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Néstor Garcia Canclin! uaa hi aaee 18 Entrary Sai de la Moderidad CULTURAS HIBRIDAS ESTRATEGIAS PARA ENTRAR £ SAIR DA MODERNIDADE Dados nernaionis de Ca (Ciara asin eosnminOi0 CULTURAL OS ISBN 978-85.814.0982.8 Lar © wciedade ~ Ams ea Latina 2, Cultura ~ Amé = Save not "EDERAL DO PANPA 26.5 : ners ci cunaoo COM ELE Mngt av08 voce OUTROS Feretaag use tse Latina 8: Péwmodernidade -Amética Latina 1 wina I-Titwo, IL Série. 970507 Dp306.008 indice para catdogo sisteméico: Tradusto ana Regina 1. América Lat ina: Culturae Hibrida Sociologia 806.098 Heloise Pezza Cintra0 ado dens inese Are Printed i in Bresil 2011 Foi feito depssito legal x CCULTURAS HlBRIDAS Rosales ¢ Enrique Mercado me ajudaram a nao agravar a obscuridade de certos problemas com a de minha escrita Maria Eugenia Modena € a acompanhante mas préxima na tare fa de juntar, na vida didria e no trabalho intelectual, 0 que significa pensar as experiéncias dos enlis ¢ as novs raizes,€ 08 crszamentos interculturais que estio na base dessas reflexdes. Se o livro é dedicado a Teresa e Julian é por essa capacidade dos filhos de mostrar-nos que o culto ¢ © popular podem sintetizarse na cultura massiva, nos prazeres do consumo que eles, sem culpa nem pre- vengdes, inserem no cotidiano como atividades plenamente justificadas, Nada melhor para reconhecé-lo do que evocar aquele Natal em que Instituto Nacional do Consumidor repetia obsessivamente: “Presenteie afeto, nfo o compre", em seus anéincios anticonsumistas no rédio ¢ na tclevisio; Teresa empregou a palavra “afeto” pela primeira vez em sua linguagem vacilante dos quatro anos. “Vocé sabe 0 que quer dizer?” “Sei = respondeu rapido ~, que voce nio tem dinheiro.” INTRODUCAO A EDICAO DE 2001 ‘As Curruras HipriDas EM Tempos DE GLOBALIZACAO ina ou um campo do conhecimento ‘onceitos irrompem ‘Como saber quando uma dis ‘mudam? Uma forma de responder é: quando alguns c com forca, deslocam outros ou exigem reformuléos. Fo isso 0 que acon- teceu com 0 “dicionario” dos estudos culturais. Aqui me proponho a dis se pode afirmar que hibridagao & um desses termos ccutir em que sentido detonantes. Vou ocuparme de como os estudos sobre hibridagio modificaram 9 modo de falar sobre identidade, cultura, diferenga, desigualdade, multiculturalismo e sobre pares organizadores dos conflitos nas ciéncias sociais: tradigo-modernidade, norte-sul, local global. Por que a questio do hibrido adquiriu ultimamente tanto peso se é uma caracterfstica an- tiga do desenvolvimento histérico? Poderseia dizer que existem antecc- erciimbios entre sociedades; de fato, dentes desde que comecaram os in Plinio, o Velho, mencionou a palavra ao referirse aos migrantes que che- garam a Roma em sua época. Historidores ¢ antrop6logos mostraram papel decisivo da mestigagem no Mediterraneo nos tempos da Gréci cis sica (Laplantine & Nouss), enquanto outros estudiosos recorrem espech ‘ueTURAS HiBRIDAS ficamente ao termo hibridacao para identificar o que sucedeu desde que a Europa se expandiu em dire¢io & América (Bernand; Gruzinski) Mikhail Bakhtin usowo para caracterizar a coexisténcia, desde o princi pio da modernidade, de linguagens cultas e populares. Entretanto, 0 momento em que mais se estende a anélise da hi Mas também se discute o valor desse conceito, Ele é usado para descrever rocessos interétnicos ¢ de descolonizacéo (Bhabha, Young); globalizado- res (Hannerz); viagens ¢ cruzamentos de fronteiras (Clifford); fusbes ar- ‘dagao a diversos processos culturais é na década final do século XX. tisticas,lterdrias ¢ comunicacionais (De la Campa; Hall; Martin Barbero; Papastergiadis; Webner). Nao faltam