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O controle concentrado de

constitucionalidade e a intercorrente
conversão em lei de medida provisória

Luís Sérgio S. Mamari Filho

Sumário
1. Introdução. 2. Inconstitucionalidade ma-
terial da medida provisória. 3. Inconstitucio-
nalidade formal da medida provisória. 4. Con-
siderações finais.

1. Introdução
A medida provisória, como se sabe, é es-
pécie excepcional de ato normativo adota-
do pelo Chefe do Poder Executivo Federal e
Estadual (quando a Constituição do Esta-
do-membro prevê o instituto) que se reveste
de força de lei1.
Pertencendo a função legislativa, em re-
gra, ao Congresso Nacional, o exercício des-
se poder de cautela outorgado constitucio-
nalmente ao Presidente da República depen-
de de verdadeiro estado de necessidade, sob
pena de se afrontar o Princípio da Separação
de Poderes.
Como lembra Canotilho, contra a con-
cepção do republicanismo jacobino, que pra-
ticamente concentrava na assembléia todas
as faculdades do Estado, a Carta Constitu-
cional de 1988 contempla a divisão dos
Poderes da União e lhe atribuiu a prerro-
gativa de cláusula pétrea (CANOTILHO,
Luís Sérgio S. Mamari Filho é Mestre em 2002, p. 163).
Teoria Geral do Estado e Direito Constitucio- Como também é notório, verifica-se que
nal pela Pontifícia Universidade Católica do
a alternativa prevista no artigo 62 da Cons-
Rio de Janeiro, Pós-graduado em Direito da
Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio tituição da República à prestação legislati-
Vargas, professor da Escola de Direito do Rio va ordinária do Estado é utilizada de forma
de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas e advo- indiscriminada. A profusão de medidas
gado militante. provisórias gera situações cujas conseqüên-
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cias demandam dos estudiosos do Direi- tratada pela medida provisória (se
to especial atenção. suporta regramento legislativo provi-
Um dos aspectos que merece ser detida- sório ou não); (iii) cabe, finalmente, um
mente investigado diz respeito ao controle controle da constitucionalidade da
de constitucionalidade das medidas provi- matéria propriamente dita (se atende,
sórias. Sob esse prisma, faz-se necessário não sob a ótica formal, mas substanti-
buscar a resposta para a seguinte pergunta: va, as normas e princípios adotados
quais os efeitos da intercorrente conversão pelo Constituinte).”
em lei de medida provisória adotada, cuja
constitucionalidade se questiona por 2. Inconstitucionalidade
meio de ação direta no Supremo Tribunal material da medida provisória
Federal?
Não há dúvida quanto à possibilidade Na hipótese de a inconstitucionalidade
de ser exercido controle abstrato de consti- da medida provisória estar relacionada com
tucionalidade em relação à medida provi- seu conteúdo, isto é, com seu aspecto mate-
sória. O Supremo Tribunal Federal admite a rial, é de mister importância identificar se a
hipótese, inclusive para suspender liminar- lei de conversão operou, ou não, alterações
mente sua eficácia, ressalvando, todavia, a no texto originalmente adotado pelo Presi-
validade da medida provisória enquanto dente da República.
proposição legislativa submetida ao crivo Isso porque o Supremo Tribunal Federal
do Congresso Nacional. vem adotando como baliza, para deferir o
Também a melhor doutrina afirma que prosseguimento da ação direta de constitu-
cabe ao Supremo Tribunal Federal, por via cionalidade de medida provisória já conver-
de ação direta, e a todos os juízes e tribu- tida em lei, a verificação da identidade en-
nais, incidenter tamtum, recusar a aplicação tre o texto original da medida provisória e o
de medidas provisórias que padeçam da da lei de conversão.
