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BERNARDO ALFREDO MAYTA SAKAMOTO “DA ORDEM ASTRONOMICA A ORDEM SOCIAL: A GRAVITAGAO E 0 INDIVIDUO ENQUANTO FUNDAMENTOS DO MERCADO” Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientagao do Prof. Dr. Jodo Carlos Kfouri Quartim de Moraes. Este exemplar corresponde a redagéo final da tese defendida e aprovada pela Comissao Julgadora em 31/03/1999 BANCA Fo @ascén & Mar > Prof. Dr. Joo Carlos Kfouri Quartim de Moraes (Orientador) io UL LDA Prof. Dr. Marcos Tadeu Del Roio ~ Prof. Dr. Reginaldo Carmello Corréa de Moi < > oy Prof. Dr. Roberto Romano da Silva Prof. Dr. Wolfgang Leo Maar fz toy . SY AIG} SH 28 ao RGU ee. po, eS oer —_ a FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP CM-001 292748 Sakamoto, Bemardo Alfredo Mayta \Sa2od_ Da ordem astronémica & ordem social : a gravitago ¢ 9 individuo enquanto fundamentos do mercado / Bernardo Alfredo Mayta Sakamoto. ~ Campinas, SP : [s.n],1999. Orientador : JoZo Carlos Kfouri Quartim de Moraes. Tese (doutorado) ¢ Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. 1. Filosofia-Histéria. 2, Filosofia escocesa. 3. Economia @ ética. 4. Economia - Historia. 5. Gravitagao. |. Moraes, Joao Carlos Kfouri Quartim de. Il. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia ¢ Ciéncias Humanes. Lil. Titulo, inpice Agradecimento INTRODUGAO. 1, AORDEM NEWTONIANA . 1.1 0 CONCEITO DE FUNCAO.... 12 A TEORIA CORPUSCULAR DA MATERIA: OS ATOMOS, O VACUO E AS FORGAS.... 26 1.3 O METODO DE ANALISE E SINTESE. 1.4 O ESTILO NEWTONIANO.. 14.1 OS MODELOS MATEMATICOS: A ANALOGIA DOS co a 45 FENOMENOS ..... 2. ANATUREZA HUMANA E A JUSTICA E EM HUME 2.1 0 METODO EXPERIMENTAL EM HUME... 2.1.1 A FUNCAO DA HISTORIA E O PAPEL DO ENSAIO ...........60 2.2 O INDIVIDUO E O FUNDAMENTO DA MORAL. 2.2.1 0 SENTIMENTO MORAL... 2.2.2 0 ANTICONTRATUALISMO DE HUME. .....0:. 2.2.3 O SENTIMENTO DE BENEVOLENCIA .......... 2.3 AJUSTICA COMO UM ARTIFICIO ORDENADOR .. 2.3.1 AJUSTICA E O DIREITO A REBELIAO. . 3. A ORDEM ECONOMICA EM SMITH... 3.1 A ORDEM NEWTONIANA E OS 5 PRINCIPIOS DA NATUREZA HUMANA 04 3.1.1 OS PRINCIPIOS DA NATUREZA HUMANA: A SURPRESA, 0 ASSOMBRO E A ADMIRACAO.. 105 3.1.2 “THE WONDER” E A ORIGEM DO DESCOBRIMENTO CIENTIFICO .. 108 3.1.3 A HISTORIA DA ASTRONOMIA. 6 3.2 A ORDEM SOCIAL EM SMITH 3.2.1 A TEORIA DO “ESPECTADOR IMPARCIAL” 3.2.2 AS REGRAS GERAIS..........--- 3.3 A ORDEM ECONOMICA EM SMITH.......-+ 3.3.1 A ORDEM ECONOMICA EM MANDEVILLE.. 3.3.2. A HOMOGENEIDADE DOS INDIVIDUOS EM SMITH: O AFA DE LUCRO.... 135 3.3.30 FQUILEBRIO D DO. ) MERCADO 3.3.4 O PAPEL DO ESTADO.......... CONCLUSOES. BIBLIOGRAFIA....... Néo $6 a filosofia natural se aperfeigoard em todas as suas partes seguindo este método, como também a filosofia moral ampliard suas fronteiras. (Newton, Optica, Livro UL, parte 1, p. 350) Agradecimentos Quisera agradecer as pessoas que colaboraram na concreiizagao deste irabalho: Ao professor Jodo Carlos Quartim de Moraes quem como ortentador da tese sanisfez minhas expectativas de estudante de Filosofia e pela enorme atencito que ele me brindou, permitindo que meus estudos no Brasil sejam os mais agradéiveis. Ao professor Reginaldo Carmelo de Moraes por todo 0 tempo que me concedeu: esclarecendo com paciéncia e corrigindo com agudeza os erros que me afastavam do tema desta tese, ademais, por sua generosidade ao emprestar-me uma enorme quamtidade de seus livros sobre este assumto, e sugerido outros, que me serviram para encamtnhar e concluir esta pesquisa. Aas professores: Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, Roberto Monzani Fétima Evora, por terem lido os “rascunhos” deste trabalho, oferecendo-me sugestdes e estimulos para a elaborago desta tese. Sempre estarei grato aos professores: Maria Sylvia Carvalho de Franco e Roberto Romano porque, com as licées ministradas nas suas aulas, me fizeram eleger pela filosofia como a principal atividade de minha vida Fevereiro de 1999 Introdugao Nesta tese pretendemos ressaltar como David Hume e Adam Smith estabeleceram na moral e na economia, respectivamente, uma relagdo andloga & “nova ordem” do universo exposta por Newton no Sistema do Mundo. Existe uma dificuldade ao estabelecer uma analogia entre duas ciéncias porque se requer um certo grau de abstragdo ao se tratar de encontrar a semethanga na diferenga. Ao pretender estabelecer uma analogia entre a ordem das ciéncias naturais ¢ a ordem das ciéncias humanas temos que precisar o tipo de ordem que iremos determinar; visto que a idéia de ordem surge com a prépria filosofia, desde os pré-socriticos. Quando nés falamos da analogia na ordem, nos referimos & ordem apresentada por Newton na lei da Gravitagao Universal Hume instaura uma ordem social na moral e na politica a partir da virtade da |justiga e, Smith fandamenta a ordem econémica mediante as regras de equilibrio do mercado ¢ as tarefas na aplicagdo da justia por parte do Estado. Desta maneira, daremos relevo a influéncia que exerceram as Ciéncias Naturais sobre as Ciéncias Huranas no século XVID. Irving Bernard Cohen no artigo: Analogy, Homology, and Metaphor in the Interactions between the Natural Sciences and the Social Sciences, Especially vii Bconomics', afirma que a relagio entre as Ciéncias Naturais e as Ciéncias Humanas: “Has been a grossly neglected field of study” (ib. p. 6). Pata avivar 0 interesse dos pesquisadores nestes estudos, Cohen assinala que desde 0 século XVII surgiram importantes influéncias entre estas ciéncias. Menciona alguns pensadores desse século que estabeleceram relagdes entre as Ciéncias Naturais ¢ as Cigncias Humanas: « Hugo Grotius, o precursor do direito internacional, declarou na sua comespondéncia ser “um seguidor da ciéncia natural geométrica de Galileu” que seu De jure belli et pacis (1625) era um tratado inscrito “no espirito © método de um trabalho de geometria”, mas Cohen anota que: “historians of political science and of international Jaw seem to have paid so little attention to it” Gb. p. 8) + James Harrington em sua Oceana (1656) estabelece uma relagdo entre a politica ea fisiologia de William Harvey, esta obra ¢ descrita como uma: “anatomia 2 Aparecido no volume de ensaios Non-Natural Social Science: Reflecting on the Enterprise of “More Heat than Light”, N° 4 do volume 25 (1993), do Suplemento anual de HOPE (History of Political Economy), com base numa série de conferencias da Universidade de Duke em marco de 1991, sobre o livro de Philips Mirowski More Heat than Light. Este livro que merecen o tema para 4 edigdo anual desta revista, areumentava que a Teoria Econdmica Ncoclassica tinha utilizado os conceitos de “utilidade” e “energia’. Estes dois conceitos foram emprestados, em primeiro lugar, do campo da Metafora ¢; em segundo lugar, das mateméticas aplicadas pelos fisicos (Homologias), para mostrar como as particulas se situam de acordo ao principio da menor energia. (Os argumentos de Mirowski, segundo o artigo de Cohen, conduziam os economistas @ pesquisar a historia da fisica sobre os sistemas conservativos ¢ ndo conservatives no século XIX. Os principios dos economistas “marginalistas” uniam principios fisicos ou energéticos para aplicilo: na viii politica”. A importincia de Oceana no pensamento politico pode ser notada na Constituigdo Americana, pois que as idéias de Harrington influenciaram sobremaneira os “american founding fathers”. Mas, os estudos sobre as relagdes entre a fisiologia e a politica de Harrington passaram despercebidos para os pesquisadores, por isso Cohen anota: “historians of political and social theory have not critically scrutinized Harrington's political and social ideas from the point the view of their relation to the main scientific currents of his times” (ib. p. 8). © jovem Leibniz publicou o ensaio: “Um Método com Demonstragdes Matematicas para Selecionar um Rei na Polénia”, o qual se constituiu nurn dos ‘mais importantes trabalhos para compreender suas idéias politicas. Mas, apesar disto, este ensaio nfo € considerado nas recentes bibliografias sobre o pensamento politico deste filésofo. Para Cohen, a falta de atengiio dos pesquisadores em relagdo a estes autores do século XVI é devida a: “A low state of studies of the interactions of the natural and the social science” (ib. p. 9). Cohen percebe que o estudo das influéncias entre as Ciéncias Naturais ¢ as Ciencias Sociais se encontra “oculto, mascarado para os pesquisadores” porque nao existe uma