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I PT (3 ey a me So Gok CL - Ate al he, ere e imei te tae te ie PEO 2 OAR LA oF er xa Fr SE EP @ , Sy SO Oe Seek RT. ES ANA CLARA TORRES RIBEIRO por uma sociologia do presente a¢do, técnica e espaco VOLUME 2 e % Sujeito corporificado e bioética: caminhos da democracia No hay deseo inocente; no hay descubrimiento inmaculados no hay viajero que, secretamente, no se arrepienta de dejar su tierra y tema no regresar nunca a su hogar. Carlos Fuentes — Valiente mundo nuevo Ao novo impeto do capitalismo, iniciado apés a recessao do inicio dos anos 70, tem correspondido lutas e reivindicagées pela instauragao de uma esfera mundializada de direitos e, assim, de emanacao de valores e orientacao ética. Trata-se da potencial emergéncia, como nos diz Otavio Ianni (1992; 1996), da cidadania vivida na escala mundo, expressiva do exercicio de direitos sociais na mesma escala alcangada, com o apoio da tecnologia de comunicaco, pelos novos circuitos de troca de bens e informagées. A construgao desta esfera mundializada de direitos, ainda praticamente inexistente, desafia as formas hist6ricas de organizag4o social e politica, trazendo a tona questées relativas 4 soberania dos Estados nacionais e as profundas diferengas entre sociedades e culturas. Precisaria ser dito, ainda, que a instauragao da nova esfera de direitos e de debate de valores tem sido detida pelo pensamento tinico, pelo pensamento hegeménico. Este pensamento, que é basicamente economicista e instrumental, cria obstdculos a afirmagao de forcas sociais e politicas capazes de conter a fiiria cega do mercado. De fato, a atual hegemonia do pensamento neoliberal (Sader e Gentili, 1996) manifesta-se alterando, muitas vezes de maneira sutil, o trabalho, o saber e as normas condutoras das praticas profissionais. Sujeito corporificado e bioética: caminhos da democracia 29) Manifesta-se, ainda, desconstruindo instituig6es sociais e identidades politicas. Este pensamento, ao apoiar-se em elementos da democracia liberal, procura ocultar a face destrutiva da nova produgio, realizada com base em linguagem, informagio ¢ imagem. Aparentemente mais leve e menos destrutiva, a nova produc4o é entretanto, portadora de enormes riscos para as formas pretéritas de organizacao social e para a preservagao de bagagens culturais que sio indispensdveis 4 vida coletiva. Estes riscos decorrem, justamente, do fato de que a nova produgao pressupde, de forma cada vez mais intensa, a manipulacdo do consumo, 0 que pode ser exemplificado pela ininterrupta criagdo de novas necessidades. As consequéncias da interferéncia mercantil em bagagens culturais e prdticas sociais manifestam-se no crescimento da violéncia que, além de ter origem na pobreza e na miséria, também expressa a crise contemporanea de valores. Face 4 dimensao cultural desta crise, surgem, no campo da bioética, possibilidades de enfrentamento (e superag4o) n4o apenas de processos destrutivos da atual etapa do capitalismo — por exemplo: a manipulagao genética sem limites — mas, também, de enigmas relacionados & atualizacdo da cidadania e da democracia (Badiou, 1994). Estes séo conceitos que, por excesso de uso, tem sofrido elevado desgaste, perdendo forca mobilizadora da aco social. Esta perda transparece no descrédito na politica e na burocratizagao de praticas democraticas. Por outro lado, o amplo recurso a referéncias 4 democracia pelo pensamento hegeménico também conduz ao esquecimento da relevancia histérica das lutas por cidadania, colaborando para a difusio de um idedrio democratico empobrecido, mais normativo e controlador do que efetivamente expressivo de anseios sociais. De fato, as versdes mais usuais de cidadania e democracia evitam a problematica do sujeito, 0 que é antagénico a qualquer projeto consistente de conquista ¢ garantia de direitos. Afinal, cidadania e democracia pressupdem a afirmacao de sujeitos que, individual e coletivamente, lutem por direitos e por sua garantia. Sem sujeitos, que articulem sociedade e politica, os direitos 30 Ana Clara Torres Ribeiro ou inexistem ou so letra morta, sendo reproduzido o afastamento entre lei e experiéncia social concreta. O escamoteamento da problematica do sujeito corresponde & difusio de discursos tecnocraticos de democracia, onde a cidadania se resume a participagio em momentos eleitorais, em féruns institucionalizados ou com relag4o a questées consideradas legitimas pelo