pecha da inconstitucionalidade (MELLO, A lei de conversão derivada de medida
2002, p. 114). provisória objeto de ação direta de inconsti-
Na busca pela resposta da indagação tucionalidade, tendo operado alterações no
colocada, em primeiro lugar, há que se dis- conteúdo material do ato normativo edita-
tinguir se a medida provisória cuja consti- do pelo Presidente da República, constitui
tucionalidade se afere não possui os pres- espécie jurídica diversa, não podendo ser
supostos necessários de validade (artigo 62 impugnada na mesma ação, mediante sim-
da Constituição da República) e/ou regula ples aditamento da petição inicial.
matéria reservada a lei (artigo 62, parágrafo Assim ficou consignado em voto profe-
1o, da Constituição da República), o que acar- rido pelo Ministro Celso de Mello, na ques-
retaria sua inconstitucionalidade formal, ou tão de ordem submetida ao plenário do
se seu texto não está, materialmente, em con- Supremo Tribunal Federal pelo Ministro
formidade com as disposições da Constitui- Moreira Alves, em face do pedido de adita-
ção da República. mento formulado pela autora de ação direta
No magistério de Clemerson Merlin de inconstitucionalidade, haja vista a
Clève (2000, p. 200): conversão da medida provisória enfren-
“O controle judicial das medidas tada em lei, antes que a análise pelo Pre-
provisórias, no Brasil, pode ocorrer tório Excelso ocorresse:
em três níveis: (i) cabe, primeiro, um “A inovação do conteúdo da me-
controle dos pressupostos de habili- dida provisória convertida em lei ope-
tação (se estão ou não presentes); (ii) ra modificação substancial dos pró-
cabe, depois, um controle da matéria prios elementos individualizadores

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da ação. Reduzida a questão ao pla- tendo por objeto, agora, uma nova es-
no puramente processual, constata-se pécie normativa, que é, precisamente,
que as ações se identificam por três ele- a lei de conversão, que resultou da me-
mentos: o elemento subjetivo (personae), dida provisória inicialmente editada
o objetivo (res) e o casual (causa petendi). pelo Presidente da República, mas que
Neste caso, é evidente que o ele- sofreu, em seu procedimento de trans-
mento subjetivo da ação se alterou, formação, alterações materiais em seu
porque inseriu-se, na relação proces- conteúdo normativo.
sual, um novo sujeito, que é o Presi- O pretendido aditamento, na verda-
dente da República, na medida em de, deve ser indeferido, para que o
que este sancionou o projeto de lei de autor, querendo, impugne, em nova
conversão, aprovado pelo Congresso ação direta, a lei de conversão” 2.
Nacional. Tínhamos, antes, como su- É verdade que a alteração pode não ter
jeito passivo, tão-somente o Presiden- efeito sobre o juízo de constitucionalidade
te da República, autor único da medi- que será proferido pelo Supremo Tribunal
da provisória. Federal. Contudo, ainda que essa hipótese
Mas, com a transformação dessa se verifique, admitido o prosseguimento do
medida provisória em lei, a partir da feito, ter-se-á, sempre, dois julgamentos, que
sanção presidencial do projeto de con- poderão ser idênticos ou não: o primeiro,
versão, passaram a figurar, na dimen- cujo objeto será o texto da medida provi-
são subjetiva da relação processual, o sória, para tratar dos efeitos pretéritos e
Presidente da República e o Congres- um segundo, que versará sobre o conteú-
so Nacional. Analisando-se o tema do da lei, haja vista os efeitos posteriores
quanto ao elemento objetivo (res), evi- à conversão.
