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Capítulo Especial – Ambre

“Não consigo conceber a ideia de que é preciso convencer metade da


população mundial de que meu corpo não é uma cama. Me ocupo
aprendendo que ser mulher tem consequências ”

– o que o sol faz com as flores

– Eu tinha 3 anos. As memórias são vagas. Na real, quase que nebulosas.

“Lembro de estranhar aquilo, de não saber bem o que estava acontecendo. Mas ele me disse
que isso era normal, porque eu era a garotinha dele. Nojento, eu sei.

“Também lembro de ver minha mãe saindo do quarto naquela primeira noite, e eu olhar pra
ela confusa. Ela escondia o rosto, mas sempre voltava de cabeça erguida como a mulher forte
que foi todos esses anos.

“Aos 5 anos, aconteceu novamente. A professora da escola tinha dito que não podíamos deixar
ninguém tocar no nosso corpo, mas ele tinha resposta pra tudo. Ele era meu pai, não tinha
nada de errado naquilo.

“Quando eu tinha 8, tive minha primeira paixãozinha. Contei aos meus pais, ele me mandou
ficar longe de rapazes, porque eles não iriam me fazer bem. A minha mãe só sorriu triste, disse
que eu devia escutar meu pai.

“Com 11 tive minha primeira menstruação. Aí as coisas começaram a ficar diferentes, porque
mamãe disse que eu já podia engravidar. Fiquei com medo, mas ela disse que se eu ficasse
longe de garotos, não teria riscos.

“Aos 13, engravidei. Mas nem meu irmão sabia disso. Meus pais pagaram um médico que
conheciam para fazer o aborto, mas era como se eu começasse a engordar a partir daí. E,
então, comecei a fazer dietas. Ficava horas sem comer, minha pressão caía. Mas não podia ir
na academia, porque ainda era muito nova.

“Depois desse episódio, ele começou a me dar menos atenção. Nathaniel começou a entrar na
linha, e eu comecei a perceber que ele foi perdendo aquele brilho da infância. Achei que era só
amadurecimento. Antes fosse.

“Durante o resto da adolescência, fui me tornando uma pessoa hostil. Eu não dormia direito,
pois vivia saindo escondida para festas. Eu não comia direito, pois vivia querendo ter o corpo
perfeito. Não estudava, pois estava ocupada demais me preocupando com minha aparência. E
com os garotos.

“Quando finalmente descobri o que era ter um sexo bom de verdade, ficava com diversos
garotos. Eu tinha só 15 anos.

“Nessa época, Castiel tinha terminado com Debrah, e eu só criava ainda mais expectativas para
o dia que ele me notaria de verdade. Fotos sensualizando, olhares discretos, roupas justas. Eu
queria um olhar. Uma atenção. Eu conseguia de todos, mas nunca dele.
“Minhas duas colegas eram mais para uso de popularidade do que amigas. Nos dávamos bem,
mas só para sermos más. Elas sabiam me agradar, isso bastava.

“Com 17, teve o acidente do Nath na festa que eu o levei. Aquele dia foi tenso. Descobri que
meu irmão era gay e fiquei com medo de alguém descobrir. Podemos imaginar quem era esse
alguém.

“Foi aí que fui aprendendo a amadurecer. Eu precisei ser a irmã de Nath e, além disso, sua
amiga. Eu não sei o quanto consegui ajudar, com as palavras que eu declarava a cada culpa
que ele colocava sobre si. Sabíamos bem que nosso pai não era nenhum santo, e eu melhor
que ele, sabia o quanto que o Sr. Chastain poderia ser cruel.

“Então, depois que a polícia começou a se envolver no caso, percebi que meus dias com
aquele homem estavam contados. Foi um choque o Conselho Tutelar aparecer na nossa porta
do nada. Mais ainda o Nath aparecer segurando a mão do Castiel.

“Mas no fim eu entendi que meu irmão só queria ser feliz. E ele merecia aquilo. Deixei que eles
se amassem livres. Apesar da pessoa que eu era, sabia o valor que o amor tinha em nossas
vidas.

