quando comparada as vizinhas Pontinha, responsável pelo alojamento da população da Cidade,
Buraca e Amadora, por exemplo) não deixou de ser feito tudo quanto podia e lhe cumpria fazer para
significativa a presença de uma população muito enfrentar o problema?” (Actas CML de 1960).

AZINHAGA DAS MURTAS, CARNIDE, 1940 (AF-CML) 25


Compreendeu-se que o problema da habitação bairros municipais, designadamente, do futuro Bairro
era agravado dia-a-dia e impunha prioridades para os dias Padre Cruz.
de ontem (Cf. Actas CML de 1959 e 1960). Porém, Do ponto vista da ordem social, a instalação
repetimos o tom retórico da questão: “tem a Câmara (…) precária destes migrantes rurais chocava com o movimento
feito tudo quanto podia e lhe cumpria fazer para enfrentar o das novas ideias, com o ambicionado aprumo das pedras
problema?” da magnífica “cidade do Império”. Mas, por outro lado, do
No seguimento do que se passava na Europa, ponto de vista socioeconómico, esse mesmo movimento
designadamente no Reino Unido, as preocupações com as foi percebido e aproveitado como produto rentável (pelo
condições de habitabilidade das populações mais baixo custo/salário da respectiva mão-de-obra – os tais
vulneráveis tiveram origem nas preocupações com a saúde salários ignóbeis (na adjectivação de Manuel João) para
pública(18). Desde 1917-18 já haviam surgido os primeiros construir as grandiosas obras públicas da capital – “O estilo
projectos promovidos pelo Estado português para bairros monumental de Lisboa que hoje já não envergonha
de “casas económicas” (Arco do Cego, Ajuda e Boa-Hora) ninguém” (cf. Actas CML de 1960).
que logo depois ficariam suspensos(19). Só em 1928 é que Foi, pois, para “resolver” esta pressão entre a
o Governo da Ditadura Militar (futuro regime do Estado gravosa falta de habitações na cidade, as péssimas
Novo) readaptou aquele primeiro projecto. condições em que as “famílias de fracos recursos” viviam, e
No entanto, também não conseguiu resolver o manter os baixos custos/baixos salários da mão-de-obra,
problema das classes de menores recursos nem dos que surgiram, durante a década de 40 a prolongar-se pelos
grupos mais vulnerabilizados (operários, migrantes finais de 50, os “bairros provisórios” de iniciativa municipal.
rurais,…) atendendo ao reduzido número de fogos Com ligeiras variantes, os bairros da Quinta
disponíveis e respectivos custos finais. Esta foi outra Calçada, Furnas e Boavista, instalaram-se nas extremas da
resposta pública que, não só tardou, como nunca cidade, nas tais finisterras. Eram como aldeias
questionou os motivos económicos e sociais que estrategicamente “provisórias”, higienicamente situadas
produziam e continuadamente reproduziam as penosas nas periferias da capital, construídas com materiais frágeis,
fragilidades sociais destas largas franjas de população. pobres e desapropriados (folhas de fibrocimento prensadas
O posterior programa das casas económicas de – o lusalite) mas ainda assim de dispendiosa manutenção, BAIRRO DA QUINTA DA CALÇADA, 1940 (AF-CML)
1933 tentou consolidar uma outra linha de intervenção do compostas por habitações unifamiliares de piso térreo,
Estado na promoção da “habitação social”. Fazia uma pequenas-minúsculas habitações (sem portas no interior),
síntese das propostas anteriores e avançava critérios de “compensadas” por quintais e logradouros.
maior rigor – a quantificação e a classificação dos A coerência das ruas, rígidas apertadas e traçadas
segmentos sociais da população-alvo foi uma delas. a direito, destinavam-se aos peões e as convivências
Reconheceu uma população socialmente vulnerabilizada – ocorriam em lugares pré-estabelecidos e de fácil vigilância:
“um conjunto anónimo” – na qual o regime fixou a capela, centro social, escola e lavadouro, creche e jardim-
identidade, a fatalidade e o estigma: “as classes pobres”. A de-infância. Bairros que eram espaços de disciplina urbana
partir daí identificaram-se as casas para as “famílias – de modos de estar e de ser – que convinham ao regime:
pobres”; as casas de renda económica; e as casas de “cada um no seu lugar”.
rendas limitadas, fruto de novos compromissos entre a
iniciativa privada e os poderes públicos. “(…) Estes bairros são verdadeiras escolas para aprender a
Curiosamente, encontram-se aqui vários pontos morar, incitam nos seus habitantes o gosto pela casa
de tensão que contextualizam o papel estratégico destes própria com o seu quintal privativo, logradouro e serviços

26 BAIRRO DA QUINTA DA CALÇADA, 1940 (AF-CML)


sociais organizados. As crianças ali nascidas não vão da CML relativo ao ano de 1959 (pp. 40-41) é outro
conhecer os horrores dos bairros de lata. Têm a sua creche, documento da máxima importância pelos esclarecimentos
o seu centro social, a sua igreja, a sua escola (…)” (in, que permite às questões que colocámos(21):
Lisboa de Hoje e de Amanhã, documentário de António
Lopes Ribeiro, CML, 1948). “Principais obras executadas.(…) Casas para as classes
economicamente débeis:(…)
Procurava-se, isso sim, gerir as condições – onde e b) Construções de carácter provisório:
como – essa pobreza podia e devia viver. Com a “Tendo-se tornado necessário transferir as famílias
“vantagem” de que, nestes “bairros sociais” se higienizava que habitam no Bairro de Casas Desmontáveis da Quinta
a sociedade, organizava a cidade e civilizavam os “fatal e da Calçada, atingido pelas obras da Cidade Universitária,
naturalmente” pobres. O mais urgente “era «minorar» principiou em 1959 a construção do Bairro de Carnide, em
quanto possível os efeitos do por demais evidente terrenos municipais da Quinta da Penteeira, o qual deverá
«urbanismo» de Lisboa – parecia não restar tempo para… ir servir igualmente para o realojamento de outras famílias de
às raízes de tal fenómeno, questioná-lo, equacioná-lo.” fracos recursos, que residam em várias zonas da Cidade
(Rodrigues, Fernando (1986): 222). abrangidas pelo desenvolvimento dos novos planos de
Por isso, o problema da habitação mantinha-se e urbanização.
avolumava-se. O Gabinete Técnico de Habitação da Foi adjudicado em primeiro lugar uma empreitada
CML(20), criado em 1959 (Dec-Lei 42 454 de 18 de Agosto) de construção de casas desmontáveis, com
surge, precisamente, para dar resposta (tardia) ao aproveitamento de materiais já existentes, constituídas por
problema da habitação. Estabelece um “vasto plano de uma estrutura resistente de madeira, com revestimento de
acção social” com orientações já muito diferentes – os fibrocimento do lado exterior, e de madeira prensada do
Olivais e, depois Chelas, são disso testemunho (vd. Nunes, lado exterior [parece-nos engano de transcrição, pois esta
Silva (2007). madeira seria do lado interior cf. testemunham os
moradores e verificámos nos documentos]. Nestas casas
O Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da foram introduzidas algumas melhorias em relação às
Penteeira – uma polémica origem primitivas casas desmontáveis, de modo a melhorar as
suas condições de habitabilidade.
Longe de ser pacífica, a decisão de instalar o Seguidamente estudou-se um tipo de construção
“Bairro de Carnide em terrenos municipais da Quinta da de alvenaria, de um único piso, com dimensões reduzidas
Penteeira” faz convergir, na sala das reuniões camarárias, procurando-se melhores condições de conforto e
quatro aspectos polémicos que merecem atenção: habitabilidade, com futura diminuição das despesas de
- a localização geográfica do bairro; conservação, sempre elevadas nas casas desmontáveis.
- a escolha do material para a construção das casas; Trata-se de uma construção de tijolo, de características
- o carácter definitivo ou provisório do bairro a construir; ligeiras dada a conveniência de se adoptarem soluções
- a população alvo do realojamento. transitórias, visto a urbanização estudada para a zona em
De acordo com a classificação do regime, as casas causa não poder ser definitiva. (…)
destinadas aos agregados transferidos da Quinta da Prevê-se finalmente, em futuras fases, a
Penteeira não deixam margem para dúvidas cf. revela a construção de casas, também de tijolo, mas com dois
fronte do documento: “Bairro para as classes pobres”. As pisos, e portanto com um aspecto arquitectónico um pouco
informações contidas no Relatório de Gerência Municipal mais evoluído e agradável e ao mesmo tempo mais

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económicas. As dimensões dos seus compartimentos (…) estão à margem das realidades sociais. (…) É que o
são um pouco reduzidas, de acordo com as menores passado está farto de nos ensinar que o provisório, em
exigências de espaço para mobiliário e utensílio dos seus Portugal, quase sempre se tem tornado definitivo.”
futuros moradores, mas estão dentro dos limites razoáveis
de habitabilidade. Em contrapartida essa redução permitirá E mais referiu o vereador, lembrando as
menores custos de construção e portanto rendas mais degradadas situações da Quinta da Calçada, Boavista e
baratas como se torna indispensável. “ [sublinhados Furnas: “Além de todas estas poderosas razões, não será já
nossos]. suficientemente lastimável encontrarem os estrangeiros
que demandam a Capital, pela linha Oeste, uma
Porque avançam elementos fundamentais acerca assolapada e denegrida aldeia de folhas de lusalite,
da origem do bairro e que, afinal, se desconheciam, construída a título provisório há mais de 20 anos?”
confrontaremos esta transcrição com pareceres explícitos E mais ficou dito: “As casas desmontáveis, tendo
nas Actas das Reuniões da Câmara de Lisboa para o ano de por paredes-mestras o fibrocimento, não oferecem
1959 (com data de publicação em 1961). garantias de isolamento, de conforto ou mesmo de
O primeiro, a fundamentada contestação por parte durabilidade, e nem sequer se justificam como medida de
de dois vereadores (Manuel Vicente Moreira e Baêta poupança, porque nada poupam ao erário municipal e
Henriques, ambos formados em Medicina e com trabalhos poderão (…), certamente, contribuir, um dia, para o
na área de Saúde Pública) quanto a algumas medidas desprestígio de uma época de grandiosa administração
defendidas pela vereação da Câmara. A saber: o uso do camarária. Poder-se-ia admitir a utilização desse material
fibrocimento (vulgo, lusalite) para a construção das nas divisórias interiores das habitações, na rede de
paredes exteriores das casas; a oposição à multiplicação esgotos, na canalização de água ou na construção de
dos “bairros provisórios” quando o muito avisado e já capoeiras, e mesmo na cobertura das casas; mas no
experiente conhecimento do problema exigia um levantamento das paredes exteriores de edificação
investimento em bairros com outro tipo de materiais de habitacionais nada há que tal justifique.”
construção; a questão das acessibilidades e distâncias Mas justificou. E a proposta inicial acabou por ser
entre locais de trabalho e de emprego consequente da aprovada com a rejeição por parte daqueles dois
transferência dos realojamentos para bairros fora de Lisboa vereadores – Manuel Vicente Moreira e Baêta Henriques.
quando os seus moradores exercem profissão na capital e Outro dos aspectos que mereceu particular
são, nas sua maioria, funcionários da própria Câmara atenção – e que fundamenta o que atrás ficou escrito –
Municipal. prende-se com a localização destas “aldeias de folhas de
Pela sua particular pertinência é importante reter lusalite”. Mantém-se a posição crítica dos mesmos
as palavras do vereador Baêta Henriques: “(…) a título vereadores sobre as acessibilidades destas populações
algum é de aconselhar tal construção, isto porque as aos respectivos locais de trabalho (na larga maioria, as tais
condições de salubridade que as mesmas proporcionam obras públicas de expansão da cidade) (Actas CML, 1959).
aos seus moradores, ou seja o seu microclima Todavia, sobre esta matéria, a argumentação apresentada
habitacional, não podem ser aceitáveis em qualquer pelo vereador Saphera Costa é esclarecedora na
época, e muito menos quando já se ultrapassou os meados discriminação: “os bairros económicos estão
do século XX (…) Construírem-se residências, inestéticas, completamente desactualizados dentro da Cidade. (…) É
anti-higiénicas e com carácter provisório, poderia alguém muito provável que posteriormente o material tenha
pensar erroneamente que os mentores de tal orientação melhorado, mas a verdade é que não se deverá encher a

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Capital de bairros paupérrimos, (…) a melhor solução será até que as famílias conseguissem melhores condições
o Governo determinar que só possam construir-se fora da económicas. Argumento que, na mesma ordem de ideias,
área da Cidade. O contrário será estar a fechar os olhos à justificava o apertadíssimo controlo dos custos e dos
realidade.” investimentos. No entanto, sabemos tratar-se de uma falsa
E termina a sessão de Câmara com a aprovação possibilidade A (i)mobilidade social tendia a fixar,
da proposta da construção do novo Bairro de Casas definitivamente, as gerações destes moradores
Desmontáveis, em Carnide, no mesmo material de lusalite “provisórios”(22) e que a idade dos actuais residentes
que havia sido tão contestado pois “apesar de todas as comprova.
críticas que lhe possam ser feitas, sempre oferece a uma Acredita-se, contudo, que as previsões acerca do
centenas de famílias a desalojar em condições de elevado número de famílias/indivíduos a realojar, em
habitabilidade que em nada são inferiores às das barracas particular, neste bairro da Quinta da Penteeira, tenha
que ocupam.” (Actas CML, 1959:26). justificado um planeamento mais atento por parte da
E assim se apazigua a consciência política: as edilidade camarária e a organização mais cuidadosa dos
novas habitações não serão, “em nada”, inferiores às das espaços e edifícios. De facto, terá havido uma relativa
“barracas”. Com a vantagem, para o regime, que através melhoria das condições de habitabilidade dos fogos e da
desta oferta libertam e “limpam” áreas expectantes da diversidade na oferta dos equipamentos sociais
cidade sem nunca questionar as condições sociais que (lavadouros, escola, igreja, posto médico, centro cívico
fazem existir e reproduzir tais “bairros paupérrimos” que com biblioteca e cinema …).
perigavam a saúde pública da “cidade civilizada”. Mas este planeamento representa, também, uma
Algumas outras notas interessantes merecem estratégia preventiva. Atendendo ao quantitativo de
atenção. O facto de o primitivo bairro de lusalite e, depois, a agregados a transferir, haveria que garantir a
zona de alvenaria, fazerem parte de um só e mesmo adesão/controlo da população ao projecto social do bairro
projecto “provisório” e não de projectos diferentes, e a respectiva fixação e acomodação ao local.
conforme é ideia partilhada por alguns dos actuais A concluir outra nota. Afinal, a prioridade que
moradores. Percebeu-se ainda que a substituição do justificou a construção destes bairros não foi a
material de construção em lusalite por construção em preocupação ou o benefício dos trabalhadores da CML.
tijolo/alvenaria parece não ter resultado de mudança de Esta questão nunca surge directamente colocada nas
estratégia de planeamento – de provisório para definitivo. sessões de Câmara. O objectivo prioritário e sempre
Os argumentos que agora recolhemos, por parte referido foi o de desimpedir as áreas da cidade abrangidas
daqueles decisores, confirmam que essa alteração é pelas novas obras de expansão da cidade, conforme
consequente da anterior experiência dos “mais elevados” transcrito atrás. Neste caso, os terrenos da Quinta da
custos de manutenção e rápida degradação do material de Calçada seriam necessários para a construção do Hospital
lusalite (Quinta da Calçada, Furnas e Boavista, por de Santa Maria/Cidade Universitária, e o Bairro da Boavista
exemplo). Logo, os primeiros critérios estavam centrados para a construção da Ponte sobre o Tejo.
na racionalidade económica (investimento/custos) e não Todavia, e porque naqueles bairros (Quinta da
na maior durabilidade e qualidade do material de Calçada, Boavista...) já estava alojado um elevado número
construção (melhoria das habitações). Mas esta será, de famílias de trabalhadores da CML, foram essas mesmas
porém, uma questão que fica em aberto. famílias prioritariamente transferidas para o futuro bairro
Além disso, fazia-se crer que estes bairros eram da Quinta da Penteeira. Além disso, não esqueçamos que
provisórios porque eram lugares de “passagem”, de apoio, os critérios de selecção para a atribuição da casa municipal

29
(que adiante melhor especificaremos: debilidade Espírito Santo.
económica mas ter contrato de trabalho, moralmente Séculos XVI-XVII
confiável, pai/chefe de família…) selecionavam, logo à Localização de várias quintas conventuais e senhoriais ao
partida, o perfil dos “beneficiados”. longo dos eixos de Carnide, Luz, Paço do Lumiar e Pontinha.
Por tudo isto, reafirma-se o especial interesse em Consolidação do edificado e início da urbanização do
conhecer e preservar a memória do Bairro, fruto de um núcleo de Carnide.
projecto político e de um ideário social, de um modo de 1575/96
pensar e representar a sociedade que se reflecte no Construção da ampla igreja de N. Senhora da Luz sobre
planeamento e organização do território da cidade. Um uma pequena ermida. À entrada, fixa-se amplo terreiro
modelo de disciplina que também construiu estigmas e para montar a Feira da Luz (em Setembro, durante 3 dias).
categorias sociais – as “classes pobres” – porque as regras 1755
e os poderes eram unilateralmente definidos. Grande terramoto em Lisboa que causou danos graves nos
Compreenda-se que o projecto de construção do Bairro edifícios da freguesia (designadamente, no grande
Padre Cruz reflectia o pensamento de uma época e de uma conjunto conventual da igreja de N. Senhora da Luz).
sociedade: reguladora, normativa e solidamente 1762 (Século XVIII)
hierarquizada. A distância física ao centro histórico da Surge a primeira referência à Quinta da Pentieira (mais
cidade deve ser interpretada, também, enquanto metáfora tarde, Penteeira) em Carnide. Era proprietário Manoel
da distância social ao topo da hierarquia dos poderes… Simões Álvaro, fabricante de pentes (esta informação
Estas periferias geográficas materializam e naturalizam carece de validação).
periferias e margens sociais. 1840
Mas faz sentido questionar: será que “tudo” Os limites do município de Lisboa são redefinidos e a
ficava, de facto, tão previsível e determinado? freguesia de Carnide passa a pertencer ao Termo de Belém.
No próximo momento veremos como estas 1885
questões foram vividas à escala da vida real, das vivências Nova Reforma administrativa do município de Lisboa
das pessoas. (Decreto de 8 de Outubro). A área da cidade é aumentada e
fica delimitada pela Estrada da Circunvalação. A freguesia
Síntese cronológica de Carnide, entre outras, é definitivamente reintegrada no
Até 1958 – No início era o campo perímetro administrativo da cidade de Lisboa (Decreto de
18 de Julho).
Até ao século XII 1910 (5/10)
Vestígios da fixação de populações de origens e cultos Proclamação da República no edifício dos Paços do
diversos (romanos, muçulmanos, cristãos,…) que viviam Concelho, em Lisboa. Em 1911 é apresentada a nova
da agricultura. Constituição da República.
1279 (Século XIII) 1914/18
Fixação do nome da paróquia de Carnide que está na Primeira Grande Guerra em que Portugal intervém. Período
origem da divisão administrativa em freguesia. População de grande depressão social.
rara e dispersa de pequenos agricultores. 1918
1463 Transferência da sede da paróquia, na igreja de S.
Início do culto a Nossa Senhora da Luz que se sobrepõe a Lourenço, para a Igreja de Nossa Senhora da Luz.
anteriores cultos já cristianizados tal como o Culto do Legislação sobre Habitação Económica (Dec. 4 415) que

30
esteve na origem das primeiras “Casas Económicas” terrenos para o crescimento da cidade de Lisboa. No
(Bairro Social do Arco do Cego e Bairro do Alto da Ajuda). desenvolvimento do PGUEL são criados os bairros de renda
1928 (26/05) económica (Encarnação, Caselas, Madre de Deus,…).
Golpe militar que deu origem à II República. Foi O Estado é o principal agente na gestão e planeamento da
autodesignada por “Estado Novo” para sustentar a ideia de oferta habitacional dos municípios através de um vasto
que se entrava numa “nova era” política e social. programa de “Casas Desmontáveis” (Dec. Lei nº 28 912 de
1929 (14/04) 1938). Este programa resulta das “modernas” razões de
Inaugurado o primeiro trajecto da linha do eléctrico nº 13 salubridade e saúde pública, segundo o modelo europeu e
(1929-1960) que ligava o centro de Carnide aos defende o afastamento (físico, social e mental) destes
Restauradores; o segundo trajeto (1960-1973) ligava bairros relativamente ao centro da cidade.
Carnide à Praça do Chile. Esta alteração resultou das obras Constroem-se três bairros provisórios – Quinta Calçada,
da primeira fase da rede do Metropolitano de Lisboa. Boa Vista e Furnas. Todos mantêm o modelo das casas
Desde 1930 unifamiliares, usando placas de fibrocimento, com
O êxodo rural acentua-se e a escassez de habitação nas pequenos logradouros a lembrar aldeias portuguesas
cidades (Lisboa e Porto) impõe-se como grave problema. afastadas do centro da cidade. Os primeiros mil fogos
Muitos migrantes rurais (isolados ou em família) instalam- foram entregues minimamente mobilados (prática
se nas periferias em péssimas condições. Outra parte abandonada, logo depois); quase 1/3 da área do concelho
significativa da população sobrevive no centro da cidade foi expropriado, e até 1946, foram construídas 2 140
em habitações clandestinas, sublocadas ou degradadas. casas desmontáveis.
1932/33 1940
Nova conjuntura política associada ao Estado Novo; Constituição do Clube de Futebol Os Unidos, no Bairro da
profunda alteração na perspectiva urbanística com forte Quinta da Calçada (um dos primeiros bairros provisórios de
influência europeia; destaque para a figura do ministro das casas desmontáveis).
Obras Públicas, Duarte Pacheco. Nova intervenção do A Exposição Histórica do Mundo Português consolida a
Estado na promoção da habitação social – programa das imagem de Lisboa como “Capital do Império”. A partir de
Casas Económicas (Dec. 23 052 e 22 909 em 1932 e 1940 o investimento em obras públicas no país diminui
1933). perante o reforço do centralismo (real e simbólico) de
Em 1933 é substituída a Constituição de 1911. Lisboa.
1934 (21/12) 1945/48
Primeira definição de um Plano Geral de Urbanização e Aperfeiçoamento do Plano Director de Urbanização de
Expansão para a cidade de Lisboa e envolventes (PGUEL, Lisboa (PDUL, “Plano Gröer”). Durante esta década a
Dec. 24 802). população de Lisboa cresce significativamente – em 10
1935/38 anos residem mais 100 000 habitantes atingindo perto de
Plano de Urbanização de Lisboa a cargo de urbanistas 700 000 residentes. Carnide mantem-se uma freguesia de
estrangeiros (destaque para o francês E. Gröer e a ideia da arrabalde com um crescimento demográfico lento (perto
Cidade-Jardim) por solicitação de Duarte Pacheco. Figura dos 3 200 habitantes).
de relevo, acumula os cargos de Ministro das Obras 1952
Públicas e de Presidente da CML. Rebentamento nos paióis do exército localizados perto da
Dec. Lei 28 797 (em 1938) que confere plenos poderes à Quinta da Penteeira onde estava guardado material bélico
CML para urbanizar a área concelhia e expropriar os destinado à Guerra Colonial.

31
1954
No âmbito das preocupações com a habitação social e
actualização do Plano Director, é criado o Gabinete de
Estudos de Urbanização (GEU). Este Gabinete formará
novos técnicos urbanistas com uma visão modernista,
próxima das recomendações da Carta de Atenas
(documento do Congresso de Arquitectura realizado na
cidade de Atenas, 1933). Os estudos para a ponte sobre o
Tejo e para a urbanização dos Olivais são alguns dos
trabalhos do GEU.
1958 (18/06)
Escritura de compra da Quinta da Penteeira/Alto da
Penteeira por parte da CML à viúva de Castanheira de
Moura, seu último proprietário; a escritura é realizada
durante a transição de mandato do tenente-coronel Álvaro
Salvação Barreto (1944-59) para o general António
Vitorino França Borges (1959-1970) na presidência da
CML.
Inicia-se o plano de construção do “Bairro das Casas
Desmontáveis da Quinta da Penteeira”.
A população da freguesia de Carnide vai crescendo muito
lentamente; é um pouco superior a 3.350 habitantes
mantendo as características de “aldeia urbana”, funcional
e mentalmente muito distante da cidade.

32
Fase 1 fabricadas no material de fibrocimento ondulado e
1959 A 1974: CONSTRUTORES DA CIDADE, ARTESÃOS extremamente vulnerável. Entre os moradores, este núcleo
DO BAIRRO” ficou conhecido como o “bairro de lusalite”. As casas, com
tamanhos mínimos, foram colocadas frente a frente,
1959-67: Do bairro anónimo ao bairro das distribuídas por cinco ruas paralelas e uma transversal. “No
inaugurações bairro de lusalite eram cinco ruas numeradas – primeiro, a
número 1, era a da Casa Branca, a 2 era em frente aos
“Eu vinha aqui buscar carradas de ervas, ainda o bairro Unidos, a 3 era onde está o salão de festas, a rua 4 perto da
CONSTRUÇÃO CASAS DE LUSALITE, 1959 (AF-CML) não era feito. Vinha buscar com a carroça para o asilo igreja – que era a da cabine telefónica – e depois a rua 5,
da Confraria de S. Vicente de Paulo lá para Carnide. que ia dar às hortas.”
Lembro-me de começar a primeira casa no bairro. Eu ia Todas as casas obedeciam a um mesmo padrão de
pegar a cozer tijolo na cerâmica de Carnide e vejo uma construção muito rudimentar e frágil embora variassem nas
camioneta carregada de picaretas, pás e tudo deitado ali tipologias e áreas de construção – 128 fogos de tipologia
para o meio do chão… Pergunto: estão aqui a T2, com 24,62 m2; 72 fogos de tipologia T3, com
descarregar… então o que é que vai sair daqui? Avariou 29,48m2. As rendas oscilavam entre os 100$00 e os
o carro? Responderam: Não! Vamos fazer aqui um bairro 120$00, respectivamente.
novo! Quando voltar do trabalho já está começado! Na frente das casas, os pequenos quintais abertos
Quando eu saí, às 5h, olho e vejo lá quatro alicerces que para a rua compensavam as limitações dos fogos. O
faziam um pilar com uma viga por cima… e depois espaço dos quintais e das ruas era, por isso, intensamente
fizeram o esqueleto e os barrotes para pôr as chapas de percorrido, vivido e partilhado conforme escutaremos.
lusalite e aparafusar aquilo tudo. Era tudo em lusalite. Em termos de equipamentos de apoio esta parcela
Ao fim de três dias, estava aquela carreira toda feita. Era do bairro, ao início, dispunha apenas de cabine telefónica
a rua 1! Lá fizeram aquilo primeiro e depois seguiram (“que só era usada para as emergências!”), marco do
por ali abaixo…” correio, um lavadouro, pequena mercearia (a velhinha
Manuel Cebola (morador) “casa branca”) que anexava uma pequena barbearia e uma
PLANTA DO BAIRRO, 1960, LUSALITE E ALVENARIA minúscula taberna e, ao que parece, uma pequena oficina
“Eu andava ali a pastar o gado e via o bairro a crescer. de carpintaria ou de bate-chapas.
Tinha curiosidade…” Pouco tempo após a ocupação destas casas de
António José (filho do Arménio, rendeiros da Quinta da lusalite, as hortas e os pequenos quintais começaram a
Penteeira) despontar nas ruas conquistando terra para o alimento e
espaço para respirar. No ano seguinte começou a ser
O bairro de lusalite – “o Bairro das Casas preparado o terreno para a segunda fase do projecto: o
Desmontáveis da Quinta da Penteeira” “bairro (provisório?) de alvenaria”.

N a zona mais a sul da Quinta da Penteeira foi O bairro de alvenaria – “tudo à moda da nossa aldeia”
“montado”, em 1959, o primeiro núcleo do bairro –
o “Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da «A Câmara Municipal de Lisboa, visando o bem-estar das
Penteeira” conforme a identificação camarária. Destinava- famílias de fracos recursos, construiu este bairro nos
se, preferencialmente às populações transferidas do Bairro anos de 1959 e 1960. Nele alojou 1117 famílias,
da Quinta da Calçada. Era constituído por 200 casas pré- dotando-o duma igreja, dum grupo escolar e dum

33
edifício para creche, biblioteca, salão de festas e de Estas novas habitações correspondem a
trabalho, mercado, oficinas e campo desportivo. Deu-lhe pequenas moradias unifamiliares de rés-do-chão
o nome do saudoso Padre Cruz. Regista-se o construídas em alvenaria com estrutura de betão e
acontecimento no 40º aniversário da Revolução cobertura de fibrocimento sob telha e justificaram a
Nacional.» identificação de “bairro de alvenaria”. De construções
(inscrição na lápide, já desaparecida, colocada no Bairro igualmente simples, e muito acanhadas, foram dispostas
em 1967) em banda contínua, mantendo os pequenos logradouros
destinados a hortas e quintais.
“Com as casas de alvenaria parecia que as pessoas Estavam repartidas em 259 fogos de tipologia T1, LÁPIDE, 1967 (AF-CML)
eram consideradas mais gente.” e 238 fogos de tipologia T2, em badanas; 296 tipologia T3
Padre Araújo e 88 tipologia T4 (em duplex, com dois andares). Embora a
tipologia destas casas seja mais diversa mantêm-se as
No ano seguinte, em 1960, foi iniciada a segunda áreas mínimas que variavam dos 23m2 até aos 70m2(2).
fase de construção, prevista no projecto de realojamento. As rendas das casas, superiores às prestações das
Obedecendo a um programa de apoio à habitação casas de lusalite, dependiam da tipologia e da área dos
municipal mais completo, os fogos apresentavam fogos – 135$00 ou 170$00 (T1), 215$00 ou 237$00
características melhoradas em termos dos materiais de (T2), 270$00 (T3), 295$00 (T4).
construção. Vale referir que nos T1, por exemplo, a área do
Este maior investimento e cuidado na organização quintal e do logradouro era superior à área construída, da
do bairro (resultante de factores de rentabilidade casa, e apenas uma divisão (o único quarto, à entrada)
económica cf. referido no Relatório de Gerência Municipal, dispunha de janela para o exterior. A cozinha e a sala
atrás transcrito) acentua a controvérsia acerca do carácter compunham uma só e mesma divisão com área inferior a
provisório ou definitivo(?) desta fase do projecto. 9m2.
Neste novo bairro foram alinhadas 917 casas em ruas No espaço exterior, as ruas favoreciam os
estreitas e cruzadas a direito que, pouco depois, receberão percursos para os peões e previam um mínimo tráfego
o nome dos rios de Portugal. Esta toponímia também automóvel. Apenas as duas principais ruas (Tejo e Cávado) CONSTRUÇÃO DE CASAS EM ALVERBARIA (DUPLEX),
1962 (AF-CML)
substituiu a anterior numeração das ruas do “bairro de serviam de vias de atravessamento do bairro.
lusalite”. Pelos motivos que atrás referimos – elevado
Uma informação actual da CML esclareceu: “Já a número de famílias a realojar, localização distante dos usos
toponímia dos arruamentos deste Bairro, contrariando o da cidade e relativa “modernização” no programa de
que era norma nas décadas anteriores – dos anos 40 e 50 habitação municipal – a construção das casas foi
do século XX – para os Bairros Sociais de Lisboa substitui a acompanhada pela instalação de um conjunto de
denominação numérica pela designação de 38 rios equipamentos para uso da população. A igreja, a escola e
portugueses, a saber, Alcôa, Águeda, Almansor, Alva, creche, o dispensário e o posto médico, a biblioteca, o
Alviela, Arade, Ave, Caia, Cávado, Ceira, Corgo, Coura, salão de festas e de trabalho, mercado, as oficinas e
Dão, Douro, Guadiana, Laboreiro, Lena, Lima, Liz, Minho, campo desportivo foram equipamentos sociais muito
Mira, Mondego, Ocresa, Paiva, Ponsul, Sabor, Sado, Sever, importantes na sustentação da vida do bairro e, adiante,
Sorraia, Tâmega, Távora, Tejo, Torgal, Tua, Vez, Vizela, merecem referência destacada.
Vouga e Zêzere.” (cf. doc. Toponímia do Bairro Padre Cruz, Com um total de 1 117 fogos/famílias e ocupando
CML(1)). uma área de 12 hectares que se estendia até às fronteiras

34 CONSTRUÇÃO DE CASAS, RUA DO RIO TEJO,


1961 (AF-CML)
com a freguesia da Pontinha (na altura, concelho de natalidade o que contribuiu, nesta primeira fase, para o
Loures) e Estrada da Circunvalação, o bairro transformava- elevado número de crianças e jovens entre a população do
se numa “aldeia portuguesa”, sempre isolada e bairro. “Era tudo gente com filhos – e havia mesmo
descontinuada em relação à cidade. Em redor, persistiam algumas famílias muito numerosas – e alguns idosos e
os vastos campos de hortas e de cultivo que confirmavam a pessoas isoladas. A maioria da população era classe média
paisagem de ilha branca semeada à margem da cidade. As baixa”, informou Isabel Geada, a primeira técnica de acção
escassas e longas azinhagas mantiveram-se como os social no bairro.
únicos acessos de ligação do Bairro a Carnide (e daí, à A casa destinada ao realojamento era atribuída de
“cidade”) e à Pontinha. modo imediato para as famílias instaladas na Quinta da
Calçada ou Bairro da Boavista ou ainda para as que
As primeiras gerações – “davam-se à confiança com provinham de situações de degradação do património
muita facilidade” municipal.

Através dos testemunhos recolhidos junto dos “Certo dia, aparece um polícia municipal em minha casa
primeiros moradores – transferidos da Quinta da Calçada, para eu me dirigir aos serviços da polícia, no meu interesse.
Bairro da Boavista ou de habitações municipais E eu lá fui. Fui atendido pelo chefe Oliveira. E recebi a
degradadas – confirmou-se a origem rural (centro e norte chave. Na altura era ainda a rua 23. Depois é que ficou rua
do país) na ampla maioria dos casos. Era muito significativo rio Paiva. Se a casa lhe agradar, fique com ela. Se não
o número de famílias que tinham “largado” as suas terras e agradar, volta aqui e aguarda até nova atribuição. Mas eu
aldeias à procura de outras oportunidades de sobrevivência já sabia por gente que cá morava que o melhor era aceitar
na cidade de Lisboa. logo a casa, fosse pequena, fosse grande… porque se eu
Mas estratégia de aproximação à cidade também rejeitasse é que nunca mais via casa nenhuma …” (José
era feita por fases. Primeiro, arriscavam-se os homens à Augusto Gonçalves, morador)
procura do trabalho na capital (ou já traziam contacto de
um parente) e só depois de ter firmado um ajuste de No caso das famílias que se encontravam em
FAMÍLIA DE MORADORES, 1963 (FOTO PARTICULAR) trabalho (e, eventualmente, um alojamento) acenava à situação de instalação precária – caso de prédios
família para que viesse juntar-se-lhe... E todas essas degradados ou partes de casa – haveria que preencher um
separações, viagens e reencontros marcavam as vidas ofício/pedido dirigido à Polícia Municipal explicando e
destas famílias com lembranças picarescas. fundamentando a solicitação. Nestas situações, também o
facto de “ser camarário” (i.e., ter vínculo laboral com a
“Contava a minha mãe que quando chegou a Stª Apolónia CML) representava, sem dúvida, uma convincente
trazia uma galinha debaixo do braço e olha para aquilo vantagem para o sucesso do pedido que era avaliado pela
tudo, e pensa ‘O que se passa aqui?’ – já trazia 4 filhos – Comissão Administrativa dos Bairros Sociais.
dois de um anterior casamento de que ficara viúva. Chegou
de Alpedrinha e ficou tão assarapantada que nem via o As primeiras impressões – “quando aqui chegámos…”
meu pai e ficou sem a galinha… que nunca mais se deixou
apanhar!” (Fernando Pereira, ex-morador) Por outro lado, aquelas diferentes proveniências
da cidade (Quinta da Calçada, ou parte de casa no centro
Através dos testemunhos soubemos que eram de Lisboa, por exemplo…) destas famílias foram
famílias relativamente jovens já com filhos ou em ciclo de determinantes no modo como, num primeiro momento,

RUA DO RIO LENA, 1963 (AF-CML) 35


avaliaram as condições de alojamento no bairro. Foram as Bairro da Boavista… E isto aqui era muito melhor.”
famílias que já moravam em bairros camarários (Quinta da (Domingas Ferreira, moradora)
Calçada ou Boavista), em barracas ou em partes de casa
acanhadas, quem mais valorizou o realojamento no novo “A primeira sensação foi de liberdade. Porque vivíamos
Bairro das Casas Desmontáveis. todos numa parte de casa. Não havia a privacidade que
encontrámos aqui. Primeiro, estávamos apertados mas já
“Quando aqui cheguei gostei muito. Aquilo era fantástico. sabíamos que quando as casas de dois pisos estivessem
Parecia uma aldeiazinha muito gira. Foi no bairro de concluídas iríamos para uma casa maior. Estivemos
lusalite. As casinhas eram muito pequeninas… No quarto apenas um ano nessa primeira casa. Sentimos que foi um RUA DO RIO GUADIANA, 1962 (AF-CML)
só cabia a cama; na cozinha, um fogãozinho e a pia de salto qualitativo na vida da família.” (António Cristino,
despejo e o balde para os banhos. Agua canalizada, só fria. morador)
E a electricidade com uma luz. Nós adaptávamo-nos ao frio
e ao calor. Os meus pais gostaram muito porque de onde Em contraste, as famílias transferidas de fogos
vinham, da Quinta da Calçada, as casas já estavam localizados em zonas centrais e integradas nos usos da
degradadas. Pagávamos 100$00 de renda. Já era cidade reagiram muito negativamente quando conheceram
bastante… Gostei muito de ali morar: cada um tinha o seu o novo bairro. Foi-nos dito:
quintal, o seu fogareiro…” (Lurdes Silva, moradora)
“Quando cheguei ao bairro fiquei triste. Nunca tinha vivido
“Morávamos no Bairro da Boavista que, sendo camarário, em bairros. Fui criada num meio diferente, na Av. Manuel
era um bocadinho pior. Naquela altura influenciei o meu da Maia. Tinha outras referências. Quando entrei, até
pai. Disse-lhe: “Ó pai foi feito um bairro… naquela altura chorei. Uma casinha pequenina – e eu disse para o meu
até se chamava Bairro da Penteeira…” A vida também era marido: ‘Ó homem, podias ter escolhido outra coisa. Isto é
difícil, ganhava-se pouco, havia muita pobreza… O meu para malteses de pau e manta. A minha palavra foi esta.
pai era estivador – se trabalhasse, ganhava, se não São as pessoas que vêm daqui e dacolá e que se sujeitam a
trabalhasse não ganhava nada… Naquela altura era tudo. E tinha uma vizinha que veio na mesma altura do que
mesmo assim… O meu pai ganhava 70$00 por dia de eu. Morava mesmo ao meu lado. Foi mais que tudo para RUA DO RIO CEIRA, 1962 (AF-CML)
trabalho. E lá o convenci – “Vamos para aquela casa, mim e para os meus filhos. Devo-lhe muito.” (Nazaré,
aquilo é diferente, terei um quarto, tenho mais privacidade, moradora)
uma porta para fechar…” E, muito a medo, viemos para
cá. Muito a medo, porque a renda eram 295$00, mais “Quando aqui chegámos era tal de maneira árido que,
5$00 que se pagava ao fiscal. Era muito. quando viemos ver a casa que nos ia ser atribuída eu e a
Viemos ver, com a minha mãe e vizinha… E as casas, minha mãe regressámos a casa com febre… Mas, depois,
mesmo limitadas, sempre eram bem melhores do que as habituámo-nos. Ainda vivo na casa que nos foi atribuída.
outras. Convenci o meu pai, com muito medo, sempre. Era de alvenaria. Nunca vivi nas casas de lusalite mas vi
Porque lá a renda eram 100$00 e aqui era duas vezes essas casas… Foi pena não ter ficado nenhuma para
mais. Quando cheguei ao bairro era um luxo. Era um luxo! memória.” (Elisete Andrade, moradora)
Senti que tinha outras condições, não tinha nada a ver com
aquelas outras…Quando para aqui viemos, muita gente do “A minha mãe não gostou, não queria vir para aqui – o
Bairro da Boavista também veio. Conhecíamo-nos todos bairro era fora de Lisboa. Eu gostei muito porque as
uns aos outros… a Quinta da Calçada ainda era pior que o casinhas eram todas branquinhas, pareciam pequenos

36 RUA DO RIO AVE, 1962 (AF-CML)


palácios. A minha mãe não queria porque não havia alguns anos da instrução primária, na generalidade da
transportes. Não havia transporte nenhum. Os carros população masculina; a grande maioria da população
contavam-se pelos dedos. O bairro ainda não tinha ruas, só feminina era analfabeta). Mas, mais importante para o
metade é que tinha sido construído. Lembro que as ruas regime: o facto de serem “moralmente confiáveis” porque
estavam por fazer, chafarizes na rua porque ainda estavam com hábitos e contratos de trabalho: “gente pobre, mas
a acabar as canalizações. Luz havia, mas para água trabalhadora”, já disseram. Relembremos que a Câmara
tínhamos os chafarizes públicos. Havia pessoas que Municipal de Lisboa era a principal entidade patronal desta
vinham de barracas e nem sabiam o que era água população de ex-migrantes rurais. Conforme Isabel Geada
RUA DO RIO TEJO, 1962 (AF-CML) canalizada. Só tínhamos água fria. Não havia águas relembra, mais de metade eram empregados da Câmara,
quentes. Aqui quase toda a gente trabalhava, naquela fosse na profissão de cantoneiros, serventes, pedreiros,
altura. Era um bairro para funcionários camarários. Veio electricistas, motoristas, bombeiros, alguns polícias… mas
para aqui muita gente que trabalhava na Câmara… era hoje também encontrámos referências a estivadores,
gente pobre, mas gente de trabalho. (…) Eu sempre vivi em sapateiros, padeiros, professores,…
Lisboa e havia casas onde nem sequer casa de banho Assim, não sendo este um bairro originalmente
havia. Aqui, pelo menos isso havia. Era uma melhoria. Na planeado nem construído para funcionários da Câmara, o
altura era bom, dentro das suas condições limitadas.” facto é que por força das circunstâncias que atrás
(Custódia Pereira, moradora) explicámos, o elevado número de “camarários” que vieram
a ser seus locatários acabaria por vincar o perfil da primeira
“Quando entrei em casa, tinha 5 anos… Lembro-me de ter comunidade do bairro. E vincar ao ponto dos moradores
ficado um pouco assustado. Estava à espera de outro tipo insistirem repetidamente: “Aquilo era tanto para os
de casa. Era um duplex, tinha uma escada sem nada a camarários que a renda vinha logo descontada no
tapar… Era uma casa muito vazia, as ruas ainda estavam ordenado.” (Teresa Guerra, moradora)
em terra batida, sem estarem calcetadas. Não tínhamos Todos estes aspectos foram importantes para
água em casa. Tínhamos que ir com cântaros buscar água definir do perfil desta primeira geração de moradores: uma
aos chafarizes públicos montados em algumas ruas. Os população trabalhadora, maioritariamente activa, com
RUA DO RIO VEZ, 1962 (AF-CML) primeiros tempos do bairro foram muito complicados. hábitos e contratos de trabalho e que, por isso mesmo,
Quando vim, fiquei nas últimas casas a serem acabadas. manteve relações funcionais com o exterior do bairro – seja
Claro que foi sempre uma melhoria. Mas o primeiro o núcleo de Carnide, seja a cidade, para onde se deslocam
impacto não foi muito favorável. Sabíamos que vínhamos nas suas labutas diárias. “O meu marido lá ia de bicicleta,
para um bairro, mas não esperávamos nada daquilo. (…) pela madrugada. Ainda me lembro vê-lo a ir…Ia tão cedo
Não havia transportes nenhuns e Carnide ficava longe, que lhe puseram a alcunha do ‘Zé Sai-cedo’.“ (Adelaide
tinha que se ir a pé… e eu era rapazinho.” (Emídio Silva, ex- Ferreira, moradora)
morador) Quanto à população feminina, era significativo o
número de mulheres domésticas ou que não exerciam
Independentemente das diferentes opiniões (e profissão atendendo ao elevado número de filhos e à
situações) sobre o primeiro confronto com o bairro, estas necessidade deles cuidarem. Ocupavam-se de trabalhos
famílias já traziam muito em comum: antigas relações de ditos “femininos” a que frequentemente se juntavam as
vizinhança (o caso dos moradores da Quinta da Calçada, e vizinhas, as avós e as sogras quando também residentes.
Bairro da Boavista…), algumas vulnerabilidades sociais, Nos casos em que estavam profissionalmente inseridas
fracos recursos económicos, pouca escolaridade (apenas eram vendedeiras, empregadas de comércio, limpezas,

RUA DO RIO PAIVA, 1962 (AF-CML) 37


algumas costureiras… discussões. Era muito desagradável. Depois, nas outras,
Além disso, escutaremos adiante que, nestas de alvenaria já não. Ainda eram fracas, mas sempre
famílias, os filhos e as filhas eram orientados para melhorzinhas. Parece que as pessoas já eram
inserções “precoces” no mercado de trabalho. Se, hoje, consideradas mais gente.” (Padre Araújo)
essas inserções – que ocorriam por volta dos 13 anos –
comprometem direitos e o êxito da escolaridade obrigatória “Nas casas de lusalite, não havia nada. Só a pia de despejo
– naquela época representavam a única forma de e o balde com argolas para o banho. Água, só fria. Uma só
sobrevivência da família e a possibilidade de percursos de lâmpada no tecto para toda a casa, luz fraquinha para não
autonomia por parte dos filhos (casar, ter residência, gerar gastar muito. O lugar das camas era sobre a pedra, na PLANTAS CASAS LUSALITE
família, …), sobretudo no caso das famílias mais cozinha. Punha uns colchões de palha para os meus filhos.
numerosas. Fazíamos as divisões com cortinados. Depois fomos
Apercebemo-nos que a proximidade não era melhorando, construindo por nós.” (Nazaré, moradora)
apenas física (casas vizinhas com paredes meias e quintais
confinantes…), mas era também uma proximidade vivida. “As divisões, muito pequeninas. A sala de jantar levava uma
As populações que se foram instalando, pelas comuns mesa, umas cadeirinhas e pouco mais… Quando entrava
fragilidades, avizinhavam-se na partilha das preocupações alguém, tínhamos que nos levantar. Quando para aqui
e das expectativas – as conversas, os interesses, as ajudas, viemos, as casas não tinham lava-louça. Tinha uma
as solicitações e as ânsias, os percursos e as azáfamas chaminé e uma pia de despejo. Estes duplexes tinham a
diárias… E isso foi fortalecendo relações solidárias entre as casa de banho lá em cima… Era com um sistema de balde.
pessoas e os sentidos de pertença ao território. A gente tinha que tirar o balde – era uma lata – preso com
dois ganchos, púnhamos lá dentro a água quente, e
O interior das casas – “tudo muito minúsculo” tínhamos um estrado de madeira com um ralo para escoar.
As casas de banho são pequeníssimas….” (Domingas
Justificadas pelas “menores exigências de Ferreira, moradora)
espaço” destes moradores (cf. Actas CML, transcritas) as
dimensões das casas foram reduzidas ao mínimo dos “Tinha casinhas novas mas com muito poucas condições:
mínimos e porque eram compensadas no exterior com os uma lâmpada no tecto e um balde para as pessoas
logradouros e quintais. No espaço interior, as áreas tomarem banho. Não havia água quente. Não pensavam
comuns (cozinha e WC) quase se confundem entre si e com que as pessoas chegassem a velhas e, por isso, fizeram
os “quartos”. As “divisões” nas casas de lusalite eram, umas escadas que aquilo é mesmo para as pessoas
muitas vezes, separadas apenas com cortinas. caírem. Aquelas escadas são um grande obstáculo. Há
Percebemos não só que o direito à privacidade era pessoas aí, que têm um enorme sofrimento para subir as
minimizado (aliás, um luxo!) como a casa (esse minúsculo escadas. Eu sei porque conheço muita gente… e mesmo
privado) sendo muito limitada era, também, muito as condições das casas – agora que o tempo começa a
limitadora. aquecer, os quartos de cima chegam aos 30 graus.
Ninguém consegue lá dormir. Estes quartos fazem lembrar
“As casas eram muito fracas, as de lusalite. Eram uns o que era a prisão “a frigideira” em Cabo Verde para onde
caixotezitos… e feitas em amianto. Tinham condições mandavam os presos do regime… Se as pessoas não
muito fracas mas as pessoas não sabiam nada disso… e as tivessem gasto algum dinheiro nestas casas, eu não sei
paredes das casas eram tão fracas… dava para ouvir as quem poderia viver aqui hoje em dia. Isto é tão verdade, tão

38 PLANTAS CASAS ALVENARIA


verdade…” (Fonseca, morador e comerciante) A comunicação da atribuição de casa era feita por
escrito e a entrega das chaves implicava o preenchimento
“O meu pai mandou logo tapar a escada porque, em baixo, prévio da ficha de identificação com o registo dos dados do
quem olhasse para cima via as pernas.” (Custódia Pereira, futuro titular. Neste registo, para além das informações
moradora) gerais (sexo, data de nascimento, naturalidade, profissão,
habilitações, vencimento e composição do agregado)
A gestão do bairro – “uma aldeia ou… um “gueto”? constavam perguntas tais como: “é casado legalmente?”;
“o que consta quanto ao comportamento?”.
Também em termos da gestão o Bairro Padre Cruz No verso, constava a listagem das instruções (em termos
terá beneficiado de alguma “abertura” relativa. Não de proibições e obrigações) para habitar a casa e respeitar
recolhemos referências acerca da presença explícita da as regras do bairro que, abaixo, reproduzimos. Regras que
Legião Portuguesa, da Mocidade Portuguesa nem da Obra as primeiras gerações de moradores não recordam ou, em
das Mães pela Educação Nacional(3) tal como era habitual poucos casos, terão uma “vaga ideia”:
em outros bairros municipais. ”Fomos conhecendo as regras morando cá. Sabíamos que
Além disso, sabemos não ter havido indicação não podíamos receber pessoas em casa.” (Lurdes Faria)
para as famílias celebrarem o casamento religioso a fim de
poderem residir no bairro nem, tão pouco, ter sido feita a INSTRUÇÕES
inspecção médica e a desinfecção de todos os bens e É expressamente proibido:
pertences antes da entrada para a casa atribuída, tal como 1º Admitir na casa que lhe foi distribuída qualquer pessoa
sucedera com os primeiros moradores dos anteriores que não faça parte do agregado constante do quadro
bairros da Quinta da Calçada, Furnas e Boavista. “Já inscrito no presente ofício. Qualquer alteração que se
vínhamos todos casados do Bairro da Quinta da Calçada. venha a verificar (…) terá de ser comunicada, pelo inquilino
Havia lá uma igreja para se fazer os casamentos,” ao fiscal do Bairro, no prazo de 8 dias.
relembrou Joaquim Cruz, morador antigo. 2º Possuir animais domésticos (cães e gatos).
3º Construir capoeiras, caramanchões e qualquer outro
VISTA DO BAIRRO PADRE CRUZ, 1963 (AF-CML) “A Comissão da Acção Social dos Bairros Municipais já anexo.
existia. É anterior ao bairro e era constituída por elementos 4º Ligar qualquer aparelho TSF na instalação elétrica da
nomeados pela Câmara de Lisboa. Eram técnicos de casa, visto só estar preparada para fornecer iluminação.
relevo, funcionários superiores da Câmara, Director-Geral 5º Mudar a lâmpada para outra de maior potência ou fazer
das Finanças, Serviços Culturais da Câmara, a Legião qualquer alteração à instalação eléctrica.
Portuguesa e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que
ainda estava estruturar-se… pessoas escolhidas e O inquilino é obrigado:
instituições coordenadas pela Câmara e com a missão de 1º A substituir os vidros que se partam na sua residência.
gerir a acção social dos bairros. Mas geria do lado exterior, 2º A conservar em bom estado a casa que lhe foi
nos gabinetes – não ia ao bairro. As reuniões semanais distribuída.
eram feitas na Câmara. A partir de certa altura, o Padre 3º A indicar ao fiscal qualquer deficiência que note na sua
Francisco passou a integrar também esta Comissão. Havia casa (como: infiltrações de água, contadores avariados,
reuniões semanais para recolherem informações sobre a torneiras vedando mal…).
vida do bairro no terreno real.” (Isabel Geada, assistente 4º A consentir que a sua casa seja visitada, pela Comissão
social no Bairro (1963-1971). ou seus delegados, sempre que se julgue conveniente.

39
5º A pagar a renda da sua casa de 1 a 8 de cada mês. As famílias que não cumprissem os regulamentos
eram “castigadas”. E, eventualmente, eram transferidas
O inquilino que desrespeite os princípios indicados pode ser para bairros considerados “mais problemáticos”.
mandado desalojar por despacho dado pela Comissão
Administrativa. “Ali mesmo no salão de festas havia uma casinha
pequenina que era a casinha do fiscal e nós tínhamos que
A figura do fiscal dar todos os meses 5 escudos ao fiscal e ele é que olhava
No sentido de tornar a organização mais eficaz e pelo bairro. Não podia haver zaragatas. Ninguém discutia
respeitada estes bairros municipais contavam com a figura com ninguém. Se não, estava sujeito a ser transferido para
do fiscal. Alguns moradores mais antigos referiram que outro bairro.” (Teresa Guerra, moradora).
“primeiro havia dois fiscais; depois, passou a haver só
um.”O fiscal era um género de polícia que cá morava e “Quando havia zaragatas entre vizinhos, o fiscal dava
fazia-se respeitar.” indicação para mandar essas famílias para o bairro da
Boavista, que era o “bairro do castigo”. Ao fiscal pagava-se
Ao Fiscal competia: a renda e a EDP. Primeiro eram dois; depois passou a ser só
«(…) 1 – Cobrar dos inquilinos de 1 a 8 de cada mês, as um. Eles eram uma figura de controlo.” (Manuel João,
rendas das suas moradias e os excessos de consumo de morador).
água.
2 – Não permitir que os inquilinos recebam em suas casas “Havia castigos e multas para quem jogava à bola na rua.”
quaisquer pessoas que não façam parte do seu agregado (Manuel Oliveira, morador)
familiar, sem a devida autorização da Comissão
Administrativa. “Havia uma vizinha, cujo filho era muito rebelde e não
3 – Não consentir que os moradores possuam cães, gatos queria ir à escola. O fiscal vinha buscá-lo para ir à escola e
ou criação no interior das suas residências. ameaçava, dizendo: Olha que a tua mãe vai presa se não
4 – Não permitir (…) que transgridam qualquer postura fores à escola… e o miúdo lá ia…” (Teresa Guerra,
municipal e muito especialmente que façam lume fora da moradora)
chaminé; que efectuem as construções ou mesmo
vedações sem autorização prévia da C.M.L; que estendam No conjunto da organização do bairro a figura do
roupa fora do local próprio (estendal do bairro); que andem fiscal foi marcante e, de certo modo, aceite, atendendo a
na rua com os pés descalços; que efectuem no bairro a que ele era, também um outro morador. Alguns fiscais,
venda ambulante de quaisquer produtos que se encontrem além de emblemáticos, ficaram na memória … o Sr.
à venda no respectivo mercado; que tenham capoeiras Rocha, Sr. Oliveira, o chefe Moreira…
sem prévia autorização, que peçam esmola.
5 – Não consentir que os inquilinos tenham nas suas “Não consigo imaginá-lo sem autoridade. Era uma pessoa
moradias telefonias ou alterem a instalação eléctrica. não autoritária mas que vestia a autoridade e nós tínhamos
6 – Não permitir que os inquilinos tenham na sua moradia muito respeito. Ele até era uma pessoa muito afável,
lâmpadas de voltagem superior a 25W. passava por nós e cumprimentava-nos mas nós tínhamos-
7 – Apreender a todos os inquilinos o material eléctrico que lhe imenso respeito.” (Fernando d’Oliveira, morador)
não seja o da primitiva instalação. (…)»
Porém, se grande parte dos moradores, apesar do

40
controle, sentem e vivem o bairro nesse “espírito de aldeia” não estava lá efectiva. Foi ela quem fez a primeira
onde as relações de vizinhança se vão estreitando pouco a abordagem. A inauguração dos serviços e equipamentos
pouco, também houve quem fizesse notar: foi em 1962 e eu cheguei ao bairro em 1963. Tudo ainda
estava muito embrionário. Mas durante o primeiro ano de
“O bairro funcionava como um ‘gueto’. Mas essa noção só 1963-64 o bairro teve um grande desenvolvimento.
nasce mais tarde. Enquanto miúdo eu vivia algum Por outro lado, apesar do constrangimento vivido, também
constrangimento… se jogasse à bola, ia para os fiscais… sabemos que o bairro terá beneficiado de alguma diferença
os nossos gestos eram vigiados e controlados… punham no programa de acompanhamento. Com o Bairro Padre
os miúdos de castigo. Na Boavista, tenho a certeza mas Cruz houve uma alteração nas tarefas da Comissão da
aqui não tenho a certeza absoluta. (….) Não se podia Acção Social. O Bairro Padre Cruz era um bairro muito
andar descalço em Lisboa. Aqui, no bairro, andava-se. Eu maior do que a Quinta da Calçada, Furnas, Boa vista,
só me calçava para ir para a escola. E porque só tínhamos Caramão da Ajuda, e com outras condições.
um par de sapatos. Quem fosse apanhado descalço tinha Havia que criar um sentido comunitário às pessoas. Foi
uma multa de 20$00. Isso já acontecia ali para a zona do esse trabalho que me pediram como técnica da acção
‘bairro jardim’ que hoje é Telheiras. A multa era muito social… Foi um trabalho muito gratificante porque a
dinheiro. (…)” (Manuel João, morador). população aderiu e reagiu sempre muito bem. O Bairro
Padre Cruz, sem dúvida, subiu um patamar na escala e
Os primeiros apoios sociais – “criar um sentido de condições dos bairros municipais. Muito pela convergência
comunidade” de três factores: primeiro, o ambiente preparado pelo
Padre Francisco que começou a desbravar o trabalho com
No contexto da organização da vida social do a população. Ele ia ao bairro frequentemente. As pessoas
bairro entende-se perfeitamente que as figuras do padre, a estavam completamente isoladas. E ele era uma pessoa
equipa de apoio social, os médicos e a equipa de muito próxima e muito dialogante.
enfermeiras, os fiscais, as educadoras e professor/a… Além disso, a maior parte das pessoas vinham de casas
tenham sido, cada um a seu modo, referências com muito piores condições, muito abarracadas, e chegar
importantes. ali sentiam-se beneficiadas, com outro estatuto e patamar
Por solicitação da Comissão da Acção Social, da social…
Câmara Municipal de Lisboa em concertação com a Santa Terceiro, o perfil das pessoas e o trabalho com os técnicos.
Casa da Misericórdia de Lisboa (naquela altura, ainda em Havia preferência na atribuição das casas a chefes de
consolidação), as primeiras técnicas de acção social família, com vínculo laboral, preferencialmente na
desenvolveram um trabalho de grande proximidade com a Câmara… Esta selecção era feita, inicialmente, pela
população. “Era um trabalho social de comunidade, era Polícia Municipal. Depois passou a ser um gabinete técnico
assim que se chamava” (Isabel Geada). que estudava a atribuição das casas.” (Isabel Geada,
As informações mais seguras chegam-nos na voz de quem primeira técnica de assistência social no Bairro (1963-
as viveu: 1971)).