estudos sobre como se hibridam gastronomias de diferentes origens na comida de um pais (Archetti), nem da associacio de instituigdes piblicas e corporagées privadas, da museografia ocidental e das tiadi¢Ses periféricas nas exposi¢ées univer- sais (Harvey) . Esta nova introdugdo tem o propésito de valorizar esses usos disseminados e as principais posigdes apresentadas. Na medida em que, segundo escreveu Jean Franco, “Culturas Hibridas é um livro em busca de ‘um método” para “nao nos espartilharmos em falsas oposigdes, tais como alto ¢ popular, urbano ou rural, moderno ou tradicional” (Franco, 1992), esta expansio dos estudos exige a entrada nas novas avenidas do debate. Outrossim, tratarei de algumas das objecdes dirigidas por razbes epistemologicas ¢ politicas ao conceito de hibridagio. Quanto ao estatuto cientifico dessa nogio, distingui-l-ei de seu uso em biologia com o fim de considerar especificamente as contribuigdes ¢ as dificuldades que ela apresenta nas ciéncias sociais. No tocante a sua contribuigio ao pensa- ‘mento politico, ampliarei a anélise jé realizada no livro argumentando por que a hibridacdo ndo € sindnimo de fusio sem contradigdes, mas, sim, que pode ajudar a dar conta de formas particulares de conflito ge- radas na interculturalidade recente em meio & decadéncia de projetos na- cionais de modernizagio na América Latina. Temos que responder & pergunta de se o acesso 4 maior variedade de bens, facilitado vimentos globalizadores, democratiza a capacidade de combinélos ¢ de desenvolver uma multiculturalidade criativa innpopucho A EDIGAO DE 2008 xx AS IDENTIDADES REPENSADAS A PARTIR.DA HIBRIDACAO Ha que comesar discutindo se hiro é uma boa ou uma mé pale asta que seja muito usada para que a consideremos respeitivel wets ce que Ihe sejam atribuidos a rego favorec Pelo contrario, seu profuso emprego jam aribuidos ‘ discordantes, Ao transferila da biologia as anilise ere mas perdeu univocidade. 1 campos de aplicacao, socioculturais, ganhou campos roa Dai que alguns prefiram continuar falar de sineretismo em questfes ri i ai fisica. Tigiosa, de mesticagem em histria¢ antropologia, de fusio em mis Qual éa vantagem, paraa pesquisa clentfca, de ecorrer a um fermo ca regado de equivocidade? Encaremos, ent&o, : insuficientemente tratado em ue esse aspecto foi insuficientem a = tras Os debates que houve sobre estas paginas, ¢ sobre os trabi oe de outros autores, citados neste novo texto, permitem-me agora lab oestatuto do conceito de hibrida¢io nas ciém- a discussio epistemol6gica. Quero reconhecer meu livro Culturas Hé- rar melhor localizacio € cias sociais. a Parto de uma primeira definicio: entendo por hibridacao proces socioculturais nos quais estruturas ou prdticas discretas, que existiam defor ‘ma separada, se combinam para gerar novas estruturas, oles ¢ lan Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridacdes, razio pela qual nao podem ser consideradas fontes ie ‘Um exemplo: hoje se debate se 0 spanglist, nascido nas comuni ‘ latinas dos Estados Unidos e propagado pela internal a todo o mundo deve ser aceito, ensinado em céitedras universitérias ~ co ¢ objeto de dicionétios especial ‘como ocorre nt st College de Massachusetts ~ : y de (Sevag). Cons se 0 espanhol ¢ © inglés fossem — a ‘endividados com o latim, o drabe e as linguas pré-colombianas, Se ni nhecéssemos a longs historia impura do castelhano ¢ extinpasseme 1m alcachofas, alealdes, almohade ‘esse trnsito do discreto 20 h ula “ciclos de hibridacdo” pr reco! os termos de raiz arabe, ficarfamos se nem algarabia, Uma forma de descrever brido, e a novas formas discretas, € a form posta por Brian Stross, segundo a qual, na