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A intencionalidade na escolha de termos para formação de sentidos: Ditadura

Militar nas questões do ENEM

Ana Carla dos Santos Oliveira1


Carlos Gabriel de Moura Silva2
Clara Martins Pedrosa3
Jamille Jane Silva Santos4

Resumo
Este artigo apresenta uma análise de como os referentes podem ser interpretados
de diversas formas sem perder o sentido em comum entre os interlocutores.
Ocorrendo a exposição da construção de sentido que se encontra diretamente
ligada ao referente. Trazendo as diversas possibilidades de negociação de sentido
que cada palavra pode acarretar numa situação comunicacional em torno de um
referente abstrato em específico. Explicitando também um outro ponto importante
que é a escolha de palavras se atrelando a intencionalidade do falante, que é feita
de modo a se tornar a identidade de sua mentalidade sobre determinado assunto,
mostrando aos poucos o objetivo que se era pretendido no início da situação
conversacional. No caso, nossa análise se dá sobre a intencionalidade na escolha
de palavras na constituição de questões aplicadas em edições do Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM). A metodologia utilizada será voltada para as ideias
discutidas por Filho (2017) sobre a referenciação e a construção negociada de
sentidos e o Domínio Semântico da Determinação, de Machiaveli (2020).

Palavras-chave: Referente. Ditadura militar. ENEM. Sentidos.

Introdução

O objetivo deste trabalho é analisar como um determinado referente pode ser


compreendido de várias formas que estão relacionadas com a perspectiva que os
interlocutores tem de mundo, desde que o resultado final não seja alterado e ambas
as perspectivas se refiram ao mesmo conteúdo. E também como um mesmo
referente pode adotar diferentes perspectivas de interpretação dependendo da
terminologia adotada por quem fala, que se relaciona diretamente a intencionalidade
por trás de tal enunciação.

1
Discente do curso de Licenciatura em Letras-Português pela UFPI-CSHNB.
2
Discente do curso de Licenciatura em Letras-Português pela UFPI-CSHNB.
3
Discente do curso de Licenciatura em Letras-Português pela UFPI-CSHNB.
4
Discente do curso de Licenciatura em Letras-Português pela UFPI-CSHNB.
2

Antes de mais nada, se faz necessário ter em mente que os referentes


passam por uma recategorização, isto é, uma reelaboração, por tanto, a construção
de sentido que rodeia um referente é indispensável ao ato de dizer algo.
Temos como ponto crucial para esta análise, a importância da estabilidade do
referente, essa se faz necessária uma vez que ao alterarmos completamente o
sentido de determinado termo, o consenso que há entre os interlocutores deixará de
existir. Em certo ponto será abordada a forma como um referente, principalmente,
de natureza abstrata pode chegar a ter mais de uma forma de ser visto, por conta
da escolha de palavras, esse sendo o ponto exato da negociação da imagem mental
que será formada durante a interação.
A literatura postula como consensual as seguintes ideias no domínio da
referenciação: a primeira é de que os objetos de discursos são vistos como
elementos prováveis de reelaboração, a segunda é de que os referentes são
negociáveis entre os interlocutores, a terceira é de que o referente sofre
recategorização e a última é de que o trabalho de construção de sentido dos
referentes é cognitivo.
No que diz respeito ao caráter dinâmico do referente e a natureza negociável
dos referentes podemos afirmar que ambos os aspectos estão entrelaçados para a
produção de sentido “A recategorização faz parte da negociação estabelecida pelos
interlocutores de um determinado texto, a partir das nuances que caracterizam
esses sujeitos, bem como dos conhecimentos partilhados por eles” (SOUZA &
BEZERRA, 2020, p.3)
A partir do foi dito até aqui, analisaremos os diversos pontos de vista que
podem ser adotados quando se usa um determinado termo para se referir ao
período da ditadura militar, trazendo as nuances necessárias para estabelecer não o
termo que um falante ou outro possa considerar o correto, mas o ponto exato em
que o sentido vai se construir ou gerar um conflito de ideias, nesse caso em
específico, sobre o período de ditadura militar no país, dependendo do caminho que
os falantes sigam e da visão de mundo de cada um até que se chegue ao momento
que o referente se estabilize.