classificagdo adequada das relagdes que se estabelecem entre estas economics, como saber se estes principios na economia eram corsetos? Quais so as relagies que ix ciéncias. Para elucidar estas influéncias, Cohen distingue quatro relagdes que podem ocorrer nas ciéncias: a identidade, a metafora, a analogia ¢ 2 homologia: a) A identidade: estabelece-se quando a qualidade de idéntico se apresente na interagdo das ciéncias. Por exemplo, existe uma relagdo de identidade quande se afirma que o Estado ¢ uma “maquina” ou, que a sociedade é um “organismo” Paul Lilienfeld no século XIX, por exemplo, tinha a firme convicg&o que 2 sociedade é um “organismo” ¢ que os individuos sio as “células deste organismo” Na Sociedade Humana como um Organismo Real, Lilienfeld expde que a sociedade, como continuagdo da natureza, ¢ idéntica a um ser real. Herbert Spencer utilizou a relagdio de identidade em seus Principios de Sociologia quando afirmou que “a sociedade € um organismo”. Igualmente, 0 fisiocrata Frangois Quesnay coneebeu que seu sistema de economia era idéntico a0 modelo orginico, por isso declarou que: “a vida econémica € como a circulagao sanguinea do organismo humano”. John Caspar Bluntschli em seu Psychological Investigations Concerning State and Church (1844) foi, segundo Cohen, “o exiremista no uso da relagéo de identidade”. Este autor identificou a sociedade e suas Instituigdes com 0 “sexo”. Profundamente influenciado pelo mistico-psicdlogo Friedrich Rohmer, caracterizou © Estado com as dezesseis fungées psicolégicas que, ele acreditava, eram podem estabelecer-se entre as Ciéncias Naturais e as Ciéncias Sociais? x qualidades dos seres humanos, Convencido de que o Estado ¢ a igreja eram “organismos idéaticos” aos seres humanos, Bluntschli concluiu que eles tinhamn todos os attibutos primérios incluindo as caracteristicas sexuais: “o Estado representava o elemento masculino ¢ a igreja ao feminino” Assim, quando estes autores utilizaram a relagdo de identidade nas interagdes entre as Cigncias Naturais ¢ as CiGneias Humanas nfo se referiam simplesmente & similaridade b) A metafora: é um meio de atribuir alguma propriedade, qualidade ou valor a algo que nao the pertence ordinariamente, por exemplo: “root of a problem”, “falling into error” ete. Nas Ciéncias Sociais, a metifora é um recurso retérico para atrair a atengdo do leitor ou ouvinte, freqientemente € utilizada pelos expositores com a intengdo de apresentar suas teorias como “cientificas” ao introduzir termninologia, conceitos, prinefpios ou leis das ciéncias naturais. ©) A analogia: é a relagdo que sc estabelece quando os termos de duas ou mais ciéncias apresentam similaridade nas suas fungOes. Esta relagdo reconhece que entre duas cigncias existem conceitos, idéias, leis, sistemas de equagSes, métodos de investigagdo, ferramentas mateméticas ou alguns elementos similares em suas fungdes, As analogias constituem o principal instrumento de interag&o entre as Cigncias Naturais e as Ciéncias Sociais. Um tradicional uso da analogia, é prover uma fonte de justificagdo para um novo método ou teoria. Por exemplo: na ciéncia econdmica emprega-se por xi analogia o céleulo da mecanica. Outro uso da analogia ¢ fazer que uma idéia dificil ou estranha parega razodvel, ¢ consequentemente aceitavel, 4 comunidade cientifica. 4) A homologia.- esta relagao estabelece uma similaridade entre as estruturas. A homologia pode estender-se as estruturas anatémicas, as formas de equagSes, € ainda pode ocorrer entre os conceitos e leis. ‘As comparagGes estruturais na biologia produzem homologias anatomicas. Por exemplo, apresentam uma estrutura homéloga: © antebrago humano, a pera dianteira de um cavalo, a asa de um morcego, 0 membro natatorio de uma foca ¢ asa de um passaro Como um exemplo extremo da tendéncia de aplicar as ciéncias fisicas as ciéncias humanas, no século passado surgin um movimento na economia politica que tentava converter esta disciplina numa ciéncia: a economics, em luger da polincal economy. Este novo movimento de economistas afirmava que a partir da introdugdo de téonicas matematicas era possivel quantificar as paixdes dos individuos, e desta maneira, fundamentar a ciéncia econémica, Assim, referindo-se as paixdes, dizia Marie-Esprit Léon Walras: Os fatos produzides no mundo podem ser considerados de duas espécies: uns tém sua origem no jogo das forcas da natureza, que so forgas cegas © fatais; outros tém sua origem no exercicio da vontade do homem, que é uma forca clarividente ¢ livre —grifo nosso-- (Walras, Compéndio dos Elementos de Economia Polttica Pura, p. 20). Neste argumento se assevera que o individuo esté sob a influéncia das “forgas”: as alheias € as préprias. A economia politica ao tratar as paixdes humanas como “forcas” devia seguir 05 métodos matematicos da Mecdnica. Assim, com respeito aos estudos que deveriam iniciar-se na ciéncia econdmica, nos diz Walras: E certo que [a] Mecdnica Pura deve preceder 4 Mecfnica Aplicada, Da mesma forma, ha uma Economia Politica Pura que deve preceder & Economia Politica Aplicada, ¢ essa Economia Politica Pura ¢ uma ciéncia em_tudo_semethante as cigncias fisico-matematicas (...) Se a Economia Politica Pura, ou a teoria do valor de troca e a da troca, isto é a teoria da riqueza social considerada em si propria, & como a Mecdnica, como a Hidraulica, uma ciéncia fisico-matematica, ela nado deve femer que se_empres o método ¢ a li das matemticas —grifo nosso— (Walras, Compéndio dos Elementos de Economia Politica Pura, p 26). Esta citagao nos mostra com toda nitidez as consideragdes de Walras: unicamente com a introdugilo de técnicas matemiticas podemos elevar os estudos da economia politica ao “status de ciéncia”. Neste mesmo sentido, outro economista, Stanley Jevons nos diz no preficio da Primeira edigao (1871) de A teoria da economia politica: ‘Neste trabalho, tentei tratar a Economia como um célculo do Prazer e do Sofrimento ¢ esbocei (...) a forma que a ciéncia (...) deve enfim tomar. Procurei chegar a conceitos quantitativos precisos sobre Utilidade, Valor, Trabalho, Capital etc., ¢ com freqiéncia me surpreendi ao descobrir quo claramente alguns conceitos mais dificeis, especialmente 0 conceito mais intrincado, 0 de Valor, admitem andlise ¢ expressdes matematicas. A Teoria da Economia tratada dessa forma, sugere uma estreita analogia com a ciéncia de Mecanica Estatica — grifo nosso— (Jevons, A teoria da economia politica, p. 4) Para Jevons a ciéncia econdmica deve possuir uma forma matematica ¢, por isso, prope 0 “célculo do prazer e do softimento”. Ele acreditava que fazia uma correta “analogia” (similaridade em fungdes) entre a economia ¢ a fisica, dai a introduyo de técnicas matematicas 4 economia tratando de converté-la em ciéncia. Mas 0 que Walras e Jevons estabeleceram foram, em realidade, relagdes “homélogas” (similaridades em forma de conceitos ou equagdes) entre a Economia ea Fisica. Ademais, Cohen nos faz notar que estes economistas estavam utilizando ‘metiforas (retérica) ao transferir os valores da mecanica, 0 “paradigma de ciéncia no século XIX", a economia politica (Cohen, ib. 37-38). Ent, estes economistas aplicaram similitudes metaforicas, homélogas ¢ anilogas entre a Fisica © a economics com a finalidade de que esta tiltima pudesse alcangar o status cientifico. xiv Contrariamente a Walras © Jevons, nés pretendemos afirmar que pot infiuéncia da ordem aleangada no Sistema do Mundo newtoniano, a moral de Hume € a economia politica de Smith fundamentam a ordem social através da justiga e a ordem econémica pelas regras do mercado. Por conseguinte, néio so unicamente as técnicas matemiticas, calculos etc. {uma similitude homéloga e retérica), as que permitem clevar os estudos sociais a um nivel de “cigncia”, sendio empregar a similitude da analogia a partir dos resultados obtidos na ciéncia natural: a ordem astronémica exposta no Sistema do Mundo de Newton (uma relagao entre massas, distincias e forgas que permitiram formular a lei da Gravitagao Universal) © elo que vai relacionar as ciéncias naturais ¢ as ciéncias humanas é 0 método proposto por Newton. Pela sua eficacia, este método influenciou disciplinas como a moral, a qual vai fundamentar o estudo da natureza humana a partir das paixdes do individuo € a economia, que considera como principal mobil do desenvolvimento econdmico “o affi de lucro” dos individuos na sociedade. Devido ao fato que este € um tema estudado