“Nessa altura a Misericórdia de Lisboa estava a consolidar-


se. (…) Em 1962 a Misericórdia destacou pessoal
especializado – Educação/Formação familiar (Laura
Tavares) e uma assistente social (Olga Pinheiro) mas que

41
Equipamentos sociais – “as inaugurações foram muito várias efemérides durante o ano de 1962 e repetiram-se
bonitas” em 1966-67, com a instalação da lápide (que referimos) e
a homenagem e colocação do busto do Padre António
“Assisti à inauguração do bairro. (…). Francisco de Cruz, com o devido aparato propagandista do
Estava todo o povo presente e muita gente feliz.” Estado Novo.
Padre Araújo Atendendo a que o tempo da construção do bairro
(em funções no Bairro de 1966 a 1981) coincidiu com o ano comemorativo do centenário do
nascimento do Padre Cruz (1859-1948), o bairro ganha
Na segunda parcela do Bairro, o bairro de um nome – o do seu patrono – de evidente cariz INAUGURAÇÃO DO BAIRRO PADRE CRUZ, 1962 (AF-CML)
alvenaria, foram sendo construídos vários equipamentos assistencialista aos pobres e desamparados, conforme
de apoio: igreja, escola primária, mercado (adaptado da convinha à imagem do regime(4).
antiga vacaria), centro cívico (salão de festas e de
trabalho), sala de leitura/biblioteca, lavadouro, creche, A capela do Bairro Padre Cruz – “o pulmão do bairro”
“dispensário” e posto médico, sede do clube desportivo
“Os Unidos” e zona desportiva, tal como estava inscrito na A paróquia desenvolveu um papel muito activo
pedra da lápide camarária. nesta fase da vida do bairro. Era orientada pela Ordem
Este conjunto de equipamentos procuravam uma Franciscana com sede na igreja de S. Lourenço, de
certa “normalização” dos hábitos da população residente, Carnide. O primeiro pároco com funções no bairro foi
atendendo a que se previa acolher uma população já muito António Francisco Marques (de 1952 a 1973, vd. nota 8,
numerosa para aquela altura. Interessante será pois do presente capítulo), que vincou este período inicial
perceber como na realidade concreta, nos usos do dia-a- criando e consolidando a comunidade religiosa.
dia e no decorrer da história, os moradores se foram Este aspecto não pode ser desligado do contexto
reapropriando desses espaços e dessas normas exteriores das relações entre a Igreja Católica e o regime do Estado
tornando-as vivências suas… e fazendo com que, pouco a Novo. Tal proximidade justificou que a capela do bairro
pouco, o bairro vá sendo cada vez mais “nosso”. fosse um dos primeiros equipamentos a ser construído e
DESCERRAMENTO DO BUSTO DO PADRE CRUZ, 1967
Este primeiro subperíodo de consolidação do inaugurado, em grande cerimónia, no dia 1 de Outubro de (AF-CML)
bairro (1960-67) foi vincadamente marcado pela euforia 1962. Na sua construção estiveram envolvidos alguns
das várias inaugurações dos equipamentos sociais. Em moradores atendendo a que muitos eram pedreiros e
causa estava, também, a propaganda da imagem serventes da CML. “Lembro-me de ver a Igreja ser
“assistencialista” do regime que providenciava as melhores construída. O meu pai ajudou na construção da igreja.”
condições de vida a populações satisfeitas. Mas, também Sabemos que até à inauguração da igreja,
por isso, controladas “nos seus devidos lugares”. Nos seus algumas missas ainda terão sido celebradas na escola
lugares periféricos, distantes dos centros de poder e primária que fora inaugurada poucos meses antes. Foi a
decisão. partir deste “pulmão” do bairro que o trabalho interior com
Atendendo ao interesse na promoção da imagem a comunidade foi desenvolvido, em estreita colaboração
do bairro (uma “aldeia feliz”), ainda durante a respectiva com a Comissão da Acção Social dos Bairros Municipais.
construção, ocorreram visitas frequentes por parte do No início, esta capela pertencia à Paróquia de
presidente da Câmara Municipal (General França Borges) e Carnide e servia, até 1971, as comunidades da Pontinha e
outros responsáveis camarários, eclesiásticos (bispo e a Serra da Luz. Só mais tarde, a partir de 1982 e 1983, é
padres) ou individualidades do governo. Registaram-se que foram celebrados os primeiros casamentos e

42 INAUGURAÇÃO DA CAPELA N. SENHORA DE FÁTIMA, 1962


(AF-CML)
baptizados na capela Nª Senhora de Fátima. Assim sendo, “Lembro-me que, em 1963, viveu-se uma situação
o bairro pertenceu primeiro, a um vicariato que era pastoral excepcional. Havia cerca de 1 000 crianças em idade
e economicamente dependente da paróquia-mãe, no escolar e pré-escolar. O jardim-de-infância tinha lista de
caso, de S. Lourenço de Carnide. Depois, passou a quase- espera e a escola primária teve que abrir 3 turnos: 9-12h;
paróquia e só após 3 ou 4 anos constituiu-se como 12-15, 15-18h. Isto foi uma situação extraordinária que
paróquia. Adiante daremos conta das respectivas terá durado uns 3 anos. Depois, passou ao normal: turno
dinâmicas. de manhã e outro de tarde. As primeiras professoras foram
a Maria de Fátima Oliveira Carrapa e Maria Helena
INAUGURAÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA,
RUA DO RIO TEJO, 1962 (AF-CML) A Escola Primária 167 – “Bom dia, senhora Carvalheira.” (Isabel Geada, assistente social no Bairro
professora!” (1963-1971))

A escola primária foi outro equipamento que “A escola tinha oito turmas – quatro de manhã e quatro
guarda vincadas memórias junto dos meninos e meninas turmas de tarde. Com trinta e tal meninos cada. A maneira
de bata branca. A escola primária nº 167 era o único de ensinar era muito diferente, era tudo muito diferente.
edifício escolar e também foi construído de raiz. Depois Havia muitos meninos mal tratados, mal alimentados… A
ficou conhecida por Escola Rio Tejo, nome da rua onde se escola tinha espaço para cantina mas não funcionava. Nós
localizava dirigimo-nos à Câmara. Havia muita criança com muita
Tal como era uso e costume naquele tempo, o fome. Ainda hoje há, mas menos... Juntámo-nos. A
edifício mantinha separados os pavilhões... professora também. A cantina tinha já o fogão grande …
Fomos a Sacavém e deram louça de Coimbra. Era louça
“Do lado direito eram rapazes, do lado esquerdo eram as fina para 200 pessoas, travessas, tigelas para a salada em
raparigas. Não havia misturas. Mas havia as mais crescidas pyrex… depois, falámos com o Padre Francisco. Claro que
que já eram muito malandronas. Subiam acima do muro ele colaborou. Para ajudar não havia igual.
para espreitarem para os rapazes. Aquilo era uma festa!” Entre os amigos dele, arranjou a comida. Foi ao Senhor
(Custódia Pereira, moradora) Bom Jesus, uma família muito rica… Era de uma quinta
INAUGURAÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA, perto, pertence ao Bairro de S. João. Esse senhor dava a
RUA DO RIO TEJO, 1962 (AF-CML)
No interior da escola o quadro com a figura de carne toda para a refeição dos meninos. Durante doze
Salazar e o crucifixo da Igreja católica lembravam a anos esse senhor deu a carne para a refeição das crianças.
autoridade do regime sobre as paredes brancas. Pela Eu trabalhei ali doze anos. Os meninos pagavam 5$00 por
manhã, dois padres da Ordem Franciscana visitavam a mês. Aquilo, nem para o ordenado da gente chegava mas
escola. Ensinavam a rezar e punham as orações em dia. À sempre era uma ajuda. Tinham direito a almoço. Era sopa,
chegada da professora, os meninos e as meninas de bata o prato e fruta. Quando era peixe, tinham doce. Dois dias
branca levantavam-se prontamente e, a uma só voz, por semana. Alguns meninos nunca tinham provado certos
cumprimentavam: “bom dia, senhora professora!” comeres. Havia cento e tal meninos a comer. Havia muitas
Antes de dar início à lição e para relembrar a crianças aqui. E fomos ao quartel pedir panelas… Isto
missão de todos e de cada um naquela escola, e na vida, passou-se em 1966.” (Nazaré, auxiliar na escola,
cantava-se o hino nacional. E era assim que se abria o dia moradora)
nos tempos iniciais do bairro. A ampla maioria das crianças
frequentou a escola primária 167 numa altura em que a Concluída a instrução primária, grande parte dos
população em idade escolar era muito numerosa. jovens, rapazes e raparigas, ia procurar trabalho. Mais raros

43
eram aqueles cujos esforçados rendimentos familiares e qualidade… a sala enchia. Todas as famílias da
sucesso escolar permitiam continuidade nos estudos em comunidade queriam assistir.” (Elisete Andrade, moradora)
escolas próximas ao bairro (a escola secundária da
Pontinha era a alternativa mais procurada) já que a oferta, “No salão de festas fizeram-se peças de teatro
em termos de equipamento escolar, naquela altura (e até maravilhosas. Lembro-me de uma - “Natal na Praça” –
1993) estava circunscrito à escola primária. uma peça com grande sucesso sobre a vida de Jesus Cristo.
Tinha personagens vestidos de ciganos, uma carroça
Centro Cívico – “o nosso salão de festas!” verdadeira e que teve o som de um burro a zurrar…
Ninguém lhe falou nela?!” (Isabel Geada, técnica da acção CENTRO CÍVICO E SOCIAL, 1962 (AF-CML)
Uma das referências fortes do bairro foi o “Centro social no Bairro (1963-71))
Cívico”. Era gerido pela Comissão da Acção Social dos
Bairros Municipais, da qual fazia parte a Igreja “Para mim o que mais marcava vida do bairro era aquele
representada pela figura do Padre Francisco. Era ao padre salão. Nunca quero acreditar que aquilo vai abaixo um
Francisco que se tinha que solicitar a autorização para usar dia… isso faz-me muita confusão… aquilo era uma
este equipamento. Destinado a “casa de cultura e de maravilha… havia ali cinema todas as semanas. Nós
trabalho”, os moradores acabariam por renomeá-lo para tínhamos um padre – o padre Francisco que ia ao cinema
“salão de festas”. Uma identificação que comprova as com a gente. As pessoas às vezes falavam, mas ele foi
muitas e diversas iniciativas que ali aconteceram. Para importante…“ (Teresa Guerra, moradora).
além das animadas e concorridas festas da catequese,
também o cinema e as sessões de teatro, contribuíram “Havia aqui teatro. Era um espetáculo! Havia um alçapão
para essa vivência festiva do “nosso salão”. Todos os que dava para fazer teatros muito giros. Com muito boas
moradores com quem conversámos fizeram referência a condições! De onde sai aquele senhor? Ele aparecia e
este equipamento. ninguém sabia como … Era muito giro. E tinha camarins e
duches…” (Carlos “Canhoto”, morador)
“Ora, este afastamento do bairro em relação à cidade,
obrigou a que fossem construídos os equipamentos Mas juntamente com o grande auditório (para PADRE FRANCISCO ASSISTE A ESPECTÁCULO
DA CATEQUESE, 1966 (FOTO PARTICULAR)
necessários para garantir a vida do bairro. O facto de o cinema e teatro), o Centro Cívico comportava outras
bairro ter um “Centro cívico” é muito moderno.” (Jorge valências: era ali que estava instalada a primeira
Nicolau, ex-morador). “biblioteca de Carnide, mais conhecida por “sala de
leitura”, o posto do fiscal do bairro (a tal “casinha do
“No salão de festas aconteceu muita coisa. Muita festa. fiscal”), a pequena sede d’Os Unidos e, mais tarde, uma
Alguns dos ranchos ensaiei eu. Participávamos todos. pequena delegação da Junta de Freguesia de Carnide.
Havia peças de teatro ensaiadas por um senhor cá do
bairro que escreveu um livro de poemas sobre o bairro – O Cinema – “…do tempo do bilhete a sete-e-
Alberto Artur Mendes (já falecido). Este senhor ensaiava quinhentos. E até menos!”
muitos jovens. Fazíamos peças que apresentávamos no
salão de festas.” (Lídia Pereira, moradora). A existência de um cinema no bairro para
projecção de filmes foi outra medida que, nesta fase inicial
“As festas da catequese também marcaram muito a vida do bairro, não pode ser desligada da propaganda do regime
daquele salão. Apresentavam-se espectáculos com grande do Estado Novo e da própria estratégia da ditadura que,

44 ESPECTÁCULO DA CATEQUESE, 1966


(FOTO PARTICULAR)
através do SNI (Serviço Nacional de Informação), “Ninguém disse como chamávamos ao cinema?! Era o
controlava todos os visionamentos dos filmes. cinema piolho, pois era…” (Jorge Nicolau, ex-morador)
Muito procurado pela juventude (masculina) a visualização
dos filmes das “tardes de cinema” (após a devida A Biblioteca Popular Fixa de Carnide – “a nossa Sala
autorização pelo SNI [Serviço Nacional de Informação] e de Leitura”
pelo Padre Francisco) foram lembradas com saudade.
Havia sessões a decorrer desde 5ª feira até domingo e, No seguimento do ideário republicano de
quase todas elas, esgotadas. Arranjar dinheiro para o alfabetização e instrução das “classes trabalhadoras” mas
INAUGURAÇÃO DA SALA DE CINEMA, 1962 (AF-CML) bilhete ou inventar formas de “ultrapassar” a vigilância do também de propaganda cultural do Regime e “formação
encarregado do cinema seriam, por certo, estratégias que dos espíritos” à semelhança de outros “bairros
alimentavam as conversas da juventude durante toda a provisórios”, o Bairro Padre Cruz também dispôs de uma
semana. “Biblioteca Popular Fixa”. Uma designação que a distinguia
das carrinhas de bibliotecas itinerantes que circulavam por
“A Comissão que geria o salão de festas ia ver o que estava alguns bairros camarários e, ao início, também pelo Bairro
disponível no mercado, ver os vários distribuidores, e Padre Cruz(5) “E havia a biblioteca itinerante que vinha ao
depois iam ao SNI para obter as licenças necessárias. Era bairro de 15 em 15 dias” (M. Graça, ex-moradora).
assim que funcionava e foi assim que funcionou mesmo Através dos anais da CML de 1963 acedemos ao
após o 25 de Abril com a tal Comissão de Moradores…” registo do espólio da Biblioteca Popular Fixa de Carnide. Ali
(António Cristino, morador) consta a referência a 1 191 exemplares distribuídos por
diferentes categorias: jornais, livros de literatura, infantis…
“A Igreja também controlava o cinema e o dinheiro das O movimento (anual) era de 2 750 leitores (sendo 1 273 de
sessões era entregue ao Padre Francisco.” (Manuel João, leitura diurna, e 1 477 de frequência noturna); onde os
morador) jornais e as revistas estão registados como os exemplares
com maior procura, seguidos dos livros classificados como
“Sou do tempo do bilhete a sete-e-quinhentos. E até literatura e, depois, literatura infantil.
menos…!” (Carlos Canhoto, morador)
“Eu era estudante de Geografia, no 1º ano da faculdade de
“O cinema! Eu adorava o cinema! As bilheteiras abriam às Clássicas, e recebi uma carta da Câmara Municipal de
8 horas e esgotava e eram sempre os mesmos que Lisboa a confirmar emprego na Sala de Leitura do Bairro
conseguiam ir… Porque depois já não havia bilhete. De 8 Padre Cruz. Vim ganhar 2.200$00. Já era moradora no
em 8 dias ou de 15 em 15 dias mudavam o filme. Havia os bairro há 2 anos. O horário era das 9h às 11h da noite –
filmes indianos, o Trinitá, o Bruce Lee – mas eu desses não talvez tivesse intervalo para almoço. Primeiro houve um
gostava. Era muito artificial. Mas saíamos dali todos a bater casal, o Inocêncio e a Fernanda. Eram moradores. Depois
uns nos outros, era pontapé, era karaté…Para as crianças veio o Sr. Vitorino. Eram os auxiliares – faziam a vigilância.
a melhor parte que tivemos aqui no Bairro Padre Cruz foi Tínhamos alguma variedade, havia empréstimo
precisamente o cinema…” (Fernando Pereira, ex-morador) domiciliário.
Era o único local para ter acesso às informações e ler o
“O primeiro filme que vi foi o Joselito. E também houve o jornal. A biblioteca estava preparada para as várias idades.
Cantiflas…” (Olinda, ex-moradora) Depois íamos acrescentando alguns títulos.” (Amália
Lemos, ex-moradora e ex-bibliotecária)

BIBLIOTECA MUNICIPAL DO BAIRRO PADRE CRUZ, 45


1962 (AF-CML)
A relação de proximidade e de cumplicidade com gostava era que eu lesse para ele ouvir. Por isso, quando se
os funcionários da biblioteca, ao longo do tempo, foi fala das pessoas humildes e dos estratos sociais mais
sublinhada com entusiasmo. Foram vários os funcionários humildes é preciso saber que há pessoas humildes que
que deixaram boas memórias (o Sr. Paulo, o Sr. Armando reflectem, que pensam e que sabem o que querem…”
Calado…), de atenções e cuidados, o aconselhamento e (Elisete Andrade, moradora, presidente da AMBCP)
selecção de livros,...
Oficinas da Acção Social da Câmara Municipal de
“Um dia o meu pai apanhou-me a ler uns Caprichos. Não Lisboa
eram meus porque eu não tinha dinheiro para comprar. SALA DA BIBLIOTECA, 1964 (AF-CML)
Eram de outras raparigas que já não os queriam, e eu As Oficinas do Serviço Social da CML foram
aproveitava. Mas o meu pai não queria que eu lesse aquilo. inauguradas um pouco mais tarde, em 1964. Eram
Foi então comigo à biblioteca dar autorização para eu destinadas unicamente à população feminina. Não foi
poder ir levantar livros à biblioteca. Eu adorei. Comecei a ir apurada a relação com a Obra das Mães pela Educação
buscar livros… Eu gostava muito de ler…” (Custódia Nacional (vd. nota 3 do presente capítulo). Ocupavam duas
Pereira, moradora) salas – malhas e costura – e tinham a coordenação da D.
Armanda, ao início. Ali eram feitos trabalhos, na sua grande
“Costumava ir à biblioteca do bairro pedir os livros maioria, ao serviço da CML – é o caso das respectivas
emprestados para os meus filhos estudarem. Eles fardas – e da confecção das roupas, que eram oferecidas
estudaram até quererem. Eu, que nem ler sabia, sempre aos filhos dos funcionários da CML, em cada Natal.
tive atenção aos estudos dos meus filhos. Sempre os Este terá sido dos equipamentos que gerou mais
acompanhei.” (Nazaré, moradora). polémica e de curta actividade pois, para além da
exploração da mão-de-obra e dos “pagamentos de
“O que eu aqui passei nesta biblioteca, o prazer que eu miséria” (cf. isabel Geada e a moradora Nazaré), a sua
tinha pela leitura! Era aqui que eu ia ler horas e horas e integração na SCML estava a constituir-se e ficou
horas… Eu lia o jornal de manhã… estava ali o Sr. Adelino comprometida com as mudanças operadas pelo 25 de
que era o funcionário e guardava os livros que nós INAUGURAÇÃO DAS OFICINAS DE ACÇÃO SOCIAL,
Abril, em 1974.
1965 (AF-CML)
queríamos… isto aconteceu logo a seguir ao 25 de Abril. A
biblioteca também serviu, mais tarde, para ponto de “A criação de oficinas foi muito importante – coser à
encontro, de conversas, de discussões amigáveis… máquina e trabalho de malhas. A CML adquiriu as
Armando Calado – era uma referência fundamental – máquinas e houve pessoas preparadas para dar a
responsável na Biblioteca. Vive hoje no bairro novo – era formação. Cursos para as mulheres aprenderem e
licenciado e integrou-se perfeitamente na vida do bairro. aceitavam-se encomendas do exterior. Eram encomendas,
Fez parte do Grupo de Teatro de Carnide e, se não viesse o sobretudo da Câmara. As fardas – eram às centenas! – e as
25 de Abril, teria problemas… ele estava identificado pela ofertas de Natal para os filhos dos funcionários da Câmara
PIDE…. Fizemos grupo de jovens, éramos quatro ou cinco – saias e calções e camisolas. Eram remuneradas à peça.
que nos encontrávamos e tínhamos conversas… E depois Trabalhavam para as oficinas da tropa, fardamento...
estas nossas sinergias transferiram-se para o Grupo de Recebiam uma miséria, mas recebiam qualquer coisa.”
Teatro de Carnide.” (Jorge Nicolau, ex-morador) (Isabel Geada, assistente social no Bairro (1963-71)

“O meu pai lia e gostava muito de ler. E o que ele mais “Quando o bairro foi construído tinha umas Oficinas do

46 OFICINAS DE ACÇÃO SOCIAL,


1969 (AF-CML)
Serviço Social, da Câmara, que deixaram de funcionar na dali eram dadas para os funcionários da Câmara, no Natal.
década de 70. Com a evolução dos processos de trabalho Então o nosso Bairro Padre Cruz, na altura do Natal,
não justificava que estivessem ali umas mulheres a víamos as meninas com as saias ao xadrez de pregas e os
aprender malhas. Inicialmente eram dos Serviços Sociais meninos com camisinhas novas… E a gente saía à rua e só
da Câmara, tal como a construção da creche e do pequeno via… ‘filho de funcionário, filho de funcionário”… um
gabinete médico. Foi a Santa Casa da Misericórdia de espectáculo!” (Fernando Pereira, ex-morador)
Lisboa que veio gerir essa unidade. E tinha um gabinete –
no Centro Social onde estavam duas ou três técnicas. Mais Posto médico, dispensário e creche do Centro Social
POSTO MÉDICO, DISPENSÁRIO E CRECHE, 1962 (AF-CML) tarde, as oficinas acabaram por ser usadas para outras
modalidades – carpintaria, utilizada por um morador; e, Num só e mesmo edifício do Centro Social
outra por um pintor e um carpinteiro de pequenos estavam instaladas várias valências: o posto médico, o
restauros.” (António Cristino, morador) dispensário e a creche.
O posto médico dispunha de dois médicos – Falé e
“Na inauguração das oficinas cada uma fez uma peça, Rosa Paixão – e uma equipa de seis enfermeiras (Céu,
para fazer uma exposição de rendas, de almofadas… Era o Maria do Patrocínio, Rosalina, Guilhermina, Ermelinda e
artesanato do bairro. Estava lindo! Nas oficinas o trabalho Deolinda) que tinha a responsabilidade do
não correu bem porque trabalhávamos muito e queriam acompanhamento da sala dos bebés, no dispensário, e o
pagar-nos pouco. Também fiz pijamas. E rendas e toalhas. acompanhamento das mães recentes.
Mas o trabalho e a linha era toda minha e depois queriam
dar-me só metade do preço da venda. E eu não deixei.” “Nós fazíamos acompanhamento às mães. Íamos a casa
(Nazaré, moradora) das mães para as ajudar a tratar dos seus filhos.
Ensinávamos a pegar ao colo, a alimentar, cuidar a
“A D. Rosa foi a mestra das malhas. Faziam-se as higiene… Uma vez chamaram-me de urgência porque
camisolas para a Câmara. No Natal a Câmara dava uma estava um bebe a nascer… e o que havia eu de fazer?
caixa com roupa aos filhos dos funcionários. Nas férias Chamei uma ambulância mas entretanto eu tive que ajudar
POSTO MÉDICO, DR. FALÉ, 1969 (AF-CML) toda a rapariga nova ia trabalhar para as malhas. O que era o bebe a nascer… ralharam-me tanto, nem imagina!
ir para as malhas? Era coser as camisolas, as senhoras Fazíamos aulas para as utentes, ensinávamos tudo… os
tricotavam e as miúdas cosiam. A D. Rosa foi a minha cuidados a ter, a alimentação, o deitar… Estas aulas eram
catequista. Às vezes dava-nos a catequese nas oficinas fundamentais para as pessoas. Elas gostavam e
pois quando tinha um trabalho para acabar estava na precisavam. Eram aulas de puericultura.
máquina a tricotar e a dar-nos a catequese. E havia a Dr. Falé Quental era de adultos. O Dr. Rosa Paixão era das
Lucinda e a Dª Armanda que faziam a ligação entre a acção crianças. Era um excelente médico. Era uma pessoa muito
social e a Câmara. Houve pessoas que faziam em casa, humana, trabalhava muito bem connosco.
aprendiam com a D. Rosa e depois trabalhavam em casa Íamos aos outros bairros. Tínhamos dias em que havia
com a máquina que compravam e iam pagando…” (Lurdes muito que fazer. Muita gente para ser atendida e com
Faria, moradora) seringas que eram fervidas… hoje pensamos como isso
era, os cuidados que tínhamos que ter. Era uma vida de
“A minha irmã ainda trabalhou nas oficinas, no atelier de bairro muito tranquila. Éramos uma família. Era um bocado
costura e ali saíam roupas para os funcionários da periférico, tínhamos que ir a pé…” (Rosalina, ex-
Câmara… Era trabalho pago, mas as roupas que saíam enfermeira)

POSTO MÉDICO, ENFERMEIRA ROSALINA 1969 (AF-CML) 47


Havia marcação de consultas no posto mas havia rudimentar dos tempos antigos e anteriores ao próprio
ainda a possibilidade de consulta médica domiciliária bairro e que teria servido de casa de apoio às quintas de
quando absolutamente necessária. Eram serviços pagos a outrora.
baixo custo e muito procurados pela população. Os
médicos e as enfermeiras acompanhavam e instruíam em A mercearia “casa branca” – “um monte alentejano”
termos de vigilância e cuidados de saúde assim como na
informação e acompanhamento a vários níveis: educação Para além da mercearia, a “casa branca” abrigava
alimentar, higiene, planeamento familiar… Foi uma equipa uma pequena taberna e barbearia; outra parte hospedava a
que se manteve mais ou menos estável e de quem os família dos proprietários e os empregados. Outra divisão
moradores reservam grata memória. ainda dispunha de quartos para albergar as gentes de
trabalho que vinham ajudar nas campanhas agrícolas das
“Os armários que se vêm nas fotografias vieram da Quinta searas que circundavam o bairro.
da Calçada. Havia o posto médico. Os médicos – o Dr. Rosa Lembremos que durante os primeiros tempos do
Paixão e o Dr. Falé eram muito bons médicos. O Dr. Rosa bairro de lusalite este era o único espaço para algum
Paixão ia a casa quando os miúdos estavam doentes. Ah, e convívio. Esta mercearia manteve-se ao longo do tempo e,
a enfermeira Rosalina! Essa senhora era uma santa. mais tarde, receberia a chegada da televisão. Seria ali que,
Éramos muito amigas. Era posto médico e juntamente desde 1964, os jovens e graúdos do bairro moraores da
funcionava a creche. Havia também um dispensário – de zona de lusalite reuniam a emoção para assistir aos
leite, a farinha… As mães iam à consulta e levavam o concorridos festivais RTP da canção que também
leitinho para os seus meninos.” (Lurdes Faria, moradora) marcaram várias gerações.

Na creche, para as idades compreendidas entre os “A “casa branca” era uma pequena mercearia e taberna.
2 e os 6 anos, a equipa era constituída por duas Vendia carcaças e lá ia vender a peixeira Maria dos Anjos
educadoras (Leonor e Maria João), 3 auxiliares de que punha ali umas caixas cá fora. Tinha pequena taberna.
educação (Lurdes, Margarida e Luzinda) e uma vigilante Arrendou a casa branca a um sargento de Carnide que
(Marcolina). depois a largou à Quitéria que morou lá. Atrás havia uma CRECHE DO CENTRO SOCIAL, 1969 (AF-CML)
vacaria. Que era do Bernardino. O senhor Artur foi o
“Lembro-me da inauguração da creche onde trabalhei, primeiro da mercearia e, depois, o Fernando.” (Manuel
depois. Lembro-me de ver os bercinhos, com as Cebola, morador)
colchinhas... Já foi abaixo esse edifício – era a creche, o
posto médico e o serviço social. Ali havia uma boneca “A “casa branca” era uma mercearia que tinha tudo. Era
vestida de enfermeira oferecida ao posto médico pelas um balcão grande com três ou quatro empregados a
senhoras da assistência social.” (Lurdes Faria, moradora) atender… Só o peixe é que vendiam fora. Havia
vendedoras ambulantes que paravam junto ao largo.
O comércio local – principais referências Lembro-me disto porque adorava brincar com os peixes…
Na taberna havia o ‘Ti Matias’. Não lhe falaram nele? Toda
Conforme referimos, no primeiro “bairro de a gente tinha respeito ao meu pai, que era o Artur. O meu
lusalite” para além do lavadouro comum e da cabine de pai impunha respeito. Havia um livro de registo com as
telefone existia apenas um ponto de comércio disponível. dívidas e as pessoas pagavam sempre… Creio que terá
Era a velhinha mercearia “casa branca”. Uma construção sido uma referência para os moradores do bairro pois o

48 MERCEARIA "CASA BRANCA", 2010


meu pai ajudou muita gente. O meu pai chegou a morar na Nessa altura, era do senhor Fernando. Havia lá atrás uma
casa branca. Eu também vivi lá. horta onde ele ia buscar as hortaliças para nós…” (Lurdes
O meu pai tinha uma Volkswagen, um carocha. Não sei Silva, moradora).
como o meu pai chegou à Casa Branca. O meu pai era da
Beira Alta. Veio muito cedo para Lisboa, para trabalhar (…) “Passámos dificuldades – o Fernando, da “casa branca”,
Aos 18 anos já era patrão. Tinha várias mercearias em era o “pai dos pobres”. Porquê? Porque vendia a fiado, ao
Lisboa. Quando ele tomou a Casa Branca” eu ainda não mês. Ele tinha uma carrinha, uma Ford Transit. Lembro da
era nascida. Havia um grande pátio dentro dessa casa… gente a ajudar a tirar as coisas do carro e conseguíamos
Tínhamos animais, um pombal enorme. levar para casa – ele era batatas, ele era cebolas, ele era
Quando o meu pai deixou a casa branca havia umas vinte azeite, ele era óleos, ele era massas, ele era bacalhau, sei
pessoas a viver lá… Chegou a ter dezoito empregados que lá… entrava tudo naquela casa por 300 escudos. O meu
viviam lá. Eu era pequenina e lembrava-me daquilo como pai, na altura, ganhava 700 escudos. O meu pai recebia,
um espaço grande. Muito grande. Havia a mercearia, a dava à minha mãe, tirava para os gastos dele e sei que a
taberna, a padaria, uma capelista e um espaço reservado minha mãe ia lá, pagava o dinheiro que tinha e, às vezes,
onde tinha a TV. Nessa sala, que era muito grande, havia ficava qualquer coisa para o mês seguinte. Anotávamos no
um dos armazéns. Lembro-me de ir para a sala da TV e livrinho. E, quando a minha mãe pedia para ir ao Fernando
aquilo estar cheio de pessoas… buscar qualquer coisa – “mas atenção que é só isto!”, dizia
A minha mãe ajudava o meu pai. Criaram um menu para os ela, nós lá íamos com o livrinho e no meio lá saía um
trabalhadores que eram umas sandes reforçadas. As “estica” que era um rebuçado grande e que nós íamos até
pessoas ali eram muito carenciadas e, assim, sempre casa deliciados a comer aquilo… Como a minha mãe não
levavam mais que dava para almoço… e ganhava-se mais sabia ler, não sabia que o estica ia nas contas… Mas nós
uns cobres. não entrávamos logo porque tínhamos o cheiro do doce na
Lembro-me de ver chegar as camionetas do melão, das boca… Largávamos as compras à distância e, depois
batatas… Lembro-me dos grandes alguidares com dizíamos – Ó mãe, ‘tá aqui!’ E tornávamos a correr…”
costeletas temperadas em vinha d’alho e do bacalhau de (Fernando Pereira, ex-morador)
MERCADO, 1963 (AF-CML) molho que as pessoas iam lá comprar…
A casa da roupa era o telheiro com dois tanques. Havia O mercado, “os ambulantes” e os aviamentos em
pessoas que lavavam roupa para fora… e que moravam na Carnide
lusalite.
Gostava de conhecer alguém que tivesse conhecido o meu Já referimos que o edifício do mercado foi
pai. Isso é que eu gostava! E certamente também se recuperado a partir de uma antiga vacaria. Juntamente
lembraria de mim… Eu era muito lourinha. Era conhecida com a mercearia casa branca, aquele edifício está
pela Mariazinha. Depois, sei que foram para lá outras assinalado no mapa da Quinta da Penteeira mesmo antes
pessoas explorar aquilo…” (Maria Piedade, filha do Sr. da origem do bairro.
Artur, da mercearia Casa Branca). Com a instalação do “bairro de alvenaria” a oferta
do comércio diversificou-se um pouco mais atendendo ao
“A “casa branca” era tipo um monte alentejano com todas número de moradores que, entretanto, aumentara
aquelas portinhas. À noite íamos para lá ver TV. Era lá que significativamente – dos 200 agregados iniciais, a partir da
começou a haver TV. Era um sítio muito sossegado. Foi lá década de 60 somavam 1 117 famílias. Porque fortemente
que vi os Festivais da Canção. ligado a vivências partilhadas e personagens caricatas que

INAUGURAÇÃO DO MERCADO, 1962 (AF-CML) 49


não se esquecem, o comércio foi dos aspectos mais os rebuçados de coco a meio tostão, o papel pardo, a
lembrados na vida do bairro. quarta de café, o meio quartilho de petróleo, e havia as
medidas sobre as quais que se passava a régua para alisar
“Abastecia-me na casa branca, na praça, e em Carnide, no e fazer a medida certa… tudo anotado. O petróleo à
celeiro. E na azinhaga comprava a hortaliça. E a fruta… medida, o carvoeiro, a taberna… O Sr. Jaime e D.
muita fruta, porque havia muitas quintas particulares que Esmeralda, da mercearia. Só se comprava melão depois de
vendiam…Havia uma senhora que vendia couves para as se provar… fazia-se um triângulo e comia-se. Era tudo
galinhas – porque chegámos a ter galinhas, coelhos nos muito diferente.” (Jorge Humberto e Ilda Silva, moradores)
quintais da casa… era proibido… mas eu adorava tratar
das galinhas.” (Lurdes Faria, moradora). “Não havia interesse nenhum que as pessoas se
juntassem. Como lhe disse, a leitaria fechava muito cedo e
“Aviávamo-nos no celeiro em Carnide. Vinham aqui vários não tinha mesa nem cadeira. As pessoas, para se
vendedores ambulantes. Lisboa foi perdendo o que tinha juntarem, só nas colectividades. Não se vendiam jornais no
de típico, os pregões de Lisboa… o fava-rica que era bairro. A papelaria aparece mais tarde. Havia taberna,
vendida numas tigelinhas, os morangos… hoje já não há mercearia, leitaria, padaria, dois talhos, a peixaria no
nada disso nas ruas de Lisboa. Aqui, ao bairro, vinha o interior da praça, a capelista, a drogaria e a papelaria que
pitrolino que trazia tudo completo: azeite, petróleo, carvão aparece muito mais tarde. Ao pé das oficinas havia
e por aí andava de porta a porta. A vida era pobre mas todos barbearia, padaria, mercearia mais tarde… um cafezinho.”
íamos vivendo. Éramos pobritos mas alegritos. O mercado (Manuel João, morador)
antes de ser mercado era uma vacaria. Ainda vi a vacaria a
funcionar.” (José Augusto Ferreira, morador) “Alguns vendedores ambulantes – de fruta, roupas,
tapetes… de algodão ‘Vinte e cinco o maço!!!’ e nós
“A praça era onde é hoje, mas muito diferente. Era uma éramos terríveis porque nós repetíamos o refrão. Os
praça cheia, tudo muito bom, tudo muito fresquinho… amoladores de tesouras, eram muito frequentes.”
Comprávamos carvão e bolas de cinzas. Havia o talho da (Fernando Oliveira, morador)
carne de cavalo e carne normal. Porque, na altura, a carne MERCADO, 1965 (AF-CML)
de cavalo era mais barata. Era o comércio que havia. Havia “E havia o senhor que vendia os esticas, que era uma
a drogaria, o Sr. João, comprava-se enxofre para por nos espécie de rebuçados de caramelo e o Garrafinhas que
focinhos dos coelhos porque elas apanhavam bexigas. fazia refrescos e vendia à porta da escola…” (Artur
Comprávamos cal para cair as paredes. Estava tudo muito Mendes, morador)
bonito.” (Anónima, moradora)
“No mercado havia uma mercearia que também hoje ainda
“O mercado na altura era muito superior ao que está há – que é a mercearia do Sr. Jaime que já faleceu…
actualmente: talho, duas peixeiras, mais do que um lugar também veio da Quinta da Calçada. Como tinha lá, foi-lhe
de frutas e hortaliças, a capelista – a Dª Clotilde, a drogaria, dada aqui. E havia uma capelista – que já não existe – que
o padeiro, o Sr. Abílio… Havia muitos vendedores. Lembro- era uma senhora que vendia linhas e botões que também
me também dos gelados Royal, a fava-rica, o língua-da- veio da Quinta da Calçada e era a senhora Clotilde…”
sogra que percorria Lisboa inteira, todo vestido de (Teresa Guerra, moradora)
branco… Assustava os miúdos. A D. Quitéria, atoalhados, a
D. Aurora…A D. Isabel foi a última peixeira da praça. Havia “Aqui no bairro não havia comércio. Só havia mercado.

50
Então o que é que a minha mãe decidiu fazer? “E o homem dos esticas!!!” (Mimi Caldas, grupo “Intas &
Havia pessoas do bairro que vieram da Quinta da Calçada e Entas do Bairro Padre Cruz, facebook)
que deixaram a venda. Então a minha mãe propôs ser ela a “É para os meninos que não comem a sopa… olha o
vender… Assim, ela fazia a venda do leite, e da lixivia, de estica… olha o estica!” (Mimi Caldas, grupo “Intas & Entas
porta em porta e combinava a percentagem com que do Bairro Padre Cruz”, facebook)
ficava. A minha mãe ia e vinha à Quinta da Calçada, a pé,
com as latas do leite à cabeça. E depois vendia à porta. Ao Os caminhos e as acessibilidades ao bairro: “as
fim do dia ia entregar as bilhas e o dinheiro. azinhagas das memórias”
Havia o pitrolino, com uma carroça que tocava aquela
buzina… que era o petróleo, o carvão, os esfregões… ele “A identidade do bairro está no desenho e na azinhaga.
corria o bairro todo para vender… Lembro-me As azinhagas estão carregadas de memórias (….)
perfeitamente do homem do pitrolino: vinha dois dias por Eram locais muito marcantes".
semana, a dias certos, e nós já estávamos a contar com Jorge Nicolau (ex-morador)
ele.
Havia uma senhora, a D. Florinda, que vendia café de porta Vem a propósito salientar que o núcleo antigo de
em porta… e nós juntávamos os saquinhos e, ao fim de uns Carnide era uma referência para os moradores do bairro,
quantos saquinhos, ela dava-nos um brinde. Creio que não só devido à oferta de um conjunto de equipamentos,
uma filha ainda cá mora...” (Custódia Pereira, moradora) bens e serviços, à animação e actividade cultural (escolas,
feiras, colectividades recreativas e de teatro de Carnide…)
“A minha mulher foi vendedeira no bairro de queijos e leites, como também por causa dos percursos pelas azinhagas
de bolos na escola. Fazia queijinhos, ia buscar o leite de que encurtavam as distâncias até à paragem terminal do
manhã, coalhava o leite nas forminhas de alumínio e ia famoso elétrico 13 que, a preço do bilhete operário de oito
para Lisboa vendê-los… Ao final do dia, contávamos o tostões, viajava até aos Restauradores.
dinheiro e separávamos o que era para as despesas. O
resto ia para uma caixinha – “olha, aí está o que ganhei “…Nessa altura pagava-se conforme as zonas…
AZINHAGA DA COVA DA ONÇA, CARNIDE, 1967 (AF-CML) hoje”. Cá em casa nunca houve duas carteiras. Depois, chegávamos a ir a pé até à paragem seguinte para poupar
teve que vender bolos porque o rapaz da Pontinha vendeu uns tostõezinhos para comprar uma pastilha!” (Mimi
as ovelhas e ela andava aí no bairro a apregoar “bóliiiinhas, Caldas, “grupo “Intas & Entas do Bairro Padre Cruz”,
bóliiiinhas…” E vendia aí muitos bolos, vendia bem. Era a facebook)
Maria das Dores.” (Manuel Cebola, morador)
Eram trajectos que consolidavam
“E aqueles bolinhos que uma senhora velhota vendia num companheirismos entre o velho núcleo de Carnide e o
cesto, na casa branca, eram macios e com um creme Bairro Padre Cruz: a Rua do Norte a continuar na Azinhaga
amarelo. Nunca mais comi igual. E os esticas?! Hummmm” dos Cerejais e Azinhaga do Serrado; Estrada da Correia;
(Conceição Costa, grupo “Intas & Entas do Bairro Padre Rua do Pregoeiro; Azinhaga das Freiras; Beco da Cova da
Cruz”, facebook). Onça, Estrada do Poço do Chão, Azinhaga da Fonte,
Azinhaga do Seminário… percorridos por várias vezes ao
“Quem se lembra de uma senhora a vender tremoços na dia.
esquina da rua do Norte….” (Fernando Almeida, grupo Aqueles caminhos estreitos e de terras batidas
“Intas & Entas do Bairro Padre Cruz”, facebook)) eram também onde os jovens brincavam, namoravam,

AZINHAGA DAS CARMELITAS, 1967 (AF-CML) 51


saboreavam as guloseimas dos tostões poupados, “Eram caminhos perigosos porque passavam as
desafiavam-se com os pedaços de tijolos… momentos camionetas para a fábrica do tijolo e não dava para dois
únicos saudosamente recordados entre os residentes. “Era carros se cruzarem. Era muito perigoso… Por isso ficámos
nestes caminhos que melhor percebíamos e conhecíamos muito felizes quando chegou o autocarro.” (Olinda, ex-
quem morava no bairro”. moradora)
Percebemos assim as implicações que, afinal, a
distância geográfica e os percursos comuns para a vencer A inauguração do autocarro – “lá vai o quarenta-e-
tiveram no fortalecimento das relações entre os um!”
moradores, fosse por boas recordações de juventude e de
companheirismo, fosse até por alguma companhia pelo O quarenta e um
perigo associado – “já reparou? Os muros que ladeiam
estes caminhos estão todos riscados. Quanto passava a (Refrão):
camioneta do tijolo, era muito perigoso…”; “um dia, O autocarro/Quarenta e um
andava por aí um touro à solta...” Foi o primeiro!/Não havia nenhum

“A gente para ir para qualquer lado tinha que passar O quarenta e um/Mais quem o conduz
sempre por estas azinhagas. Uma, ia para a direita, para Já vai pr’o Bairro/Do Padre Cruz.
Carnide; a outra ia para outros lados, para Sete-Rios e Vem do Rossio/Já não há lugar.
depois para o Lumiar. Toda a gente passava pelas Ficou lá outro!/Está aí a chegar (…)
azinhagas… para ir para Carnide apanhar o eléctrico 13 Agostinho Coelho Cristino (morador)
com o bilhete operário, para ir ao jardim da Luz ou à Feira
da Luz, em Setembro… Eu morava aqui, na azinhaga Com pompa e circunstância, na presença de
escura…tinha muito pouca luz, àquela altura.” (Carlos várias individualidades civis e eclesiásticas (presidente da
“Canhoto”, morador) Câmara, Bispo de Tiara…), e o apoio vivo dos moradores,
em 1963, a Carris inaugurou um novo percurso – a carreira
“Ah, o caminho das azinhagas! O que a gente se divertia 41. Inicialmente ligava o Bairro Padre Cruz ao Rossio e, um INAUGURAÇÃO DA CARREIRA 41, 1963 (AF-CML)
para ir para a Feira da Luz ou apanhar o eléctrico…” pouco mais tarde, aos Restauradores. Apesar de ter
(Custódia Pereira, moradora). representado um indiscutível benefício para a população, a
carreira do 41 não acabou com os percursos pelas
“E havia a Quinta dos Cavalos… Era uma quinta grande azinhagas – fosse para apanhar o tal eléctrico 13, fosse
onde havia cavalos… Do lado da frente havia a Quinta das para apanhar o recente Metropolitano (a estação de Sete
Cerejeiras que tinha uma casa muito bonita por onde a Rios havia sido inaugurada em 1959). Mas, em Julho de
gente passava a pé de Carnide para o bairro... Havia a 1973, a supressão daquela linha de eléctrico obrigaria à
fábrica do tijolo a meio, antes de chegar ao Convento das alteração nas rotinas dos moradores, passando o autocarro
Freiras, ao lado, havia ali uma estradinha que era a Cova da 41 a ter uma maior procura se bem que a morosidade e
Onça porque atravessávamos por ali para ser mais perto… irregularidade das carreiras dificilmente correspondesse às
Os caminhos, às vezes eram tão estreitos que se viessem necessidades dos utentes(6)
dois carros, um teria que recuar. As paredes dos muros
estão todas raspadas… e houve lá vários acidentes “Para a inauguração do autocarro lembro-me de estar na
graves…” (Teresa Guerra, moradora) escola e a professora – a D. Maria Augusta pôr-nos todos

52
direitinhos. Estávamos ao pé da capela e lembro de ela nos de comunidade (vivencial e religiosa) para a qual procurou
escolher. Talvez aqueles que tivessem as batas mais a colaboração de jovens moradores mais promissores que,
limpinhas para irem para a frente. Tenho essa ideia.” intensamente, recrutava como catequistas.
(Carminda Prado, moradora).
“A paróquia tinha uma força muito grande e sempre
“Quando começou a circular o primeiro autocarro foi uma tivemos padres espectaculares. Eu gostei muito de ser
grande festa! Uma grande festa!” (Olinda, ex-moradora). catequista. Fizemos imensos retiros no seminário com o
padre Francisco Marques.” (Olinda, ex-moradora).
VIVÊNCIAS E APOIOS SOCIAIS
“O padre Francisco, que foi o primeiro bispo de Santarém,
A paróquia, a catequese e a dimensão assistencial: “o era um homem extraordinário. Desde o início do bairro,
bairro tem trabalhos pioneiros” quando bairro ainda estava a nascer, ele andava por aí com
o hábito e sandálias de franciscano, todos os dias ver como
O meu bairro era normal//Não tinha nada de especial iam correndo as coisas… porque naquela altura apesar da
Ao sábado havia a catequese//Que era dada pela D. ligação Igreja-Estado ser muito forte, não tenhamos
Lizete dúvidas que ele fez cá um excelente trabalho de
E mais o senhor Matias//que não era de fantasias. acompanhamento das pessoas… Na zona das oficinas, na
Me lembro que não tinha//idade, para na catequese paróquia, havia muitas festas. Era uma referência muito
Andar mas fugia; mais//uma amiga, para no fim forte (…) todas as celebrações de primeiras comunhões,
Lá ir parar//Ao domingo íamos à missa profissão de fé… eram para as catequistas, padre e
Não podia haver preguiça//E no final da palestra moradores do bairro uma coisa extraordinária. Nós
O padre Francisco dizia //”meus meninos não tenham enchíamos as salas, com grandes festas, mesas muito bem
Pressa! Não saiam em correria”//E o domingo passava arranjadas… (…) E mesmo em termos pastorais, fizeram-
Nesta doce alegria.” se aqui as primeiras experiências, o bairro tem trabalhos
(Ana Violante, pioneiros.” (Elisete Andrade, moradora, presidente da
PADRE FRANCISCO COM CATEQUISTAS
grupo “Intas&Entas do bairro Padre Cruz”, facebook) Associação de Moradores)
(sd, FOTO PARTICULAR)

Como já referimos, a paróquia teve um peso “Sou do tempo em que o senhor padre Francisco andava
determinante na organização da vida social do bairro, com a cruz pelas casas na Páscoa. Em todas as Páscoas
sobretudo durante as primeiras décadas e até finais dos tínhamos o melhor que pudesse sobre a mesa… quem
anos 80. Apesar da relação entre a ditadura e a Igreja pudesse… umas amendoazinhas e quem pudesse ter
Católica ser assunto controverso e de diferentes e leituras(7) algum dinheiro o senhor padre ia, benzia a casa, estava um
o papel da Igreja Católica (via Ordem Franciscana) no Bairro bocadinho com a gente… Era como eu lhe digo – isto
Padre Cruz foi marcante. O seu mentor – pároco António parecia uma aldeia porque havia isso tudo: havia muita
Francisco Marques – foi de intensa proximidade junto dos entreajuda… quando alguém precisava de alguma
moradores(8). A intervenção desta paróquia que em muitos coisa…” (Teresa Guerra, moradora)
pontos se interligou com o trabalho das técnicas de serviço
social antecipou, de certo modo, a criação de uma “E aqui o meu pai foi puxado para a paróquia e parece que
comunidade de bairro. A figura do Padre Francisco (o foi um milagre. Aqui, no bairro a nossa vida melhorou
“padre Chico”) destacou-se na construção desse sentido muito.” (Lídia, moradora)

SR. ALFREDO E CATEQUISANDOS 53


(sd, FOTO PARTICULAR)
“Eu adorava o mês de maio! Porque aqui as raparigas – morador)
algumas! – do bairro eram muito reprimidas e no mês de
maio íamos ao terço e usávamos o véu. Os rapazes Nesta fase, a paróquia era o centro da vida
estavam na porta da igreja e depois aquilo era uma comunitária do bairro – dinamizando mas, também,
brincadeira, ninguém rezava o terço… os rapazes levavam administrando e controlando. Toda a vida social (as festas,
as espigas para nos atirar, tiravam-nos o véu… coisas sem o cinema…), associativa e clubística do bairro tinha que ir
maldade nenhuma. E depois, à porta da igreja havia prestando contas ao padre Francisco Marques, o que nem
sempre converseta… sempre era bem encarado pelos moradores…
E na Páscoa tínhamos os padrinhos. Quando saíamos da CAMPO DE FÉRIAS, 1967 (FOTO PARTICULAR)
missa, à porta da igreja, estavam os padrinhos para nos “Não tenho uma imagem do Padre Francisco positiva. Ele
darem as amêndoas. E quem escolhia os padrinhos eram prestava-se a servir o regime, comportava-se como o
os afilhados. Aquilo era uma espécie de brincadeira mas regedor da freguesia. Foi um opositor da construção do
era muito engraçado… Eu teria uns 12, 13 anos.” (Lurdes nosso campo de futebol. Na opinião dele o campo não
Faria, moradora) deveria ter sido entregue ao Unidos. Possivelmente queria
ter a tutela do campo, não sei porquê.” (Manuel João,
Foi também a paróquia que organizou as primeiras morador)
colónias de férias onde jovens seminaristas da Ordem
Franciscana foram monitores. “Era tão importante que Outros apoios assistenciais – "as irmãzinhas da
estes jovens vissem o mar! Essa experiência foi tão Assunção"
fundamental na vida deles. Pelo convívio, aprenderem
outras regras, oportunidade para conviverem de outro No âmbito dos apoios sociais, a presença das
modo…” lembrou Isabel Geada. “irmãzinhas da Assunção” faz parte das memórias mais
estimadas do bairro.
“A parte religiosa aglutinava muitos jovens. Tudo muito
organizado, com um crescimento muito bom. Tínhamos “As Irmãs da Assunção pertencem a uma Ordem religiosa
encontros, retiros, campos de férias, colónias... Íamos nascida em França, por alturas da Revolução Industrial, CAMPO DE FÉRIAS, 1967 (FOTO PARTICULAR)
para o Estoril todos os dias – uma vivenda cor-de-rosa com o Padre Pernet. Como as mulheres passaram a
muito bonita, com umas instalações muito boas, e ali trabalhar nas fábricas, esta foi uma reposta que a Igreja
estávamos todos os dias… Iam duas camionetas cheias de Católica tentou encontrar para dar apoio a essas
crianças. Era muito bom. No Estoril íamos e vínhamos transformações. Essas mulheres passaram toda a sua vida
todos os dias. Íamos para a praia e depois para o pinhal. O a dar um apoio à família que ia desde o planeamento
padre Francisco também ia e regressava ao final do dia. familiar – dentro da linha de visão da Igreja Católica – às
Não pernoitava lá. Mas houve uma altura em que fomos alimentações, aos cuidados da casa, ao cuidar da saúde
para a Nazaré. Era muito bom.” (Nazaré, moradora) dos filhos… Grande parte delas eram médicas e
enfermeiras e assistentes sociais (…) Com as irmãs era
“Foram princípios de vida muito bons. Os meus filhos tudo muito próximo e humano. É a diferença entre a missão
adoram o bairro. Participaram na paróquia e fizeram parte ou a profissão.” (Elisete Andrade, moradora)
de um grupo de jovens com uma senhora que era a D.
Nazaré… que fazia parte das colónias que eles adoravam “Viemos a pedido da Câmara Municipal porque a
ir. A paróquia puxava muito.”(Fonseca, comerciante e Congregação das Irmãs da Assunção tem como carisma

54
trabalhar com as famílias em situação de debilidade, em Xaverine, a madre… era uma, mulher muito inteligente,
situações de fronteira, no sentido de ajudar à estruturação extraordinária. Tiveram um papel importantíssimo no
ou reestruturação da família. Viemos 4 ou 5 irmãs, não me bairro. Articulávamos muito bem com o padre Francisco, as
recordo bem, por volta de 1963, creio. Trabalhamos em técnicas da acção social…” (Isabel Geada, técnica de
relação, em rede (…) nunca trabalhando isoladamente acção social (1963-1971)
mas sempre complementares de outras acções.
Trabalhámos sempre com o intuito de ajudar as famílias e, “Lembro muito bem das Irmãzinhas – a Silvina, Joaquina,
nesse objectivo, viemos para o Bairro Padre Cruz. Este era Rita, Júlia, Celeste saiu de freira e foi para o IPO (Instituto
um ‘bairro piloto’, de certo modo, e pretendiam ter todas as Português de Oncologia). Elas trabalhavam tanto, tanto …
infraestruturas necessárias para ajudar as pessoas a ter coitadinhas! E levavam uma vida tão dura. E não podiam
uma vida melhor. Sabíamos que naquela altura não havia aceitar nada de ninguém, nem podiam dizer a data do
serviço ao domicílio em termos de apoio e serviços de aniversário e não podiam aceitar ofertas, nem uma
enfermagem… lembrança…Não sei se lhe falaram como era a casa das
Neste bairro, grande parte dos moradores trabalhava para irmãzinhas… eram duas casas que estavam ligadas. Só
a Câmara Municipal de Lisboa, varredores, cantoneiros, tínhamos acesso à casa principal. E ali tinham a enfermaria
alguns polícias… A maior parte vinha deslocada de outras e uma capelinha. E estava tudo muito limpinho, muito
zonas da cidade por causa da construção da ponte 25 de branquinho, impecável o chão. A casa estava um brinco.
Abril; vinham também de perto do Hospital de Stª Maria… Hoje deve estar tudo transformado porque são casas de
Vinham morar para este bairro novo, de casas baixinhas. habitação. E já devem estar separadas. Eu morava nas
Creio que haveria 5 000 habitantes no total, contando com traseiras e lembro-me de ir, numa aflição, pedir ajuda às
alvenaria e lusalite. Eram muitas famílias. Lembro-me de Irmãs… e elas lá me sossegaram…” (Lurdes Faria,
muitos desequilíbrios no modo como os maridos tratavam moradora)
as mulheres, desequilíbrios de formação, de educação…
eram muito acentuados. Mas a mim, o que depois mais me “Havia aqui as irmãzinhas da Assunção que, no inverno,
agradou, foi a aprendizagem que estas famílias faziam da tinham muitos doentes e trabalho, e eu vinha ajudá-las
AZULEJO OFERECIDO POR MORADORAS,
nossa actuação, afinal tão pequena, tão localizada (…). voluntariamente. Ajudava na igreja, nos paramentos do
CASA DAS IRMÃZINHAS (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
Estive neste bairro de 1963 a 1969. Foi para mim um padre, nas flores… todas as semanas mudavam-se as
período extremamente rico no sentido de aprender muito flores. Também as ajudava nas limpezas, nas casas. Elas
mais com a vida das pessoas do que propriamente com uns trabalhavam muito. E eu fui ajudá-las e, mais tarde,
‘cursinhos’. (…) E, por vezes, o que mais falta a estas também me ajudaram muito, quando estive doente. E com
pessoas é oportunidades, creio. Precisamos de aprender o meu marido doente, também… Tive um grande desgosto
sempre mais. E aprendermos uns com os outros. (…) E quando as irmãzinhas foram embora do bairro.” (Isabel
digo-lhe: era mais fácil naquele tempo. Porquê? Porque Maria, ex-moradora)
estipulávamos as tarefas e os deveres entre nós. E como
tínhamos uma vida muito desgastante, aos fins de semana “As irmãzinhas da Assunção foram elementos fantásticos
íamos para o pinhal da Paiã. Passávamos lá o dia a naquele meio. Não as conheci muito de perto. Ia à
conversar umas com as outras, a apreciar a natureza, as capelinha delas, ao oratório fazer uma pequena
coisas bonitas...” Irmã Júlia (no Bairro 1963-1969) celebração uma vez por mês porque tinha o sacrário. Elas
ajudavam as pessoas doentes e idosos. Elas foram muito
“Lembro muito bem das irmãs da Assunção – a irmã importantes enquanto a paróquia não estava organizada.