pensamento dominante. A difusao desta leitura de cidadania e democracia acontece de forma simultanea ao movimento de globalizacao da economia (Ianni, 1996). Ensaia-se, desta maneira, conter processos socioculturais e politicos, potencialmente desruptivos, oriundos da desestabilizacéo social com origem na propria dinamica do capitalismo. O desenraizamento fisico e/ou cultural de grandes continentes populacionais, articulado 4 intensidade dos fluxos materiais e imateriais, torna abstratas — e descoladas da vida social imediata — as referéncias & democracia e a cidadania. Esta tendéncia dificilmente poderd ser contida através de retornos saudosistas ao passado, onde 08 cédigos democraticos tantas vezes mais alimentaram o espirito das leis do que os corpos € a ago social. E na conquista de concretude na defesa da democracia que desejamos assinalar a relevancia da bioética. Trata-se da possibilidade de que, por fim, surja o sujeito corporificado, isto é, que 0 sujeito de direitos — previsto e garantido em lei — se materialize em sangue, carne e cultura, permitindo a radical superacio do idealismo e do materialismo objetivante. A apresentacao na cena politica mundial do drama humano exigir4, assim pensamos, a efetiva realizaco de um movimento de superacio, ou seja, 0 encontro de uma nova sintese que retina corpo e espirito (valores e orientacao ética) na construcao da democracia. Acreditamos que o encontro desta sintese, que pode ser altamente estimulada pela bioética, é, inclusive, indispensdvel 4 atualizacao do humanismo. A homogeneidade estrutural do corpo humano — que sustenta nao apenas a ciéncia, mas também, a solidariedade ¢ a empatia com a dor alheia — é portadora de elementos de generalizacao indispensaveis a ideia de direitos. Por outro lado, a articulacao da Sujeito corporificado e bioética: caminhos da democracia 31. cultura (dos valores, do espirito) na percep¢ao do corpo, valorizando as diferencas individuais, também € indispensdvel 4 renovagao da democracia através do respeito a diversidade. A articulacao entre homogeneidade / igualdade e individualidade / diferenca constitui-se, sem diivida, num dos mais relevantes elementos da problematica contemporanea do sujeito, trazida pelos movimentos sociais e culturais surgidos a partir dos anos 60 (Touraine, 1998). Movimentos que também refizeram idedrios de cidadania em direcdo ao aqui e agora, ou seja, & exigéncia de que direitos sejam reconhecidos de imediato ¢ nao apés a conquista da transformacao politica da sociedade. O didlogo, a ser valorizado, entre movimentos sociais e o campo da bioética emerge na relevancia atribuida a situagao imediatamente vivida, ou seja, ao corpo em situacdo e, também, na articulacao corpo- sujeito. A ideia de corpo-sujeito instaura, de forma ampla, 0 didlogo movimentos — bioética no nivel da cultura e da politica, possibilitando a reflexdo da qualidade das relagdes societarias contemporaneas. O corpo-sujeito exige a valorizacéo do olhar interdisciplinar e a ruptura tanto do idealismo quanto do materialismo exarcebados, tao frequentes na compreensao dominante das necessidades humanas. Este didlogo movimentos-bioética adquire, assim, a virtual condigao de colaborar na resisténcia ao atual fechamento sistémico do mundo, conduzido pelo pensamento tinico — tecnocratico e economicista. E ainda apresenta, caso efetivamente fortalecido, a possibilidade de contribuir no enfrentamento dos aspectos mais lesivos da denominada tecnociéncia, que constitui a forma contemporanea de producéo do conhecimento. Nas palavras de Edgar Morin (1996:9), propositor do conceito: “A ciéncia nao é cientifica. Sua realidade é multidimensional. Os efeitos da ciéncia nao s4o simples nem para o melhor, nem para 0 pior. Eles sao profundamente ambivalentes”. Esta ambivaléncia exige, para 0 autor, a compreensio da complexidade, 0 encontro de formas de perceber e compreender que superem as barreiras entre disciplinas e praticas profissionais 32 Ana Clara Torres Ribeiro e, também, a irresponsabilidade generalizada advinda da nova forma de realizacéo da economia. A tecnociéncia representa hoje a ocidentalizag4o radical do mundo, devendo ser incluida em qualquer avaliagao séria da possibilidade de que a nova escala da economia venha a ser acompanhada por uma compreensio inovadora de democracia, plural e culturalmente rica. A. ocidentalizagéo do mundo, apoiada na tecnociéncia, desconstréi orientagées culturais