sé tangencialmente pelos historiadores das idéias, 0 presente trabalho tenta ressaltar a existéncia de wma relagdo andloga que parte do estado das Ciéncias Naturais para ser aplicado nas Ciéncias Sociais. Para alcangar estes objetivos dividimos a presente tese em trés capitulos: 1. O primeiro capitulo apresenta quatro segdes nas quais trataremos: i) a mudanga HL xv nos estudos da natureza deve-se a Newton, que aplicou 0 conceito de fungao substituindo 0 de substéncia; ii) os componentes homogéneos da natureza (étomos ¢ forgas) utilizados por Newton para formular a lei da Gravitagio Universal; iii) 0 método de andlise e de sintese, ¢ iv) a revolugdéo newtoniana exposta a partir do “estilo newtoniano”, que permitiré a Newton ordenar o sistema do mundo. E as conseqiiéncias desta revolugdo, considerada “a nova ordem” por substituir o antigo mundo fechado e hicrarquico. No segundo capitulo, ressaltaremos: a) a aplicagdo do método experimental dos estudos da natureza humana por Hume; como a histéria permite observar as ages dos homens, estas ages motivadas pelas paixdes (Forgas) dos individuos (étomos); b) A fundamentagio da moral feita por Hume —em oposigdo aos contratualistas— a partir do sentimento moral ¢ da virtude da benevoléncia: a0 ser estendida “artificialmente” cria a virtude da justiga que ordena e estabiliza sociedade. No terceiro capitulo veremos que: a) Adam Smith nos seus estudos de astronomia, concebe a ordem estabelecida no Sistema do Mundo por Newton. como a teoria que mais satisfaz aos “principios da natureza humana” ¢ & imaginagdio. b) Nos estudos da moral, Smith devido as limitagdes do “espectador imparcial”, ao no poder avaliar suas proprias agdes, recorre as “regras gerais”: uma ordem estabelecida pelas costumes ¢ aperfeigoada pela convivéncia social. c) Na economia, Smith é contrario a intervengo do Estado ¢ a rigida ordem xvi social dos antigos; o estagio mercantil converte a sociedade num grande mercado, o insaciavel “afi de lucro” (forgas) dos individuos (étomos) produzcm uma incessante divisio do trabalho, Nesta economia, as relagdes dos “egoistas” sao equilibradas pela “mao invisivel” das leis do mercado e ¢ consolidada a ordem econdmica e social pelas fungdes na aplicagao da justia e pela educagio or parte do Estado. 1. AORDEM NEWTONIANA Pego de coragito que as coisas que agui deixo sejam lidas com indulgéncia e que meus defeitos, num campo téo dificil nao sejam tanio procurados com vistos & censura, como com a finalidade de serem remediados pelos novos esforgas dos _leitores (Newton, PRINCIPIA, Prefécio). Na filosofia do Huminismo —caracterizada pela confianga no progresso e na razao, pelo desafio a tradigéo e 4 autoridade, e pelo incentivo a liberdade de 18 pensamento— o aporte de Newton é muito reconhecido!. Nas “Regras de raciocinio na filosofia” expostas no terceiro livro de Os principios matemdticos da filosofia natural: “O sistema do mundo”, Newton propde uma teoria corpuscular da matéria —em que 0s dtomos interagem por meio das forgas— ¢ um novo método que produzira mudangas no conhecimento da natureza entre os séculos XVII ¢ XVII. Este método ¢ aplicado a fisica e Ihe pemmitiré a Newton explicar e ordenar 0 Sistema do mundo a partir da lei da Gravitagao Universal Neste capitulo exporemos brevemente como a fisica ¢ a astronomia newtoniana ordenam o universo infinito?, substituindo o espirito de sistema do século XVII —que tem como fandamento a geometria, considerando os principios ¢ axiomas evidentes ¢ suficientes para deduzir deles todas suas proposigGes. Assim, veremos 0 método newtoniano que permite o estabelecimento da nova ordem nos estudos da natureza a partir da formulagdo da lei da gravitagdo universal, Para alcangar estes objetivos dividimos o capitulo em quatro segées: While science was surrendering old mysteries, the men of the Enlightenment constructed a new saystique: they satisfied their need for a representative figure, their craving for a bero, through Issac ‘Newton, Newton was a congenial kind of hero for the philosophies (..) Everything cooperated to make Newton into a fitting object of a mystique” (Peter Gay, The Enlightenment: an Interpretation, The Science of Freedom, pp. 128-129). 2 & concepgiio do espago infinito produzin reagbes de perplexidade entre muitos pensadores, como foi 0 caso de “Pascal, cuja espiritualidade se move com tanta vontade, quase temos a tentagio de dizer, com prazer, na Natureza mecanizada, vai ser © primeiro a sentir o que vird a ser a angtistia modema, “Ci silencio eterno desses espagos infinitos atemoriza-mne’ —~Fragmento 296—" (Cf, Robert Lenoble, Histéria da lia de Natureza, p. 277). 19 i) a mudanga nos estudos da natureza deve-se a Newton, que aplicou 0 conceito de fangao substituindo o de substincia; ii) os componentes homogéncos da natureza (Atomos ¢ forgas) utilizados por Newton para formular a Iei da Gravitagdio Universal; iii) o método de andlise ¢ de sintese, iv) a Revolugdo Newtoniana exposta e partix do “estilo newtoniano”, que permitira a Newton ordenar o sistema do mundo. E as conseqiiéncias desta revolugao, considerada “a nova ordem” por substituir o antigo mundo fechado e hierarquico. 1.1 0 CONCEITO DE FUNGAO Nesta seedo ressaltaremos a nog&o fundamental do “espitito de relagdes newtoniano”: 0 conceito de fungdo. A nogo de fungo apresenta-se na fisica como a operagdo que determina a realidade ou que permite compreendé-la, este conceito imtervém cada vez mais no pensamento modemo opondo-se ao conceito de substincia. Newton esforga-se como Descartes por estabelecer principios matemdticos universais que governem o curso da natureza, sem embargo ele nfo acredita na possibilidade de reduzir toda a fisica A geometria, Newton niio quet partir de axiomas nem suposigdes no estudo da natureza; ele parte da experiéncia, dos fatos, 20 05 quais nio sto materiais simples, uma incocrente massa de detalhes. Os fatos se apresentam como “relagdes” matematicamente determinadas, i.e. quantificaveis. Vejamos como Voltaire destaca este fato: Para um cartesiano a luz existe no ar, Para um newtoniano, vem do sol em seis minutos ¢ meio (Voltaire, Cartas Inglesas, “Décima Quarta Carta: Sobre Descartes e Newton”). Newton ao privilegiar o método de experimentagao ¢ de observagao, privilegia a aritmética, de tal maneira que as observagdes se podem reduzir a relagdes aritméticas. Estas relagSes so conhecidas como “fungées”. As mudangas propostas por Newton devem-se principalmente a0 descontentamento que ele experimenta com relagdo ao conceito de substancia, assim, nos diz Newton: Por minha parie acredito que esta idéia preconcebida explica por que a mesma palavra — substincia— aplicada, univocamente, nas escolas filosoficas, a Deus e as suas criaturas, e também por que motivo, ao formarem uma idéia do corpo, 0s filésofos chegam a um impasse e perdem a razo, por tentarem formar uma idéia independente de uma coisa que depende de Deus —grifo nosso— (Newton, Peso ¢ Equilibrio dos Fluidos, Definigio TV, p. 81). 21 Como observa Newton, os filésofos que procuram a substincia das coisas chegam a aplicé-la indiscriminadamente, tanto aquilo que & de natureza divina, que se admite pela fé, como aquilo que é sensivel ¢ experimentavel. Esta falta de critério, na procura das substincias, acarreta muitas confusdes para os filésofos; para evitar isto, Newton parte do pressuposto que o conhecimento das verdades iiltimas devem evitar-se, por isso ele nos diz: Mas o que a substincia real de qualquer coisa é ngs nao sabemos. Nos corpos, vemos somente suas figuras ¢ cores, ouvimos somente os sons, tocamos somente suas superficies exteriores, cheiramos somente 0s cheitos, € provamos os sabores; mas suas substincias interiores no deverio ser_conhecidas nem por_nossos sentidos. nem por qualquer ato reflexo de nossas mentes. muito menos, temos qualquer idéia da substancia de Deus —grifo nosso— (Newton, PRINCIPIA, Escélio Geral do “Sistema do Mundo”), Newton estabelece que nfio podemos nem devemos procurar saber o que é a substincia. Ele prope uma mudanga na reflexdo filoséfica em diregao aquilo que é experimentivel: aquilo que se toca, se ouve, se sente, i.e., aquilo que pode ser quantificdvel. O nosso conhecimento deve ir em direg%io aquilo que constitui a natureza, dos seres naturais, de tal maneira que: Para a existéncia desses seres nao € necessario supormos que exista alguma substincia ininteligivel na qual, como sujeito, possa haver uma forma substancial inerente (Newton, Peso e Equilibrio dos Fluidos, Definigio IV, p. 77) Se nés consideramos unicamente aquilo que € natural, experimentivel, o filésofo nao chegaré a especular. O “espirito de relagdes da fisica” newtoniana permite pereeber que existem limites no mundo da experiéncia. O cientista deve percorrer 0 dominio empirico e nao procurar caminhos de saida para o dominio da transcendéncia. A razio apresenta-se com uma tarefa modesta comparada com a dos séculos anteriores: descrever a experiéncia, Newton distingue a filosofia antiga e a medieval a partir da predominancia do conceito de substancia, e, a filosofia moderna, a partir do experimentavel. Para generalizar ¢ formular leis sobre a natureza temos que traduzir as experiéncias numa linguagem simples, pritica e que observe regularidades, por isso Newton nos recomenda: Regra I. Nao se hao de admitir mais causas das ‘coisas naturais do que as que sejam verdadeiras ¢, a0 mesmo tempo, bastem para explicar os fendmenos de tudo. A natureza, com efeito, é simples ¢ no se serve do luxo de causas supérfluas das coisas. Regra II. Logo, os efeitos naturais da mesma espécie tém as mesmas causas.