“Morei com a minha mãe por alguns anos, até conseguir trabalhar. Eu já tinha feito diversos
testes no tempo do high school, mas nunca conseguia passar. Depois de um ano de dietas
cruéis, eu consegui meu primeiro contrato. Como (pasmem) modelo de biquini. Obvio que era
resultado de eu estar pesando 50kg, mesmo tendo mais de 1,60 de altura, o que,
convenhamos, não era saudável. Isso prosseguiu, por anos e anos. E, por anos e anos,
Nathaniel foi para mim o irmão cuidadoso que eu um dia cheguei perto de ser para ele. Ele me
retribuiu, até mais do que eu merecia.

“Eu levava todos os esporros possíveis dele, e de Castiel também – tínhamos feito amizade
naquele tempo. Mas eu tinha produtores que me diziam que aquilo era normal. Afinal,
modelos eram magras. Lembro de ter tanto esse pensamento na cabeça que,
involuntariamente, julgava outras mulheres por serem musculosas demais, gordas demais,
masculinas demais. Nesse momento (que notei meus julgamentos) percebi que aquilo tudo
não era só sobre mim. Nunca tinha sido.

“Eram dezenas de modelos – considerando só minhas conhecidas – que se submetiam a toda e


qualquer chance de serem perfeitas. Resolvi agir.

“Procurei Rosalya, que já estava trabalhando em um projeto para ajudar mulheres, e eu disse
que queria ajudar, que não queria mais aquela vida para mim. E cá estou, usando minha voz.
Contando minha história.

“Tudo para que vocês saibam que nunca estiveram sozinhas. Isso não é sobre nós, é tudo por
eles: os homens para quem trabalhamos. Eles querem usufruir de nosso corpo, de nossa
imagem, até de nossa saúde. Enriquecemos eles. Enchemos os bolsos deles. Mas somos
maiores, mais fortes e muito, mas muito, mais poderosas. Vamos fazer com que isso tudo seja
sobre nós, e para nós.”

As câmeras foram desligadas. Suspirei, consciente da grandeza disso tudo. Nunca pensei que
chegaria a ser revolucionária. Até agora.
– Você conseguiu, Ambre. Fez um trabalho perfeito – Rosalya disse, com um tom de incentivo
especialmente animador. – Esse é só o começo, e sabemos que não ajudará só a você.
Nathaniel vai ficar louco quando ver isso.

– Um dia ele vai perceber que precisava de mim. Aí vou receber meus devidos
agradecimentos.

– Com certeza – ela sorriu.

Espero que isso abra os olhos dele. Que ele saiba que, independente do que aquele Pablo
Solarte diz, Nathaniel é muito melhor que o pai, em todos os sentidos.

No fim de semana, os vídeos já estavam no ar, com alcance bem maior que eu esperava. Pelo
visto, ser modelo me trouxe alguns benefícios.

Não demorou mais do que algumas horas, Nathaniel apareceu na porta de casa. Irritado, para
variar.

Abri a porta, antes que ele espancasse ela até cair.

– VOCÊ FICOU LOUCA?! – gritava ele, entrando sem cerimônia na casa.

– Que? – pisquei, inocente. Como se não soubesse do que ele falava.

– O VÍDEO, AMBRE! O VÍDEO!

– Ah, aquilo. Veio dizer que eu não deveria parecer tão bonita nas câmeras pra falar de temas
sérios?

Ele bufou com meu tom de voz casual. Parecia uma panela de pressão no fogo – um tanto
como o Castiel no ensino médio.

– Você tem noção do que pode te acontecer por expor uma coisa daquelas?

– Que eu tive um pai abusivo? Achei que se tratasse da minha vida essa história.

– Eles vão vir atrás de você! Eles vão te caçar por deixar o homem ainda mais tempo na cadeia!

- Pro inferno com esses homens que você se meteu, Nathaniel. Eu não me importo. Eu fiz isso
por nós dois. Será que você é cego? Tá mesmo me julgando por ter contado a verdade, ao
invés de julgar os homens que supostamente vêm atrás de mim? Por que eu sou a errada? Fui
literalmente assediada por anos, tô sob ameaça de traficantes, e em momento algum você se
pergunta porquê eles fazem o que fazem. Sério?

