Você está na página 1de 35

EIN HEISSER SCHREI

Por Klown e Anon

Dia I

Neve. Há neve por todos os lados, uma imensidão branca que se


espalha por todo o plano que a visão pudesse alcançar, desaparecendo em
pontos alvos no horizonte. Os pequenos flocos caem com graça, coisa comum
daquela época do ano e que já não despertaria muito interesse em quem
passasse. Este provavelmente estaria mais preocupado com chegar à sua
casa bem aquecida e descansar sob a luz de uma lareira quente. Até lá, teria
de enfrentar o clima gélido que se espalha pelo lado de fora.
O vento bate com força nas árvores sem folhas que povoam a região
próxima. Esta é um composto de pequenos e fofos amontoados de neve e
algumas árvores esparsas, hibernando. Houvera vegetação, mas esta sempre
vinha a desaparecer por esta época do ano, inverno, quando as nevascas
começavam. A região é propensa a congelar qualquer um que passe perto, não
é muito perto do Equador, mas o inverno era uma praga em especial.
Isso não parece afetar, entretanto, o garoto que está deitado sob a
sombra de uma das árvores. Os cabelos negros caem sobre a sua face agitada
e já marcada pela alimentação escassa. Não pôde comer muito bem, fugindo
para sobreviver. Suspira. No momento, ajeita um fuzil que está pousado em
seu colo. Encaixa ali, limpa aqui, calibra ali. A caça estará boa, espera, e
finalmente poderá saciar um pouco do que tem sofrendo. Fome. Fome, fome,
fome. Será bom achar alguma coisa, um veado, ou seja lá que tipo de animal
se esconde pelas redondezas na época. Comeria, e seguiria adiante. Até
chegar a seu destino. E tudo ficaria bem, por um tempo.
Não.
O fuzil está pronto. Hora da caçada.
Em contraste, quarenta anos depois, um homem é arrastado pelo
corredor escuro de um presídio. Uma cadeia de alto calibre de segurança,
povoada por centenas de criminosos de alto calibre. Assassinos, estupradores,
criminosos de guerra, feitores de crimes contra a humanidade em si, meliantes
variados podem ser encontrados dentro das celas, fazendo de seus colegas
escravos sexuais ou lendo um livro em paz, para variar.
É um lugar grande. Do lado de fora, quem visse a cadeia poderia
confundi-la com uma fortaleza, e há quem diga que já o havia sido. Altas
paredes moldadas da rocha escura e castigadas pelo mofo e tempo. Os
corredores são escuros, iluminados apenas por fracas lâmpadas
incandescentes, amareladas e velhas. O esquema de iluminação dá à cadeia
um macabro visual de penumbra, talvez intencional. Intimidador para alguns,
até mesmo para alguns funcionários.
Barulhos podem ser ouvidos, ruídos fracos, mas estes são ofuscados
pelo constante tilintar das correntes do prisioneiro sendo levado sob a custódia
de dois seguranças. O homem está com as mãos presas frente ao corpo por
algemas pesadas, de aço escuro e que machuca suas mãos. Seus pulsos
estão formando crostas nas feridas causadas pelos maus tratos, o constante
bate-bate da algema contra a pele, esfolando-o e deixando em carne viva.
Suas pernas, similarmente, atadas por grilhões, de modo que não pudesse
correr ou machucar alguém. Seus sapatos gastos, de couro velho, estão
rasgados nas postas, de onde pode ver-se as pontas de seus dedos.
Apesar de toda a segurança, o homem não tem um aspecto muito
ameaçador. É velho, aparenta ter entre sessenta e setenta anos de idade,
denunciável pelas inúmeras rugas em seu rosto e as marcas acentuadas de
expressão, que denunciam um homem que costuma manter um perfil sério. Os
cabelos brancos, lisos porém bagunçados, estão ficando ralos, e não demorara
muito para que começassem a atingir o estado de calvície, apesar de ele ainda
ter um tamanho razoável, de modo que cabelo ainda cai sobre a testa
enrugada. Sua cabeça está caída, curvada para a frente, em uma posição de
derrota, seus olhos claros e verdes conotando uma vontade imensa de não
estar naquela situação.
Talvez pudesse fugir, bater com a algema em um dos seguranças e
roubar sua arma, chutar as bolas do outro e sair mancando em passos curtos
para a liberdade. Até chegar ao pátio, aonde seria mais do que provavelmente
fuzilado pelos homens de plantão. Valeria a diversão, valeria a aventura, ao
menos. Fermenta pensamentos do gênero em sua mente, alheio aos dois
homens que o ladeavam.
Os seguranças que o acompanham, bem armados com suas respectivas
pistolas, guardadas nos coldres, avistam a porta no final do corredor obscuro.
Não se sentem confortáveis trabalhando naquele ambiente, mesmo sendo
ambos altos e robustos como armários. É simplesmente desconfortável, e lhes
admira que a mulher por trás da porta conseguisse trabalhar ali todos os dias,
mantendo a compostura. Não é o trabalho deles, entretanto, ponderar os
pormenores das mentes dos outros por ali.
É o dela.
O segurança mais alto – com uma altura chegando próximo dos dois
metros – abre a porta, e o ambiente do interior do cômodo lhe parece muito
mais agradável do que o corredor com cheiro de mofo no qual estava. É um
ambiente simples, com paredes brancas bem cuidadas e pisos minimalistas,
branco básico. Uma escrivaninha já velha encontra-se no canto da sala com
duas cadeiras, uma de cada lado.
