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Cuidado Curadoria de Si, Cuidado Curadoria Do Mundo
Cuidado Curadoria de Si, Cuidado Curadoria Do Mundo
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101402021e0111
1
Urdimento Cuidado/curadoria de si, cuidado/curadoria do mundo:
Modos de performar reciprocidade
Esta escrita performativa mobiliza, como posição em arte, uma noção de cura como
cuidado e como movimento, abordando uma curadoria dos afetos que se dá no
reparar o que comparece a cada situação, uma percepção-ação dos afetos a compor
e recompor figuras de subjetividade em relação de coengendramento com o mundo.
Se expõe aqui a relação intrínseca entre criação em arte e possibilidades de
aprendizagem sensível como uma ética-estética-política de vida, uma arte da
existência. Trata-se de uma tática de re-existência que se inventa ao questionar os
modos de operação da lógica reiterativa da dívida/dúvida, e que se instaura na
subversão desse sistema, como ciclo de dádiva: dar-receber-retribuir.
Abstract
1
Atriz, performer, produtora cultural e professora. Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestra em teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Bacharela em artes cênicas pela Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) e graduada em comunicação
institucional pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). juliana.lima.liconti@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3448925960928867 https://orcid.org/0000-0002-6997-9064
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Artista da dança, atriz e performer. Doutora em Teatro pelo PPGT - UDESC. Professora colaboradora no curso
de Licenciatura e Bacharelado em Dança da UNESPAR. Atua nos coletivos Mapas e Hipertextos e ACOCORÉ
(Arte, Coletivos, Conexões e Rede). miduenha@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/5227467362015897 http://orcid.org/0000-0002-2316-0408
Resumen
Este artigo não é bem um artigo, ele é antes um encontro, uma conversa e
um experimento performativo. Estamos experimentando um modo de criação que
lida com o saber como um a-saber (Eugenio, 2019), não sabemos de antemão, por
exemplo, as palavras que vêm a seguir, pois essa escrita se dá em posição-com,
escrevemos como uma composição em tempo real, cada uma de nós continua a
frase ou discussão iniciada pela outra. Um procedimento que não programamos
previamente, ele surgiu e nós acolhemos.
3
Para Fernanda Eugenio (2019) modernidade, pós-modernidade e contemporâneo não são entendidos como
tempos históricos, mas como modos operativos que coexistem em diferentes níveis de intensidade,
portanto, apesar da modernidade ter se enfraquecido, ainda é praticada em diferentes contextos e situações
sociais. Além disso, acrescenta-se a colonialidade ao lado da modernidade porque entende-se, a partir da
análise de Walter Mignolo (2017), que a colonialidade é constitutiva da modernidade, ela que tornou a
modernidade possível, pois possibilitou à ascensão da sociedade europeia ao status de universal, por meio
da dominação, escravização, rebaixamento dos saberes e modos de vida dos povos colonizados.
4
Optamos por manter os termos na inflexão e gênero feminino por um posicionamento político que descreve
nosso lugar de fala como mulheres em conquista de espaço de representatividade, tal escolha tem base no
que Gayatri Chakravorty Spivak (2010, p. 31) traz como discussão sobre a condição da mulher como
comum que sejamos capturadas por esses estados de humor, sem nos darmos
conta de seu caráter efêmero e da nossa capacidade modificá-los, vivenciando-
os “de forma passiva e não criativa” (Quilici, 2015, p. 126), nos desresponsabilizando
de nossa própria experiência. Cápsulas de vitalidade atuam no sentido de
participar ativamente da construção dos meus estados de humor, uma tática de
re-existência para seguir vivendo, ao invés de sobrevivendo (Pelbart, 2007).
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O Projeto é desenvolvido no curso de Bacharelado e Licenciatura em Dança da Universidade Estadual do
Paraná. Tem coordenação de Milene Duenha, monitoria de João Pedro Baraúna e interlocução da Profª. Drª.
Michele Louise Schiocchet, da Profª. Drª. Nara Cálipo e da Mestranda Zélia Caetano, além de outras
participações pontuais de convidadas que colaboram para ampliar a percepção acerca da correlação entre
arte e vida colocando em conversa visões da arte, da antropologia e da psicologia. Algumas imagens das
práticas desenvolvidas ao longo do ano de 2020 podem ser acessadas em: < @microscopicopolitica >.
Acesso em: 14 jan. 2021.
Nos pautamos, nessa prática, pela articulação vivencial dos programas, uma
construção de conhecimento em conjunto e incorporada, porém, também
tentamos desviar de um processo generalizante, que toma a experiência própria
ou singular como dada a todas as outras condições e situações. Trata-se aqui de
uma escrita situada que se fez no corpo a corpo com as proposições e referências.
Tal incursão traz o inesperado, o surpreendente como um processo provocador
dos corpos, em constante mutação. Esse vivido se deu em duas instâncias
simultâneas e coengendradas: as proposições-retribuições performadas,
reveladas integralmente no texto, e o programa de escrita - encontrar-se
diariamente para escrever de modo atravessado, sempre em lugares diferentes da
casa e em posições distintas do corpo - que são modos de fazer já presentes nas
práticas das autoras e que foram aqui atualizados para as especificidades desta
escrita-encontro.
1. Dar-receber
Entre-ter 1
vitalidade que, assim como bell hooks (2013), é algo que perseguimos em nossas
práticas ético-estético-políticas e que se tornou preciso em tempos de pandemia.
Este nosso segundo movimento é nosso encontro divertido e mobilizador dos
afetos, nosso entre-proposições, que nomeamos por “Dar-receber’’, no qual nós
paramos para reparar nas proposições que enviamos uma à outra, explicitando o
que há de comum entre elas”.