denciam-se, no caso, espécies jurídi- Exigir que seja distinguido, em cada
cas autônomas. caso, se houve ou não alteração substancial
No primeiro momento, impugnou- inserida pela lei de conversão que justifique
se uma simples medida provisória. a propositura de uma nova ação direta de
Agora, está sendo questionada uma constitucionalidade, embora seja a alterna-
lei de conversão, que introduziu, de tiva menos formalista, como assentado pelo
modo inovador, alterações no conteú- Ministro Sepúlveda Pertence no julgamen-
do normativo daquela espécie quase- to acima referido, faria com que o colegiado
legislativa. Finalmente, há a conside- julgador, antes mesmo de analisar a in-
rar o elemento causal (causa petendi). constitucionalidade material da própria
Mesmo sob este ângulo, os fatos e os norma impugnada, emitisse juízo prévio
fundamentos jurídicos da ação direta sobre a semelhança dos dispositivos (a
revelam-se distintos. As ações, na es- medida provisória e a lei de conversão), o
pécie em análise, são diferentes, e é que não estaria circunscrito no objeto da
neste sentido que oriento o meu voto. demanda.
Há uma clara divergência entre os três Cumpre lembrar que, na hipótese, o Mi-
elementos que individualizam ambas nistro Paulo Brossard, acompanhando o
as ações. Ministro Aldir Passarinho (Relator), enten-
Não há, no caso, identidade de su- deu em seu voto não ter havido mudança
jeitos, no pólo passivo; não há iden- na substância da norma impugnada, sendo
tidade de objeto e nem identidade identificadas apenas alterações em sua re-
causal. dação, acarretando “a unicidade do objeto
Parece-me que se impõe ao autor, e da causa de pedir e, em decorrência, a iden-
querendo, ajuizar nova ação direta, tidade da ação”. Segundo a divergência,

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ainda que prevalecesse o entendimento es- 1.716, Pertence, 19.12.97; ADIn 1.660,
posado pela maioria dos Ministros da Su- M. Aurélio, 18.12.98)” 3.
prema Corte, com base no artigo 264 do Có- Apesar do acima exposto, verifica-se que,
digo de Processo Civil, “enquanto não fo- em havendo supressão do texto da medida
rem solicitadas ou prestadas as informa- provisória objeto da ação direta de inconsti-
ções, é de se admitir ao autor modificar o tucionalidade quando da sua conversão em
pedido ou a causa de pedir da ação direta lei, o entendimento do Supremo Tribunal
de inconstitucionalidade”. Federal parece divergir. Isso porque, em voto
O voto divergente faz, por fim, referência proferido pelo Ministro Moreira Alves, no
ao artigo 462 do Código de Processo Civil, que foi acompanhado unanimemente, a
entendendo-o aplicável ao caso, uma vez Corte Suprema julgou prejudicada em parte
que a conversão da medida provisória em ação direta quanto à expressão contida em
lei foi fato ocorrido após a propositura da medida provisória por não ter sido o trecho
ação direta de inconstitucionalidade, e re- contestado reproduzido na lei de conversão4.
solve a questão da pertinência subjetiva, Embora pareça inequívoco, cumpre men-
aventada pelo Ministro Celso de Mello, su- cionar lateralmente que o Supremo Tribu-
gerindo que o pedido de informações seja nal Federal também entende que a revoga-
encaminhado “não só ao Presidente da Re- ção da lei de conversão, que, repita-se, não
pública, mas também ao Congresso Nacio- altera o texto original de medida provisória,
nal, que passa a integrar a lide na condição no curso da ação direta de inconstituciona-
de litisconsórcio passivo necessário, co-res- lidade, acarreta a extinção do processo de
ponsável que se tornou pela aprovação da controle normativo abstrato por perda su-
Medida Provisória (...)”. perveniente de seu objeto, independente-
Por óbvio, em sentido inverso, a medida mente da ocorrência de efeitos residuais con-
provisória que é integralmente aprovada cretos5.