para construir um universo maquinico ¢ artificial, responsével por exclusdes sociais radicais. Segundo Serge Latouche (1996:56): “A identificagao do Ocidente com © ‘maquindrio’ sécio-técnico-econémico coloca (...) um problema. Apesar de 0 Ocidente nao ser universalizdvel como ‘modelo de civilizagao’, enquanto ‘maquina’ ele é reproduzivel”. A reprodug4o maquinica de comportamentos considerados eficientes constitui um resultado direto e um pressuposto da fase contemporanea do capitalismo, esclarecendo a relevancia da bioética pelo que representa de resgate, inclusive politico e filosdfico, da pauta humanista de valores. A extensio da tecnociéncia, sem reflexao da complexidade, a completa ocidentalizacéo da experiéncia social e 0 predominio do mercado resultam em objetivacgo do mundo, na répida transformacao de sujeitos em objetos e de seres humanos plenos em corpos aproximados de idealizagées da m4quina eficiente. Neste contexto, é urgente a ressubjetivacao das relagées societarias, onde, cabe salientar, novamente se aproximam movimentos sociais e bioética. O novo Estado de direito, que deverd incluir o exercicio da cidadania na escala mundo, pressupde a valorizacdo do humano genérico — questéo que sustenta a reflexao ética — e 0 reencantamento do mundo. O reencantamento da experiéncia humana (Maffesoli, 1997), a ressubjetivagao das relacées sociais € a superacéo da leitura dominante do corpo como maquina ou vitrine dependerao da resisténcia oferecida 4 sedu¢do exercida através das técnicas de manipulacao da vida social. Sujeito corporificado e bioética: caminhos da democracia 33, A necessidade da ressubjetivacao das relac6es sociais torna- se evidente quando observamos que a eficdcia e 0 desempenho adquirem predominio, como diretrizes da ago considerada legitima, sobre a compreensdo e a empatia entre seres humanos. A exigencia ideolégica de eficiéncia, descolada da ética, corresponde ao dominio, sem controle social, da tecnociéncia e do pensamento nico. Este dominio nao ser superado por boas intengées ou leis abstratas, j4 que a superac4o exige a emergéncia de um humanismo presentificado, de um humanismo praticado (Santos, 1987), de um humanismo efetivamente corporificado. Os direitos humanos, reconhecidos a partir revolucdo burguesa, precisarao, para isto, suportar, transformando-se, a pressao do economicismo ¢ da objetivacéo das relacées sociais. De outra forma, permanecerao, como afirma Alain Badiou (op cit), com um teor moralista, perdendo a sua influéncia sobre as praticas sociais e sendo utilizados, como instrumentos de controle, pelos paises hegeménicos e culturas dominantes. E frente a esta necessidade de renovag4o da pauta humanista que a valorizacao dos vinculos entre bioética, movimentos e democracia podera contribuir na plena instauracdo de novas forcas sociais instituintes (Chaui, 1989), capazes de realizar a mediacao ativa entre experiéncias sociais e direitos garantidos e usufruidos. A racionalizacao do mundo (Morin, op cit) s6 seré contida através do debate direto da qualidade das relag6es societdrias. Tal debate pressupée o recurso permanente a ética e A razao, envolvidas no exame e na critica da vida social imediata. A falta deste envolvimento traz como resultado pragmatismo e/ou sensibilismo; ambos incapazes de orientar a luta pela democracia e pela instauracao da esfera mundial de direitos. A raz4o encontra-se, hoje, duplamente ameacada: de um lado, pelo conformismo ao fechamento sistémico do mundo, & desrazao (Morin, id ib), e, de outro, pelo misticismo. A bioética representa, em contraste, uma possibilidade de resisténcia A secundarizacao do sujeito coletivo, percebida como inexoravel por aqueles que afirmam que a modernidade encontra- 34 Ana Clara Torres Ribeiro se superada. Segundo esta corrente de pensamento, apés a eclosio das grandes narrativas da modernidade, sustenta pelo evolucionismo e pelo cientificismo, 0 sujeito aparece descentrado, inserido nas miltiplas facetas da vida social (Laclau, 1986; Lyotard, 1988). A propria multiplicagéo de movimentos sociais, a partir dos anos 60, sustenta esta linha analitica. A quest4o mais abrangente dos sujeitos coletivos perderia, desta 6tica, relevancia analitica, ao mesmo tempo em que a liberdade passaria a ser experenciada em jogos sociais cada vez mais plurais. As condigées de sujeito se mesclariam a identificagées circunstanciais fluidas. Os direitos deixariam, portanto, de ser