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O presidente Jair Bolsonaro de máscara no Palácio do Planalto, em Brasília, no período em que esteve infectado pelo coronavírus  Ueslei Marcelino - 9.jul.2020/Reuters

A arquitetura da destruição
[resumo]  Professor argumenta que o bolsonarismo, ao contrário do que dizem seus críticos, é um poderoso
sistema de crenças resultante do encontro de três fatores: a Doutrina de Segurança Nacional, um livro secreto
da ditadura e a pregação de Olavo de Carvalho. A combinação, diz, articula uma visão de mundo bélica, expressa
numa retórica de ódio alimentada por teorias conspiratórias, que precisa ser decifrada para ser superada

Por  João Cezar de Castro Rocha


Professor de literatura comparada na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e ensaísta. Lança o livro ‘Guerra Cultural e Retórica do Ódio (Crônicas de um Brasil Pós-político)’, pela editora Caminhos, até o fim do mês

Se não está conseguindo falar a


língua do povo, vai perder mesmo. E se não for tão simples assim? E reita e da extrema direita em todo o Na mentalidade bolsonarista, de- mada e, sobretudo, pela brutalida-
[...] Tem uma multidão, que não se o bolsonarismo, ao contrário do mundo, concentro meu estudo do fe- cisivo é o decreto-lei de 29 de setem- de de seus métodos repressivos. O
está aqui, que precisa ser conquistada. que gostaríamos de acreditar, não nômeno em traços prioritariamen- bro de 1969, cujo espírito draconia- resultado foi um documento de 953
Ou a gente vai cair num precipício. somente existir, como também ti- te brasileiros. Hora de passar da ca- no equivalia às arbitrariedades im- páginas, cuja leitura exige dedicação
Mano Brown ver articulado uma visão de mun- ricatura para a caracterização da ló- postas pelo infame AI-5, de 13 de beneditina para sobreviver à prosa
do bélica, expressa em uma lingua- gica interna do movimento. dezembro de 1968. Em 107 artigos, mais insípida de que se tem notícia.
gem específica, a retórica do ódio, Em boa medida, o bolsonarismo a palavra morte aparece 32 vezes e Se “Brasil: Nunca Mais” elencou as
e codificada em uma estrutura de é o resultado do encontro de três nada menos que 14 artigos prescre- arbitrariedades da ditadura, o “Or-
O dilema pensamento coesa, composta por fatores, cuja inter-relação assegu- vem a pena de morte. vil” enumerou os crimes atribuídos
A esfinge bolsonarista tem devora- labirínticas teorias conspiratórias? ra a coerência e a orientação que Voltarei à centralidade da DSN na à guerrilha. O livro-vingança nunca
do boa parte da melhor intelectua- Esses elementos forjaram um po- decidimos ignorar. É bem verda- mentalidade bolsonarista; de imedi- foi levado a sério, a não ser por um
lidade brasileira, produzindo o cu- deroso sistema de crenças, respon- de que a coerência é tão absoluta ato, destaco sua razão de ser: identi- punhado de oficiais de alta patente
rioso fenômeno do desentendimen- sável pelos míticos 30% que parecem que se torna paranoica, assim co- ficação e eliminação do inimigo. Eis e por militantes de extrema direita.
to inteligente. A última vítima dessa resistir ao mais elementar princípio mo a orientação privilegia quase o cerne da mentalidade bolsonarista. Mesmo após o notável trabalho de
incompreensão elegante foi o cine- de realidade. Não importa se o po- exclusivamente a destruição das O segundo elemento é o texto sa- Mário Magalhães e de Lucas Figuei-
asta e ensaísta João Moreira Salles. lítico se esmera em oferecer um re- instituições criadas pela Consti- grado da família Bolsonaro: trata- redo, jornalistas investigativos que
Em seu artigo “A morte e a morte” médio mágico a uma atônita ema. tuição de 1988. Porém, “cada lu- se do Santo Graal da extrema direi- revelaram a existência do Orvil, o
(publicado em julho na revista pi- Foi um sinal bem triste, mas, ape- gar, uma lei; cada lei, uma razão”. ta nos trópicos, que, além de tris- documento não chamou a atenção
auí), ele encontrou a fórmula má- sar da nova sandice cometida pelo Negar ao bolsonarismo racionali- tes, tornaram-se ressentidos e revi- dos historiadores. Contudo, ele é a
gica da paz em uma equação cujos Messias Bolsonaro, o apoio ao Jair dade imobiliza nossa capacidade sionistas. Refiro-me ao “Orvil”, pro- Bíblia da família Bolsonaro, a ver-
ecos tanto surpreendem quanto in- segue inabalável. de reagir ao irracionalismo metó- jeto secreto liderado pelo ministro dadeira fonte de sua visão de mun-