Experiência 1a (receber)
Experiência 1b (receber)
2. Receber-retribuir
Proposição/Retribuição 2a
Proposição/ Retribuição 2b
Tentativas Aceleradas
Escolha um momento que você tenha entre 2 horas e meia e três horas
ininterruptas para se relacionar com o link abaixo. Pegue papel e caneta, anote
impressões, sensações, pensamentos, registre também momentos de
desinteresse e tédio.
Reparar-se em fluxo
Entre-ter 2
A escolha por começar pelo vídeo sem áudio foi, primeiro, o acolhimento de
um acidente - meu computador está com problema no microfone; segundo, a
opção por produzir um estranhamento, considerando que em alguns momentos
era visível que eu estava falando. Só no segundo momento da proposição o que
estava sendo dito foi compartilhado em forma de áudio, possibilitando um novo
entendimento da imagem, permitindo que as informações se somassem umas às
outras. Compartilhei, então, recortes de um relato escrito da experiência, a fim de
disponibilizar uma elaboração posterior, e não apenas os registros feitos em tempo
real. Como a proposição 1a convidava à permanência, passei quatro horas me
3. Retribuir-dar
Proposição/ Retribuição 3a
Proposição/ Retribuição 3b
Entre-ter 3
Ver a imagem da folha e, dois dias depois, colher uma folha de boldo,
reconhecê-la da fotografia e, des-cindir que a realização da proposição 2a já
começara. Menstruar nesse mesmo dia durante a caminhada-ressonância do
meio-ambiente em mim. Com vontade de fazer xixi, não quis interromper a
experiência que estava vivendo, afinal era preciso permitir que os fluidos
escapassem, levantei a saia e urinei no chão, na terra, foi quando percebi o rastro
de sangue, entrei em êxtase naquele momento, diante de tantas co-incidências.
Dois dias depois, uma amiga me disse que urinar na terra é um meio de quebrar
demandas espirituais. Ela me falou isso sem que eu tivesse contado a ela o meu
feito. Sincronicidades… Para Jung (1991) são coincidências significativas,
acontecimentos que se relacionam significativamente, porém, não apresentam
aparentemente nenhuma relação causal entre eles, tendo em vista a relatividade
dos fatores tempo e espaço nesse tipo de situação.
memória. Essa dança foi gravada em vídeo e, inicialmente, ela seria a retribuição
junto de uma proposição de continuidade, como recurso a ser acionado em
qualquer situação que conviesse. Porém, o vídeo não foi gravado na íntegra, houve
algum problema de captação da imagem. Anoiteceu, já não era possível repetir.
Diante dessa quebra de expectativas, acolhi o acontecimento e imediatamente fui
buscar outro modo de me relacionar com a proposta. Assim, fiz uma nova
curadoria dos meus afetos em relação ao ocorrido. Mapeei também as
possibilidades emergentes nesse acidente, o que eu tinha como recursos, o tempo
que tinha para fazê-lo, o que me interessava manter da proposta original e o que
eu deixava ir. Nas folhas amassadas e rasgadas das anotações - que passaram
pela relação com um corpo em movimento intenso, que liberava fluidos e energia
-, grifei as palavras que estiveram mais presentes em mim durante o mover e
também na relação entre meus afetos e os expressos por Juliana. Criei trinta
propostas de acionamentos relativos a essas palavras com um verbo de ação
correspondente (alguns inventados) e fui descobrir como transformar movimentos
em cartas, como em jogo de cartas com as quais se tira a sorte. Nesse caso, não
seria a sorte ou leitura do futuro, mas a provocação de se colocar em movimento
retesamentos do corpo que, talvez, nem saibamos de sua intensidade. Essa
decisão demandou um novo aprendizado que operou des-cisão em mim, pois foi
a primeira vez que tomei coragem para lidar com um programa de edição de
imagem sendo totalmente leiga no assunto. O resultado foi um trabalho gráfico
precário, mas operado na justeza das possibilidades que eu tinha. Além desse
desafio, outro já me tomava atenção: a questão da exposição do corpo como corpo
que dança. Já há alguns anos tenho desviado de proposições nas quais o corpo
protagoniza, justamente por questionar uma tendência mais autocentrada em
processos de criação em dança, assim, minha posição foi a de ser presença na
feitura desse objeto para encarar esse desafio de ser um corpo mais coletivo e
acolher também minhas singularidades expondo minhas repetições de movimento
ao cansaço. As imagens não são exemplos de como operar, como mover, ou que
posições realizar diante das proposições de acionamento, são a partilha das
intensidades vivenciadas por mim nessa dança e plasmadas em fotografia, como
ato de dar-se a outro corpo.
Movimento retroativo
Referências
ALICE, Tania; BAFFI, Diego. Traga seus problemas para a arte! Performances de
arte relacional como cura. In: ALICE, TANIA. Performance como Revolução dos
Afetos. São Paulo: Annablume, 2016. p.177-194.
DUENHA, Milene Lopes. O que pode o corpo, ninguém sabe. 2019. Tese (Doutorado
em Teatro) - Centro de Artes - Universidade do Estado de Santa Catarina,
Florianópolis, 2019.
FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: Ditos &
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clínica. Porto Alegre: UFRGS, 2004.
PELBART, P. Biopolítica. Sala Preta, São Paulo, v.7, p. 57-65, nov. 2007. Disponível
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SIMONDON, Gilbert. A gênese do indivíduo. In: PELBART, Peter Pal et al. (Orgs.)
Cadernos de Subjetividade: o reencantamento do concreto. São Paulo: Hucitec,
2003. p. 97-117.