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Crítica | A Vida dos Outros

por Marcelo Sobrinho em 14 de março de 2018@planocritico

“Das pálpebras imóveis, das pálpebras de bronze,


deixem que corram lágrimas qual neve fundida,
deixem que as pombas da prisão arrulhem na distância
e que os barcos deslizem em silêncio sobre o Nevá”
Réquiem, de Anna Akhmátova

Os versos acima, de autoria da poetisa russa Anna Akhmátova, refletem o horror stalinista a que a artista foi
submetida, praticamente lançada ao ostracismo por quase três décadas durante o regime comunista soviético. O
sufocamento da figura do artista dentro da cortina de ferro é bastante conhecido e abordado pelas artes. No caso
do cinema, um dos melhores retratos já realizados sobre o assunto é o longa-metragem alemão A Vida dos Outros.
O filme, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2007, se passa na Berlim Oriental, em 1984 (o que
remete imediatamente à obra máxima de George Orwell), quando a polícia secreta da Alemanha Oriental –
a Stasi – empreendia a mais paranóica vigilância de seus cidadãos dentre todas as organizações policiais de todos
os países do bloco socialista. Se Adeus, Lênin!, de Wolfgang Becker, utiliza da sátira para explicar o degelo político
iminente na Alemanha comunista, o filme de Florian Henckel von Donnersmarck se defronta pesadamente com o
tema da supressão das liberdades individuais e do vilipêndio ao artista dentro do mesmo contexto.

O roteiro, também escrito por Donnersmarck, é primoroso. O diretor e roteirista estreante consegue evitar a
composição de personagens achatados e maniqueístas, ainda que esteja lidando com indivíduos que tem diante
de si escolhas difíceis e que, indubitavelmente, passam por noções de certo e errado, bem e mal. Mas é
convincente a construção de personagens que fraquejam, tem dúvidas e recuam diante de suas primeiras
decisões. Georg Dreyman (Sebastian Koch) inicia o filme como um dramaturgo obediente ao governo, ainda que
não escape ao patrulhamento de seus membros. Sua namorada Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck) segue
seus passos e vai até mais longe que Georg em sua tentativa de auto-preservação. Gerd  Wiesler (Ulrich Mühe) é o
oficial da Stasi encarregado de comandar a operação de vigilância do apartamento do casal por meio de um
sistema de escutas. Contudo, se o casal de artistas não tarda a entender que a alienação política tem seus limites
óbvios, transformação maior será a de Wiesler ao descobrir que há algo ainda maior que a obrigação política.

É desenvolvendo lindamente essas duas camadas que A Vida dos Outros segue seu caminho. Qual deve ser o
nosso engajamento com o nosso tempo e com quaisquer tempos, em que pese a figura do outro como imperativo
maior? O trabalho de Donnersmarck mantém a cadência exata para responder a essa questão. O diretor alemão
não é de colocar seus quadros em grande movimento, mas acerta bem quando o faz. Quando Wiesler ouve Georg
tocar a Sonata para Um Homem Bom ao piano, Donnersmarck realiza um lindíssimo travelling circular ao redor do
oficial da Stasi, arrancando dele toda a gravidade que o momento (quase epifânico) exigia. A lágrima que escorre
no rosto de Wiesler é um dos grandes momentos da atuação de Ulrich Mühe, um dos maiores atores do teatro
alemão e com uma breve mas inesquecível passagem pela sétima arte. O diretor abre e fecha seus planos para
exprimir as transformações de seus personagens e corta de um para outro, economizando diálogos e permitindo
que o público faça suas deduções ao mesmo tempo em que eles.

O filme toca em um ponto nevrálgico das ditaduras e que merece ser olhado com atenção. Todas elas, sem
exceção, quer se orientem à esquerda ou à direita, perseguiram artistas de modo implacável. A soviética provocou
longos períodos de sofrimento a uma lista incrivelmente extensa, que inclui, além de Akhmátova, figuras como os
compositores Sergei Prokofiev e Dmitri Shostakovich, o poeta e dramaturgo Vladimir Maiakovski e o
pintor Wladislaw Strzeminski. A ruptura de Jean-Paul Sartre com o regime cubano se deu exatamente na ocasião
da prisão do poeta Heberto Padilla, após longa e injustificável perseguição. Hitler tentou enterrar a música de Felix
Mendelssohn, de ascendência judia. Augusto Pinochet arruinou vidas e carreiras, como a do músico Victor Jara. O
maior temor de todos os regimes ditatoriais nunca foi a atividade de guerrilhas que a eles resistiam. A atividade
artística, ao ampliar ideias e dilatar percepções, sempre foi muito mais subversiva do que o disparo de qualquer
arma. As peças de Georg e do amigo Albert Jerska (Volkmar Kleinert) foram um sopro de vida dentro da cinzenta
RDA e fizeram surgir “o novo sob o disfarce de um milagre”, como gostava de dizer Hannah Arendt.

Não à toa, a transformação de Wiesler parece tão miraculosa e acontece exatamente sob o efeito dos acordes
da Sonata Para um Homem Bom. A arte o ajudou a reencontrar uma humanidade anterior ao posto político que
ocupa e à farda que veste. Contra todas as probabilidades, em um cenário tão adverso, renasceu nele o sentido
primeiro de compromisso com o outro. Wiesler compreende que não era possível continuar vivendo sem que
fizesse a única coisa que lhe parecia correta. Nota-se a consciência do policial alemão de que seu ato arruinaria a
sua própria vida, mas, ainda assim, ele toma a sua posição sem titubear, como se não houvesse outra coisa a se
fazer. Essa consciência é a mesma que leva pessoas a arriscarem a própria vida para salvarem outras em
situações extremas, como guerras e catástrofes naturais. Há algo mais profundo que nos conecta. Algo impresso
em nossa humanidade mais medular. Acima do engajamento político, essa é a grande camada que  A Vida dos
Outros trabalha.

Mesmo que o roteiro do filme de estreia de Florian Henckel von Donnersmarck trabalhe com um contexto político
bastante específico, a sua abordagem extrapola muito seus limites históricos. Tudo é tão bem construído que nem
o acidente automobilístico final ganha um tom de solução fácil. A direção talentosa e o roteiro tão bem escrito do
jovem Donnersmarck deixam a dúvida – não seria aquele um último suicídio de um artista sob o céu plúmbeo da
RDA? O certo é que A Vida dos Outros manda uma mensagem clara para todos os que, movidos por atroz
analfabetismo político ou pura má fé, reclamam soluções ditatoriais para um país. Uma ditadura sempre começará
a definhar quando um homem for capaz de se reconhecer no outro. Algo que totalitários de direita e de esquerda
nunca foram capazes de compreender.

A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen) – Alemanha, 2006


Direção: Florian Henckel von Donnersmarck
Roteiro: Florian Henckel von Donnersmarck
Elenco: Martina Gedeck, Sebastian Koch, Thomas Thieme, Ulrich Mühe, Ulrich Tukur
Duração: 137 minutos

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