- Assim, as causas da respiragio no homem ¢ no animal, da descida das pedras na Europa e na América, da luz no fogo de cozinha e no sol, da reflexdo da luz na 23 terra € nos planetas (Newton, PRINCIPIA, “Sistema do Mundo”, as duas primeiras regras). Newton, seguindo a Ockham, procura a explicagio mais simples no estudo da natureza tratando de explicar os fenémenos a partir de leis € causas. Se 0 filésofo quer fazer teoria ¢ abstrair, ele deve partir da natureza. Na abstragiio ele relaciona aquilo que experimenta, de tal maneira que no precisa falar de fatos particulares sendo do comportamento da natureza em geral. As causas dos fendmenos se podem descobrir observando a regularidade nos fendmenos até chegar a estabeler relagdes, por exemplo: se as condigdes se repetem os fendmenos tendem a repetir-se ic, dada uma fungdoa Rb na qual a= agua; R = ferver e b= 100° cada vez que se repete o fendmeno significa que se repete a relagdo a Rb. Ja Nicolau de Cusa, na renascenga, foi um defensor do conceito da fungao nos estudos da natureza; o Cusano apresenta-se como o seu maior exponente, para ele a “visio intellectualis” da teologia é a matematica ¢ nao a légica silogistica escolastica, isto ¢, ele substituiu o modo abstrato de pensar dos medievais por um pensamento “in concreto”. O fundamento do universo ¢ a matemiatica, pois o conhecimento desta ciéncia nos permite maior aproximagdo da sabedoria divina, Por outro lado, a teologia de Cusa revaloriza a humanidade através da figura de Cristo: a individualidade ja nao constitui o limite finito contrério a infinitude divina porque “Cristo € a unidade do finito com o infinito”. Com Nicolau de Cusa podemos perceber uma nova perspectiva ontoldgica, na qual diminui o interesse 24 pelas “formas substanciais” e simultaneamente cresce um interesse por outras “formas” que agrupam o humanismo, a nova ciéncia da natureza, a retérica, a gramatica e a légica? O conceito de fungo, baseada na modema logica das matematicas, substitui © conceito de substincia, estabelecido na antiga légica dos conceitos. Podemos observar que no pensamento de Newton enfatiza-se “a descrigfo” da natureza, a preferéncia pelo quantitativo e nao pelo qualitativo, esta tarcfa se pode realizar da methor maneira (clara ¢ inteiramente) a partir da aplicaglo da fungao (da forma Logica das relagées) no estudo da natureza. A fungio no s6 esti circunscrita ao estudo das matemiticas pois também € aplicada as ciéncias naturais, & epistemologia © metafisica, ¢ vai constituir 0 fundamento do conceito de natureza‘, Com efeito, esta substituigdo da idéia de substincia pela nog&o de fung3o vai repercutir decisivamente no conhecimento da natureza. 2 Ver Emst Cassirer, individuo e Cosmo, nella flosofia do Rinascimemto, Firenze, “A Nueva Italia” Editrice, 1950. 4 the logic of the generic concept, which, as we saw, represents the point the view and influence of concept the substance, there now appears the logic of the mathematical concept of function. However, the fiekd of application of this form of loric is not confined, to_mathematics ‘alone. On the contrary, it ents over ito the fd ofthe knowl of ats fo the cone of function constitutes th hema ani cording cept of nature has baen molded in sts ae Tonal development” -gyifo nosso-— (Casser, Substance and Function, p. 21) 25 Os_modemos, rejeitando formas substanciais_¢ qualidades_ocultas. tém-se_esforcado para sujeitar_os fenémenos da natureza as leis da matemitica, cultivei a matemética, neste tratado, no que ela se relaciona 4 filosofia —grifo nosso— (Newton, PRINCIPIA, Preficio de Newton a 1." edig&o p. 3). Ao observar os fenémenos naturais e traduzi-los em fungées ou relagdes, Newton 03 enuncia e representa na forma mais simples, além disso, cle evita o perigo de tratar sobre nocdes no observaveis —as substancias. Mas a nova concepgao surgida na Renascenga, nao logrou impor-se por igual em todos e cada um dos campos; o progresso niio avangou com passo uniforme em todas as partes. Onde surge com maior éxito a aplicagao do conceito de fungio é no campo da fisica. Por isso no estudo dos corpos, nos diz Newton: Se, porém, adotarmos a nogdo vulgar de corpo segundo a qual nos corpos reside uma certa realidade injnteligivel que denominam substéncia, na qual inerem todas as qualidades dos corpos, isto, além de ser ininteligivel, acarreta 0s mesmos inconvenientes que 0 ponto de vista cartesiano (Newton, Peso e Equilibrio dos Fluidos, Definigio TV, p. 79). 26 12 A TEORIA CORPUSCULAR DA MATERIA: OS ATOMOS, O VACUO E AS FORCAS Nesta seg%o nos interessa expor brevemente os principios com os quais Newton vai elaborar sua concepgio geral do mundo: as particulas duras ¢ indivisiveis (os dtomos) esto constanternente submetidas 4 agdo de todo um sistema de forcas de atragdo e repulsdo. Esta exposigaio esti inserida dentro da denominada “filosofia corpuscular”, que estabelece a unidade fundamental entre a matéria ¢ a luz. Newton nega a existéncia do plenum: um espago completamente cheio que oporia uma tal resisténcia ao movimento tornando-o praticamente impossivel. Newton nfo concebe que os espagos celestes estejam cheios de um éter extremadamente sarefeito, fino ¢ ténue; opde-se a esta constituigao do espago ¢ elabora seus proprios argumentos apelando aos filésofos atomistas: E, para rejeitar tal meio [o plemum], temos a autoridade daqueles mais antigos ¢ mais celebrados fildsofos da Grécia ¢ da Fenicia, que fizeram do vicuo [vacuum], dos atomos e da gravidade dos atomos os primeiros principios de sua Filosofia; simplesmente atribuindo a gravidade a alguma outra causa que & matéria densa (Newton, OPTICKS, Livro MI, Parte I, Questo 28, p, 369). 27 Newton apresenta-se como um defensor da teoria atomista da matéria, assim ele nos diz: Parece provivel para mim que Deus no comeso impenetraveis, formou a matéria em. s movi duras, volumosas, sélidas, de tais formas ¢ figuras, e com tais outras propriedades e em tal proporgéo ao espago, e mais conduzidas ao fim para o qual ele as formou; e que estas particulas primitivas, sendo sélidas sdo_incomparavelmente_mais duras do_que_quaisquer corpos porosos compostos delas: mesmo to duras que nunca se consomem on se quebram em pedagos; nenhum poder comum sendo capaz de dividir o que Deus, ele proprio, fez na primeira criagdo —grifo nosso— (Newton, OPTICKS, Livro Ill, Parte 1, Questio 31, p 400). Newton também afirmou que a teoria atomista da matéria admite a aceitagao do vicwo no espago, assim ele nos diz: Se todas as _particulas sdlidas de todos os corpos so da mesma densidade, ¢ ndo podem ser rarefeitas sem poros, entdo um vazio, ou vacuo. deve ser admitido. Por corpos de mesma densidade refiro-me aqueles cujas inércias esto na proporgdo de seus volumes —grifo nosso— (Newton, PRINCIPIA, Livro III, Proposigao VI, Corolatio IV). 