pelo Poder Legislativo tem sua vigência tor- Entende-se, nessa mesma linha de raci-
nada definitiva, não sofrendo solução de ocínio, mesmo considerando o advento da
continuidade e preservando a identidade do Emenda Constitucional no 32/2001, que, se
conteúdo normativo originário. A conver- determinada medida provisória, objeto de
são em lei sem alterações da medida provi- ação direta de inconstitucionalidade, for ab-
sória permite a continuação do processo da rogada por nova medida provisória, o pro-
ação direta de inconstitucionalidade pro- cesso de controle de constitucionalidade da
posta contra a medida provisória, dispen- primeira deve ser sobrestado até que o Con-
sando mesmo o aditamento. gresso Nacional se manifeste sobre a con-
O Ministro Sepúlveda Pertence, em voto versão do segundo ato normativo emanado
proferido em ação direta de inconstitucio- pelo Poder Executivo. Isso porque, confor-
nalidade, afirmou: me assente na jurisprudência da Corte Cons-
“Sr. Presidente, na ADIN 691, de titucional brasileira:
22.4.92 (RTJ 140/797), que relatei, o “4. O Presidente da República
Tribunal firmou que a conversão em pode expedir medida provisória revo-
lei sem alterações da medida provisó- gando outra medida provisória, ain-
ria permite a continuação do proces- da em curso no Congresso Nacional.
so da ação direta de inconstituciona- A medida provisória fica, entretanto,
lidade proposta contra a medida pro- com sua eficácia suspensa, até que
visória, dispensando mesmo o adita- haja pronunciamento do Poder Legis-
mento. A orientação tem sido confir- lativo sobre a medida provisória ab-
mada em outros casos (v.g. ADIn MC rogante. Se for acolhida pelo Congres-
– 1.055, Sanches, 15.6.94; ADIn MC so Nacional a medida provisória ab-

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rogante, e transformada em lei, a re- cujo exercício – presentes razões de
vogação da medida provisória anteri- urgência e relevância – só a ele com-
or torna-se definitiva; se for, porém, pete decidir. Sem prejuízo, obviamen-
rejeitada, retomam seu curso os efei- te, de igual competência do Poder Le-
tos da medida provisória ab-rogada, gislativo, a ser exercida a posteriori e,
que há de ser apreciada pelo Congres- quando tal se impuser, dos próprios
so Nacional, no prazo restante de sua Tribunais e juízes.
vigência” (Supremo Tribunal Federal, Esse poder cautelar geral – consti-
ADIN MC no 1.204/DF, Min. Rel. Néri tucionalmente deferido ao Presidente
da Silveira, DJ 7.12.1995)6. da República – reveste-se de natureza
Assim, em função da suspensão dos efei- política e de caráter discricionário. É
tos da medida provisória ab-rogada, é fun- ele, o Chefe de Estado, o árbitro inicial
damental que se aguarde a manifestação do da conveniência, necessidade, utili-
Congresso Nacional sobre a conversão da dade e oportunidade de seu exercício.
medida provisória ab-rogante, para que se Essa circunstância, contudo, não
determine o destino da ação direta de cons- subtrai ao Judiciário o poder de apre-
titucionalidade. ciar e valorar, até se for o caso, os re-
quisitos constitucionais de edição das
3. Inconstitucionalidade medidas provisórias. A mera possibi-
formal da medida provisória lidade de avaliação arbitrária daque-
les pressupostos, pelo Chefe do Poder
No que se refere à inconstitucionalidade Executivo, constitui razão bastante
formal da medida provisória, a questão se para justificar o controle jurisdicional.
mostra um pouco mais intrincada. Seria a O reconhecimento da imunidade
conversão da medida provisória em lei sufi- jurisdicional, que pré-excluísse de
ciente para afastar seus eventuais vícios for- apreciação judicial o exame de tais
mais, sejam eles relativos à ausência dos pressupostos – caso admitido fosse –
pressupostos de relevância e urgência ou , implicaria consagrar, de modo ina-
concernentes ao princípio da reserva da lei? ceitável, em favor do Presidente da
Primeiramente, é imperioso indicar que República, uma ilimitada expansão de
a mais recente jurisprudência do Supremo seu poder para editar medidas pro-
Tribunal Federal encampa a tese segundo a visórias, sem qualquer possibilida-
qual também ao Poder Judiciário cabe o con- de de controle, o que se revelaria in-
trole dos requisitos de relevância e urgência compatível com o nosso sistema
exigidos pela Constituição da República constitucional” 7.