histra, passamos de form » (CULTURA HleRIDAS ‘mais heterogéneas a outras mais homogéneas, e depois a outras relati Yamente mais heterogéneas, sem que nenhuma seja *pura’ ou plena- ‘mente homogénea. A multiplicacéo espetacular de hibridacdes durante o século XX nao facilita precisar de qué se trata. £ possivel colocar sob um s6 termo fatos tio variados quanto os casamentos mesticos, a combinacio de an 's africanos, figuras indigenas santos catélicos na umbanda bra- sileira, as collages publicitarias de monumentos hist6ricos com bebidas ¢ catros esportivos? Algo freqiiente como a fusio de melodias étnicas com imiisca clssica © contempordnea ou com o jazz a salsa pode ocorrer em fendmenos tio diversos quanto a chicka, mistura de ritmos andinos ¢ aribenhos; a reinterpretacio jazistica de Mozart, realizada pelo grupo atro-cubano Irakere; as reelaboracdes de melodias inglesas e hindus fetuadas pelos Beatles, Peter Gabriele outros misicos. Os artistas que exacerbam esses cruzamentos ¢ os convertem em eixos conceituais de seus trabalhos nio 0 fazem em condigdes nem com objetivos semelhan- ‘es Antoni Muntadas, por exemplo, inttulou Hirdos conjunto de pro- ‘{et0s exibidos em 1988 no Centro de Arte Rainha Sofia, de Madri. Nessa ocasio, insinuou, mediante fotos, os deslocamentos ocorridos entre o an- {igo uso desse edificio como hospital e o destino atistico que depois Ihe {ei dado, Em outra ocasio, criou um website, 0 hyridspaes, no qual ex- plorava montagens em imagens arquiteténicas e mididticas, Grande par. {ede sua producio resulta do cruzamento multimidia e multicultural: a prensa € a publicidade de rua inseridas na televisio, ou 0s tiltimos dez inutos da programacio, da Argentina, do Brasil e dos Estados Unidos ‘sos simultaneamente, seguidos de um plano-seqiténcia que contrasta 8 diversidade da rua nesses pafses com a homogeneidade televisiva Qual é a utlidade de unificar sob um s6 termo experiéncias ¢ dis: Positvos tio heterogéneos? Convém designé-los com a palavra hibrida, aja origem biol6gica levow alguns autores a advertir sobre orisco de tras, Passar & sociedade e & cultura a esterilidade que costuma ser associada a se termo? Os que fazem essa critica recordam o exemplo infecundo da ‘mula (Cornejo Polar, 1997). Mesmo quando se encontra tal objego em ITRODUGKO A EDICKO DE 2001 oa textos recentes, tratase do prolongamento de uma crenga do século XIX, ‘quando a hibridacio era considerada com desconfianca ao supor que prejudicariao desenvolvimento soil. Desde que, em 1870, Mendel mos trou oenriquecimento produzido por cruramentos genéticos em botani ca, abundam as hibridacdes fértels para aproveitarcaractersticas de c&- Iulas de plantas diferentes e melhorar seu crescimento, resistencia, qua- lidade, assim como o valor econ6mico e nutrito de alimentos derivados dels (Olby; Callender), hibridacio de café flores, cereais ¢ outros pro- dutos aumenta a variedade genética das espécies ¢ melhora sua sobrevi- véncia ante mudangas de habitat ou climéticas. a De todo modo, nao ha por qué ficar cativo da dinamica biol6gi- cada qual toma um conceito. As ciéncias sociais importaram muitas no- s8es de outras disciplinas, que nao foram invalidadas por suas cond cies de uso na cgncia de origem. Conccitos biol6gicos como o de re produgio foram reclaborados para falar de reproduo social, econd- mica ¢ cultural: o debate efetuado desde Marx até nossos belece em relacao com a consisténcia te6rica ¢ o poder explicativo dese as se esta tra ciéncia. Do mesmo modo, as polémicas sobre o emprego metaféri- co de conceitos econdmicos para examinar processos simbélicos, como 6 faz Pierre Bourdieu ao referir-se a0 capital cultural ¢ aos