Você está na página 1de 6

A LINGUAGEM

TELEVISIVA
EO IMAGINARIO
INFANTIL

Televisão e criança são temas já discutidos exaustivamente,


porém nunca suficientemente. Abordar a questão tendo
como referencial a própria criança é uma forma
original e esclarecedora de abordar o assunto.
É isso que a especialista Elza Dias Pacheco
faz neste artigo.

"OS dese- ~ W C ~ Sdevolver


O d razão humana rua funcão 1 programafãO
nhos animados infantil e cultura
geram agressi- nos induz, em pri-
vidade (...)". meiro lugar, à com-
tal que é mente tão
"Os desenhos do real, ientement~ preensão do que se-
animados ser- >gospara izar a adc ja uma criança: co-
vem de catarse mo pensa, como
(...)". É o que sente, como perce-
se fala desde be, como represen-
que eles invadiram as telas de televisão. ta as coisas, os eventos do seu cotidiano.
Tais falas são pano de fundo de conversas
informais e, ao mesmo tempo, são temas
polêmicos de seminários, encontros e con-
gressos. Contudo, o problema persiste. As Elza I:
Profa. Dra. do Dep
crianças de todo o mundo assistem, pelo ---..:---x. .- - A---
menos, a trinta e seis horas semanais de tora dos li?mos O i i ca-Pau: hei
televisão. O assunto é sério e exige caute- lepresentac;ão social l a criança
(

la, muita reflexão e muita pesquisa,


- -
abordá-lo exige um referente primordial e
mas .
da ideo~logiadominante e Cc
- .A . rn
este é a própria criança. A reflexão sobre
44 Comunicação e Educação, São Paulo, (21: 43 a 48, jan./abr. 1995

Como a criança representa os heróis que


desfilam diariamente na "telinha mágica" As atividades básicas necessárias ao
da TV, nos diferentes gêneros que se suce- desenvolvimento infantil, como dormir,
dem. Ter esta compreensão exige de nós comer e beber, evidenciam uma prepon-
um suporte teórico que não se esgota na derância da atividade Iúdica.
Psicologia, embora esta seja indispensá-
vel. É necessário conhecer o desenvolvi- É através dela que a criança recria uma
mento do ser humano em sua totalidade realidade particular que lhe é própria, no
dialética, em seus aspectos bio-psico-só- seu mundo de "como se", o mundo não real, o
cio-culturais. Como evolui o desenvolvi- mundo da imaginação, onde predomina o ani-
mento do pensamento? O que é desenvol- mismo, o artificialismo, o antropomorfismo.
vimento cognitivo? O que são estruturas Mas conhecer a criança é pensá-la não
mentais? Existe uma cronologia no desen- apenas numa perspectiva evolutiva e etá-
volvimento dos esquemas mentais? Como ria. Conhecer a criança é pensá-la como
atuam os condicionantes socioculturais? um ser social determinado historicamente.
Conhecer a criança é pensá-la num tempo
e num espaço, interagindo dinamicamente,
influenciando e sendo influenciada.
Conhecer a criança é pensá-la como um ser
Paralelamente ao estudo do desenvol- de relações que ocorrem no nível da famí-
vimento humano é necessário observar co- lia, da sociedade, da comunidade. É conhe-
mo ocorre o desenvolvimento lúdico e qual cê-la em casa, na escola, na igreja, na rua,
o seu significado. Como a criança utiliza o no clube, em seus grupos sociais, nas
seu tempo livre e os espaços disponíveis? "peladas", enfim, em todas as suas ativida-
O lúdico é uma expressão da cultura? Além des. Vendo-a sob todas essas óticas os
destas indagações, quando se aborda o pro- adultos não lhe perguntariam mais: "O que
blema lúdico, outras povoam a nossa você vai ser quando crescer?" Eles veriam
mente: quais as preferências infantis em que a criança é um ser histórico que produz
termos de jogos e de brinquedos? A crian- cultura, que a criança pensa, que a criança
ça brinca sempre, mesmo quando realiza sente o canto dos pássaros, o ronco dos
outras atividades? A criança gosta de dese- carros e dos aviões, o zumbido dos insetos,
nhar? A criança brinca com água, areia e o farfalhar das folhas, a cor e o perfume
argila? O sexo condiciona as diferentes das flores. Mas também sente a dor, a
preferências e as diferentes formas de brin- fome, o frio, a poluição, a violência, a
car? Por que a criança é essencialmente injustiça. Ela sente e sofre.
lúdica? A criança é ativa ou passiva quan-
do brinca?
Responder a tais indagações implica A IMPORTÂNCIA DO JOGO
pesquisar e observar o comportamento da
criança em diferentes momentos das suas Em Além do princípio do prazer,
atividades, em diferentes contextos sociais, Freud analisa o jogo de um menino de
no brinquedo individual e coletivo, no lar, dezoito meses em termos de "perda e repa-
na escola e nas áreas de lazer. ração". O menino, com um carretel amarra-
Comunicação e Educação, São Paulo, (2):43 a 48, jan./abr. 1995 45