quietam: “Não existe bolsonarismo, Por quanto tempo? Provavelmen- dico de seus propósitos. do Exército de José Sarney, Leôni- do bélica.
apenas bolsonaristas”. te o tempo que levarmos para deci- O primeiro elemento que define o das Pires Gonçalves. Consulte-se o subtítulo da obra
Pronto! Tudo resolvido: corpos frar a esfinge e inventar uma nova bolsonarismo é uma insensata tra- O “Orvil” (“livro” escrito ao con- para avaliar sua relevância: Tenta-
sem cabeça, pura agitação fisiológi- linguagem que ilumine para a soci- dução de certo aspecto da Doutrina trário) pretendia virar de ponta- tivas de Tomada do Poder. Muito
ca, sem traços ideológicos que não edade o obscurantismo do projeto de Segurança Nacional (DSN) para cabeça uma das mais importantes mais que uma lista caótica dos pe-
sejam a cópia apressada de conteú- bolsonarista. tempos democráticos; trata-se de obras acerca da violência de Esta- cados do inimigo, o documento in-
dos mal-assimilados. Tranquiliza- aberração jurídica que, por exemplo, do —aí incluídos a tortura, o assas- ventou uma matriz narrativa cons-
nos o ensaísta: “Bolsonarismo im- confere inteligibilidade à vergonho- sinato e o desaparecimento de cor- piratória que constitui a essência do
plicaria um conjunto coerente de sa reunião ministerial de 22 de abril. pos de adversários políticos. “Bra- bolsonarismo, esclarecendo a ori-
ideias e uma visão de mundo articu- O projeto A DSN foi desenvolvida no am- sil: Nunca Mais”, de fato, teve enor- gem da arquitetura da destruição
lada, elementos que faltam à prega- Sem arrumar todas as peças do ta- biente da Guerra Fria e sua função me repercussão no país e no exteri- que define o movimento.
ção política de Bolsonaro”. buleiro de xadrez, sem considerar era proteger o espaço nacional por or, produzindo uma mancha indelé- Assim reza a lenda: desde 1922, ano
Portanto, na ausência de um cére- as complexidades do meio-jogo e, meio da obsessiva identificação do vel na imagem das Forças Armadas. de fundação do Partido Comunista
bro organizador de ideias que pri- sobretudo, sem calcular cuidado- inimigo externo. Uma vez desco- O livro reúne relatos de vítimas da do Brasil, não se passou um dia se-
mam pela ausência, os corpos bol- samente as inúmeras variantes dos berto, seguia-se a aplicação criteri- ditadura, tal como foram registra- quer sem que o movimento comu-
sonaristas sofrerão muito em bre- finais de partida, como sequer ima- osa de seu corolário de ferro: elimi- dos nos processos instruídos pela nista internacional, por meio de seus
ve o colapso provocado pelo movi- ginar o xeque-mate no adversário nação do inimigo. Justiça Militar brasileira. As denún- representantes locais, não tenha ten-
mento incessante que os comanda, inesperadamente forte? A Escola Superior de Guerra adap- cias encontram-se nos documentos tado estabelecer no Brasil a ditadu-
pois não dispõem de rumo claro e De igual modo, suprimir o tabu- tou a DSN às circunstâncias da dita- oficiais das Forças Armadas! O gol- ra do proletariado —e que rufem os
muito menos de orientação defini- leiro não parece uma boa estraté- dura militar (1964-1985), que promul- pe foi profundo. tambores e soem os clarins!
da. Se for assim mesmo, “um dia a gia. Pelo menos, se pensarmos em gou quatro leis de segurança nacio- Olho por olho, livro por livro: por As três primeiras tentativas recor-
menos ou um dia a mais, sei lá, tan- vitória; caso contrário, “não dá, não nal (em 1967, 1969, 1978 e 1983); esta três anos, de 1986 a 1989, oficiais vas- reram às armas e foram derrotadas
to faz”, o bolsonarismo que não exis- deu, não daria de jeito nenhum”. última, aliás, segue vigente e infeliz- culharam os arquivos do Centro de militarmente. Entretanto, nos ter-
te terminará por desfazer no ar os Vamos, pois, armar o quebra-cabe- mente tem sido utilizada com entu- Informações do Exército (CIE), te- mos do “Orvil”, a iniciativa “mais pe-
muitos bolsonaristas que insistem ças bolsonarista? Em lugar de pro- siasmo nos últimos meses —não es- mido pela capacidade de infiltrar rigosa” iniciou-se em 1974, quando a
em se mobilizar. por paralelos com a ascensão da di- queçamos sua origem espúria. agentes nos grupos da esquerda ar- esquerda realizou uma autocrítica
a eee Domingo, 9 DE Agosto DE 2020   C7 

ilustríssima

De novo,
a burrice
É difícil separar estupidez, má-fé e suicídio
coletivo na gestação dos fascismos