para adoção de medidas provisórias. Feita essa digressão, é importante escla-
Nessa esteira, esclarecedor é o voto pro- recer que o Supremo Tribunal Federal já con-
ferido pelo Ministro Celso de Mello: cluiu que a conversão da medida provisó-
“Os pressupostos constitucionais ria em lei, com ou sem alteração de seu tex-
legitimadores dessa verdadeira ação to, supera eventuais vícios formais que po-
cautelar legislativa – relevância da deriam ensejar a sua decretação de incons-
matéria e urgência na sua positivação titucionalidade, restando prejudicada a
– submetem-se, num primeiro momen- ação direta que a questionasse.
to, ao juízo político e à avaliação discri- Excetuam-se, naturalmente, as hipóteses
cionária do Presidente da República. em que a argüição de inconstitucionalida-
O Chefe do Executivo da União de formulada não tenha por fundamento
concretiza, na emanação das medidas exclusivo a inadmissibilidade da utilização
provisórias, um direito potestativo, daquela via de edição provisória de normas,

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ou seja, as situações em que a medida efê- ma bicameral, e a aprovação de medi-
mera seja questionada também pelo seu viés da provisória para a conversão no sis-
material. Nesse segundo cenário, o sucesso tema unicameral”10.
da ação direta de inconstitucionalidade de- Em sintonia com o voto derrotado do
penderá dos termos da lei de conversão, Ministro Marco Aurélio, poder-se-ia argu-
como já explicitado8. mentar que a lei de conversão pressupõe a
Nesse sentido, é o voto proferido pelo existência da própria medida provisória,
Ministro Octavio Galloti (Relator) quando configurando-se entre elas um indissociá-
da análise da questão: vel nexo causal. Dessa feita, ausentes os re-
“No tocante às argüições de ordem quisitos que autorizam a edição de medida
formal postas na petição inicial, seja provisória ou regulando ela matéria reser-
relativa ao pressuposto de urgência vada a lei, declarada a inconstitucionalidade
da medida provisória, seja a concer- da medida provisória, sob a nuance formal, a
nente ao princípio da reserva legal, lei de conversão restaria contaminada.
penso acharem-se superadas as ques- A própria lei de conversão seria tida por
tões pela conversão, na Lei no 9.715, inconstitucional, haja vista a ausência dos
de 25 de novembro de 1998, das su- pressupostos de urgência e relevância para
cessivas medidas em causa”9. adoção da medida provisória ou sua inva-
De forma divergente, na mesma oportu- são dos limites materiais impostos pela
nidade, o Ministro Marco Aurélio registrou Constituição da República.
sua análise: O Supremo Tribunal Federal, reiterada-
“Entendo que o fato de se haver mente, tem afirmado que o vício de iniciati-
logrado a conversão de medida pro- va de lei não é convalidado pela sanção do
visória em lei não afasta vício notado Chefe do Executivo, ainda que dele seja a
originariamente; porque vislumbro, prerrogativa institucional usurpada, tendo
nesse processo legislativo, um ato em vista o defeito radical e congênito oriun-
complexo, dependendo, portanto, o do do descumprimento da Constituição da
subseqüente – a conversão – da ob- República11.