generalizaveis, para ser, cada vez mais, a expresso de identidades segmentares. Nesta linha de pensamento, cuja sensibilidade para os processos novos € indubitavel, a desinstitucionalizagao das relacées sociais que caracteriza a contemporaneidade retiraria, crescentemente, substancia aos sujeitos da modernidade. Negatividade e positividade conviviriam neste diagndstico que aponta, ainda, para a crescente desestabilizacao de arenas politicas institucionalizadas. Esta seria a destruicao criativa do tempo presente, naquilo que concerne & reconfigura¢ao da vida politica. Tempo em que se mesclam enormes perdas sociais e ganhos relacionados & liberagao de experiéncias e protestos retidos pela modernidade, tao marcada pelo controle da vida social e pela destrui¢ao da diversidade cultural. Accrise da modernidade, neste sentido, se confundiria com a crise do Ocidente, do seu projeto civilizatério. A esta leitura — que em alguns dos seus angulos mais estimulantes permite, a nosso ver, a critica A modernidade de dentro da propria modernidade — 0 campo da bioética responde ampliando 0 didlogo em torno dos desafios do presente ¢ através da proposta de uma possivel inversao, critica e ainda moderna, da problemdtica do sujeito. Para resistir a0 seu esfacelamento nao é preciso preservar incélume o discurso tantas vezes autoritdrio e disciplinador da modernidade. Esta seria apenas a forma conservadora, e até mesmo reacionaria, de enfrentamento dos desafios do presente. Sujeito corporificado e bioética: caminhos da democracia 35, A reflexividade, 0 poder mais extraordindrio da modernidade que consiste na producao reflexiva da propria experiéncia social (Giddens, 1990), permite ir além dos limites do pensamento conservador e do diagnéstico politico da pés-modernidade. O corpo, assim como 0 espaco, unifica 0 sujeito esfacelado, j4 que exige a consideracao racional de questées eternas e que sao de todos: © acesso ao alimento, o alcance de condigées de sobrevivéncia, 0 enfrentamento da dor, da perda, da doenga e da morte. O sujeito condicionado a sua permanente busca identitaria permanece, afinal, Preso ao seu corpo-espago e, assim, ao indispensavel compartilhamento de recursos e valores. O corpo-espago retém tanto a desterritorializacao quanto o desenraizamento, resistindo 4 abstracao dos nimeros, ao império das estatisticas, 4 desmaterializacgao dos fluxos comunicacionais. O corpo-espaco opée-se ao comando do tempo sincrénico, velocidade, & acelerag4o continua da existéncia (Santos, 1996). Afinal, o corpo- espaco adoece e morre. A face organica da vida social, dos individuos e da Terra, nao permite a sua absor¢ao nas promessas de um futuro maquinico. Assim, a face organica da vida social também resiste a0 pensamento unico. O corpo-espago é, histérica e existencialmente, o limite da vida comandada pela imagem e pela informacio. E, ainda, o limite nao ultrapassavel da exclusividade pretendida por idedrios que enaltecem versGes apenas estetizantes da vida social. Por mais que as clinicas se assemelhem a shopping centers ou hotéis, ali continuam a acontecer a dor, 0 sofrimento ea morte. Por mais que o espetaculo do mundo seja transformado em imagens volateis, aumentam o medo, a violéncia ea inseguranca. E, ainda, por mais que, por exemplo, os astros do esporte sejam transformados em pecas centrais de grandes interesses e envoltos em formas sofisticadas de monitoramento dos gestos, 0 corpo continua a ter as suas necessidades e limites, como demonstram os joelhos de tantos atletas. E neste nivel que a técnica alcanga a sua impoténcia, assim como, o dinheiro. E também neste nivel, num outro exemplo, 36 Ana Clara Torres Ribeiro que o empresariamento da morte nao consegue fazer sorrir, por mais que funerdrias procurem, agora, aligeirar 0 drama humano e reduzir os sentidos profundos da velhice. A falta de resposta as indagagées do corpo, a sua finitude, ea falta de resposta A finitude do espaco (da Terra, do corpo da sociedade), tem estimulado, como anteriormente dito, o crescimento do misticismo e da mistificacao da vida social. Afinal, a busca do sentido da vida também orienta a a¢ao social. A razao nao pode afastar-se desta busca, a menos que se aceite a completa ideologizacao da vida coletiva, tornando secundaria a luta por direitos generalizaveis. O campo da bioética, além de questionar 0 dominio das forcas sistémicas e sem controle da técnica e do mercado — e, portanto, a objetivacao do