--
Bernardo Carvalho
Romancista, autor de ‘Nove Noites’ e ‘Simpatia pelo Demônio’

Muita gente rechaça a faci- do’ era citada como exem-


lidade com que se compara plo notório de imbecilida-
o que estamos vivendo com de, embora ela forme hoje
a gestação do nazifascismo. a base de uma opinião jurí-
É compreensível. Invocam o dica muito debatida”, escre-
rigor acadêmico para traçar veu Musil em 1937.
diferenças, apontando uma O escritor viveu em Vie-
série de características his- na até a anexação da Áus-
tóricas da gênese do fascis- tria pela Alemanha, em 1938,
mo que não se verificariam quando se exilou na Suíça.
entre nós. O primeiro volume de sua
O que talvez não percebam obra-prima inacabada, “O
é que assim também muni- Homem sem Qualidades”,
ciam, entre outras coisas, saiu em 1930. Projeto lite-
a hipocrisia retórica de um rário imenso, o livro é assim
ministro da Justiça capaz de definido por J.M. Coetzee no
lançar mão de excrescências prefácio à edição argentina
da ditadura militar em defe- dos textos curtos do autor:
sa de uma suposta honra do “Um romance no qual a ca-
chefe e contra antifascistas. mada mais alta da socieda-
Que eu saiba, até agora de vienense, dando as costas
ninguém contestou a cor- para as nuvens de tempesta-
respondência entre a estupi- de que se avolumam no ho-
dez dos dois momentos his- rizonte, reflete longamente
tóricos. Como se os exem- sobre a forma que dará ao
plos recentes não bastassem, próximo festival de autocom-
um pequeno ensaio escrito placência”.
em 1937 por um dos autores Lembra alguma coisa ou
mais inteligentes da história é melhor não comparar mo-
da literatura pode nos aju- mentos históricos tão dís-
dar na confirmação de que pares?
severa e mudou de estratégia, aban- te o que estão fazendo e sem dúvi- ocorre sem que a pessoa obrigato-
donando os coturnos e abraçando da se congratulam ao escutar que o riamente tenha consciência: trata- a burrice continua a mesma. Vê-se que a burrice já não
os livros, a fim de conquistar cora- bolsonarismo não existe: é mais fá- se de processo similar ao da lava- “Não existe pensamento im- era privilégio de ignoran-
ções e mentes por meio da infiltra- cil destruir se não se reconhece sua gem cerebral. portante do qual a burrice tes nem atributo de pobres.
ção lenta, porém segura, nas insti- existência. Por fim, esse ânimo for- O bolsolavismo é um poderoso não consiga se apossar; ela Musil inicia seu ensaio com
tuições do Estado e da sociedade ci- jou sua linguagem, a retórica do ódio. sistema de crenças, dotado de co- pode tomar diversas direções uma formulação cuja ironia
vil. Abandona-se a ditadura do pro- erência interna paranoica, tornan- e vestir todas as roupas da ver- talvez não esteja ao alcance
letariado, e entra em cena o jardim do-o praticamente imune ao prin- dade. Esta, por sua vez, tem dos nossos oportunistas de
da infância da contracultura. cípio de realidade. apenas uma roupa por ocasi- plantão: “Se a burrice não
Poderosa matriz conspiratória Rumo à Estação Brasília Eis a definição da guerra cultural ão, um único caminho, e está fosse tão parecida, a ponto
que não somente antecipou com Definida a visão de mundo bélica, re- bolsonarista, o verdadeiro centro sempre em desvantagem”, es- de confundir-se com o pro-
exatidão os termos e os pressu- forçada por uma estrutura de pen- de gravidade que permitiu a vitória creveu o austríaco Robert Mu- gresso, o talento, a esperan-
postos do delírio teórico forjado samento conspiratória, faltava ao eleitoral de Bolsonaro.
por Michael Minnicino e William S. bolsonarismo uma linguagem, a fim
sil (1880-1942) em “Sobre a Es- ça e o aperfeiçoamento, nin-
Lind, o gelatinoso “marxismo cul- de propagar os princípios da arqui- tupidez” (publicado no Brasil guém desejaria ser burro”.
tural”, como também identificou o tetura da destruição para além dos pela Âyiné, em 2016). E assim como ninguém é
inimigo permanente, “nossa ban- círculos militares e do número en- O paradoxo É difícil delimitar as fron- inteligente sozinho, é mais
deira jamais será vermelha”, e ou- tão ínfimo de militantes de extre- A reunião de 22 de abril é o autorre- teiras entre a burrice, a má- fácil ser burro em grupo:
tros tantos clichês kitsch que re- ma direita. trato involuntário do governo en- fé e o suicídio coletivo na ges- “As condições de vida atu-
montam ao anticomunismo pau- Chegamos ao terceiro elemento quanto arquitetura da destruição. tação dos fascismos. Hoje, ais são tão pouco claras, tão
para-toda-obra do “Orvil”. que assegura coesão ao bolsonaris- Penso no documentário de Peter com as chamadas fake news, difíceis, tão confusas, que as
A mentalidade bolsonarista pro- mo: o sistema de crenças Olavo de Cohen, realizado em 1989 e surpre- temos mais uma correspon- burrices ocasionais do in-
jeta para o presente a eterna amea- Carvalho. Nos anos 1990, Olavo te- endentemente atual no Brasil bol- dência com elementos his- divíduo podem facilmente
ça comunista, fantasia que formou ve uma atuação decisiva para a as- sonarista. tóricos aos quais não gos- acarretar uma burrice cons-
a geração do capitão reformado-pa- censão da direita, que perdeu a ver- Naquele dia, chegávamos ao ter- taríamos de ser associados. titucional coletiva”.
ra-não-ser-expulso Bolsonaro e dos gonha de dizer seu nome. A publica- rível número de 2.906 mortes. Ma-