28 Vemos que Newton nem sequer despreza 0 critério de autoridade em favor de sua teoria, mas ele no considera este critério fundamental para alcangar conhecimentos gerais. Newton estabelece que a natureza esté constituida por atomos que se encontram no vacuo e sofrem a ago de “algumas causas além da matéria densa”, ou seja das forgas ‘A existéncia das forgas na teoria newtoniana é exposta na OPTICKS quando Newton explica a coesio dos corpos na natureza. Assim ele nos diz: As partes de todos 9s compos duros homogéneos que se tocam plenamente se ligam muito intensamente. E para explicar como isto pode acontecer, alguns inyentaram_atomos em_forma_de os. o que é assumir a questo antes de prova-la; gutros nos _dizem ie 0s corpos siio colados por zepouso (isto é, por uma qualidade oculta ou, antes, por nada); ¢ outros ainda, que eles se ligam por movimentos tramados (isto €, por repouso relativo entre si). Eu, a0 contrario, inferi de sua coesdo que suas particulas se atraem entre si por alguma forca, que. em contato imediato, ¢ extremamente intensa —grifo nosso— (Newton, OPTICKS, Livro MIL, Parte |, Questdo 31, pp. 388-389). ‘A “filosofia experimental” nfio pesquisa pelas causas que originam as forgas, uma vez que ela se limita a descobrir a existéncia das forgas que submetem os dtomos a diferentes sistemas. Assim nos diz Newton: 29 Como essas atracdes podem ser efetuadas eu nao considero aqui. © que cu chamo atragio pode ser efetuado por impulso ou por alguns outros meios desconhecidos_para_mim.. Uso aqui aquela palavra somente para significar em geral qualquer forga através da qual os corpos tendem um para 0 outro qualquer que seja_a causa —grifo nosso— (Newton, OPTICKS, Livro UL, Parte I, Questio 31, p. 376). Newton reitera que ao “fildsofo experimental” no The interessa procurar pelas causas iltimas que originam as forgas, a “substincia” das forgas etc. Ele coloca limites no conhecimento cientifico, como afirma na OPTICKS ¢ reitera nos PRINCIPIA, no Livro Ill, no “Sistema do Mundo”: Até aqui explicamos os fendmenos dos céus e de nosso mar pelo poder da gravidade, mas ainda nto designamos a causa desse poder (...) que age mas de acordo com a quantidade da matéria sélida que elas contém, © propaga sua virtude em todos os lados a imensas distincias, decrescendo sempre a0 quadrado inverso das distancias (...) Mas até aqui néio fai capaz. de descobrir a causa dessas propriedades da gravidade a partir dos fenémenos, ¢ néo construo nenhuma hipdtese; pois tudo que nfo € deduzido dos fendmenos deve ser chamado uma hipdtese; ¢ as hipéteses, quer metafisicas ou fisicas, quer de qualidades ocultas ou mecénicas, néo tém_lugar_na_filosofia experimental —grifo nosso— 30 (Newton, PRINCIPIA, O Sistema do Mundo, Escélio Geral, p. 546) Newton nfo nega que devam existir causas que originem as forgas (Newton nunca negou sua religiosidade), mas indagar pelas causas das forgas nfo é atividade do cientista. Dai sua famosa declarago: “hypotheses non fingo”®. A Newton interessa a atuagio das forgas ¢ ndo as causas que as originam, por isso diz. que: E para nés é suficiente que a gravidade realmente exista, aja de acordo com as leis que explicamos € que sirva abundantemente para considerar todos os movimentos dos corpos celestiais ¢ de nosso mar (Newton, PRINCIPIA, O Sistema do Mundo, Escélio Geral, p. 546) ‘A homogencidade da matéria (dtomos e forgas que interagem no vacuo) permite a Newton formular leis inferidas da natureza. As leis se alcangam gragas ao método 5 Noxon na Evolucién da filosofia de Hume, analisa a eélebre sentenga de Newton Hypotheses now fingo baseando-se no estudo de Irving Bernard Cohen Franklin and Newton e diz: “Nao se pode nnegar que a propria obra cientifica de Newton estava cheia de hipdteses em uma abundincia assombrosa; hipéteses de trabalho imaginativas, engenbosas ¢ frutiferas que guiavam sua "} “O tipo de hipétese que Newton rejeita aqui categoricamente é 0 que Coben denomina “fiocao. flloséfica"”._expressiio _do XVIL_aplicada_as_t uramente especulativas, especialmente ao sistema de turbilhdes de Descartes, que designs uma construglo imaginativa formulada a margam des dados observacionais ¢ em contra de elementos de juizo cexperimentais contrérios (..) ¢ destas hipéteses arbitririas © gratuitas que diz que é “necassirio deixa-as de lado” (..) “Cohen logrou distinguir nove sentidos do término hipétese que entdo eram ‘correntes. Seguindo a investigagao brilhante ¢ ihuminadora de Cohea, esté claro que as hipsteses ‘eram perfoitamente aceitaveis para Newton em alguns destes sentidos, assim como que exam inaceitaveis, a0 menos om algum desses sentidos” —grifo nosso— (James Noxon, La evolucién de la filosofia de Hume, pp. 51-52) 31 —baseado na observagio ¢ a experimentagio— que permite rejeitar aquclas concepedes que propéem a existéncia de um espago pleno, onde existem corpos com qualidades completamente heterogéneas. Apesar de que a Newton ndo interessam as causas das forcas, a histéria da ciéncia registra fortes discussdes que ele e seus discipulos sustentaram devido a introdugao da teoria das forgas na fisica. Newton manteve debates teol6gicos que 0 levaram a propor a intervengao divina como ordenadora de sen sistema. Ele explica a natureza da forga como um poder hiperfisico: a agao de Deus, assim nos diz: Ora, com a ajuda desses principios, todas as coisas materiais parecem ter sido compostas das particulas duras sélidas cima _mencionadas, variadamente associadas na primeira criagdo pelo conselho de um agente inteligente. Pois convinha Aquele que as criou colocé-las em ordem. E se Ele assim fez, é nio-filoséfico procurar por qualquer outra origem do ‘mundo, ou pretender que este deveria se originar a partir de um caos pelas leis da natureza; apesar de que, uma vez sendo formado, ele pode continuar por essas leis durante muitas épocas —grifo nosso— (Newton, OPTICKS, Livro IH, Parte 1, Questo 31, p. 402). J4 Laplace, que consotidou 0 ponto de vista newtoniano sobre a gravitagdo, no precisa admitir a intervengo divina para ordenar sua Exposigio do Sistema do Mundo, Por isso, comenta-se que ante a observagio feita por Napoleio a seu 8 Ministro do Interior, Laplace, por ndo ter mencionado a Deus em dita obra, 0 filésofo respondeu: “nao preciso desta hipétese”®. ‘A mecanica newtoniana, elaborada a partir de forgas e massas, continua vigente até nossos dias’. Com efeito, se bem que a fisica de Einstein tenha um maior poder explicativo. a ciéncia de todos os dias é completamente newtoniana, por exemplo, os céloulos para preparar 0 Almanaque Nautico, o estudo geral dos planetas, as aplicagdes da engenkaria etc. utilizam a teoria newtoniana. Portanto, “ée errada a afirmagao que a Teoria da Relatividade demostrou a falsidade da dinamica classica” (Cohen, O nascimento de uma nova Fisica: de Copérnico a Newton, p. 199). 1,3 O METODO DE ANALISE E SINTESE Laplace completou néo s6 a parte gravitacional dos PRINCTPIA de Newton, mas também alguns pontos da fisica, Newton tinha computado a velocidade do som em bases puramente tedricas, mas vviu que isso Ihe dava um valor demasiado pequeno. Laplace foi o primeiro a observar, em 1816, que a discrepiucia entre 0 valor calculado ¢ a observagio se devia a gue os cdleulos dos PRINCIPLA cerarm bascados na hipotese de compressies ¢ expanstes isotdrmicas, 20 passo que na realidade as oseilagSes para 0 som sio tho sdpidas que as compresses so adiabaticas, aumentando assim a clasticidade do ar e a velocidade do som” (Carl Boyer, Histéria da Matemérica, p. 363) 7 “Verdadeiramente, a diferenca entre_as leis de Newton ¢ de Einstein depends do quadrado da pequena relagao w/c, na que v é a velocidade de um planeta gravitando e ¢ é a velocidade da luz. Inclusive no planeta mais répido, Mercirio, este quadrado & somente 0,00000003; em todo.o menos” —griio nosso— (lames Jean, Historia de la Fisica, p. 346) 33, Nesta segao queremos expor brevemente 0 método aplicado por Newton nos estudos da natureza. Este autor inicia seus estudos com 2 observaga0 dos fenémenos ¢ conclui com a formulagao de leis que refletem a estrutura da natureza Newton propde uma seqiéncia no seu método, de tal maneira que: Na filosofia natural a investigagio das coisas dificeis pelo método de andlise deve preceder sempre a0 método_de composicdo (Newton, OPTICKS, Livro If, Parte I, p. 404). O método newtoniano sempre inicia com o processo de andlise para garantir a eficdcia de sua pesquisa. Newton descreve a fase inicial do método, da seguinte ‘maneira: A anélise consiste em realizar experimentos © observagées, em tirar deles conclusGes gerais por indugdo e em nfo admitir outras observagdes que nio sejam as conclusOes resultantes dos experimentos ou outras verdades certas, pois as hipéteses nao deverao ser levadas em conta na filosofia experimental (Newton, OPTICKS, Livro III, Parte I, p. 404). Neste primeiro momento