servância das formalidades constitu- Essa mesma interpretação poderia ser
cionais quanto ao ato anterior, a edi- aplicada ao caso em comento: ausentes os
ção da própria medida provisória. (...) requisitos necessários para adoção da me-
Mais do que isso: há um outro aspec- dida provisória ou versando ela sobre ma-
to que foi projetado quando do exame téria reservada a lei, a sua conversão em lei
do pedido de concessão de medida pelo Congresso Nacional não convalidaria
acauteladora para esta fase, e diz res- seu vício, apesar de a Constituição da Re-
peito à urgência do trato da matéria, pública determinar que ao Poder Legislati-
em penada única, pelo Chefe do Po- vo, ordinariamente, compete a prerrogativa
der Executivo. Creio que não estamos usurpada (artigo 48 da Constituição da Re-
diante da hipótese que sugira essa pública). Esse raciocínio levaria a uma con-
urgência, a qual, como já consignei, clusão diametralmente oposta à adotada
tal como prevista no artigo 62 da Cons- pelo Supremo Tribunal Federal.
tituição Federal, deve ser tomada com A Emenda Constitucional no 32/2001,
maior rigor. que transformou o processo de conversão
Entendo que o vício inicial conta- de medida provisória em lei em um rito bi-
mina a lei de conversão, mesmo por- cameral (artigo 62, §7o, da Constituição da
que sabemos que há uma diferença República), não acarreta a superação dos
substancial entre a aprovação de uma argumentos aduzidos pelo Ministro Marco
lei via tramitação de projeto, no siste- Aurélio no voto acima transcrito.

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É insofismável que a Emenda Constitu- Cumpre esclarecer que, em sendo a me-
cional no 32/2001 descreveu no corpo da dida provisória rejeitada pelo Congresso
Carta Magna de forma detalhada o proces- Nacional ou se o prazo fixado no artigo 62,
so legislativo de conversão de medidas pro- §3o, da Constituição da República transcor-
visórias em lei. Todavia, ainda são verifica- rer in albis, a medida provisória perde, com
das diversas diferenças entre a tramitação projeção ex tunc, sua vigência e a ação direta
de um projeto de lei apresentado ao Con- de inconstitucionalidade (formal ou mate-
gresso Nacional e o rito de apreciação, e even- rial) que dela deriva seu objeto.
tual conversão, de medida provisória pelo
Poder Legislativo. 4. Considerações finais
Primeiramente, a medida provisória se
distingue do projeto de lei de iniciativa do A jurisprudência do Supremo Tribunal
Presidente da República uma vez que a sua Federal acima referida, apesar de forjada em
vigência e eficácia são imediatas, isto é, pro- um passado recente, é o resultado do enten-
duz efeitos jurídicos logo após a sua publi- dimento majoritário de ministros que em boa
cação no veículo oficial. Tanto assim que, parte não integram mais a corte. Isso pode
caso sua redação esteja em confronto com acarretar mudanças na orientação do tribu-
norma pertencente ao ordenamento jurídi- nal ao, novamente, deparar-se com as ques-
co posto, a lei perde, temporariamente, sua tões objeto deste ensaio. Em que pese, por
vigência e eficácia. Rejeitada a medida pro- conta da necessária segurança jurídica, o
visória, é restaurada a lei anterior sem que Supremo Tribunal Federal manter-se fiel aos
se verifique o fenômeno da repristinação. seus precedentes, é natural que a jurispru-
Aprovada a lei de conversão pelo Congresso dência se desenvolva e, eventualmente, so-
Nacional, restará revogada a lei vigente ante- fra alteração na medida em que os julgado-
riormente à edição da medida provisória. res se renovem.