do a um barbante, ao invés de puxá-lo como domínio de situações de medo, vivendo e


se fora um carrinho, jogava-o para baixo da convivendo simultaneamente com o real e
cama, enquanto segurava a ponta do bar- o fantástico, ajudando a elaborar conflitos
bante. Quando o carretel desaparecia ele e angústias, pelo uso dialético de ''perda1
emitia um significativo: "o,o,o", e, em reparação". Todos estes jogos constituem
seguida, puxava-o para si, dizendo alegre- para a criança um encantamento. Não pre-
mente: "aqui". Este era o jogo completo: cisa haver muretas ou almofadas. É só
desaparecer e reaparecer, que era repetido você esconder o rosto desviando-o (você
várias vezes na tentativa de dominar, com desaparece) e depois voltá-lo dizendo algo.
tal jogo, a ansiedade que lhe causava a A criança gargalha ao mesmo tempo em
ausência da mãe, simbolizada pelo objeto que se assusta. É um eterno "aparecer1
que manipulava. desaparecer". O "pega-pega" também a
atrai e encanta, tanto que, quando você não
Mas como pode estar de acordo com o consegue alcançá-la, ela se deixa pegar
"princípio do prazer" o fato de o menino (note que os desenhos animados, em espe-
repetir como um jogo o evento tão peno- cial os norte-americanos tradicionais, são
so para ele? um eterno pega-pega). Aí você a toma nos
braços, enlaça-a contra o peito e a cobre de
É que o desaparecimento do carretel beijos. E tudo começa novamente. É um
caracterizava a "perda", ou seja, o contato eterno "pegdlarga". Note-se bem: "per-
com o real - a ausência prolongada da mãe; ddreparação", "aparecerldesaparecer",
o reaparecimento caracterizava a "repara- "pegdlarga".
ção", o contato com o imaginário - a posse
do objeto (mãe) perdido. Todos esses jogos propiciam à criança a
Nesse jogo, a criança considerava-se oportunidade de elaborar o medo da soli-
senhora absoluta da situação, pois sem peri- dão, o medo de perder os seus objetos de
go algum ela descarregava as fantasias de amor quando eles se afastam.
amor e ódio em relação ao objeto amado,
que era a mãe. Esta, simbolizada pelo carre- É o caso do choro da criança, quando a
tel, era jogada para longe, mas reaparecia no mãe a deixa no jardim da infância. Será que
momento em que a criança queria. ela volta? E se volta, quando? A criança não
Esses jogos simbólicos começam cedo tem definidas as noções de tempo físico e
na fantasia da criança. Iniciam-se com o nem as noções de conservação do objeto e
"esconder O rosto sob o lençol", continuam do espaço. Daí o medo. O seu tempo é psi-
com o "virar e desvirar o rosto", seguem cológico e a sua duração varia em função do
com o "esconder-se sob as almofadas", seu estado de humor. Nós, adultos, sabemos
L'esconder-se atrás das muretas" e conti- o quanto dura um momento de angústia.
nuam com os jogos de caça como "escon-
de-esconde", "pega-pega" e outros. O que
há por trás de todos eles? São fases transi- OBSERVANDO A REALIDADE
tórias de pensamento mágico e onipotente
que levam a criança, através de repetições Outro aspecto a notar no lúdico da crian-
dos próprios atos ou jogos, a um pleno ça é o "de novo", que Walter Benjamin
46 Comunicacão e Educacão, São Paulo, (21: 43 a 48, ian./abr. 1995