generais Augusto Heleno e Hamil- ção de uma trilogia deu inédita uni- nifestou-se solidariedade aos fami- A cara de pau dos estafetas Ao longo da década de
ton Mourão. Aliás, o ídolo do presi- versalidade à matriz narrativa do liares das vítimas da Covid-19? Pla- das autocracias se manifes- 1930, Musil começou a te-
dente e do vice-presidente, o coro- “Orvil”, mesclada com uma diverti- nejaram-se ações para conter a pes- ta na inversão das “roupas mer pela conclusão de sua
nel Carlos Alberto Brilhante Ustra, da pretensão filosofante e uma ex- te? Você se recorda, não é mesmo? da verdade”. Basta o fascis- obra-prima. O que estava em
declarado torturador pela Justiça cêntrica análise panorâmica da ci- Paulo Guedes sonhou em esconder ta dizer que é a favor do Es- questão no romance era a fa-
de São Paulo em 2008, escreveu a vilização ocidental. “a granada no bolso do inimigo”, is- tado democrático de Direi- lência dos princípios ilumi-
“apresentação” da versão impressa Muitos encontraram nos livros to é, DSN atualizada, o funcionalis- to (dizer que defende os indí- nistas: “Não é difícil conclu-
do “Orvil”, publicada em 2012. “A Nova Era e a Revolução Cultural” mo público; Damares Alves entrou genas, a Amazônia e a liber- ir que a desesperança cres-
Ora, para compreender a visão de (1994), “O Jardim das Aflições” (1995) em êxtase para prender governado- dade de expressão, enquanto cente de completar ‘O Ho-
mundo bélica e a estrutura de pensa- e “O Imbecil Coletivo” (1996) idênti- res e prefeitos; Ricardo Salles, sem promove a extinção de povos mem sem Qualidades’ sur-
mento conspiratória do bolsonaris- co impulso de eliminação do inimi- corar, sugeriu “ir passando a boia- indígenas, o desmatamento giu em parte do sentimento
mo basta associar os dois elementos. go e o mesmo apego adolescente a da e mudando todo o regramento”.
A DSN exige uma concepção agôni- teorias conspiratórias, agora multi- Chega: só há náusea, flor alguma da floresta e o fim das liber- de que seu projeto, concebi-
ca, que busca identificar e eliminar plicadas na imaginação tão sem frei- “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o dades individuais) para im- do no espírito do que consi-
o inimigo. O “Orvil” oferece a cere- os quanto o uso desinibido do ver- ódio”; aqui, nesse vulgar oportunis- plodir as instituições demo- derava uma ‘suave ironia’, ti-
ja do bolo: o movimento comunista náculo por parte de Olavo. mo de tragédia, é pura utopia o ver- cráticas. vesse sido atropelado pelas
internacional está sempre à esprei- O ingresso nas redes sociais pro- so de “A Flor e a Náusea”, de Carlos Se você perguntar ao Quei- quadrigas malignas da his-
ta, levando à identificação imediata piciou ao autor de “Apoteose da Vi- Drummond de Andrade. roz se ele é contra a corrup- tória”, escreve Coetzee.
e sempre certeira do adversário in- garice” (2013) o aprimoramento de Nesta circunstância dramática, é ção, ele certamente dirá que A época pedia um estilo
fatigável, o “perigo vermelho”, me- estratégias discursivas cristalizadas mais oportuno recordar Friedrich sim. E é capaz de jurar por menos refletido e distancia-
tamorfoseado na era digital em ma- na retórica do ódio, o principal fru- Hölderlin e seu poema “Patmos”: Jesus que votou em Jair Bol- do. Algo mais próximo e di-
lévolo “globalismo”. to dos cursos ministrados por Ola- “Mas onde há perigo, cresce / Tam- sonaro para limpar o país reto, “como a expressão da
Contudo, como traduzir a DSN em vo; aliás, ele é igualmente responsá- bém o que salva”. do crime. vida privada”, Musil anotou
tempos democráticos? Como elimi- vel pela disseminação do embaraço- A guerra cultural bolsonarista se
nar adversários, travestidos de ini- so analfabetismo ideológico, muito alimenta de um paradoxo que pre-
A falta de pudor é obvia- em seus diários no mesmo
migos externos? mais prejudicial que o analfabetis- nuncia sua ruína. Eis: o êxito do mente encorajada pelo fi- ano em que escreveu “Sobre
O “Orvil” explica: se a quarta ten- mo funcional e produtor das pola- bolsonarismo significa o fracasso nanciamento e pela impuni- a Estupidez”. Os tempos pedi-
tativa de tomada do poder, inicia- rizações acéfalas que inviabilizam do governo Bolsonaro. Sem guerra dade do anonimato nas re- am que abrisse mão da refle-
da em 1974 (e ainda atuante, como a discussão de ideias no espaço pú- cultural, não se mantém as massas des, travestido de “liberdade xão irônica do romance, em
prometem os comentários involun- blico brasileiro. digitais mobilizadas em constante de expressão”: “Num manual nome da encenação do eu.
tariamente surrealistas do vereador A retórica do ódio é a mais com- excitação; contudo, a guerra cul- de psiquiatria outrora bas- De novo, ocorre algo ou é
Carlos Bolsonaro), consistiu na in- pleta tradução das consequências tural, pela negação de dados obje- tante conhecido, à pergun- melhor não insistir na com-
filtração das instituições da cultu- plúmbeas da DSN, limitando o ou- tivos e pela necessidade intrínse- ta ‘Que é a justiça?’, a respos- paração de momentos histó-
ra, da educação, do entretenimen- tro ao papel de antagonista, inimi- ca de inventar inimigos em série, ta ‘Quando o outro é puni- ricos tão distintos?
to e da imprensa, então, a tarefa de go a ser destruído. É o reino desen- não permite que se administre a
governar é secundária; a missão pri- cantado do vale-tudo travestido de coisa pública.