A segunda singularidade diz respeito à A observação é importante, principal-
“Cláusula de Apresentação”, que deriva da mente, por se pautar a análise ora feita nas
própria Constituição da República (artigo decisões do Supremo Tribunal Federal. So-
62) e atua como verdadeira provocatio ad bre a possibilidade de mudança na orienta-
agendum. Nesse sentido, a sua submissão ção da jurisprudência do Supremo Tribu-
ao Congresso Nacional deve ser imediata e nal Federal, o entendimento do Ministro
a sua apreciação, caso não ocorra em até Gilmar Mendes, constante de voto, é digno
quarenta e cinco dias contados de sua pu- de menção:
blicação, entrará em regime de urgência, so- “Talvez um dos temas mais ricos
brestando todas as deliberações até que se da teoria do direito e da moderna teo-
ultime sua votação. ria constitucional seja aquele relativo
Esses dois aspectos divergentes, apesar à evolução jurisprudencial e, especi-
de não serem os únicos, são suficientes para, almente, a possível mutação constitu-
mesmo após o advento na Emenda Consti- cional. (…) Nesses casos fica evidente
tucional no 32/2001, sustentar os funda- que o Tribunal não poderá fingir que
mentos do voto do Ministro Marco Aurélio sempre pensara dessa forma. Daí a ne-
antes citado. cessidade de, em tais casos, fazer-se o
De toda sorte, a inteligência que prevale- ajuste do resultado, adotando-se téc-
ce no Supremo Tribunal Federal é que, con- nica de decisão que, tanto quanto pos-
vertida a medida provisória em lei, antes do sível, traduza a mudança de valora-
julgamento da correspondente ação direta ção. No plano constitucional, esses
de inconstitucionalidade, eventuais vícios casos de mudança de concepção jurí-
formais ficam suplantados. dica podem produzir uma mutação

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normativa ou a evolução na interpre- mo sentido: “A conversão de medida provisória
tação, permitindo que venha a ser re- com alterações torna sem objeto a ação direta de
inconstitucionalidade oferecida em face dos dispo-
conhecida a inconstitucionalidade de sitivos originais, conforme autorizam concluir os
situações anteriormente consideradas julgados proferidos na ADI no 393, Relator Minis-
legítimas. A orientação doutrinária tro Aldir Passarinho, e ADI 691, Relator Ministro
tradicional, marcada por uma alter- Sepúlveda Pertence.” (ADIN no 991-5/DF, Min. Rel.
nativa rigorosa entre atos legítimos ou Ilmar Galvão, DJ. 9.9.1994);
3
Supremo Tribunal Federal, ADIN MC no 1.896/
ilegítimos (entweder als rechtmässig oder DF, Min. Rel. Sydney Sanches, DJ 28.5.99. No mes-
als rechtswidrig), encontra dificuldade mo sentido: Supremo Tribunal Federal, ADIN no
para identificar a consolidação de um 2.713-1/DF, Min Rel. Ellen Gracie, DJ 7.3.2003
processo de inconstitucionalização 4
“A presente ação direta está prejudicada quan-
(Prozess des Verfassungswidrigwerdens). to à expressão ‘§5o do art. 57 da Lei no 8.213, de 24
de julho de 1991’, contida no artigo 28 da Medida
Prefere-se admitir que, embora não ti- Provisória no 1.663-14, de 1998, porque não foi ela
vesse sido identificada, a ilegitimida- reproduzida na Lei 9.711, de 20.11.98, em que se
de sempre existira”12. converteu a citada Medida Provisória.” Supremo
Todavia, em sede de conclusão, nos ter- Tribunal Federal, ADIN n o 1.891/DF, Min. Rel.
mos da jurisprudência hoje assentada pelo Moreira Alves, DJ 8.11.2002.
5
“A revogação superveniente do ato estatal
Supremo Tribunal Federal, o destino da impugnado faz instaurar situação de prejudiciali-
ação direta de inconstitucionalidade pro- dade que provoca a extinção anômala do processo
posta em face de medida provisória cuja de fiscalização abstrata de constitucionalidade, eis
conversão em lei se deu de forma intercor- que a ab-rogação do diploma normativo questio-
rente dependerá: (i) da “modalidade” da nado opera, quanto a este, a sua exclusão do siste-
ma de direito positivo, causando, desse modo, a
inconstitucionalidade argüida, isto é, se o perda ulterior de objeto da própria ação direta, in-
vício aferido é de ordem formal ou material; dependente da ocorrência, ou não, de efeitos resi-
(ii) se material, a ação pode prosseguir caso duais concretos.” (Supremo Tribunal Federal, ADIN
o conteúdo da lei de conversão seja fiel ao n o 1.445-5/DF, Min. Rel. Celso de Mello, DJ
da medida provisória, sem que seja neces- 29.4.2005). No mesmo sentido, Supremo Tribunal
Federal, ADIN n o 1.442/DF, Min. Rel. Celso de
sário sequer o aditamento da petição inici- Mello, DJ 3.11.2004.