1. O contexto histórico inicial


3

A construção do sentido/significado se encontra diretamente ligado ao


referente, ao entendimento de cada interlocutor sobre o tema e ao contexto em que
a enunciação ocorre.
Quando uma sentença é proferida e se cria a situação de comunicação,
principalmente numa língua complexa como é o português, determinadas palavras
podem adotar diversos sentidos, sejam eles próximos a intenção do falante ou
totalmente alheios ao caso dependendo de como ocorra, bem como determinados
momentos podem ser descritos através de vários termos dependendo da
intencionalidade de quem o enuncia.
Para que haja o entendimento pretendido entre os interlocutores o referente
deve estar estabilizado, de forma que os termos que uma das partes adote tenham
a possibilidade de, no contexto criado, trazer sentidos iguais ou semelhantes aos
sentidos que os demais envolvidos na comunicação podem atribuir. Nesse momento
será iniciada a exemplificação através de uma passagem importante da história do
país, a ditadura militar.
2. Objetivos
Em março de 1964 ocorreu no Brasil a derrubada de um presidente e a
instauração de uma ditadura, onde os simpatizantes dessa militarização e da
ascendência dessa forma de “governo” tentam elencar alguns avanços do período e
outra parte da população enxerga como um dos momentos mais sombrios da nossa
história recente. Nesse ponto, se criam as grandes questões a serem tratadas aqui:
ditadura, regime ou revolução? Qual a terminologia a ser adotada acerca desse
tema? E como cada interlocutor compreende cada um dos possíveis termos? A
maior das intenções não é exatamente responder essas perguntas de forma direta e
objetiva, mas trazer à vista como o uso de cada termo pode gerar diferentes
interpretações sobre um mesmo referente.
Por se tratar de um conceito abstrato se torna um pouco mais complicado a
estabilização de um referente, tendo em vista que não é algo tangível. Ao se referir
ao tema, a mente de cada pessoa tende a atribuir a própria interpretação.
O primeiro ponto a ser visto é exatamente no momento em que tudo se inicia,
dentro do recorte selecionado, o termo adotado historicamente é “golpe militar”, que
termina por trazer uma visão realisticamente dura acerca do ocorrido, como é
descrito no livro “1964: História do Regime Militar Brasileiro” em que o autor fala:
4

Quando se fala em golpe militar, a imagem da rebelião dos quartéis


tende a se impor na imaginação do leitor: movimentação de tropas,
cerco da sede do poder constitucional, pronunciamentos raivosos
das lideranças militares carrancudas, deposição forçada do
presidente eleito, coerção das forças civis que resistem aos
golpistas. Obviamente, nosso golpe teve tudo isso e mais um pouco.
(NAPOLITANO,2014, p. 42)

No contexto geral e histórico o referente é o momento em que essa tomada


de poder ocorre, mas semanticamente o referente é voltado a terminologia adotada
para construção daquele sentido em quem ouve/lê, quando se profere “golpe
militar”. A ideia que é trazida é de um movimento militarizado, tomando o poder de
forma ilegítima, através da força, como contam os livros de história. Por outro lado,
é historicamente difundido que haviam pessoas que simpatizavam e até financiavam
o movimento, pessoas essas que evitavam e evitam o uso dessa expressão para
descrever o ocorrido, tendendo a se valer de termos como “intervenção” invés de
“golpe”, justamente para tentar dar uma imagem mais branda ao que aconteceu.
Afinal, a palavra “golpe” termina trazendo uma interpretação ligada a violência ou a
algum tipo de atitude desonesta, enquanto a palavra “intervenção” traz uma imagem
mais leve, podendo formar até uma imagem positiva como a emissão de uma
opinião ou a realização de uma mudança.