mercados lingiifsticos, nao tém que centrar-se na migracio desses termos de uma Aisciplina para outra, mas, sim, nas operagdes epistemol6gicas que tuem sua fecundidade explicativa e seus limites no interior dos discur- s0s culturais: permitem ou nao entender melhor algo que permanecia inexplicado? oe Aconstrugio ingistica (Bakhtin; Bhabha) ea social (Friedman; Hall; Papastergiadis) do conceito de hibridacdo serviut para sair dos dis- cursos biol 38 ¢ essencialistas da identidade, da autenticidade ¢ da Preza cultural. Contrbuem, de outro lado, para idenificare explcar 'milipla aflangasfecundas: por exemplo,o imaginsrio pré-colombiano Coin 0 novo-hispano dos colonizadores depois com 0 das indistrias cul turais (Bernand; Gruzinski), a estética popular com a dos turistas (De i CULTURAS HiBRiDAS Grandis), as culturas étnicas nacionais com as das mei6poles (Bhabha) €com as instituigdes globais (Harvey). Os poucos fragmentos escritos de tumna histéria das hibridagées puscram em evidéncia a produtividade e 0 Poder inovador de muitas misturas interculturais, Como a hibridacao funde estruturas ou priticas sociais discretas Para gerar novas estruturas e novas pritica? As vezes, isso ocorre de todo nio planejado ou € resultado imprevisto de processos migrat6rios, turisticos de intercmbio econémico ou comunicacional. Mas freqiien- temente a hibridagao sunge da criatividade individual e coletiva. Nao s6 has artes, mas também na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnol6gico. Busca-se reconverter um patriménio (uma fibrica, uma ¢apacitagao profssional, um conjunto de saberes e técnicas) para reinseri- oem novas condigdes de produgio e mercado. Esclarecamos o significado cultural de reconversio: este termo é uti- lizado para explicar as estratégias mediante as quais um pintor se converte ‘em designer, ou as burguesias nacionais adquirem os idiomas e outras come eténcias necessérias para reinvestir seus capitais econdmicos ¢ simbéli- 0s em circuitos transnacionais (Bourdieu). Também sio encontradas cestratégias de reconversio econémica e simbélica em setores populares 0s migrantes camponeses que adaptam seus saberes para trabalhar e con. sumir na cidade ou que vinculam seu artesanato a usos modernos para nteressar compradores urbanos; 0s operdrios que reformulam sua cultura Ge trabalho ante as novas teenologias produtivas; 0s movimentos indige- ‘nas que reinserem suas demandas na politica transnacional ou em um discurso ecolégico e aprendem a comunicéclas por radio, televisio ¢ internet, Por essas razées, sustento que o objeto de estudo nao & a hibridez, mas, sim, os processos de hibridacio. A andlise empirica desses iculados com estratégias de reconversio, demonstra que a interessa tanto aos setores hegeménicos como aos populares ue querem apropriarse dos beneficios da modernidade. Esses processos incessantes, variados, de hibrida¢io levam a relativizar a nocio de identidade. Questionam, inclusive, a tendéncia ‘antropolégica e a cle um setor dos estudos culturais ao considerar as id insmoaugho AEDigko bE 2001 vot tidades como objeto de pesquisa. A énfase a hibrdaro nfo enclasura apenas a pretensio de estabelecer identidades “puras” ou “auténticas ‘Além disso, pe em evidénciao sco de delimitaridentidades locais autocontidas ou que tentem afirmarse como radicalmente opostas A so- ciedade nacional ow a globalizagio. Quando se define uma identidade mediante um processo de abstragao de tracos (ingua, tradigdes, condu- tas estereoipadss), reqientemente se tend a desvinelaresss priticas da historia de misturas em que se formaram. Como conseqiiéncia, é absolutizado um modo de entender a identidade e sio rejeitadas