APOIO FAMILIAR, IRMÃZINHAS DA ASSUNÇÃO 55


(sd, FOTO PARTICULAR)
Mas quando a paróquia cresceu e se organizou elas padre Araújo que trouxe a bandeira para eu fazer a
puderam ir trabalhar para outro lugar onde eram mais bandeira desta paróquia. Tínhamos a bandeira do
precisas…” (Padre António Araújo, no Bairro de 1966- Apostolado de Carnide mas eu queria ter uma bandeira
1981) própria do Bairro…” (Cândida, moradora)

Movimentos e grupos de reflexão da paróquia “Havia a Sagrada Família e o Apostolado da Oração – era
um altarzinho que circulava entre as casas das pessoas.
Num tempo em que a Igreja Católica partilhava Porque a oração era aqui muito valorizada. Era um
com o poder político a disciplina e a doutrinação dos movimento de acção religiosa que era muito engraçado.”
cidadãos (“Deus, Pátria, Família”), não é de estranhar a (Olinda, ex-moradora)
existência de vários grupos de vocação católica orientados
para e por diferentes segmentos de pessoas comuns, de A Liga Eucarística, “Movimento Eclesial de
leigos . O facto de a paróquia estar bem organizada no Leigos” que se autonomizou do Apostolado da Oração. A
Bairro Padre Cruz sob a responsabilidade de um padre finalidade específica deste Movimento é instaurar nas
muito dinâmico justificou a multiplicação de acções mais estruturas de vida uma forma de espiritualidade cristã mais
ou menos informais que a comunidade paroquial foi próxima das experiências de vida de cada um. Inicialmente
desenvolvendo. Se bem que algumas destas iniciativas não envolvia apenas os homens que participavam
fossem exclusivas do Bairro Padre Cruz e fossem comuns mensalmente na reunião «Cenáculo».
ao núcleo mais antigo da freguesia de Carnide é certo que
existiu um desenvolvimento de cariz muito local com base “A Liga Eucarística do Bairro Padre Cruz surgiu de uma
nos testemunhos dos residentes. De notar que a dinâmica secção do Apostolado da Oração para quebrar o tabu de
do padre Francisco Marques (e, depois, outros párocos que a missa, a comunhão, a confissão, era mais para as
como António Araújo) esteve presente em todas elas. De mulheres. Tinha 60 membros. Eram só homens.” (Manuel
entre estas iniciativas, conseguimos apurar: Martins, morador)
PADRE JOAQUIM E MEMBROS DA LOC
O Apostolado da Oração com ligações com a A Juventude Operária Católica (J.O.C.) que daria (sd FOTOGRAFIA PARTICULAR)
Companhia de Jesus (vulgo, Jesuítas), de origem francesa, origem à Liga Operária Católica (L.O.C.) surgira em 1925,
ao ano de 1844. O Apostolado da Oração chegou a na Bélgica, por iniciativa do padre Joseph Cardin e de um
Portugal em 1864, onde teve uma expressão significativa. grupo de jovens trabalhadores. O seu principal objectivo era
Esteve presente em todas as dioceses e na maioria das aproximar a Igreja e o mundo operário. Em 1935, a J.O.C.
paróquias. entrou em Portugal. Inicialmente conheceu um grande
protagonismo entre a juventude trabalhadora. Todavia,
“Formei aqui o Apostolado da Oração. Foi o Padre Araújo esta situação modificou-se após o 25 de Abril de 1974 pois
que disse para ficar eu no Apostolado da Oração. Havia as muitos dos seus militantes entraram em outras
associadas, zeladora, vice-presidente, presidenta… agora organizações, designadamente nos sindicatos. Muito
é que já saí… Rezávamos pelos vivos e pelos mortos. Mas embora o núcleo antigo de Carnide já tivesse alguma
eram responsabilidades diferentes. Era uma missa por tradição e organização nesta área, este movimento
cada alma que morria. Fiquei com Apostolado sem saber conheceu expressão própria no bairro, protagonizada por
ler nem escrever. Chegámos a ser umas cinquenta. Eu ia a alguns moradores muito activos.
todo o lado com a bandeira do Apostolado da Oração. Foi o

56
“A JOC reunia-se no salão de festas. Tinha por preocupação que organizavam os arraiais no largo em frente à sede.
a formação cívica. Era um grupo de jovens ligados à Igreja. Também usavam a sede para outras actividades culturais.
Éramos 20 e tal. A LOC funcionava de outro modo, mais Acompanhava o meu pai aos Amigos da Luz. Eram muito de
sério e institucional. Congregava muitos homens. Só bairro, mas restritivos… Era um clube que funcionava
homens. As reuniões eram acompanhadas pelo padre como uma extensão da casa e por isso também eram
Francisco.” (Olinda, ex-moradora) selectivos na admissão dos sócios. Ia-se lá para conviver,
tomar café, jogar às cartas…” (morador)
Clubes e colectividades – um património singular da
história local Muito embora esta variedade associativa tivesse
levantado críticas em alguns dos testemunhos (“haver
Um dos pilares centrais na consolidação do tantas associações tirou força aos clubes”), a verdade é
sentimento de pertença e de “identidade de bairro” foi a que cada uma teve origem em projectos (e pessoas)
vincada presença e acção das colectividades e clubes diferentes e conquistou um carisma próprio. Em muitas
locais. destas associações a figura do director (ou dos fundadores)
Se já o núcleo da freguesia de Carnide revelara era indispensável para vincar a identidade carismática do
uma persistente tradição associativa (a Sociedade clube ou da associação. Tendo em conta que o regime
Dramática e o Carnide Clube são bons exemplos), também controlava e vigiava de muito perto estes movimentos
a história do Bairro Padre Cruz está intensamente associativos, a existência das colectividades, de cariz
comprometida com o desenvolvimento de várias iniciativas popular, foi espaço privilegiado para sociabilidades
associativas por parte dos moradores. alternativas… apesar da vigilância de “agentes infiltrados”
O afastamento geográfico do Bairro e as relações e nestes meios.
sociabilidades entre vizinhos favoreceram essa apetência A história do Bairro Padre Cruz foi (e é)
popular para formar associações que, curiosamente, vão profundamente vincada pelas dinâmicas associativas de
encontrando e construindo os seus nichos e públicos cariz espontâneo e popular ao longo do tempo. Algumas
próprios (desportivos, recreativos e culturais), e criando a delas subsistem até ao presente.
CLUBE D'O ANDORINHAS respectiva identidade clubística. No interior, serão elas as
dinamizadoras da vida cultural e recreativa e, com isso, Andorinhas Futebol Clube
mentoras de um certo bairrismo local, que exibe e reforça o
sentimento de pertença ao “meu” bairro. Por isso, sem O primeiro clube fundado dentro do Bairro Padre
dúvida alguma que, em muitos momentos, as Cruz foi o ‘Andorinhas Futebol Clube’. Foi nos primeiros
colectividades funcionaram como os representantes do tempos do bairro, por volta de 1960-61. Durou uns 5 anos.
Bairro, no exterior fortalecendo a sua (boa) imagem. Era um clube de bairro, para rapazes do bairro. Destinado
apenas ao futebol, jogavam no antigo campo da cerâmica
“Os clubes tiveram um papel de relevo porque substituam a (próximo onde hoje tem o campo o Clube Atlético e
ausência de cafés e de comércio lá no bairro. Os “Amigos”, Cultural-CAC). O equipamento era de riscas, pretas e
por exemplo, serviam muito para ir tomar café. Os Unidos brancas.
era mais o desporto, a equipa sénior… O bairro parava Porque não tinham estatuto formalizado, o
para ir ver os jogos dos Unidos. Havia uma grande ligação Andorinhas Futebol Clube dependia do Carnide Clube, que
ao próprio clube. O campo enchia para ir assistir aos jogos. era um clube de atletas já federados, sediado no centro
O Amigos da Luz era mais recreativo e cultural. Eram eles histórico de Carnide. O Andorinhas terminou pouco tempo

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após o clube de futebol d’O Unidos se ter-se instalado no naquele bairro, desafiou a rapaziada. Cada um deveria
Bairro Padre Cruz (1961-62). Os seus “atletas” passaram a trazer um amigo e foi assim que se constituiu o primeiro
jogar pelo Unidos, um clube já federado com outra força e grupo. Era tudo rapaziada da bola. Manuel Gonçalves de
tradição. Almeida, conhecido pelo “puto” foi o primeiro guarda-redes
a vestir a camisola do clube. Era meu irmão. Mas ele ficou
“Os primeiros jogadores dos seniores dos Unidos vieram do guarda-redes porque não sabia jogar à bola. Quem não
Andorinhas clube que jogava no Campo da Cerâmica onde sabe jogar à bola vai para guarda-redes!
fica hoje situado o Campo do CAC, tinha o equipamento às Pagaram 15 ou 20 tostões para comprar uma bola.
riscas preto e branco, alguém se lembra?” (José Martinho, Quando já tinham um grupo juntavam-se num campo SÓCIO D'OS UNIDOS (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
morador) pelado e jogavam. Nunca perdemos um jogo. Eu jogava na
2ª categoria porque dantes não havia reserva. Só joguei
“Primeiro não havia campo. Íamos jogar para o ‘campo da duas vezes, por falta de jogador – no Seixal e perto de
cerâmica’ onde é mais ou menos o CAC [Clube Atlético e Sacavém.
Cultural, adiante referido]. Um terreno baldio onde se fez Nessa altura, o Unidos já tinha mais de 50 sócios. Mas os
um sítio para tomar banho, uma balizas e pronto… era o moradores do bairro eram todos adeptos. Rapazes e
Andorinhas que jogava lá e mais outros. Ao domingo havia raparigas… Houve algumas provas de atletismo… lembro-
jogos durante todo o dia. Era muito giro. Era contra gente me que os corredores eram os vendedores dos jornais, os
que vinha de fora do Bairro… “ (Carlos Pedro, ex-director ardinas, e tanto corriam pelo Benfica, pelo Sporting, pelo
d’Os Unidos, morador) Unidos… Nestes clubes mais populares corriam a troco de
uma cerveja… e houve um rapaz da Quinta da Calçada que
Clube de Futebol Unidos morreu na corrida…
O nome Unidos nasceu de uma reunião que se fez para o
O clube de futebol Os Unidos é anterior ao Bairro efeito e para escolher a direcção. Uns queriam Unidos da
do Padre Cruz. Nasceu a 1 de Junho de 1940, em outro Quinta da Calçada… mas havia lá um rapaz que vinha de
bairro camarário da cidade, na Quinta da Calçada. Teve por Alcântara, o Aníbal José, que por simpatia com o Clube de
Futebol do Belenenses sugeriu Clube de Futebol Unidos. E INAUGURAÇÃO DA SEDE DO CLUBE DE FUTEBOL
fundadores Edmundo Reis, José Lima Alves e Fernando
OS UNIDOS, 1962
Matos Martins (Figueiredo, P. (2006): 61). Quando aquele o símbolo é igualzinho ao símbolo do Belenenses. Só as
bairro começou a ser demolido alguns moradores foram cores é que são diferentes. Para mim, é dos símbolos mais
transferidos para o Bairro Padre Cruz trazendo o clube bonitos que existem…
“vestido”. Inicialmente o clube d’Os Unidos ocupou uma Na Quinta da Calçada as casas também eram de lusalite
minúscula sede no edifício do Centro Cívico. mas com três cores diferentes, conforme o tipo de casa
A origem deste clube é comum a muitos outros (tipo 1, 2, ou 3) – vermelho, azul e verde. E essas são as
clubes desportivos locais – rapazes que gostam de jogar cores das camisolas do clube a que se juntou o branco que
futebol e que queriam desafiar outros clubes de iguais representa a própria lusalite…
vontades. Um dos primeiros sócios, Etelviro de Jesus (hoje, O primeiro jogo d’O Unidos foi perto das Amoreiras, no
a morar no Bairro das Furnas) partilhou alguns segredos e campo do Aliança. Fomos jogar com um clube que ganhava
curiosidades desses primeiros tempos: todos os jogos. Era o Cascalheira. Dali saíram jogadores
para o Benfica. O problema é que o nosso equipamento
“Foi o Alberto Mouraria, que nem era lá do Bairro da Quinta ainda não estava feito. Então tivemos que ir alugar calções,
da Calçada que, reparando que não havia clube nenhum camisolas, meias… tudo preto. Foi num sapateiro do Arco

58 EQUIPA DE FUTEBOL D'OS UNIDOS, 1971-72


do Cego que alugava os equipamentos. E ganhámos 5-3! O pessoas se mantivessem unidas conseguiriam fazer mais
primeiro jogo… ganhámos! E foi uma romaria de alguma coisa….” (Manuel João, ex-membro da direcção,
Campolide até ao Bairro da Quinta da Calçada! O Unidos morador)
ganhava todos os jogos… Só havia uma equipa em Lisboa
que era mais renhida – o Beneficência Futebol Clube que O Clube de Futebol “O Unidos” está inscrito na
era à base de jogadores do Palmense. E o Palmense nessa Federação Portuguesa das Colectividades de Cultura e
altura era da 3ª divisão! Era com eles – mas só com eles – Recreio desde Junho de 1967 e na Associação de Futebol
que o Unidos perdia. De resto não havia quem ganhasse ao de Lisboa desde 1972.
Unidos! O clube foi para o Bairro Padre Cruz porque a
maioria dos moradores foi para lá morar. E levaram o clube Grupo Recreativo “Os Amigos da Luz”
com eles. Eu ainda fui ver jogos ao Bairro Padre Cruz. Eu
estava a par de tudo. Até quando disputou para a Taça de O Grupo Recreativo Amigos da Luz foi a primeira
Portugal…” (Etelviro de Jesus, sócio antigo d’O Unidos, ex- colectividade, legalmente constituída, que nasceu dentro
morador na Quinta da Calçada) do Bairro Padre Cruz. Foi formalizada em 1967 mas teve a
sua origem muito antes, em encontros informais, entre
“Cheguei ao clube dos Unidos muito cedo. Já conhecia os amigos moradores que se reuniam na leitaria, perto do
Unidos antes de viver aqui. Vivia na Boavista e tinha os avós mercado. Um dos impulsionadores do grupo – Germano
paternos a morar na Quinta da Calçada. Passava as férias Ferreira – nascera em Alfama. E Alfama era bairro-berço de
na Quinta da Calçada. A minha relação com os Unidos era muitas colectividades. Como tal, Germano Ferreira trouxera
já dali. Quando o clube veio para aqui já não era novidade “aquele bichinho” – a vontade em formar uma
para mim. colectividade, fazer uma associação. Fixaram a primeira
Os Unidos aparecem aqui, no Bairro Padre Cruz, com os “sede” na pequena leitaria “que era a única coisa que havia
100 associados. Começámos num cubículo com 10 ou 12 como cafezinho do bairro.” Foi pela voz de Domingas
m2… no edifício do salão de festas, cá em baixo. Não havia Ferreira, a filha, que mais escutámos:
luz. Era com velas que os primeiros sócios se reuniam.
Depois do 25 de Abril fizemos uma ocupação simbólica por “Com umas cadeirinhas, umas mesinhas cá fora e fizeram
parte dos sócios. (…) ali o seu ponto de encontro que reunia o padeiro, o senhor
Uma das situações mais difíceis foi a conquista das do talho, a peixeira… Cada um contribuía com qualquer
instalações. Havia ali muita influência da Legião coisa e ali faziam o almoço. Os homens, porque as
Portuguesa, uma vigilância calada… e para ser dirigente mulheres, não. Nós, os familiares, íamos ter com o meu
associativo tinha que se dar conhecimento e aprovado por pai, estávamos ali… ainda não havia o ‘ir à bica”.
outros departamentos do Regime que confirmavam a Estávamos ali, bebíamos um sumozito, um pirolito… Eu
idoneidade. era uma rapariga nova e estávamos ali os nossos
Os clubes também organizavam outras festas – bailes, bocadinhos muito bem.
carnavais, distribuição de bolos por ocasião do aniversário O meu pai era uma pessoa muito afável. O meu pai era
dos Unidos (nos 30 anos, foram 30 bolos distribuídos pelas mais velho. Era o senhor Germano. E todos o respeitavam.
famílias mais carenciadas…)(…) Porque apesar de ser um estivador, um homem rude…
Na minha opinião a criação de vários clubes não favoreceu dentro da sua pequenez era uma pessoa muito culta.
o Bairro, os moradores. Criou-se algum divisionismo (…) O Mesmo antes do 25 de Abril, sabia coisas da política… E
bairro não ganhou com isso. Criou-se uma divisão. Se as quando apareceu o Totobola o que é que ele se lembrou?

GRUPO RECREATIVO OS AMIGOS DA LUZ, 1967 59


Iam ver os resultados das colunas de cada um, e aplicava propondo outras pessoas para membros e todos queriam
multas quando não acertavam. E punham essas multas – ser sócios.
cinco tostões… num mealheiro. Essas receitas davam para Os fundadores foram o meu pai e outro senhor – o poeta
depois fazerem um almoço… Aqui no bairro havia pouca Lima. Um senhor que era muito mais velho que o meu pai e
coisa. E os nossos maiores divertimentos eram as a quem, por respeito, foi dada a primazia de ser o sócio
excursões. Ainda sou do tempo em que se demorava três número 1. Fundadores, para além deles, era o senhor
dias para chegar ao Porto. E o meu pai organizava essas Alfredo Bombeiro, o Quaresma, o avô do Paulo Quaresma,
excursões juntamente com os outros elementos. E assim o Rafael… que já veio mais tarde. Houve mais outros que já
uniam as famílias porque era a única maneira das famílias faleceram… Foi o poeta Lima quem fez o hino dos “Amigos
poderem ir porque cada casal tinha muitos filhos. E então da Luz”. Ele chegou a fazer versos para a Amália
começaram por aí… Rodrigues… fez os versos para os Amigos da Luz e quem
E o meu pai era também muito amigo do fado, tudo cantava o hino era eu. Na altura eu cantava muito bem…
relacionado com aquela vida “alfamista”, bairrista… Nessa Eu era a ‘estrela’ d’Os Amigos da Luz. Mas antes de tudo
altura, quem mandava no bairro era o padre Francisco. Era isto acontecer, o meu pai fez aquilo crescer muito. Era
ele quem mandava. E quando o meu pai começou a querer mesmo o ponto de encontro de todas as famílias do bairro.
organizar o programa de fados no salão, ou o baile… (…)
metiam uma notinha dentro de envelope e iam ao Padre Em resposta a um novo pedido, a Câmara cedeu um novo
Francisco pedir autorização, com aquele envelopezinho terreno. Foi então que se iniciou a construção de uma nova
que era para a igreja… e faziam-se ali muitas festas, sede, tudo feito com o esforço e braços dos sócios!
muitos bailes, muita coisa boa para a época. Demorou um ou dois anos a construir pois o dinheiro não
Quando foram para registar o nome não puderam porque já era elástico… Um, comprava umas sacas de cimento e
havia outra colectividade com esse nome. Teve que ficar oferecia, outro comprava umas quantas tijoleiras… e foi-se
“Os Amigos da Luz”. Embora tenha nascido antes, só foi fazendo assim. Com o crescimento da colectividade foram
formalizada em 1967. pedindo autorizações até que a sede se alargou,
Entretanto, junto à “casa branca” havia uma barbearia acrescentaram-se mesas, comprou-se a televisão. Até que
muito, muito, pequenina.(…) E, naquele primeiro espaço, chegou a uma altura em que o meu pai – o meu pai tinha GRUPO RECREATIVO OS AMIGOS DA LUZ, 1968
nós reuníamos na altura do S. Martinho, púnhamos ideias fabulosas! – contratou um fotógrafo. Um dia teve
fogareiros cá fora e assava-se ali as castanhinhas e bebia- mais essa ideia! Combinou com todos os sócios trazerem a
se água-pé… Mas aquilo resumia-se a meia dúzia de família para tirar a fotografia do sócio com a respectiva
casais que passava ali os seus bocadinhos, os seus tempos família... E depois o meu pai fez os quadros. E havia um
de confraternização. (…) Depois souberam de uma outra recanto da sede onde estavam as fotografias – desde a
salinha, perto daquela, vazia e maior… Foram pedir ao família do sócio número um, dois, três…. e por aí adiante.
Padre Francisco. Ele era a pessoa que mandava no bairro e Toda agente achou a ideia muito bonita. Sempre houve um
não era muito fácil convencê-lo… O meu pai teve que dar bom relacionamento entre as colectividades. O meu pai até
provas, explicar-lhe que era só para as famílias terem um era sócio dos Unidos...” (Domingas Ferreira, moradora)
ponto de encontro, confraternizarem… Começaram a
pagar uma renda simbólica. O edifício era da Câmara, mas “Ai, os Amigos da Luz eram uma família! A Domingas era
havia um envelope para a Igreja… e então o Padre uma rapariga fantástica! Cantava tão bem! Fizemos lá
Francisco autorizou a cedência. Sempre era um bocadinho festas de passagem de ano… um convívio muito bom. E
maior… mas foi crescendo, porque eram os sócios que iam não entrava lá qualquer pessoa… E o Germano recebia a

60 FUNDADORES DO GRUPO RECREATIVO OS AMIGOS DA LUZ,


1968
pessoa com o cocktail que era “o amigo”… e não havia pároco de Carnide – Francisco Marques), a providência dos
máquinas de café ainda e cada um fazia o seu tofina… e cuidados de saúde no posto médico (médicos e a equipa
havia respeito. Mesmo entre pessoas muito próximas, das enfermeiras), o acompanhamento social (técnicas da
havia respeito. Nas festas de Natal faziam lanches muito Acção Social, designadamente Isabel Geada e as
bonitos para as crianças e davam-se brinquedos. O Grupo Irmãzinhas da Assunção) e a vigilância e cumprimento da
Recreativo ‘Os Amigos da Luz’ – que o avô do Paulo “boa ordem e costumes” por parte do fiscal. Mas
Quaresma ajudou a criar – era um belo salão de acrescentaremos agora um quinto pilar – a dimensão
entretenimento, fados, depois ficou mais para jogo, desportiva e recreativa que os clubes O Unidos e Os Amigos
MARCHAS DE CARNIDE, NO BAIRRO (1962) passeios e excursões, colónias com crianças, filhos dos da Luz muito fomentaram.
sócios, festas de Natal com os filhos dos sócios… A actividade de apoio social também se
Funcionou muitos anos e o meu marido não se conforma intensificara (colónias de férias, passeios organizados…) e,
daquilo ter fechado…” (Teresa Guerra, moradora) em 1973, é Criado o Centro Social Paroquial de Carnide
que assume a gestão da actividade social do bairro. Todos
os equipamentos estavam activos e funcionavam em
1968 A 1974: OS ARTESÃOS DO BAIRRO: “O BAIRRO pleno. O “salão de festas” ou Centro Cívico confirmava-se
ÉRAMOS NÓS” como pólo vital na dinamização da vida social e cultural do
bairro – festas, cinema, convívios vários… Iniciava-se um
O meu Bairro período intenso na dinamização da identidade de bairro
ainda a relembrar convivências e ambientes da ruralidade.
Bairro foste tu / O dos meus sonhos. As relações de convívio e de sociabilidade começavam a
Vieste ao encontro / Em pensamentos. fortalecer-se. “Isto era um viver como na província”; “Isto
Passou as saudades / Casa posta era uma aldeia. Era uma aldeia no espaço físico e vivido”,
Assim acabou/ Os sofrimentos. conforme sintetizou José Martins.
Este foi um período de convergência de narrativas
Bastantes anos sempre / Sempre à espera individuais associadas à construção de uma
Desta humilde casa / Mas sem luz representação/narrativa comum – a história do Bairro a
Foi Deus quem traçou / No coração construir-se com as vidas, nos quotidianos – “O bairro era
Para aos pobres dar / O Padre Cruz. isso: o bairro a fazer-se no dia-a-dia” nas palavras de Jorge
Humberto.
Andava / Sempre pensando Verifica-se, então, que a concentração do casario
Na minha vida / E no meu lar. em formato aldeia, a uniformidade e o acanhamento dos
A minha casa / Para mim fogos (“eram casas de bonecas”; “era tudo muito
É um altar… (bis) minúsculo”), os quintais frente a frente, os arruamentos
Alberto Artur Mendes apertados, os caminhos e vias pedonais, o uso comum dos
Uma Vida, um Testemunho, (publicado em 1988) equipamentos, e a distância em relação à cidade…
intensificaram o convívio entre moradores e a construção e
partilha de referências identitárias, conforme já sugerimos.
Construído e festivamente inaugurado, o bairro Este sentido de pertença (“somos filhos do
ficou mais entregue a si próprio. Mantinha-se organizado Bairro!”) vincou identidades comuns e diluiu as fronteiras
em quatro eixos fundamentais: a orientação pastoral (o entre interior/exterior – privado e público, no território do

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bairro. O espaço “rua” era intensamente habitado; era um pessoas. Era muito bom. Muito bom.” (Jorge Humberto,
elemento muito consistente e real porque estruturante e morador)
vitalizador das relações de vizinhança e da identidade de
cada rua – “cada rua era uma família” e “cada rua era a “A intervenção que tínhamos foi sempre a de procurar
mais bonita”… arranjar as melhores situações e condições para os
Ao mesmo tempo o bairro tornava-se “interior” e moradores. Havia uma identidade de bairro muito forte.”
singular (o “meu bairro”) – criava uma paisagem íntima – (António Cristino, morador)
tão só um modo viver, mas também uma representação de
um “modo de ser”, partilhado: “Nós tínhamos muito “Este bairro foi um grande privilégio desta Lisboa. Na
orgulho no bairro. Tínhamos um coração grande… um democracia também se havia de dar voto ao passado
coração grande!” (Fernando Pereira, ex-morador). porque traz muita consciência sobre o presente e o futuro.
Mas também é preciso reconhecer que estes A comunidade era muito viva. A comunidade actuava. Isto
foram “modos de estar e de ser” que se “encaixavam” nas foi uma grande maravilha. Eu tive um crescimento que
margens sociais formatadas pelo próprio regime da recordo com a maior saudade. Foi tudo muito bem
ditadura. Era conveniente ter esta população pacificada, montado e tudo muito bem acompanhado… Vimos crescer
“pobrita, mas alegrita”. Uma população que ia o bairro com grande alegria. Nos estávamos até à meia-
(sobre)vivendo em modos de “pobreza sustentada” noite, até às 2h a viver a rua. A viver o bairro.” (Olinda, ex-
(alguém o disse) e conforme o poema de Alberto Artur moradora)
Mendes tão bem ilustrou.
“O bairro era muito zelado. Muito estimado. Tudo cheio de
O ambiente do bairro – “O bairro vivia! O bairro flores. Estes quintais à frente no Verão… nós levávamos
respirava!” umas mantas de trapos e deitávamo-nos na relva. As casas
eram muito quentes e nós ali refrescávamos e ali ficávamos
“O bairro era muito humano.” a conversar… era tão bom! Nem fechávamos as portas…
Isabel Maria, ex-moradora Por isso é que este bairro era assim. Era calmo, limpo,
bonito, muito arranjado. Porque não se degradava nada. E FAMÍLIA DE MORADORES, 1963 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
“Éramos pobritos mas alegritos” como era assim cada um tinha orgulho em estimar… se um
(José Augusto Gonçalves, morador) punha amores-perfeitos, outro punha malmequeres,
pintavam-se as grades, ninguém mexia no quintal de
O bairro não era apenas um cenário onde os ninguém… Os pais responsabilizavam-se pelos filhos.”
moradores vivem o dia-a-dia, percebeu-se. É muito mais: a (Custódia Pereira, moradora)
dinâmica e o interesse pelo bairro confundem-se com as
vidas: “O bairro éramos nós”, conforme sintetizou Fernando ”O que o bairro tinha era essa sociabilidade – era irmos
d’Oliveira. Nesta perspectiva, o cenário da cidade grande todos para a escola de manhã, o brincar juntos, o fazer
torna-se, agora, bem menor. A importância do bairro cresce fogueiras, o correr a rua de um lado para o outro. A rua
positivamente, é central, nas convivências diárias e nas tanto era um espaço de liberdade como um espaço de
referências dos moradores. controlo. Todos nos conhecíamos e isso é uma forma de
vigilância branda.” (Jorge Nicolau, ex-morador)
“O que caracterizava o bairro era aquele ambiente do dia-
a-dia. Era o espírito do bairro vivido no dia-a-dia. Eram as “O bairro era muito comunitário. E ainda temos isso na

62 CASA DE GERMANO FERREIRA


sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)
minha rua. E é isso que não quero que se perca (…) o corríamos para a parede, encostávamos o ouvido… e
bairro era muito bom. Usávamos um cordelinho através da dessas vezes eramos nós que gritávamos: "oh vizinha! É
caixa de correio para abrir a porta. Toda a gente fazia isso. E para a Leonor? Eu vou já!" (Leonor Olivença, ex-moradora)
de noite ficava o cordel na porta porque nos
esquecíamos… havia muita confiança.” (Domingas “Neste desenho urbano há um planeamento claro. Define-
Ferreira, moradora) se uma hierarquia entre as ruas. A rua principal é onde
passam os transportes, o autocarro. Todas as pessoas que
Foi neste contexto de tensões que a população, já vão apanhar o autocarro fazem percursos pedonais que
RUA DO BAIRRO, 1961 (AF-CML) “comunidade de bairro” se vai revelando artesã em outro também estimulam a interacção, a conversa, entre os
sentido. Já não apenas como operários-construtores da vizinhos…
cidade grande (a tal capital do Império) que os “chamara” Os pontos de interacção eram diferentes consoante fosse
dos campos e lhes dera o trabalho a troco de magros fim-de-semana ou dia de trabalho. Ao fim semana o
salários, mas fazem-se artesãos na construção de um mercado e a paróquia, a igreja, eram pontos influentes
outro habitar, um humanizar e reivindicar um território que, nessa interacção. E, possivelmente, da força dessa
cada vez mais, identificam como “o nosso bairro”. Nessa interacção nasce a identidade e a participação cívica muito
“manufactura” de relações, os moradores-vizinhos forte que este bairro conhece.
partilham vocações e valorações – cultivam um certo Era frequente ver as pessoas no quintal a conversar com o
bairrismo a que também não é alheia a projecção da vizinho da frente. Este desenho de casa e rua leva a que,
ancestral ruralidade no espaço urbano… As “ruas todos os dias, as pessoas se cruzem e interajam umas com
solidárias”, os quintais de cada um e as hortas que muitos as outras, as crianças brincam nas ruas, os jovens
cuidam, são expressão dessa “ruralidade perdida”, aqui e namoram nas ruas… os velhos conversam nas ruas. O que
agora, permitida e reencontrada. inicialmente fora elemento de segregação social – a
dimensão reduzida das casas – levou a que o espaço de
A forte identidade de rua – “os rios solidários” excelência fosse a rua e o quintal. A escala das ruas
proporcionava proximidades e controle sobre quem
“As ruas corriam como rios solidários.” passava e as crianças que ali brincavam. A escala da rua é
António Cristino (morador) muito importante para entender a vida e o ambiente deste
bairro. É importante devolver à rua a memória que ela já
“Há dias lembrei-me de um pormenor interessante. Na tem.” (Jorge Nicolau, ex-morador)
altura em que havia poucas televisões, nós íamos para a
janela da casa da vizinha que tinha televisão para vermos As rosas nos quintais e as couves nas hortas
de fora para dentro a TV (isto, no verão)… Outro pormenor
engraçado que me lembro: éramos 8 irmãos e a vizinha do “Havia um jardineiro sozinho que dava conta disto tudo.
lado era a única com telefone (ainda bem que era ao nosso Tínhamos isto que era uma maravilha! Todos os espaços
lado!) Nós tínhamos muitas actividades extra escola e estavam cuidados. Era o pai do Armando, do quiosque –
recebíamos muitos telefonemas. A vizinha deixou de ir creio que era o Sr. António. Tinha muito orgulho no bairro.
bater à nossa porta para chamar, passando a usar outro Cuidava e fazia cuidar. A parte social era importante não há
método: batia na parede do seu quarto e gritava "é o dúvida, mas a parte urbanística também. É fundamental
telefone para a Leonor…!". Entretanto, começámos a porque as pessoas têm que gostar do sítio onde vivem.”
conhecer melhor o som do telefone e logo que o ouvíamos (Anónimo, morador)

RUA DO RIO SABOR, 42 (sd, FOTO PARTICULAR) 63


“O bairro era muito bonito. Nós ao domingo saíamos para ir 5h e vinham ganhar mais uns cobres. Havia pessoas da
ver os quintais, passeávamos para ver os quintais. Pontinha que também lá tinham horta. Havia turnos para
Percebia-se que havia pessoas que tinham muito gosto em vigiar as hortas.” (António José, filho do Sr. Arménio)
decorar os seus quintais, a fazer dele um jardim, a colocar
o seu repuxinho, uma estatueta…” (Maria da Graça, ex- “Este bairro é rodeado por quintas, por hortas… A minha
moradora). mãe tinha três hortas e todos nós trabalhávamos nas
hortas. Os filhos que andavam na escola de manhã, à tarde
“Aos finais dos dias quentes as mulheres juntavam-se à trabalhavam nas hortas e os que andassem à tarde, tinham
conversa nos quintais, a fazer malha, a fazer crochet… ido de manhã. A horta era para nosso sustento. Tínhamos RUA DO RIO LIMA, ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
toda a gente tinha o seu jardim com o seu perfume que eu batatas, cebolas, grão… A maior parte das famílias do
sei cá… este é o bairro das rosas. Ai, mas que lindo bairro, bairro tirava dali o seu sustento… E ainda existem hoje
toda a gente dizia… e as crianças não eram crianças que muitas pessoas que o fazem. Toda a gente tinha horta e
estragassem. Os pais tinham rigor na educação dos recordo-me que tínhamos dois cães … e até eles
filhos… E havia castigos se eles estragassem. E agora?” trabalhavam! Quando a minha mãe semeava o grão e
(Teresa Pedra, moradora) depois apanhávamos por esta altura do calor… e o grão
larga um pó que deita imensa comichão. Mas a minha mãe
“Gosto muito do bairro. Quando eu vim para cá viver era ceifava o grão e todos trazíamos um monte às costas…
muito bonito. Quando vim para cá morar era um jardinzinho Todos nós, e os cães também. Púnhamos uns alforges,
quadrado à frente onde se tinha flores e quintais. Lembro- púnhamos uns enchumaços de cada lado e lá vinham os
me que o meu pai tinha aquilo tudo com videiras… As cães também… a nossa era a família mais numerosa da
pessoas tinham muita vaidade. Os jardins não eram rua. Não temos registos nenhuns porque ali ninguém tinha
murados e o Presidente França Borges veio aqui ao bairro máquinas fotográficas…” (Fernando Pereira, ex-morador)
despejar camionetas de tijolo, areia e cimento. Despejou
tudo ao pé da igreja e depois cada um acarretava para as “O facto de a casa ter um quintalinho ajudava muito. E
suas casas para fazer os murinhos à frente. Mas tinha havia as hortas em redor onde os homens e as mulheres do
regras: eram dois pilares de maneira a que ficasse um bairro trabalhavam e cavavam. Havia de tudo. Até na altura FAMÍLIA DE MORADORES NAS HORTAS DO BAIRRO
(sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)
murinho baixinho para que ficasse tudo igual Ainda há aqui, de semear a batata eu ficava em casa e a gente os três
na rio Sabor uns três ou quatro todos seguidinhos a lembrar trabalhava. A minha mãe cortava a batata, já tinha a terra
como era… como mandava a regra. O meu está mais ou cavadinha. Havia os regos e arranjava-se um pau para
menos (…) Nunca desmanchámos muito…” (Teresa medir e num dia a gente semeava as batatas. Duas sacas.
Guerra, moradora) Era para nosso consumo ou dar. Mas as batatas eram para
nosso consumo. Até arranjámos umas despensas debaixo
“O meu pai deixou o pessoal fazer as hortinhas ali à volta. das escadas onde as guardávamos…” (Carminda Prado,
Os moradores eram pessoas que vinham do Norte e das moradora)
Beiras. O meu pai nunca recebeu rendas disso… um ou
outro ajudavam pela altura das ceifas… mais nada. O meu Estórias das infâncias: as chinchadas, os
pai nunca alugou nada. Era rendeiro, com a cláusula que esconderijos entre trigos e papoulas
sairia quando a Câmara entendesse… O meu pai vendeu
as vacas em 1973. Às vezes os moradores ajudavam o meu “E lembro-me que o meu pai andava atrás dos miúdos do
pai. Sazonalmente. Eram funcionários públicos, saíam às bairro porque iam construir cabanas para o meio do terreno

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e andavam a calcar aquilo tudo… E quando era o tempo da festejávamos as nossas festas de anos: levávamos o nosso
espiga, era vê-los! Os miúdos vinham à chinchada. Às vezes gira-discos de plásticos, íamos para perto da encosta da
o meu pai zangava-se… sobretudo se lhe estragavam as Serra da Luz… Levávamos uns cobertores, um bolo, arroz
árvores, se lhe partiam algumas pernadas. Um dia, doce… o gira discos a tocar e dançávamos… Hoje está
aborreceu-se e cortou aquilo tudo. “Pronto, acabou-se”, muito feio mas naquela altura tinha um descampado e
disse. Havia muitas pessoas a comprar leite na quinta do tinha uma vista muito bonita…” (Lurdes Faria, moradora)
meu pai. Muitos miúdos do bairro cresceram com o leite
das vacas do Arménio.” (António José, filho do Arménio) “No caminho para a antiga fábrica do tijolo, havia uma
grande vacaria. Muitos de nós, miúdos do bairro, íamos lá
“Lembro-me de ir parar à casa do fiscal umas três ou comprar leite. Era mais fresco e barato. Eu levava um
quatro vezes por causa da chinchada. Tinha um canto onde garrafão de 5 litros, com alguns amigos e amigas e quando
punha os rapazes de castigo. As pessoas tinham chegava, o garrafão já Ia a meio! Bebíamos o leite, ainda
ameixeiras, nespereiras, videiras e nós, rapazolas, lá quente, pelo caminho. Nesse tempo não havia doenças!”
íamos… As grandes maldades daquela altura aos olhos de (José Martinho, morador)
hoje não eram nada! Era tocar nas campainhas, andar à
chinchada, jogar à bola, à caça ao gato… os nossos “Lembro-me de duas brincadeiras – ir à fábrica de
brinquedos eram o arco e a gancheta, o pião… que já não cerâmica de Carnide roubar os restos dos tijolos para
era para todos, o pontapé na lata, os carrinhos de fazerem os muretes; íamos para os campos apanhar as
esferas…” (Anónimo, morador) fezes dos animais para adubar os quintais e as hortas,
levávamos uns baldes… E apanhar as flores silvestres para
“Passava-se por várias quintas e nós entretínhamo-nos a enfeitar as casas… “ (Maria da Graça, ex-moradora)
apanhar a fruta. Não era por maldade nem para estragar. É
que a fruta assim sabia sempre melhor… A Quinta dos “Nós éramos vândalos mas tínhamos a nossa regra.
Covões era a melhor quinta para a fruta! Tinha fruta que era Jogávamos ao ‘pontapé’ na lata… era uma espécie de
uma loucura! Todo o tipo de fruta! Tinha um vigilante que escondidas. E os carrinhos de esferas que descíamos a
RUA DO RIO LIMA, ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR) guardava aquilo a troco de tiros de sal. Mas houve um dia “rampa das irmãzinhas” – que era do lado mais sossegado.
em que estranhamente o homem deixou-nos tirar a fruta. Isto foi em 68-69. Eu tinha 6 ou 7 anos. Íamos às oficinas,
Mas estranhámos. Depois ficámos com uma dor de barriga às carpintarias pedir restos de madeira, tábuas e depois
que nem conseguíamos ir à escola. Foi terrível. havia as rodas de esfera e era ver quem fazia o melhor
Percebemos que o vigilante colocara um pó na fruta…” carro. Levávamos aquilo muito a sério. Nós tínhamos
(Carlos Canhoto, morador) vantagem porque éramos muito irmãos… Quando nos
espalhávamos íamos direitos aos caniços. E aparecíamos
“Tive uma infância muito feliz no bairro. Íamos buscar o todos rasgados em casa …” (Fernando Pereira, ex-
leite às quintas, em frascos do café tofina, vínhamos a morador)
beber leite pelo caminho entre trigo e muitas papoulas…
Ai, e fazíamos uma coisa, uma coisa que hoje quando “Gostávamos muito de vir para o meio dos campos de trigo
penso até tenho vergonha… Íamos apanhar caganitas de fazer as nossas barraquinhas, cabaninhas, esconderijos…
ovelhas para adubar os quintais! Também apanhávamos as nossas sedes. Tínhamos o cuidado de ir todos em fila,
ervas para os coelhos… Íamos jogar ao ringue, à em carreirinha para não estragar muito o trigo… Até que
apanhada, apanhávamos flores… Digo-lhe como aparecia o dono do terreno, o Arménio, e aí era pior a

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emenda que o soneto – o homem punha-se a ralhar facebook)
connosco e nós que até aí fugíamos cada um para seu
lado, espezinhando muito mais e aquilo ficava tudo A água da Fonte das Lágrimas
danificado…! “Às vezes íamos lá abaixo, à Fonte das Lágrimas, buscar
Havia um grupinho que tinha bicicletas… e brincávamos água… Aquilo era uma aventura, porque éramos miúdos e,
com os nossos arcos e ganchetas depois com dois paus e depois, os garrafões caíam e entornavam. Era uma risota.
um pneu de automóvel. Éramos as nossas brincadeiras da E tínhamos que voltar atrás e respeitar a fila de quem já lá
altura. Às vezes íamos até ao jardim da Luz pescar os estava, outra vez. Era muito engraçado… Toda aquela zona
peixes. Tínhamos em casa peixes que vinham do lago do da encosta da Luz era riquíssima, com muita água. Quando
jardim da Luz. Depois o bairro tinha uma lagoa, uma fazíamos os nossos presépios íamos lá buscar o musgo.
charca. Aí íamos aos peixes-cabeçudos, aos girinos. Depois Havia muito musgo. Naquela altura havia muitas
ficávamos muito espantados como eles se transformavam alcachofras para os santos populares… e havia tanta gente
em rãs. Esse charco fez-se depois um aterro porque era para as apanhar que tínhamos que ir muito cedo. A Fonte
perigoso… Em frente à igreja. Hoje está vedado, mas das Lágrimas era motivo de disputa com o Bairro da
naquela altura não estava. Era relvado e era lá que Urmeira – eles diziam que a fonte era deles e nós dizíamos
fazíamos os nossos conhecimentos e amizades. E que a fonte era nossa!“ (Lurdes Faria, moradora)
aconteciam os torneios de futebol inter-ruas. Hoje é tudo
mais estruturado, mais organizado mas menos espontâneo O Bairro da Urmeira: “os de cima estavam sempre no
também…Pois era assim que os garotos se organizavam, cavalo”
relacionavam e conheciam. E até havia prémios!” “E havia guerras, guerras com os da Urmeira, ali debaixo de
(Fernando d’Oliveira, morador). Odivelas… Eles eram maus, se apanhassem um de nós
cascavam-nos a valer… Mas depois com o cinema
“A s b i c i c l e t a s ? ! U m l u x o ! N ó s é r a m o s m a i s acalmaram os ânimos porque eles começaram a vir ao
evoluídos…andávamos de carro… de carrinho de esferas” cinema… Mais tarde também quando fomos para a
(Jorge Humberto Silva, grupo “Intas&Entas do Bairro Padre Pontinha, começámos a estudar juntos, a namorar, e as
Cruz”, no facebook) coisas a acalmarem e ainda bem.” (Fernando Pereira, ex- ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
“Claro que também tínhamos esses bólides, Jorge. Falta morador)
dizer que as bicicletas eram as que os pais usavam para se “Nas lutas com a Urmeira os de cima estavam sempre no
deslocar, quando saíam de casa às 4 da manhã, para ir cavalo.” (António José, filho do Arménio)
trabalhar, e que nós surripiávamos aos fins de tarde” “As lutas com a Urmeira… uma tropa de elite e as milícias
(Fernando d’Oliveira, grupo “Intas&Entas do Bairro Padre da Urmeira. Chegavam cá ao bairro uns 60 rapazes e havia
Cruz”, no facebook) depois muita cabeça partida… Havia aqui muita rapariga
“Eu cá tive um carro de esferas, feito pelo Luís Carlos, com bonita e eles queriam vir às nossas festas… e nós
banco estofado com alcatifa!!! (Helena Mascarenhas, defendíamos o que era nosso… Mas isso só durou uns
grupo “Intas&Entas do Bairro Padre Cruz”, no facebook) anos porque em 1967, quando houve as cheias, o pessoal
“Havia sempre alguém ou qualquer coisa para nos entreter. do bairro tornou-se muito solidário com eles… Morreu ali
Seja jogar à bola, a fazer corridas com os carrinhos de muita gente. Fizemos grandes peditórios e foram ajudados.
esferas, a jogar ao arco, ao pião,… sei lá. Eram tantas as O Padre Francisco também foi muito importante nessa
brincadeiras que nunca nos aborrecíamos”. (Aníbal ajuda…” (anónimo, ex-morador)
Santos, grupo “Intas & Entas do Bairro Padre Cruz,” “O Bairro da Urmeira era o bairro mais pobre, dos pobres. A

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situação das cheias foi horrível.” (Fernando Ferreira) Música de intervenção e ousadias políticas
“Lembro-me de, ainda miúdo, estar envolvido na ida do
Momentos festivos, estórias e personagens Zeca Afonso e do Zé Mário Branco lá ao bairro. Actuou no
emblemáticas refeitório da escola. A escola ficou chamada como o
Biafra… ainda houve uma troca de mimos com a Pide. Foi
Os excursionistas “Os Camelos” no início de 70, por 71 e 72. Mas o bairro tinha os seus
“Onde é o Sr. Fonseca, houve uma carpintaria do Sr. espiões do regime. Tudo era muito abafado e
Miguel… Não sei se ele ficou desempregado, sei que tinha controlado…” (José Martins, morador)
ali um negócio onde as pessoas se juntavam, iam lá falar
com ele, e houve um grupo de homens do bairro que A somar a todos os episódios narrados, existem
fizeram um grupo excursionista que se chamava Os ainda outros registos que mereceram ser relembrados:
Camelos. Fomos à Serra da Estrela, Viseu – essa excursão,
de Viseu, nunca me esqueci porque passámos a noite toda A festa de Natal das Oficinas da CML
acordados na camioneta a contar anedotas. Também ia o “A CML dava um cabaz pelo Natal – uma camisola e umas
Sr. Alberto dos foguetes, da SCML. Foi durante pouco calças ao rapaz e às raparigas, uma saia. Andávamos todos
tempo, terão sido poucas as pessoas que participaram mas que parecíamos saídos de um orfanato… tudo igual. E o
foi muito bom… Alugávamos uma camioneta, dividiam-se cabaz era bem aviado – tinha o azeite, o bacalhau, as
as despesas, cada família levava o seu farnel e era muito broas… Os outros cabazes, para os mais necessitados, era
divertido … Muito bons tempos!” (Lurdes Faria, moradora) a Igreja que organizava. Era tudo a partir da Igreja da Luz.
Nós nem tínhamos paróquia, nessa altura. Tinha que ser
Grupos de teatro e de música (os "Elite 5"…) tudo a partir de Carnide.” (Fernando Pereira, ex-morador)
“Havia várias formas de viver a comunidade. Lembro-me
que em 69-70 fizemos um acantonamento ligado à Santa A primeira marcha de Carnide… nasceu no Bairro
Casa, falámos com as assistentes sociais. Foi ali para Padre Cruz
Belas. Eram rapazes e raparigas, e com a concordância “O único clube cultural na altura era o Teatro de Carnide –
das assistentes sociais, convidámos para este por isso o meu pai [Alberto Artur Mendes] colocou a marcha
acantonamento os ditos jovens ‘problemáticos’ do bairro. em Carnide, mas ela foi feita aqui, no bairro. Cada um
Alguns já com problemas de furtos… Algumas raparigas arranjou a sua roupa para participar na marcha (1963 e
estavam como medo. Mas o que foi certo é que o 1965). O meu pai escrevia o texto naquelas máquinas de
acantonamento correu muito bem. Não houve problema escrever. Estava inscrito na Sociedade Portuguesa de
nenhum. (…) Autores. Ele chegava a qualquer lado, e fazia uma banda…
Lembro-me que houve, também, um grupo musical saído Sou do tempo em que ainda me lembro das bandas a tocar
deste grupo de jovens, fazia pequenas festas, no Carnaval, no coreto.” (Armando Mendes, morador)
nos santos populares. Chegou a ter um nome mas não me
recordo. Sei que há 5 ou 6 anos compilaram um CD com Os passeios até à Feira da Luz
uma série de músicas que tocavam na altura. Fizeram um “Lembro-me que se ia à Feira da Luz. Gostávamos muito! E
pequeno CD para eles e para os amigos. Tudo terminou em lá compravam-se as andorinhas que se punham na parede
1974-75 (…). Ocupávamos assim o nosso tempo com da frente, junto à porta da casa. Também punha um S. José
utilidade. Ganhávamos meia dúzia de tostões… que nos ou uma N. Srª da Luz que se comprava na Feira da Luz.
davam jeito.” (António Cristino, morador) Íamos muitos, grandes grupos, a pé… pelas azinhagas.”

"COM AS CALÇAS DA MODA DAS OFICINAS", 67


1972 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
(Custódia Pereira, moradora) “A D. Cândida, a parteira, ajudou muita gente nos
nascimentos… Até a enfermeira Rosalina quis ter a última
A procissão das velas filha com a minha mãe. Creio que aqui no bairro não há
“O que conseguimos com acordo de todos foi precisamente quem não tenha uma ligação com ela. Há sempre uma
a aquisição da imagem da Nª Senhora de Fátima entre prima, uma irmã… que teve o parto com a minha mãe. A
outras… que resultou de uma coleta entre todos os minha mãe ajudou a nascer mais de cem crianças. Muito
moradores.” (Padre António Araújo) mais! A minha mãe é uma pessoa fantástica. A minha mãe
“Fez-se a procissão das velas com a imagem Nª Senhora é muito genuína. É mesmo muito pura… Acordava de noite
de Fátima. Corremos o bairro todo com a imagem. Já era porque sentia que a chamavam. Nunca levou um tostão a
de noite. Foi muito lindo. Saiu daquela vez e nunca mais. ninguém… até ia para a Serra da Luz fazer partos. A minha
Foi no tempo do padre Araújo". (Maria Isabel, ex-moradora) mãe fez o parto a ela própria.”

Algumas figuras emblemáticas “Sem dúvida que o Bairro teve maternidade! Naquele
tempo todas as crianças (ou quase todas) nasceram nas
No decurso das conversas muitos foram os nomes suas casas com a ajuda da D. Cândida (…) deveria ser
retidos na memória por diversos motivos e situações. As homenageada!” (Mimi Caldas, grupo “Intas & Entas do
frases transcritas representam voz colectiva dessas Bairro Padre Cruz, facebook)
memórias…
“As irmãzinhas da Assunção eram muito queridas aqui no
“Conheci o padre Francisco. Tive esse privilégio. Era uma bairro.”
autoridade no bairro. Havia aqui duas pessoas que eram
aglutinadoras da vida do bairro: o padre Francisco e a Drª “A Elisete foi uma pessoa muito importante na organização
Isabel Geada – a parte religiosa e a parte social.” das festas da paróquia. Ela é que organizava as festas,
ensaiava, preparava-nos… Sempre que havia retiros, lá
“O padre Araújo foi também uma grande referência. O estava a Elisete a encaminhar, a organizar, a orientar… a
padre Araújo vinha do Seminário dos Franciscanos para fazer a ponte entre nós e a Igreja. A Elisete estava sempre
aqui a pé pelas azinhagas. Trazia um barretinho com um metida na boa confusão.”
pom-pom em cima, daqueles dos barretinhos dos pintores
e passava por nós, dava um pontapé na bola, conversava “A Domingas era uma rapariga fantástica! Cantava tão
connosco e prosseguia caminho. Quando o recordo sinto bem…”
uma espécie de gratidão e carinho porque já não existem
figuras assim, hoje em dia.” “O próprio fiscal era uma figura emblemática.”