do método, na andlise, 0 caminho da investigagio da natureza ndo se deve iniciar formulando hipdteses, vindas de cima para baixo, ou seja de axiomas e principios para os fatos, uma vez que 0 método newtoniano recomenda partir da observagio ¢ ir subindo progressivamente (por indugdo) até 34 alcangar conclusdes completamente gerais (leis), O raciocinio por indugao sustenta- se muma quantidade tio grande de observagdes que levam a considerar seu enunciado, “as conclusdes gerais”, como evidentes. Assim Newton nos diz: E, embora a argumentagdo pela indugdo a partir de experiéneias ¢ observagdes nao seja a demonstrago de conclusdes gerais, ainda assim ¢ o melhor caminho de argumenta¢do que a natureza das coisas admite, ¢ pode ser considerada tanto mais forte quanto mais geral é a indugdo (Newton, OPTICKS, Livro IH, Parte I, p. 404), Newton reconhece as limitagSes da indugiio e nfio a considera uma demonstrayao completa, mas sim a melhor maneira de alcangar conhecimentos gerais. Mediante a analise, Newton pode enunciar leis que sio confirmadas com a observacao ¢ experimentagio; estas leis Ihe permitem estabelecer uma regularidade nos fendmenos naturais. Neste primeiro estigio do método, podem-se admitir novas observagdes que restringem as conclusdes aleangadas*. © método de andlise newtoniano permite conhecer as propriedades € princfpios, formulados a partir dos fenémenos observaveis, que explicam a estrutura interna da natureza. Por isso Newton afirma: © “B ge nenhuma excegdo decorre dos fendmenos, geralmente a conclusio pode ser formulada. Mas se em qualquer tempo posterior, qualquer excego decorter dos experimenios, a conclusio pode enti ser formulada com tais excegbes que decorrem deles” (Newton, OPTICKS, Livro IIL, Parte I, ‘Questiio 31, p. 404) 35 Com este método de analise podemos passar dos compostos a seus ingredientes e dos movimentos as forcas que as produzem; em geral, dos efeitos as causas € destas causas particulares as mais gerais, até que o argumento termine na mais geral, Este é 0 método de anilise —grifo nosso— (Newton, OPZICKS, Livro UI, Parte I, p. 404). Assim, @ estrutura interna, que alcanga 0 método de anilise, estaré constitulda pelas propriedades fundamentais da natureza e as causas do movimento: a matéria € as forgas, A segunda parte do método é o da sintese: Consiste em supor as causas descobertas ¢ estabelecidas como principios ¢ em explicar com eles os fenémenos, procedendo a partir deles ¢ demonstrando as explicagdes (Newton, OPTICKS, Livro Ill, Parte I, p. 405). A sintese permite que os principios alcangados a partir da indug&o sejam confirmados (ou rejeitados) com sua aplicagio nos fendmenos. A seqiiéncia de andlise ¢ sintese assegura a eficacia do método newtoniano, de tal maneira que as leis sio descobertas e nfo criadas pelo pesquisador da natureza. As leis assim formuladas, no obstante expressadas em linguagem ‘meramente matemética, refletem a realidade. Desta maneira podemos concluir que. 36 o método newtoniano, de andlise e sintese, procura evitar a infiltragio de qualquer hipétese arbitraria no conhecimento cientifico, ‘Newton faz derivar as causas de todas as coisas a partir dos prinefpios mais simples possiveis; mas, entdo, no aceita nada como principios que nao fenha sido provado através de fenémenos. Ele ndo constréi nenhuma hipétese, nem as aceita em filosofia a nao ser como questées cuja verdade pode ser discutida, Procede, portanto, em um método duplo: sintético e analitico. A partir de alguns fenémenos selecionados, deduz, por anilise, as forgas da natureza e as leis de forgas mais simples, ¢ dai, por sintese, mostra a constituigao do resto. Assim, Newton prope uma nova ordem, um novo sistema do mundo, deduzido da teoria da gravidade. 1.4 O ESTILO NEWTONIANO “Derivar dos fenémenos dois ou tes principios gerais de movimento e depois dizer como as propriedades e agoes de todas as coisas corpéreas 37 decorrem desses principios memifestos seria um grande passo em filosofia, embora as causas desses princlpios ainda nao tenham stdo descobertas. Nao hesito, pois, em propor os princtpios de movimento f..) sendo eles de uma extenséo muito geral, detxando suas causas para serem descobertas" (Newton, OPTICKS, Livro Hl, Parte 1, Questio 31, pp. 401-402). Newton introduziu novas técnicas mateméticas no estudo da filosofia natural. A ordem que produz o “estilo newtoniano” foi uma conseqiiéncia de sua matematizagdo, mas a utilizagio da matemética no foi uma exclusividade newtoniana, J4 Galileu ao estabelecer seu “programa” da ciéncia modema afirmava: “a natureza esti escrita em linguagem matemitica”®. Mas, qual é a diferenga entre Newton ¢ seus antecessores na aplicagao da matemética? Qual foi a causa desta “tevolucao tio assombrosa nas ciéncias”? “estilo newtoniano” ¢ apreciado claramente no conjunto dos trés livros da obra de Newton: Os Principios Matematicos da Filosofia Natural [PRINCIPIA\ Observemos que © mesmo titulo da obra informa de maneira clara o tratamento dado a0 estudo da fisica, a partir de principios mateméticos, Sobre estes livros comenta Newton: ? Sobre este tema © professor Catlos Arthur R do Nascimento ressalta que jé Santo Tomas 20 classificar o saber humano tinba posicionado as sctentiae mediae —astronomia, miisica perspectiva— entre a fisica ¢ a matemética, de tal mancira que estas “‘ciéncias intermediarias” por aplicar os principios matemiticos as coisas materiais ocupavam um status epistemolégice peculiar. Oferego este trabalho como os _principios matemiticos da filosofia, pois toda_a_esséncia_da filosofia parece consistir nisso —a partir dos fenémenos de movimento, investigar as forgas da natureza ¢, entao, dessas forgas demonstrar os outros fendmenos; € para esse fim dirigem-se as proposiges gerais no primeiro ¢ no segundo livros. No terceiro livro, dou um exemplo disso, na explicagao do Sistema do Mundo; pois, pelas proposigdes matematicamente demonstradas nos livros anteriores, no terceiro derivo dos fendmenos celestes as forcas da gravidade com as quais os corpos tendem para © sol ¢ para os varios planetas. Entdo, dessas forgas, por outras proposigSes que também so matematicas, deduzo os movimentos dos planetas, dos cometas da lua e do mar, Gostaria que pudéssemos derivar o resto dos fendmenos da natureza dos principios mecdnicos pelo mesmo tipo de raciocinio, pois, por muitas razdes, sou induzido a suspeitar de que todos eles possam depender de certas forgas pelas quais as particulas dos corpos, por algumas causas até aqui desconhecidas, ou siio mutuamente impelidas umas em diregdo as outras € se ligam em formas regulares, ou sio repelidas ¢ se afastam umas das outras. Sendo desconhecidas essas_forcas. os fildsofos até agora tém tentado em vo investigagio da : mas espero _que_ os ipios_aqui sts, tragam alguma luz, seja a esse ou a algum outro método 38 ‘Ver Carlos Arthur R. do Nascimento “O Estanto Epistemologico das ‘Ciéncias Intermediarias’ 39 mais_verdadeiro_de_filosofar (Newton, PRINCIPIA, Preficio de Newton a I." edigfo, p. EID) No prefacio do livro terceiro dos PRINCIPIA “O Sistema do Mundo”, indica-se enfaticamente a relago das matematicas com as ciéncias naturais. Diz-nos Newton: Nos livros precedentes [os dois primeiros livros dos PRINCIPIA] watei dos principios da filosofia, mas no dos filos6ficos, ¢ sim apenas dos matematicos (...) Basta que se leiam atentamente as definigdes, as leis do movimento e as trés primeiras seghes do Livro I, passando-se entio a este livro sobre o Sistema do Mundo ——grifo nosso— (Newton, PRINCIPIA, Preficio a0 “Sistema do Mundo”) No “Sistema do Mundo”, Newton mostra a estrutura interna dos PRINCIPIA e estuda os fendmenos fisicos ¢ astronémicos, mediante uma argumentagio matematica, ordenando o universo a partir da formulagio da lei da Gravitagio Universal O “estilo newtoniano” se distingue de qualquer outro. Por exemplo, do estilo de Galileu, que estudou o movimento sem referir-se as forgas que os produzem nem 4s massas dos corpos (cinematica). Galilen nao investigou a possibilidade de que @ forga gravitacional aceleradora pudesse ter como causa a atragdo da terra sobre 0 corpo ou o esforgo que algo exercesse sobre 0 corpo dirigindo-o em diregao a terra, segundo Santo Tomas de Aquino” in De Toms de Aquino a Galileu, pp. 13-97. 