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Os Ideais e os gruposi
Antonio Pinto de Oliveira Netoii

Texto freudiano que consolida sua vocação clássica,


comemora em 2021 cem anos de existência, e segundo o
editor inglês James Strachey, a idéia sobre o tema ocorreu
a Freud durante a primavera de 1919.
Escrito no período entre guerras e em meio ao
início da ascensão de líderes de massa, é dividido em 12
capítulos, em um deles, “estar amando e hipnose” Freud
assim escreve: “a constituição libidinal dos grupos se dá
por um certo número de pessoas que colocam um só e
mesmo objeto no lugar de seu ideal do ego, e, como
resultado, se identificam uns com os outros em seu ego. iii ”
Em tempos de Brasil hoje, cito Lacan em texto de Ana
Costa: “Uma das formas sociais de encarnar algo que
funcione como totalidade se dá pela pantomima
(representação de uma história exclusivamente através de
gestos, expressões faciais e movimentos, esp. no drama ou
na dança.). Lacan situou no bigode de Hitler um traço de
totalidade hipnótica. Por meio dele se conduziram as
massas na atuação de um fantasma em comum, que
concedeu na eliminação do outro como resto do discurso.
Assim, a pantomima pode ser essa pequena besteira
guindada a um traço que encarna a ilusão de totalidade...”
E continua “...É um efeito do que podemos nomear como
posição cínica em relação ao saber, na clássica afirmação:
“eu sei, mas mesmo assim. Esse “eu” que diz “sei”
reconhece que o traço que o sustenta depende da
pantomima, então ele busca brandi-lo à exaustão, porque
faz seguidores. Isso porque lá onde o traço torna-se índice
de fascínio, na medida em que nada parece encobrir, serve
para acalentar a ilusão de que nada falta. ”iv
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Retomando Freud: “A relação com o líder e com os


demais membros do grupo é de natureza libidinal, ou seja,
cada indivíduo está libidinalmente ligado ao líder e aos
outros indivíduos do grupo. No entanto é precisamente a
inibição ou a dessexualização desses impulsos sexuais que
torna efetivo os laços entre as pessoas.v ”
Creio que todos aqui já assistiram um clip da música
do Pink Floyd, Another Brick in the Wall, onde um a um vão
caindo em um imenso moedor de carnes: vão virar
salsichas... pois então, nas leituras preparatórias para o
presente trabalho o autor foi atraído, afetado pelas
articulações do tema com as questões do eu ideal e ideal
do eu que acabaram por subsumir o presente escrito.
Entre outras, uma pergunta se sobressaiu: será um grupo
regido pelo eu ideal em curto circuito com o ideal de eu?
Mesmo em seus caprichos, parodiando Bob Dylan: the
answer my friend is blowin in the words, “a resposta meu
amigo, está soprando nas palavras...” Nas palavras
articuladas por Freud e por Lacan.
Texto no qual Freud “...desfaz a oposição do senso
comum, entre ‘psicologia’ individual e social ao propor que
é justamente do laço afetivo entre o sujeito e o grupo que
se constitui o aparelho psíquico.” Portanto, o sujeito da
psicanálise é um ser social.”vi A partir dessa perspectiva
pode-se afirmar que as relações que participam da
construção do sujeito são transferíveis para as situações
grupais, relacionadas com tudo aquilo que pode ser
abrangido pela palavra “amor”, em Freud nomeado de
libido. A essência do grupo também é constituída pelos
laços afetivos entre os seus membros, possível através do
investimento libidinal com os outros que é o limite para o
narcisismo. “Narcisismo que em Psicologia das Massas e
Análise do Eu, surge apresentado sob uma perspectiva até
então inédita na obra freudiana, em uma análise dirigida à
formação do laço social.”vii
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No texto Introdução ao Narcisismo, Freud (2004)