3. O poder da semântica e a recategorização


Tendo em vista o que foi mencionado, o poder da semântica fica evidente, já
que ela é definida de forma mais simples como o estudo do significado nos mais
diversos níveis do discurso, estudando como a estrutura de palavras e enunciados
podem impactar na formulação de um significado e na compreensão. O que nos
remete às questões levantadas anteriormente, uma vez que um mesmo fato pode
ser descrito de diversas maneiras dependendo dos termos adotados. Evidencia-se,
deste modo, que esse processo adota uma dinamicidade tão complexa que, para
ser compreendido, é necessário um aparato cognitivo prévio.
Uma vez definidas as características basilares do fenômeno, podemos,
então, conceituar o processo de referenciação como o conjunto de
operações dinâmicas, sociocognitivamente motivadas, efetuadas pelos
sujeitos à medida que o discurso se desenvolve, com o intuito de elaborar as
experiências vividas e percebidas, a partir da construção compartilhada dos
objetos de discurso que garantirão a construção de sentido(s). (CUSTÓDIO
FILHO, 2011, p 122)

Tendo conhecimento desses fatores se torna possível compreender os motivos de


um mesmo referente ser capaz de apresentar tantas formas de ser descrito.
5

O ato comunicativo, em sua essência, é visivelmente dotado de


intencionalidade, por isso tantas escolhas de palavras, termos, expressões, e
quaisquer que sejam os demais elementos que o falante deseja adotar. É através
disso que o enunciador consegue gerar o efeito recategorizador e assim tenta
direcionar a visão de determinado referente ao ponto exato ou ao ponto mais
próximo possível.

3.1. Definição do referente e seus possíveis termos


O presente trabalho agora tratará de uma questão levantada inicialmente, no
que diz respeito à relação ao uso de determinadas palavras para se referir ao
período histórico brasileiro, que teve início em 1964 e se estendeu até 1985. Esse
período passa a ser então, nesse caso, o referente. Como foi exposto no início, são
comumente adotados três termos para descrever essa fase do Brasil: ditadura,
regime e revolução. Cada uma dessas palavras tem seus próprios significados, a
escolha de cada uma delas revela uma intenção do falante e causa uma reação em
quem ouve. É dessa forma que ocorre a renegociação do sentido. Com base em
Souza e Bezerra (2020, p. 07), a (re)construção de objetos de discurso e o processo
de recategorização referencial passam pelo princípio da negociação, pois são
tarefas eminentemente interativas. Tais autores reforçam essa ideia citando
Cavalcante; Custódio Filho; Brito (2014, p. 35 op. cit. p. 7), que defendem que,
quando os textos são produzidos e compreendidos, os envolvidos no processo
interagem de forma ativa de maneira que ambos possam negociar os sentidos
construídos.

4. A intencionalidade presente na escolha dos termos


Levando em consideração o que foi dito, é necessário para o entendimento
criar um contexto que estabilize a referência em análise, podendo, por exemplo,
imaginar duas pessoas em situação de comunicação entrando nesse tema (para
criar um paralelo ainda maior e evidenciar a intencionalidade), pode-se imaginar que
uma dessas pessoas tem opinião plenamente formada sobre o assunto e a outra é
alheia ao tema, mas com bom domínio da língua e dos significados das palavras.
Caso o falante se apegue a forma comumente descrita e escolha referir-se ao
período como “ditadura”, quem ouve formará um sentido em torno dessa palavra,
com maiores chances de ser um conceito de que se trata de algo ruim ou
6

