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terra vermelho-acinzentada, minha boca secava com mais frequência do que posso me
lembrar de todas as outras terras por onde ousei errar. Receio fraquejar antes de
completar essa viagem uma vez que os anos de mercenarismo agora caem sobre meus
ombros, como se cobrassem dívidas não pagas, mulheres roubadas, ouro saqueado ou
sangue derramado; não fosse experiente na peregrinagem desprovida de
mantimentos, teria morrido como alguns já o fizeram. Apesar disso, a jornada através
de Imuhghan é penosa, principalmente para um velho como eu. Há três semanas
partimos de uma aldeia nômade quase ao centro daquele mundo de areia escaldante,
e atravessamos a maior parte como um grupo de tamanho considerável, formado por
jovens querendo mostrar valor protegendo o carregamento – castanhas, carne
defumada, carne seca, ervas preparadas da sólida planta que resiste à intempéries
climáticas, além de ouro, pedras preciosas e uma porção de outras especiarias. O
restante apenas aproveitou o momento para engrossar a fileira do comboio, tornando
maiores as chances de sobrevivência pelo tortuoso caminho por dentro do Cinturão
das Tribos Bárbaras do Deserto de Turiash, como é conhecida a região pelos que estão
do “lado de fora” da cadeia de montanhas. De certa forma, o colossal desfiladeiro de
montanhas que fecha essa enorme parte de terras a sudoeste de Raklot impede que as
ondas de areia e tempestades de calor se alastrem por todo continente, porém
dificulta a passagem de qualquer viajante para qualquer um dos lados do cinturão.
Imuhghan é a filosofia que orienta a vida dos Koha, que vivem na região a mais tempo
do que seus ancestrais conseguem recordar, e é também a expressão que nomeia toda
área definindo com perfeição o que é o sofrimento de uma travessia pelo deserto:
“onde não há misericórdia para os fracos”.
Nesta época do ano o calor era mais ameno, mas compensado pela intensa
seca que cortava a pele e poderia matar um homem destruindo seus órgãos. Percebi
que a vegetação começava a ser salpicada pelo verde esmeralda dos arbustos que
nascem junto ao rio do Tronco Solitário. Estávamos perto do fim. Após mais de dez
dias de marcha cansada, este era o primeiro local com água suficiente para beber,
encher os cantis e ainda refrescar o corpo, por isso resolvemos estender a parada até o
dia seguinte, o que me daria tempo para mapear o local e traçar uma rota mais
tranquila por entre os rochedos das terras selvagens. E foi perdido em pensamentos
que a vi. Tinha aparência de estar encravado na pedra bruta, próximo do topo de uma
chapada. Sem dúvidas era uma construção abrigada no platô largo há cerca de duas
horas de caminhada. Meu espírito livre latejou naquele instante, que teria de me
aventurar por uma pequena estrada que descia por lá e descobrir exatamente do que
se tratava, faltando algumas horas para escurecer me dava a impressão de ser o
necessário para a exploração. Deixei a maior parte do meu equipamento com o jovem
que estava sob meu treinamento. O rapaz me foi entregue para aprender a sobreviver
por terras ferozes e eu, claro, recebi uma boa quantia adiantada por isso. Seu
treinamento já estava no fim, sendo a “prova” chegar até a próxima cidade, logo
depois do cinturão. Apenas larguei o desnecessário na frente da barraca que o garoto
montava e pedi para preparar algo quente até minha volta. Para não cansar o cavalo
de carga, saí com o garanhão que uso em combates e guerras. Um belo animal,
robusto e com uma arrancada enérgica que desnorteia meus adversários. Evidente que
poderia surgir algum perigo, e por isso eu preferiria estar mais preparado. Passamos
por entre uma estrada pouco utilizada, mas em atividade recente, até que os rastros
de carroças e animais prosseguiu por eucaliptos já bem altos. Por sua resistência à
ambientes hostis mais a força de suas raízes que chegam até as entranhas
inimagináveis da terra para alcançar qualquer resquício de água, estas espécies
conseguem ser robustas e fortes mesmo por aqui. Há muito tempo percebi que em
cada região os eucaliptos tem cheiros diferentes, é como se todos tivessem o mesmo
perfume de leve ardência adocicada, mas com odores levemente alterados. Fico
pensando no que causa essa mudança, seria apenas a água que sugam ou outra coisa
que as alimenta?