40 Fle tampouce se questionou se dita causa ou forga € externa ou interna a0 compo, nem se preocupou se o alcance da forga ¢ limitado e, em tal caso, a que distancia se estende (até a Lua, por exemplo). Assim, Galileu nao investigou se tal forga & constante em toda a superficie da terra, nem se a gravidade varia com a distancia em relagdo ao centro da terra. O proprio autor dos PRINCIPIA nos diz em que consiste scu “estilo” ¢ quais sdo as regras para aplicar as mateméticas a fisica: Em__matematicas, femos que pesquisar as magnitudes das forgas e aquelas razdes que se seguem de quaisquer condigdes que se possa supor. Logo, ao passar Afisica, ditas razSes se confrontam com os fendmenos a fim de encontrar as condigdes das forgas aplicam-se a cada classe de corpos atraentes. Finalmente, sera possivel discutir com maiores garantias sobre as espécies. fisicas, as causas fisicas e_as_proporcdes fisicas destas forgas —grifo nosso— (Newton, PRINCIPIA, escélio a0 final da seco 11 do Livro Primeiro). © estilo newtoniano comegou por considerar um “mundo idealizado”, “modelo mental”, “sistema imaginario”, “andlogo matemético” ou “sistema matemético” contendo uma simples “particula” matemética e uma “forga” central dirigida num. espago matematico, Sob estas idealizadas condigdes, Newton podia livremente desenvolver as conseqiiéncias matematicas das leis de movimento, os quais so os 41 axiomas dos Principles, J4 no Peso e Equilibrio dos Flutdos, Newton expde com clareza o procedimento de estudo da natureza'®: Conseqiientemente, adaptei_essas definicdes no as_coisas fisicas, mas _ao_modo de pensar dos mateméticos, 4 maneira dos geémetras, os quais nio adaptam as suas definigdes das figuras as irregularidades dos compos fisicos (Newton, Peso e Equilibrio dos Fluidos, p. 87). Num estigio superior, Newton contrasta este mundo ideal com 0 mundo da fisica ¢ aumenta condigdes a seu modelo ideal. Nesta fase, ele pode introduzir um segundo corpo que interage com primeiro, de tal maneira que Ihe permite procurar novas conseqiéncias mateméticas. Depois, uma vez mais, ele compara os resultados matematicos com mundo fisico e revisa o modelo. Neste estagio ele pode introduzir um terceiro corpo, de maneira que Ihe permita acercar-se as condigdes do mundo da experiéncia e da observagao, Estas fases do estilo newtoniano aperfeigoam 0 modelo acrescentando- The novas condigdes que o tomam mais semelhante a realidade. 10 “E, assim como as dimensées dos corpos fisicos so methor determinados a partir da sua geometria (como as medigdes de um campo a partir da geometria plana, embora um campo aio seja uum plano verdadviro; € as medigées da terra a partir da tese da esfericidade, embora a terra no ‘tenha uma forma exatamente esférica), da mesma forma as propriedades dos fluidos ¢ dos sétidos fisicos so melhor conbecidas a partir desta tese matematica, ainda que talvez no sejam fluidos ou sélidos no sentido absohito e uniforme que venho definindo aqui” (Newton, Peso e Equilibrio dos Fixidos, p81) a ‘As trés fases sucessivas do “estilo newtoniano” aplicado aos PRINCIPIA se apresentam assim: 1) Na primeira fase, Newton examina as conseqiiéncias de qualquer condigao de forcas matematicamente interessantes, sem considerar se as forgas ou condigdes de resisténcia acontecem ou no na natureza. Desta primeira fase: E apropriado tatar da ciéncia do peso e do equilibrio dos corpos fluidos e dos corpos sélidos nos fluidos através de dois métodos. Na medida em que isto conceme as ciéucias matematicas, é conveniente que cu abst o mais _possivel consi¢ 3 _de_ordem fisica, Por esse método empreendi demonstrar as proposigdes individuais pertinentes ao assunto partindo de principios abstratos, suficientemente conhecidos para © estudante, demonstracio que _serd_rigorosa_e ecométrica. Uma vez que esta matéria pode ser considerada de alguna forma aparentada com a filosofia natural —-na medida em que pode ser aplicada para ilustrar muitos dos fenémenos da filosofia natural— e além disso, a fim de que a sua utilidade possa ser particularmente evidente e a certeza dos seus principios taivez seja confirmada, nfo hesitarei em ihustrar abundantemente as proposigées também através da experiéncia —grifo nosso— (Newton, Peso e Equilibrio dos Fluidos, p. 61). 43 Newton considerou que poderia constmir o sistema dos dois primeiros livros dos PRINCIPIA desde uma perspectiva matemética, em termos de uns sistemas imaginatios ou “modelos, (redugSes sisteméticas dos problemas fisicos a andlogos ‘matematicos, e que se podem resolver como problemas mateméticos)"". Nesta fase de investigagao néo se tomava fandamentalmente em consideragdo a realidade fisica, Desta maneira na primeira fase, Newton aplica as mateméticas a fisica, ie. cria os modelos, sistemas imagindrios, andlogos matematicos ou sistemas matematicas 2) Na segunda fase, Newton descobre que “certas formas do modelo” ou “sistema basico do modelo” esto de acordo com os fenémenos, de tal maneira que ele pode confiar neste modelo para predizer e determinar os fendmenos conhecidos, € efeitos novos ainda desconhecidos, que posteriormente sto confirmados pelas observagies. Entiio, nesta fase, Newton estabelece comparacdes entre os modelos ¢ a realidade fisica. Ai os resultados matematicos so condicionados aos experimentos, as observagdes e aos célculos baseados em dados reais. 11. B. Cohen prefere a expresso “constructo” melhor que “modelo”, assim nos diz: “Eu utilizo a ‘expresso “constructo matemdtico” ou “sistema matematico” que “modelo”, dado que no uso atual, uum “modelo” & um tipo de entidade diferente, desenhiada a fim de explicar um conjunto de regras fenamenolégicas ou outros resultados de experimentos ¢ observagées" (1, Bemard Cohen TVR, nota 13, 33, p. 305). Wer mais sobre as etapas da claboracio do constructo newtoniane em TNR, 3.8, p. ne. 44 3) A terceira fase consiste na elaboragdo do Sistema do Mundo, na aplicagao dos principios mateméticos a filosofia natural. Aqui Newton estabelece uma ordem no universo: a gravidade se estende a grandes distincias, diminui com o quadrado das distincias aos corpos, atua sobre um corpo proporcionalmente a sua massa ou quantidade de matéria. O sistema newtoniano da terceira fase 0 conduz a wma ordem nova na filosofia natural, uma ordem a partir de massas € forgas. Sendo assim, nesta fase, uma vez que foram aplicados a filosofia natural os principios matematicos (estabelecidos nas duas fases anteriores), se estabelecem os principios on Jeis da fisica. © estilo newtoniano foi accito pelas demais ciéncias porque ressaltou a importincia das mateméticas nas ciéncias naturais, de tal maneira que Newton pode elaborar: AS conseqiéncias mateméticas das possiveis condigGes fisicas. sem ter que discutir a realidade fisica de tais condigdes nas primeiras etapas da investigagio. Uma série de experimentos matematizados que levam Newton ao mais profundo conhecimento do universo ¢ suas agdes. Ele parece ter dado “prioridade 4 exatidio do sistema matemitico frente ao cardter grossciro da lei empirica” (ib. p.84). “estilo newtoniano” nao separa as relag6es fisicas das mateméticas. Em sua matematizagao da realidade, Newton parte de modelos puramente matemAticos qne vio além da experiéncia, cuja efetividade ¢ utilidade ¢ comprovada porque explicam de maneira coerente a realidade. 45 O estilo newtoniano nao determina unicamente as magnitudes das forcas, uma vez que requer uma segunda e terceira fase nas quais sistematicamente confronta com a realidade ¢ clabora os principios e leis (a dindmica). O estilo dos PRINCIPIA considera as relagbes entre as forgas, ¢ aceleragdes produzidas por clas, a partir da gravitagtio universal. Com a elaborago da lei da gravitago universal Newton ordena de forma nova o universo, este resultado influenciaré no pensamento do ituminismo 1.4.1 OS MODELOS MATEMATICOS: A ANALOGIA DOS FENOMENOS Nesta seco observaremos a primeira fase do “estilo newtoniano” especificamente; a aplicagao das matematicas a fisica mediante a criago dos modelos, Sobre a utilidade dos modelos nos diz: Newton: Em__matematica, devemos investigar as quantidades de forgas com suas proporgdes conseqiientes sob quaisquer condigSes supostas; entic, quando 46 consideramos_a_fisica, comparamos essas proporgdes com os fenémenos da natureza, através do que pudemos conhecer que condigdes dessas forgas correspondem aos varios tipos de corpos atrativos. Tendo feito esse ‘preambulo. argumentaremos com maior sepuranca no juc_se refere as naturezas fisi causas € proporgdes das forcas. Vejamos, enttio, com que forgas os corpos esféricos que