manei- ras heterodoxas de falar a lingua, fazer misica ou interpretar as t Acaba-se, em suma, obturando a possibilidade de modificar a cultura ¢ politica i Os estudos sobre narrativas identitarias com enfoques teéricos que Tevam em conta os processos de hibridagio (Hannerz; Hall) mostram que no & possve! falar das identidades como se se tratasse apenas de um con- unto de tacos ixos, nem airmitas como aessncia de wma etnia ou de ‘uma nagio. A hist6ria dos movimentos identitarios revela uma série de operagdes de selecio de elementos de diferentes épocas articulados pe- Jos grupos hegemdnicos em um relato que thes d coeréncia, dram: dade ¢ elogiiéncia Pelo que foi dito acima, alguns de nés propomos deslocar o objeto de estudo da identidade para a heterogencidade ¢ a hibridagao interculturais (Goldberg). Jé nao basta dizer que nio ha identidades caracterizadas por esséncias autocontidas ¢ aistéricas, nem entendé-las como as formas em que as comunidades se imaginam ¢ constroem relatos sobre sua origem desenvolvimento, Em um mundo tio fluidamente interconectado, as se- dimentagées identitarias organizadas em conjuntos hist6ricos mais ou menos estiveis (etnias, nagdes, classes) se reestruturam em meio a conjun- tosinterétnicos, transclassistas ¢ transtiacionais, As diversas formas em que ‘os membros de cada grupo se apropriam dos repertérios heterogéneos de bens ¢ mensagens dispontveis nos circuitos transnacionais geram novos modos de segmentac&o: dentro de uma sociedade nacional, por exemplo, ‘© México, hd milhdes de indigenas mesticados com os colonizadores bran- TTT av CULTURAS HlBRIOAS cos, mas alguns se “chicanizaram” ao viajar aos Estados Unidos; outros remodelam seus habitos no tocante as ofertas comunicacionais de massa; outros adquiriram alto nivel educacional ¢ enriqueceram seu patriménio ttadicional com saberes ¢ recursos estéticos de varios paises; outros se corporam a empresas coreanas ou japonesas ¢ fundem seu capital étnico ‘com os conhecimentos ¢ as disciplinas desses sistemas produtivos. Estudar processos culturais, por iso, mais do que levar-nos a afirmar identidades auto-suficientes, serve para conhecer formas de situarse em meio & heterogeneidade ¢ entender como se produzem as hibridacdes. DA DESCRIGAO A EXPLICACAO Ao reduzira hierarquia dos conceitos de identidade e heterogene- dade em beneficio da hibridacio, tiramos o suporte das politicas de ho- mogeneizacio fundamentalista ou de simples reconhecimento (segrega- do) da ‘pluralidade de culturas”, Cabe perguntar, entio, para onde con- duz a hibridagao e se serve para reformular a pesquisa intercultural e 0 projeto de politicas culturais ransnacionais ¢ transétnicas,talver globais, Uma dificuldade para cumprir esses propésitos & que os estudos sobre hibridagao costumam limitarse a desorever misturas interculturais, Mal comecamos a avancar, como parte da reconstrugao sociocultural do conceito, para darlhe poder explicativa: estudar os processos de hibridacao situando-os em relagdes estruturais de causalidade. E darlhe capacidade hermenéutica: tornéclo ttil para interpretar as relagdes de sen- tido que se reconstroem nas misturas, Se queremos ir além de liberar a andlise cultural de seus tropismos undamentalistas identitérios, deveremos situar a hibridagio em outra rede de conceitos: por exempl ,contradi¢ao, mesticagem, sineretismo, transculturacio e crioulizagio. Além disso, é necessatio véla em meio as * Gtizmsareconarse clizan 0 ess 0 ido dos Eados Unidos perten ‘orig mexican ali exsete (N. da}, ixtRoDucho A zDi¢ko DE 2001 ow ambivaléncias da industrializagao e da massificacio globalizada dos pro- .ces508 simbélicos ¢ dos conflitos de