chama de "lei de repetição". Quando a pega- odeia a mãe-bruxa. Este ódio leva-a a tecer
mos no jogo do "pega-pega", ela diz: "de no- fantasias inconscientes de morte da mãe-
vo!". O mesmo quando paramos de empur- bruxa que, ao mesmo tempo, a apavora por-
rá-la no balanço, de jogá-la para o alto ou que ela ama (e como!) e precisa da mãe-fa-
quando ela nos oferece repetidamente o seu da. Assim, o bem e o mal estão dentro da
cafezinho simbólico com um: "qué café (...) criança. Ela é boa e má ao mesmo tempo.
qué? (...) "mais um" (...) "otro" (...). O mes- Como todos nós. Portanto, dentro dela exis-
mo com os contos de fadas que ela insiste tem monstros que a assustam e é através
para que se repita com um "de novo". desses jogos, do lúdico, que ela os exorciza.
Ainda me lembro de quando levava Mas é também através dos monstros dos fil-
meus netos (Cacá, RÔ, Alê e Fê) a passear mes de terror.
de avião (no carro) e eu me transformava de Ontem no supermercado observava um
piloto em aeromoça e, ao lhes servir uma menino que aparentava uns três anos. Ele
bebida, eles estendiam as mãozinhas para brincava com a porta automática e tentava,
pegá-la. Viajávamos por vários lugares e de penso eu, entender a sua mágica, o seu abrir
repente um passarinho entrava no avião à e fechar sem que ninguém a tocasse. Ele se
procura da mãe. Era sempre o mesmo (as aproximava e ela abria, o que o fazia rir
crianças o exigiam). Ele sentia fome e frio. gostosamente; ele se afastava, ela fechava e
As crianças o envolviam com as mãos e o ele sorria, expressando medo através de um
afagavam. Um dia, finda a viagem, o Alê encolher de ombros. Algo se passava na sua
saiu do carro de mãos fechadas e entregou o mente. O abrir lhe causava alegria.
passarinho para a mãe dele. O jogo, para Liberdade? Talvez. O fechar, apesar da pro-
ele, não havia terminado, assim como os ximidade da mãe, lhe causava um certo
contos de fadas não terminam quando nos medo que, ao que parece, ele tentava ela-
cansamos. Por quê? borar, exorcizar. "Perddreparação", "apa-
São os medos que a criança tem da recerldesaparecer", "pegdlarga", "abre1
bruxa, do dragão, do mágico, do pó de pir- fecha" são processos que a criança tenta
limpimpim. Como tudo se transforma? entender, tenta explicar. E aí entra o jogo
Como a rainha vira bruxa? Como uma dialético: "entender para explicar". Isto
abóbora se transforma numa linda carrua- parece esclarecer a fascinação que a crian-
gem? ça tem pelo terror, pela magia, pelo vampi-
resco. Ela está envolvida nisto tudo e por
Estas coisas, ao mesmo tempo que a isso tem que adentrar os mistérios deste
encantam, a assustam, e ela precisa mundo fantástico.
dominar tais medos, aprender a conviver
com eles. No terror há o suspense do aparecimento/
desaparecimento, da presençdausência,
E o que é a bruxa senão a fada? É a dia- da perddreparação, do pegdlarga, do
lética do bem e do mal. abrelfecha.
Segundo Melanie Klein, é a dupla
representação da mãe: a boa, nutriente (fa- O mesmo com o vampiro, com o mági-
da) e a má que não a alimenta quando ela co. O primeiro se transforma, o segundo
quer (bruxa). A criança ama a mãe-fada e transforma as coisas.
Comunicação e Educação, São Paulo, (21: 43 a 48, jan./abr. 1995 47