al; (iii) ainda se material, em havendo alte- 6
No mesmo sentido, vide ADIN MC no 2.984/
ração do texto da medida provisória pela lei DF, Min Rel. Ellen Gracie, DJ 14.5.2004: “1. Porque
de conversão, a ação direta de constitucio- possui força de lei e eficácia imediata a partir de
nalidade resta prejudicada, tendo em vista sua publicação, a Medida Provisória não pode ser
‘retirada’ pelo Presidente da República à aprecia-
o entendimento jurisprudencial do Supre- ção do Congresso Nacional. Precedentes. 2. Como
mo Tribunal Federal, sendo necessário o ajui- qualquer outro ato legislativo, a Medida Provisória
zamento de nova medida, agora em face da é passível de ab-rogação mediante diploma de igual
lei de conversão; (iv) se exclusivamente for- ou superior hierarquia. Precedentes. 3. A revoga-
mal, com a conversão da medida provisória ção da MP por outra MP apenas suspende a eficá-
cia da norma ab-rogada, que voltará a vigorar pelo
em lei, também conforme juízo propalado tempo que lhe reste para apreciação, caso caduque
pela Suprema Corte, estaria suprimido o ví- ou seja rejeitada a MP ab-rogante. 4. Conseqüente-
cio, perdendo a ação direta de inconstituci- mente, o ato revocatório não subtrai ao Congresso
onalidade seu objeto. Nacional o exame da matéria contida na MP revo-
gada. 5. O sistema instituído pela EC no 32 leva à
impossibilidade – sob pena de fraude à Constitui-
ção – de reedição da MP revogada, cuja matéria
Notas somente poderá voltar a ser tratada por meio de
projeto de lei.”
1
Supremo Tribunal Federal, ADIN no 425-5/ 7
Supremo Tribunal Federal, ADIN MC no 293-
TO, Min. Rel. Mauricio Corrêa, 19.12.03. 7/DF, Min. Rel. Celso de Mello, 16.4.93.
2
Supremo Tribunal Federal, ADIN no 2.58-9/ 8
Supremo Tribunal Federal, ADIN MC no 691/
DF, Min. Rel. Aldir Passarinho, DJ 28.2.92. No mes- DF, Min. Rel. Ellen Gracie, 19.6.92.

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9
Supremo Tribunal Federal, ADIN no 1.417-0/ Referências
DF, Min. Rel. Octavio Galloti, 2.8.99.
10
Reiterando seu entendimento e, novamente, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e
restando vencido quando do julgamento da ADIN teoria da constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2002.
2.713-1/DF, Min. Rel. Ellen Gracie, DJ 7.3.2003, o
Ministro Marco Aurélio afirma: “Quanto ao vício CLÈVE, Clemerson Merlin. A fiscalização abstrata da
de fundo, acompanho a relatora, mas encontro difi- constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Pau-
culdades para fazê-lo relativamente ao vício formal, lo: Revista dos Tribunais, 2000.
pois entendo que a conversão não legitima, conside-
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direi-
rado o processo legislativo, a medida provisória edi-
to administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
tada à margem do Texto Constitucional”.
11
Supremo Tribunal Federal, ADIN MC n o
1.963/PR. Min. Rel. Maurício Corrêa, 18.3.99.
12
Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus no
82.959-7/SP, Min. Rel. Marco Aurélio, acórdão não
lavrado.

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