“Tínhamos o Dr. Falé que era o médico de toda a gente. “A D. Quitéria, vendedora de roupas… Dois vendedores – o
Muito carinhoso.” Massas (Álvaro) e o Manel das roupas – eram dois velhotes,
alcoólicos que eram muito carismáticos, emblemáticos do
“O senhor Agostinho Cristino foi sempre muito activo na bairro. Vinham a pé, fatos de ganga, de ganga operária… e
vida do bairro, participou em actividades com a Junta de por aí andavam de bairro em bairro.”
Freguesia mais tarde, dinamizava o coro da igreja… Foi
autor de várias letras para o bairro, do hino do 41…” “E havia o Garrafinhas que vendia refrescos e outros doces

68
feitos por ele à porta da escola.” encontrar as soluções. Não se pode obrigar nem empurrar
“Como recordo… uma pessoa afável e que fazia uns ninguém nestes assuntos… O que conseguimos com
refrescos… não sei o que levavam mas eram bons… seria acordo de todos foi, precisamente, a aquisição da imagem
da caninha?” (Isabel Martins, grupo “Intas & Entas do da N. Senhora de Fátima entre outras… que resultou de
Bairro Padre Cruz, facebook) uma colecta entre todos os moradores. Depois, por
“Na altura em que ele vendia, ainda me lembro de ajudá-lo ocasião da despedida do Padre Francisco, fomos à baixa
a encher as garrafinhas. Eu devia ter uns 6 anos.”;”Sim, da cidade comprar um Cristo numa loja de arte sacra. Foi
era o meu avô. Era o ti Jaquim, conhecido como o uma oferta de uma senhora da Amadora.
Garrafinhas” (Aníbal Santos, grupo “Intas & Entas do Bairro Quando cheguei ao bairro havia duas coisas – a
Padre Cruz, facebook) solidariedade operária, a Liga Eucarística (mais dos
Jesuítas) e a LOC (Liga Operária católica) que trabalhava
“Conheci o nosso ciclista, o Joaquim Gomes, do Carnide muito bem. Dei-lhes muito apoio, reflectíamos juntos…
Clube. Ele morava na R. Rio Ceira e a mãe trabalhava numa Para os jovens havia a catequese. Quase todos os
mercearia, em Carnide.” (9) catequistas eram jovens. Quando aqui cheguei eram
centenas de crianças! Tornava-se uma missa um pouco
“E depois, houve aquele episódio do Quarenta-e-um, do ruidosa porque era cheia de crianças. A missa era a seguir à
bebé que nasceu durante o percurso do autocarro. É o catequese e faltava-lhes um intervalo para correr… A
Ernesto e mora cá no bairro. Ninguém lhe contou?” catequese funcionava muito bem… com as festas e tudo…
mas eram muitas crianças…
“Creio que não haverá grandes figuras a destacar, mas a O crescimento espiritual é o que justifica ser reconhecida
vivência em grupo, comunitária, do próprio bairro. Haveria como paróquia. (…) Todos os movimentos nasceram por
algumas lideranças, de acordo com as disponibilidades de iniciativa dos moradores porque só assim é que faz sentido.
cada um… Talvez para cada clube houvesse figuras que os Eu nunca escolhi ninguém. Cada grupo fazia as suas
marcassem mais". (Fernando d’Oliveira, morador) escolhas. Procurei sempre que fossem os próprios que se
propusessem e que escolhessem quem os representa. A
PADRE ARAÚJO E GRUPO DE CATEQUISTAS, A nova dinâmica da paróquia: “as escolhas eram das primeira vez que eu lá fui, não havia ninguém para fazer
1970 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
pessoas” uma leitura. E quem fez a primeira, foi o António Cristino e a
Elisete. Havia domingos em que não havia ninguém.
“Fui para lá em 1968 e comecei com uma agenda muito Depois a sensibilidade foi crescendo… e após o 25 de Abril
sobrecarregada. Os domingos eram muito intensos. Com já havia muitos… já toda a gente se prontificava. Foi
três celebrações eucarísticas – 9h, 11h (missa das crescendo espontaneamente. Tudo ia surgindo de acordo
crianças celebrada pelo Padre Francisco) e depois havia a com as necessidades que eles sentiam.” (padre António
missa das 19h. Residia no Seminário da Luz e fazia esse Araújo)
trajecto a pé para ver como estavam as coisas… caminhos
de basalto, muito irregulares. Gostava muito de ir a pé pelo “A nossa igreja aos domingos era fortíssima. Aí é que
bairro, pelos atalhos e pelas azinhagas. Sim, eu usava uma deveria ter nascido a festa do bairro, a festa do Padre
boina galega. (…) Cruz.” (Alfredo Amaral, morador)
Eu tinha como método o acompanhamento, ajudar a
pensar sobre coisas da vida mas nunca “empurrei”
ninguém. Na minha ideia as pessoas tinham que ser elas a

69
Novas configurações no apoio social – o Centro Social Centro Social Paroquial de Carnide é integrada no Centro
Paroquial de Carnide Social Paroquial de Carnide e é admitido novo pessoal,
onde eu apareço. (…). Essa situação manteve-se até ao
Conforme já foi referido o apoio social no bairro 25 de Abril.” (Natália Nunes, diretora da Região-Norte da
conheceu várias expressões apoiadas primeiro pela SCML; técnica da acção social no Bairro de 1973 a 1989)
Comissão da Acção Social dos Bairros Municipais. A par
destas intervenções a Santa Casa de Misericórdia de Ao longo deste capítulo percebeu-se claramente o
Lisboa também foi evoluindo e conquistando uma forma contexto e moldes de uma época histórica, o planeamento
mais definida que lhe permitiria, mais tarde, consolidar-se e a vivência concreta do bairro. O cenário de suporte que
como a instituição de referência para prestação dos apoios fomentou estas relações de convivência – um espaço
sociais nas várias vertentes: crianças, jovens e idosos. geográfico afastado do centro, ruralizado – facilitou o
desenvolvimento de estratégias comunitárias quer por
“Entrei para o Bairro Padre Cruz não directamente pela parte do pároco e dos técnicos de serviço social, quer por
Misericórdia, mas em 1973. Já fez 36 anos. Na altura, parte dos moradores, de que os clubes são expressão.
tinha sido criada uma IPSS [Instituição Social de E, neste conviver, foram artesãos de uma malha de
Solidariedade Social] – o Centro Social Paroquial de relações que “escapava” ao controlo e modelo regulador
Carnide – que funcionava e era ligado à Igreja. Não havia o do regime. Um regime político e um sistema económico
Centro como estrutura física. Havia os estatutos definidos e que, afinal, os incluía enquanto mão-de-obra, enquanto
o apoio era dado a partir da Igreja. Até aí, a actividade trabalhadores, mas excluía enquanto cidadãos de comuns
social desenvolvida no Bairro do Padre Cruz era da direitos.
responsabilidade do Governo Civil. Era a Comissão da No capítulo seguinte veremos como este habitar
Acção Social dos Bairros Municipais que dependia do de um “lugar físico” que se foi preenchendo como “lugar de
Governo Civil. As actividades já existentes – creche e comunidade”, estará na base da reivindicação por um
jardim-de-infância – funcionaram nestes termos até 1973. “lugar social”, a que o 25 de Abril abriria portas. À
A manutenção e todas estas actividades eram suportadas personagem do “morador”, do “vizinho”, do “artesão” das
pela Acção Social dos Bairros Municipais, até 1973. A sociabilidades do bairro, acrescentar-se-á a reivindicação EQUIPA DE TÉCNICAS DE ACÇÃO SOCIAL E ENFERMEIRAS,
ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
Misericórdia tinha a responsabilidade do acolhimento por uma nova forma de participação. As vozes dos
social. Ligado a este acolhimento social, e ligado às moradores acendem-se e enfrentam-se com outros
técnicas que faziam este acolhimento, passou também a anseios e entusiasmos.
haver o chamado “trabalho comunitário”. Foi aí que houve
um trabalho junto da população que era feito a partir do Síntese cronológica
acolhimento e em colaboração com a creche e o jardim-de- 1959 a 1974: Construtores da cidade, artesãos do
infância. No posto médico, havia um centro de dia de bairro
idosos e, do outro lado, uma oficina de malhas e costura.
Tudo isso era da responsabilidade da Comissão da Acção 1958/59
Social dos Bairros Municipais. Após a aquisição do terreno, a CML realiza vários contratos
Em 1973 é criada a IPSS – o Centro Social Paroquial de para efectivar a construção do “Bairro das Casas
Carnide, e as actividades e estabelecimentos até então Desmontáveis da Quinta da Penteeira”.
existentes passaram para a responsabilidade da IPSS. Ou 1959 (18/08)
seja, a Acção Social dos Bairros Municipais delegou ao Dec. Lei 42454 que estabelece um “plano de construção

70 BAIRRO PADRE CRUZ,


ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
de novas habitações na cidade de Lisboa, com o objectivo alojamento municipal.
de criar unidades urbanas integradas no plano geral da 1962
cidade” para travar a proliferação dos “bairros de lata”. Este Inaugurações dos vários equipamentos do futuro Bairro
documento esteve na origem do Gabinete Técnico da Padre Cruz. Criado o Andorinhas Futebol Clube, primeiro
Habitação (GTH, da CML) e do plano de construção para pequeno clube de bairro. Inauguração da sede do “Clube
Olivais-Chelas, com uma intervenção urbana totalmente de Futebol O Unidos”. Este clube havia sido criado a 1 de
diferente. O projecto do “Bairro das Casas Desmontáveis Junho de 1940 na Quinta da Calçada.
da Quinta da Penteeira” terá sido um dos últimos bairros - (03/05) - Inauguração da Escola Primária (nº 167) na rua
municipais que obedeceu ao padrão “tipo aldeia” Rio Tejo; ensino masculino e feminino em áreas separadas
conhecido por “solução portuguesa”. do mesmo edifício.
1959/60 - (12/06) - Inauguração do mercado é integrada nas
A freguesia de Carnide tem uma reduzida população de comemorações das Festas da Cidade. O mesmo edifício
apenas 4 263 habitantes. É iniciada a construção e o reúne peixaria, talho, lugar de fruta, carvoaria, leitaria e
alojamento no “Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta capelista.
da Penteeira”. É mais um bairro provisório, montado em - (1/10) - Inauguração da Capela do Bairro Padre Cruz
placas de lusalite, para instalar as primeiras 200 famílias dedicada a Nossa Senhora de Fátima; António Francisco
realojadas, sobretudo, do anterior bairro provisório da Marques, prior de S. Lourenço de Carnide e da Pontinha,
Quinta da Calçada. mantém-se na organização da vida paroquial.
Em 1959 é inaugurada a rede de Metropolitano (iniciada - (25/10) - Inauguração da Biblioteca de Carnide por
em 1955). Nesta primeira fase, até 1962, inaugura 11 ocasião da “Comemoração da tomada de posse de Lisboa
estações sendo o eixo Sete-Rios/Rotunda uma alternativa aos Mouros”.
ao eléctrico 13 (Carnide/Restauradores; Carnide/praça do - (17/11) - Inauguração do Bairro e bênção da carreira do
Chile) procurada pelos moradores. autocarro 41 com a presença de várias individualidades
1960/62 oficiais (Presidente da CML, França Borges; o vice-
Construção da zona de alvenaria que ficaria conhecido presidente Aníbal David, Vicente Rodrigues, o director de
como “bairro de alvenaria” com 917 fogos unifamiliares, Finanças, Manuel dos Santos Ferreira; o Bispo de Tiara, o
em ruas pedonais com nomes de rios portugueses; ocupa capelão do bairro, padre Francisco, representantes da
12 hectares. Atendendo ao número total de realojamentos Comissão da Acção Social e outras individualidades).
(1 117 fogos/famílias) construíram-se equipamentos de 1962/66
apoio: escola primária, posto médico, igreja, mercado, Projecto e construção da ponte sobre o Tejo (primeiro,
centro social e salão de festas e de trabalho, sala de nomeada “Salazar”; depois de 1974, “25 de Abril”) que
leitura/biblioteca, lavadouros. A supervisão do bairro obrigou a novos realojamentos no Bairro das Casas
mantém-se a cargo da Comissão da Acção Social dos Desmontáveis, da Quinta da Penteeira.
Bairros Municipais da CML, a figura do fiscal funciona como 1963
representante local da Polícia Municipal. A paróquia de S. Lourenço de Carnide, orientada pela
Durante a década de 60 é iniciada a construção de um Ordem Franciscana, intensifica actividade na vida do bairro.
conjunto maior de “habitação social” – o bairro de Olivais As figuras do padre, equipa de assistentes sociais, médicos
Sul (previsto o alojamento de perto de 50 000 pessoas). É e enfermeiras, fiscal, professor/a… são, cada um a seu
coordenado pelo Gabinete Técnico da Habitação e abre modo, referências importantes na organização (e controle)
uma nova fase na concepção e planeamento do do bairro. Por solicitação da Comissão da Acção Social da

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CML, e com apoio da SCML, as primeiras técnicas de funcionam a Liga Operária Católica e o Apostolado da
serviço social trabalham junto da população; também são Oração.
requisitadas as “irmãzinhas” da Assunção“ – missionárias - (?) - Novo rebentamento de paióis localizados em área
para auxiliar a população dos “bairros periféricos”. Visita ao vizinha, entre os concelhos de Lisboa e Loures (Alto do
Bairro Padre Cruz do ministro do Interior, Alfredo Rodrigues Forno). Os moradores, assustados, correm para as ruas.
dos Santos Júnior, acompanhado do Presidente França 1969 (28/2)
Borges, de Martins Gomes, de Manuel dos Santos Ferreira Tremor de terra em Lisboa. De novo, grande susto entre os
e de outras individualidades. moradores.
1965 (09/24) Surge a Liga Eucarística do Bairro Padre Cruz (apenas
O jornal Diário de Notícias regista o nascimento de uma masculina) – uma secção do Apostolado da Oração.
criança durante o percurso do autocarro 41. Essa criança, Durante a década de 60 a população da freguesia duplicou
um rapaz de nome Ernesto, é filho de uma moradora do (em 1961: 4 263; em 1971: 8 325 residentes). Na década
bairro e ganhou a alcunha do “Quarenta-e-um”. de 60-70 são construídos novos bairros na freguesia de
Inauguração oficial das Oficinas Sociais no bairro, Carnide: Quinta da Luz, Horta Nova e Bairro Novo de
coordenadas pela Comissão da Acção Social dos Bairros Carnide (conhecido por “Bairro da Polícia”). Desaparece a
Municipais, onde eram ministrados cursos de costura, bipolaridade (“Carnide Velho”/Bairro Padre Cruz) que
malhas, cozinha… para as residentes. animara o território da freguesia de Carnide durante uma
1966/67 década.
É concluído o novo Plano Director de Lisboa (seria 1970 (a 1977)
totalmente aprovado em 1976) que revê algumas das O Gabinete Técnico de Habitação (GTH) passa a controlar a
propostas do anterior Plano de 1948 (mais próximo do distribuição das casas camarárias.
modernismo da Carta de Atenas). A população residente no concelho de Lisboa cresce
- (23/04) - Criado oficialmente o Grupo Recreativo Os significativamente, a população residente no centro da
Amigos da Luz. cidade diminui. Desenvolvimento e expansão da rede viária
- (30/06) - O Bairro ganha patrono. Grande e pomposa e meios de transporte da capital para as desqualificadas e
cerimónia de colocação da estátua de pedra, do escultor desordenadas periferias atendendo ao enorme
Martins Correia, com o busto do Padre Francisco da Cruz crescimento populacional.
em frente à capela Nª Senhora de Fátima, e da lápide onde 1971
está gravada a efeméride. Criação da EPUL – Empresa Pública de Urbanização de
- (25/11) - Cheias no Bairro da Urmeira, no sopé da Serra Lisboa que também será responsável por futuros projectos
da Luz. “Cinco horas de chuvas torrenciais mergulharam a no Bairro Padre Cruz.
Grande Lisboa na maior inundação que a região alguma vez - (28/06) - É criada a paróquia da Pontinha que assim se
conheceu. A Urmeira foi um dos locais mais fustigados por autonomiza da paróquia de S. Lourenço de Carnide de que
essas mortíferas cheias.” (cf. relembra Diário de Notícias fazia parte desde1950.
de Novembro de 2007). A relação conflituosa com os 1973
moradores da Urmeira fez parte da história do Bairro Padre Criação do Centro Social Paroquial de Carnide – IPSS
Cruz mas este episódio amenizou essa relação. [Instituição Social de Solidariedade Social]. No início
1968(?) funciona associado à Igreja S. Lourenço de Carnide e o
No âmbito das várias actividades da paróquia (para além apoio é centralizado a partir desta paróquia. O padre
catequese e dos campos de férias para jovens e seniores) Francisco Marques retira-se da Paróquia de S. Lourenço de

72
Carnide (onde estava desde 1952; em 16/07/1975 será
nomeado primeiro Bispo da diocese de Santarém,).
1974 (até Abril)
Alteração parcial da paisagem física do bairro; construção
dos primeiros prédios, de 5 andares, no topo norte. Estão
previstos os primeiros realojamentos em altura e o direito a
estes novos fogos começa a levantar polémica entre os
moradores.

73
74
Fase 2 pela e promoção e construção da habitação social foi
1974-1990: A VIVÊNCIA LOCAL DO(S) PODER(ES) E sendo imputada às autarquias. Criaram-se diferentes
DA(S) CULTURA(S) modalidades de cooperação e de pareceria mas que, na
prática, apresentavam grandes lacunas.
“Os tempos mudam e a gente também muda” Em 1977-78 Aquilino Ribeiro Machado era eleito
José Valente (morador) presidente da CML (1977-80/Partido Socialista) pondo fim
à instabilidade das comissões administrativas. Neste
O 25 de Abril e a “nova ordem urbana” contexto, foi criada a Direcção Municipal da Habitação que
integrava o Serviço de Realojamento. Este Serviço passou a
A revolução de Abril inaugurou um período gerir a atribuição das casas municipais mas a supervisão
diferente e decisivo na vida do país. De um sistema político sobre os bairros municipais revelou-se deveras insuficiente
ditatorial ensaiavam-se agora os primeiros passos em e inoperante, conforme escutaremos nos testemunhos.
direcção a um regime democrático que sucessivos Alguns dos primeiros bairros provisórios ainda resistiam,
Governos Provisórios procuravam consolidar. mas definhavam, e os alojamentos clandestinos
Nesta fase a Câmara Municipal de Lisboa, tal espalhados pelas periferias acolhiam outros surtos de
como todas as outras, foi palco de experimentação de desalojados em resultado dos persistentes movimentos
novos modelos de gestão mobilizadores da sociedade civil. migratórios e do pós-guerra colonial. Assistia-se ao eclodir
Fazer justiça passava também por (re)fazer a cidade. de uma “nova ordem urbana” a par com a explosão
Porém, muito ainda estava por definir. Entre 1974 e 1975 demográfica nos territórios periféricos da cidade (vd.
o governo do município foi provisoriamente gerido por uma Cardoso, Ana (1993)).
Comissão Administrativa que durante um ano conheceu Esta segunda fase na linha biográfica do Bairro
três presidentes. Viviam-se períodos de grande Padre Cruz foi, também ela, atravessada por subfases com
instabilidade social que se reflectiram, inevitavelmente, na focos distintos de problemas, apesar de interligados.
gestão dos bairros municipais e no Bairro Padre Cruz. Uma primeira, decorre de ’74 aos anos 80,
Relembremos que o 25 de Abril desencadeara evidenciou os primeiros usos da liberdade, a
VISTA BAIRRO PADRE CRUZ, ANOS 70
novas reivindicações populares pelo direito à habitação experimentação do poder local e de formas alternativas na
(FOTOGRAFIA PARTICULAR)
consagrado pela nova Constituição da República de 1976. gestão do bairro (constituição da primeira Comissão de
A cidade de Lisboa atravessou um período de intensas Moradores), e o acompanhamento dos processos de
manifestações que, entre outro tanto, denunciavam a realojamento nos primeiros prédios, no topo norte que,
degradação das condições da habitação (sobretudo nas entretanto haviam sido construídos.
tais periferias desqualificadas) acumuladas durante o Numa outra, já durante os anos 80-90, percebe-
silêncio metálico do Estado Novo e que o processo de se a conversão e organização das iniciativas mais
descolonização muito agravou. Assistiu-se à reocupação espontâneas em acções políticas reivindicadas por parte
de espaços e de edifícios, públicos e privados, com o apoio dos moradores, autarcas e outros técnicos. As relações
das comissões de moradores e de trabalhadores, a maior sociais do bairro já consolidadas serviram para
parte, recentemente constituídas… Surgiu a operação mobilizações politicamente interventivas, aproveitando um
SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local(1) que, em novo poder negocial – o “capital comunitário”. A figura de
Lisboa, deu origem à criação das “Brigadas de Actuação Maria Vilar Diógenes (presidente da junta de freguesia)
Local” a par com as reivindicações das populações. destaca-se nesta mobilização.
A partir dos finais dos anos 70, a responsabilidade De qualquer modo, este é um período em que o

PLANTA PROJECTO PARA NOVO BAIRRO, 1977 (CML) 75


bairro se reanima livre e intensamente. Vive-se o bairro, e presença dos militares estrategicamente colocados nas
vive-se a rua. Vive-se o bairro na rua. São relações muito ruas do bairro. O tom destes testemunhos são reveladores
espontâneas e multiplicam-se as festas, celebrações, da desinformação e do silêncio contidos em que o bairro (e
motivos de encontro e reencontros. “Tudo era motivo para o país) vivia… pois a “política não entrava lá no bairro”.
fazer festa” e a cultura de bairro preenche-se com esses
momentos intensamente partilhados em que os clubes “O 25 de Abril foi forte. Ninguém pôde sair ou entrar no
mantêm forte dinamismo. Em paralelo, também durante bairro. Ninguém sabia o que se passava e depois viemos a
esta segunda fase a paróquia reafirma uma poderosa saber que o comando operacional era aqui, na Pontinha.
vitalidade, desde 1981, com o Padre António Baptista. As Logo a seguir o bairro começou a cair num relaxe, as
experiências e convivências intensas por parte da pessoas começaram a alterar as relações… Não foi por
população jovem – a segunda geração de moradores – terá motivos políticos.” (Emídio Silva, ex-morador)
um papel de relevo no viver (e actualizar) oo “espírito” do
bairro. “Foi giro no 25 de Abril. Na véspera eu tinha ido com a
No contexto destas transformações, surgem minha mãe à Pontinha e vira três ou quatro carros com
novos vizinhos na freguesia. A bipolaridade (“Carnide militares a fazerem exercícios na rua próxima do bairro…
Velho”/Bairro Padre Cruz) desaparece… Durante a década Pensei ‘Mas estes são doidos? Não lhes chega o quartel,
de 70 foram construídos novos bairros na freguesia de vêm para aqui fazer exercícios?! Isto, na véspera, pois o 25
Carnide: Quinta da Luz, Horta Nova e bairro Novo de de Abril foi preparado no quartel da Pontinha. As pessoas,
Carnide (conhecido por “bairro da polícia”), alguns da nesse dia não podiam sair daqui. A única pessoa que
responsabilidade da EPUL. Entre uma década (1971- deixaram entrar era o Padre Araújo.” (Elisete Andrade,
1981) a população da freguesia aumentou de 8 325 para moradora)
13 375 habitantes. A população do Bairro Padre Cruz
manteve-se como a mais numerosa no conjunto da “O bairro parou. Estava na cama porque era dia de escola.
freguesia. A minha mãe avisou-nos: “deixem-se estar na cama
porque hoje não há escola. Porquê mãe? Porque anda
Memórias do 25 de Abril – o dia em que o “bairro muita confusão na rua”. E passámos o dia inteiro a ouvir
parou” rádio. Não percebíamos nada mas sabíamos que alguma
coisa estava a acontecer. Lembro-me que a minha mãe
Antes de prosseguir, escutem-se alguns queria ir ao pão mas os militares tinham cortado a rua.
depoimentos dos moradores acerca do dia em que o Lembro-me, porque fui com a minha mãe. E houve um
regime do Estado Novo foi politicamente derrubado. A soldado ao final da rua que acompanhava as mulheres até
estreita vizinhança com o quartel da Pontinha onde, ao pão e depois voltava. Foi uma espécie de escolta e disso
entretanto, se instalara sigilosamente o Posto de Comando eu lembro-me perfeitamente. Toda esta zona ficou sitiada.”
do Movimento das Forças Armadas fez com que os (Fernando d’Oliveira, morador)
moradores do Bairro Padre Cruz vivessem a alvorada do
movimento de um modo singular. “Quando foi o 25 de Abril, “Nesse dia, o senhor da mercearia vendeu quase tudo…”
daqui é que saiu a revolução!” (Nazaré, moradora) (Carminda Prado, moradora)
Contudo, a proximidade física não significou maior
informação. Pelo raiar daquela manhã toda a população – “Eu era novo, mas tenho a ideia de que política não se
e, a seu modo, cada morador – foi surpreendida com a falava lá no bairro. Não entrava lá no bairro. Quando se dá

76
o 25 de Abril só me lembro da minha mãe dizer que Nas zonas do bairro já edificadas (lusalite e
naquele dia não era aconselhado ir para a escola. “Mas o alvenaria) a expressão popular soltou-se e as vozes e
que se passa?” “Não se passa nada!” Porque também não acções libertaram-se. A figura do fiscal desapareceu e
se podia dizer… porque havia o medo de ser apontado. surgiram cartazes, murais, pinturas reivindicativas nas
Havia o ‘bufo’ porque isso eu sei que havia. E nos pós-25 paredes. Os traçados originais das casas foram sendo
de Abril é que eu começo a aperceber-me da opressão que modificados. Os muretes dos jardins deram lugar a anexos
se vivia. Porque nós vivíamos afastados – íamos para a encobertos e privados. Curiosamente, ao mesmo tempo
escola, íamos para a catequese… não havia aquele “Deus, que se reivindicavam poderes mais democráticos e
PLENÁRIO DE ESCLARECIMENTO,
SALÃO DE FESTAS, ANOS 70 Pátria, Autoridade” de um modo explícito. Eu, pelo menos, populares, a reapropriação de alguns espaços, antes
não o sentia. Creio que era por aquele bairro estar tão públicos, tornou-se privada. O morador do Bairro Padre
longe... tão periférico relativamente ao centro.” (Jorge Cruz assumia-se como um cidadão de direitos. Porém, a
Nicolau, ex-morador). emoção e rapidez dos acontecimentos não permitia
amadurecer as novas revindicações sociais e a forma de
1974-1980: Do silêncio à reivindicação da voz, do expressá-las acabaria por ser controversa: construindo
morador ao cidadão muros, altos e baixos, portões e anexos de acesso privado.
Reivindicações comunitárias e direitos individuais
A partir de 1974 a liberdade de expressão e de reconstruíam a nova ordem (local) urbana. Uma ordem ou
movimento a que a revolução de ‘74 abriu portas, trouxe desordem apertada entre conflitos e convergências mas
novos direitos e outra consciência política. Deu lugar a com consequências evidentes ao nível da paisagem
novas sociabilidades e a experiências associativas para edificada e das tensões vividas.
além das recreativas e desportivas.
A vida política animou-se dentro do bairro criando Formas alternativas de gestão – a primeira Comissão
fracturas e tensões entre a comunidade. Também ali o de Moradores
período pós-25 de Abril ficou marcado pelas entusiásticas
experiências da liberdade (“o poder saiu à rua”) e a rejeição Durante aquele torvelinho de confrontos também
PRIMEIROS PRÉDIOS NO BAIRRO, RUA DO RIO GUADIANA,
relativamente a tudo o que sugerisse compromissos com o no Bairro Padre Cruz teve lugar um intenso movimento de
1974-75 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
regime derrubado (designadamente com a Comissão da reivindicação. As acessibilidades e marginalização
Ação Social, SCML, …). (agravada pela continuada insuficiência dos
As funções da paróquia de S. Lourenço de Carnide transportes…), as más condições das casas de lusalite e o
e o respectivo pároco (na altura, o padre Martins) foram desacompanhamento da manutenção dos fogos e
motivo de desconfiança por parte de alguns grupos de infraestruturas do conjunto do bairro impunham-se como
moradores. No mesmo ímpeto, outros movimentos problemas graves que urgia resolver. Para além disso, o
articulados com a paróquia (JOC, LOC, Apostolado da crescimento das famílias não fora acompanhado com a
Oração) foram alvo de crítica e até mesmo de alguma atribuição de novos fogos e os rendimentos auferidos
“perseguição”, conforme escutamos adiante. continuavam a impedir o acesso ao mercado livre.
Por razões administrativas, as Irmãzinhas da Nesta fase, o “salão de festas” alterou o tom da
Assunção viram comprometida a sua permanência no música e acolheu plenários entre moradores e seus
bairro, uma vez que a instituição suporte fora extinta (a tal representantes para discutir as estratégias a adoptar. O
Comissão da Acção Social), e não havia possibilidade da primeiro presidente da Junta de Freguesia de Carnide, João
sua reintegração nas valências existentes na SCML. Gualdino (residente no núcleo antigo de Carnide)

77
presenciou alguns debates “O importante é que falassem. tarde, dar a volta e, em 1974, criar a primeira Comissão de
E ouvi-los” (João Gualdino). Moradores.
A gestão do bairro foi revindicada pelos moradores Em 1974 já havia uma Comissão de Moradores no bairro
– constituiu-se informalmente a primeira Comissão de que assegurou, durante algum tempo, a gestão do salão de
Moradores. Muitos dos não-moradores, designadamente o festas até 1977 e 78. Depois, perdeu-se em grande parte
pessoal técnico, foram encarados com alguma suspeição. devido à luta partidária sem sentido que aconteceu
Os serviços da Misericórdia e da Comissão da Acção Social naquela altura. Esta Comissão de Moradores participou
foram repudiados porque associados a uma época que se activamente e em estreita colaboração com a Câmara, BAIRRO DE LUSALITE, RUA DO RIO ALMANSOR,
queria ultrapassada. com a Direcção Municipal da Habitação no sentido de ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
Entretanto, na coroa norte e periférica do bairro evitar que, no bairro, houvesse ocupações selvagens. (…)
ocorriam os terceiros realojamentos, agora em altura, Os realojamentos que foram feitos nos primeiros prédios –
dando início a uma modalidade diferente. Nos terrenos os chamados prédios cor-de-rosa, foram feitos com
expectantes (de hortas) que ladeavam a estrada da acompanhamento desta Comissão. A maioria das pessoas
circunvalação a norte do bairro de alvenaria, foram que para lá foram morar era resultado de desdobramentos
construídos 10 edifícios repartidos com 5 pisos cada, num de famílias do bairro de lusalite e de alvenaria. Houve uma
total de 200 fogos, que já haviam sido planeados antes do percentagem mínima que veio de fora para fazer face às
25 de abril. Estes prédios destinavam-se prioritariamente necessidades da Câmara. Foi todo um processo em
ao realojamento dos moradores do velho e “provisório” colaboração e cooperação com a Câmara, com a então
bairro de lusalite (175 famílias) cuja degradação obrigava a Direcção Municipal dos Serviços de Habitação (criada em
urgentes medidas camarárias ou ao desdobramento para 1977). Desde sempre houve a ideia de tentar envolver as
“filhos do bairro”. pessoas na resolução dos seus problemas. Esta Comissão
Também naquela fase, conciliar a adaptação ao extinguiu-se, não tinha existência legal, sequer.” (António
novo cenário de alojamento – em altura – não foi fácil nem Cristino, morador).
pacífica. A inicial estrutura das galerias teve que ser
posteriormente alterada atendendo à apropriação indevida “O pós-25 de Abril foi uma altura em que começaram a ser
BAIRRO DE LUSALITE, RUA DO RIO ALMANSOR,
dos espaços comuns. A Comissão de Moradores criadas muitas comissões. As comissões de moradores… e
ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
acompanhou esses primeiros realojamentos internos – houve grandes convulsões em termos da população e
quer das casas vagas nos bairros de lusalite e alvenaria, houve movimentos contra os serviços que funcionavam no
quer nos prédios de alvenaria alta. Após a supervisão bairro… [serviços da Misericórdia e da Comissão da Acção
destes realojamentos internos e algumas críticas internas Social dos bairros Municipais]. Nessa altura as equipas
aquela Comissão foi extinta sem nunca ter formalizado a técnicas funcionavam por cima do salão de festas, perto da
sua existência. biblioteca. Foi também o momento em que as associações
mais ou menos organizadas começaram a reivindicar a
“Após o 25 de Abril houve muitas transformações aqui no gestão dos serviços… sobretudo a Comissão de
bairro. Nomeadamente quem estava ligado à Igreja… Moradores. Começaram a por em causa a gestão dos
quem estava ligado à LOC (Liga Operária Católica) sofreu serviços, nomeadamente a gestão da cantina. Todos os
alguma perseguição. Os chamados extremismos outros serviços eram geridos pelo Centro Social Paroquial
revolucionários… mas durou pouco tempo. de Carnide, constituído em 1973. Com o 25 de Abril houve
Eu estava ligado à JOC [Juventude Operária Católica]. Mas momentos muito difíceis. No salão de festas assisti a
estas mesmas pessoas conseguiram, um pouco mais movimentos quase de apedrejamento. Ali eram feitos

78
grandes plenários. Os técnicos viveram ali momentos muito formalizámos a associação havia algum descrédito por
difíceis. parte dos moradores. Nós conseguimos limar essas arestas
Como cheguei ao bairro em vésperas do 25 de Abril não e as pessoas confiaram. Até porque é muito diferente
consigo localizar que população era esta que mais se quando as pessoas agem em grupo ou agem
insurgiu. Fui apanhada de surpresa. (… ) Houve líderes dos individualmente… Eu também morava na lusalite. E muita
movimentos de reivindicação. Começaram a pôr em causa gente me viu crescer e muita gente confiava muito em
a gestão da cantina, a acusar o Centro Social Paroquial de mim… E lá fomos conseguindo reconquistar as pessoas.
Carnide de má gestão. Queriam ficar com aquilo. Era o Estive na direcção e ligado à Associação durante 30
Padre Martins que estava na Paróquia por essa altura, anos… desliguei-me muito recentemente.
creio (…). Tudo era posto em causa, tudo era questionado, Esta associação tinha o objectivo de garantir que as casas
um clima de desconfiança muito grande. Mas isto não que tinham sido construídas para realojar as pessoas do
aconteceu só naquele bairro. A Acção Social dos bairros bairro de lusalite fosse cumprido. Fez-se o realojamento
Municipais, nessa altura, tinha a gestão de quase todos os segundo critérios definidos e a antiguidade no bairro foi um
bairros municipais – as Furnas, a Quinta da Calçada, a deles. Tratámos do realojamento das pessoas das casas de
Musgueira… e onde todo este processo também estava a lusalite para os prédios. Foram realojamentos pacíficos.
ser posto em causa e questionado. (…) A partir de 1978 é Nessa altura, também houve algumas resistências por
que a Misericórdia aparece como um todo naquele bairro. parte dos mais velhos em mudar de casas térreas para
Reaparecemos já como Serviços da SCML. Aí, as coisas já casas em prédios. Aí, as casas de lusalite serviram também
estavam bastante mais calmas… O slogan “o poder na de casas de transição de pessoas que vinham de outros
rua” já estava mais apaziguado, havia outra compreensão realojamentos posteriores, da Quinta das Fonsecas, por
das coisas e, a partir daí, as coisas funcionaram bem, sem ocasião da construção do eixo Norte-Sul.” (José Martins,
problemas” (Natália Nunes, SCML, em funções técnicas no morador)
bairro de 1973 a 1991)
O desinvestimento municipal e a progressiva
Viveram-se momentos conturbados, socialmente degradação do bairro
BAIRRO DE ALVENARIA, ANOS 70-80 (GEO) confusos, porque tudo estava a acontecer ao mesmo
tempo. Todavia estas tensões permitiram ir testando a “O bairro era reconhecido pelas ruas,
“elasticidade” do trabalho no terreno por parte das pela beleza das casinhas… Era!
instituições e da população. Um trabalho tenso com E porque se perdeu?”
resultados mais maduros na década seguinte já pelos anos Mário Guerra (ex-morador)
80.
“A degradação do bairro começa com a desadequação
“Foi em 1980 que se formalizou a Associação. Fiz parte do das casas às necessidades das famílias.”
grupo com mais umas 10 pessoas. Nessa altura fui António Cristino (morador)
presidente. Constitui-se antes, não formalmente, porque
tinha havido o boato de que havia casas que tinham sido
negociadas quando era para realojar os moradores antigos Decorridos quinze anos após a criação do bairro
da lusalite… Esse processo não foi pacífico. Essa foi a “provisório” do Padre Cruz a deterioração das condições de
primeira associação de moradores, uma comissão… mas habitabilidade e o tamanho exíguo das casas chocavam
as coisas não correram bem... Quando recuperámos e violentamente com as necessidades das famílias que

BAIRRO DE ALVENARIA, ANOS 70-80 (GEO) 79


aumentavam e envelheciam. investimentos muito diferentes. A par com as
Durante esta fase evidencia-se o confronto entre reapropriações menos cuidadosas e mais “abarracadas”
tempos – o provisório que se foi transformando em que agridem a paisagem do bairro, é inegável o trabalho
definitivo, e a modificação das condições de vida de uma cuidadoso, meticuloso por parte de alguns outros
população que se foi fixando e reapropriando do lugar, moradores. De tudo isto resultarão grandes contrastes no
dissemos. Os espaços físicos das casas e os recursos interior do “bairro antigo”. A par com as circunstâncias de
económicos das famílias pouco aumentaram, mas deterioração dos materiais, uso inapropriado e indevido
aumentaram as famílias, os descendentes, e raros foram dos espaços, são inegáveis os exemplos de conservação e
os desdobramentos autorizados(2). formas criativas de beneficiação do uso das casas por parte
Devido às limitações das casas registaram-se de outros residentes.
situações de verdadeiros dramas familiares. Foi para Além disso, também o espaço público acusava
superar tais limitações que os moradores começaram a uso e desgaste – a estreiteza das ruas, os passeios, os
readaptar os usos e funções dos espaços e a anexar os próprios edifícios dos equipamentos sociais acusavam a
quintais e logradouros... “Estes duplexes levantaram passagem do tempo. Os automóveis circulavam pelo bairro
muitos problemas”, em particular junto das famílias que em maior quantidade mas o aperto das ruas dificultava as
envelheciam e adoeciam, e onde a mobilidade e a mobilidades. As rosas e as flores desapareceram dos
funcionalidade dos espaços comprometia a segurança e a quintais para dar lugar às garagens e aos anexos. A estética
qualidade de vida dos residentes (a níveis tão básicos como e a funcionalidade da tal aldeia branca perdeu-se.
os acessos às casas de banho…) “Houve muitos heróis Mantinha, porém, o isolamento e a periferização que viriam
aqui no bairro!”, desabafou Elisete Andrade a propósito. a ser usados como argumentos para a continuada
estigmatização do bairro aos olhos da “cidade dos outros”.
“Tenho um pau comprido de pintura e enrolava ali uns
panos, à noite, antes da gente ir para a cama andávamos a “A degradação do bairro começa com a desadequação das
apanhar a água, assim ao rolo. Depois passado um casas às necessidades das famílias. Quando vieram para o
pedaço, já estava outra vez assim… pim…pim…pim… Nós bairro eram casais com crianças pequenas. Depois, as
fomos obrigados a ir fazendo alterações às casas porque as famílias foram aumentando, constituindo novos casais. O
casas não serviam. A minha mãe viveu entrevada durante próprio aluguer de casas era complicado. Por isso viviam
cinco anos…” (Domingas Ferreira, moradora) duas a três famílias na mesma casa e esse problema foi-se
agravando.
Compreende-se agora que, a partir de 1974, a Parte deste problema foi resolvido com os tais primeiros
quase totalidade dos residentes tenha alterado a estrutura prédios, lotes altos. Mas ainda ficaram muitas situações
original da respectiva casa e, por consequência a por resolver. E, com a inexistência de fiscalização, as
organização do espaço público, sem acompanhamento por pessoas começam a ocupar os quintais das casas, o que
parte de quem deveria gerir e instruir esses processos – “a descaracterizou o bairro. Grande parte delas deixaram de
Câmara Municipal de Lisboa foi um péssimo senhorio.” Os ter os quintaizinhos e a Câmara, após a construção dos
investimentos feitos (tempo, dinheiro, braços e recursos lotes cor-de-rosa, desinvestiu, ou melhor, nunca investiu de
vários) por parte dos residentes corresponderam a facto nas casas de alvenaria.
transformações (interiores e exteriores) que cada um, a seu Durante estes 50 anos as casas de alvenaria apenas foram
modo e jeito, avalia como “melhoramento”. rebocadas em 1973. E apenas na parte exterior. Foram
Há que sublinhar que estas readaptações revelam rebocadas e pintadas. Mas penso que estragaram mais do

80 PORMENOR NO ARRANJO DA CASA


(FOTOGRAFIA PARTICULAR)
que pintaram. Para além de partirem os tijolos, o proveito direitos e de voz, capacitados para desenvolver estratégias
foi menor que o estrago.(…) Nunca houve investimento da que contrariarem a sujeição a uma ordem ou “destino
Câmara nestas casas porque, possivelmente já estava em social” que os progenitores conheceram durante o regime
mente deitá-las abaixo um dia… Quem tinha alguma do Estado Novo(3). A vitalidade do movimento associativo,
possibilidade foi arranjando as casas no interior. E hoje não as novas iniciativas que estão na origem de novos clubes
estarão tão más por causa disso, do dinheiro que os ilustra este outro ímpeto que acabamos de referir.
próprios moradores foram investindo em casas que, afinal,
nem eram deles. Eram da Câmara. Os que não tinham essa O movimento associativo e os novos clubes – “muita
possibilidade, aquelas casas que foram sendo ‘volantes’, carolice e orgulho bom”
que tiveram vários ocupantes deterioraram-se mais e
deterioraram as que estão ao lado.” (António Cristino, “Era um bairro muito clubista”
morador) Vitor Aveiro, vogal do Desporto/JFC

“Há uma fase em que não houve quem gerisse, quem “O bairro tinha muito orgulho nos seus clubes”
acompanhasse… O bairro fica entregue aos moradores e Fernando Pereira, ex-morador
cada um faz crescer a casa à sua maneira… E é depois que
aparecem as notícias que referem o Bairro Padre Cruz Tal como ocorrera com a origem dos dois clubes já
como o “bairro de lata”… O que esquece tudo o que aqui identificados – O Unidos e os Amigos da Luz – e que
se viveu e construiu. Também houve pessoas que não marcaram a génese do movimento de cariz associativo no
construíram, abarracaram… porque não houve cuidado de bairro, a formação de uma estrutura clubística, regular e
estimar, um respeito pelo que o bairro era… Era o bairro sólida tem sempre o seu início em encontros informais,
das vivendinhas porque eram as tais casinhas cada uma irregulares e descomprometidos. Todos os clubes têm
com o seu jardinzinho à frente e atrás que depois se início em reuniões entre amigos que aqui ou ali se juntam
perdeu… O bairro era reconhecido pelas ruas, pela beleza em torno de um gosto ou pretexto comum – o gosto por
das casinhas… Era! E porque se perdeu? Porque, depois, jogar à bola é o exemplo mais frequente.
não houve mais investimento, não se fizeram casas, os Nesta fase confirma-se o gosto pelo “bichinho” do
filhos não queriam sair do bairro e o que se faz? O que se associativismo. Os clubes já criados (“Amigos da Luz e “Os
pode fazer?… Cria-se mais um anexo, a seguir mais um Unidos”) reanimam as dinâmicas e promovem várias
quarto e cresce e cresce… e esticam, e deformam a iniciativas com novos fôlegos. E outros protagonistas
estética original… E as famílias envelheceram, as casas entravam em campo confirmando os clubes como agentes
degradaram-se e depois vai ficando este bairro triste. fundamentais na mediação e representação da imagem do
Deixou-se morrer a verdadeira história do bairro. Deixou de “nosso bairro” no exterior.
fazer sentido…” (Mário Guerra, ex-morador).
Clube Atlético e Cultural – “todos iguais, sendo
Talvez não fosse a “verdadeira história” do bairro diferentes”
que morria… Era, antes sim, a imposição dos outros
tempos e de outras necessidades. Lembremos: “Os Em 1974 foi fundado o Clube Atlético Cultural. Foi
tempos mudam e a gente também muda”, afirmou José na paróquia da vizinha freguesia da Pontinha que este
valente. A segunda geração, dos filhos que permaneceram clube recebeu o seu primeiro estímulo pois era ali que
no bairro, já se vão representando como cidadãos de partilhava um espaço comum com a Juventude Operária

81
Católica (JOC), também da Pontinha. Já em 1971, um Essa mentalidade tem vindo a alterar-se. Somos 3 clubes
grupo de estudantes universitários queria levar adiante um do bairro, independentemente da nossa sede na Pontinha.
projecto desportivo e cultural a que denominaram “Cultura, Porque 90% da nossa atividade é em Carnide.” (Vitor
Assistência e Convívio” inspirados no lema de Fernando Cacito, presidente do CAC desde 2009)
Pessoa – “o Homem sonha e a Obra nasce”. E a obra
nasceu. O desporto já havia sido compreendido como Grupo Recreativo Escorpiões Futebol Clube – os
instrumento eficaz na integração e coesão sociais “toupeiras”
conseguindo validar o sucesso de jovens deslocados do
ambiente escolar. Durante muitos anos as relações do CAC A história deste clube é exemplar em muitos
com os demais clubes desportivos do bairro foram tensas aspectos(4). Foi narrada por Emídio Silva, seu fundador. A
na medida em que, naquela perspectiva, “não está vivacidade e interesse do seu testemunho levam-nos a
transparente” a atribuição do campo desportivo a “um considerá-lo património do clube, e do bairro. Por esse
clube de fora” – do bairro e da freguesia. De qualquer modo motivo, mantivemos grande parte da sua sequência.
o CAC desde sempre investiu no recrutamento de jovens Escute-se:
atletas entre os moradores do bairro de modo a esbater
esse estigma de “clube de fora”. “A actual sede dos Escorpiões tem muito da sua história ali
montada. Porque não foi ali que o clube nasceu… a ideia
“O CAC cruza-se com a história do Bairro Padre Cruz numa do clube nasceu entre um grupo de adolescentes, quatro
série de vectores – o mais importante é no campo ou cinco amigos admiradores e praticantes de futebol, que
desportivo, nomeadamente no futebol. Porque é dos se reuniam à conversa nas escadinhas da rua Rio Mira. E
maiores clubes de Lisboa e o maior de Odivelas e, como tal, perguntámos: porque é que não fazemos um clube de
as crianças e as pessoas percebem que fazemos um futebol na nossa rua?
trabalho em termos de formação – enquanto atleta e Éramos onze e tivemos a ideia de formar uma equipa de
enquanto cidadão. Nós não damos importância apenas ao futebol. Fizemos essa equipa e comprámos treze
aspecto físico mas também à relação com a escola. Tem equipamentos. Eu e Manuel Joaquim já trabalhávamos e
que haver a componente desportiva, social, familiar e de adiantámos o dinheiro. Começámos a jogar com o Casa
divertimento… Pia.
O bairro tem um problema – as gerações mais velhas têm Começou a haver pressão dos nossos pais para formar um
um ódio de estimação em relação ao clube – mandam-nos clube pois ficavam impressionados quando nos iam ver
ir para a Pontinha quando somos de Carnide. Isso não faz jogar. Diziam que nos ajudavam, que se estabelecia uma
sentido nenhum porque as nossas instalações e grande cota simbólica… e, então, decidimos fundar um clube –
número de associados são de Carnide apesar de a nossa Escorpiões Futebol Clube. Fundámos o clube nesse dia, 2
sede ser na Pontinha. Com as gerações mais novas não é de Agosto de 1976. Foi o dia em que fomos comprar os
assim. O diálogo é muito mais fácil. Toda a gente sabe que equipamentos. O nome resulta de termos começado por
só trabalhando em conjunto é que as coisas avançam.. E ganhar os jogos todos e houve um senhor que disse que
se há questões pessoais elas não devem ser misturadas nós éramos como os escorpiões – deitávamos o “veneno”,
com as questões do clube. Mas creio que isto mudou no bom sentido. Porque íamos ganhando todos os jogos.
muito… tenho mudado muitas mentalidades… sou muito Sempre que jogávamos, ganhávamos.
frontal e temos que ser honestos, transparentes. Não faz A primeira sede foi a minha casa. Reuníamos à noite para
sentido que num bairro um seja mais vizinho do que outro. planear jogos, ver estratégias e as coisas foram

82
acontecendo… Sempre com o apoio dos pais – a minha Conseguimos ter teatro nos Escorpiões graças ao Zé
sogra era uma activista do futebol, gostava muito de nós e Martins. Estivemos três vezes no S. Luís com a peça
ficou a madrinha do clube. Num mês, mês e meio tínhamos Fogueira de Natal. Uma peça do Bento Martins, ensaiada
90 pessoas a quererem ser sócios. pelo Zé Martins. Tivemos que alugar um autocarro de dois
Pedimos apoio logístico a um outro sócio amigo – o Álvaro andares para levar as crianças para o teatro…
da Pontinha – que ofereceu uma cave e ali pusemos as Mais tarde veio o futebol de salão, futebol de cinco. Não
taças. Era nossa primeira sede. Era bom para ele porque podíamos ser federados porque já havia o clube dos
levávamos movimento e dinheiro, e era bom para nós que Unidos, aqui no bairro. A juventude escorpionina foi
ALGUNS FUNDADORES D'OS ESCORPIÕES, ANOS 80
(FOTOGRAFIA PARTICULAR) reuníamos ali. Ali estivemos dois anos. rareando porque as gerações seguintes, os netos, já não
Depois, na Rua do Rio Mondego houve um vizinho – o são tão afoitos às colectividades. E a tendência das
Alfredo Amaral – que nos alugou uma garagem já aqui no colectividades é para irem desaparecendo a pouco e
bairro. Essa, foi a nossa primeira sede verdadeira. pouco. A realidade é esta – não havia quase alternativas, as
Comprámos uma máquina de café de saco, toda diversões nós não podíamos frequentar financeiramente.
cromadinha, toda bonita. Tínhamos lá o emblema do clube Hoje qualquer pessoa pode ir. Eu já vir morrer várias
(…) Passámos uns anos bons na garagem do Alfredo. Foi, colectividades... o Andorinhas, os Amigos da Luz, já vi os
de facto, a primeira sede aberta ao público. Só o sócio Unidos no auge, na 3ª divisão.”
podia frequentar as instalações. Não aceitávamos
qualquer pessoa, éramos um clube de bairro. Tínhamos as A história da sede que falei no início tem uma história muito
inscrições sempre fechadas para evitar problemas. Nunca interessante. Aquilo era um depósito da Câmara Municipal
houve zaragatas dentro das sedes (…). A sede estava de Lisboa, muito pequenino, uma cave num prédio. Um
aberta mas nós não estávamos legalizados e tínhamos que local de arrumos dos carrinhos dos almeidas. Aquilo era
o fazer, arranjar 21 assinaturas de adultos com muito baixinho, não conseguíamos andar lá dentro em
responsabilidades. (…) E aí tivemos que alargar o círculo pé…. Não dava para meter uma máquina para escavar.
de sócios. Fomos à Federação Portuguesa de Colectividade Mas o Zé Luís, dinâmico como sempre, arranjou solução –
de Cultura e Recreio. A direcção era mesma dos rapazes vamos comprar dois carrinhos de mão, picaretas, pás e
NA GARAGEM DO SR. ALFREDO AMARAL, 2010 das escadinhas. Ainda hoje temos a escritura dos enxadas e vamos começar a desbastar isto. O Zé Luís
Escorpiões (…) impulsionou imenso e começámos mesmo a escavar…
Depois deu-se lugar a outras actividades de desporto que Hoje pensamos a loucura e o perigo que foi! Fomos
não só o futebol. Entraram outras direcções. Houve o Zé considerados as toupeiras pela CML. É uma história de
Luís, por alcunha o Zé Lagarto, que foi uma pessoa muito muita persistência. De muito trabalho e esforço conjunto.
importante para o clube. E o que foi engraçado é que, (…) Nesse ano ficámos sem dinheiro nenhum porque
primeiro, ele era contra os Escorpiões porque morava perto aplicámos tudo nas ferramentas… Conseguimos
da sede e nós fazíamos barulho… Mas o que é certo que condições especiais para conseguir fazer isto, com muita
ele fez-se sócio e, depois, fez parte da direcção e foi um ginástica financeira. (…) A sede abriu há 23 anos atrás. A
grande incentivador e dinamizador do clube. Foi uma sede era toda verde e preto que é a cor dos escorpiões.
pessoa que fundou a juventude escorpionina onde tivemos Trabalhámos aqui muito. (…) Fizemos coisas muito boas e
de 150 a 200 crianças com várias actividades desportivas. bonitas.” (Emídio Silva, sócio fundador e ex-director, ex-
Ele esteve 10 anos na direcção e eu estive sempre com ele morador)
em cargos distintos… E foi através dele que conseguimos a
nova sede.