O MUNDO MÁGICO E A CRIANÇA outra e se diverte. Ela sabe que toda histó-
ria tem um final feliz.
Não é à toa que os vampiros foram a Talvez seja por isso que as crianças de
principal atração de Vamp, a novela de qualquer país têm preferências semelhantes.
Antônio Calmon, da Rede Globo, levada É curioso registrar que as pesquisas brasilei-
ao ar às 19 horas, que chegou a ultrapassar ras realizadas de 79 a 83 (Pacheco, E.D.';
a média de audiência da "novela das oito". Fusari: M.F.R.Z; Fischer, R.M.'; Beraldi,
Numa entrevista à revista Veja, o autor diz M.J.9, com crianças de 7 a 11 anos, revela-
que "o vampirismo mexe com o incons- ram que o desenho animado Pica-Pau
ciente de todo mundo. Ele mistura a sen- (Pássaro Loco, na Espanha) era o preferi-
sualidade, a conquista da morte, o poder de do, o mesmo acontecendo nas pesquisas dos
sedução, a sofisticação e a crueldade, que espanhóis Erausquin, M.A. e Matilla, L.,
todos têm, mas reprimem". Não há muita feitas em 1978.
diferença do Super-Homem, da Mulher-
Maravilha, do Incrível Hulk, dos massa- O Pica-Pau massacra, destrói, mas nin-
cres feitos pelo Pica-Pau e pelo Jerry (Tom guém morre. É uma agressividade carica-
e Jerry), que não deixam rastros da cruel- ta e a criança não ignora.
dade, pois tudo volta ao normal num passe
de mágica e ninguém sai machucado. É um Assim, a criança parece elaborar os prin-
vale-tudo. cipais tabus e mitos: o nascimento, a vida e
É através dessa magia, desse fantástico, a morte, que sempre foram cercados de
que a criança elabora as suas perdas, mate- mistério.
rializa os seus desejos, compartilha da vida
animal, muda de tamanho (era Alice no
país das maravilhas e agora é Joe, o
pequeno Boum-Boum), liberta-se da gra-
vidade, fica invisível e assim comanda o
universo através de sua onipotência. Dessa Atualmente, não se fala mais em cego-
forma ela realiza todos os seus desejos e nha para explicar o nascimento. A criança já
necessidades. Mas é inaceitável acreditar o decifrou, ou melhor, os meios de comuni-
que durante tais jogos a criança seja passi- cação lhe propiciaram tal desvendamento.
va e acrítica. É inacreditável pensar que ela Mas, e a morte? A estrelinha lá no alto do
confunda ficção com realidade. Aliás, eu céu continua a ser o avô, a avó, os entes
creio que uma não existe sem a outra. Não queridos que "desapareceram" magicamen-
há realidade que não seja mesclada de fic- te. Leva-se a criança para ver o bebê que
ção, e esta baseia-se no real. A cnança, co- nasce. Mas e o bebê que morre? A morte é
mo dizia Bettelheim, transita de uma para a negada e ocultada por nós adultos, que não

1. PACHECO, Elza Dias. O Pica-Pau: herói ou vilão? Representação social da cnança e reprodução da ideologia dominante.
São Paulo, Loyola, 1985.255~.
2. FUSARI, Maria Felisminda de Rezende. O educador e o desenho animado que a criança vê na televisão. São Paulo,
Loyola, 1985. 165p. Ilustrado.
3. FISCHER, Rosa Maria Bueno. O mito na sala de jantar: discurso infanto-juvenil sobre televisão. Porto Alegre,
Movimento, 1984.
4. Esta pesquisa não foi publicada.
48 Comunicação e Educação, São Paulo, (21: 43 a 48, jan./abr. 1995

a aceitamos, não a elaboramos. Somos nós rança, onde os mitos de amor foram substi-
adultos quem decidimos o que é melhor tuídos pelo mito do poder - como em O
para a criança: escolhemos as suas roupas, pequeno príncipe e em O menino do dedo
os seus brinquedos e, no seu aniversário, verde, onde só os números têm valor.
preparamos a festa em função dos adultos Preferimos a escola em que tudo é progra-
que ela não convidou. Criticamos nela o que mado em função do que será cobrado: res-
não gostamos e o nosso referencial passa a postas estereotipadas para que o computa-
ser o seu guia. Se é bom para nós é bom dor as leia economicamente. A informatiza-
para ela. ção é um bem, mas não podemos deixar que
E quanto à escola, como nos posiciona- ela amorteça os nossos sentimentos e emo-
mos? Sempre em função do amanhã, do ções. É necessário voltar a sentir, precisa-
ingresso no mercado de trabalho. Daí a mos reaprender a amar e a nos tocar. Cada
valorização do intelectual, em detrimento dia deve ser plenamente vivido como um
do lúdico, considerado "inútil" porque não fim em si mesmo. Vamos nos permitir o
gera dividendos. Preferimos a escola "gepe- ócio. O prazer não pode ser adiado em bene-
tiana" onde não se fala de sonho e de espe- fício do capital. Comecemos já.

Você também pode gostar