sentimento semelhante em relação ao período em questão, uma vez que, quando


se fala em ditadura, a ideia inicial que surge é a de um governo autoritário que é
exercido por poucos com poder máximo dado ao executivo, e que restringem os
direitos individuais. Dessa forma, o responsável pela enunciação mostra a sua
intenção, quem ouve negocia o sentido e forma sua própria interpretação.
Já em um segundo caso, pode-se imaginar um outro tipo de alinhamento, em
que o falante opta por se referir ao período como “regime”. Quem recebe essa
informação pode apresentar uma tendência a compreendê-la como algo
simplesmente mais regrado, uma forma de governo que não exatamente limita, mas
que apenas estabelece regras de maneira mais direta, podendo até tirar o ar
politizado que paira ao redor do tema.
Já em um terceiro caso, o falante se alinha às ideias que levaram ao golpe e
escolhe chamar de “revolução”. Ao escolher esse termo, alguém sem muito
conhecimento sobre o assunto pode inclusive formar, inicialmente, uma visão
positiva, uma vez que a revolução, num contexto geral, pode ser vista como um
período de mudanças significativas. Mas ao se valer desse termo, o falante se
expõem ao risco de que, caso seu interlocutor tenha uma noção maior da história
sociopolítica, seja direcionado a visão de um país em revolução, que em sentido de
política, compreende períodos sim de mudança, mas nem sempre positivas e
marcadas por tensão e conflitos podendo, assim, se criar duas interpretações para
uma mesma palavra acerca de um mesmo tema dependendo do aspecto
sociocognitivo dos envolvidos.
No tocante à negociação para a construção de objetos de discurso pouco
especificados, há o entendimento de que os referentes serão mais ou
menos especificados, a depender do conhecimento partilhado dos
locutores. Assim, algumas construções sobre os objetos de discurso podem
passar despercebidas, mas não prejudicar o processo interativo de
negociação. Da mesma forma, a não percepção de determinados aspectos
acerca dos objetos de discurso não consiste em interferência para a
progressão textual. (Souza & Bezerra, 2020, p. 6)

Desse modo, fica claro que o mesmo referente pode ser mencionado de diversas
maneiras dependendo da visão que se pretenda explicitar, e que ainda pode
acontecer de o termo escolhido para realizar essa explicitação adote caminhos
diferentes dos pretendidos pelo falante.
Tudo isso depende da situação, da forma que cada palavra ou expressão foi
falada, e para a negociação do sentido, se evidencia principalmente que o ponto
chave para negociação se encontra na forma como os pensamentos dos envolvidos
7

se entrelaçam, é dessa maneira que o caminho se cria desde a pronúncia, até a


formulação dos significados de forma mais conclusiva naquele momento. Sendo
assim, o aparato humano, o aspecto social e cognitivo dos envolvidos no processo
de comunicação se ligam a todos os elementos possíveis/necessários e
estabelecem uma imagem mental que paradoxalmente se materializa na estrutura
de forma abstrata que é a fala, essa que se expande num conjunto de
interpretações e possibilidades que geram a complexidade e a beleza do processo
comunicativo, de modo que uma estrutura simples como uma palavra se liga às
demais até montar uma forma de pensar, que se torna responsável por nos levar a
raiz da semântica, que é a análise de como cada detalhe vai findar na composição
do sentido. Além de que, mesmo existindo a intenção, o processo comunicativo
segue um caminho, mas uma vez iniciado, esse caminho se ramifica e cada termo
se torna relevante para construção do sentido que a frase inicial quis atingir através
de uma ideia, podendo esse sentido ser ou não atingido.

5. Procedimentos de análise
Em nossa análise, utilizamos como parâmetros as ideias discutidas por
Custódio Filho (2017) sobre a referenciação e a construção negociada de sentidos,
no qual insinua-se que os referentes precisam ser estabelecidos em uma base
comum para se sustentar a coerência. Na referida obra, o autor discorre sobre o fato
de que mesmo que os referentes sejam os mesmos entre os interlocutores, isso não
implica em uma progressão textual. No caso de nossa análise, observamos nas
questões aplicadas nas provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), a
utilização de recortes históricos (no caso deste artigo, as que se referem ao período
de Ditadura Militar no Brasil), aparato este que nos apropriamos da Análise do
Discurso (ORLANDI, 2015), para uma análise que partisse de um fato externo à
língua para o interno, ou seja, realizando o caminho inverso de um “percurso que
nos faz passar do texto ao discurso, no contato com o corpus, o material empírico”
(pág. 75).

5.1. Exame Nacional do Ensino Médio e suas estratégias de direcionar o


sentido
As questões elaboradas para o ENEM possuem múltipla escolha,
constituindo-se de 5 alternativas, na qual apenas uma é a correta. Deste modo, a
8

estratégia utilizada ao elaborar questões dessa natureza é a de disfarçar o erro seja


