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BRINCAR E
CRIANÇA
Texto publicado originalmente em CARVALHO, começaram, aos poucos, a mostrar um
Alysson; SALLES, Fátima; GUIMARÃES, Fátima; brilho diferente e, nesse embalo, pude
DEBORTOLI, José Alfredo. (Org.). Brincares. vê-lo abrindo o rosto, sorrindo e acei-
2.ed. Belo Horizonte: UFMG, 2005. v. 1, p. 17-27. tando o convite para a brincadeira. En-
Para a Presença Pedagógica, ele foi atualizado trara no jogo, ora se escondendo no
e acrescido de alguns conceitos. Neste traba- colo da mãe, ora reaparecendo, cha-
lho, os termos brincar e jogo têm o mesmo sig- mando o cavalinho e olhando para
nificado, assim como brinquedo e brincadeira. mim. Aos poucos, dos tímidos sorri-
sos, passou a deliciosas gargalhadas.
Na esfera do imaginário, naquele pe-
NO ESPAÇO DO FAZ DE CONTA queno universo de relação, dois seres
se encontraram por intermédio de um
brinquedo. Por uns 15 minutos ficamos
azia calor. O ônibus chacoalhava mergulhados nesse diálogo simbólico.
e barulhava. Uns amigos e eu vol-
távamos de um passeio no par- O que possibilitou esse encontro de
que de Xochimilco, na cidade do um adulto brasileiro e uma criança
México. Nossas mãos estavam abar- mexicana? Não houve falas. Não houve
rotadas de brinquedos que compra- palavras. Houve uma cena de movi-
mos nas pequenas lojas de artesanato. mentos e gestos sonoros, que expli-
Éramos curiosos e pesquisadores do citaram uma relação. Eram sinais de
brinquedo. Comigo também estava um que alguma realidade ou alguma in-
cavalinho de pau. tencionalidade estava sendo instalada
naquele local. Algo em comum nos
No ônibus, à minha frente, do lado di- permitiu uma comunicação, uma de-
reito, uma criança, miúda e morena, no claração. Havia um movimento em que
colo da mãe, espiava-me fortuitamente os sons e os gestos traziam um uni-
com um olhar sério. Olhei-a, pisquei verso de possibilidades, de leituras, de
os olhos, fiz ligeiras e tênues caretas. escolhas que foram compartilhadas,
Ela continuava do mesmo jeito. Lem- anunciadas e interpretadas pelos inter-
brei-me, então, do cavalinho em mi- locutores ou brincantes. Éramos dois
nhas mãos. Ao som de toc toc, toc toc, desconhecidos que encontraram uma
toc toc..., aproximava e afastava o ca- forma de se comunicar e de estabele-
valinho da criança. Às vezes o escon- cer um vínculo. Brincar vincula e cria
dia atrás do banco. Os olhos do menino laços, mesmo que temporários.
“
Brincar vincula e cria
Eram um adulto e uma criança. Nem
laços, mesmo que
”
ela e nem eu mudamos nossas ida-
des, mas nos encontramos em um
tempo capaz de absorver qualquer tipo temporários
de preconceito dessa natureza. Havia
uma cumplicidade tal no entorno de
nós que surgiu uma atmosfera, um
lugar em que foi permitida, à imagi-
nação, uma forma de se manifestar.
Aconteceu uma relação de ludicidade.
Duas escolhas em torno de uma ação
imaginativa (ou fictícia), mas de ver-
dade. Um acordo ficcional. A imagina-
ção não é mentira, ela é de mentirinha,
de faz de conta, de como se, no dizer
das crianças. Nesse espaço, tudo vira
de ponta-cabeça. É como se, com uma
varinha de condão, lançássemos um
novo tempo/lugar no lugar onde esta-
mos. A brincadeira não é a realidade,
IvanNikulin/iStock.com
O BRINCAR COMO
ACONTECIMENTO
“
dos jogadores (pega-pega, dama, quei-
mada, amarelinha etc.). Alea são jogos
(...) 'a sociedade aleatórios, de sorte. Estão presentes no
jogo de dados, de baralho, de loteria
exprime sua etc., e não dependem somente dos jo-
gadores, pois há um contexto externo
interpretação da que também conduz o jogo. A catego-
ria Mimicry é a imaginação ou ficção,
vida e do mundo' por a fantasia, a mímica, o disfarce. Nessa
categoria estão as brincadeiras do faz
intermédio do jogo, e de conta e todas aquelas que remetem
a 'cultura surge sob a a uma imitação. E, por fim, a categoria
”
Ilinx é constituída por jogos provoca-
forma de jogo' dores de vertigem, isto é, que buscam a
instabilidade da percepção, a tonteira.