levanta uma questão: por que a vida psíquica é forçada a
ultrapassar as fronteiras do narcisismo e investir a libido
nos objetos? Sua resposta apoia-se na perspectiva
econômica: se o investimento libidinal no eu torna-se
excessivo, ocorre o desprazer como expressão de maior
tensão. Ele compara esse processo aos versos do poeta
alemão Heinrich Heine sobre a criação do mundo: “Foi a
doença que causou/Meu ímpeto para criação;/E criando
pude ficar são, / E criar foi que me salvou.”
Esta questão – espinhosa - do afastamento do eu ideal
e passagem ao ideal do eu que está no cerne deste
trabalho é assim articulada por Freud: “...apenas uma parte
da libido é investida nos objetos, enquanto a outra
permanece direcionada ao eu, como em uma balança.” O
que é feito, então, dessa libido que originalmente se
direcionava ao eu e não foi enviada aos objetos, quando
uma suposta completude e perfeição infantis se esvaem?”
Para responder à pergunta, Freud (2004) afirma que
“... o sujeito erige em si um ideal, para onde se dirige o
amor antes desfrutado pelo eu infantil (e real). Incapaz de
renunciar à satisfação já desfrutada, o ser humano tenta
recuperá-la sob a forma de um eu ideal: "Assim, o que o
ser humano projeta diante de si como seu ideal é o
substituto do narcisismo perdido de sua infância, durante a
qual ele mesmo era seu próprio ideal". viii
A observação do ideal do eu em relação ao eu ideal o
faz afastar os impulsos que contradizem o narcisismo.
Freud demonstra que o agir do grupo (da massa) se
caracteriza pela dissolução da identidade de cada um,
devido à identificação horizontal entre seus participantes,
assim como uma identificação vertical com o líder, cuja
figura é introjetada, ocupando o lugar do ideal do eu de
cada um dos integrantes do grupo. A massa, assim, age
como uma unidade viva, seguindo docilmente o líder, sendo
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este representativo da figura paterna idealizada. (Pai da


horda?)
A partir de Freud, Lacan também estabelece uma
distinção entre o {eu ideal – i (a) –} e o {ideal do eu – I
(A)}. O primeiro, cujo exemplar inaugural é a imagem do
corpo no espelho, consiste na matriz de identificação
primária. O segundo, que aparece embrionariamente como
a instância que referenda para a criança sua imagem
especular como objeto do desejo do Outro, consiste na
matriz de identificação secundária.ix A questão pode ser
recolocada em termos lacanianos: o grupo seria um curto
circuito entre o i (a) e o (I) A?
O eu ideal, efeito da projeção imaginária, corresponde
à imagem idealizada de si. Já o ideal do eu, resultado da
introjeção simbólica, é o modelo que serve de parâmetro a
essa idealização e é sustentado por um traço - einziger
zug, traço “unário”, que é da ordem da insígnia,
intermediário entre o signo e o significante. Representa
aquilo graças ao que o sujeito rearticula a satisfação
narcísica perdida, ou seja, comporta um ideal de
onipotência)x O traço unário surge no lugar do apagamento
do objeto, sendo assim um traço distintivo, de pura
diferença, que marca a divisão do sujeito na própria
linguagem, onde algo que diz respeito ao objeto (das ding)
se perde.
O ideal do eu segundo Lacan comparecerá à análise
através do amor de transferência, efeito do sujeito suposto
saber, e que bem diz da ilusão amorosa, centrando a
questão no obscurecimento da falta que o amor promove:
“Ao persuadir o outro de que ele tem o que nos pode
completar, nós nos garantimos de poder continuar a
desconhecer precisamente aquilo que nos falta, [o que] faz
surgir a dimensão do amor”xi
Assim, vale ressaltar, a transferência, ao se referir ao
ideal do eu, diz do registro simbólico, do amor de ligação,
aquele que pretende do Outro um traço ou significação que
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diga do sujeito amável à luz do ideal, em razão de portar as