com assuntos da mesma área ou com artifícios linguísticos. Este último é o que nos
interessa, o modo como a articulação de sentidos age a fim de provocar dúvida no
aluno.
Tendo como base o artigo de Guimarães (2014) acerca do espaço de
enunciação, que está permeado de sujeitos que recebem de forma desigual as
influências da língua, seja pela sua classe econômica, grau de escolaridade, região
e etc. Neste aspecto, o nosso escopo a ser observado trata-se de uma prova de
caráter nacional, aplicada em todas regiões e de natureza classificatória, a fim de
aferir o grau de aprendizado do país. Este método permite uma catalogação,
inclusive, da média de acertos de cada questão nas diferentes regiões do país, mas
isso é assunto de outra área.
A configuração do espaço de enunciação específico (a prova) nos permite a
análise dos sentidos que atravessam as questões, e como se dá esse
agenciamento enunciativo. Sobre este tópico, Guimarães (2002, p. 23) diz que as
relações entre locutor e interlocutor são configurações específicas do agenciamento
enunciativo. Deste modo, cada situação enunciativa possui suas especificidades
pois trata-se de um diálogo entre diferentes indivíduos.
No que tange o discurso escrito, o qual nos remetemos neste artigo, tem o
intuito de acionar diversos conhecimentos no seu leitor, a fim de proporcionar a
reflexão sobre a veracidade dos fatos levantados nas questões em análise. Para
isso, recorre-se a uma observação mais minuciosa sobre os elementos constitutivos
das orações, a fim de averiguar os mecanismos gramaticais utilizados para se
construir um enunciado que induza à dúvida e a acionar mecanismos de coesão e
coerência.
Dentre esses mecanismos, observa-se que há uma negociação de quanto à
caracterização de seu objeto que, em nosso caso, é o já referido período histórico,
onde os sujeitos que recebem esse enunciados encontram-se inseridos em um
contexto sócio-histórico no qual, como aponta Machiaveli (2020, p. 4) a historicidade
se sobrepõe aos sujeitos, e o sujeito no qual nos remetemos é o que está ligado à
história.

5.2. Domínio Semântico da Determinação


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Partindo destes pontos e retomando ao conceito de Domínio Semântico de


Determinação, no qual Machiaveli (2020, p. 5) aponta dois aparatos de
funcionamento dentro dessa linha teórica, que se configuram como reescrituração e
articulação. O primeiro, refere-se ao procedimento que acontece dentro dos
enunciados ou na combinação dos mesmos. De forma mais clara, temos a cena
enunciativa, onde fica mais explícito o funcionamento dos recursos de articulação:
articulação pode ser melhor explicada a partir da cena enunciativa. [...] O
funcionamento da cena enunciativa dá sustentação à argumentação. [...] A
argumentação é elemento do processo de significação e é produzida pelo
acontecimento de enunciação. [...] A argumentação se dá por meio da cena
enunciativa, em que o alocutor diz algo para seu alocutário, tendo como
objetivo a sustentação de uma conclusão. (MACHIAVELI, 2020, p. 6)

Desta forma, para que haja esse confronto de sentidos, faz-se necessário o
uso da argumentatividade, que se dá por meio de artifícios gramaticais como
preposições, conjunções e locuções para direcionar o sentido do seu destinatário.
Este, por sua vez, encontra-se na cena enunciativa, que é atravessada pela
temporalização do acontecimento, ou seja, pelo contexto histórico-social no qual
esse indivíduo está inserido.
Como cena enunciativa, entendemos que a própria execução do exame se
dá como um acontecimento, pois eles encontram-se situados em uma
temporalidade que retoma ao passado e proporciona diversas interpretações de
acordo com a bagagem intelectual dos sujeitos expostos ao enunciado. Os sentidos
dos enunciados aqui analisados possuem uma intencionalidade, sendo construídos
através de uma argumentação e estratégias discursivas. De acordo com Custódia
Filho (2017) a construção colaborativa compõe toda situação comunicativa, até
mesmo nas assíncronas:
Quando pensamos em como pode ocorrer a construção colaborativa dos
referentes em comunicações assíncronas, ou seja, em situações nas quais
não é possível aos participantes agirem simultaneamente na construção do
texto, temos de admitir que o procedimento se dá de forma diferente, porque
são diferentes os objetivos por trás desse tipo de negociação. (CUSTÓDIO
FILHO, 2011 apud CUSTÓDIO FILHO, 2017, p. 66)

Ele prossegue falando das especificidades dessas comunicações:


Nas comunicações assíncronas, essa unidade consensual não pode ser
obtida no momento mesmo da interação do interlocutor com o texto, de
modo que a negociação ocorre na forma de antecipação do locutor em
relação ao(s) eventual(is) interlocutor(es). (CUSTÓDIO FILHO, 2017, p. 66)
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Ou seja, a negociação tem como finalidade atenuar os referentes ali expostos e


discutidos, colaborando para uma estabilização e, para isso, se utiliza da
argumentação a fim de induzir o leitor.
Temos que levar em conta que, apesar da cena enunciativa ocorrer de forma
assíncrona, os leitores possuem um tempo limitado para se chegar a resposta
correta, ou seja, a estabilização do referente. Deste modo, aspectos de cunho
psicológico acometem os receptores do texto e acreditamos que afetem a
construção do sentido. Ademais, outro fato externo que acaba por influenciar a
negociação de sentidos é a desigualdade no acesso à educação no país.

6. Análise das questões


A ideia proposta neste trabalho foi a de analisar o uso de determinadas
palavras para dirigir-se a um certo período histórico brasileiro trazendo assim três
termos para dirigir-se a essa fase, que foram: ditadura, regime e revolução. Todos
esses termos remetem apenas a um referente, localizado em um momento histórico.
Num aspecto mais analítico, é possível enxergar em questões do ENEM a
tentativa de uma escolha de palavras para formulação de enunciados sobre esse
tema, onde são descritos momentos de violência extrema e tensão em todos os
setores do país.
Falavam em fuzilamentos, em gente que era embarcada nos aviões militares
e atirada em alto-mar. Havia muita confusão. Sempre que há mudança
violenta de poder, a regra dos entendidos é sumir, evaporar-se, não se
expor, nos primeiros momentos da rebordosa, um sargento qualquer pode
decidir sobre um fuzilamento. Depois as coisas se organizam, até mesmo a
violência é estruturada, até mesmo o arbítrio. Mas quem, no meio tempo, foi
fuzilado, fuzilado fica. (Enem Libras 2017)

Nessa questão, em uma das modalidades do ENEM 2017, pode-se identificar que,
apesar de não serem usados os termos inicialmente mencionados, o sentido
termina por se ligar a eles quando se diz “Falavam em fuzilamentos, em gente que
era embarcada nos aviões militares e atirada em alto-mar.” E “um sargento qualquer
pode decidir sobre um fuzilamento. Depois as coisas se organizam, até mesmo a
violência é estruturada, até mesmo o arbítrio.” O leitor é diretamente encaminhado
para o conceito de ditadura, uma vez que o primeiro recorte da citação evidencia um
momento uma total violência e repressão, já o segundo corte termina por remeter a
uma total arbitrariedade e sobreposição das instâncias que comumente seriam
responsáveis pela aplicação da lei, com poder sobre tudo embasado na própria
vontade. Exatamente como um ditador, um déspota na imagem mais exata da
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definição desse conceito, na visão de Kant descrita por Japiassú e Marcondes


(conceito também citado em questão do ENEM PPL 2011), onde tais autores
consideram um déspota o chefe do Estado executa arbitrariamente as leis que ele
mesmo criou de forma arbitrária, que termina por sobrepor a vontade pública pela
sua própria, gerando inclusive a estruturação da violência mencionada no
enunciado.
Já quando se fala “Havia muita confusão. Sempre que há mudança violenta
de poder, a regra dos entendidos é sumir, evaporar-se, não se expor, nos primeiros
momentos da rebordosa” se evidencia o momento de tensão que estabelece relação
com o conceito revolução, que no aspecto político é essa total ruptura de um
modelo para instauração de outro de maneira abrupta e violenta.
Em Brasília, foram mais de cem mil pessoas saudando os campeões. A
seleção voou diretamente da Cidade do México para Brasília. Na festa da
vitória, Médici presenteou os jogadores com dinheiro e posou para os
fotógrafos com a taça Jules Rimet nas mãos. (...) para mudar a imagem do
governo e cristalizar, junto à opinião pública, a imagem de um país
vitorioso, alavancando campanhas que criavam o mito do “Brasil grande”
que “vai para frente”. (ENEM PPL 2011)

Já nessa questão do ENEM PPL 2011, existe a evidenciação de uma atitude


que, vista num contexto posterior, pode remeter ao termo mais brando e que menos
gera conflito em relação ao tema, a palavra regime. Uma vez que traz um momento
de total euforia em pleno momento de instauração de ditadura, se valendo da paixão
do brasileiro pelo esporte para trazer ao período que está se fazendo referência
uma imagem de avanço ordenado e conquista.