Vemos isso acontecer nos brinquedos
de rodar, balançar, escorregar, e na-
queles em que há uma mudança em
p. 53). Nesses casos, ele propõe uma dis- nossa percepção.
cussão bastante interessante ao defender
a ideia de que, na formação da cultura, Diante da experiência que tenho com
houve um elemento básico que a consti- os jogos, percebi que há outra cate-
tuiu: o jogo. Segundo ele, “em suas fases goria que pode ser acrescida a essas
mais primitivas, a cultura possui um ca- apontadas por Caillois. Ela é a aenigma,
ráter lúdico, que ela processa segundo que abrange aqueles jogos que têm
as formas e no ambiente do jogo” (HUI- maior incidência do uso do intelecto,
ZINGA, 1993, p. 53). Sendo assim, jogo e do cognitivo. Nessa categoria estariam
cultura estão imbricados em uma inter- as adivinhas e os jogos de palavras.
-relação embrionária. Para esse autor, o
jogo se caracteriza por ser Caillois chama a atenção para o fato de
que os jogos estabelecem uma inter-re-
uma atividade livre, consciente, to- lação com essas quatro categorias. Aqui
mada como “não séria” e exterior à insiro a quinta, e destaco que elas não
vida habitual, mas ao mesmo tempo são excludentes entre si, pois em um
capaz de absorver o jogador de ma- jogo elas podem estar presentes ora com
neira intensa e total. É uma atividade predominância de uma, ora de outra.
desligada de todo e qualquer inte-
resse material, com a qual não se pode Assim como Huizinga, Caillois (2017,
obter qualquer lucro, praticada dentro p. 29-30) caracteriza o jogo como uma
de limites espaciais e temporais pró- atividade livre, delimitada (no espaço
prios, segundo uma certa ordem e e tempo), incerta, improdutiva, regula-
certas regras (HUIZINGA, 1993, p. 16). mentada e fictícia. Para a identificação
desse fenômeno, Caillois e Huizinga pro-
Roger Caillois (2017), em Os jogos e os puseram essas características que indi-
homens, classificou os jogos em quatro cam um certo modo de perceber o ato
diferentes categorias. São elas: Agôn, de brincar – ato que denominei estado
Alea, Mimicry e Ilinx. Agôn designa os de brinquedo. Então, podemos identifi-
“
ele somente o será nas mãos daqueles
que o estiverem soltando no ar.
(...) quem brinca Não existe brincar sem regras. Em toda
brincadeira há um acordo entre aque-
diz alguma coisa, e les que brincam, acordo que orienta
esse dito está repleto as ações, e ai daquele que não seguir
essas regras. A ficção ou imaginação é
de conteúdos da o tempero do brincar. Nesse universo,
”
as coisas acontecem de modo diferente
existência humana da realidade. É uma outra realidade. A
imaginação é marcada pela capacidade
de dar diferentes significados a algo
dado. Lúdico vem daí, do latim ludere,
que significa ilusão. Então, todo gesto
lúdico é imaginativo. Eliza Santa Roza
(1993, p. 81) mostra isso muito bem ao
dizer que os jogos infantis
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nesse fenômeno que a criança encon-
tra alimento para a sua condição hu-
mana e seu crescimento como sujeito
de cultura, na busca de dar significado
à sua vida e de encontrar novas ma-
neiras de experienciá-la. Não é à toa
que as crianças repetem certas brinca-
deiras. Ali, há uma vivência que as di-
reciona para uma realização interna da
eterna incompletude do ser. Essa busca
gera cultura, traduzida em brincadei-
ras, brinquedos, jogos e toda sorte de
ações que alimentam a experiência hu-
mana. Não há brinquedo que não es-
teja ligado a essa dimensão existencial
de busca. Dar significado é uma ati-
vidade genuinamente nossa, e ressig-
nificar – dar novos significados – é a
demonstração da mobilidade humana
de reelaborar e estabelecer novas co-
nexões entre as ações que realiza-
mos. Daí surge aquilo que chamamos
novo. Inauguramos, a todo instante,
“
(...) se entendo o isto é, nos reconhecemos brincantes
com a idade em que estamos, não in-
brincar como uma ventando uma outra, por outro lado, en-
trando de forma ingênua nos tornamos
possibilidade de infantilizados, o que nada tem a ver
com a atitude da criança que brinca. É
expressão, (...) há uma importante, para nós, educadores, pro-
chance de o brincar se fessores, pais, mães, tios etc., sermos
adultos ao brincar com as crianças.
instalar como uma das TRABALHO E BRINCADEIRA
ações de formação
Na linguagem da brincadeira, pode-
de identidade da
”
mos, e muito bem, estabelecer nossa
forma de trabalho, mas é importante
criança (...) estarmos atentos ao fato de que somos
educadores, e isso faz uma grande di-
ferença. A criança não precisa (e nem
deve) ficar pensando no porquê brinca,
mas o educador precisa constante-
mente procurar saber o que o brincar
tem a ver com o seu trabalho.