JUVENTUDE ESCORPIONINA 83
Clube de Futebol Os Unidos – “os anos de boa “naturalidade” com que o jogo entra nos quotidianos, o
memória” recurso a materiais de uso e manuseio fácil… têm sido
aspectos que o Grupo tem procurado defender como um
Na conjuntura das movimentações sociais que uso e costume ancestral que faz parte do património
descrevemos, merece referência especial o ano de orgulho tradicional e que importa preservar.
d’Os Unidos. Um clube que fundou raízes firmes no bairro,
uma referência forte para várias gerações de sócios e de “Não queremos que isto se perca. As crianças jogam à
jogadores e cujo empenho chegou a patamares de fama malha naturalmente. E isto estimula capacidades,
nunca sonhados… concentração e o gosto pela competição tranquila… Todos
os clubes têm para cima de 100 sócios, excepto os Amigos
“Em 1977-1978 estivemos na 3ª Divisão do Campeonato da Malha que têm à volta de 60. Eles limitam as entradas.”
Nacional. Foi a fase de ouro do clube. Viajámos até à (Freitas, responsável pela área do Desporto da JFC)
Madeira, tínhamos muitos adeptos a apoiar-nos… foi
muito bom. Às vezes, quando íamos jogar fora, era mais Aos fins-de-semana e próximo da sede dos
gente nossa a apoiar do que a gente que jogava em casa. Unidos, em terreno de terra batida, regularmente juntava-
Conseguíamos mobilizar muita gente, iam camionetas, se um grupo de amigos. Esses convívios de carácter
excursões… Foi quando estivemos na 3ª Divisão Nacional informal foram acontecendo durante a década de 70. Nos
e se disputou a Taça de Portugal contra o Vitória de anos 80 “oficializaram” a sua identificação – “Os Amigos da
Guimarães que ganhou por 2-1. Mas primeiro o resultado Malha” – e, por ocasião da constituição da Associação de
esteve por nossa conta. Foi em 1977/78. Quem treinava Moradores, em 1986, este grupo passou a integrar uma
era o Carlos Bandeirinha. Ainda aí está. Era muita carolice secção daquela associação.
e orgulho bom. Nessa altura nem todos tinha possibilidade Chegaram a incluir 50 adeptos mas mantém-se
de dirigir um clube, era preciso pulso e trabalho e, também como um Grupo informal, sem enquadramento legal.
por isso, tínhamos muito orgulho nos resultados que
vieram depois. E o que desejo para o clube é que consiga Novo comércio: os mesmos espaços, outras funções
superar as enormes dificuldades e levarem o bom nome da
camisola”. (Carlos Pedro, morador e ex-presidente do Vencidos os momentos mais intensos do período
Clube de Futebol Os Unidos) pós-revolução, dentro do bairro também se registam aqui e
ali tímidas iniciativas de negócio, novos pontos de
Grupo “Amigos da Malha” – “não queremos que a comércio. Mas importa ter presente que o comércio do
tradição se perca” bairro, por esta altura, já tinha a concorrência forte dos
estabelecimentos da vizinha freguesia da Pontinha que
Tal como sucedeu com outras iniciativas também crescera significativamente. De facto, a
assinaladas, o grupo d’Os Amigos da Malha surgiu da proximidade, variedade e as mobilidades facilitadas (quer
camaradagem em volta de um jogo tradicional português e, pelo autocarro, quer pelo automóvel) fizeram do
ao que parece, de origem das Beiras – o jogo da malha. abastecimento na Pontinha o hábito mais frequente. Ainda
Uma prática desportiva que remonta a ambientes (e assim, houve quem investisse em pequenos negócios no
tempos) da província e relembra um costume de convívio bairro. Reunimos alguns exemplos.
ancestral. A preocupação em manter vivo o gosto por esta
prática, a transmissão da “arte” às novas gerações, a

84
A mercearia do senhor Fonseca grande, isto vai morrer tudo. É uma pena o negócio das
Após o pós-25 de Abril verificou-se a desocupação mercearias acabar…“ (Joaquim Fonseca, comerciante e
das casas destinadas às Oficinas de malhas e de costura morador)
bem como ao atelier de carpintaria, já foi referido. Surgem
propostas para outros usos e funções, algumas, por O velho mercado
iniciativa dos moradores. O caso da mercearia do senhor O comércio do mercado – recuperado a partir da
Fonseca é um exemplo. antiga vacaria – conheceu um período difícil durante a
década de 70-80 e não recuperou a importância junto dos
“Nestes barracões havia casas de reparações de residentes pois este, foi um equipamento que os
electrodomésticos mas tinham muita dificuldade em moradores não valorizam, actualmente. Para isso
manter o negócio. Eu propus ficar com esses barracões. c o n t r i b u í r a m v á r i o s f a c t o r e s . Po r u m l a d o , o
Apresentei os pedidos. Assim, passaria a haver uma desinvestimento camarário na manutenção e cuidado com
mercearia para servir a população, pois a única era a o edifício que se foi degradando e ficando pouco apelativo;
mercearia ‘casa branca’. Pouco mais naquela altura. O o preço das rendas das lojas e a rentabilidade de negócios
mercado só tinha a fruta e os legumes. E uma taberna para que dependem de populações de fracos recursos; a maior
beberem uns copos e jogar à malha. Por isso, uma mobilidade dos moradores (muitos filhos, da segunda
mercearia aqui iria dar muito jeito para as pessoas. No geração, conseguiram adquirir automóvel e abastecem-se
início correu muito bem, mas foi sempre um negócio para em outros locais) e a proximidade com a freguesia da
as pessoas que moravam aqui à volta. Um negócio de Pontinha.”.
proximidade. Tinha um ambiente de família. As pessoas De qualquer modo, a título de “ilustração”
podem comprovar que eu tenho sido “o Fonseca” que incluímos o breve depoimento do café do Quim que a
realmente está sempre pronto para ajudar, para facilitar… somar aos outros (novos) pequenos comerciantes da
“leve lá que paga depois”. Ainda hoje, para mim, a amizade década de 70-80 (tabacaria/papelaria, cafés, cabeleireiro,
conta mais do que o resto do negócio. Eu gosto de passar talho, churrasqueira…) são reveladores dos custos da
na rua e dar-me bem com toda a gente. sobrevivência dos negócios no bairro.
Antes de 1979 foi a loja de roupa (…) Alguém me acenou
com a possibilidade de ocupar estes barracões e eu pensei O café do Quim
em fazer aqui uma camisaria… Não tinha nada a ver com Bem localizado, na rua principal, este café é ponto
mercearia porque eu nem percebia desse negócio. Hoje, de encontro entre moradores de todas as gerações.
ainda tenho essa parte aí com venda de roupas porque foi Merece o breve comentário que, mais recentemente, a
um hobby que ficou. Fabricávamos camisas e batas por simpatia e experiência dos funcionários (Miguel e Paulo)
medida e fiz uma loja de roupa porque as pessoas iam dão vida própria ao balcão (e, hoje, para “sentir” um pouco
pedindo. Era uma pequena fabriqueta de costura. Foi em da vida do bairro, basta o instante de uma bica...)
1979. Era uma pequena oficina de confecção. Vendia para
as pessoas do bairro mas cheguei a ter encomendas de “Conheço o bairro há uns 30 anos (…) Depois, apareceu a
fora, para lojas. Forneciam os tecidos e eu fabricava, a possibilidade de ficar com o negócio. Já cheguei a ter
minha mulher cortava e eu costurava…Não empregava mesas aqui. Era para os velhotes. Sentavam-se aí, jogavam
pessoas do bairro. Só empreguei pessoas após montar a cartas, damas, dominó… Hoje não tenho interesse em ter
mercearia. Só mais tarde, quando se deu o 25 de Abril é as mesas porque a casa não é muito grande e as mesas
que mudei para mercearia. Isto foi uma sobrecarga muito atraíam um certo tipo de clientes que não nos interessa… e

85
quando os velhotes queriam, acabavam por não ter na estruturado. Este apoio era feito aos idosos do bairro,
mesma… Quando há um petisco ou assim, voltamos a por prioritariamente aos que não tivessem rede familiar de
uma mesa. Mas este mercado não está tratado ao mesmo apoio.” (Albertina Lopes, ex-moradora e técnica do
nível do que outros mercados – o de Benfica, Sete Rios, o Polivalente da SCML)
Rato. Este mercado não tem fiscal, nem segurança nem
policiamento. Para todos os efeitos este mercado não 1980-1990 – A(s) cultura(s) de bairro, o capital social
existe – alugaram a loja a cada um, que paguem a renda, a comunitário
água e luz e que se desenrasquem… De um do geral, as
preocupações que aqui estão traduzem as preocupações Tal como já referimos e sublinhámos, a localização GRUPO DE EXCURSIONISTAS (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)
de todos os comerciantes do mercado. As questões de geográfica e organização vicinal do espaço – facilitadora de
limpeza das ruas, também. Hoje há um grande descuido e encontros e de reencontros – o semelhante perfil dos
ninguém sabe quem é responsável pelo quê…” (Joaquim moradores e a oferta de equipamentos suporte aos usos do
Marques, comerciante). quotidiano… foram criando e consolidando redes de
convivência, sociabilidade e associativismos vários que
Outros projectos pioneiros – o primeiro apoio fortaleciam o sentido de pertença ao território e uma
domiciliário da SCML “cultura de bairro”, apesar do torvelinho social que revolve
todo este período. A representação que o bairro constrói
Desde 1978, e após o período mais revolucionário sobre si mesmo devolve essa imagem positiva da
e conturbado, a SCML reentrou no bairro com outra comunidade com os seus núcleos próprios e focos de
estrutura organizativa. Entre os apoios que disponibilizava interesse vários… Pensava-se e vivia-se como comunidade
para a população idosa, houve notícia de um projecto “e isso abria-nos a relação aos outros. Não vivíamos
pioneiro – o Apoio Domiciliário. Esta valência de apoio guetizados. Abríamo-nos e relacionávamo-nos com os
fundamental só seria inscrita, formalmente, na estrutura outros.” (Fernando d’Oliveira, morador)
orgânica da SCML perto dos finais de 90. A inspiração pode
ter vindo do trabalho conjunto com as irmãzinhas da As festas, os santos populares – “cada rua era um
JOVENS DA RUA DO RIO COURA
Assunção e moradoras no bairro (Albertina Lopes e Isabel palco” (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)
Maria).
“Quando entrei para a SCML entrei com um projecto Marcha do Bairro Padre Cruz
pioneiro com a D. Isabel Maria (minha sogra) que foi
convidada através das Irmãs de Caridade de N. Srª da Esta é a marcha //Assim, a cantamos.
Assunção, que tinham um trabalho muito meritório aqui O Bairro do Padre Cruz// Onde sonhamos.
dentro do bairro. Começámos só as duas, em 1978. Era Ruas, são rios de Portugal.
um tipo de “apoio domiciliário” mas muito diferente do que Os moradores!// Com alegria vamos cantar
é hoje porque naquela altura era praticamente o trabalho Porque o Bairro //Tem os seus valores
de mulher-a-dias. A falta de apoio era tanta, tanta, que E sem rival!
tínhamos mesmo quer começar primeiro pelo mais básico Agostinho Coelho Cristino (morador)
para sentirmos que tínhamos feito algum trabalho de ajuda
(…) Foi muito inovador, na altura. Havia pessoas em Durante as décadas de 70 e 80, apesar da
paupérrimas condições, a viverem com galinhas, com progressiva degradação, o bairro (de alvenaria e de lusalite)
patos (…) O trabalho foi sendo cada vez mais exigente e recuperou a vitalidade. Quer através das iniciativas dos

86 NOITE DE FADOS NO SALÃO DE FESTAS


(sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)
moradores, quer no dinamismo comunitário a partir das rapidamente, sediaram a organização destes entusiasmos
colectividades existentes (Unidos, Amigos da Luz, e os festejos eram aproveitados para “dar força ao clube” e,
Escorpiões…). As festividades adequadas ao ciclo do ano – ao mesmo tempo, testar e rivalizar a popularidade entre
os bailes de máscaras, as famosas marchas pelos santos cada um deles. As festas passam a ter a assinatura dos
populares,… – são lembranças vivas entre todos os clubes… (os arraiais dos Amigos da Luz, dos Unidos, dos
moradores. Nesta fase, a solidariedade entre os residentes Escorpiões…). Porque cada um queria inovar e
da mesma rua e a sã rivalidade com as demais… retomam surpreender tudo e todos.
MARCHAS NAS RUAS DO BAIRRO
e proporcionavam um (novo) ambiente de comunidade viva
(sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR) e saudável – “o Bairro Padre Cruz era o príncipe dos bairros “Eu era ainda uma jovem e percebi que este era um bairro
de Lisboa!”, sintetizou Mário Guerra. de gente trabalhadora, alegre, que investia muito nas suas
atividades, nos clubes. Cada uma investia no seu clube
“Às festas do bairro, às festas da rua, ninguém falhava… porque também havia uma certa conotação política com os
toda a gente ali estava. Nunca deixávamos escapar as clubes e as pessoas canalizavam muito as suas energias
datas. O Carnaval também era vivido por ruas. Tinha que para o seu clube… defendiam muito os seus clubes com
acontecer sempre qualquer coisa. Mascarávamo-nos em muita genica e iniciativa.. Havia um gerir das relações
casa sem ninguém saber e, depois, aparecíamos na rua cheios de festas e de iniciativas. Era um bairro que mexia
todos de repente, já mascarados, para vermos o espanto muito com a minha maneira de ser… Fiz várias letras para
dos vizinhos… Estávamos sempre a pensar nas surpresas as marchas do bairro.” (Albertina Lopes, técnica da SCML,
que podíamos fazer aos vizinhos, … cada rua era um palco. ex-moradora).
Nasci e cresci na rua mais bonita do Bairro Padre Cruz
porque a nossa rua era isso mesmo – uma família. Se uma O reanimar da paróquia – “uma paróquia de relação”
vizinha tinha um problema, as outras 19 vinham perguntar
o que tinha acontecido. E tudo acontecia naquela rua! Durante o torvelinho da década de 70 os ânimos
Aquela rua era uma animação… É a rua do rio Sabor. excederam-se, percebeu-se. Porém, quando entramos na
Nessa rua acontecia tudo. Desde arraiais populares, a década de 80 o fulgor da paróquia reanima-se e reaparece
FESTA DE PASSAGEM A PARÓQUIA,
festas, almoçaradas que se organizavam entre vizinhas, num “território social”, agora, muito disputado. As
1984 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
entre as 20 casas daquelas rua, o montar de um tribunal iniciativas paroquiais já não são únicas nem surgem
quando havia desavença entre duas vizinhas e que na hora isoladas como acontecera em tempos do início do bairro.
tinha que se resolver… É um bairro de raiz provinciana e a Nos anos 80 enfrentam a concorrência das colectividades
província é muito isto – a entreajuda, a proximidade, o estar que se multiplicavam entre desafios e convivências. De
sempre próximo para dar e receber. E vivemos as coisas qualquer modo, nesta fase, a paróquia conseguiu impor-
mais bonitas… Nós fomos criados ali uns 8 a 10 miúdos da se, de novo. O facto de ter sido reconhecida como paróquia
mesma faixa etária, ainda passámos pela fase de pedir um de Nossa Senhora de Fátima, reforçou muito o papel da
tostãozinho pelo Stº António…E, depois, quando havia igreja no bairro. Esta autonomia consolidou a área
casamento, varríamos a rua de alto a baixo para estar tudo específica de intervenção nas funções rituais que lhe são
muito arranjadinho, tudo muito limpinho para aquilo inerentes: celebração de baptizados, primeira comunhão,
acontecer…” (Mário Guerra, ex-morador) casamentos, para além da acção regular da catequese.
Também as homílias do Padre António Baptista são muito
Em paralelo, os clubes do bairro, também eles, lembradas, e enchiam as assembleias dominicais.
promoviam fortes relações e convivências. Os clubes,

87
“A grande força da paróquia foi de 1981 até 1987-88. (…) A gestão do bairro: uma gestão comparticipada
Recordo que, na altura, se criou uma dinâmica muito forte
que ultrapassava a própria paróquia. Houve situações em “Há uma base humana e de trabalho conjunto
que na Missa de Domingo das 10.30, que era a missa da que é capaz de trabalhar para prevenir as situações…”
catequese, nós tivemos que pôr pregos e cordas para Natália Nunes
reservar os nossos lugares. Aconteceu com o actual Padre (SCML, em funções técnicas no bairro de 1973 a 1991)
Baptista. Criou-se ali um movimento tal que tínhamos que
arranjar estratégias para antecipadamente garantir os Percebemos que a democratização do pós-25 de BAPTISMO NA IGREJA DO BAIRRO,
nossos lugares. Muita gente ficava fora da igreja. A igreja Abril tornou o governo e o Estado permeáveis às pressões PADRE ANTÓNIO BAPTISTA (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)
ficava repleta. Isto aconteceu durante dois ou três anos. Foi dos movimentos sociais da sociedade civil. Mas, também
uma altura em que também se faziam muitas festas no por isso, nem sempre houve linhas políticas claramente
próprio bairro, faziam-se excursões, passeios, o definidas o que se reflectiu, necessariamente, nas políticas
encerramento do ano era sempre feito no pinhal da Paiã, de apoio à habitação.
perto da Pontinha. Houve um momento em que a paróquia Desde os finais dos anos 70 que a
funcionou como um grande ponto de atracção e de responsabilidade pela habitação social foi sendo imputada
convergência. E isso ia muito para além da questão às autarquias, em várias modalidades de cooperação e de
religiosa…Tudo tem os seus períodos. O Padre Baptista parecerias, ficou dito. Porém, o modo como a sociedade
tinha chegado de África e tinha uma forma de comunicar civil e iniciativas privadas se articularam, em termos
que era invulgar. Durante a missa circulava entre as concreto, dependeu das negociações e das forças vivas do
pessoas e falava com elas. Ele fazia a homilia entre as poder local. Nesta fase, e de um modo geral, assistiu-se ao
pessoas, escutava os miúdos, ajudava… havia ali uma alargamento progressivo da oferta de habitação social,
forma de comunicar que, depois, foi perdendo o através de entidades de natureza diversa – cooperativas,
dinamismo…” (Fernando d’Oliveira, morador) empresas privadas e IPSS… que usufruíam de
financiamentos por parte do INH ou, no caso dos
E é o próprio Padre António Baptista quem melhor recorda: realojamentos, com comparticipação a fundo perdido do
PROFISSÃO DE FÉ,
IGAPHE (Silva, Nunes (1994). PADRE ANTÓNIO BAPTISTA (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)
“O registo do primeiro baptismo ocorreu em 28 de fevereiro A partir de 1980, com a governação de Kruz
de 1982 numa altura em que a situação de quase- Abecassis (Aliança Democrática, até 1989), assistiu-se a
paróquia já permitia celebrar na capela N. Srª de Fátima. uma outra viragem no enquadramento da intervenção
Nesse ano, registam-se mais 31 baptizados. E em outros municipal em termos de habitação social, consequente da
anos chegaram a celebrar-se 50 e 60 batizados. Os gradual transferência para os municípios daquela
baptismos são individuais, as famílias são humildes, não responsabilidade. Escusado será referir que a procura de
há grandes festas. Nas comunhões, sim. Chegámos a fazer casa por parte de largas franjas da população mais
em dois turnos, dois domingos, por causa da assistência carenciada continuava a crescer e que, dada a estrutural
dos pais, avós e padrinhos. Era uma grande festa de ausência de alternativas, continuava a instalar-se nas
paróquia. A média era de 60 e 70. Pastoralmente nem descontroladas periferias, pressionando a urgente
seria muito correcto, mas tinha que ser… Em 1984 há o intervenção dos municípios.
registo do primeiro casamento na paróquia. Nestes anos Por outro lado, durante a década de 80, viveu-se
foram dois, depois a média foi de oito, dez casamentos por não tanto a experimentação do poder local mas a
ano. Hoje, o casamento é um por ano.” politização (e consequente partidarização) da sociedade

88 CASAMENTO,
PADRE ANTÓNIO BAPTISTA (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)
civil que cede a novas fracturas. E isso também se verificará incluem-se no Plano de Intervenção a Médio Prazo (PIMP,
na relação e negociação do Bairro com os poderes centrais, Decreto-Lei nº 226/87, de 6 de Junho).
da cidade. Foi neste contexto que surgiu o projecto relativo à
A gestão do Bairro Padre Cruz confirmava, agora, a construção faseada de um bairro novo de realojamento,
sua dependência directa da CML (através da Direcção com um total de 1 290 fogos, a construir em duas fases na
Municipal da Habitação, que já referimos) sem que parcela expectante dos campos de trigo. No ano seguinte,
retirasse vantagens dessa proximidade. Um Plano de em 1988, foram iniciadas as obras de preparação das
Urbanização do Bairro Padre Cruz foi aprovado em 1981, e infraestruturas viárias e do primeiro conjunto de edifícios de
GRUPO DE JOVENS, ARRÁBIDA, 1988
(FOTOGRAFIA PARTICULAR) a proposta de obra foi apresentada em 1986. A equipa da habitação. Este projecto e obras prosseguiram durante o
obra, constituída ainda sob a presidência de Krus mandato socialista, sob responsabilidade de Jorge
Abecassis, foi dirigida pelos arquitectos Maria Rosa Leitão, Sampaio.
Sousa Afonso e o engenheiro Carlos Pereira. Enquanto isso, acentuava-se o desinvestimento
Dia após dia, mês após mês, ano após ano, no edificado do “bairro antigo” e o agravamento das
acentuava-se a degradação das antigas zonas de lusalite e condições de habitabilidade. Já sabemos que as casas não
alvenaria sem que houvesse qualquer intervenção mesmo se adequavam às necessidades das famílias, e as
quando solicitada. Esta situação manteve-se até 1987 (!) transformações feitas pelas famílias prosseguiam por
conforme testemunha Elisabete Santos: razões da mais elementar sobrevivência, em muitos casos.
Por outro lado, o esforço concertado entre
“Recordo-me que a casa tinha muito poucas condições. algumas instituições, autarquia e moradores foi
Tinha sido deixada em muito mau estado pelos anteriores fortalecendo uma outra “vida de bairro” mais consciente
moradores. Aquilo que sinto hoje em dia é menos grave e civicamente e amadurecida politicamente. Entre tempos
menos doloroso do que sentia na altura (…). Não tínhamos socialmente agitados, a figura de Maria Vilar Diógenes teve
condições para tomar banho, não tínhamos condições um papel decisivo neste processo, enquanto presidente da
para cozinhar. Tínhamos uma cama sobre tijolos. Não era Junta de Freguesia de Carnide. Durante o seu mandato foi
propriamente o espaço mais aprazível para se viver… encetado um trabalho de proximidade junto dos
GRUPO DE JOVENS, DIA VERDE, 1989 Lembro-me que tínhamos que aquecer a água no fogão e moradores, de auscultação dos respectivos problemas no
(FOTOGRAFIA PARTICULAR)
depois verta-la no alguidar… Tomava banho no quarto.” terreno e o incentivo a uma gestão participada pelo
conjunto da comunidade.
Por curiosidade vale referir que nesse ano de 1987
foram efectuados os primeiros recenseamentos dos “Estava a arrumar uns papéis nas gavetas da Junta de
alojamentos precários. Com a colaboração do LNEC foi Freguesia… e dei conta de um ofício de aprovação, na
criado um grupo de trabalho para caracterização Assembleia Municipal de Lisboa, para a construção de
sociocultural das “populações mal alojadas” e prosseguir quinhentos e tal fogos para substituir o bairro de lusalite,
no planeamento dos realojamentos de modo a evitar a naquela zona da “casa branca” e para realojar moradores
“desestruturação dos seus modos de vida” (Boletim GTH, ao abrigo do PER [Plano Especial de Realojamento].
50/51, 1986). Também nesse mesmo ano a Câmara Abrangia moradores do bairro de lusalite, alvenaria, a
Municipal de Lisboa interveio com um novo programa de população abrangida pela construção do eixo Norte/Sul. E,
apoio à construção de habitação com “fins sociais”. Tais apercebi-me que era para continuar esquecido… na
medidas reconheciam a estrutural e persistente prioridade gaveta. Como tínhamos várias reuniões com várias
do problema da habitação na agenda política camarária e instituições e com a Câmara (foi na transição do presidente

89
Abecassis para o Jorge Sampaio), divulgámos o “achado” experiências de vida e de trajectórias sociais (conforme
junto da comunicação social e começámos a mexer-nos… esboçámos em capítulo anterior) que animavam a
Entretanto, a propósito de um encontro de bairros identidade e a “cultura de bairro”. Por outro, um acumular
degradados que ia acontecer conseguimos reunir algumas de experiências que, face aos novos desafios, capacitava a
juntas de freguesia, divulgámos as nossas preocupações, e conversão desse “sentido identitário” numa valia nova, em
apresentámos algumas conclusões - porque já havia “capital social comunitário”.
estudos feitos. E foi a propósito deste assunto que
formalizámos a existência da Associação de Moradores do “Houve aqui uma tradição associativa e comunitária que foi
bairro do Padre Cruz. Fizemos um grande plenário de uma mais-valia efectiva. O envolvimento dos parceiros e o
moradores no salão de festas e havia muitos moradores do tipo de relações que se criaram foram fundamentais.” (Ana
bairro de lusalite nos órgãos da Associação, e havia Viana, SCML, em funções técnicas no bairro de 1991 a
parceiros como a Associação dos Inquilinos Lisbonenses, o 1997)
Eng.º Fonseca Ferreira, União dos Sindicatos de Lisboa e o
MDM (Movimento Democrático das Mulheres)….Foi um Um capital social que, para além de absorver
ano de muita luta, a mostrar as péssimas condições em aquela “âncora identitária”, foi sendo capaz de conquistar
que viviam estas pessoas… Eram elas que falavam (… ) e a poder negocial perante a definição ou indefinição das
Câmara sentiu-se pressionada perante a evidência destas políticas traçadas para o bairro, por parte do governo da
realidades. Conseguimos que a população e os parceiros CML. Vale referir que este “capital social comunitário” é um
fossem ouvidos nos processos de realojamento. A conceito rico e com interesse nas áreas da sociologia,
Comunicação Social teve um papel muito importante…(…) antropologia e economia social… Sumariamente
Não teríamos conseguido o que conseguimos – garantir caracteriza-se pelo facto de ser um recurso das
que os realojamentos fossem, primeiro, para os moradores comunidades e não dos indivíduos isoladamente; ser o
do bairro de lusalite – se não tivesse havido muita luta e resultado de processos de socialização que unem
empenho da nossa parte. Foi nessa altura que se constitui representações e expectativas; assentar numa cultura de
o Grupo Comunitário com vários parceiros, com a cooperação e exprimir-se em relações/redes de
Misericórdia, a Junta de Freguesia, a Câmara, associações sociabilidade que alimentam ambientes de confiança e são
e moradores como parceiros…” propiciadoras do envolvimento cívico e político; ser um
instrumento de capacitação/poder negocial – quer dos
“A Maria Vilar fez um grande trabalho junto com os moradores, quer das instituições a trabalhar no terreno –
moradores. É uma grande referência em toda a freguesia”, perante os desafios “externos” que se vão impondo em
é a opinião generalizada que lhe confere, sem dúvida, o cada momento. Logo, este novo “capital social
relevo de figura emblemática deste período, sem negar a comunitário” quer representar-se como um “valor activo”
influência da questão político-partidária.”(5) E estava aberto do Bairro Padre Cruz que promove, e é promovido, pela
um novo capítulo nas modalidades gestão do bairro. consciência e participação cívicas entre todos (moradores,
técnicos das instituições, autarcas…) na definição dos
O Grupo Comunitário: reunir para prevenir horizontes desejáveis, e não desejáveis, para o bairro. Mas
este capital novo também não era alheio ao investimento
A comunidade foi firmando a sua identidade social político-partidário.
acompanhando dois processos fundamentais. Por um A constituição do Grupo Comunitário resultou
lado, a continuidade de um percurso comum de desse movimento participado e concertado entre

90
responsáveis autárquicos (Maria Vilar Diógenes assumira a envolver… Foram criadas duas associações a Associação
presidência da Junta de Freguesia de Carnide), alguns de Pais e a Associação Juvenil – a ‘Renascer’ e foram
técnicos das instituições, designadamente da SCML criadas para que pudessem depois, elas mesmas, criar as
(Natália Nunes e, mais tarde, Roque Amaro, da PROACT) e condições para receber a população… A Associação de
moradores que tiveram papel activo nas decisões para o Pais resultou de um trabalho de muitas e muitas reuniões.
bairro. Quando o bairro é ‘invadido’ por nova população, os
Veremos que, a partir de agora, este capital serviços já estavam todos muito concertados e sabiam
comunitário assumirá maior expressão no jogo social e muito bem o que queriam para ali e, por outro lado, já havia
político entre o Bairro Padre Cruz e a gestão da cidade. E mais repostas – a Associação de Pais. Um efeito disso
onde o papel interventivo da autarquia se destaca em mesmo foi o aparecimento da cantina na nova escola…"
defesa das forças partidárias que representa. Um capital (Natália Nunes, SCML, em funções técnicas no bairro de
comunitário que, a partir desta década, servirá como 1973 a 1991).
instrumento na reivindicação a um lugar de direito – e já
não à margem – no âmbito da discussão em matéria de “Mais tarde, já na estrada dos anos 80, levantaram-se
política urbana ou em assuntos da gestão interna. algumas questões relativas ao realojamento. Depois surgiu
o projecto ‘Integrar’, de Carnide. Era um projecto que
“O Grupo Comunitário do Bairro Padre Cruz ao contrário do pretendia preparar e levantar algumas questões e prevenir
Grupo Comunitário da Horta Nova, sempre foi mais para o que vinha a seguir. Porque previa-se um
institucional. Sempre foi mais de parceria do que de realojamento maciço com pessoas oriundas dos mais
participação. diversos locais da cidade e diferentes raças e etnias (…). O
Parceria, no sentido que envolve os grupos institucionais; e Bairro do Padre Cruz sempre apareceu como um bairro
participação envolvendo mais os moradores de forma pacato, que até se distinguia de alguns dos outros por ter
espontânea, aqueles que não têm voz organizada… Era uma população maioritariamente trabalhadora da
raro aparecer lá moradores que não fossem porta-voz de Câmara. Pessoas pacíficas, trabalhadoras, integradas…
uma associação, colectividade… (…) No início, a Com o realojamento alterou-se mas, mesmo assim, nunca
coordenação era eu quem a fazia como elemento neutro, atinge aquilo que se passa em outros bairros. Há uma base
como elemento que vem de fora. Depois, passou a haver humana e de trabalho conjunto que é capaz de prever e de
um anfitrião rotativo… a escola, a polícia, o centro de trabalhar para prevenir as situações…" (Ana Viana, SCML,
saúde… que dirigia a reunião. E sempre nesta lógica do em funções técnicas no bairro de 1991 a 1997)
circular e do inclusivo e sem qualquer simbolismo. Naquela
altura [anos 80] não havia uma cadeira, uma mesa que o Poderemos arriscar que a figura de morador do
distinguisse dos outros.” (Roque Amaro, Proact/ISCTE, em Bairro Padre Cruz adquire, a partir desta fase, um outro
projectos de desenvolvimento local na freguesia durante os contorno e significado. A consciência política e a
anos 80 e 90). participação cidadã assumem relevo e as reduzidas taxas
de absentismo em todos os actos eleitorais podem servir
“O Grupo Comunitário surge nos anos 80 porque já se de exemplo (Figueiredo, P. (2005). Foi a partir da década de
previa que o bairro ia sofrer grandes alterações. Era preciso 80 que a voz comunitária subiu o tom e conquistou o
começar a trabalhar com a população e os serviços espaço político à esquerda, a que não é alheio o
existentes no bairro. Assim, a Misericórdia tentou fazer investimento do trabalho autárquico e as diferentes
algum trabalho com as associações envolvidas e outras a coligações do partido político eleito na freguesia.

91
Pelos finais dos anos 80, nos anteriores campos qual João Gualdino (residente em Carnide) foi o primeiro
de cultivo que circundavam o bairro começaram a ser presidente (1974-76). Vivem-se momentos de
“plantadas” as fundações para uma parcela de conturbação social e tensão política. Os primeiros
construções que viria a ocupar uma extensa área de 28 realojamentos em prédios (200 fogos, em 10 edifícios de 5
hectares. E que ficará conhecido como “bairro novo” na pisos) introduzem tensões nas relações entre moradores.
gíria local. Porém, a defesa da identidade local (da tal Constituição informal da primeira Comissão de Moradores,
“cultura de bairro”) será pretexto para novos confrontos extinta após os primeiros realojamentos. Os moradores
entre “nós” (“os filhos do bairro”) e os “outros” (os novos fazem adaptações na estrutura original das casas de
residentes, estranhos às origens do bairro). A animada alvenaria e de lusalite devido à necessidade de
cultura bairrista acabará por assumir compromissos ajustamento às famílias residentes.
territorialmente vincados com o bairro antigo, o que dará - (06/05) - Criação do Clube Atlético e Cultural (CAC) com
lugar confrontos que atravessarão o ambiente social do sede na freguesia da Pontinha mas com o campo de jogos
bairro durante o período seguinte, a tomar início na década em território da freguesia de Carnide.
de 90, já sob orientação e concretização de um outro 1976
programa político-partidário destinado à cidade. Lino Góis Ferreira é eleito presidente da Comissão
Administrativa da CML. Em Carnide, Serafim Elias (PS) é o
Síntese Cronológica primeiro presidente da autarquia democraticamente eleito
1974 a 1990: A vivência local do(s) poder(es) e da(s) (1976-79).
cultura(s) Extinção das Oficinas da Acção Social da CML.
Transferência dos gabinetes técnicos dos Serviços da
1974 Acção Social da CML para o núcleo de Carnide em
Revolução de “25 de Abril”. Início de um novo ciclo na consequência dos momentos de tensão no bairro.
história do país. O bairro vive muito perto mas “com grande - (02/08) - Inauguração da sede dos “Escorpiões Futebol
estranheza” os momentos da revolução pois o respectivo Clube” na cave de um edifício da rua Rio Guadiana.
posto de comando estava instalado no vizinho Quartel de 1977/78
Regimento de Engenharia 1. Este quartel marca um dos Aquilino Ribeiro Machado é eleito presidente da CML
limites físicos entre o Bairro/Pontinha e os concelhos de (1977-80/Partido Socialista).
Lisboa/Loures (a partir de 1998 será Lisboa/Odivelas). 1977/80
1974/75 Época de ouro do Clube de Futebol Unidos. Conquista
Após o golpe militar, a Câmara Municipal de Lisboa é gerida posição na tabela da 3ª Divisão do Campeonato Nacional
por uma Comissão Administrativa (três presidentes num só de Futebol; o treinador da equipa, Carlos Bandeirinha, é
ano) e são suspensos os anteriores planos para a cidade. morador no bairro.
Período de experimentação do novo poder local Criada a Direcção de Serviços de Habitação que integra o
democraticamente eleito; intensas manifestações Serviço de Realojamento que geria a atribuição de casas
populares em Lisboa, e no país. Agravamento das municipais.
construções clandestinas e acolhimento dos “retornados” 1978
das ex-colónias; aumento da população residente nas O Centro Social Paroquial de Carnide transfere para a SCML
periferias desqualificadas. a gestão dos equipamentos e das atividades sociais
Em Carnide é deposto o anterior presidente da Junta de (creche, jardim de infância e apoio a idosos). A SCML
Freguesia e constitui-se uma Comissão Administrativa da reaparece no bairro mais consolidada institucionalmente.

92
Década de 1980 de infância e centro de dia) reafirmam-se
Estabilização das tensões sociais no país, adesão à institucionalmente.
Comunidade Económica Europeia (CEE). Krus Abecassis é 1985-1986
eleito presidente da CML (CDS/PSD; 1980-89); período Alterações ao primeiro projecto de urbanização do Bairro
neoliberal, incremento da oferta da habitação social em Padre Cruz por técnicos do GTH
condições que não contrariam os padrões de vida 1987
marginalizados. Em meados da década surge a Criação do INH (Instituto Nacional da Habitação) e IGAPHE
preocupação com os bairros históricos e, em 1985, são (Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional
criados os primeiros Gabinetes Técnicos Locais (GTL’s de do Estado) que, na linha de liberalização das iniciativas da
Alfama, Mouraria, Castelo…). O GTH avança com um Aliança Democrática (AD), serão organismos responsáveis
primeiro plano de urbanização para a área “descampada” e pelo parque habitacional do Estado. Criação do Plano de
expectante do Bairro Padre Cruz. Intervenção a Médio Prazo (PIMP) que estará na origem da
Em contraste, na freguesia de Carnide, afirma-se um erradicação das barracas no município de Lisboa (Dec-Lei
posicionamento político de esquerda. Maria Vilar Diógenes nº 226/87, de 6 de Junho).
é eleita presidente da autarquia em representação da 1987 (19/02)
coligação da APU (Aliança Povo Unido) e será reconduzida Decreto Patriarcal designando a elevação a Quase-
no cargo durante 11 anos (1982 a 1993). Paróquia do Bairro Padre Cruz.
No final da década de 80 é constituído o Grupo Comunitário 1988
do Bairro Padre Cruz para conciliar interesses entre Início da profunda transformação da paisagem envolvente.
município, instituições e moradores, relativamente aos Nos campos de cultivo instalam-se as fundações para o
problemas do realojamento do velho bairro de lusalite em futuro “bairro novo”. A paisagem bucólica da “aldeia
fase de demolição por iniciativa camarária. branca” desaparece. Realojamento dos últimos moradores
1983 (01/09) das casas desmontáveis de lusalite e demolição parcial
Decreto de elevação da comunidade religiosa a Vicariato. O dessa zona do bairro. A Junta de Freguesia de Carnide é
Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, faz coincidir esta parceira atenta.
data com a memória dos 35 anos do falecimento do Padre Extensão da rede do Metropolitano e abertura da estação
Francisco da Cruz, patrono do bairro. do Colégio Militar.
1984 1989
Celebração do primeiro casamento na (ainda) capela de Nª Eleição de Jorge Sampaio como presidente da CML (até
Senhora de Fátima. 1995) – início de período de governação socialista
1985 (12/06) (mantém-se até 2002). A questão da habitação social, as
Assinatura do Tratado de adesão de Portugal à Comunidade degradadas condições dos bairros clandestinos e dos
Económica Europeia (CEE). “bairros de lata” surgem como prioridades. Contabilizam-
As relações no bairro estabilizam; em outros moldes, se 20 000 barracas que albergam cerca de 10% da
reanimam-se convivências do bairro. A paróquia revitaliza- população de Lisboa. As periferias geográficas são
se com o padre António Baptista, sobretudo na periferias sociais onde aumenta o número dos “mal
congregação da juventude (catequese e outras iniciativas). alojados”. Constituição formal da Associação de
Os quatro principais clubes ou associações do bairro (Os Moradores do Bairro Padre Cruz (com primeira sede no
Unidos, Amigos da Luz, Escorpiões e CAC) funcionam em centro cívico/ salão de festas).
pleno. Os equipamentos de apoio da SCML (creche, jardim Joaquim Gomes, federado no Carnide Clube (e nascido no

93
Bairro Padre Cruz) conquista a camisola amarela na Volta a
Portugal em Bicicleta. Em 1991 repetirá a proeza e essas
duas camisolas serão oferecidas ao Grupo Recreativo “Os
Escorpiões”.

94
Fase 3 encontradas em matéria de realojamento(2).
1990- 2000: BAIRRO DE CONTRASTES – O ALVORECER
DO BAIRRO NOVO E O ANOITECER DO BAIRRO ANTIGO “O PER anuncia-se como essa política para as Áreas
Metropolitanas. Daí que seja pertinente a questão: valerá a
“Este bairro, tal como foi pensado e construído pena o pesado esforço financeiro e institucional da
– sobretudo na década de 90 – poder-se-ia ter construção de bairros sociais, rapidamente transformados
transformado em «guetos», onde as populações melhoram de «abrigo»,
num verdadeiro barril de pólvora.” mas vêem agravados os problemas económicos, familiares
CONSTRUÇÃO DO "BAIRRO NOVO", 1990-91
(CML, DCH) Paulo Quaresma (ex-morador, presidente da JFC) e relações de vizinhança?” (Ferreira, A Fonseca (1994): 8)

“O problema do realojamento é, antes de mais, Dada a estrutural ausência de uma verdadeira


um problema social e não um problema de edifícios (…) política de habitação (Ferreira, Fonseca: 1988) antigas e
porque as pessoas não são coisas que se ponham nas novas populações continuavam a fixar-se nas (ainda)
gavetas.” desqualificadas periferias (Benfica, Marvila, Olivais e
Isabel Guerra(1) Lumiar foram das freguesias que, em Lisboa, mais
cresceram…)(3). Volvidas três décadas, a gravidade do
Novas políticas, velhas heranças: os “mal alojados” problema da habitação reaparece, com nova veste e vigor,
das periferias sociais no discurso político:

Sendo o Bairro Padre Cruz um bairro municipal “Todos temos consciência de que a habitação é um dos
ficou evidente, ao longo deste percurso, que as diferentes problemas mais graves com que o País ainda se debate
orientações políticas na gestão municipal foram (…) A degradação do parque habitacional e a manutenção
determinantes na evolução do bairro. de núcleos de habitação precária são geradoras de
Além disso, as diferentes linguagens e prioridades situações de exclusão e marginalização social que
político-partidárias criaram situações complexas, impasses impedem o pleno exercício de cidadania e marcam
PLANTA DE LOCALIZAÇÃO DO "BAIRRO NOVO" e adiaram resoluções nas intervenções urbanas. A situação negativamente a vida individual, familiar e colectiva (…)”
dos realojamentos no “bairro novo” e, depois, no vizinho (João Soares, presidente da CML, 1996)(4)
bairro do Vale do Forno vincaram profundamente as
paisagens físicas e vivenciais durante este período. Um discurso novo para identificar um velho
Um período marcado pela governação socialista e problema que resiste a todas as novas linguagens e
por várias iniciativas para recuperar e reabilitar o parque conceitos. As “classes pobres” de outrora reaparecem
habitacional da capital, melhorar a qualidade de vida, como os “mal alojados” deste presente. Por consequência,
integrar na cidade os bairros de realojamento municipal, sobrevêm diversas iniciativas focadas no problema
fixar camadas mais jovens da população em Lisboa, cujo habitacional do município (5) . Surge o programa de
centro se despovoara, em contraste com o crescimento “erradicação total das barracas”, a concretizar até ao ano
descontrolado das periferias (Cardoso, Ana (2003). Um de 2001. Um programa que teve grande ênfase na
conjunto de medidas iniciadas, primeiro, sob a presidência campanha de Jorge Sampaio para a CML.
de Jorge Sampaio (1989-95) e, depois, seguidas por João Neste contexto, os serviços de gestão e
Soares (1995-2002), mas que motivaram avisadas planeamento da CML também foram alvo de
preocupações, sobretudo no que diz respeito às soluções reorganizações (cf. Boletins GTH, designadamente a

95
criação do DGSPH Departamento de Gestão Social do O alvorecer do “bairro novo” – velhos problemas,
Parque Habitacional (6) ) com impacto evidente no novos impactos
relacionamento com os bairros municipais. O Gabinete
Local da Gebalis surgirá a partir destas remodelações. Em contraste com a firmeza do programa político
Em 1995 prosseguia o plano dos realojamentos para a gestão da cidade, o Bairro Padre Cruz atravessou um
urbanos, sob a nova presidência de João Soares e vereação dos momentos mais instáveis, tensos e intensos da sua
da Habitação sob responsabilidade de Vasco Franco. Deste memória. No seguimento das directrizes de 1987 foi a
plano fazia parte o anterior Programa de Intervenção a partir de 1990 que se iniciou uma nova e determinante
Médio Prazo (PIMP, 1987, iniciado com Kruz Abecassis) e fase de evolução urbanística e social do bairro.
que justificou a demolição faseada do velho e pioneiro
“bairro de lusalite”. A paisagem física do bairro novo – o bairro dos blocos
Porém, após a constatação do elevado número de coloridos
núcleos de barracas recenseados no concelho de Lisboa e
das limitações do PIMP, desenvolveu-se um outro e vasto “Para mim, o que era importante,
plano: o Programa Especial de Realojamento (PER, fixado era criar um espaço público aprazível,
em Decreto-Lei nº 163/93, 7 de Maio de 1993). agradável, amparável.(…)
Sustentada pelo PER confirmou-se a linha da actuação Maria Rosa Leitão (arquitecta, GTH/CML)
camarária. Contudo, no que diz respeito aos realojamentos
municipais, a tal resolução urgente e premente do “A gente tem que ir para a modernice, não é?”
“problema da habitação” acabaria por se restringir a jogos Armando Cipriano (morador)
de equilíbrio entre quantitativos recenseados (quantas
barracas, quantos fogos disponíveis, quantos a construir?), Em 1988 já haviam sido colocadas as fundações
subestimando aspectos fundamentais para o sucesso das do “bairro novo” programado para várias fases. No âmbito
intervenções: a avaliação das reais condições – humanas e do PIMP procedeu-se à construção de 81 edifícios (1 200
sociais – que ao longo dos anos foram gerando aqueles fogos) entre 1989 e 1996; numa outra fase, iniciada em
desequilíbrios e perpetuando a fragilização de amplas 1997 e concluída em 1999, são construídos mais 22 JORNAL DE NOTICIAS, 28 DE MARÇO DE 1993
camadas da população; o continuado padrão, edifícios (272 fogos) sob a responsabilidade tutelar da
monoclassista e estigmatizante, das populações EPUL.
socialmente mais vulneráveis e empobrecidas; os Durante este processo de 10 anos (1989-1999)
territórios que lhes eram destinados e os modos de instalaram-se 1 472 fogos com diferentes tipologias (de T1
inserção; o plano e a estética de muitos bairros para a T4) com áreas e acabamentos bem mais “convidativos”,
realojamento; o impacto dos realojamentos nos bairros de é amplamente reconhecido.
acolhimento, sempre geograficamente distantes e Todavia, o novo modelo paisagístico construído
periféricos; a desinformação e desacompanhamento diferenciava-se muito do “bairro antigo”, tanto ao nível do
institucional vivido pelas populações: quer as que são alvo edificado como na organização dos espaços abertos e
de realojamento, quer as populações residentes nos públicos. Neste plano, os fogos apresentavam-se
territórios municipalizados… entre outras situações que distribuídos por edifícios de 3, 5 a 6 pisos agrupados em
adiante melhor escutaremos. amplos quarteirões, em banda e em L, que as cores
distinguiam.
O uso do edificado destinava-se principalmente à

96
habitação com alguns serviços de apoio e comércio local, arquitectos Maria Rosa Leitão, Sousa Afonso e o
complementares. engenheiro Carlos Pereira. O testemunho da arquitecta
O desenho deste conjunto revelava uma Maria Rosa Leitão traz informação relevante na perspectiva
acentuada preocupação com os espaços exteriores e zonas técnica de quem pensa, projecta, intervém e qualifica o
comuns. O espaço público ocupa uma grande área e território:
desenvolve-se em ruas com maior largueza, amplas praças
para onde convergem os caminhos pedonais e viários, “Marcar a diferença com o edificado e valorizar o
pracetas de lazer e de encontro ou ainda espaços espaço público”
destinados a ajardinamentos. “Tomei como base esta linha de água, um canavial, um
As acessibilidades transfiguraram-se dando lugar alinhamento de oliveiras e esta rua [rio Cávado] que seriam
a ruas e avenidas que facilitaram a mobilidade viária, sem marcas que eu gostava de prolongar e de manter. A
dúvida. Contudo afastam os convívios entre os residentes e linguagem arquitectónica resulta propositadamente
falta a real integração na malha da cidade. Estas avenidas diferente entre as duas zonas do bairro (…) porque
de intensa circulação automóvel introduzem novos eixos de entendo que a nossa cidade faz-se por um somatório de
tensão e preocupação junto dos moradores e responsáveis contrastes, de variedade e de diversidade (…) É isso que
locais atendendo à perigosidade e ao número de acidentes permite que passemos de um bairro para outro, num
que ocorrem. continuum edificado, sem que isso nos perturbe.
Curiosamente, a diferença entre os dois bairros A questão fundamental com que aqui nos confrontámos foi
também é vincada ao nível dos nomes das ruas: a a implantação de um número determinado de edifícios,
toponímia escolhida já não evoca memórias aldeãs nem não muito altos. O limite eram os seis pisos (…) tendo em
tão pouco procura fluir solidariamente. Agora, as ruas atenção o dimensionamento das praças. Porque a partir
recebem nomes de eminentes professores(7). disso perdia a escala. Mas vejo que o olhar estende-se, as
Mas o que mais importa reter é que foi nesta ruas estão equilibradas (…)
parcela do bairro que ocorreram todos os principais O que era importante era criar um espaço público aprazível,
investimentos públicos: as escolas (de 1º ciclo, Piteira agradável, amparável. Isso de amparar as pessoas quando
CONSTRUÇÃO DO "BAIRRO NOVO", 1990
Santos, pré-fabricada e a futura escola EB2/3), o centro se sai de casa é muito importante… com as paredes, as
(CML, DCH)
polivalente para acção social (infância, ATL e idosos; cujo fachadas dos edifícios, os diferentes usos… era importante
auditório viria a ser distinguido com o nome da escritora que houvesse também comércio, usos diversos para os
Natália Correia), pontos de comércio e equipamentos de espaços que justificassem o caminhar pelas ruas (…).
parque infantil, localizados em espaços públicos e zonas Aqui, a cor veio introduzir alguma diversidade nesta
verdes … unidade. A marcação dos cantos, dos finais, das praças
Mais tarde, e após uma intensa negociação, o eram pintados com cores diferentes – o amarelo, o laranja,
espólio e uso da biblioteca também conseguiu ser o marfim e o branco foram usados com fins e marcações
transferido da envelhecida e desadequada sala no Centro distintas. (…)
Cívico para ocupar um novo espaço no centro polivalente Fomos responsáveis pelo espaço público e o desenho dos
(adquirindo o nome de Biblioteca Natália Correia, em seus ornamentos e arranjos. E essa foi a parte que me foi
1998). mais agradável. A parte da habitação foi muito sofrida
Conforme referimos, o Plano de Urbanização do porque era muito grande e eu tinha receio que não
Bairro Padre Cruz, que havia sido aprovado ainda sob a resultasse… Ao princípio surgiu um edifício desgarrado do
presidência de Kruz Abecassis, fora concebido pelos todo… era assustador. Mas, à medida que foi crescendo

PLANTA DO "BAIRRO NOVO", 1990 97


(CML, DCH)
começou a perceber-se a relação das coisas e das cores… Nos dias de sol este bairro tem um ar bem-disposto. Sinto-
As pessoas começaram a achar que aquilo tinha alguma o assim, alegre. Com as árvores, as plantas… o jogo de
graça, que podia resultar. E isso foi muito bom. E, de facto, sombras. Outros dias sinto este bairro cinzento, tristonho…
a quantidade de imprevistos que surgem sempre nestas mas sinto-o diferentemente, como se estivesse vivo. Não é
obras deveriam ficar registados nas fachadas dos edifícios igual todos os dias. (…) Este bairro é diferente, sim. No
porque só quem os viveu é que sabe o que foi mais isento olhar sinto que é diferente, sim.
acontecendo.” (…) Toda a planificação do espaço, designadamente do espaço
público a que foi dada particular atenção tomando por
Um bairro destinado apenas a realojamento referência critérios próprios, não foi pensada para
municipal, porque… contrariar dinâmicas sociais “marginalizantes”. Foi para
“Não fazia parte do projecto naquela altura, isto começou construir um espaço digno mas segundo critérios meus.
por ser PIMP e depois virou PER e, quando foi feito, já toda Um pouco à minha imagem….”
a gente sabia que construir assim massivamente
“habitação para realojamento” levava a guetos de todo o Independentemente do valioso testemunho
tamanho. Por isso é que também era tão importante que o existem considerações colocar: transcorridos 30 anos,
espaço público tivesse características que, de algum modo, com uma revolução social pelo meio, o que mudou
pudessem colmatar essa questão. realmente nas políticas de realojamento? Quais os
Para já, afastado como estava, o bairro teria que ter ao impactos sociais destes grandes conjuntos habitacionais?
nível dos equipamentos básicos a oferta apropriada e, Em que medida estas acções e políticas de realojamento
depois, que atraíssem e servissem populações vindas fora foram (e são) mais eficazes na promoção da qualidade de
do bairro, pessoas diferentes para que usassem também vida das populações? Afinal, mudar de casa teve efeitos
estes equipamentos. Havia uma série de intenções reais no “mudar de vida”? Que aproximação houve em
pensadas para aqui que não se concretizaram (…) relação à vida e problemas concretos das pessoas? Os
A selecção da toponímia das ruas foi-nos completamente novos espaços de realojamento permitem, também, fixar o
alheia (…). Creio que foi da responsabilidade do Dr. João rosto (humano) de cada um? E como foi este processo
Soares, vereador da cultura, à data. O presidente da vivido e avaliado pelos moradores e outras pessoas "BAIRRO NOVO" NA ACTUALIDADE
Câmara era o Dr. Jorge Sampaio. E isso é só um exemplo envolvidas?
sem grande importância, mas que mostra como as coisas
acontecem. Só soube, por exemplo, que a rua de A paisagem vivencial do bairro novo – tensões e
Barcelona ia ser inaugurada porque vi os preparativos e conflitos
porque leio, depois.”
“O bairro exterior e o bairro interior
As estórias que os edifícios escondem são agora duas realidades”
“Costumo visitar o bairro, dou uma volta de carro para ver a António Cristino (morador)
sua evolução. Porque estabelece-se uma cumplicidade
com o local onde se trabalhou. (…) Há uma particularidade “Não criem guetos!”
que fica sempre: quando olho para o edificado lembro-me Luísa Monteiro (ex-chefe da esquadra do bairro)
dos problemas que aconteceram, não vejo só por fora. Sei
o que o edifício guarda as dificuldades que tivemos. Não As primeiras famílias realojadas no bairro novo
consigo ter um olhar neutro, fica aquela cumplicidade… foram, precisamente, as famílias que ainda permaneciam

98 "BAIRRO NOVO" NA ACTUALIDADE


nas casas de lusalite muito para além do seu prazo de identidade é: Carnide, Bairro Padre Cruz!” (Armando
validade. Só em 1994 é que foram demolidas as últimas Cipriano, morador)
casas do primitivo bairro de lusalite (previsto durar 15 anos
e persistiu 35 anos). “Gostei quando mudei de casa, há 19 anos. Gostei muito.
As casas de lusalite estavam muito degradadas, as pessoas
“Os primeiros realojamentos para os prédios foram para os faziam gaiolas em todo o local. A casa é muito melhor mas
moradores que estavam na lusalite. E as casas que aqui é uma convivência diferente. O bairro está diferente.”
vagaram de lusalite acolheram outros novos (Lurdes Silva, moradora)
realojamentos… Mas aquilo já não era um bairro. Eram
umas ruas de lama verdadeiramente indescritíveis. “Não gosto deste ambiente do bairro agora. Isto parece
Lembro-me de entrar numa casa em que tinha uma vala de que mudou tudo. Parece que ficaram vaidosos, que se
terra a dividir o chão e a água corria no meio… e as camas acham importantes porque moram nos prédios. Julgam
dos miúdos eram tarimbas de madeira onde as crianças que são ricos. Ninguém se ajuda uns aos outros…
dormiam. Não queria acreditar que isso ainda existia em Antigamente íamos comer caracóis para os quintais uns
1995… parecia a Idade Média. Claro que havia casas mais dos outros. O meu marido também fazia churrascos…
arranjadas. Mas esteve assim pouco tempo porque depois Quando alguém estava doente, iam logo ajudar. Havia
foi demolido…” (Ana Viana, SCML, em funções técnicas no muita camaradagem e agora não há nada disso. Está
bairro 1991 a 1997) muito modificado, o bairro.” (Maria do Carmo Rocha,
moradora)
Os moradores do bairro de lusalite foram
transferidos para edifícios previamente identificados a fim “As pessoas viviam ao lado umas das outras. Agora vivem
de manter as vizinhanças. Todavia, no novo edificado os por cima. E essa diferença é muito marcante. Isso,
modos de relacionamento alteraram-se. Mais do que simbolicamente, é muito importante… No viver por cima,
“vizinhos” passaram a ser “coabitantes” do mesmo prédio, não há relações de vizinhança. Saio do elevador, e
de um mesmo território que muitos estranhavam. Estas acabou.” (António Cristino, morador)
novas “paisagens interiores” acusavam a alteração nas
anteriores redes de vizinhança, um menor investimento nas “Às vezes, afasto as cortinas e vejo que aqui é gente de
convivências quotidianas e na ocupação dos espaços trabalho, gente sossegada (…) Ao pé de mim, escusam de
comuns. Estes aspectos são “compensados” com o dizer mal, que eu não deixo. Gosto muito de aqui morar.
investimento no conforto da nova casa que assumiu Quando foi feito o cemitério, pensei: Olha ainda bem!
prioridade no projecto familiar. Quando morrer também cá fico!” (Nazaré, moradora)

“Claro que não se podem comparar as casas actuais com a Relembremos também que foi a partir de 1991
lusalite, onde eu morava, mas as casas do bairro novo que, em várias fases, foi chegando a população transferida
obrigam a gastar lá dinheiro, a investir, a comprar tintas, a dos núcleos de barracas da cidade – Bairro da Liberdade;
pintar… sou eu que lá moro e gosto de ter as coisas em Quinta das Fonsecas; Quinta da Macaca; Azinhaga dos
condições. Em alguns prédios, por dentro, as paredes Barros; Quinta dos Milagres; Alto dos Moinhos, devido à
estão muito descuidadas. Mas não quero sair daqui. Nasci construção do Eixo Norte-Sul... Num momento posterior, e
e cresci aqui e quero continuar a viver aqui, não conheço por etapas, foram instaladas as populações oriundas da
mais nada. Em todo lado onde vá, o meu bilhete de Quinta José Pinto, da Quinta José de Alvalade, de

99
Campolide e da Ajuda. representadas como cenários de “perigos” e já não como
Após 1993 ocorrem novos realojamentos para espaço de aprendizagem e sociabilidade. Devido aos
receber mais agregados familiares provenientes do Casal horários de trabalho sobrecarregados das famílias, as
do Sola, Alto dos Moinhos, Quinta do Pisani... As crianças brincam até fora de horas (ficam “presas na
características destes agregados são idênticas às outras rua”!), longe das vigilâncias adequadas. As ruas perdem o
populações realojadas na cidade durante aquele período, sentido e a coerência da intimidade e são percorridas
mas muito diferentes do perfil da primeira geração dos diariamente por populações que não se reconhecem no
anos 60. Agora, acusam débeis inserções profissionais ou espaço nem se relacionam entre si. Mas que, contudo,
desemprego; famílias desestruturadas, jovens e crianças carregam antigas e novas fragilidades sociais.
com percursos de risco; diversidade étnica e cultural
(angolanos, cabo-verdianos, guineenses e etnia cigana…), “Senti que houve, de facto, diferença no perfil das
apesar da predominância da nacionalidade portuguesa; populações. E a maior evidência é entre a população mais
ligações a redes exteriores ao bairro, onde negócios ilícitos antiga e a do bairro novo. Claro que também havia
e “marginais”, em alguns casos, servem de atractivo… problemas com crianças do bairro antigo, mais ligados ao
Ora, esta inserção num mesmo território de problema do Portugal rural de antigamente: situações de
populações com trajectórias diferentes, mas que pais alcoólicos, violência doméstica… Os problemas que
partilhavam o peso de fortes vulnerabilidades sociais, teve vieram com as vagas novas foram, de facto, problemas
por efeito avivar confrontos num lugar que muitos urbanos e suburbanos, daqueles pesados…
estranham, cada qual à sua maneira. toxicodependência, tráfico, pequena criminalidade… E
Por outro lado, as recentes comunidades nós dizíamos: “alguém está a criar um barril de pólvora aqui
transferidas de outros bairros sujeitaram-se a “mobilidades e nós estamos sentados em cima dele”. Ao juntar aqui
forçadas”, a contragosto e algo compulsivas o que populações fragilizadas de toda a cidade, juntavam
dificultava novas sociabilidades e as procuras de pessoas com perfis diferentes mas com grandes
interconhecimento …. Muitas delas (as populações de vulnerabilidades… E ao fazerem estas vagas sucessivas de
Campolide, por exemplo) foram instaladas no bairro com a realojamentos não estavam a dar tempo para cimentar
promessa de que, posteriormente poderiam regressar para cada uma dessas vagas… Quando ainda estava a acalmar "BAIRRO ANTIGO" E "BAIRRO NOVO" NA ACTUALIDADE
os bairros de origem onde já tinham consolidado raízes e da ebulição, lá vinha outra vaga… e nós sentíamos que se
identidade. continuasse a esse ritmo, a qualquer momento poderia
rebentar… Felizmente nunca aconteceu. Houve uma
“Porque no bairro novo há o problema das diferenças de grande, enorme, responsabilidade por parte dos
raças e há muitos que não se querem integrar. Não se moradores e parceiros locais. Muito pouca ajuda exterior
querem ‘encaixar’. Há muitos problemas com a integração houve.” (António Martins, professor e director da escola do
dos negros. Creio que eles gostariam de estar todos 1º ciclo; esteve em funções de 1992 a 2011)
juntos…” (Armando Cipriano, morador)
O “bairro antigo” vs “bairro novo” – nós e os outros
De todo este complexo mosaico de geografias
humanas e forçadas convivências resulta a insegurança por "Isto, de facto, só não se tornou um barril de pólvora
viver num bairro a transformar-se no dia-a-dia. “Não me devido ao trabalho do Grupo Comunitário
identifico nada com o bairro como está agora”. A rua, as e aos moradores do bairro antigo“
tais ruas amplas, as praças para convívios são, afinal, (Paulo Quaresma, ex-morador, presidente da JFC)

100
“E eu ficava triste porque via virem para aqui características para o ser. Foi estrategicamente construído
pessoas que nada tinham a ver com o bairro e era-lhes na ponta da cidade sem qualquer ligação fácil ao resto da
dado casas…” cidade, há 50 anos atrás.
Fernando Pereira (ex-morador) Nos anos 90 a população do bairro antigo viu crescer toda
esta zona. Durante dez anos foram, quase mensalmente,
Perante estas enormes transformações – físicas e despejadas no bairro novas populações, sem qualquer
vivenciais – o “bairro antigo” também reage e defende-se acompanhamento. Vinham de outras zonas
como uma pequena ilha de resistência e de sobrevivência desestruturadas da cidade, não tinham condições.
do “verdadeiro espírito” do bairro, fechada a tudo o que não Algumas vinham de barracas, nunca tinham vivido em
seja “seu”, i.e., que seja diferente do “nosso bairro”. Ao prédios. Houve alguma resistência em vir morar para aqui
nível das vivências, das paisagens interiores, acentuou-se porque era outra zona ainda desintegrada da cidade,
a demarcação entre modos de habitar os territórios: “bairro distante do local de trabalho, sem ligações ao território.
antigo” versus “bairro novo”. As duas margens não Não se sentiam nada acolhidos a viver aqui. Estavam
interagiam nem se relacionavam – os residentes da parte reunidas as condições para que corresse muito mal.
antiga evitavam as “zonas novas” – “nunca lá entrei, não Do ponto de vista da população residente e consolidada
gosto nada”, dizem; e os residentes da zona nova também ela viu perder serviços e somar um conjunto de
desconhecem a história e edificado mais antigo – “nunca lá factores em desfavor da respectiva qualidade: as consultas
fui… e parece que está tudo a cair”. Constroem-se limites no médico, a escola que servia ficou apertada e passou a
mentais e físicos – o(s) bairro(s) demarcaram-se por uma ter uma escola pré-fabricada, o campo foi substituído por
fronteira que o atravessamento de uma rua concretiza – a novos prédios, a envergadura das obras, os transtornos da
rua rio Cávado. presença das máquinas; as pessoas criaram expectactivas
de que esses prédios pudessem ser para “filhos do bairro”,
“O bairro tem evidenciado muitos conflitos entre “nós e os para desdobramentos ou para as casas de alvenaria que já
outros”. Por cada vaga de realojamentos, sobressaiam estavam também a acusar a degradação do tempo e dos
essas fracturas. Reforçamos sempre a nossa identidade usos, mas viram as casas serem atribuídas a pessoas
quando surgem os outros. A última vaga é sempre “os exteriores ao bairro. Não foram em nada beneficiados com
outros”. E foi assim sucessivamente. E a história do bairro a vinda massiva das novas populações.
reflecte muito isso. Começa na parte antiga, na lusalite, e A situação não se tornou socialmente insustentável porque
depois na alvenaria. houve aqui dois trabalhos fundamentais: o trabalho
Depois, os moradores do bairro antigo e bairro novo. comunitário já desenvolvido e o hábito de discussão
Porque os do bairro antigo eram, na sua maioria, conjunta dos problemas; segundo – o perfil da população
funcionários camarários e, de facto sentiam que a sua mais antiga, a sua sedimentação e laços de entreajuda
situação era diferente dos recém-chegados…E até entre a criados (…). Correram-se riscos muito grandes.” (Paulo
lusalite e a alvenaria essas diferenças se colocaram. Isso, Quaresma, presidente da JFC)
eu senti.” (António Martins, professor e director da escola
do 1º ciclo; esteve em funções de 1992 a 2011).