Nathaniel entrou em choque. Eu sabia que ele seria difícil, mas não imaginei a esse nível.

Mas sabia quem poderia fazê-lo pensar um pouco mais.

– Vou ligar pro Castiel – declarei, saindo de perto dele.

Cast viria logo, e Nathaniel sentou no meu sofá, esperando ansioso.


Desde a festa das meninas, o beijo impulsivo deles, e todas as merdas que aconteceram
depois, eles acabaram se reaproximando. Não sei porquê não assumem logo o namoro, mas
agem como se nunca tivessem chegado a terminar.

Bryan sofreu um acidente depois da festa, acho que aquele foi o ponto principal que os levou a
se aproximarem. Jane, a irmã dele, ficou muito abalada, perder um irmão não devia ser fácil, e
os dois acabaram ajudando ela nesse tempo de luto – Nath por ser amigo dela, Cast por ter
sido amigo de Bryan. Apesar de tudo isso ser horrível, foi crucial para eles se reconciliarem.

Eles criaram alguma amizade diferente. Pareciam agir como se o beijo da festa nunca tivesse
acontecido – mesmo que todo mundo tenha visto. Até a Naomi descobrir toda a história do
Nath com o tráfico, eles brigaram feio, mas também foi outro ponto importante para eles
darem outro passo na relação.

Castiel tinha marcado de ir ver um filme na casa do Nath, era uma sexta-feira. Foi quando a
Naomi ligou contando que tinha avançado nas investigações dela. Ela mandou as provas pro
Cast: as fotos do Nathaniel entrando em galpões no meio da noite, as entregas que ele fazia
com a Kim, homens estranhos andando com ele. Tudo trabalho de um detetive profissional,
claro.

Castiel continuou agindo como se nada tivesse acontecido, então foi na casa do Nath de noite.
Aí ele disse que queria conversar, e o Nathaniel entrou na defensiva quando o Casy começou a
sugerir as coisas.

– O que você quer dizer com essas perguntas, Cass? Eu te falei que trabalho de noite, não é
estranho que eu chegue tarde em casa.

– Não, tudo bem. Eu só quero entender como você tá conciliando as coisas na sua vida.

Nath desviou o olhar, inseguro.

– Você sabe que não vou mais na universidade.

– E vai viver só desse trabalho daqui pra frente? Trabalhando noites a fio? Não faz sentido,
Nath.

– E o que isso tem a ver com sua vida, Castiel?! É problema meu.

– EU ME IMPORTO COM VOCÊ, CARAMBA!

Nathaniel congelou, surpreso.

Cast se aproximou aos poucos, os passos vacilantes.

– Eu me preocupo... Quero ver você bem... – sussurrava, como uma súplica. – Me deixa te
ajudar.

Nath desviou o olhar, sem saber como responder aquilo. Por um lado, ele queria ajuda. Por
outro, deveria ser assustador, um passo muito grande para ele.

– Preciso de um tempo – murmurou.

Castiel apenas assentiu, mas continuou se aproximando dele, até chegar perto o suficiente
para puxa-lo para um abraço. Nath se encontrou ali. Soube o que precisava fazer – mesmo sem
ter reunido coragem o suficiente para tentar.
Acho que o Nath teria deixado que tudo se resolvesse, teria tentado fazer a coisa certa. Mas
ele ainda estava muito assustado, a cabeça manipulada pelos homens para quem trabalhava.
Ele se convenceu, esses anos todos, de que deveria continuar assim para ser melhor que o pai,
então ele mudava as drogas das entregas para algo menos nocivo à saúde, algo que tivesse o
efeito parecido. Era o jeito dele de ajudar.

Só que sabíamos que isso estava ficando perigoso para ele. Foi aí que Naomi me ajudou a falar
com a Rosalya, a mostrar ao Nath que ele não podia continuar seguindo os passos do pai – ou
ele acabaria se tornando tão cruel quanto. Nathaniel precisava se libertar.

E, pelo visto, ainda teríamos algum trabalho duro pela frente. Saber que o Castiel estava
chegando era reconfortante, mesmo que ainda não fosse o suficiente. Tiraremos meu irmão
dessa vida, por mais que agora demore.

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