Considerações finais
O trabalho foi feito a fim de evidenciar a importância da semântica juntamente
com a recategorização, em evidência com o discurso, estudando assim, que a
estrutura de palavras e enunciados podem gerar um significado diversos
significados, a partir de seus posicionamentos dentro da estrutura. O processo a
qual se enuncia pode concluir num aparato cognitivo prévio.
Pudemos constatar que as questões se utilizam das estratégias do Domínio
Semântico da Determinação (DSD) ao usarem da reescrituração e da orientação
argumentativa, a fim de induzir o aluno a um referente específico a partir de um
mais abrangente, articulando os demais conhecimentos para se obter a resposta
correta.
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A busca desse referente nos leva em direção também à negociação de


sentidos, de forma que os objetos de discurso sejam reconhecidos por todos os
sujeitos presentes na cena enunciativa. Essa negociação almeja estabelecer um
consenso, mas, em alguns casos como este, ela é utilizada de forma ambígua, no
qual se faz necessário um aporte sintático e semântico dos estudantes.
Com a exposição dessas duas questões é possível chegar a conclusão de
que um termo é capaz de conter vários termos dentro de si, pois através de uma
linha de pensamento enunciados, que não citam de forma direta os termos
escolhidos para descrever tal momento da história do Brasil, podem remeter a esses
termos de forma quase que instantânea, a depender de como as palavras são
escolhidas e organizadas para construir o sentido.
Acreditamos que ao se pensar nas estratégias do DSD juntamente com a
negociação de sentidos, provoca uma reflexão sobre como se é trabalhado os
estudos semânticos na educação básica, onde se privilegia os estudos sintáticos e
morfológicos, deixando de lado os estudos acerca das estratégias de interpretação
de enunciados. De forma mais sucinta, o conteúdo de linguagens, no que tange à
nossa área de semântica, cobrado para o ingresso no ensino superior não condiz,
muitas vezes, com o que de fato é lecionado nas salas de aula.

Referências

CUSTÓDIO FILHO, Valdinar. Múltiplos fatores, distintas interações: esmiuçando


o caráter heterogêneo da referenciação. 330p. Tese (Doutorado em Linguística).
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011.

CUSTÓDIO FILHO, Valdinar. Rediscutindo o princípio de construção negociada


dos objetos de discurso. Revista de Letras, Fortaleza: UFC, n° 36, v. 2, jul-dez
2017, p.63-77.

DE SOUZA, Wellington Gomes; BEZERRA, Lidiane de Morais Diógenes. A


RECATEGORIZAÇÃO EM TEXTOS DIGITAIS: UMA ANÁLISE DA NEGOCIAÇÃO
DE SENTIDOS. Macabéa-Revista Eletrônica do Netlli, v. 9, n. 4, p. 1-17, 2020.
GUIMARÃES, Eduardo. Espaço de enunciação, cena enunciativa, designação.
Fragmentum, n. 40, p. 49-68, 2014.

KANT, I. Despotismo. In: JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de


Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

___. Semântica do Acontecimento. Campinas: Pontes, 2002.


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MACHIAVELI, Gabriel Reis Moraes. ANÁLISE EM SEMÂNTICA DO


ACONTECIMENTO: Ditadura Militar no livro didático. Revelli, Inhumas, v. 12,
2020.

NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. 1° edição. São


Paulo: Contexto, 2014.

ORLANDI. Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Pontes


Editores, Campinas, SP, 12ª Edição, 2015.

Projeto Agatha. Disponível em <


https://www.projetoagathaedu.com.br/questoes-enem/historia/republica/ditadura-milit
ar.php > Acesso em: 24 de março de 2023.

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