“Este bairro, tal como foi pensado e construído – sobretudo


na década de 90 – podia ter transformado toda esta zona
da cidade num verdadeiro barril de pólvora. Tem todas as

"BAIRRO ANTIGO" E "BAIRRO NOVO" NA ACTUALIDADE 101


Vale do Forno – os “príncipes do nada” em terra de Esta “comunidade” viveu durante 100 meses (de
ninguém 1995 a 2003) em condições degradadas e degradantes cf.
testemunho adiante de Roque Amaro. A nível do apoio
“E depois vem o Vale do Forno, social o bairro do Vale do Forno contou com o Projecto
que foi o maior atentado racista dos anos 90, em Comunitário “Príncipes do Nada” (expressão utilizada pelo
Portugal” escritor Miguel Torga, relativamente à comunidade
Paulo Quaresma (à época, vogal da Junta de Freguesia) cigana)e desenvolvida pela Proact (9) no âmbito do
Programa Nacional de Luta contra a Pobreza (articulado
“As pessoas têm que fazer uma pergunta a elas próprias: com a SCML a trabalhar no bairro sob a coordenação
se eu tivesse vivido esta realidade, esta condição, técnica de Natália Nunes). E este foi outro importante
o que é que eu seria, onde é que estaria?” testemunho:
Luísa Monteiro (à época, subchefe da esquadra da PSP
no bairro “Mesmo em relação ao Vale do Forno houve muitas
reuniões com a população e com a própria escola para
Conforme temos verificado a história do Bairro aceitarem … Senti muito a questão das lideranças e dos
Padre Cruz cruza-se com a história da cidade em muitos parceiros. Sinto isso em todo o lado. (…) E eu pensei –
pontos. E a maior parte desses cruzamentos resultaram em como dar a volta a isto? Então, lembrei-me de convidar
focos “problemáticos” devido às decisões na gestão uma pessoa de fora – o Professor o Roque Amaro. (…)”
urbana da própria cidade. Ora, um dos períodos mais (Natália Nunes, SCML, em funções técnicas no bairro de
intensos e tensos na vida do bairro correspondeu à fase em 1973 a 1991).
que nas suas proximidades – no Vale do Forno – foram
realojadas 108 famílias (428 indivíduos) de etnia cigana(8). E foi Roque Amaro quem relembrou:
Aconteceu no verão quente de 1995 e várias são as razões
para que grande parte dos moradores do bairro retenha “Vou contar a história. Eram 70 famílias que foram
uma má lembrança dessa experiência. alojadas nas antigas casas militares, lá em cima, nos
paióis. (…) A história desta comunidade é uma história de NOTICIA NO JORNAL PÚBLICO, MARÇO DE 2002
“Lisboa queria mostrar que era capaz de fazer a Expo 98. expulsões sucessivas. Foi um processo muito moroso.
Que era uma capital europeia” e o bairro do Vale do Forno Começa em 95 mas ninguém os queria receber (…) A certa
foi “instalado” no âmbito do PER (Programa Especial de altura, com a pressão de ter que fazer as obras, a próprio
Realojamento) em consequência da necessidade de Parque Expo soube destes antigos paióis [que negoceia
libertação de terrenos camarários para a EXPO 98 com o Exército] e que ficam por trás do cemitério, no Vale
“acabando por se proceder ao maior atentado racista dos do Forno. Por lá fizeram umas pequenas intervenções, um
últimos tempos. Do conjunto da população desalojada dos saneamento básico… Algumas casas não eram muito más,
terrenos afectos à Expo 98, só os indivíduos de raça cigana mas outras eram péssimas. Eram anexos que nem sequer
foram deslocados para os antigos paióis do Vale do Forno. tinham casa de banho.
Para as outras populações – não ciganas – foram Este realojamento da comunidade cigana tem vários
encontradas soluções alternativas de realojamento em elementos estigmatizantes. Até simbólica e
outros locais da cidade.“ (Paulo Quaresma, ex-morador, geograficamente aquilo é negativo, eles estavam num
presidente JFC) . enclave de Lisboa, quase a cair para Odivelas, por detrás
de um cemitério e em cima de um terreno explosivo e ao

102
lado de um aterro sanitário que, naquela altura, nem era sobretudo ao nível das inserções escolares que o problema
aterro – era uma lixeira a céu aberto. Horrível. Atraía ratos e da comunidade cigana se cruzou com as vivências do
répteis. Aquilo era um gueto em condições muito más. (…) Bairro Padre Cruz, importa dar voz a quem também esteve
Num balanço global ficámos aquém do que nós envolvido apresentando a sua perspectiva do trabalho no
pensávamos que era possível realizar. Mas conseguimos, terreno diário – o professor António Martins.
mesmo assim, algumas coisas interessantes.
Conseguimos conter a panela de pressão que aquilo era. “No início não era eu o director, mas a minha colega
Mais do que resultados positivos, conseguimos evitar apanhou um susto valente. Não por serem ciganos mas
resultados negativos. Esse foi o principal resultado. (…) porque eram 125 alunos de novo na escola, das 400
Tivemos a ajuda de uma pessoa muito interessante – a pessoas alojadas no Vale do Forno. Foi muito complicado
subcomissária Luísa Monteiro, que nos ajudou imenso, porque o ano lectivo estava a começar com horários e
nem tanto na proteção mas a encontrar soluções turmas já organizadas (…) e depois fez-se o disparate
inovadoras e criativas na relação com a polícia. máximo que foi constituir turmas só com alunos ciganos.
Outro grupo com quem se teve, também, um resultado (…) Havia um sentimento generalizado de uma certa
interessante foi com as raparigas (…) e fizemos o que era indignação, não para com as crianças, mas como todo o
impensável fazer – criámos uma turma de alfabetização de processo tinha sido conduzido (…). O alojamento foi feito
adultos (…) e à volta deste projecto desenvolvemos outras num gueto e aquilo era verdadeiramente indescritível.
actividades – dança. Fomos buscar uma professora Quando assumi a Direcção tentámos reparar algumas
espanhola de flamenco e sevilhanas que fez um trabalho situações do ano anterior. A escola, nessa altura, tinha 400
espectacular (…) Outro aspecto importante referir: o alunos e quase um quarto era de etnia cigana. Durante
projecto ajudou-os a discutir coisas que nunca tinham muitos anos esta foi a escola com maior população cigana
discutido – o que é o cigano hoje, a questão das vivências e de todo o país. (…) De qualquer modo, no final, as coisas
mitos que têm. Houve mesmo quem reconhecesse: “tenho estavam a ficar muito melhores do que no início.” (António
orgulho em ser cigano, mas estar com outras pessoas Martins, professor e director da escola do 1º ciclo; esteve
também nos ajuda…” em funções de 1992 a 2011)
A presença dos ciganos no Bairro Padre Cruz nunca foi bem
vista nem recebida (…) Ainda por cima porque foi pouco De referir que a Junta de Freguesia de Carnide
depois dos realojamentos no bairro novo. E o bairro antigo desenvolveu iniciativas para integrar a comunidade cigana
de alvenaria tinha acabado de sentir o primeiro choque nas actividades da freguesia (festas, feiras, encontros…).
com esses realojamentos e… depois vêm os ciganos (…) Inclusivamente, a Associação Renascer (adiante referida)
Nós tivemos uma luta constante contra aquele tipo de procurou envolver os representantes da comunidade
realojamentos que, a continuar assim, seria sempre um cigana nas reuniões do Grupo Comunitário, o que
gueto.” efectivamente veio a suceder. Porém, esta situação terá
um “inesperado” desfecho, a narrar mais adiante, a seu
Além do projecto “Príncipes do Nada”, coordenado tempo.
pela Proact, o bairro contava com a Pastoral dos Ciganos(10)
que para ali transferiu o Cento Majari onde funcionava o As relações entre bairros – as novas dinâmicas
local de culto, um serviço de atendimento à população associativas
adulta, um curso de pré-primária para cerca de 40 crianças
(3 a 5 anos) e ATL’s para 90 crianças. Mas porque foi Na continuidade do trabalho desenvolvido, a

103
autarquia, a SCML, a paróquia e o Grupo Comunitário Coura, nº 41. Uma casa que estava desocupada e que a
confirmaram-se como elementos congregadores das Câmara nos cedeu.
dinâmicas do bairro, sem esquecer o importante papel dos Este grupo começou com cerca de 20 jovens entre os 10-
clubes desportivos e recreativos, agentes mediadores – e 14 anos. No segundo ano já éramos pelo menos 45 e,
estratégicos – na relação do bairro com o exterior. depois, até 2000, chegámos a ter entre 90 a 110
Em paralelo, deste movimento entre pessoas e membros. A partir daí foi decrescendo. Eram jovens daqui e
ideias, concretizam-se iniciativas que vincaram a vida do da Serra da Luz porque esta paróquia serve a Serra da Luz.
bairro. Uma delas foi precisamente o Agrupamento de As actuais famílias que têm jovens entre os 6 e os 17 anos PROMESSAS, AGRUPAMENTO 933, 1996
Escuteiros que motivou jovens e impulsionou trabalhos que são famílias que não estão motivadas… Existe alguma (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
resistiram até recentemente. Escutemos um pouco da sua despesa, algum custo – mesmo que não seja muito – e hoje
história na voz de quem hasteou o “Alerta” no Bairro Padre estas famílias estão habituadas a que tudo lhes seja
Cruz – António Cristino. dado… o que tem diminuído muito o número de membros.
(…) E os próprios jovens têm uma cultura voltada para
Estar Alerta – o Agrupamento de Escuteiros 933 dentro, muito pouco voltada para fora… No último ano
“Até 1990 mantenho-me sempre como catequista ligado à tinha 30 jovens e este ano decidimos parar para redefinir.
paróquia. Antes porém, em 1986-87, houve um grupo de Só estamos com adultos.
jovens que me lança o desafio – eu teria 35-36 anos, já Os escuteiros associaram-se a outras associações do
casado e com família constituída – de criar um bairro. Fizemos várias actividades conjuntas,
Agrupamento de Escuteiros no bairro. nomeadamente com as associações de moradores, com
Esse grupo, que começou por ser enorme, ficou hoje os clubes … Uma, por exemplo era a Festa do Bairro.
reduzido a vinte três ou vinte e quatro membros. Tivemos Surgiu em 1990. Deixámos de fazer por questões de
que ter, primeiro, uma formação adequada. Não bastava a segurança.
vontade. Todos promovíamos essas festas, durante o mês de Julho,
O escutismo é uma escola de formação. Não existe para durante um ou dois fins-de-semana. Era uma festa em que
fazer acampamentos ou acantonamentos … O escutismo as pessoas partilhavam bons momentos. (…) Mas os
PROMESSAS, AGRUPAMENTO 933, 1996
pretende ser, juntamente com os pais e com a escola, uma escuteiros sempre foram uma presença aqui no bairro.”
(FOTOGRAFIA PARTICULAR)
entidade formadora do carácter do jovem – torná-lo mais (António Cristino, morador)
autónomo, mais solidário, mais responsável, mais
consciente… Portanto, é neste sentido que o escutismo Renascer – o associativismo é preciso
funciona… O escutismo procura contribuir para a formação E tudo isto nos levou a pensar: como vai ser isto?
integral dos jovens. E só assim é que faz sentido para mim. E parámos para pensar: temos que criar uma alternativa
Passámos quase três anos a ter formação em Carnide –
juntamente com os primeiros jovens desse ano. E, em e o ‘Renascer’ nasce dessa força.”
1990, é criado formalmente o Agrupamento 933. Teve Mário Guerra, ex-morador
como primeira sede os lavadouros que serviam as casas de (co-fundador da Associação Juvenil Renascer)
lusalite. Foi uma sede que construímos por dentro.
Adequámos às actividades, criámos espaços para jovens. “(…) e nós deslocávamo-nos numa carrinha velha
Ali estivemos até todo o bairro de lusalite ir abaixo. toda desmanchadinha…
Quando foi abaixo conseguimos, a muito custo, uma sede a que chamávamos a ‘Clementina’”
na parte de alvenaria, onde hoje ainda está na R. Rio Maria do Pilar (moradora,

104 AGRUPAMENTO 933, 1996


(FOTOGRAFIA PARTICULAR)
ex-colaboradora da Associação Juvenil Renascer) A minha participação no Grupo Comunitário começa com o
Renascer. O Grupo Comunitário ajudou muito ao
Sobre as motivações e caminhos percorridos por crescimento do Renascer. Fez com que ultrapassasse o
esta associação importa escutar quem esteve envolvido na papel de uma “simples associação” de jovens com um
sua origem, constituição e trabalhos: papel comum, mas abrir a atenção para o que eram as
necessidades reais e concretas do bairro.” (Paulo
“Uma peça fundamental, entre outras, naquele bairro e Quaresma, ex-morador, co-fundador da Associação Juvenil
para aquele tipo de jovens foi a constituição da Associação Renascer, presidente da JFC)
Renascer. A Associação veio absorver jovens que tinham
acabado de chegar ao bairro, não sabiam muito bem o que “Quando trabalhávamos na paróquia tivemos um trabalho
queriam, o que os esperava… Era grafitis, era não ter muito activo antes de fundarmos o Renascer com um grupo
ocupação… Muito do que se vê e vive nas actuais colónias de jovens, com a catequese… As associações tentavam
da Junta de Freguesia de Verão deve-se a essa anterior responder e salvaguardar, de modo organizado, esse tipo
experiência. O Renascer nasce como qualquer grupo de de energia que o bairro promovia – o Renascer – com o
jovens: com uma preocupação em fazer actividades para o Paulo Quaresma, a Carla, a Cristina Dias, a Paula Guerra…
grupo. No início queria ter mais intervenção, fazer Renascer vem disso mesmo, de captar a energia do bairro.
acontecer coisas que não existiam no bairro. Não nasce (…) Os propósitos foram uma maneira – e conseguimos! –
ainda com uma preocupação ou consciência social tão de cativar jovens e desenvolver com eles projectos que
nítidas. foram muito engraçados. A Associação também foi um
Havia o grande problema dos horários das escolas e das apoio para as mudanças que o bairro foi sofrendo. Houve
famílias. As crianças terminavam a escola e não tinham essa preocupação em fazer a ligação entre aquilo que
para onde ir. Algumas nem almoço tinham, outras ficavam chamávamos o “bairro velho” e o “bairro novo”.
fora do portão quando a escola fechava. E a escola Procurávamos criar troca de experiências, conviver, contar
também não tinha cantina. Essas eram questões que se a história do bairro…”(Mário Guerra, ex-morador, co-
colocavam e nos faziam pensar como poderíamos resolve- fundador da Associação Juvenil Renascer).
las. (…)
Os primeiros acantonamentos partem do Renascer. Depois “A Associação Renascer assegurava os ATL’s da Escola
mais tarde, é a própria Junta que começa a estender isso Piteira Santos, do 1º ciclo. (…) Na altura o director da
por toda a freguesia. O Renascer começa a participar em escola de 1º Ciclo era o professor António Martins. Guardo
actividades que inicialmente nem estavam previstas (…). as melhores recordações e sei que fizemos um trabalho
Houve um ano em que se fez um grande concurso de importante no bairro com as crianças e famílias. Elas
grafitis para o muro dos Unidos. Isso foi um concurso com confiavam muito em nós. Havia um trabalho de
divulgação e impacto em que vieram os “maiores” e proximidade, de grande confiança.
melhores “grafiteiros”… e conseguimos. Foi um ano em Este trabalho para mim foi “um abrir de olhos”, foi uma
que, pela primeira vez, se conseguiu fazer o arraial experiência única. (…)” (Catarina Pereira, ex-colaboradora
comunitário dentro do campo dos Unidos. Já não era os da Associação Juvenil Renascer; actualmente, técnica da
Amigos da Luz que o faziam. E todos os clubes e Junta de Freguesia de Carnide).
associações participaram (…). Depois, criou-se o boletim
do Renascer, ainda que de um modo muito artesanal, tem “Como trabalhei na cantina do Renascer e no ATL, toda a
muitas referências ao que se foi passando no bairro.(11) gente me conhece e me tem respeito. O Renascer foi uma

MÁRIO GUERRA, UM DOS FUNDADORES DA ASSOCIAÇÃO 105


JUVENIL RENASCER (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)
boa Associação (…) E o comerzinho era mesmo do bom. Bairro Padre Cruz vai ter uma marcha infantil, já conhecida
Era pronto na altura. Agora há os ATL e ninguém sabe dar o pela “Marchinha”. A ideia partiu do Grupo Comunitário do
valor. Bairro Padre Cruz. Os ensaios decorrem no salão de festas
Nós fomos ocupar o Polivalente para ter um ATL para os dos Amigos da Luz e são orientados por duas monitoras do
meninos, e nós deslocávamo-nos numa carrinha velha A.T.L. da Santa Casa da Misericórdia. Muitos moradores
toda desmanchadinha… que nós até chamávamos a colaboram para que a Marchinha seja um sucesso:
“Clementina” e íamos buscar panelões de água para as
limpezas e casas de banho. “Somos uma marcha sempre a cantar / crianças do
Não havia camionetas para transportar os meninos para a bairro a todos lembrar
praia e nós íamos para Caxias que era a primeira praia… Ia como se fazia sempre a caminhar /pelas hortas fora
eu, mais a minha filha mais duas ou três mulheres que lá sempre sem parar (…)".
havia como empregadas… E lá íamos nós. Depois nós, e a (letra de Albertina Lopes, ex-moradora)
Paula Rodrigues, íamos divertir os meninos para a rua para
a as pessoas verem que não tínhamos espaço para os Os novos equipamentos de apoio
meninos e depois a Câmara lá deu um espaço na escola
Piteira Santos (…) Lá conseguimos um espaço e na Foi durante este período intenso que, para fazer
cantina dividiu-se umas salinhas. Cortou-se o refeitório face às novas e contínuas pressões, o bairro mobiliza as
para fazer salas para entreter os meninos no ATL. suas forças vivas. Não só surgem novas iniciativas (a
Trabalhámos muito. Estivemos lá cinco anos.” (Maria do Ludoteca…), como o papel do Grupo Comunitário
Pilar, moradora no bairro) reforçava o diálogo entre os representantes das várias
instituições (Associação de Moradores, SCML, CML, Junta
“A sede no bairro antigo funcionava para atendimento aos de Freguesia, Paróquia, Grupos Desportivos, Escola…
pais em horas que a escola já estava fechada (…) Era uma moradores). Além disso, são construídos novos
excelente equipa. A maior parte trabalhava sem receber equipamentos: a escola provisória Piteira Santos (em
nada. Era mesmo amor à camisola… Foi muito bom tudo, homenagem ao destacado político, antifascista, professor
brincava-se e trabalhava-se… Chegávamos a ir às 6h da e historiador de mérito; 1918-1922) em resultado do
manhã e saíamos às 6h da tarde,… a fornecer almoços desdobramento da escola 164, de 1º ciclo, da R. Rio Tejo
para a Quinta da Calçada [que ainda subsistia devido acréscimo de população escolar; o Centro
parcialmente!] e escola da Pontinha. O Renascer ajudou a Polivalente, que reúne um centro de dia e creche (da
população do bairro, ajudou a escola a ter uma cantina… responsabilidade da SCML) e a transferência da biblioteca;
As marchas infantis do bairro também foi o Renascer que esquadra; farmácia; espaços verdes e de recreio,…
incentivou.” (Paula Rodrigues, moradora) Surgem novos pontos de comércio (pequenas
mercearias, novos cafés, talho, cabeleireiro,..) o Bairro
A finalizar, alguns outros elementos “curiosos”. Em Padre Cruz transforma-se numa “pequena cidade” dentro
1996 a Associação Juvenil Renascer foi reconhecida como da Cidade mas concentrando, também por isso, um
Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS); a conjunto de antigas e novas tensões.
Fundação Oriente decidiu contribuir por iniciativa própria
após tomar conhecimento pela comunicação social do
trabalho da Associação com a Cantina Social; uma
informação no Boletim de 1996, refere que “este ano o

106 SEDE DA ASSOCIAÇÃO JUVENIL RENASCER, 2010


RUA DO RIO TÁVORA (FOTOGRAFIA PARTICULAR)
A esquadra 36 da PSP – a segurança na proximidade A Ludoteca – “aprender a brincar”
“O momento mais feliz como polícia Na sequência de um diagnóstico orientado pela
foi no Bairro Padre Cruz SCML sobre as principais carências das famílias com
porque me fizeram crescer como ser humano.” jovens em idade escolar foi identificada a falta de
(Luísa Monteiro, subchefe da PSP apoios/espaços de acolhimento para os jovens após o
na esquadra de 1997 a 2001) período lectivo. Para preencher esta carência foi
implementada a actividade da Ludoteca, “crescer a
“A esquadra não veio para aqui porque era uma zona brincar” (de 1993 a 2008). O objectivo era esse mesmo:
B.º PADRE CRUZ, 2010 insegura.” Foi criada num momento em que promoveu disponibilizar um espaço (perto das escolas, na R. Prof.
num policiamento dissuasor e de proximidade. Era Almeida Lima) onde o jovem podia entrar livremente e ficar
importante que o bairro tivesse todos estes serviços. a brincar.
Estamos perante um bairro com 8 500 pessoas (…) O
bairro vivia muito dependente do exterior, no caso a “No caso de muitos destes jovens, por causa das enormes
Pontinha, para um conjunto de serviços – havia que carências de apoios, tratava-se mesmo de “aprender a
equilibrar o bairro e dotá-lo desses serviços…" (Paulo brincar”. Não havia qualquer pagamento, nem vínculo de
Quaresma, ex-morador, presidente da JFC) obrigação. Os jovens inscreviam-se e apareciam quando
queriam. E podiam lá ficar dentro do horário das 16 às
“Conheci o Bairro Padre Cruz com os realojamentos e 21h. Mas a certa altura houve tanta afluência que tivemos
conheci o Bairro Padre Cruz com o lusalite… O que temos que criar grupos de jovens e definir os dias. A Ludoteca
que fazer quando ali chegamos? Primeiro, arrumar a destacava-se da oferta que havia nas escolas porque
esquadra. Fui para a esquadra do bairro como subchefe proporcionava um espaço de brincadeira livre,
(…). Não me foi passada nenhuma informação sobre o descontraído, era uma oferta não formatada. Houve
bairro. Julgava que ia encontrar um bairro muito mais também uma pareceria com a CML ao nível do apoio
perigoso, com muito mais crime, e nunca senti insegurança logístico, cedência de espaços e de alguns recursos,
nenhuma…O momento mais feliz na minha vida designadamente humanos: a Vanda Botelho e a Mónica
POLIVALENTE, "BAIRRO NOVO", 2010 profissional como polícia foi no Bairro Padre Cruz porque Mascarenhas estiveram lá antes de mim e sei que fizeram
me fizeram crescer como ser humano. Fizeram de mim um trabalho valioso para implementar a ludoteca”. (Rui
uma pessoa melhor. (…) E eu não sabia que isto tinha Gato, técnico do Ministério da Educação; coordenador
tanta miséria. E eu pensei que poderia fazer melhor por pedagógico da Ludoteca “crescer a brincar” de 2003 a
esta comunidade… São menos as questões de crime mas 2008)
muito mais as questões sociais que merecem atenção no
Bairro Padre Cruz. A questão das crianças na rua, até muito A nova biblioteca – “uma conquista difícil”
tarde, sem apoios, sem estruturas familiares, sempre me “Estava a ser construído o Polivalente que seria cedido
fez muita impressão… A nossa função era dar uma totalmente à Misericórdia enquanto nós continuávamos
resposta mais imediata às situações, mas a sua resolução num espaço degradado e decadente sem condições
ultrapassava a nossa esfera de acção. Mas eu sentia uma nenhumas, a antiga sala de leitura. Procurámos conquistar
necessidade grande para ajudar – eu queria fazer parte do ali o espaço para a biblioteca. Contactámos a Associação
processo. Queria dar mais uma valia, ajudar a resolver.“ de Moradores que também participou nessa luta e fez
(Luísa Monteiro, subchefe na esquadra de 1997 a 2001) muita pressão. Conseguiu-se espaço para a biblioteca no
Polivalente que foi todo adaptado e hoje partilhamos o

"BAIRRO NOVO", 2010 107


espaço com a Misericórdia. As condições de trabalho eram mais de 90% desistia da escola. Nós queríamos fazer
muito limitadas e limitativas. Mas tínhamos uma relação regredir isso e a única maneira era criar um território de
muito próxima com a Misericórdia. segurança. Apesar de todos os problemas que o bairro
Vivemos muitas histórias na biblioteca Natália Correia – possa ter era ali que os jovens criavam as suas referências
umas, muito boas que recordo com muita saudade, outras e o facto de irem para Telheiras era um problema muito
menos boas, mas que hoje, um pouco à distância já me desmotivante…O que existe em termos de dinâmica local
fazem rir. Conseguimos ir chegando às pessoas porque eu que promove as referências ao bairro que acabam por ser
era bibliotecária a tempo inteiro. O espólio foi muito “aprisionantes”. Num momento em que os transportes são
alargado, maior e melhor catálogo, desenvolveram-se tão mais acessíveis o faz com que estes jovens se sintam BIBLIOTECA MUNICIPAL NATÁLIA CORREIA, 1995
actividades de promoção da leitura. Procurávamos quebrar tão inseguros na cidade?
a rotina. Houve iniciativas de trazer a biblioteca à rua e É a cultura do próprio bairro. O bairro criou uma identidade,
fizemos sessões de leitura no espaço exterior (…). nas últimas décadas, que se constrói sobretudo por
Mas a biblioteca colocava-nos problemas diários. Houve oposição e rejeição: à Polícia, à Câmara, ao Estado…
projectos que desenvolvemos com jovens e famílias…(…) Anteriormente as instituições eram aliadas. E isso era
A relação com as escolas era muito boa. Com as escolas visível nos anteriores moradores, até pelas suas profissões.
primárias. Com a EB2,3 era mais difícil trabalhar devido à Hoje, isso não acontece. A maior parte, apesar de viverem
logística e os tempos de deslocação. Outro projecto foi a em bairros de lata, foram forçados a morar nos prédios em
aula na biblioteca. (…) Foi muito interessante e locais que eles não queriam nem escolheram... No fundo,
conseguimos criar dinâmicas muito boas com pesquisa em pertencem todos à mesma cultura, uma cultura de rua – e
livros, recursos a outras fontes de informação… isso era visível nas crianças que permanecem até às 2h da
Foi sempre uma biblioteca que colocou problemas de manhã sem que ninguém os vá buscar – a revolta é a
segurança. A Câmara contribuiu muito para que mesma, e isso acaba por fundamentar uma ilha de cultura
tivéssemos esse tipo de problemas. A forma como alojou as em que se reconhecem e aí, nesse território, são todos
pessoas, designadamente no Vale do Forno. Foram criadas iguais. Reconhecem-se. Ora, o sair do bairro faz senti-los
situações complicadas. A aceitação dos ciganos por parte estranhos e diferentes. Inseguros…” (António Martins,
dos moradores não era fácil…” (Elfrida Reis, técnica professor e director e ex-director da escola EB1 do bairro) ESCOLA PITEIRA SANTOS, 1996
responsável pela biblioteca do bairro de 1996 a 2009)
A gestão local do bairro
A nova escola e a “ilha de cultura” bairrista
Devido à polémica que, na altura, envolveu a O Grupo Comunitário e o trabalho de parceria
decisão da localização da escola dentro ou fora do bairro, Durante este período o Grupo Comunitário e a
importa reter esta avaliação: Junta de Freguesia reforçaram o trabalho de pareceria
entre instituições e o envolvimento dos moradores
“Relativamente ao projecto de construção da EB 2,3 houve alertando para o agravamento das condições de vida da
duas posições por parte dos técnicos. Os que defendiam população do “bairro antigo”. As questões relativas ao
que a escola deveria ser construída aqui no bairro, e eu era futuro do bairro de alvenaria – recuperação ou demolição
um desses. Outros defendiam que não, pois isso iria – começam a colocar-se de um modo mais concreto.
perpetuar a guetização. Ora, teoricamente isto faz sentido,
mas na prática não resulta. Verificámos que havia um “A Junta de Freguesia e o Grupo Comunitário tiveram um
absentismo elevado entre o final do 1º ciclo e o 9º ano, papel muito importante para o bairro atingir outra fase.

108
Nomeadamente, em termos de comércio e serviços. Antes, manifestamente não cumpriu com as suas obrigações tal
não havia nada… e sempre fomos constituindo um grupo como é opinião corrente entre moradores e não-
de pressão e criar algum movimento. moradores. Nos pós-25 de Abril não houve qualquer
Não se pode esperar retirar centenas pessoas de bairros de investimento por parte da Câmara conforme numerosos
lata, enfiá-los em prédios onde atingem os milhares e estar testemunhos já evidenciaram.
à espera de que tudo corra normalmente. Nem as poucas Foram as técnicas do gabinete local (Cláudia Rocha e
mercearias que havia não estavam preparadas para provir Helena Gomes) quem referiu:
as necessidades da população com estas dimensões. Até
cafés, havia muito poucos. Farmácia, nem “Percebemos que as populações transferidas para o bairro,
pensar…apareceu agora De resto, não havia nada. Só não tendo comum a origem da história, vieram determinar
prédios e ruas. Nesse grupo de trabalho, que era um grupo profundas alterações no núcleo original. Geraram-se
comunitário, reuníamos com a Associação Renascer, a inicialmente processos de rejeição que iam ou não sendo
SCML, a PROACT, Pastoral dos Ciganos, a esquadra, a resolvidos se as populações recém-chegadas se fossem
associação de moradores, a associação de pais, o aculturando. A nossa gestão data de 1996. Ao longo
departamento da acção social, a Gebalis… mas, com destes anos houve bastante investimento. Mesmo em
estes, a relação era muito complicada, difícil. Eles termos de melhorias, investiu-se muito nas canalizações
assumiam uma posição de sobranceria e de arrogância. permitindo que as pessoas tivessem água quente. (…)
Comportavam-se como os “senhorios do bairro”… buscava [nota: reportam-se a melhorias realizadas em 1996]
muito pouco o diálogo. Raramente participavam (…) Em todos os realojamentos existe uma mescla de situações
Houve um conjunto de sinergias que estas instituições mais e menos problemáticas. Não podemos dizer que haja
criaram e, a partir delas, aconteceram outros projectos…” uma fase de realojamento mais difícil porque também
(António Martins, professor e ex-director da escola EB1) existem situações complicadas com agregados na parte de
alvenaria.
A nova entidade gestora do bairro: a Gebalis As várias etnias estão espalhadas pelo bairro. Essas
No âmbito das preocupações de gestão municipal indicações vêm da Câmara. Nós só gerimos. Não existem
após os realojamentos foram experimentadas novas prédios com etnias concentradas. Existem angolanos,
parcerias institucionais e nasceu a Gebalis (1995), cabo-verdianos e guineenses para além de indivíduos de
empresa pública gestora dos bairros (municipais) de etnia cigana. São raros os casos de famílias de etnia
Lisboa. Esta empresa procurava melhores níveis de eficácia cigana, do Vale do Forno, que aqui ficaram.”
na gestão dos novos bairros construídos (no âmbito do
programa da de erradicação das barracas) e apostava Adiante retomaremos outras situações relativas
numa relação flexível e de proximidade conforme divulgado aos desempenhos da Gebalis, no complexo processo da
no documento da sua instituição: “(…) Trata-se de uma gestão do bairro.
empresa municipal, com um funcionamento muito
descentralizado e ágil, que permite elevados níveis de As transformações do bairro e a vida paroquial – um
eficácia na gestão dos novos bairros construídos no âmbito reencontro comprometido
dos programas de erradicação de barracas”.
No dia 1 de Outubro de 1996 foi instalado o “Em 1990 começou a fazer-se o realojamento e os prédios
Gabinete Local da Gebalis no Bairro Padre Cruz. Contudo, a altos foram uma barreira para que os paroquianos viessem
Gebalis foi herdeira de uma situação em que a Câmara à Igreja e frequentassem as práticas religiosas. Em 1990 a

GABINETE LOCAL DA GEBALIS, CRIADO EM 1996 109


vida paroquial entrou em crise. As novas populações realojamento em escalas massivas em tempos
traziam pouco hábitos espirituais, excepto os cabo- desadequados, sem tempo para providenciar apoios e
verdianos, nas gerações acima dos quarenta anos, que são acompanhamentos institucionais, dando origem a grandes
muito afáveis.” (padre António Baptista, em funções no concentrações urbanísticas e guetos sociais em moldes
bairro desde 1981) que a Europa já há muito tempo questionava; o centralismo
de todas as decisões que excluem as negociações com
“Apercebo-me do apagamento da força e expressão parceiros – as autarquias, os técnicos e os moradores…; a
identitária da paróquia e do bairro… Decorre isto do facto rigidez nos critérios para os realojamentos – os moradores
de grande parte dos actuais moradores não terem ali as das “barracas” – que não demonstraram flexibilidade em
suas raízes, o que torna mais difícil a integração. A geração abranger o bairro de alvenaria, já em condições muitíssimo
anterior era de grande parte de “filhos do bairro” e, grande degradadas, gerando vincadas tensões sociais…
parte assumia em si mesmo o papel da paróquia. Todavia, e no caso singular do Bairro Padre Cruz,
Actualmente estarão cá 3 ou 4 pessoas dessa geração e evidenciou-se a capacidade imaginativa e interventiva por
aquela geração que estava cheia de força e cheia de parte dos poderes localmente instituídos, da competência
entusiasmo já cá não está. A maior parte dos jovens depois de técnicos, autarcas e população empenhando-se na
de casarem saem daqui, e por isso, vamos tendo uma resolução dos problemas que a gestão da cidade,
paróquia envelhecida a perder força e um grupo de insistentemente, lhes colocava… Como tal, também ficou
crianças que não se identifica com a paróquia… bem claro que o Bairro Padre Cruz não é um problema na
Reconheço que fomos perdendo força porque vamos cidade. É um “problema” das formas de gestão da cidade
ganhando vícios ou porque vai-nos faltando quem nos ao longo de mais de 50 anos e, como tal, a sua história
substitua e quem nos rejuvenesça. Hoje em dia vivemos acrescenta ampla informação crítica acerca dos processos
muito mais desligados da vida paroquial. Há muito mais de crescimento e desenvolvimento da cidade. Confirma-se:
ofertas paralelas e a própria religião começa a perder peso “Os bairros são lugares para se procurar, identificar, inquirir,
– não valor – dentro das próprias comunidades e isso questionar.” (Cordeiro; Costa (1999): 61). E passamos à
acontece em todas as comunidades. Não é só no Bairro fase seguinte.
Padre Cruz a perda da influência da religião.” (Fernando
d’Oliveira, morador) Síntese cronológica
1990 a 2000: Bairro(s) de contrastes: o alvorecer do
A fechar este capítulo, uma última nota. É inegável bairro novo e o anoitecer do bairro antigo
a importância da melhoria das condições de vida por parte
das famílias que beneficiaram dos realojamentos ao abrigo 1990
dos programas PIM e, depois PER, ficou explícito. Porém, Início do novo Plano Regional de Ordenamento do Território
algumas questões permanecem (sempre) em aberto: as da área Metropolitana de Lisboa (PROTML) e do novo Plano
dinâmicas que, continuadamente geram tais exclusões Estratégico de Lisboa (1992). Década de grande produção
sociais e, depois, a necessidade de as “controlar” sem urbanística por parte da CML. As “políticas de habitação”
haver uma estratégia realmente concertada, com (em grande parte, políticas de realojamentos massivos)
maturidade e reflexão em termos de políticas de habitação, adquirem grande impacto apoiadas que foram, durante a
mais abrangentes e fundamentadas que identifiquem e década anterior, pelo IGAPHE, INH, FEDER através de
contrariem a reprodução de fragilidades socio- acordos com a CML. Em paralelo, a unidade “bairro”
económicas; o facto de se ter optado por programas de conquista importância na reabilitação dos territórios da

110
cidade antiga. Criação do Gabinete Técnico Carnide-Luz 1995
(Direcção Municipal de Reabilitação Urbana), na sequência Eleito João Soares como presidente da CML; Vasco Franco
do Grupo de Trabalho de Carnide-Luz, formado em 1989. é vereador do pelouro da Habitação. Adão Barata é eleito
No Bairro Padre Cruz, a década de 90 corresponde a um presidente da Junta de Freguesia de Carnide (PCP/PS).
período de grandes transformações: correcção da São destruídas as últimas casas de lusalite. O bairro novo
arquitectura dos primeiros prédios construídos em continua a desenvolver-se e dispõe de novos serviços e
alvenaria no topo do bairro; demolição do primitivo bairro comércio: farmácia, mercearias, talho, cabeleireiro, vários
de lusalite e realojamentos de populações deslocadas de cafés… O bairro antigo mais envelhece e degrada-se.
núcleos de barracas espalhados pela cidade. “Bairro Durante o mês de Agosto concretiza-se o problemático
antigo” e “bairro novo” fixam-se no vocabulário local e realojamento de 108 famílias ciganas na periferia norte do
retratam distintas realidades socio-espaciais. É criado o bairro – o Vale do Forno – em resultado das obras de
Agrupamento 933 do Grupo Nacional de Escutas. requalificação da zona oriental de Lisboa para instalar a
1992 (07/06) futura EXPO 98.
Elevação da Quase-paróquia a Paróquia consagrada ao 1996
patrocínio de Nossa Senhora de Fátima e que dará a Celebração dos 400 anos do santuário Nossa Senhora da
denominação à respectiva igreja. Luz, em Carnide.
1993 Construído o edifício polivalente onde são instalados o
Devido ao aumento da população residente, decide-se o auditório e a biblioteca municipal (que acolhe e acrescenta
desdobramento da Escola 167 em duas unidades do 1º o espólio da antiga “sala de leitura”), a creche e o centro de
ciclo: o edifício original na Rua Rio Tejo e um prefabricado dia da SCML.
na rua Piteira Santos. Nesta unidade (“Escola Piteira Criação do gabinete local da Gebalis (empresa gestora dos
Santos”) funciona o 1º ciclo, jardim-de-infância e bairros municipais de Lisboa criada em 1995, a partir da
posteriormente o ATL (Atelier de Tempos Livres) e o CML).
refeitório. Esta solução por dois edifícios desagrada à 1997
direcção da escola e à população. No seguimento, é Prossegue a presidência de João Soares na CML. A Junta
constituída a Associação de Pais e Amigos da Escola de Freguesia de Carnide elege José Araújo (PCP/PS) como
Primária nº 167 do Bairro Padre Cruz. presidente da autarquia (até 2001; Paulo Quaresma
- (7/05) - Por iniciativa municipal, e atendendo às desempenha funções como vogal da Educação, Cultura e
limitações do anterior PIMP, é criado o Programa Especial Desporto). Em Setembro, é inaugurado o Centro Comercial
de Realojamento (PER) com o objectivo de prosseguir na Colombo na fronteira sul da freguesia.
erradicação das barracas nas áreas metropolitanas de - (18/10) - Abertura das estações de Carnide e Pontinha da
Lisboa e do Porto. rede de Metropolitano de Lisboa.
- (26/06) - Criada a Associação Juvenil Renascer com o - (18/11) - Inauguração do Centro Comunitário Polivalente
propósito de unir os “bairros do bairro” e superar carências da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa; aumento
diversas. É instalada a Ludoteca – iniciativa da significativo da prestação de apoio e cuidados aos idosos
CML/Bibliotecas de Lisboa. (atendendo ao envelhecimento da população original) e à
1994 infância (em resposta ao aumento do número de crianças).
Lisboa é Cidade Europeia da Cultura (a partir de 1999, Este Centro Polivalente desenvolve serviços de creche, ATL,
ficaria Capital Europeia da Cultura). animação socioeducativa; apoio a idosos nas vertentes de
Centro de Dia, Apoio domiciliário, convívio…

111
Falecimento de D. António Francisco Marques (n. 1927),
antigo Prior de Carnide e do Bairro Padre Cruz e primeiro
Bispo de Santarém (posterior atribuição do seu nome a
duas ruas – uma, na Quinta do Bom Nome, em Carnide, e
outra na freguesia da Pontinha).
1998
Em Maio é inaugurada a Grande Exposição Internacional –
a Expo 98.
- (08/03) - A CML atribuiu o nome de Natália Correia
(1923-1993), referência de vulto na literatura portuguesa,
à antiga Biblioteca Municipal de Carnide.
- (19/11) - Criação do Município de Odivelas (Lei n.º 84/98
de 14 de Dezembro) que passa a preencher parte da linha
fronteira com o bairro, antes pertença do município de
Loures.
1999
Desde Outubro, e no âmbito do Programa Nacional de Luta
contra a Pobreza, desenvolvimento formal do projecto
comunitário “Príncipes do Nada” para apoiar a comunidade
cigana realojada no Vale do Forno, da responsabilidade da
PROACT. Instalação do Gabinete local da Comissão de
Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ).
Abertura das oficinas do Metro na Pontinha que ocupam
território das antigas quintas e azinhagas. A recente
Avenida Cidade de Praga vinca a separação física do bairro
do restante território da freguesia de Carnide. E da cidade.
No final da década o Bairro Padre Cruz é uma cidade dentro
da Cidade abrangendo 38 hectares; o “bairro antigo”
dispõe de 12 hectares com 916 moradias unifamiliares
num total de 1 117 fogos. O “bairro novo” (da EPUL) é
construído em 25 hectares, com 1 289 novos fogos de
várias tipologias inseridos em quarteirões padronizados, de
blocos. O bairro inclui um total de 2 589 fogos para uma
população estimada em mais de 8 500 habitantes e
confirma-se como o maior bairro municipal da Península
Ibérica.

112
Fase 4 comprovam esse esforço conjunto que a autarquia e
2000 a 2012: A REQUALIFICAÇÃO DO BAIRRO PADRE associação de moradores também procuram estimular. A
CRUZ – O FUTURO E A MEMÓRIA SCML permanece como instituição central na prestação de
apoio social à população enquanto a paróquia ainda vê
“Equacionar o futuro implica ter sempre em atenção o limitada a sua intervenção.
presente e conhecer o passado.” A requalificação do “bairro antigo”, que implica a
Maria Vilar Diógenes (ex-presidente da JFC, demolição faseada da zona antiga de alvenaria, deixou de
presidente da Assembleia Municipal da Freguesia) ser um projecto adiado e tomou conta da agenda das
INÍCIO DA REQUALIFICAÇÃO, JANEIRO 2012
(FOTOGRAFIA DE BOM NORTE)
inquietações dos moradores, autarcas, técnicos e (alguns)
O Bairro Padre Cruz nas políticas da Cidade – o políticos… Hoje, é uma realidade a acontecer e que
contexto da intervenção ultrapassa, em muito, a questão da requalificação física do
espaço.

A primeira década deste novo século (2000-2012) No contexto das paisagens vivenciadas este foi –
inclui momentos de profundo impacto e é! – outro período instável, agitado por antigos e novos
transformação nas paisagens físicas e vivenciais do confrontos, de expectativas e muitos impasses, ilusões e
Bairro Padre Cruz. desilusões. Mas é, também, um tempo decisivo. É o
Ao nível do edificado as confrontações momento em que o bairro – e o muito trabalho nele
conheceram novas vizinhanças (Parque Colombo, o desenvolvido – obriga a gestão da cidade a equacioná-lo
condomínio da Quinta das Camareiras, Pólo Tecnológico de como um “lugar em si mesmo” no cenário urbano, e não
Lisboa, gerido pela LISPOLIS,…) que valorizaram o apenas como chão de recurso (um “não-lugar”, periférico)
território mas não contrariaram a persistente periferização para acolher populações compulsivamente transferidas de
física e social do bairro. Aumentou a rede de transportes e diferentes locais “problemáticos” da cidade. De facto, na
está prevista, no médio-longo prazo, uma nova estação na fase actual, existe empenho para que o bairro conquiste
rede de metropolitano que integrará o bairro(1). A estrutura uma nova imagem no cenário urbano. O capital social
viária envolvente também foi alterada. Contudo, os novos comunitário acumulado e amadurecido ao longo do tempo
FASEAMENTO DA REQUALIFICAÇÃO, 2012 (CML) acessos rodoviários – a avenida de Cidade de Praga – têm sido contributos determinantes. Porque o Bairro Padre
mantiveram a separação física do bairro relativamente ao Cruz tem “história” reconhecida, começou a ser
território da freguesia e da cidade. percepcionado como um “lugar de direito(s)” com
Todavia o que mais importa agora destacar é que a contornos e singularidades específicos. Como tal, em
problemática da requalificação impôs-se como a matéria termos da gestão da cidade o Bairro Padre Cruz oferece
de fundo durante todo este recente período. Confirmou-se hoje, sem dúvida alguma, matéria singular para capacitar
a preocupação e o investimento por parte da autarquia, modelos alternativos no planeamento e intervenção
instituições, associações locais e moradores em revitalizar urbana onde o envolvimento positivo e activo da população
o bairro de modo a equilibrar um presente de acentuada será o desafio e a aposta. “As pessoas devem sempre fazer
degradação com um futuro de grandes transformações. parte da solução do problema”, bem lembrava a comissária
O acolhimento a novas associações (Bola pr’á Luísa Monteiro. E da saúde da democracia.
Frente, Azimute Radical e Lua Cheia, por exemplo; e, mais Contudo, não esqueçamos que no interior do
recentemente, o espaço JuntArte com novas associações), bairro ainda persistem conflitos antigos a braços com
as inaugurações da nova escola EB1 e do Centro Cultural novos problemas que exigem atenta e eficaz resolução. A
de Carnide e o maior diálogo entre os dois núcleos do bairro população residente no Bairro Padre Cruz diversificou-se do

113
ponto vista étnico, nas origens geográficas e percursos de anos, no Vale do Forno. Após uma visita conjunta ao quartel
vida, hábitos e culturas, percebeu-se. Confirmaram-se os por parte dos representantes municipais e autárquicos, a
contrastes geracionais: o bairro antigo mantém uma “solução” foi acelerada mas em moldes que não eram os
população idosa cada vez mais carenciada de apoio a previstos. Nem desejados.
vários níveis; no bairro novo a população é bem mais jovem,
com grande número de crianças e jovens em idade escolar. “Quando veio o Santana Lopes com a sua linha eleitoralista
Por outro lado, a grave situação dos alojamentos ele apoiou muito o realojamento daquelas famílias. Mas
no Vale do Forno e a degradação do bairro de alvenaria isso até foi apressado porque não houve tempo para dar
saturavam as preocupações locais – dos moradores e dos conta de todo o trabalho que tínhamos desenvolvido. (…)
responsáveis. Estavam já emparedadas várias dezenas de Algumas famílias queriam permanecer no Bairro Padre
casas com vista à posterior demolição e as condições de Cruz e isso não foi minimamente respeitado pela equipa do
habitabilidade desta zona do bairro (designadamente, Santana Lopes que quis arrumar o assunto rapidamente
higiene e segurança) perigavam gravemente a população (…). Não tanto quanto as famílias desejariam e que nós
residente. No início deste período a gestão local da Gebalis tínhamos recomendado. A maior parte foi para a
manifestava-se insuficiente para resolver eficazmente as Ameixoeira e Alta do Lumiar…” (Roque Amaro, PROACT)
queixas que, continuada e persistentemente, ia
recebendo. E as reuniões do Grupo Comunitário De facto, não deixa de ser de lamentar que os
transformam-se num palco de reclamações constantes. procedimentos tenham contrariado as recomendações e o
Paralelamente convém relembrar que, em 2002, trabalho comunitário desenvolvido por vários técnicos e
a CML conhecera novo executivo com outra expressão instituições(2), designadamente por parte da própria equipa
política. Pedro Santana Lopes foi eleito para o governo de técnica da DGSPH/DEPGR.
Lisboa (PSD; 2002 a 2004, com alternâncias até 2007 E assim aconteceu.
entre Carmona Rodrigues e, por último, Marina Ferreira).
Também em 2002 Paulo Quaresma (ex-morador, com “O fim do Vale do Forno foi muito triste. A CML excluiu por
experiência do bairro) fora eleito presidente da Junta de completo quem estava no Grupo Comunitário; excluiu por
Freguesia e, entre outro tanto, os problemas bairro são completo a Junta de Freguesia usando o argumento de que DEMOLIÇÃO DO BAIRRO DO VALE DO FORNO, 2002
olhados como um sério desafio a vencer. A definição dos “nós falávamos a mesma linguagem que eles” … e
recursos e tempos necessários para a requalificação do percebemos que as coisas não iam correr bem (…) Às
bairro de alvenaria conquistam primazia. Mas também a 7.00h da manhã a polícia cercou e isolou a zona, entrou
defesa do movimento associativo (nas suas diferentes com as carrinhas dentro dos taipais, entrou nas casas das
formas e modalidades – cultural, desportiva, recreativa…), pessoas, retirou os haveres à força, colocou tudo em
a continuada mobilização para formas de cidadania carrinhas que levou para o bairro da Ameixoeira, para as
participada e a defesa de um projecto cultural para Carnide casas que já estavam destinadas. No mesmo dia em que
são prioridades na agenda e acção da autarquia. retiravam as pessoas, deitavam as casas abaixo. Foi muito
violento. Passados 3 dias ainda havia pessoas sentadas
O fim do Vale do Forno – “uma história muito triste” sobre os escombros porque se recusavam a ir para as
novas casas. Muitas das novas casas foram vandalizadas
No início da década, a JFC mobilizara esforços porque as pessoas rejeitavam essa solução da qual não
para pressionar o novo executivo de Santana Lopes acerca participaram: “nós queremos viver com os senhores”.
do problema das famílias ciganas instaladas, desde há 7 Agora, a Ameixoeira está a sofrer as consequências deste

114
outro processo forçado de realojamento.” (Paulo ex-morador, presidente JFC)
Quaresma, ex-morador, na altura, vogal da Juventude e
Desporto na JFC) No “bairro antigo” acentuava-se a degradação das
condições de segurança a habitabilidade quer do espaço
E, assim, dando lugar a esta outra Lisboa das público, quer privado, das casas. As segundas e terceiras
exposições para os mundos, encerra-se mais um outro gerações continuavam a sair do bairro, as casas foram
capítulo humanamente doloroso e que esqueceu o sendo emparedadas pela Gebalis e as ruas esvaziam-se de
investimento, compromissos e o vasto trabalho social vida. Um estudo de atualização da Gebalis sobre o bairro
desenvolvido com esta comunidade. antigo dá conta de 916 fogos, 844 estão habitados, 72
fechados (dos quais, 32 emparedados). Ficam apenas os
Sobre a intervenção no bairro antigo – tempos e moradores mais velhos e o bairro de alvenaria vai
projectos envelhecendo física e humanamente.