mundo -, resiste 4 fragmentagao social, 4 fratura do tecido da sociedade. Ao acionar o humano genérico e a possibilidade histérica da experiéncia empatica retine, no corpo-sujeito, o geral eo especifico, o universal e o singular. Este corpo, que resulta dos elos entre matéria € espirito, significa um firme caminho para a definigao da pauta contemporinea progressista de valores. Além disto, no plano das praticas, 0 corpo-sujeito pode permitir a resisténcia A reificacao mercantil da vida social. Trata-se, aqui, do possivel retorno, culturalmente enriquecido, ao uno identitario e politico. O uno identitdrio inscreve-se na face organica da existéncia, na vida percebida e sentida, onde “somos 0 que somos” ¢ nao a nossa tradugao em imagens ou informagées. O corpo da bioética alimenta e fortalece 0 uno identitdrio, uma vez que, reunindo sociedade e natureza, € sobretudo cultura e politica, ou jamais poderia ser almejada a sua aproximacao do sujeito de direitos. Esta é uma extraordindria mutagéo social e politica. O corpo individual, 0 corpo social (movimentos socioculturais) e 0 corpo coletivo (espago) surgem, agora, potencialmente reunidos na teflexdo de valores e preenchidos de forga social e politica. Assim, a reflexividade, aberta pela modernidade, emerge como poténcia do Ser, permitindo transformar, trazendo-o para o centro da luta por Sujeito corporificado e bioética: caminhos da democracia 37 direitos, 0 corpo passivo (e paciente) criado pelo discurso competente (Chauf, op cit), pelas narrativas da modernidade. O corpo-sujeito precisa ser apreendido, assim, como Ambito reflexivo, material-espiritual, de uma nova cidadania. Esta possibilidade tem sido bloqueada pelo império contemporaneo da aparéncia, por verses imagéticas de satide, pelo monitoramento do corpo que o transformam em corpo-méquina, em eficiéncia desejada pura e integral. O corpo-sujeito sofre, em seu processo de afirmacao ética e politica, antagonismos que precisam ser rompidos. Estes antagonismos manifestam-se, de um lado, em discursos e praticas que enfatizam o treinamento, 0 aumento do desempenho do corpo — mantido em seu status de corpo-maquina —, e, por outro, em representacoes falsificadas de prazer e bem-estar. Estes discursos, praticas e representagdes impedem a afirmacao do corpo-sujeito, assujeitando-o as malhas instrumentais das praticas mercantis. A mistificagio do corpo também se encontra relacionada ao individualismo e, portanto, distante do debate de valores necessario & afirmagao do sujeito da bioética. Estaé umatendénciacontemporanea que tem impedido a real socializacao do conhecimento do corpo ea construcdo intersubjetiva da finitude da vida. Alias, é esta tendéncia, indicativa da atual crise de valores, que torna necessdrias tantas novas especializacdes profissionais, associadas aos males com origem na objetivacio da vida. Por fim, poderiamos dizer que 0 corpo-maquina, estimulado pelo monitoramento da vida através das novas tecnologias, e o corpo-imagem, decorrente da estetizagao da existéncia, constituem verdadeiros epicentros da alienag4o contemporanea. E por isto que o corpo-sujeito da bioética adquire atualmente tanta relevancia. A reflexéo do corpo-sujeito conduz a formulacao de algumas questées que consideramos especialmente importantes: (1) —a bioética, em seus vinculos ativos com os movimentos sociais, dificilmente pode ser concebida como mais uma especializacao 38 Ana Clara Torres Ribeiro profissional. Aceitar este enfoque sem questionamentos significaria reduzir os seus significados culturais mais amplos, que excedem, envolvendo-os, a pratica médica e a pesquisa cientifica. (II) — 0 corpo-sujeito nao deve ser substituido, a nosso ver, por especialistas externos a0 campo da satide: pelo filésofo, pelo socidlogo ou pelo antropdlogo. Estes profissionais podem colaborar, apenas, no discernimento e na defesa das condi¢ées de emergéncia do sujeito, mas nunca ocupar o seu lugar. Referéncias BADIOU, A. Para uma nova teoria do sujeito, Rio de Janeiro, Relume-Dumara, 1994. CHAUI, M. Cultura e Democracia, Sao Paulo, Cortez, 1989, 4° ed. GIDDENS, A. The consequences of modernity, Stanford, Stanford University Press, 1990. IANNI, O. Teorias da globalizagao, Rio de Janeiro, Civilizagao Brasileira, 1996. LACLAU, E. “Os novos personagens ¢ a pluralidade do social”. Revista Brasileira de Ciencias Sociais, N.8, 1986. LATOUCHE, S. 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