poder que suscitam. Outra das objegdes formuladas ao conceito de hibridacio é que pode sugerr cil integragao e fusio de culturas, sem dar suficiente peso 88 con fy tradigdes e ao que nio se deixa hibridar. A afortunada observagio de Pnina Webner de que 0 cosmopolitismo, a0 nos hibridar, nos forma como | * gourmets multiculturais” corre esse risco. Antonio Cornejo Polar assina- Jou em varios autores de que nos ocupamos, acerca desse tema, a “impres- sionante lista de produtos hibridos fecundos” ¢ “o tom celebrativo” com que falamos da hibridacio como harmonizagio de mundos “fragmenta- dos ¢ beligerantes” (Cornejo Polar, 1997). Também John Kraniauskas, considerou que, como o conceito de reconversio indica a utilizagio pro- a de recursos anteriores em novos contextos, a lista de exemplos analisados neste livro configura uma visio “otimista” das hibridagées. E factivel que a polémica contra o purismo ¢ 0 tradicionalismo fol dloricos me tenha levado a preferir os casos prosperos ¢ inovadores de hibridagZo. Entretanto, hoje se tornou mais evidente o sentido contradi- trio das misturas interculturais, Justamente ao passar do carter descri- tivo da nogio de hibridagao ~ como fusio de estruturas discretas = a elaboré-la como recurso de explicagio, advertimos em que casos as mis turas podem ser produtivas e quando geram conflitos devido aos quais permanece incompativel ou inconciliével nas praticas reunidas. O proprio Cornejo Polar contribuiu para esse avanco quando diz que, assim como se “entra e sai da modernidade”, também se poderiam entender de modo hist6rico as variagdes ¢ os conflitos da metéfora de que nos ocupamos se falssemos de “entrar e sair da hibridez” (Cornejo Polar, 1997). Agradeco a esse autor a sugestio de aplicar & hibridacao esse m mento de transito e provisionalidade que coloquei no livro Culturas Hi bridas, desde o subtitulo, como necessirio para entender as estratégias de ‘entrada e safda da modernidade. Se falamos da hibridagio como um pro- cesso a0 qual é possivel ter acesso ¢ que se pode abandonar, do qual po- demos ser excluidos ou ao qual nos podem subordinat, entenderemos as posigdes dos sujeitos a respeito das relagdes interculturais. Assim se tra- om ‘cUITURAS HlaRIDAS balhariam os processos de hibridacio em retagdo a desigualdade entre a culturas, com as possibilidades de apropriarse de varias simultanea- mente em classes € grupos diferentes e, portanto, a respeito das assimetrias do poder e do prestigio. Cornejo Polar somente insinuou esse caminho de andlise no ensaio péstumo citado, mas encontto um com. Plemento para expandir tal intuicio em um artigo que ele escreveu pou. co antes: "Una Heterogeneidad no Dialéctica: Sujeto y Discurso Migrantes en el Perit Moderno”. Nesse texto, diante da tendéncia a celebrar as migracées, recordou queo migrante nem sempre “esti especialmente disposto a sintetizar as diferentes estincias de seu itinerério, embora ~ como é claro Ihe seja im Possivel manté-las encapsuladas e sem comunicagao entre i”, Com exem» Plos de José Maria Arguedias,Juan Biondi e Eduardo Zapata, demonstrou ‘ue a oscilacdo entre a identidade de origem e a de destino as vezes leva © migrante a falar “com espontan lade a partir de varios lugares", sem Inisturélos, como provinciano e como limenho, como falante de qutchua ¢ de espanhol. Ocasionalmente, dizia, passam metonimica ou metafor. Camente elementos de um discurso a outro, Em outros casos, o sujeito aceita descentrarse de sua hist6ria e desempenta virios papeis i patie ¢ contraditérios de um modo ndo dialético": leo cé que sto também 0 ontem eo hoje, reforcam sua atitude enunciativa e podem tra ‘mar natrativas bifrontes ¢ ~ até se se quer, exagerando as coisas ~, esquizofrénicas” (Cornejo Polar, 1996: 841), Nas condigdes de globalizacio atuais, encontro cada vez mais razdes \com- Para empregar os conceitos de mesticagem e hibridacio. Mas, ao se in- ‘ensificarem as interculturalidades igratéria, econémicae mididtica, vé- Se, como explicam Francois Laplantine e Alexis Nouss, que nio ha somen- \e “a fasio, a coesio, a osmose e, sim, a confrontacdo eo didlogo", Nes fe tempo, quando “as decepgdes das promessas do universalismo abstra- ‘0 conduairam as crispacdes particularistas”(Laplantine & Nouss: 14), 0 Pensamento e as préticas mesticas sio recursos para reconhecer o difee “Ente ¢ elaborar as tensdes das diferengas. A hibridacio, como processo de intersegio ¢ transaeses,€0 que torna possvel que a muliculuraidade nrRopUGKa 2 E0IGKo DE 2001 av te 0 que tem de segregagio ¢ se converta em inlerulturalidade. As po- Ions de hibridago servriam para trabalhar democraticamente com as éria na uerras entre culturas, ivergéncias, para que a historia néo se reduza a guerras Soe mains a ston. Podemos escother viver em estado de como imagina Samuel Hu ru ‘ou em estado de hibridacao. . . - itil advertir sobre as versdes excessivamente amaveis da Stil advertir mestcagem. Por ss, convém insistr em que 0 objeto de — . hibrider.c, sim, o8 process de hibridacao, Asim € possivel reconhec 7 ue contém de desgarre ¢ o que ndo chega a fundirse. Uma teoria ni ingenua da hibridagio € inseparével de uma consciéncia critica . seus ines, do que nio se deixa, ou nfo quer ou nio pode ser hibridado. ‘A HIBRIDAGAO E SUA FAMILIA DE CONCEITOS Acesta altura, ha que dizer que 0 conceito de hibridacao € «il em ; i contatos interculturais smas pesquisas para abranger conjuntamente © geo pe dees aide ar aa ae ne ém outras misturas ineretismo de crencas € também out nominadas mestcagem, 0 sincrai i modernas entre o artesanal ¢ 0 industrial, o culto ¢ 0 popular, o escrito visual nas mensagens mididticas, Vejamos por que algumas dessas inter-relagdes no podem ser designadas por nomes clissicos, como mes- ticas ou sincréticas i A mistura de colonizadores espanhdis e portugueses, dept . ses € franceses, com indigenas americanos, a qual se acrescentaram escra- vos trasladados da Africa, tornou a mestigagem um processo ee ms sociedad do chamado Novo Mundo, Naatualidade, menos de : Populacio da América Latina €indigena. Sio minorias também as come nidades de origem européia que no se msturaram com osnativos. Masa importante historia de fusdes entre uns € outros requer utilizar a nogao de imestigagem tanto no sentido biol6gico ~ producio de fendtiposa par . de ruzam a istura de habitos, crengas ¢ for- mentos genéticos- como cultural: mistura : a p = to curopeus com os originarios das sociedades america: masde pensamento cur mT 20 ‘CULTURAS HlRIDAS nas, Ndo obstante, esse conceito & insuficiente para nomear ¢ explicar as formas mais modernas de interculturalidade. Durante muito tempo, foram estudados mais os aspectos fis nomi 0s € cromaticos da mesticagem. A cor da pele ¢ os tracos fisicos conti- znuam a pesar na construcao ordindria da subordinacéo para discriminar indios, negros ou mulheres, Entretanto, nas ciéncias socials ¢ no pensa- mento politico democratico, a mestigagem situase atualmente na dimen- s#o cultural das combinacées identirias. Na antropologia, nos estudos culturais ¢ nas politicas, a questio é abordada como o projeto de formas de convivéncia multicultural moderna, embora estejam condicionadas pela mesticagem biol6gica. Algo semelhante ocorre com a passagem das misturas religiosas a fusGes mais complexas de crencas. Sem dtvida, € apropriado falar de snertismo