“Aqui, aplica-se aquela máxima: “A grande questão esteve no desinvestimento para


se não lutarmos, não ganhamos”. preservar o que existia – sobretudo a zona antiga do bairro.
Maria Vilar Diógenes E aí é que se situa o grande problema… as pessoas
(ex-presidente da JFC, presidente da AMF) começaram a desinvestir também pela indecisão do futuro
do bairro. E então quando começam a ser emparedadas as
“Nesta última década é que foi flagrante. casas, as pessoas começam a ter consciência de que dia
Na indecisão, na indefinição, na incerteza.” menos dia o bairro vai abaixo e que não valia a pena…”
Paulo Quaresma (ex-morador, presidente da JFC) (Paulo Quaresma ex-morador, presidente JFC)

Primeiro impasse – requalificar ou reabilitar? Em 2002, na altura de renegociar o tratamento


dos espaços verdes…, “a Câmara diz ‘não!, aquilo é
Durante os primeiros anos desta década mesmo para ir abaixo’ e é partir desta altura que a CML
CASAS EMPAREDADAS NO BAIRRO DE ALVENARIA, 2010 terminaram os realojamentos mas prosseguiram os começa a emparedar casas ainda sem saber muito bem o
problemas de integração das populações instaladas no que vai fazer (…). E o bairro evidencia o estado de miséria e
bairro novo, a convivência entre a comunidade antiga e os degradação. E não há rei nem roque que lhe valha… Nunca
novos realojados. se deveria ter deixado degradar até este ponto. Até ao final
de 2001 os jardins da parte antiga eram assegurados pela
“A partir de 2001 terminaram os processos de Junta num protocolo com a Câmara. Neste momento
realojamento em massa. Foi com a construção da rua de ninguém assegura aquelas zonas. Aquelas são
Barcelona, ainda com João Soares e Vasco Franco. E é consideradas zonas expectantes como outras na cidade, só
aqui que os problemas se agudizam. Isso está registado – a servem para crescer mato. O que sobra? Até 2004-05
história do bairro cruza com a história da cidade. E é a partir ninguém sabia muito bem. Dizia-se “é para acabar, é para
daí que a cidade entra num desgoverno total, sem acabar” mas nada de concreto.” (Paulo Quaresma, ex-
perspectiva de futuro, sem horizontes claros… e tudo isto morador, presidente JFC)
se degrada acentuadamente. E tudo isto decorre porque
não havia uma linha clara. Nunca se definiram critérios “Desde que aqui estou a principal evolução que vejo – os
claros do que se queria para o bairro.” (Paulo Quaresma, espaços verdes. E se o bairro é só um não percebo porque

115
só uma parte do bairro é que está arranjado. Ao pé do Após longos impasses, em 2006, o executivo de
mercado, é uma vergonha. Sei que é um trabalho custoso Carmona Rodrigues apresentou o primeiro projecto
porque também fui jardineira na CML mas havia que cuidar “ambicioso mas indispensável” para a requalificação do
daqueles espaços. Este é um bairro camarário que tem os “bairro antigo” sob a responsabilidade da vereadora
espaços verdes mais bem arranjados mas é bom que os Gabriela Seara. Finalmente, em sessão de Câmara de
olhos vejam todos os espaços verdes (…) Por trás há Outubro foi aprovado o plano de financiamento para a
verdadeiras lixeiras. A parte do bairro velho ficou muito requalificação do bairro prevendo-se o arranque para 2008
esquecida.” (Isaura Marques, moradora) e a conclusão para 2013.
O primeiro estudo e projecto estiveram a cargo da
“A diferença que eu noto mais é que parece que estamos EPUL. Previa-se a demolição integral dos 917 fogos de
totalmente ao abandono. Ninguém nos arranja uma rua, alvenaria e a construção de raiz de 1619 fogos (18 lotes)
um passeio. Eu ontem tive o trabalho de contar que na rua ocupando a área de 12 hectares, dos quais 904
abaixo da minha estão quatro candeeiros seguidinhos destinavam-se ao realojamento dos agregados residentes
fundidos. São quatro! Houve sempre um problema de falta no bairro. Estipulava-se também “a construção de
de assistência… mas desde que se falou na requalificação, habitação a comercializar ao abrigo do Programa EPUL
então, estamos totalmente ao abandono… De ano para Jovem, no sentido de viabilizar financeira-mente a
ano é adiado. Era para estar completo em 2013! (Teresa operação” (EPUL, Loteamento do Bairro Padre Cruz,
Guerra, moradora) Outubro de 2007). Este projecto já contemplava o
realojamento dos agregados dentro do bairro durante as
Em 2005, por resolução de Conselhos de obras e o respectivo faseamento assim como também
Ministros, o Bairro Padre Cruz foi incluído no Programa incluía a recomendação para que “a operação fosse
Nacional “Iniciativa Bairros Críticos” no âmbito das políticas desenvolvida em estreita pareceria com as forças vivas do
da cidade. Por outro lado, a questão da reabilitação ‘versus’ bairro”. Pretendia-se “requalificar o tecido urbano, eliminar
requalificação do bairro estava em acesa polémica a imagem negativa associada aos bairros de realojamentos
camarária. Confrontavam-se duas propostas: a e oferecer uma oportunidade aos jovens de aquisição de
reabilitação (recuperar e manter o edificado de alvenaria habitação de qualidade no binómio preço/qualidade.” MAQUETA PROJECTO DE REQUALIFICAÇÃO DA EPUL, 2007
com as adaptações necessárias) defendida pelo vereador (EPUL, ibidem).
Sá Fernandes (BE) ou a requalificação (demolir A fechar este capítulo de impasses, a 14 de
integralmente o antigo edificado e construir de raiz), Novembro de 2007, no Auditório Natália Correia, o
defendida por Gabriela Seara (PS). Esta última proposta vereador Sá Fernandes reforçava as razões da sua
(132/2006) vence por maioria em sessão de Câmara de contraproposta, de reabilitação do edificado de alvenaria
29/03 de 2006. Os moradores foram acompanhando com perante um grupo de moradores e responsáveis locais que
grande angústia os ecos destas indecisões. a rejeitou. Também nesta fase é de relevar a importância do
papel do Grupo Comunitário, Associação de Moradores e
O primeiro projecto de requalificação e o segundo da autarquia na auscultação da voz dos moradores. Porém,
impasse em resultado da mudança de executivo e das faltas de
garantia de financiamento, os projectos ficam pendentes.
“A requalificação é um projeto ambicioso, absolutamente
indispensável.”
Gabriela Seara (ex-veradora da Habitação, CML)

116 PROJECTO DE REQUALIFICAÇÃO DA EPUL, 2007


A requalificação e o papel do Grupo Comunitário necessariamente mais participado. (…) Uma coisa é a
adesão a um convite; outra coisa é a iniciativa de estar
Ainda durante uma reunião ocorrida em 2005 o presente, por razões próprias. E isto acontece só
Grupo Comunitário deliberara convidar todos os grupos parcialmente. E, depois, faltam duas coisas importantes:
municipais, vereadores da Câmara de Lisboa e a comissão passar de uma lógica pontual – aparecer quando se tem
permanente de habitação da Assembleia Municipal a problemas para pôr – para uma lógica de continuidade. E,
visitarem o bairro antigo, e abreviar o tempo para a portanto, a pessoa adere ao processo e não ao problema.
intervenção. Viveram-se novos momentos de tensão e de E isto é fundamental. E, depois, o terceiro aspecto é passar
grande preocupação. Os moradores desanimavam, de uma lógica reivindicativa para uma lógica construtiva.
aumentavam o número de casas emparedadas e apenas Estas são as três condições da passagem para um trabalho
uma pequena minoria de residentes continuava a fazer as verdadeiramente comunitário (…). Duas instituições que
obras de manutenção – a indefinição entre recuperação ou dirigem o Grupo Comunitário - a Junta de Freguesia e a
demolição pesava nos quotidianos que, dia para dia, viam Associação de Moradores. É um Grupo Comunitário muito
com grande tristeza e desesperança. centrado nestas organizações quando, antes, não era. Era
muito mais partilhado, repartido em termos de
“Como vemos pelas situações referidas hoje nas reuniões responsabilidades e tarefas.“ (Roque Amaro, PROACT)
do Grupo Comunitário, o grande problema das pessoas,
dos moradores é… as casas, as condições de O Bairro Padre Cruz, hoje – antigas e novas
habitabilidade. Tenho aqui situações de jovens que comunidades
reflectem muito esse problema. Há jovens que estão
desistentes da escola também, em parte, por causa do Actualmente o Bairro Padre Cruz ocupa uma área
ambiente degradado das casas em que vivem. São alunos de 37 hectares onde estão implantados 1 041 edifícios, 2
que vivem na zona velha do bairro.” (Cristina Santos, 315 alojamentos (113 lotes), dos quais a grande maioria é
directora da escola até 2010-11) gerida pela Gebalis (2 119 fogos). Dos restantes, 196
fogos já são pertença de particulares tendo sido vendidos
VASOS DA CIDADANIA, UTENTES DO CENTRO DE DIA SCML,
BAIRRO PADRE CRUZ, 2010
A intervenção da Gebalis manifestava-se às famílias residentes(3).
claramente insuficiente e as críticas multiplicavam-se. As De acordo com os Censos de 2011, residiam no
preocupações relativas à requalificação do bairro de bairro 6 468 habitantes (o site oficial da Gebalis refere uma
alvenaria passaram a preencher os encontros do Grupo população de 7 871 habitantes em 2013), agrupados em
Comunitário. Esse, o “problema” o principal (e muitas 2048 famílias. Mantém-se ainda como o maior bairro da
vezes, único) assunto a debater. Será, pois, nesse sentido freguesia de Carnide (29% da população). Já sabemos que
que Roque Amaro – um dos fundadores do Grupo a população deste bairro reúne um número significativo de
Comunitário – apresenta uma perspectiva crítica: pessoas dependentes do Rendimento de Inserção Social
(14%, 296 processos de RSI e 901 beneficiários
“Neste momento há uma mudança radical. Hoje o grupo é abrangidos segundo dados da SCML).
preenchido pelos seus residentes que vão pôr os seus Em termos das características globais da
problemas e não necessariamente integrados nas população existe um ligeiro predomínio da população
associações que os representam. Vêm colocar o seu feminina (53,3%) e, em termos etários, o grupo com maior
problema pessoal – o Grupo Comunitário assume carácter expressão encontra-se em idade activa (dos 25 aos 64
mais populista que aparenta participação mas não é anos, 3 165 pessoas); depois os idosos (65 ou mais anos)

117
que correspondem a 1 242 residentes. no bairro novo. São coisas completamente diferentes. O
Segundo a Direcção de Acção Social Local Norte ideal é que não exista esta distinção de identidades. E se
da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, 105 famílias do calhar nunca houve nada que aproximasse, de facto, as
bairro com crianças e jovens estão em acompanhamento pessoas que chegaram das pessoas que já cá estavam. Ou
por situações de risco. Além disso, registam-se casos vice-versa. Era bom que houvesse estruturas, que
associados ao alcoolismo, toxicodependência…. houvesse dinâmicas, que houvesse formas de intervenção
Em termos das competências escolares, o perfil que as aproximasse e correlacionasse. O que é facto é que
da população confirma percursos escolares interrompidos ainda temos gente nova para um lado e gente do bairro
bem como precoces abandonos escolares atendendo às antigo para outro. E isso para mim não faz sentido. É GRAFITI NO "BAIRRO NOVO", 2010
elevadas percentagens de indivíduos com o 1º ciclo do claramente visível que ainda há uma identidade no bairro
ensino básico (40%), que não sabem ler nem escrever antigo que não existe no bairro novo mas o ideal é que
(23%) em contraste com o mínimo (1%) que possui curso relacionem identidades.” (Fernando d’Oliveira, morador)
superior. Ora, estes baixos níveis de escolaridade
confirmam a dificuldade em aceder a empregos Vimos que no “bairro de alvenaria” grande parte da
qualificados e com melhores níveis remuneratórios por população reside no local desde a sua fundação, mantêm-
parte desta população. se sólidas relações de vizinhança e de entreajuda, um
Contudo, será importante e fundamental elevado sentido de pertença para com o bairro ao ponto de
reconhecer que esta mesma população existem nele localizarmos a original “âncora identitária”, que fixou e
competências laborais e experiências profissionais sem o foi estruturando o tipo de relações e representações que
devido reconhecimento formal. Competências e prevalecem, ainda hoje. Porém, na actualidade este “bairro
capacitações que representam valores e valias para a antigo” acentua envelhecimento – da população e das
comunidade, são saberes-fazeres, técnicas e práticas habitações – abandono e acentuada degradação. Nesta
funcionais relacionadas com a agricultura, com diferentes parcela residem 770 famílias com elevada percentagem de
formas de apoio social relacionadas, muitas delas, com as idosos. E de idosos vulnerabilizados. É precisamente para
tais entreajudas de vizinhança extremamente valiosas (“a esta população que as condições de habitabilidade (interior
vizinha está fora e pede-me que lhe areje a casa”; “sempre e exterior às habitações) se revelam, dia-a-dia, mais
que vou lá abaixo ao mercado pergunto à vizinha se ela desadequadas. Muitos idosos vivem isolados em ruas
precisa de alguma coisa, porque ela não pode, descalcetadas, expostos a dificuldades, barreiras e perigos
coitadinha…”; “vou olhando pela mãe, agora que a filha vários.
está fora”; “tenho as chaves de todas as casas desta rua. Por sua vez, no “bairro novo” o desenvolvimento
As pessoas confiam muito em mim”…) Exemplos de das relações de vizinhança é condicionado – “Eu só sei que
solidariedades informais que percebemos social e ela, agora, mora para perto da escola… mas nunca lá fui
economicamente desvalorizadas. nem conto ir”; alheias e sem curiosidade sobre a
comunidade que reside no Bairro Padre Cruz – “eu para a
Os bairros do bairro – diálogos a construir parte velha, nunca vou… mas também dizem que aquilo
está tudo a cair”… A construção em altura levou ao
“Eu, para ali nunca vou…” isolamento de alguns idosos e pessoas com mobilidade
moradora reduzida, que vêem o acesso ao exterior muito limitado, em
particular nos casos de edifícios com elevadores avariados
“O bairro antigo tem uma identidade que não se encontra – “Isto não há meio de andar direito! Eu bem queria ter

118 FLOREIRA NO "BAIRRO NOVO", 2010


ficado num andar baixo… Já viu esta minha vida?!” por motivos de financiamento e da impossibilidade de
No que diz respeito às áreas de uso comum (as garantir os realojamentos no bairro durante o processo de
ruas, as praças, …) existe manutenção e cuidado na demolição/requalificação. Em 2010, Paulo Quaresma,
limpeza. Os espaços verdes, esses sim, estão muito desabafava:
cuidados. Contudo estes espaços públicos também
parecem “desamparados” de vivências, associados a “Enquanto não houver alguém que esclareça qual o
inseguranças, sobre os quais os moradores desenharam e caminho… neste momento não há caminho, outra vez.
mantêm fronteiras mentais. “Eu, para ali nunca vou, nem Sentimo-nos todos enganados. Afinal não há dinheiro para
B.º PADRE CRUZ, 2010 quero ir…” respondem, também, os “antigos”. a recuperação do bairro. Há dinheiro para fazer duas
Por outro lado, tal como sucede no bairro antigo, residências assistidas. E ponto final. Esta situação é
as formas de apropriação do espaço no bairro novo – de aflitiva. (…). É imoral o que se está a fazer.” (Paulo
torná-lo “seu” ou de “rejeitá-lo” – manifestam-se de modos Quaresma, ex-morador, presidente da JFC)
diversos: na manutenção e limpeza das fachadas e
espaços comuns de entrada nos edifícios, no cuidar das “O que se passava, para além das questões de
floreiras e dos espaços verdes ou nos gestos de vandalismo financiamento é que a agenda estava parada porque era
(graffitis desapropriados, vidros partidos, campainhas preciso achar, primeiro, uma solução para o realojamento.
estragadas, portas forçadas…) que, afinal, evidenciam as A CML já não dispunha de realojamentos como o PER e,
diferenças na relação construída e as diferentes por isso estávamos num impasse.” (Helena Roseta,
expressões de inserção/rejeição do território do bairro(4). vereadora).
Por outro lado é de referir que neste conjunto
urbano sobressai, recentemente, a animação do Centro Finalmente, em 2008-09 foi apresentado um
Cultural de Carnide (seja como auditório de cultura, desde estudo alternativo sob a responsabilidade da vereadora
2011, biblioteca, ou centro de dia e, creche da SCML). E Helena Roseta e os maiores bloqueios – em termos de
mesmo anteriormente, em ocasiões festivas, como é o garantias de financiamento – conseguiram ser
caso dos santos populares e apresentação das marchas ultrapassados. No âmbito da candidatura apresentada pela
populares, faz-se uso do amplo espaço exterior. E onde as Câmara Municipal de Lisboa ao programa "Política de
comunidades dos “dois bairros” convivem animadamente. Cidades – Parcerias para a Regeneração Urbana – Bairros
Críticos” com parcial financiamento pelo Quadro de
A requalificação do bairro de alvenaria – segundo Referência Estratégico Nacional (QREN), confirmou-se o
projecto e terceiro impasse novo plano de realojamento proposto e a demolição
integral – faseada – das habitações do bairro de
“Conseguimos a vitória que as pessoas fiquem no bairro. alvenaria(5). No seu total o calendário da obra poderá
Mas não podemos deixar de questionar prolongar-se além dos 10 anos e inclui 8 fases e subfases,
e colocar as coisas em cima da mesa” envolvendo a mesma área territorial, de 12 hectares.
Maria Vilar (ex-presidente da JFC, presidente da AMFC)
O actual projecto de requalificação – criar um “Bairro
Em 2007 António Costa (PS) foi eleito Presidente Integrado”
da CML e os pelouros da Habitação e Requalificação
Urbana ficaram a cargo da vereadora Helena Roseta. A Neste novo projecto as preocupações com a
proposta aprovada para a requalificação ficara suspensa sustentabilidade e a referência aos eco-bairros (6)

BUSTO DO PADRE CRUZ, 2010 119


(FOTOGRAFIA DE HUGO GUERRA)
apresentam-se sob o conceito de “Bairro Integrado”. Em Em síntese, “a operação de loteamento do Bairro Padre
paralelo, alguma informação e acompanhamento por parte Cruz prevê 960 novos fogos [inseridos em 22 lotes,
das populações residentes indiciam uma outra atitude de variando entre 4 a 6 pisos] dos quais, como se referiu, 770
parte a parte. Para isso terá o capital social comunitário são para realojamento dos actuais habitantes, destinando-
contribuído decisivamente – e o reconhecimento do bairro se os restantes 190 fogos a construção de habitação, em
enquanto espaço de raízes e de pertenças, de memórias venda livre com custos controlados, para descendentes
socialmente significativas, tem apelado a uma outra dos actuais moradores (…).”
atenção na intervenção urbanística, conforme veremos.
Verifica-se diferença na concepção, planeamento e Sem possuir elementos que permitam aferir da
linguagem com que se apresenta e defende este novo real possibilidade de concretização deste “Bairro
projecto (disponível em site da CML): Integrado” não deixa de ser significativa a referência a
preocupações ambientais e sociais anteriormente
“Apesar de já ter sido elaborada uma primeira solução arredadas dos momentos de concepção e de planeamento
urbanística, aprovada em Março de 2007 (…) Decorrente urbano. Em termos do conceito de “Bairro Integrado”, fica
das necessidades e dos desafios lançados no sentido de referido:
reduzir os impactes ambientais provocados pelo
desenvolvimento das áreas urbanas, e tendo em conta a “Assim, é proposto um novo conceito baseado na
oportunidade associada à dimensão desta intervenção, sustentabilidade aliada à requalificação do tecido urbano,
surgiu o conceito de criação de um Bairro Integrado, com também associado à implementação de uma diversidade
forte preocupações sociais e ambientais, fruto das mais social que elimine a imagem negativa associada aos
prementes exigências locais, procurando promover um Bairros de Realojamento.(…) Tendo em conta, a situação
urbanismo sustentável e manter o equilíbrio entre o meio particular desta operação, o seu carácter profundamente
ambiente e as comunidades humanas.” associado à regeneração urbana e a considerável
dimensão que esta área de intervenção assume no tecido
Em termos globais a proposta apresenta-se, sem da cidade de Lisboa, este bairro manifesta-se numa
dúvida, abrangente, multifacetada e desafiante e incorpora excepcional oportunidade para o desenvolvimento de um
novos conceitos: projecto impar, integrado no tema “Sustentabilidade
Territorial”.
“Propõe-se uma Estratégia Integrada de Qualificação do
Bairro Padre Cruz a qual inclui a reconversão urbanística e E, neste contexto de “Sustentabilidade Territorial”
ambiental do Bairro de Alvenaria, através da demolição alistaram-se preocupações que transcrevemos:
total do edificado aí existente, o realojamento dos
residentes em construções dignas, a criação de uma “O presente projecto de loteamento introduz princípios de
adequada rede de equipamentos, a infraestruturação total intervenção fortemente humanizados, de forma a
da área de intervenção, com criação de um espaço público promover um bairro claramente integrado, incentivando a
qualificado, dotado de espaços verdes e de utilização prática da sociabilidade, no reforço da identidade
colectiva, que proporcionem áreas de vivência comunitária comunitária, propondo um novo conceito caracterizado
e de animação social, num quadro de sustentabilidade pelos seguintes aspectos:
ambiental.” - A criação de um Bairro Social e Ambientalmente
Sustentável, que constitua uma referência de integração

120
urbana e social, na cidade, e na comunidade;(…) venham a ser mantidos (foi-nos dito) fica por aferir, no
- Adequação da intervenção às expectativas e concreto, o reconhecimento das memórias e anteriores
necessidades dos moradores, promovendo o convivências.
a c o m p a n h a m e n to d o p r o c e s s o n u m a b a s e d e Por outro lado, conforme transcrevemos, este
proximidade, diálogo (participação) e incorporação de projecto pressupõe fortes “princípios humanizados”. Será,
propostas; (…) pois, com particular interesse e atenção que deverão ser
- Promover a diversidade tipológica do edificado, de forma acompanhadas as reocupações destes novos fogos através
a potenciar uma maior diversidade social por um lado, e de compromissos que devem envolver o trabalho com a
por outro a anular monotonia visual que poderá comunidade. E que, por isso, será particularmente exigente
comprometer a relação identitária do residente com a sua no apoio social, de forma a permitir as tão fundamentais
habitação.” regenerações do tecido social do bairro e contrariar
A finalizar esclarece-se que “o edificado que se propõe na guetizações.
nova zona urbana, pretende entender este bairro como um Também será válido reforçar que um “bairro
só, consolidando o seu conjunto global, com a adopção integrado” só parece fazer sentido quando integra de facto
dos projectos às características locais e com a criação de – positiva e criativamente – os vários recursos disponíveis.
espaços públicos estruturantes e agregadores das diversas Qual a amplitude e possibilidade de os
dinâmicas urbanas.” moradores/agregados familiares serem, realmente,
parceiros de voz e de acção neste processo de
A proposta de “Bairro Integrado” assente em realojamentos?
dinâmicas de “Sustentabilidade Territorial” resulta na Além de tudo isto expõe-se aqui matéria
maqueta da imagem ao lado. riquíssima para aferir do diálogo a estabelecer entre o novo
edificado e as vivências comuns procurando apurar em que
Não sendo este o momento nem o espaço medida a(s) comunidade(s) (e, dentro dela, os moradores)
oportunos para aferir da integração dos princípios e conseguirá reapropriar-se positivamente deste diferente
preocupações que temos vindo a assinalar existem, porém, cenário urbano (?) Quando poderão reavê-lo e revivê-lo
PROPOSTA DE REQUALIFICAÇÃO DO BAIRRO PADRE CRUZ
alguns pontos a relevar. Ficou referido que a concepção e o como “o nosso bairro”?
ZONA DE ALVENARIA, VISTA NASCENTE
planeamento do actual projecto foram anteriores a este
trabalho de recolha de memórias e das vivências locais. O GABIP e o pioneirismo do Bairro Padre Cruz
Fica pois por saber quanto do reconhecimento do valor da
memória e do património local – reconhecidos como “O GABIP é a chave de todo este processo.”
princípios orientadores a ter em conta no processo de Helena Roseta (vereadora, CML)
requalificação – está realmente inscrito nesta maqueta de
projecto que surpreende a vários níveis. "Até agora o realojamento foi um processo de mudar as
A primeira surpresa resulta do desenho que, afinal, pessoas de tijolos maus para tijolos bons.
se aproxima do “bairro novo” ou “bairro dos blocos Mas de facto nunca houve um trabalho de
coloridos”. Um bairro que constatámos ser menos acompanhamento que fazia falta, fazia muita falta…"
facilitador das sociabilidades locais, das redes de Isabel Santana (Acção Social, CML)
vizinhança e que resultou – tal como este, agora, resultará
– de uma demarcação relativamente à memória visual do Em Março de 2009 fora criado o GAPUR – um
bairro antigo. Muito embora alguns nomes das ruas dos rios grupo de trabalho de acompanhamento, no terreno, aos

121
complicados processos de realojamento por iniciativa da Bairro Padre Cruz é pioneiro.” (Isabel Santana, Acção
vereadora Ana Sara Brito (despacho de 81/P/2009). Social, CML)
Porém, na prática, constatou-se que esse grupo não reunia
condições para operar devidamente na medida em que não Neste contexto, após atentos e demorados
incluía os principais intervenientes locais, as tais “forças estudos e conversações conseguiu-se avançar com uma
vivas”: associação de moradores e representantes da solução integrada muito cuidadosa e “artesanalmente”
autarquia. complexa que garante três pontos fundamentais): 1.
durante as várias fases do processo de requalificação os
”A criação do Gapur não foi muito bem recebida por parte moradores serão realojados – provisória ou
dos parceiros locais. Era tudo centralizado nos serviços e definitivamente, conforme pretenderem – dentro do bairro;
não havia articulações estreita nem parcerias nem partilha 2. todos os moradores a realojar visitam a casa que lhes foi
de informações e conhecimento com os parceiros atribuída para confirmar a adequação da casa que lhes foi
envolvidos… Ocorreram impasses e conflitos em vários destinada; 3. todos os moradores que assim o desejarem
momentos porque não houve convergência de interesses ficarão a residir no bairro após concluídas as obra.
nem mobilização por parte das instituições locais (a JF e as
associações locais o facto de os moradores oferecerem “Deste processo destaco como método de trabalho o
resistência aos serviços.“ (Isabel Santana, Acção Social, realojamento faseado por pequenos grupos de famílias.
CML) Primeiro 44 e, depois, 60 famílias. Antes de começar o
processo são explicados os critérios para os realojamentos
Posteriormente foi criado o GABIP (7) – uma nova e criou-se uma estrutura – o GABIP (…) cuja comissão
estrutura de trabalho mais abrangente que “será a chave executiva inclui a participação da Junta de Freguesia e da
de todo este processo” nas palavras de Helena Roseta. Associação de Moradores… e que tem sido a chave de todo
este processo. Reunimo-nos de 15 em 15 dias, são
“Aliás, o GABIP (gabinete de apoio ao processo de estudados os casos das famílias, caso a caso, as
requalificação do Bairro Padre Cruz/ bairro de intervenção características de cada situação, as propostas de
prioritária) é expressão de um novo paradigma. O GABIP realojamento que podem ser feitas. Entretanto fomos CERIMÓNIA DE ENTREGA DAS PRIMEIRAS 7 CHAVES,
FEVEREIRO 2011
tem seis elementos, comissão executiva, e tem sido um descobrindo fogos devolutos aqui no bairro que, com
processo muito mais positivo. Objectivos políticos e pequenas obras de reabilitação servem para acolher estes
objectivos técnicos não andam a par e passo. Há realojamentos. Tudo isto tem sido um trabalho de grande
tramitações e procedimentos técnicos que são mais minúcia, artesanal, de grande respeito pelas
morosos mas são fundamentais para validar os processos características de cada família, olhando caso a caso… Há
de modo justo e transparente. Pela primeira vez temos um sempre situações mais difíceis, mas penso que é um
processo de realojamento acompanhado por todos os trabalho exemplar. Exemplar, do realojamento que temos
parceiros. Isso permite ganhar confiança e credibilidade hoje em Lisboa, e que são muito diferentes dos que
junto dos moradores, ganhar credibilidade dos técnicos, tivemos no passado… Este processo é pioneiro no sentido
facilita os processos… metodologias muito participativas, do respeito e da participação das pessoas. Não é que isso
audiências individuais com cada uma das famílias… É um não devesse existir no passado… mas entende-se aqui que
processo muito moroso, mas também muito mais próximo o ritmo do processo tem que respeitar o ritmo das
e justo. Claro que existem entraves que nos ultrapassam. mudanças das famílias…” (Helena Roseta, vereadora da
Com o Bairro Padre Cruz aconteceu o primeiro GABIP. O Habitação, CML)

122
“Existem dois paradigmas: antes e depois da vereadora modelo de realojamento mais participado. A vereadora e o
Helena Roseta. Até agora o realojamento foi um processo director sabem tanto acerca da situação de cada família
de mudar as pessoas de tijolos maus para tijolos bons. Mas como o próprio técnico. Há muito mais informação a
de facto nunca houve um trabalho de acompanhamento circular e isso é facilitador dos procedimentos e decisões a
que fazia falta, fazia muita falta… Agora é muito mais tomar.(…) Compreendemos que não podemos desapossar
dialogante, mais articulada e próxima… e o GABIP é as pessoas de qualquer modo de situações e realidades
expressão desse novo paradigma. É um novo modelo de nas quais vivem há mais de 40 anos… Só assim, com
trabalho que tem o seu tempo. O tempo das instituições acompanhamento, é que faz sentido o processo de
não é o tempo das pessoas. (…) É, de facto, um novo realojamento.” (Isabel Santana, Acção Social, CML)
modelo e esperamos que as pessoas percebem o produto
final e todo o trabalho que está ali, até ao momento da Nesta fase, para além da necessidade de um
entrega de chaves… que se realiza nos Paços do Conselho acompanhamento humanamente atento e criterioso, é
– é outra novidade deste forma de trabalhar: uma permanente a preocupação em manter a população
cerimónia com outro significado, um momento com uma informada. A Câmara Municipal de Lisboa fez circular o
dignidade própria… Mostrar um direito que também é folheto “revitalizar bairro padre Cruz” e a Junta de
responsabilizante.” (Isabel Santana, Acção Social, CML) Freguesia, no respectivo Boletim de edição mensal,
noticiam os principais momentos deste processo de
O contributo do capital social comunitário requalificação. É de reconhecimento unânime o desabafo
de Elisete Andrade, actual presidente da Associação de
“Juntos vamos começar a construir um novo bairro.” Moradores:
Paulo Quaresma (ex-morador, presidente JFC)
“Quando alguma coisa de mal acontece no bairro sai logo a
“Sim, o capital comunitário é muito importante. O bairro já notícia… agora sobre este processo de requalificação que
tinha uma estrutura comunitária montada. O próprio é complexo, moroso, um trabalho sério e atento … a forma
presidente da Junta de Freguesia foi morador e tem uma como se tem procedido e não haver uma única crítica…
MORADORES COLABORAM NA REABILITAÇÃO DAS CASAS experiência participativa. A presidente da Associação de Ora, isto tem alguma coisa que se lhe diga.”
Moradores também é uma peça fundamental porque
conhece as pessoas pelos nomes. E isso faz a diferença Sobre o processo de requalificação – o parecer dos
porque as pessoas não são números. Cada família é uma moradores
família. Além disso, montámos um sistema em que se
reconhece que existem critérios gerais de realojamento, “E o progresso só é progresso se respeitarmos a
mas cada bairro pode ter critérios especiais. E esses dignidade das pessoas.
critérios são definidos em função das populações Se não, não é progresso…”
concretas, idades, mobilidades…” (Helena Roseta, Elisete Andrade (moradora, presidente da AMBCP)
vereadora, CML)
Compreende-se que, por parte dos moradores,
“Este modelo de realojamento será aplicado nos outros não exista uma só e única posição perante o processo de
bairros ou em zonas que careçam de intervenção. Não requalificação(8). Conforme foi referido, cada caso é um
tenho dúvida que todo o trabalho já desenvolvido pela caso, e o modo como a população tem encarado a
Junta, pelas associações, motivou e inspirou a seguir um requalificação resulta, em grande parte, da resolução que é

123
encontrada para o seu agregado, em particular. Nas eles acabavam por ficar no habitat deles à mesma com
reuniões do GC que se mantêm como focos de jardim, com quintalinho…” (Teresa Guerra, moradora)
actualização da informação relativa ao processo, as vozes
dividem-se e os ânimos, por vezes, sobem de tom. “E creio que esta requalificação pode ser muito benéfica,
Situações que evidenciam a tensão, os receios e as até para a tal aproximação entre bairros, entre
dúvidas que, ainda assim, persistem entre a população. De mentalidades e costumes das pessoas. É evidente que
qualquer modo, e sem surpresa, parecem ser os residentes haverá aquela nostalgia do bairro antigo que
mais idosos e dependentes aqueles que manifestam desaparece…. Mas as pessoas estão cá, e a as pessoas é
maiores preocupações e os menos envelhecidos (e, logo, que irão ter que fazer o bairro. E pode ser que nessa altura
mais independentes e informados) os que mais facilmente se perceba que todas as pessoas têm que fazer o bairro - as
aceitam os compromissos longos com a requalificação. pessoas que estão cá há menos tempo e os que estão cá
há muito tempo. Uma estrutura de vida nova pode ser que
“Vejo com bons olhos as residências e vejo com bons olhos revitalize um bocado o bairro. Não tenho medo das
as primeiras alterações começarem por aí… Porque serão transformações do futuro. É uma oportunidade para o
as pessoas que mais vão sofrer com isto. Porque, para bairro nascer outra vez.” (Fernando d’Oliveira, morador)
além do ficar muito bonito, há pessoas que vão morrer com
o morrer do bairro porque isto é o bairro delas. “Apesar de estarem cansados do estado de degradação do
É aqui que se divide um bocadinho… foi ali que tudo bairro velho, as pessoas sentem-se fortemente ligadas a
aconteceu. A vida deles está aqui. Neste cantinho. Nesta ele. E têm algum receio da mudança, o novo tipo de
ilhazinha… Há 50 anos, é uma vida inteira. Vão sofrer com construção, um modo de estar diferente, mais um tipo de
a queda da casa deles. Por isso, é preciso ter muito prateleira…. As pessoas estão habituadas a estar na sua
cuidado com estas mudanças pois a casa pode estar muito casinha, a paredes meias com alguém, com muito espaço
estragada e a meter água, com poucas condições… mas exterior… e por isso estão relutantes em relação à
foi ali que se construiu uma vida e essa vida cai ao chão. mudança mas também expectantes.” (Albertina Lopes, ex-
Portanto, é preciso um acompanhamento, um cuidado moradora, funcionária do Centro de Dia da SCML)
muito especial…” (Mário Guerra, ex-morador) RUAS DO BAIRRO ANTIGO, NA ACTUALIDADE
“Vejo com bons olhos a requalificação. Mas ainda não
“Foi muito difícil às pessoas de mais idade aceitarem. Mas sabemos a que preço, com que custos… qual o custo de
quando se começou a pensar nisso, foi bem estruturado, construção não sabemos quanto é que as pessoas irão
bem pensado e bem explicado às pessoas que as pessoas pagar, e não se falou numa política clara do que vai
aceitaram… Só que com esta demora toda, este faz e não acontecer… Agora já se ouve dizer que o bairro vai estar em
faz, as pessoas estão a criar uma revolta. E estão a sentir- obras durante 15 ou 20 anos… e isto é inaceitável para
se mesmo abandonadas porque, entretanto, foi um mim. Um bairro como este, que é fechado sobre si mesmo
emparedar de casas à doida. Existem ruas onde só vivem não pode estar à espera com obras durante quinze ou vinte
duas ou três pessoas… As pessoas sentem-se inseguras, anos. Isso é inadmissível! Os Grupos Comunitários têm que
revoltadas e vivem no meio da lixeira… Este ser grupos de pressão… Preocupam-me as obras, com
desacompanhamento ocorre quando nasce o bairro novo e este trânsito, o caos que vai ficar… Por vezes, parece-me
já lá vão mais de 15 anos… Eu acho que estas casas que as pessoas que estão a tomar decisões não sabem o
pequeninas conseguiam-se recuperar e isso, para idosos, que estão a decidir…” (José Martins, morador)
dava muito jeito porque não são grandes de tamanho e

124
“Actualmente é inevitável a requalificação. Porque aquilo “O nosso ponto forte decorre do facto de trabalharmos no
que o Bairro precisa é muita coisa. Muita coisa! Urgente local, directamente com as pessoas. Conhecemos o bairro,
preparação das pessoas para as novas situações… É uma as famílias, fazemos visitas constantes de
obra prevista para 10 anos – e isso tem muitas acompanhamento… A proximidade é muito importante em
consequências. Importante é a contribuição desse Grupo termos de relações e de visibilidade que se cria sobre as
de Acompanhamento com reuniões regulares de 15 em 15 situações e os problemas. Nós, aqui, conseguimos
dias. Nós (Associação de Moradores) fazemos parte desse conversar e fazer propostas. Porque também é disso que se
Grupo e é urgente começar a preparar e a formar cidadãos trata. (…) Cada vez mais as pessoas têm compreendido
B.º PADRE CRUZ, 2010 para as contingências todas… Os mais novos terão mais que a via do diálogo é a melhor solução. Temos muitos
capacidade de alterações e de mudança mas têm que parceiros aqui no bairro. É dos bairros que conta com mais
estar preparados para ajudar os mais velhos nesse parceiros, felizmente… a Associação de Moradores, a
processo todo (…) Há coisas que a gente intui e deseja, Junta de Freguesia, a Lua Cheia, a Santa Casa, o Futebol
outras que não sabe como vão acontecer. Mas há de Rua, E contamos sempre com todos.” (Helena Gomes,
características e valores que era importante preservar (…). técnica)
Mas mesmo assim, eu acho que o que vai surgir será muito
diferente do que está agora. Mesmo muito diferente. E a “Existe também o problema de acabar por se dar mais
memória do “antes” é algo a preservar… Também há muita visibilidade, por parte das pessoas, ao que não corre tão
gente que tem pombais, levam os pombos a concurso, mas bem ou aquilo que não vai ao encontro das suas
isto não pode ficar dentro dos bairros nem das habitações, expectativas. Existe todo um trabalho que é feito, muito
mas têm que ser criados espaços próprios. (…) Isto tem boas soluções que são encontradas, mas que nenhum
que ser muito bem estudado porque por um lado há morador vai ao Grupo Comunitário elogiar. O ponto fraco
relações de vizinhança que as pessoas querem manter ou pode ser, precisamente, o facto de não se publicitar
não. O Grupo de Apoio tem que pensar muito bem todas devidamente o trabalho conseguido, as soluções
estas situações para que se consiga dar a melhor encontradas.” (Cláudia Rocha, técnica)
resposta…” (Elisete Andrade, moradora e presidente da
POMBAL NO "BAIRRO ANTIGO", 2010
AMBCP) Relativamente ao tempo e faseamento previstos
(FOTOGRAFIA DE HUGO GUERRA)
para a requalificação, Helena Gomes refere que “Esta
O futuro do Bairro Padre Cruz e os (novos) situação, para além dos estados de perturbação,
compromissos da Gebalis vulnerabilidade e insegurança que provocam (quando é
que a minha casa vai abaixo? para onde vou?) acaba por
O calendário faseado, a dimensão, complexidade desobrigar os moradores de investir na sua casa, na sua
e consequências do processo de requalificação envolvem rua, no seu bairro... Esse é um processo evolutivo que tem
muito directamente a população residente mas também as tido várias fases… Agora as coisas têm avançado. A nossa
instituições locais. Atendendo ao enorme desafio que tem preocupação passa pela integração do bairro na cidade de
pela frente e às novas exigências para que é convocada, a Lisboa, a integração das pessoas, este gostar de estar no
Gebalis, enquanto empresa gestora do bairro em bairro, de aqui morar, a capacitação dos próprios
representação da CML, terá que multiplicar, aperfeiçoar, moradores para colaborarem com este trabalho de modo a
capacitar e sensibilizar o trabalho de acompanhamento no contribuírem para uma maior integração para todos. Isto
terreno. Importa firmar “pontos fortes” e corrigir tem muito que ver com tudo o que fazemos, e de criar e
eficazmente os “pontos fracos”. estimular um sentido de pertença ao bairro, de autonomia,

125
criar capacitação, criar estruturas… de dignificação. Nós taxas de insucesso e de abandono escolar precoce. Foi
somos gestores de um património da Câmara. através das palavras de quem acompanhou este processo
na sua origem, que escutámos:
É fundamental apostar na boa comunicação entre
as populações realojadas e a entidade responsável pela “Começámos esse primeiro ano, de 2001, com imensas
gestão do bairro, a Gebalis. Há que insistir na consolidação dificuldades. Todo o bairro era em terra batida, não havia
criativa de todo o tipo de estratégias e de acções em jardins em parte alguma e projectámos os nossos jardins e
conjunto com a comunidade para que se promova um mais a nossa humanização da escola. Percebemos que a
positivo sentido de pertença, e de responsabilidade pelo população escolar era de muitos fracos recursos
bairro. Relembremos: “A partir do momento em que uma económicos e culturais. Tivemos conhecimento que as
comunidade tem orgulho no seu bairro, o bairro está salvo.” casas que habitavam eram sem gestão, desarrumadas… e
(Helena Roseta, vereadora, CML) então planeámos um projecto educativo que apelasse a
uma gestão humanizada dos espaços. Aproveitar os
Outros equipamentos centrais na vida do bairro espaços físicos – os corredores, as entradas – e colocar
todas as artes feitas pelos alunos. Ter sempre exposições
Porque este é um processo de requalificação permanentes. E chamar os pais à escola, convidá-los a
integrada, todos os equipamentos estão, de uma forma ou visitar o novo espaço.
de outras, envolvidos na requalificação do bairro que No início, o que ouvia dos pais é que esta era uma escola
passa, necessariamente pelas relações do bairro com a branca que iria ser pintada de negro. Foram estas primeiras
cidade. A questão central que se coloca, hoje, no palavras que ouvi destas famílias, numa reunião. A escola
funcionamento dos vários equipamentos do Bairro Padre abriu em Setembro de 2002 e afirmei que esta escola
Cruz prende-se, precisamente, com a articulação manteria a sua cor.
interior/exterior quer seja dentro do bairro, quer seja entre o Nos primeiros 3 meses, verifiquei que nós com tanto
bairro e a cidade. Tome-se o exemplo: a escola quer dar-se trabalho na organização, na arrumação do espaço, das
a conhecer e ser reconhecida no contexto da comunidade, salas, organização internamente… não conseguíamos
do bairro; a biblioteca procura trabalhar no sentido de abrir conviver internamente sem abrir a escola ao meio porque VISTA DA "ESCOLA BRANCA", 2010
os horizontes da comunidade a outras realidades e cada aluno que vinha para cá trazia um problema. Vinham
contextos sociais, contrariar o fechamento na tal “ilha” de escorraçados de outros locais, de outros meios. De
cultura(s). Telheiras voltavam com repetências. Em Janeiro pedimos
ajuda ao Instituto do Apoio à Criança.(…) Todos os anos
O papel da escola: “valorizar a escola na comunidade” chegam professores novos e todos os anos temos
O papel da escola no bairro mereceria, por si só, professores que têm que sentir e conhecer - “viver o bairro”
uma outra pesquisa. Compreende-se que desde os - e isso também não é fácil.
primeiros tempos – da escola primária dos pátios divididos A instalação da escola no bairro também se deveu a muita
para o jogo da bola e do elástico – muitas mudanças pressão política. (…) Hoje, nós só temos alunos do bairro
ocorreram. E, todas elas se reflectiram na dinâmica porque a escola não tem capacidade para mais.(…) Parar
escolar. No momento presente o que mais importa aqui, nesta escola, é condenar ao fracasso. A escola tem
destacar é o investimento numa escola de segundo e que ter projectos, tem que estar humanizada, com espaço
terceiro ciclos instalada dentro do bairro com objectivo de a g r a d á v e i s , s o f á s , p l a n t a s … Tu d o i s t o é u m a
contrariar dois problemas profundos desta comunidade: as aprendizagem. E a escola ainda está branquinha! Temos

126
desenvolvido um trabalho para valorizar o papel da escola desenvolve um serviço informado e muito cúmplice. Foi
na comunidade. É muito importante que a escola seja através das palavras da responsável, Natália Amorim, que
reconhecida pela comunidade e fortalecer positivamente recolhemos um valioso e lúcido testemunho, sobre os
esses laços. A escola tem um papel fundamental na vida do principais problemas e valias do bairro.
bairro, e trazer os pais à escola é das coisas mais difíceis.”
“A biblioteca foi inaugurada em 1996 e é herdeira da
A partir do ano lectivo de 2010-11 o agrupamento biblioteca de Carnide. Que era a biblioteca situada nas
de escolas do bairro passou a ser presidido pelo professor instalações do salão de festas. Mais tarde, arranjaram
António Almendra(9). Tivemos conhecimento que o projecto estas instalações e passaram para este edifício. Esta
escolar prossegue com vista a consolidar as parcerias biblioteca funciona muito aqui no bairro para o bairro. É
institucionais, a contrariar as taxas elevadas de insucesso e muito diferente de outras experiências que tenho
de abandono escolar. Contudo, mantém-se o problema do conhecido. É muito raro termos utentes que não sejam
afastamento e desinteresse das famílias relativamente à residentes. Este ano foi um ano de observação das
escola como um grande desafio a vencer. dinâmicas, do que se espera aqui de uma biblioteca. E o
Em resposta a anteriores pressões dos moradores que a biblioteca pode oferecer.
e solicitação da Junta de Freguesia, foi construída e Este bairro não é uma zona aberta. É um bairro muito
inaugurada em Setembro de 2010 a nova escola EB 1, fechado sobre si mesmo. (...) Têm um território cultural
Aida Vieira. A escola recebeu o nome de uma professora muito vincado que vive muito dessa tradição bairrista
primária do bairro prematuramente falecida em 2008. geograficamente limitada e que os fecha ou inibe à procura
Contudo, após um curto tempo de utilização esta escola foi de novidade… A novidade é uma ameaça. O Bairro Padre
sujeita a remodelações e reparações atendendo às Cruz tem características de conservador. A mudança não é
diferenças entre o edifício projectado e o edifício bem vista. O que não deixa de ser curioso porque é um
construído, para além de problemas no uso e colocação de bairro exposto à mudança e fruto dessa mudança porque
alguns materiais. Referimos esta nota porque, uma vez foi um bairro que acolheu pessoas vindas de outros sítios e
mais, o plenário do GC e a voz dos moradores, poderia ser um campo fecundo para adaptação a novas
designadamente da Associação de Pais, tiveram que se situações… mas acho que não.
manifestar para a resolução dos problemas. É um bairro com história porque há aqui gente que mora há
muito tempo. Mas é curiosa a junção destas duas
Biblioteca Municipal Natália Correia – estimular situações – a da existência de uma tradição com
literacias, criar oportunidades moradores que têm história no bairro com experiência no
A Biblioteca Natália Correia está integrada na rede bairro de 40 ou 50 mais anos – e, depois, a experiência de
das Bibliotecas municipais de Lisboa e, sem dúvida outras pessoas que vieram de outras partes da cidade,
alguma, que tem conseguido impor-se como um suporte muito mais recentemente. Há, de facto, um bairro novo e
fundamental para os residentes, os quais representam a um bairro antigo. Os nossos utentes leitores são pessoas
maior parte dos utilizadores. Ficou distante o tempo em residentes no bairro há mais tempo. Temos utilizadores do
que a Biblioteca representava “estranheza” e ameaça. bairro novo mas que usam outros recursos que não os
Hoje é muito procurada pelos jovens, sobretudo. De referir livros. A biblioteca tem 1348 leitores. A esmagadora
a presença e o bom acompanhamento por parte de um maioria são residentes no bairro.
pessoal técnico que, em alguns casos, sendo morador do Esta biblioteca tem alguma estratégia, não serviu “apenas”
bairro, disso consegue tirar vantagens e, no seu conjunto, para estender a rede. (…) As pessoas, aqui, marcam um

127
território muito mais restrito e muito pouca mobilidade em bairro, mas nós temos uma responsabilidade de natureza
termos de procuras culturais em outros locais da cidade. E social. Quando cheguei ao bairro, fui bem acolhida. Sinto
a abertura da biblioteca tem que ver, precisamente, com que a SCML é uma instituição que é valorizada pela
isso – a promoção da oferta em locais que podem estar população que sente que pode confiar e contar com o
mais fragilizados, a oferta de serviços de proximidade com apoio nos momentos de maior vulnerabilidade… os idosos
organismos que tenham que ver com a educação, com a sabem isso. O grande problema transversal é a precaridade
cultura, com o livro…(…) É fundamental investir na socioeconómica… e num momento de crise estas
desconstrução da imagem negativa da cultura letrada que populações sofrem um maior impacto.
ameaça, que os fragiliza… e por isso há muitas estratégias Este polivalente tem várias valências – creche, fechou o
que os atiram para a vida prática e eles acabam por nem jardim-de-infância, animação socioeducativa de jovens
saber ler… Todos projectos têm que considerar as pessoas. pré-adolescentes uma faixa etária (10-13 anos); espaço
A história tem que ter algum encanto na vida de uma de inclusão digital, sala de inclusão das TIC’s – onde têm
criança… É isso é que põe uma criança a ler.” (Natália sido desenvolvidos projectos internos. Dispõe de um centro
Amorim, bibliotecária, no bairro de 2010-12) de dia para 80 idosos; serviço de apoio domiciliário para 60
idosos e o apoio domiciliário integrado que é uma
Centro Social Polivalente do Bairro Padre Cruz – um intervenção conjunta entre acção social e saúde. (…) É um
suporte continuado da SCML centro grande. Todas as valências estão praticamente
A presença da SCML no Bairro Padre Cruz tem preenchidas.
longa história conforme vimos em fases anteriores e Era importante que as populações dos dois bairros
também mereceria capítulo próprio. Não sendo possível, interagissem mais pois o desenvolvimento do bairro só tem
faremos uma breve referência ao conjunto das valências a ganhar com isso… e capacitar as pessoas para que elas
oferecidas à população e um pouco do contexto de também sejam parte integrante da solução. A participação
intervenção no terreno pela voz de Sofia Júdice, directora é algo muito importante, e eu gostaria de apoiar esta
responsável pelo Polivalente: comunidade no sentido de a envolver na dinâmica do
bairro. A função de uma instituição como a SCML é
“O Bairro Padre Cruz é um bairro agradável quando se também muito agregador, de catalisador dessa ENTRADA DO POLIVALENTE, SCML, 2010
entra do ponto de vista urbanístico e de arquitectura… as participação.” (Sofia Júdice, Directora do Polivalente da
ruas são espaçosas, estão limpas e os edifícios estão SCML, 2011-12)
conservados. Pelo menos, por fora, o que se vê. É um
impacto positivo. Tem espaços verdes bem tratados e bem “As relações que estabelecem aqui têm que ver muito com
conservados. De alguma forma fui conhecendo melhor a as relações de vizinhança – o bom e o mau. Já houve
zona mais antiga porque é aí que vive a maior parte da alguns conflitos mas resolveram-se… mas como aqui a
população idosa e é aquela que mais acompanhamos. sala é grande, as pessoas posicionam-se de modo a
Percebe-se que existe uma relação de proximidade com o defenderem-se, a fazerem as suas triagens com quem se
espaço e com a rua. Uma relação próxima com os vizinhos. querem dar… Há idosos muito solitários, muito sozinhos.
Tem uma dinâmica muito própria de solidariedade, de As famílias não têm capacidade para dar apoio afectivo e
entreajuda… mas também vejo que acontecem um pouco efectivo a estes idosos. A Misericórdia, apesar de algumas
na zona nova… Essas relações facilitam muito a nossa críticas que possa haver, tem sido uma instituição
actuação no bairro, a sinalização das pessoas mais fundamental no apoio a este bairro.” (Albertina Lopes, ex-
complicadas. Todas as instituições são fundamentais no moradora e funcionária da SCML)

128
A paróquia: reconquistar relação com a comunidade actividades da Associação Nacional de Futebol de Rua e
“O meu esforço nestes últimos anos tem sido o de tentar Lua Cheia – Teatro para Todos, atendendo a que sintetizam
que a paróquia seja interventiva e que seja uma paróquia um conjunto de problemáticas comuns às várias
de relação – que não funcione de forma isolada nem associações e acrescentam informação sobre os novos
fechada relativamente às outras instituições que existem “vizinhos”, frequentemente ignorada pela comunidade
aqui no bairro. Nós não somos ‘coisas’ à parte, somos uma mais antiga do bairro. É material para reflexão.
parte integrante da própria vida do bairro, com
especificidade própria como cada um, mas existimos em Associação Nacional de Futebol de Rua – a bola
PROGRAMA DOS 50 ANOS DA IGREJA DO BAIRRO, 2012 relação. E isso tem sido, de facto, nos últimos anos um sempre pr’a frente!
desafio muito grande: tentar restituir à comunidade o papel “A Associação Nacional de Futebol de Rua foi fundada em
da paróquia. Não é só no Bairro Padre Cruz a perda da 2007 e tem que ver com a percepção de que uma
influência da religião. Também terá a ver com a forma como modalidade desportiva – por exemplo, o futebol – pode ter
somos educados – com outros atractivos, mais de um papel fundamental na inclusão social.(…) Propusemos
momentos, fruições de momento. São soluções para o à Junta uma parceria que foi logo aceite. O bairro reunia
imediato enquanto a religião é algo de continuidade e estas características propícias ao que queríamos implementar:
ofertas satisfazem mais rapidamente, viradas para o grandes zonas de espaços públicos, muitos jovens,
momento imediato.” (Fernando d’Oliveira, morador) tradição de jogarem à bola com bolas de trapos, hábitos de
apropriação da rua como espaço lúdico, zonas vedadas ao
O associativismo no bairro – novos parceiros trânsito, este bairro tem mais jardins do que é habitual; tem
também grandes largos e planos entre os prédios, ideais
A diversificação dos equipamentos, para praticar o futebol de rua… A Gebalis também é
estabelecimentos comerciais e coletividades existentes no parceira neste projecto.
Bairro Padre Cruz são muito importantes para a dinâmica Havia essa prática de um modo espontâneo, informal…
da comunidade funcionando como elementos agregadores por outro lado havia uma leitura um pouco estigmatizante
e espaços de encontro – o café da Amália, por exemplo, já é da cidade relativamente a este bairro e pensámos que era
outra referência positiva no “bairro novo”. uma área com potencial para a nossa intervenção. Seria
Durante esta década surgiram novos pontos de uma ferramenta de trabalho a privilegiar… Começámos por
comércio, serviços e actividades diversas. Às actividades organizar campeonatos ao longo de quatro anos e
desportivas e recreativas já existentes, acrescentaram-se percebemos que também era possível levar jovens destes
outras com uma nova atitude associativa: desde as mais bairros a torneios. Percebemos que, durante estes anos, os
radicais (Azimute, em 2001) o futebol de rua (pela jovens que formámos integraram-se, mudaram os seus
Associação Nacional de Futebol de Rua, em 2007) e comportamentos, a sua motivação, a melhoria de
diversificadas como o teatro de contadores de histórias autoestima; perceberam que havia mundos alternativos
(Lua Cheia, em 2009), ao Taeckwonduo, atelier de música onde eles também tinham o seu lugar… Mudámos
e ginástica de manutenção (dinamizadas pela Associação percursos: pessoas com problemas de toxicodependência,
de Moradores), entre outras … como SOS Racismo, WACT alcoolismo passaram a investir na sua recuperação (…)
e as mais recentemente sediadas no espaço JuntArte (para Existem quatro clubes mas existe ainda uma quantidade de
além da Azimute Radical, Ginga Brasil, Umbigo Teatro e moradores disponível para outras modalidades, menos
Vicenteatro…) ( 1 0 ) . Apesar da recolha dos vários formais (…) Então é esse futebol de rua que nós queremos
depoimentos, ricos e diversos, daremos como exemplo as agarrar, esse futebol que nasce de modo informal, entre

129
amigos, vizinhos… na produção de espectáculos de teatro de marionetas. E
No início não tínhamos nada, começámos a jogar na nas duas personagens que são o rosto da companhia –
pedra; depois, formos marcando um campo, organizando Maria João Trindade e Ana Enes. Desde 2009 que a Lua
torneios… a ideia seria ter um campo nosso (…) Cheia anima o ESPAÇO LUA CHEIA onde têm desenvolvido
Percebemos que há uma ruptura entre esta e a zona mais várias actividades, com especial relevo para as “Noites de
antiga do bairro (…) Verificámos que as famílias são muito Lua Cheia” onde o “luar da palavra” ilumina as estórias e os
distantes dos filhos, que acumulam dois e três empregos ambientes acompanhados pelo bom convívio entre chá e
para subsistir, que passam muito pouco tempo com os bolinhos, no final.
filhos… e que os que cá estão são os desempregados,
reformados, rendimento mínimo com uma série de “No momento em que se abre as portas à comunidade e
desinvestimentos acumulados… percebem que fazemos atividades com e para os miúdos –
Fizemos uma formação com uma série de parceiros e que os miúdos vêm e gostam – então já ganhaste
durante um mês – veio também a associação de pais da respeito, já conquistaste o teu espaço no bairro… Tem sido
Horta Nova – e a ideia era depois organizar o primeiro um trabalho muito porta a porta. Já tivemos muito público
torneio de futebol de rua. Durante dois meses todos mas temos que os ir chamar, lembrar. Mas tem havido uma
colaboraram (na organização, na arbitragem, nas comidas, sensibilização crescente. O número de presentes é muito
churrascaria…) e, nesse dia, foi verdadeiramente variável – se o tempo melhora vêm muito menos. Esta
comunitário…. O que falhou foi a presença dos pais dos comunidade é muito fechada. Aos poucos vamos
jovens que, uma vez mais, também não estavam. (…) Mas conseguindo… mas temos que ir devagarinho. A
a partir daí ficámos mais conhecidos e ganhámos a adaptação foi de parte a parte. O bairro tem muitas
confiança dos moradores. Publicitámos a nossa actividade actividades, mas a maior parte das pessoas nem sabem o
e começámos a ser chamados. E a nossa postura é que existe. Era importante haver um trabalho mais
também para que as parcerias melhorem aqui dentro. E concertado, mais actividades na rua que envolvessem a
neste momento o que está a acontecer é passar essa população. Porque estes jovens têm muita carência de
energia, consolidar as parcerias. Este é um dos bairros situações de interacção em padrões normais. É nessas
mais isolados da cidade. Apesar dos outros terem situações que lhes é dada a formação e a experiência que INICIATIVA DA ASSOCIAÇÃO "FUTEBOL DE RUA"
condições piores em termos de condições de precisam para a vida. Não nos parece que faça falta mais
habitabilidade e imagem pública… este bairro está muito comércio, pois é preciso estimular para que saiam daqui,
isolado… Mesmo os miúdos mais pequenos têm muita do bairro… é um problema guetizar.” (Maria João Trindade)
dificuldade em sair do bairro. Muitos perguntam onde é
Lisboa: ‘Lisboa é onde? Toda a vida passaram aqui e não Vale referir também que, não sendo nova, também
saíram de cá… como tem aqui todos os recursos acabam a própria Associação de Moradores (constituída em
por não sair daqui. Criam imagens da cidade, de Lisboa, Janeiro de 1989) tem consolidado a presença e a
como algo inseguro, perigoso, assustador… estes miúdos intervenção no bairro de acordo com a pressão dos
sentem que a cidade é um mundo construído pelos e para tempos, conforme referimos. Actualmente, para além
os brancos.” (Vanda Ramlho, direcção ANFR) presidir às sessões regulares do Grupo Comunitário e
desenvolver as actividades inerentes à sua missão
LUA CHEIA – teatro para todos & mais alguns associativa, é parceira e consultora no trabalho de
A LUA CHEIA – teatro para todos, é uma requalificação (integra as Comissões Executiva e Alargada
associação de profissionais de teatro, com forte currículo referente aquele processo). Mas, para além disso e nesse

130 INICIATIVA DA LUA CHEIA - TEATRO PARA TODOS


preciso contexto, tem acrescido e multiplicado esforços na houve mais espírito comunitário, mais associativo. As
mobilização de recursos para revitalizar o bairro – para além pessoas foram emparedadas em grandes prédios e
das actividades mais ou menos regulares (Taekwondo, perderam o contacto com a terra. É um contacto vital…
ginástica, música, informática…) promoveu, mais Haverá muita gente no bairro que fala do Chico Veneno e
recentemente, iniciativas (Feira do Tem Tudo, visitas e terá coisas para contar… Ele era muito reivindicativo. Tinha
passeios…) com impactos positivos junto da comunidade um espírito um bocado bilioso, mas era para ‘catar’ tudo
dos “dois bairros”. para os Unidos, porque ele era um lutador nato… Às vezes
ultrapassava as medidas, lá bebia o seu copito. Era um
B.º PADRE CRUZ, 2010 … E os antigos clubes desportivos – Unidos, lutador. Os Unidos devem-lhe muito.(…) Os clubes hoje só
Escorpiões e CAC sobrevivem porque há generosidade. Há pessoas muito
generosas, há dirigentes que dedicam o seu tempo à luta
“O desporto é um dos grandes veículos da juventude do pelo clube e às vezes até exageradamente porque depois
bairro criam problemas com as famílias. É porque a desmotivação
para comunicar, associar e juntar. É um manancial para também é grande, porque há muita falta de apoios… e as
apostar.” pessoas vão se desmobilizando lentamente. Esse é o
(prof. Freitas, JFC) grande problema. Porque há pessoas muito dedicadas. E
tem que ser uma grande luta. (…) Os clubes são escolas de
Quanto às associações recreativas/desportivas formação que criam hábitos que vão durar para o futuro…
mais antigas no bairro (Unidos, Escorpiões, CAC) verifica- Esses clubes têm essa componente humana muito forte.
se, actualmente, que a respectiva “sobrevivência” não foi, De vez em quando lá fazem uma almoçarada para todos. E
nem é, isenta de conflitos e de constantes dificuldades. Os mesmo ao nível do desporto alguns clubes têm registos a
Unidos e Escorpiões procuram manter acesa a chama do nível de Lisboa muito bons. Temos campeões a nível de
clube apesar da sucessão de direcções e da quebra na primeiro grau nos Unidos, nos Escorpiões… Existem
massa associativa que, entre outros factores, têm pesado dinâmicas geracionais de pais para filhos. E isso é um
na sobrevivência dos respectivos clubes… Actualizar os grande testemunho, um belo testemunho. E é isso também
programas e as ofertas desportivas e reafirmar a respectiva que não deixa morrer os clubes. Pegam nos clubes e hoje
posição na comunidade são preocupações do dia-a-dia. O 80% é malta jovem. Pode haver um ou outro carola dos
bairro dispõe hoje de um conjunto de equipamentos mais antigos mas hoje é sobretudo malta jovem…” (prof.
desportivos que evidencia o continuado estímulo à prática Freitas, JFC)
e cultura desportiva, a saber: complexo Desportivo Carlos
Lourenço do CAC (Rua Prof. Arsénio Nunes); Polidesportivo A resistente união dos Unidos
Bº. Padre Cruz; Pavilhão Desportivo Bº Padre Cruz; estádio “Isto é muito difícil. Em primeiro arranjar sócios em número
Dr. Agostinho Lourenço, onde actua o Clube de Futebol Os suficiente para fazer as assembleias. Depois as pessoas
Unidos, para além dos campos/pavilhões de jogos das criticam mas também não ajudam nem participam. É muito
escolas. difícil. E para quem viveu e viu esses momentos de ouro do
clube, é muito difícil ver o clube assim. As pessoas
“É nos finais de tarde que se conseguem juntar. Hoje a vida quebram. (…) Hoje em dia é muito difícil, não há apoios,
também está a criar condições terríveis para que as horários…mesmo ao nível humanitário, não há o mesmo
pessoas labutem de manhã à noite e está muito difícil para apoio… porque dantes havia orgulho, não era qualquer
as pessoas terem tempo para estar, para comunicar … E já pessoa que ir para director do clube. Era uma honra. Hoje,