insígnias paternas.
“Com isso, Lacan esclarece que a constituição da
transferência é tributária da suposição de que o analista
sabe/detém sobre os traços que nominam o sujeito. Traços
que lhe permitiriam se contar, assim como os traços
paternos que lhe permitem se situar diante do ideal,
inclusive sexuadamente.
Esta é a proposta ética de Lacan para a psicanálise em
intensão. O fim de uma análise não é a promoção de um
novo Ideal do eu, a partir de um processo identificatório,
mas, pelo contrário, permite que deste lugar o sujeito seja
destituído e que possa aparecer na sua diferença, uma vez
que o desejo mantém o seu caráter de enigma. ”xii
Se no início deste escrito está uma afirmação de Freud
do capitulo “estar amando e hipnose”, do texto “Psicologia
das massas...”, para concluir, a afirmação de Lacan de que,
dentre outros aspectos, o que ele chama de “mola
fundamental da operação analítica é a manutenção da
distância entre o I e o a” (p. 258). “Se a transferência é o
que, da pulsão, desvia a demanda, o desejo do analista é
aquilo que a traz ali de volta. E, por essa via, ele isola o
objeto a e o coloca à maior distância do I (ideal) que ele, o
analista, é chamado pelo sujeito a encarnar. É dessa
idealização que o analista tem que tombar para ser o
suporte do a separador, na medida em que seu desejo lhe
permite, numa hipótese às avessas, encarnar, ele, o
hipnotizado.xiii
i
Trabalho apresentado na I Jornada do Núcleo Lavras do LA/EP – “O Social na clínica do sujeito: 100 anos de Psicologia
da Massas e Análise do Eu” em 30/10/2021
ii
Membro do LA/EP
iii
Freud S. 1921\1976, pag.147
iv
Ana Costa - Considerações sobre a posição cínica 2004, pag.112
v
Freud S. 1921/1967
vi
Freud S. Volume 15, pag. 14 Companhia da Letras
vii
Idem
viii

ix
ASTRO, J. C. L. Império das imagens e fluidez das identificações. Flash -
Boletim Eletrônico do VII ENAPOL, São Paulo, n. 10, agosto de 2015.
x
Millot 1988 p.30 citado em “O feminino e o final de análise: vicissitudes do ideal do eu no trabalho de uma análise. ”
Lúcia Alves Mees e Maria Cristina Poli Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.
XI (LACAN, 1964/1985, p. 128).

XII Rinaldi Dóris – Ética do desejo: da psicanálise em intensão à psicanalise em extensão.

XIII O desejo do psicanalista e sua implicação na transferência segundo o ensino de Lacan Júlio Eduardo de CastroI; Ilka Franco FerrariII -
Universidade Federal de São João del Rei, São João del Rei, MG, Brasil Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

Bibliografia:
Jacques O Seminário Livro 6, O desejo e sua interpretação

Jacques O Seminário Livro 8, A transferência

Jacques O Seminário Livro 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanalise

A atualidade dos conceitos freudianos de eu ideal, Ideal do eu e supereu - Andréa Di


Pietro Lewkovitch*; Angélica Bastos de Freitas Rachid Grimberg**Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, B

Referências sobre o Traço Unário


“O I de ideal do eu, segue ele, refere-se ao traço unário - o einziger Zug
proposto por Freud em Psicologia de grupo e análise do eu (1921/1976) , o
qual “muito curiosamente aliás [...] toma o modelo do pai anterior ao
investimento libidinoso mesmo - tempo mítico certamente” (LACAN,
1964/1985, p. 242), ou ainda, que é o “nascimento da possibilidade, e vocês
terão o traço unário, que, por preencher a marca invisível que o sujeito recebe
do significante, aliena esse sujeito na identificação primeira que forma o ideal
do eu” (LACAN, 1960/1998, p. 822). Em outro momento, ele acrescenta:
É o campo do Outro que determina a função do traço unário, no que com ele
se inaugura um tempo maior da identificação na tópica então desenvolvida por
Freud - a saber, a idealização, o ideal do eu. Desse significante primeiro, eu
lhes mostrei os traços no osso primitivo que o caçador põe um entalhe e conta
o número das vezes que faz mosca. ” (LACAN, 1964/1985, p. 242). ”

“Vale assinalar que, embora Lacan retire de Freud a referência ao traço unário
e ao ideal do eu, o que cada um destes autores põe em relevo é diferente. O
que interessava a Freud era o mecanismo da formação da massa (do grupo) e,
a partir da noção de libido, localizar dois efeitos dela: a existência do líder e a
ligação de uns indivíduos com outros.
Para Lacan, diferentemente, interessa a marca do significante, aquela que
permite a contagem de um sujeito entre outros, como parte de um conjunto, e
sua referência à função fálica e suas insígnias. ”

“A identificação ao traço inscreve o nome tanto o nome próprio como a


possibilidade de nominar, já a identificação ao falo refere à identificação
sexuada masculina, por efeito da “escolha” diante do pai possuidor do falo.
Identificar-se a ele é também referendar o ideal do eu incluído na identificação
com as insígnias paternas. ”

xi

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