para referirse & combinacio de praticas religiosas tradicionais, Alntensificagio das migragdes, assim como a difusio transcontinental de Crengas e rituais no século passado acentuaram essas hibridagdes e, as ve- 7s, aumentaram a tolerdncia com relagio a elas, a ponto de que em pai ses como Brasil, Cubs, Haiti Estados Unidos tomouwse freqieente a dupla ou tipla pertenca religiosa; por exemplo, ser cat6lico e participar também de um culto afro-americano ou de uma ceriménia new age Se considerar- ‘mos o sincretismo, em sentido mais amplo, como a adesio simultanea a sistemas de creneas, ndo s6 religiosas, o fendmeno se expande no- ‘oriamente, sobretudo entre as multidées que recorrem, para aliviar certas enfermidades, a remédios indfgenas ou orientais e, para outras, 4 medick. na alopatica, ou a rituais cat6licos ou pentecostais. O uso sincrético de tais Tecursos para a satide costuma ir junto com fuses musicais e de formas imulticulturais de organizacio social, como ocorre na santera’ cubana, no ‘edu haitiano e no candomblé brasileiro (Rowe & Schelling, 1991) A palavra crioulizagio também serviu para referinse as misturas inerculturas, Em sentido estrto, designa a lingua ea cultura criadas por variacBesa partir da lingua basica e de outros idiomas no contexto do tri- oragio de wdades surgidas do canasereligio cataea (N. da}, IxtRoDUGKO A EDIGKO DE 2001 od fico de escravos. Aplica-se as misturas que o francés teve na América e no Caribe (Louisiane, Haiti, Guadalupe, Martinica) e no oceano fndico (Reunido, as ilhas Mauricio), ou 0 portugués na Africa (Guiné, Cabo Ver- de), no Caribe (Curacao) e na Asia (india, Sri Lanka). Dado que apre- senta tensdes paradigmaticas entre oralidade ¢ escritura, entre setores lade, UIf Hannerz suge- cultose populares, em um continuum de dive re estender set uso a0 Zmbito transnacional para denominar “processos de confluéncia cultural” caracterizados ‘pela desigualdade de poder, pres- tigio ¢ recursos materiais” (Hannerz, 1997). Sua énfase em que os fluxos crescentes entre centro ¢ periferia devem ser examinados, junto com as assimetrias entre os mercados, os Estados ¢ os niveis educacionais, ajuda a evitar 0 risco de ver a mesticagem como simples homogeneizagio ¢ re- conciliacao intercultural. Estes termos ~ mesticagem, sincretismo, crioulizagio ~ continuam a ser utilizadlos em boa parte da bibliografia antropoldgica ¢ etno-histé- rica para especificar formas particulares de hibridacio mais ou menos classicas. Mas, como designar as fusdes entre culturas de bairro e midiaticas, entre estilos de consumo de geragdes diferentes, entre misi= cas locais ¢ transnacionais, que ocorrem nas fronteiras e nas grandes ci- cio aparece mais dtictil para jiosos, mas dades (no somente ali)? A palavra nomear nao s6 as combinagdes de elementos étnicos ou rel também a de produtos das tecnologias avangadas € processos sociais modernos ou pos:modernos. Destaco as fionteiras entre paises ¢ as grandes cidades como contex- tos que condicionam os formatos, os estilos ¢ as contradigdes especificos da hibridacio. As fronteiras rigidas estabelecidas pelos Estados modernos se tornaram porosas. Poucas culturas podem ser agora descritas como unidades estiveis, com limites precisos baseados na ocupacio de um ter- ritério delimitado, Mas essa multiplicagio de oportunidades para hibridarse nao implica indeterminagio, nem liberdade irrestrita. A hibridacdo ocorre em condigdes hist6ricas e sociais especificas, em meio a sistemas de produgio € consumo que as vezes operam como coagdes, segundo se estima na vida de muitos migrantes. Outra das entidades so- TTT

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