131
qualquer pessoa pode ser directora do clube. E há pessoas estruturas de apoio (…) As condições de trabalho são
que se vêm servir do clube e não servir o clube.“ (Carlos essenciais porque isso pode determinar a prestação da
Pedro, morador e presidente do clube até 2012) equipa e fazer toda a diferença.” (Vitor Cacito, presidente
do CAC)
Escorpiões – “ter uma história bonita para contar”
“Sinto-me com o peso de uma história bonita. Queremos As hortas do bairro: “porque a Natureza dá tudo…”
homenagear as pessoas que fundaram isto. São 16
pessoas… e o Emídio é um dos sócios fundadores. Este “Um dia que não venha à horta, não é dia para mim.”
ano estamos a tentar trazer ao clube as pessoas que o Júlio Vaz (morador)
fundaram, fizeram bem ao clube, incentivaram…
Gostávamos que voltassem a ter uma relação com o E, no presente, retomamos questões que
clube… o bairrismo está a acabar. Essa é a grande atravessam o nervo do tempo e nos ligam ao passado. As
dificuldade a falta de bairrismo e de companheirismo. Para hortas persistem em vincar a imagem e a vida do bairro. É
ter dinheiro, temos que trabalhar… E queremos trabalhar um largo campo agrícola que serve de porta de entrada a
para por o clube de pé e trazer dinheiro para o clube. quem vem dos centros de Lisboa. Relembra-nos ancestrais
Mobilizar os associados, puxar as pessoas que foram equilíbrios do homem com a Natureza – e do homem com a
importantes para o clube que voltem e ajudem o clube a ir sua natureza. A necessidade da salvaguarda destes
para a afrente… com trabalho, dedicação e amor ao clube. territórios verdes e a melhor interacção/articulação com o
Porque também queremos ter um futuro bonito para tecido urbano da freguesia começam a prender as
contar…” (Nuno Diogo) atenções públicas. A maior parte dos terrenos vizinhos às
hortas são municipais. Porém, os talhões agrícolas
O CAC – um clube em afirmação localizados na entrada do bairro pertencem a particulares.
“O bairro tem um problema – as gerações mais velhas têm Os moradores nada pagam porque, a qualquer momento, o
um ódio de estimação em relação a este clube. Toda a dono das terras poderá querê-las. É esse o acordo.
gente sabe que só trabalhando em conjunto é que as
coisas avançam. (…) “Isto está projectado para uma outra estrada, fazer uma SEDE DOS ESCORPIÕES, 2010
Este clube é uma grande família onde as pessoas se rotunda… Quando tiver que largar isto vou para a minha
sentem bem. Onde as pessoas se sentem valorizadas e aldeia. O que me prende aqui é precisamente este
todos trabalham com objectivos comuns. Temos apoiado terrenozinho aqui. Trato esta terra como seja minha, com o
diferentes causas, diferentes instituições… e estas coisas mesmo cuidado (…). Eram mais os homens que cultivavam
marcam a diferença. (…) É como o projecto que temos de as hortas. Os talhões são definidos de comum acordo… O
Goalball (11) onde o treinador da modalidade que tem senhor engenheiro Ribeiro Telles também já cá veio.
10% de visão apresentou-me o projecto e eu acreditei no Cruzei-me várias vezes aqui com ele… Sou dos mais
projeto e dei-lhe todo o apoio. E nunca pensei que antigos aqui da horta, eu também vim da Quinta da
seríamos campeões nacionais. Isto é que é Calçada. Gostei do bairro porque tinha muito arvoredo…
empreendedorismo: as pessoas acreditarem e ajudarem- Aqui, planta-se de tudo…é o nabo, é a batata, é a couve, o
se umas às outras… (…) O clube tem vindo a crescer em lombardo, cenouras, nabiças, grelos de nabo, feijão de
linha recta. Hoje estamos no limite das nossas várias qualidades, courgetes, alface… e ali temos a salsa,
capacidades. Temos crescido controladamente. Agora já a hortelã, aqui pimentos, pepinos, as abóboras… tenho
não conseguimos crescer mais. Teríamos que ter outras abóboras para todo o ano… tenho tudo! Porque a natureza

132 CAC, TORNEIO DE GOALBALL


dá tudo… é preciso é saber tratá-la. Tudo o que semeamos sobre o tema “estilos de vida saudáveis”. Trata-se do
tem outra qualidade. Eu aqui como, e sei o que como … projeto “Aim High, Choose Healthy” promovido pela
como na minha aldeia. Daí a razão de eu fazer isto. Temos Associação SPIN e financiado pelo Programa Juventude em
aqui poços feitos por nós … poços com 10 metros! Acção da Comissão Europeia. (…) equipados com sachos,
Já têm vindo aqui as criancinhas da escola ver. Porque as regadores, ancinhos e sementes, o grupo internacional de
crianças não sabem como nasce uma batata, uma couve, jovens irá fazer nascer uma Horta pedagógica para
um tomate… vêem no prato mas não sabem como aparece crianças dentro da nova creche da Associação Crescer a
no prato… a partir de Maio vêm até aqui ver como Cores no Bairro Padre Cruz.(…) Irão plantar e pintar
HORTAS DO BAIRRO PADRE CRUZ, 2010 nascem…” (Júlio Vaz, morador) desenhos criativos e coloridos no espaço que será usado
por mais de 30 crianças diariamente a partir de
Para além da riqueza etnográfica (técnicas de Setembro.(…) A nova creche faz parte de um projeto de
cultivo, instrumentos de trabalho, antiguidade dos recuperação da antiga escola primária na Rua do Rio Tejo.
saberes…), dimensões conviviais e pedagógicas, de apoio Para a criação da Horta contamos com um grande trabalho
à subsistência, oportunidade de negócios inovadores, de parceria: a participação da Associação Wakeseed na
aprendizagem de cidadania ambiental… a existência das facilitação do workshop de criação da Horta, com o apoio
hortas, só por si, apelaria a uma mudança social e da Junta de Freguesia de Carnide no transporte e
ambiental assente em princípios ecológicos que bem alimentação dos 25 jovens nesse dia, cedência de plantas
podem servir de eixos de sensibilização e aprendizagem por parte da CML, doação de tintas por parte da Entrajuda
para uma melhor e mais sã convivência no bairro, em e apoio logístico da Associação Mãos do Mundo. Será um
cidade, em sociedade. E esta não é uma utopia, é uma grandioso momento de encontro e partilha intercultural e
possibilidade inscrita no terreno real e visível. Por isso, de participação na vida comunitária!” (Agosto de 2013)
acredita-se que no coração do bairro reside, dormitando,
também esta outra mais-valia: “uma relação com a terra A fechar, a recomendação:
em que a Cidade não é fértil nem promove.” (Contumélias:
6) E, também aqui, a força e a vivacidade da história do “Parece que estamos parados, mas não. Carnide está a
JULIO VAZ NAS HORTAS, 2010 bairro. As suas remotas origens rurais podem e devem crescer e quem vive cá há tantos anos como eu, vê… O
servir de contributo para alicerçar uma nova identidade núcleo que aqui temos de escolas, de empresas, mesmo
ecológica. Um outro “bairrismo verde” bem poderia ser a aqui a dois passos… Agora até temos ofertas do Pólo
proposta. E o desafio que a semente da memória lança em Tecnológico que já vieram ter com a associação de
terra de futuros mobilizando novos parceiros num trabalho moradores para fazer parceria para arranjar cursos para a
conjunto de revitalização e regeneração da vida e rapaziada, para a metalo-mecânico… É um bairro com
valorização da representação social do Bairro Padre Cruz. futuro, e é uma freguesia muito boa… É, porque se
Porque, afinal, o Bairro também tem direito ao (seu) olharmos à volta, temos tudo, supermercados, farmácia,…
futuro… acho que o bairro está muito bem rodeado. Mesmo para
gente nova está muito bom… Por isso, gostava que
“A Europa junta-se para criar uma Horta pedagógica em fizessem as casas rapidamente. Já que as prometeram,
Carnide! que as fizessem rapidamente e que fizessem o que
25 jovens provenientes de vários países europeus (Bósnia- prometeram: umas quantas casas para os ‘filhos do bairro’
Herzegovina, Itália, Estónia, Ucrânia e Portugal) que tiveram que sair sem vontade e que querem regressar!
encontram-se neste momento em Lisboa para reflectir E que não deitem abaixo o salão de festas…! Tenho um

133
desgosto enorme se aquilo for abaixo!” (Teresa Guerra, - (12/07) - A JFC mobiliza esforços para solucionar situação
moradora) das famílias ciganas do bairro do Vale do Forno
pressionando a CML (presidência de Pedro Santana
Não esqueçamos: resgatar a memória, Lopes). A intervenção camarária no bairro de alvenaria é
compreender e validar a(s) identidade(s) locais, foi um imperativa e urgente pois perigam a população residente.
passo; recuperar e estimular a participação das 2003
comunidades no respectivo desenvolvimento, será o passo Terminam os processos de realojamento no bairro novo
seguinte. Aquele que nos faz ambicionar por um lugar, um iniciados na década de 90. O NUPIC – Núcleo de Psicologia
bairro, uma cidade… mais equilibrados e justos. Onde e Intervenção Comunitária – inicia actividade na freguesia a
construir seja, também, criar possibilidades. E habitar partir do projecto “Príncipes do Nada” da responsabilidade
signifique partilhar e con-viver entre pessoas e ambientes -da PROACT.
que dialogam com passado e com o futuro das paisagens - (31/01) - Criação da Associação de Pais e Encarregados
que queremos nossas. de Educação, Escola EB 2/3 do Bairro Padre Cruz.
- (17/12) - Com grande aparato policial e medidas
Síntese cronológica coercivas são retiradas as famílias ciganas do bairro do
DESDE 2000 a 2012: A requalificação do bairro – o Vale do Forno, após 100 meses de contestação. O bairro
futuro e a memória do Vale do Forno é arrasado,
2004
Década de 2000 O Presidente da Câmara de Lisboa – Carmona Rodrigues
Na freguesia de Carnide: aumento da população, (ind., PSD) – comparece na reunião do Grupo Comunitário
diferenciação das dinâmicas entre os bairros, crescimento de 21 de Março para discutir a urgente intervenção no
socioeconómico; localização de novos investimentos à bairro de alvenaria.
escala da cidade e oferta de mais equipamentos na Em Carnide, Paulo Quaresma (CDU), é reeleito no cargo de
freguesia (Hospital da Luz, ISLA…); construção de novas presidente da autarquia. Por resolução de Conselhos de
vinhaças junto ao bairro (Quinta das Camareiras, Pólo Ministros, o Bairro Padre Cruz é incluído no Programa
Tecnológico...). No interior do Bairro tem início outra Nacional “Iniciativa bairros Críticos” no âmbito das políticas
década de profundas transformações - após propostas e da cidade. A questão da reabilitação ‘versus’ requalificação
contrapropostas, o projecto de requalificação (na zona do bairro está em discussão. Estudo de actualização da
mais antiga) toma forma de projecto para ser concretizado. Gebalis sobre o bairro antigo dá conta de 916 fogos, 844
2002 estão habitados, 72 fechados (dos quais, 32
Câmara Municipal de Lisboa com a presidência de Pedro emparedados). Reforço do associativismo local e
Santana Lopes – 2002 a 2004 (presidência social- incremento da prática desportiva na freguesia: construídos
democrata com alternâncias, até 2007, com Carmona e inaugurados o Polidesportivo e o Pavilhão Desportivo
Rodrigues). Em Carnide, Paulo Quaresma é eleito Bairro Padre Cruz; disponibilizado terreno para Os Amigos
presidente da Junta de Freguesia (CDU). Inaugurada a do Jogo da Malha.
Escola EB 2-3 que amplia a oferta escolar e ficará 2006
conhecida por “escola branca” na gíria do bairro. Mantém-se a discussão sobre o futuro do bairro antigo.
Formalização da Associação Azimute Radical (actividades Confrontam-se duas propostas: a reabilitação ou a
iniciadas em 1999) com sede na JFC mas actividades no requalificação. Esta última proposta (132/2006),
bairro. defendida pela vereadora Gabriela Seara, vence por

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maioria em sessão de Câmara de 29/03. Com arranque requalificação. A questão dos calendários e planos da obra
previsto para 2008 prevê-se a demolição integral dos 917 são temas quentes discutidos em GC. As condições de
fogos de alvenaria e a construção, de raiz, de 1580 fogos segurança e habitabilidade deterioram-se dia a dia.
assim como a venda parcial de lotes (EPUL jovem) numa Aprovada nova estrutura de trabalho conjunto – o GABIP
área de 12 hectares. Em Abril, o Boletim da JF dá ênfase (Grupo de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária Padre
aos 47 anos de história do bairro.. Cruz) – que substitui o GAPUR. Em algumas sessões estão
2007 presentes a vereadora Helena Roseta e arquitecta Lídia
Nova orientação na gestão da cidade com a alteração Pereira para esclarecer decisões e fases do projecto de
política do executivo camarário. António Costa (PS) é eleito requalificação.
presidente da CML; no pelouro da Habitação, a vereadora Em Março confirma-se o interesse comunitário pelo registo
Helena Roseta (coligação Por Lisboa); no pelouro do do património histórico e vivencial do bairro de que este
Urbanismo, Manuel Salgado. Por motivos de financiamento trabalho é testemunho.
fica suspensa a anterior proposta da EPUL para a Implementação do “Projecto Barcelona” que envolve os
requalificação do bairro. Em Carnide, Paulo Quaresma moradores da Rua de Barcelona, a Gebalis, JFC, CML e
(CDU) confirma-se na presidência da autarquia. instituições locais. A Associação Azimute Radical aposta na
2008 intervenção cultural com o espectáculo “Ora Toma Que é do
Visitas ao bairro por parte do executivo camarário presidido bairro” (encenação de Mário Guerra, em Junho). Em
por António Costa. Em pleno verão (dia 5 de Agosto) é Setembro é inaugurada a nova escola EB1, Aida Vieira com
agendada reunião alargada do Grupo Comunitário para a presença do Presidente da República, Cavaco Silva,
iniciar a discussão sobre novo projecto de requalificação. presidente da CML, António Costa, e outras
2009 individualidades. Em Outubro, apresentação o livro infanto-
No âmbito da candidatura ao QREN através do Programa juvenil “No meu bairro aconteceu…” (inserido no presente
“Parcerias para a Regeneração Urbana – bairros Críticos” é projecto de investigação) por ocasião da inauguração da
apresentado projecto alternativo que desbloquea impasse nova escola Aida Vieira.
financeiro. Tem a assinatura de de arquitectos da CML e - (30/11) - Assinatura de Protocolo de descentralização de
prevê um calendário alargado (com intervenções faseadas competências entre a CML e JFC com vista à transferência
para 10 anos), dividido por 8 etapas. O projecto é da gestão do Auditório Natália Correia para a Junta de
apresentado e discutido no contexto do Grupo Comunitário Freguesia.
(GC). Em Março é criado um grupo de trabalho – o GAPUR – 2011
para coordenar no terreno as operações de realojamento Os resultados provisórios dos Censos registam 22 415
provisórios. Prosseguem as atividades associativas, residentes revelando um crescimento populacional na
sobretudo as de carácter desportivo. Nova sede da freguesia superior aos 18,5%. O Bairro Padre Cruz (6 468
Associação de Moradores. Multiplicam-se serviços e habitantes) mantém-se como o maior e mais populoso
ofertas culturais e associativas (Azimute, Associação bairro da freguesia. Em Março são entregues as primeiras 7
Futebol de Rua, Teatro da Lua Cheia, …) que intervêm no chaves para as famílias a realojar no âmbito do projecto de
bairro. requalificação.
No final do ano, Paulo Quaresma é reconduzido no seu Por iniciativa de um ex-morador é criada a comunidade
terceiro mandato como presidente da JFC (até 2013). virtual “Intas&Entas” do Bairro Padre Cruz que, em 3
2010 meses, reúne 500 membros. A curiosidade e o interesse
Novo impasse relativamente ao processo de pelas memórias do bairro multiplicam-se. Criação do

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blogue “Bairro Padre Cruz” por iniciativa de outro morador. No mês de Janeiro são iniciados os trabalhos de demolição
Em 2010 a CML propusera a implementação do “Bip-Zip” das casas e a terraplanagem dos terrenos relativos à fase
(bairros e Zonas de Intervenção Prioritária) e, em 2011, A0, junto ao quiosque e Serra da Luz; estão em curso os
são aprovadas as quatro candidaturas apresentadas pela realojamentos dos 60 agregados familiares identificados
autarquia. A escola EB1, Aida Vieira, inaugurada em na fase A1. São evidentes as preocupações por parte dos
Setembro, revela problemas no edificado. A situação é moradores com os tempos entre as fases de demolição e
divulgada na televisão e jornais. As condições do comércio os processos de realojamento. Realização do filme
nas lojas do mercado são outro motivo de preocupação por documental “Bairro Padre Cruz: um bairro que seja nosso”
parte dos comerciantes e moradores. integrado no presente projecto de investigação comunitária
- (24/03) - Inauguração do Centro Cultural de Carnide “Construir cidade à escala humana – história e memórias
(CCC, antigo auditório municipal Natália Correia) como do Bairro Padre Cruz” (Fátima Freitas e Telmo Botelho)
novo espaço de cultura da freguesia a desenvolver - (17/09) - Inauguração do Posto de Correios em resposta a
programação regular na sequência do protocolo de uma longa espera por parte dos moradores. A Junta de
descentralização de competências. Freguesia assegura o funcionamento do Posto instalado no
A Associação de Moradores lança um abaixo-assinado CCC.
(recolha de 1000 assinaturas em uma semana) solicitando - (5/10) - Celebração dos 50 anos da igreja paroquial de N.
à CARRIS a reposição da carreira 768 aos fins-de-semana Senhora de Fátima com programação durante uma
e feriados e do percurso da carreira 729. semana – exposição fotográfica “50 anos de história de
Em Junho, encontra-se quase finalizado o realojamento uma igreja e de uma comunidade”, procissão com a
das primeiras 44 famílias da primeira fase. imagem de Nº Senhora de Fátima pelas ruas do bairro, dois
O bairro serve de cenário para dois trabalhos concertos (Orfeão dos Serviços Sociais da CML e Orquestra
cinematográficos – “Sangue do meu sangue”, de João Ligeira da Carris), celebração da eucaristia por D. José
Canijo (que viria a ter grande reconhecimento nacional e Policarpo da Cruz e a homenagem a Cândida Sanches, a
internacional), e uma novela portuguesa. É aprovada a reconhecida parteira e moradora muito estimada pela
candidatura ao Apelos 21- bairros, uma iniciativa da CML comunidade.
dirigida à participação em ideias para a sustentabilidade - (31/10) - Em cerimónia oficial no CCC, com a presença do
por parte dos bairros da coroa norte de Lisboa. presidente António Costa, e de alguns vereadores, é
- (28/12) - Deflagra incêndio na Igreja N. Senhora de entregue à JFC a recuperação e futura utilização da antiga
Fátima devido a curto-circuito no presépio. A intervenção escola primária Rio Tejo (em avançado estado de
pronta de alguns moradores evita o pior. A JF assegura a degradação).
recuperação da pintura interior da igreja. Uma ex-moradora - (10/11) - Novas associações promovem iniciativas no
recupera habilidosamente a imagem de S. José que havia bairro; dinamização de actividades culturais por parte da
sido muito danificada. Caravana da Cidadania junto ao CCC com animação da
2012 associação cultural Ginga Brasil Capoeira.
Visitas oficiais por parte do executivo camarário para - (24/11) - Disponibilização do Transporte Solidário, um
acompanhamento dos trabalhos. A JF e a AMBPC reforçam serviço de apoio à população maior de 55 anos residente
iniciativas para dinamizar a vida do bairro (ofertas de na freguesia. Esta iniciativa ocorreu no âmbito do Projecto
cursos/ programas culturais no CCC, por exemplo), criam Bip-Zip, teve a ajuda da ARPIC e da Unidade de Saúde
momentos de convívio (feiras de Natal, hortícolas e de Familiar “Carnide Quer”.
trocas) bem como novos serviços de apoio à população.

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NOTAS de diferente áreas de intervenção, professores, agentes de segurança,
comerciantes, padres, dirigentes associativos e desportivos, … que de
Construir cidade à escala humana algum modo tiveram ou têm uma ligação directa e/ou influente nos
1 destinos do Bairro. (cf. nota de agradecimentos). Em todos os contactos a
Jorge Nicolau, ex-morador do bairro, arquitecto e professor, desenvolve disponibilidade para colaborar e o entusiasmo pelo pioneirismo do
interessante trabalho de investigação sobre o Bairro Padre Cruz o que projecto foram incentivo e razão para a nossa demanda. Nas várias
possibilitou a partilha de perspectivas enriquecedoras. “visitas” e participação em eventos do Bairro (encontros, festas, reuniões
2 do Grupo Comunitários… ocorridos de março de 2010 até à presente data
Após a adopção da Convenção para a Protecção do Património Mundial, de edição) houve sempre preocupação em recolher informação e dar a
Cultural e Natural, em 1972, alguns Estados-membros da União Europeia conhecer o trabalho de pesquisa de modo a que cumprisse um dos
manifestaram interesse na criação de um instrumento de protecção do objectivos fundamentais: ser uma pesquisa comunitária que envolvesse a
património imaterial. Considera-se património cultural imaterial as própria comunidade.
práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões – bem
como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes (Fase 0) Até 1958: no início era o campo
estão associados – que as comunidades, os grupos de indivíduos 1
reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural, da Manuel Cebola, recentemente falecido, foi um dos mais antigos
sua herança e identidade sociais. moradores do Bairro cujo testemunho foi particularmente significativo -
3 pela vivacidade e importância das memórias partilhadas, pois conheceu o
Em termos da documentação para a reconstituição da história factual, bairro antes de ser bairro. Encontre-se neste livro um gesto de singular
para além de alguma bibliografia disponível, visitámos e procurámos nos reconhecimento.
vários arquivos da Câmara Municipal de Lisboa – arquivos fotográficos, 2
núcleo intermédio e histórico (onde encontrámos técnicos cujo O valor de 3.500.000$00 (três milhões e quinhentos mil escudos)
profissionalismo merece destaque), Gabinete de Estudos Olisiponenses corresponde aproximadamente a 17.500 euros. No entanto fica por
(a louvar o empenho e cumplicidade sempre disponibilizados), bem como explicar por que este terreno não foi expropriado pela CML uma vez que em
no Departamento de Habitação da Câmara Municipal de Lisboa (onde 1958 estava em vigor o Dec. Lei 28 197, de 1 de Julho de 1938, que
pudemos contar com a ajuda da arquitecta Lídia Pereira, actual previa a expropriação de terrenos para fins de interesse público tal como já
responsável pelo projecto de Requalificação do Bairro) no apuramento do havia sido praticado em outras situações e viria a ser repetido para a
material cartográfico disponível. construção do bairro dos Olivais.
4 3
A este propósito recomenda-se a leitura da recente obra “A cidade entre Ao que consta a primeira monografia da Freguesia de Carnide foi escrita
Bairros” (vd. bibliografia) que permite aprofundar um pouco a em 1895 pelo pároco de Carnide, José Baptista Pereira (em Carnide entre
complexidade do próprio conceito/representação de “bairro”. 1894 e 1898), com base nos respectivos registos paroquiais. Intitulada
5 precisamente “Memórias de Carnide” foi posteriormente republicada em
Para a reconstituição das memórias, estórias de índole mais pessoal e 1999 com o título adulterado para “Memórias da Pontinha”. Esta
subjectiva, recorreu-se à técnica da entrevista. Reuniu-se um conjunto de adulteração decorreu da redefinição dos limites concelhios entre Lisboa e
informantes à medida dos nossos passos e intenções. Numa primeira fase Odivelas pois a Pontinha fez parte da freguesia de Carnide até finais do
não houve a preocupação em estabelecer o número limite de século XIX.
entrevistas/conversas porque queríamos recolher a maior diversidade de 4
testemunhos e permitir que o bairro se fosse revelando em diferentes “… há que esclarecer as origens do conceito de freguesia (…) a mais
ângulos e descobrindo por si mesmo. Com o intuito de captar a maior antiga circunscrição territorial eclesiástica, rural ou urbana, designava-se
riqueza e especificidade de cada testemunho (quantos deles a merecer collatio (colação), com sede numa igreja matriz. Posteriormente passou a
um capítulo inteiro!) a abordagem das questões foi moldada em função do chamar-se parochia (paróquia). Simultaneamente surgiu a expressão
perfil dos entrevistados e adaptada às circunstâncias do momento. O freguesia para designar o distrito territorial e a igreja matriz que
número de registos gravados excedeu as 90 entrevistas e fazem parte de representava o local de culto e o conjunto dos fregueses (do latim filius
um espólio a disponibilizar para outros trabalhos. Reportam-se a ecclesiae, que se tornou sucessivamente em filgrês, felgrês, freguês) (Vd.
informantes cuja “referência geracional” e antiguidade no Bairro Martins, Jorge, p. 13).
correspondem a uma ou a diferentes fases do Bairro (com acentuada 5
dominância das primeiras fases de 1959-60 a 74 e de 1975 a 1990). Na O Termo de Lisboa correspondeu à coroa norte e ocidental de Lisboa. Foi
listagem dos entrevistados incluem-se maioritariamente moradores, ex- variando os seus limites e fronteiras ao longo de cinco séculos de história.
moradores, mas também vereadores, responsáveis autárquicos, técnicos As primeiras referências ao Termo de Lisboa datam de 1385 e reportam-

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se a cartas de doações à cidade por parte de D. João I. A lei de 14
20/08/1654 é o primeiro documento oficial que enumera as 31 Nos inícios dos anos 70 surgiram novos bairros residenciais na freguesia
freguesias do Termo de Lisboa onde se inscreve Carnide. Após algumas de Carnide (Bairro Novo de Carnide, Bairro da Quinta da Luz e Horta Nova)
variações na catalogação administrativa o Termo de Lisboa foi extinto em mais diversificados na composição social da população e que justificaram
11/09/1852 e a área do concelho de Lisboa foi ampliada em 1886 – ano o maior investimento nos acessos à freguesia.
que também assinala a criação do concelho de Loures. Sabemos que 15
Carnide integrou o concelho de Belém em 1840-1885, passou pelo dos José Teixeira (o “Teixeira”) era o comerciante mais velho e com o negócio
Olivais em 1885 e fixou-se definitivamente no concelho de Lisboa, em (mercearia) mais antigo de Carnide; viria a falecer em fevereiro de 2013,
1886, quando a freguesia já contava com 1.700 habitantes. (vd. mais somando 91 anos. Um pouco da sua longa história está documentada no
detalhadamente Martins, Jorge, pp. 16-19). livro “Balcões com História” e no vídeo produzido pela JFC em Setembro
6 de 2012.
De acordo com informações soltas de Manuel Cebola (que trabalhou na 16
Quinta da Penteeira) e António José, filho do Sr. Arménio, rendeiro de O Estado Novo corresponde ao regime político sob a ditadura de António
Castanheira de Moura. Oliveira Salazar, ministro da pasta das Finanças. Embora com alterações
7 na forma e conteúdo vigorou desde 1933 até 1974.
In, Livro de Lisboa, especialmente introdução (vd. bibliografia). 17
8 A Carta de Atenas é um documento de compromisso, datado de 1933,
De entre “os povoados suburbanos localizados a um par de léguas da redigido e assinado por grandes arquitectos e urbanistas internacionais do
fronteira da «Circunvalação», que se caracterizavam por proporcionar a início do século XX, com destaque para Le Corbusier. A Carta é
«primeira paragem» a quem saía da Cidade (ou a última a quem entrava) e apresentada como conclusão do Congresso Internacional de Arquitectos
que possuem uma entidade evidente (…): Belém-Ajuda, Benfica, Luz- Técnicos de Monumentos Históricos, em Atenas, na Grécia, em 1931. A
Carnide, Lumiar, Ameixoeira, Olivais. (Matos; Braga (1998): 141) Carta serviu de inspiração à arquitectura contemporânea e assentava em
9 quatro funções básicas na cidade: habitação, trabalho, diversão e
Localizada na continuidade da linha defensiva das Invasões Francesas de circulação defendendo também a possibilidade de usufruto dessas
1807-1811. funcionalidades por parte de todos os cidadãos, o que representava algum
10 “progressismo” inovador.
Este Regimento, após várias alterações e renomeações, é herdeiro do 18
Batalhão de Artífices Engenheiros criado por decreto em 24 de Outubro de Inspirada no modelo do Partido Trabalhista inglês a proposta de 1918 do
1812. Finalmente, em 1947, passou a designar-se por Regimento de governo português apresentava laivos de progressismo: “Em 1919, no
Engenharia nº 1. No curso da história as suas tropas tiveram intervenções governo presidido por Domingos Pereira e com o socialista Dias da Silva no
decisivas com especial relevo para a participação/comando das tropas no Ministério do Trabalho, é lançado um programa muito mais ambicioso de
processo revolucionário do 25 de Abril. Desde 24 de Abril de 2001 que ali bairros sociais. Este visa garantir «os direitos e as necessidades de quem
se instalou o Núcleo Museológico do Posto de Comando do Movimento trabalha e produz». (…) Os bairros operários teriam creche, maternidade,
das Forças Armadas (vd. Martins, Jorge, pp. 103-104). escola infantil e profissional, ginásio e biblioteca, sendo administrados por
11 comissões com participação de moradores eleitos.” (Pinheiro, Magda:
Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, posterior, Visconde de Sá da 311).
Bandeira (nomeação em 1832, por D. Maria II) e Marquês de Sá da 19
Bandeira (nomeação em 1864, pelo Rei D. Luís I), foi destacado político e A crise política da I República, a participação de Portugal na I Grande
primeiro-ministro de Portugal. Durante as Guerras Liberais foi militar nas Guerra e o período de depressão económico-social que o mundo ocidental
quais perdeu o braço direito no Alto da Bandeira durante o Cerco do Porto. atravessou contribuíram para travar a implementação destas medidas. A
12 tardia concretização (apenas em 1928-30) onerou e comprometeu os
Outra identificação a merecer melhor investigação histórica e que parece propósitos originais.
decorrer da existência do tal antigo cemitério para vítimas da cólera do 20
século XIX. O Gabinete Técnico da Habitação, da Câmara Municipal de Lisboa (GTH)
13 foi criado em 1959 para resolver a crise habitacional de uma parte
Vd. mais detalhadamente sobre Carnide o interessante livro (de reduzido significativa da população da capital e da zona suburbana. (…)
formato) de Maria Calado e Vítor Matias Ferreira, “Lisboa – freguesia de (http://infohabitar.blogspot.pt/2010/06/habitacao-em-lisboa-memoria-
Carnide”, da colecção Guias de Contexto publicada pela Câmara do-gth-50.html
Municipal de Lisboa ou, um seu resumo, no site da própria Junta de 21
Freguesia de Carnide. Infelizmente, por razões de tempo e de meios, não conseguimos apurar a

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equipa da CML que, à data, teria sido responsável pelo planeamento, feminina do Estado Novo português. A OMEN foi criada em 1936, e tinha
desenho e acompanhamento da obra do Bairro. De qualquer modo, a por objectivos estimular a ação educativa da família. Pretendia contribuir
ausência desta informação ficou compensada com algumas informações para a plena realização da educação nacionalista da juventude
constantes das explicações e debates que se acompanham em outros portuguesa e, dentro deste espírito, a organização e orientação da
documentos referenciados (Relatório de Gerência Municipal de 1959 e Mocidade Portuguesa Feminina foram confiadas à OMEN. Esta
1960 e Actas da CML 1958,1959, 1960). organização foi extinta por decreto, já em 1975. (informações em vários
22 Outra nota importante reporta-se à implícita justificação (ideológica) sites).
acerca da “escolha” do material, cf. mesmo documento das Actas da CML 4
de 1960. O Padre Francisco Rodrigues da Cruz (conhecido por “Padre Cruz”) nasceu
em Alcochete, em 1859. Por altura das perseguições religiosas da I
(Fase 1) 1959 a 1974: Construtores da cidade, artesãos do bairro República esteve preso durante alguns dias e foi interrogado pelo próprio
1 Ministro da Justiça de então, Afonso Costa, após o qual foi libertado.
Os topónimos foram fixados pelo edital municipal de 8 de Agosto de 1961, Extremamente respeitado por todos chegou a ser, durante alguns anos, o
na sequência de um parecer da Comissão Consultiva Municipal de único sacerdote que usava a sotaina em público, ao arrepio do que estava
Toponímia - presidida pelo vereador João Aguiar de Sousa Coito e com os estabelecido na lei. Desenvolveu um intenso apostolado junto dos presos,
vogais Dr. Alberto Gomes, Dr. Durval Pires de Lima e Dr. Henrique Martins dos mais carenciados... O seu funeral, em 1948, foi uma verdadeira
Gomes – de 19 de Maio de 1961, no qual se encontra a seguinte manifestação de pesar por parte do povo. O Processo Informativo de
explicação: «Por último a Comissão voltou a apreciar o pedido da Beatificação começou em 1951 ainda durante o Estado Novo. A vida de
Repartição de Obras Municipais, a que se refere o oficio número 5793, missionário junto dos mais humildes e desprotegidos serviu ao caracter
datado de 29 de Novembro de 1960 da mesma repartição, no sentido de assistencialista do Estado Novo que, dentro dessa mesma linha, atribuiu o
se atribuir as nomenclaturas aos arruamentos do Bairro de Carnide, tendo seu nome e homenageou em estátua no bairro municipal que começara a
a Comissão emitido parecer de que os arruamentos sejam denominados construir no centésimo aniversário do nascimento do “Santo Padre”
com nomes de rios portugueses, sendo atribuídos aos arruamentos (1859-1959). (informações em vários sites).
principais os nomes dos maiores rios e, tanto quanto possível, os seus 5
afluentes aos arruamentos circunvizinhos, conforme se indica na O Serviço de Bibliotecas Móveis tivera início em 1937, ano em que se
respectiva planta número 10095.» organizaram as primeiras bibliotecas, designadas na época por
2 itinerantes. As Bibliotecas Itinerantes tal como as conhecemos hoje
“Os tipos II e III das casas de fibrocimento ocupam as áreas de 24,62 m2 e tiveram a sua origem em 1961 e percorriam dois itinerários na cidade.
29,48m2 respectivamente e os seus custos unitários estimaram-se em Atendendo ao sucesso da iniciativa, em 1962 e 1965, foram criadas mais
31.062$22 e 37.191$52 para cada tipo. Os tipos I e II de alvenaria com duas Bibliotecas e o número previsto de estacionamento foi alargado para
um piso ocupam as áreas de 28,63 m2 e 35,12m2 respectivamente e os 48. Em 1998, devido ao envelhecimento das viaturas, já só funcionava
seus custos unitários estimaram-se em 35.505$64 e 43.554$24 para uma biblioteca itinerante.
cada tipo. Quanto aos tipos I e II de alvenaria com dois pisos em que se 6
introduziram benefícios de habitabilidade indispensáveis às necessidades “O período inicial desta carreira foi algo estranho. A própria indicação dada
vitais presentes, as áreas ocupadas são, respectivamente, de 22,675m2 pela Carris era de que seguia o percurso da carreira 26A entre os
46,725m2, 58,10m2 e 70,70 m2 respectivamente e os seus custos Restauradores e a Estrada da Pontinha, continuando depois pela Estrada
unitários estimaram-se em 18.572$92, 38.145$90 e 47.432$36 e Militar e Azinhaga da Pentieira até ao bairro. (…) Como todas as carreiras,
57.718$90 para cada tipo.” in Relatório de Gerência Municipal, Actas de a oferta no 41 foi sendo reduzida entre 1969 e 1973, fruto da contração
Sessões de Câmara, CML, 1960 global que afectou toda a rede durante esse período. (…) Em 15 de Julho
3 de 1973, porém, deu-se uma alteração profunda que marcaria o período
A Legião Portuguesa (LP) era uma organização nacional que funcionou áureo do 41: a supressão dos elétricos de Carnide (…), IN
durante o período do Estado Novo em Portugal. Criada em 1936, a LP foi http://historiaccfl.blogspot.pt/2009/10/41-o-autocarro-do-bairro.html
extinta no próprio dia do 25 de abril de 1974. A Organização Nacional 7
Mocidade Portuguesa foi criada em 1936.. Pretendia abranger toda a A relação entre o Estado Novo e a Igreja Católica obriga a situar várias
juventude – escolar ou não – e procurava o desenvolvimento “integral” das tendências e orientações de intervenção sociopolítica no contexto da
crianças e dos jovens incluindo capacidades físicas, formação do carácter Igreja. Se, por um lado, a figura do Cardeal Cerejeira surge vinculado com
e a devoção à Pátria, o respeito pela ordem, disciplina, o culto dos deveres a ideologia do Regime, por outro lado, também é reconhecida a existência
morais, cívicos e militares. Foi também extinta com a revolução do 25 de de grupos progressistas de reflexão e acção católica que incomodavam e
Abril. contestavam o regime do Estado Novo. Vd. a este propósito, entre tanto
A Obra das Mães pela Educação Nacional (OMEN) foi uma organização mais (Braga da Cruz; Fernando Rosas…) algumas publicações

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mencionadas no movimento “Não Apaguem a Memória”, para a atribuição de casa municipal, contribuiu para “viciar” as
designadamente ALVES, Pe. José da Felicidade, Católicos e Política de expectativas de mobilidade e, de certo modo, fixar a identidade
Humberto Delgado a Marcello Caetano, 2.ª Edição, Lisboa, Edição de estigmatizada do Bairro.
Autor, s/d; e o site http://www.forumavarzim.org.pt. 4
8 Em termos da prática desportiva dos Escorpiões, o futebol de 11 foi a
Sucessão de padres na paróquia com responsabilidade no Bairro Padre primeira modalidade a ser praticada durante os primeiros 6 anos. Seguiu-
Cruz: Padre António Francisco Marques (pároco de S. Lourenço de Carnide se a ginástica e o teatro que abandonaram por falta de condições. Em
de 1952 a 1972, depois, nomeado Bispo de Santarém, em 1975); alternativa implementaram a prática de futebol de salão no Pavilhão da
durante um ano aproximadamente: Padre Alfredo Teixeira; Padre Joaquim Escola EB2/3 do Bairro Padre Cruz. Os jogos foram disputados por toda a
Francisco Dinis; Padre Joaquim Marques da Costa (altura da aquisição da cidade de Lisboa, Odivelas e concelhos vizinhos. Conquistou vários troféus
imagem de N. Srª de Fátima); Padre Artur Carreira das Neves; Padre Casal ficando o registo de que “Os Escorpiões” foram vice-campeões nacionais
Martins (pároco); Padre António Sousa Rocha Araújo; Padre Manuel da 3ª Divisão da zona sul na época de 1987/88 (com a final na cidade de
Carreira das Neves; Padre João António Alpalhão (substituto); Padre Tomar), na época seguinte de 88/89 passaram à 2ª Divisão e, finalmente
António Baptista de Abreu (desde 1981 até ao presente) (informações na época posterior de 89/90 alcançaram a 1ª Divisão. A estes galardões
gentilmente prestadas pelo Padre António Araújo). juntam ainda o título de campeões de série da 2ª divisão júnior em
9 1999/2000 e campeões de série da 3ª divisão sénior na época de
Joaquim Augusto Gomes Oliveira nasceu em 21/11/1965 em Lisboa. Em 2000/2001. Na modalidade da pesca também somou triunfos –
22 anos como ciclista (17 como profissional) percorreu 600.000 kms campeões regionais em iniciados nas épocas de 89/90 e em juvenis
tendo chegado à vitória 56 vezes. Participou em 18 Voltas a Portugal, 91/92. O número de adeptos tem vindo a diminuir e as deslocações para
ganhou as edições de 1989 e 1993 (tendo ainda obtido um 2º lugar, cinco campeonatos são suportadas pelos directores e praticantes. Na prática de
3º, um 4º e dois 5º lugares). Participou em provas no estrangeiro onde atletismo reuniram um número considerável de praticantes (passarinhos,
obteve resultados premiados. Iniciou a carreira no Carnide Clube e benjamins, infantis, iniciados, juvenis. Seniores 1 e 2, veteranos) tendo
representou clubes/patrocinadores de nomeada - o Sporting, participado nos Jogos de Lisboa e em outras provas em Lisboa, Loures e
Louletano/Vale do Lobo, Torreense/Sicasal, Sicasal/Acral, Lousa/Calbrita, outros concelhos metropolitanos Detêm os troféus de Joaquim Gomes
Recer/Boavista, LA Alumínios, LA/Pecol, Carvalhelhos/Boavista… Em (vd. referência na cronologia) - duas camisolas amarelas oferecidas pelo
2004 foi recordado e homenageado e recentemente esteve em vencedor da Volta a Portugal em bicicleta em 1989 e 1991. A somar à
programas televisivos como comentador da 75 Volta a Portugal em prática desportiva, as festas de Natal, excursão anual à Serra da Estrela,
bicicleta, de 2013. celebração do aniversário foram episódios marcaram a vida e a memória
no Bairro. Sabe-se que hoje atravessam fase muito difícil e vivem da
(Fase 2) 1974-1990: A vivência local do(s) poder(es) e da(s) exploração do bar, das quotizações, dos lucros das festas recebendo anual
cultura(s) e esporadicamente alguns subsídios.
1 5
As operações SAAL [Serviço Ambulatório de Apoio Local] foram durante A Aliança Povo Unido (APU) foi uma coligação formada pelo Partido
um curto período, após o 25 de Abril de 74, uma intensa experiência de Comunista Português (PCP), Movimento Democrático Português –
intervenção participativas no domínio da habitação social. Ainda hoje é Comissão Democrática Eleitoral (MDP/CDE) e, após 1998, também pelo
uma referência pela forma como envolveu arquitectos, engenheiros, Partido Ecologista, "Os Verdes" (PEV).
juristas, geógrafos, sociólogos e, sobretudo, os próprios moradores de
bairros degradados, para lutar por uma habitação condigna e o direito a (Fase 3) 1990-2000: Bairro de contrastes – o alvorecer do bairro
viver e habitar a cidade. O SAAL conheceu, no espaço e no tempo, formas novo e o anoitecer do bairro antigo
de acção e desenvolvimento diferenciado e, por isso, não foi o mesmo no 1
Norte, no Centro e no Sul do País. Isabel Guerra, in “As pessoas não são coisas que se ponham nas gavetas”,
2 Sociedade e Território, ano 2, Janeiro 1988, p. 11. Recentemente, em
Infelizmente, não foi possível recuperar os quantitativos dos Junho de 2013 “a investigadora Isabel Guerra, do DINÂMIA’CET – Centro
desdobramentos efectuados durante estes primeiros anos do pós-74. A de Estudos Sobre a Mudança Socioeconómica e o Território (ISCTE-IUL),
confirmação resultou de informação junto de Helena Gomes, técnica do defende que, embora o Programa Especial de Realojamento (PER) tenha
Gabinete Local da Gebalis. dado casa a quase 35 mil famílias, criou “guetos urbanísticos e sociais”.
3 2
Seria muito interessante desenvolver pesquisa acerca das representações A revista Sociedade e Território é uma publicação elucidativa sobre esta
do Bairro por parte das diferentes gerações (avós, filhos, netos). Além matéria, expondo fundamentada crítica de especialistas sobre os
disso, o facto de os baixos rendimentos servirem de critério preferencial problemas do urbanismo em geral, e sobre a questão habitacional e da

140
habitação social, em particular. entidade.” in Câmara Municipal de Lisboa, DGSPH/DEPGR, Equipa
3 Técnica – Reflexões sobre o Realojamento das Famílias Residentes no
Durante o período 1960-1991 os dados comparativos dos Censos para o Vale do Forno, 2003.
concelho de Lisboa confirmam que a par do despovoamento, 9
envelhecimento demográfico e terciarização do tecido urbano das A PROACT, criada em 1977, é uma Unidade de Investigação e Apoio
freguesias do centro, as freguesias localizadas na periferia da cidade (Stª Técnico ao Desenvolvimento Local, à Valorização do Ambiente e à Luta
Maria dos Olivais, Ameixoeira, Marvila, Lumiar, Benfica, S. Domingos de Contra a Exclusão Social. Trata-se de uma associação privada sem fins
Benfica, Carnide…) cresceram em termos demográficos. Principais lucrativos sediada no ISCTE – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e
razões: a continuada atracção pela grande cidade junto das populações da Empresa; é constituída por grupo de licenciados em Economia, Gestão
rurais empobrecidas; a transferência compulsiva das populações para de Empresas e Sociologia bem como técnicos de outras áreas com
bairros periféricos devido a obras para a reestruturação urbana e viária da experiência no terreno que visam apoiar o desenvolvimento local
cidade e os movimentos imigratórios consequentes da descolonização. privilegiando a integração das comunidades socialmente mais
4 vulneráveis.
Soares, João in, Cadernos CML/Departamento de Construção de 10
Habitação, 54, 1996, p. 3. O Secretariado Diocesano de Lisboa da Obra Nacional para a Promoção e
5 Pastoral dos Ciganos – criada em 1977 pelo Patriarcado de Lisboa – foi
Tal como a “Semana da Habitação”, o “Encontro Nacional da Habitação”, posteriormente transformada em IPSS. É vulgarmente conhecida pela
estudos e levantamentos de iniciativa camarária: “Observatório da Pastoral dos Ciganos e acompanhou desde o início o realojamento das
Habitação”, os programas RECRIA, REHABITA e RECRIPH…, entre outros. 400 pessoas de etnia cigana no bairro do Vale do Forno, situado no antigo
6 quartel de paióis, adaptado a casas de habitação.
O DGSPH – Departamento de Gestão Social do Parque Habitacional, por 11
exemplo, é uma microestrutura camarária (1993) integrada na Direcção Dos 97 agregados realojados, 49% ficaram no Bairro Municipal da
Municipal de Habitação, Educação e Intervenção Social (DMHEIS) mas da Ameixoeira onde havia mais fogos municipais por atribuir; 16% foram
qual dependem vários departamentos, divisões e serviços. O peso do realojados no Bairro Alfredo Bensaúde e 12% na Alta Lisboa Norte. Os
organigrama da gestão camarária é, muitas das vezes, um reconhecido restantes fogos municipais atribuídos situam-se em vários bairros
entrave à agilização e concretização das directivas camarárias. dispersos de Lisboa – Alta Lisboa Sul, Casal dos Machados, Flamenga,
7 Horta Nova, Furnas, Olivais Sul, Padre Cruz, Armador, Sargento Abílio – por
A partir da década de 90 do século XX, com o surgimento de novos se tratar de bairros onde havia mais escassez de fogos por atribuir. (in,
arruamentos na urbanização nova do Bairro Padre Cruz, conjugado com a Camara Municipal de Lisboa, DGSPH/DEPGR, Equipa Técnica – Reflexões
falta de arruamentos em Telheiras onde era tradicional inserir topónimos sobre o Realojamento das Famílias Residentes no Vale do Forno, 2003).
de catedráticos, construiu-se aí um novo núcleo de topónimos de 12
professores universitários, a saber: Rua Prof. Lindley Cintra, Rua Prof. Este pequeno jornal associativo “Renascer escrevendo…” com edição do
Arsénio Nunes, Rua Prof. Pais da Silva, Rua Prof. Almeida Lima, Prof. Tiago primeiro exemplar em Julho-Agosto de 1994 manteve-se activo até 1997
de Oliveira e Fernando Piteira Santos, Prof. Miller Guerra (Edital de (2+26 números, no total). Porém, após 2 números surge em 1996 com
07/09/1993), Prof. Sedas Nunes (Edital de 27/09/1993), Professor um novo título “InfoRenascer” revelador do amadurecimento do projecto..
Fidelino de Figueiredo (Edital de 20/01/1998), Prof. Francisco da Gama
Caeiro (Edital de 20/09/1999), Jorge Vieira, Prof. Francisco Pereira de (Fase 4) 2000 a 2012: A requalificação do Bairro: o futuro e a
Moura, Prof.ª Maria Leonor Buescu (Edital de 15/06/2000) e também a memória
Rua de Barcelona (05/07/2000). 1
8 Em termos de transportes públicos de passageiros o Bairro dispõe das
A origem da comunidade cigana remontava aos finais dos anos 60. As carreiras nº 205, 726, 729, 747 e 768 da responsabilidade da Carris.
famílias (cerca de 13 agregados) residiam em barracas na Falagueira, Além disso, a uma distância de 700 m dispõe do interface da Pontinha
Concelho da Amadora. (…) Após 25 de Abril de 1974, a Junta de que oferece diversas paragens de autocarro da rede pública (Rodoviária,
Freguesia por pressão da população, cedeu um terreno e materiais para Carris e LT/Vimeca), estação de metropolitano na Pontinha (Linha Azul) e
que esta comunidade construísse um novo bairro próximo do Colégio praça de táxis. Recentemente a população passou a dispor de uma via
Militar (freguesia de Carnide). Em 1989, as famílias foram realojadas na ciclável, integrada na rede ciclável de Lisboa, mas cujo estado de
Rua Conselheiro Ferreira do Amaral em casas de habitação social térrea conservação inibe a respectiva utilização servindo sobretudo de caminho
em alvenaria pela Câmara Municipal de Lisboa. Em 1997 são desalojadas pedonal de ligação Pontinha/Carnide.
pela “Parque EXPO 98 S.A” por necessidade de reafectação do terreno e 2
realojadas no Bairro do Vale do Forno – Freguesia de Carnide pela mesma Dos 97 agregados realojados, 49% ficaram no Bairro Municipal da

141
Ameixoeira onde havia mais fogos municipais por atribuir; 16% foram 7
realojados no Bairro Alfredo Bensaúde e 12% na Alta Lisboa Norte. Os Despacho nº1/GVHR/2011, publicado em Boletim Municipal nº 855 de
restantes fogos municipais atribuídos situam-se em vários bairros 3/02/2011.
dispersos de Lisboa – Alta Lisboa Sul, Casal dos Machados, Flamenga, 8
Horta Nova, Furnas, Olivais Sul, Padre Cruz, Armador, Sargento Abílio – por Num interessante e recente artigo, Isabel Raposo propõe uma análise
se tratar de bairros onde havia mais escassez de fogos por atribuir. (in, sobre o modo como o poder central tem lidado com as intervenções
Camara Municipal de Lisboa, DGSPH/DEPGR, Equipa Técnica – Reflexões urbanísticas em territórios desfavorecidos sugerindo a recente mudança
sobre o Realojamento das Famílias Residentes no Vale do Forno, 2003). de paradigma: em contraste com o “paradigma higienista, racionalista e
3 funcionalista que suporta as operações de renovação urbana assente em
Informações retiradas do site da Gebalis – empresa municipal, e Agenda geral na demolição do edificado existente e na sua substituição por
21, Plano de Acção Bairro Padre Cruz, 2012. construção nova, e o paradigma emergente, interaccionista, em que se
4 enquadra o “construir no construído”. (vd. Raposo, 2012, “A Cidade entre
Alguns trabalhos de mestrado em arquitectura recentemente realizados Bairros”, p. 112).
sobre o Bairro Padre Cruz referem a escassez de espaços geradores de 9
encontro e contacto entre pessoas, sobretudo no bairro novo. (vd. No ano escolar de 2010-11 e após a realização da conversa com a Drª
referências na bibliografia) ( Cristina Santos, o Dr. António Almendra passou a presidir no cargo de
5 director do agrupamento de escolas do Bairro Padre Cruz. Para colmatar
O projecto de requalificação do Bairro Padre Cruz/QREN deu entrada com este desfasamento de registos optou-se por inserir o novo e posterior
o número CML-201146-DZZF e foi enviado para a Divisão de Gestão testemunho do Dr. António Almendra no documentário “Um bairro que
Social.“A Câmara Municipal de Lisboa promoveu, a 31 de Maio de 2009, a seja nosso”, entretanto realizado, e manter o registo da Drª Cristina
candidatura de Requalificação do Bairro Padre Cruz ao Programa Santos no presente documento atendendo a que esteve no cargo de
Integrado de Requalificação e Inserção de Bairros Críticos do QREN directora durante 10 anos e acompanhou o processo desde o seu início.
(Quadro de Referência Estratégico Nacional). Esta proposta foi aprovada 10
em Agosto de 2009, tendo o respectivo protocolo de financiamento sido Uma outra associação com trabalho no terreno do Bairro - SOS RACISMO
assinado entre a Câmara Municipal de Lisboa e o POR Lisboa (Programa “existe desde 1990 e propõe uma sociedade mais justa, igualitária e
Operacional Regional de Lisboa), em 18 de Janeiro de 2010. Este intercultural, onde todos, nacionais e estrangeiros com qualquer tom de
programa engloba a implementação de 11 operações, num montante pele, possam usufruir dos mesmos direitos de cidadania. Também a Wact,
global de investimento de cerca de 19 milhões de euros. instituição apolítica, laica, e sem fins lucrativos, forma Changemakers no
A requalificação visa a reconversão do espaço público, infraestruturas e bairro Padre Cruz desde 2009. “Um Changemaker WACT muda-se a si
ambiente urbano (operação 1), a construção de 2 lotes para realojamento próprio e aprende a mudar os outros. É proWACTivo: melhor e mais
(operação 2) a implementação de um edifício com 4 equipamentos de cidadão (…) Consideramos que a nossa experiência na área de desenho,
proximidade: creche, residências assistidas, centro de dia e serviços de implementação e avaliação de projectos é um dos nossos principais
apoio domiciliário (operação 5 e 6) e a construção de um campo trunfos. Consideramos que a nossa principal dificuldade tem sido a
desportivo informal (operação 9). As restantes operações promovem cativação do público adulto. Esperamos continuar a apoiar projetos deste
iniciativas de dinamização social, cultural, empreendedora e económica tipo focados no Bairro Padre Cruz ou noutros contextos semelhantes.”
da população de todo o bairro.(…)” (Afonso Fontoura, WACT, informação cedida por e-mail).
6
O novo conceito de eco-bairro aponta para uma nova política das cidades 11
e que Portugal tem procurado acompanhar, mais recentemente, desde Nota informativa na página da NET: a equipa de Goalball do CAC é já
2007 (Programa de Cidades Polis XXI, QREN 2007-13). Nascidos da detentora de um título de campeã nacional e vencedora da Taça de
necessidade de aliar um urbanismo sustentável a um estilo de vida Portugal (época 2009/2010). Na próxima época desportiva, o clube
ecológico, a operacionalização do conceito de eco-bairro depende da prepara-se para abraçar novas modalidades, continuando a fomentar a
acção consistente e integrada em vários domínios, desde a energia à prática desportiva em jovens com deficiência.
água, passando pelos transportes e mobilidade, o aproveitamento dos
resíduos, as técnicas e escolha dos materiais de construção sem
esquecer a sensibilização, mobilização e envolvimento das comunidades
locais. Procura-se alcançar novos equilíbrios entre o humano, físico e o
espaço construído onde a capacidade de gerar, gerir e integrar recursos
em várias vertentes procura melhorar o equilíbrio ambiental das presentes
e futuras populações.

142
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Lurdes Quaresma, Maria Pilar, Maria Piedade, Maria Rosa Leitão, Maria
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• Alberto Artur Mendes – Uma vida, um testemunho, poemas, Lisboa, Guerra, Maximiana Lopes, Natália Amorim, Natália Nunes, Natália
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