[
oritária consiste em destruir insti- filosofices: xingamentos, desquali- A guerra cultural é a origem e a
tuições “aparelhadas” e corroer por ficações, corruptelas ginasianas de forma da arquitetura da destruição,
dentro as estruturas do Estado de- nomes próprios, redução obscena marca d’água do bolsonarismo, mas,
mocrático. da língua portuguesa a dois verbos, por isso mesmo, será (ou já é?) a ra- Se você perguntar ao Queiroz se ele
Em apenas 20 meses, o bolsonaris- ir e tomar. zão do fracasso rotundo do governo é contra a corrupção, ele certamente
mo tornou-se a mais eficiente e per- O analfabetismo ideológico con- Bolsonaro; aliás, como infelizmente
versa máquina de destruição de toda siste em somente ler no texto alheio ficou demonstrado pela omissão e dirá que sim. E é capaz de jurar por
a história republicana, representan- as projeções de suas convicções po- pelo negacionismo diante da peste Jesus que votou em Jair Bolsonaro
do à democracia uma ameaça mais líticas: o “Orvil” tornado uma biblio- da Covid-19. para limpar o país do crime
assustadora que os excessos da pró- teca de Babel de estantes vazias. Fe- No entanto, precisamos assimilar
pria ditadura militar. nômeno ainda mais deletério que a advertência de Mano Brown “ou
Os bolsonaristas sabem exatamen- a propagação de notícias falsas, ele a gente vai cair num precipício”. Â | dom. Bernardo Carvalho, Jorge Coli, Marilene Felinto

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