consistem de particulas dotadas de poderes atrativos, como os acima mencionados, devem atuar uns sobre 0s outros: ¢ que tipo de movimentos resultardo dai —sgrifo nosso—( Newton, PRINCIPIA, Livro I, Segao XI, Escélio). Os modelos permitem reduzir sistematicamente os problemas fisicos a anilogos matematicos de modo que se podem resolver como problemas matematicos. Albert Einstein tinha uma concepgao semelhante sobre este recurso cientifico™?, éxito na pesquisa cientifica se alcanga gragas a claboragio do modelo que pode ser definido como um sistema matemético abstraido da natureza, porém andlogo a ela, Os modelos matematicos além de serem andlogos 4 natureza, tém, 2 Cohen citando a Albert Einstein: “Estou convencido de que, mediante construgbes puramente ‘matemiticas, podemos descobrir aqueles conceitos ¢ conexdes legais entre eles que subministram a chave da compreensio dos fendmenos naturais. A experiéncia pode sugerir os concsitos ‘matematicos apropriados, mas no cabe diivida de que estes niio se podem deduzir dela. Como é natural, a experigncia é o tnico critério de utilidade fisica de uma construgtio matemitica, entio o principio criador reside nas matemticas. Por tanto, em certo sentido, convenho vom © sono dos antigos de que 0 peasamento puro pode captar a realidade” (Albert Einstein, “Homenagem a Herbert Spencer em Oxford” in On the Method of Theoretical Physics) Cf. en Coben, INR, 3.12 p. 183 47 sobre esta, a vantagem de serem operatives e, os resultados finais de andlises mateméticas podem verificar-se com a natureza, © modelo é um conjunto de hipéteses sobre o comportamento de um sistema fisico, os quais guiados pela experiéncia tratam de explicar o sistema, O modelo funciona de uma maneira que vai além da realidade empirica, posto que procura nas leis matematicas aquelas que regem A natureza, indo além da experiéncia mas se verifica com esta. Desta maneira, a partir da analogia o cientista pode predizer comportamentos que ele nao tinha percebido antes. Contudo, isto niio quer dizer que o objetivo principal dos PRINCIPIA se teduz a formulago de modelos € sistemas mateméticos em geral. Os modelos utilizados por Newton nos PRINCIPIA eram seletivos Podemos conchuir que: @) O titulo dos PRINCIPIA é claramente compreendido, pois os “principios matematicos da filosofia natural” so os modelos mateméticos que permitem a analogia entre as matematicas e a fisica. b) Os modelos sao as bases (no os experiments ¢ indugdes) que permitem a exploragao das propriedades de diversos movimentos sob condigées dadas pelas forsas. Neste contexto, podemos perceber alguns conceitos que foram incompreendidos na fisica de Newton, como o “absoluto” e 0 “relativo” com relagdo 20 movimento, ao tempo e ao espago. 48 ©) Os ensaios da matemitica pura (geometria analitica © céloulo) tendem a expressar-se freqiientemente mediante a linguagem da fisica do movimento. Os logros de Newton nos PRINCIPIA se deveram a sua extraordindria habilidade para matematizar a ciéncia empirica ou fisica, isto é, construir uma analogia com a natureza a partir dos modelos, As mateméticas serviam imediatamente a Newton para disciplinar sua imaginagdo criadora, enfocando ou agudizando por conseguinte sua produtividade ¢ para dotar sua imaginagao de novos e singulares poderes. A importéncia da ordem imposta por Newton ¢ considerada pelos estudiosos da ciéncia como originaria na historia do pensamento cientifico'’. Neste capitulo tratamos de ressaltar a “nova ordem” do universo proposta por Newton a partir dos conceitos de fingao e do Estilo Newtoniano, que consideramos importante porque acreditamos que influenciaré nos estudos sobre a natureza humana, temas dos préximos dois capitulos da presente tese 13 {Da obra newtoniana] O que nos importa (..) nfo & 0 desenvolvimento da astronomia como tal, mas © progresso na unificagao do Universo, a substituigdo do Cosmo esttuturado ¢ hierarquizatio de 49 Aristételes por um universo regido pelas mesmas leis (Koyré, “A contribuic&o cientifica da Renascenga” in Estudos de Historia do Pensamento Clentifico. p. 51) 50 2. A NATUREZA HUMANA E A JUSTICA EM HUME Nao é uma reflextio que cause assombro 0 considerar que a aplicagao da filosofia experimental aos assuntos morais deva vir depois da aplicagao aos problemas da natureza (Hume, Treatise, Introdugao). ‘Neste capitulo nos interessa ressaltar a ordem social estabelecida por Hume através da invengiio da justiga, a qual € uma extensiio das paixdes de sociabilidade da natureza humana. Para alcangar nosso objetivo dividimos este capitulo em trés segdes: na primeira, exporemos brevemente a influéncia do método experimental af newtoniano no estudo da natureza humana, enfatizando a importincia da Histéria | porque cla nos permite observar os principios que regem o homem. Na segunda secao, obscrvaremos como Hume rejeita as teses contratualistas a0 instaurar a Justiga a partir do estudo da moral —-a moral humeana se fundamenta no “sentido moral”. Na terecira segiio ressaltaremos como a invengdo da justiga € necessaria para estabelecer a ordem social 2.1 O METODO EXPERIMENTAL EM HUME 0 Tratado da Natureza Humana foi escrito antes que Hume cumprisse os 24 anos. Esta volumosa obra alcangou pouco éxito, mas nem por isso invalidou-se 0 projeto humeano exposto na Adverténcia aos livros Te It do Treanise: ‘A intengdio que persigo na presente obra fica suficientemente exposta na introdugao (...) Os problemas do entendimento ¢ as paixdes constituem por si mesmos uma cadeia completa de raciocinios (...) Se tenho a sorte de sair airoso, continuarei minha obra examinando_os problemas da moral, a politica ¢ a critica das artes letras. Com isso se completaria este Tratado da Natureza ‘Humana —grifo nosso— (Hume, Treatise, Adverténcias 20s livros Ie I). O projeto de Hume era ambicioso, ele se propuaha fazer um sistema —a analogia 52 com a cadeia de raciocinios € elogtiente--, que unisse razo, paixio, moral, Politica, arte ¢ letras. Um projeto de tais dimens6es precisava de principios sélidos que sustentassem todo o sistema. Hume inicia a sua exposigo reduzindo o saber de todas as ciéncias a uma 86: E evidente que todas as ciéncias se relacionam em maior ou menor grau com a natureza humana, ¢ ainda que algumas paregam desenvolver-se a grande distincia desta, regressam finalmente a ela por uma ou outra via. Inclusive as Matemédticas, a Filosofia Natural e a Religido Natural dependem de algum modo da ciéncia do HOMEM, pois esto sob a compreenstio dos homens © siio julgadas segundo as capacidades e as faculdades destes (Hume, Treatise, Introduce, XV). O estudo da natureza humana, o estudo do entendimento e das paixdes, nos permitira conhecer as “capacidades e faculdades” humanas que demarcaram o conhecimento e conteido das outras ciéncias. Por exemplo, para ressaltar esta citacdo, Hume ao anotar que “inclusive a filosofia natural depende de algum modo da ciéncia do Homem”, esta indicando que ainda os resultados obtidos por Newton nas ciéncias naturais dependem desta ciéncia, isto ¢, a obra na qual esté formulada a lei da Gravitagdo Universal, a exposigdo do “Sistema do Mundo” newtoniano no Tivo Wl de Philosophiae Naturalis Principia Mathemathica, pode ser 53 compreendida no estudo do homem. Porque uma vantagem do estudo do conhecimento da natureza humana radica em que os progressos que obtenhamos dela servirio para acrescentar 0 conhecimento das outras ciéncias, como nos diz Hume: E impossivel predizer que mudangas € progressos poderiamos fazer nas ciéncias se conhecéssemos por inteiro a extensio e forgas do entendimento humano e se pudéssemos explicar a matureza das idéias que empregamos, assim como as das operagSes que realizarmos ao argumentar. E é sobretudo na religito natural onde cabe esperar progressos (Hume, Treatise, Introdugao, XIX), © estudo da natureza humana permite delimitar as atividades do entendimento humano, com isto seu estudo contribuira ao desenvolvimento das ciéncias ¢, inclusive, da religiéo natural, Analogicamente as demais ciéncias que tomam parcelas da realidade como objetos de estudo, a da natureza humana tem como objeto o conhecimento do entendimento e das paixdes. De tal maneira que os homens: Nao somos t&o $6 seres que raciocinamos, senio também um dos objetos deste raciocinio (Hume, Treatise, Introdugio, XIX). Hume ao ter reduzido ciéncias aparentemente tio afastadas do estudo da

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