Na de trás, uma cadeira de costas altas, uma mulher de aparência rígida
toma uma xícara de café. Possui um típico penteado em coque e o rosto era
limpo, apesar das primeiras rugas estarem aparecendo para denunciar sua
idade. Algo em torno dos quarenta, talvez, o segurança não sabe dizer. Ela não
possui um semblante muito amigável, até ligeiramente intimidador.
Ou talvez ele simplesmente não goste da cara de psiquiatras.
O outro segurança entra, empurrando consigo o prisioneiro. Este não
parece nem um pouco mais convidativo. O tal levanta a cabeça, analisando o
consultório com olhos rápidos. Não é... agradável, talvez montado com um ar
intimidador. Mas ele não se intimida. Está pronto.
A mulher acena para os seguranças, que deixam o cômodo, voltando
para o corredor ainda mais tenso e de volta para seus postos, deixando apenas
o prisioneiro e a psiquiatra dentro da sala. O trabalho deles estava acabado por
ali.
O prisioneiro aproxima-se da mulher, ainda preso pelos pulsos e
tornozelos, andando em passadas rápidas. È visível que manca da perna
esquerda, um ferimento já antigo do qual não gosta de se lembrar. Chega à
mesa, mas não se senta, preferindo analisar o que há sobre a escrivaninha.
Uma moldura de foto, virada na outra direção, de modo o qual o prisioneiro não
conseguiu identificar as pessoas nela presentes. Canetas, papéis, talvez até
sua ficha, não estava interessado em ler, coisas normais de uma psiquiatra,
julga. E uma plaqueta, um pouco “clichê”, com as gravuras “Dra. Letunov”.
Russo, supõe. Vira o rosto para a psiquiatra, esperando alguma reação. Algo
inconsciente, talvez um mero instinto, lhe impede de gostar do que está vendo.
Talvez o jeito com que ela lê os papéis, talvez sua mera expressão. O homem
algemado está determinado a desgostar da psiquiatra.
A Dra Letunov, por sua vez, parece absorta na leitura de um documento.
O farfalhar dos papéis é audível quando o coloca na mesa e dá uma olhada
rápida para seu novo paciente. Não muito impressionada, volta a olhar para o
documento – uma ficha, pode-se ver.
– Hermann Wahnsinn? – diz a psiquiatra, em uma voz grave e baixa.
Não gosta da voz dela, soa arrogante, soa metida, soa como se estivesse
tentando soar intimidadora. Não gosta.
Não gosta.
– Batizado como “Van Sinn”, na verdade, querida. – o prisioneiro
responde, e um sorriso cínico lhe dança nos lábios. Apesar de não gostar da
doutora, de sua voz e de qualquer aspecto de sua pessoa, adora o novo modo
como seu nome é grafado, depois de tudo o que acontecera. Remete-lhe aos
bons tempos.
A psiquiatra dá mais uma olhada em Hermann, como se quisesse gravar
seu rosto. Está coberto por rugas, imundície e hematomas. Não muito diferente
do normal, não naquele presídio ou em algum outro. Mas o sorriso falso é
irritante, irritante como o inferno. Sua entonação de voz igualmente cínica lhe
adianta que não gostará de trabalhar com ele.
Não gosta dos cínicos.
Mas teria escolha?
– Prazer em conhecê-lo, senhor Wahnsinn – faz questão de pronunciar o
nome deste modo, como que para irritá-lo – Sente-se. Não há o que fazer de
pé.
Ao dizer isso, aponta a cadeira com a mão direita e volta a ler a ficha do
paciente. Hermann “Wahnsinn” Van Sinn, setenta e dois anos. Ao vê-lo sentar,
aponta para a garrafa térmica ao seu lado.
– Sinta-se em casa. Quer café? – franze as sobrancelhas ao vê-lo
recusar com um aceno de cabeça impaciente. – Que seja, então. Vamos
começar, podemos? O que lhe incomoda?
– Nada. – diz Hermann, após um pequeno tempo de pensamento, no
qual coloca as mãos no queixo e simula reflexão – Muito pelo contrário, me
sinto muito bem agora.
– Te trouxeram para cá por algum motivo, senhor Wahnsinn. – diz em
um tom entediado, de quem não está levando a sério. Este tipo de atitude
apática irrita Hermann. Ela é chata, irritante.
Hngh.
– Talvez porque algo incomode o diretor. – diz em um tom igualmente
apático. Este é um jogo de dois - Não a mim.
– Então... – pondera – “me sinto melhor agora”. O que te incomodava
antes?
– Meu companheiro de cela – responde, após uma pausa para bocejar –
Ele vivia me torrando o saco e eu dei um fim nele com o metal do beliche.
Agora ele calou a boca.
A Dra. Gertruda Letunov anota algo em sua prancheta. Não parece
satisfeita com a resposta. Muito menos com o paciente.
– Isso é preocupante.
– Se você diz. – o velho não parece estar interessado na conversa. Oh,
entediante, oh, tédio. Dormir, que tal?
Podíamos dormir e acabar com essa baboseira. Porra, está com sono.
Não é sempre que pode ter uma noite em paz depois de executar alguém em
sua cela. Os guardas não lhe deixam dormir em paz já há dois dias.
Sono.
– Ok. Então vamos passar para outra pergunta. Se o seu nome é Van
Sinn, por que lhe apelidaram Wahnsinn1?
Ele solta uma risada, como se esperasse por uma pergunta do gênero.
Responde mexendo os pulsos machucados dentro das algemas e olhando para
as tais, sem se virar para a psiquiatra.
– Sabe, fui preso por meus “crimes de guerra”. Quando eu estava
trabalhando pelo Reich, como oficial da Schutzstaffel, cometi alguns atos que
algumas pessoas vieram a considerar... atrocidades. Então começaram a me

1
Wahnsinn, “Insanidade” em alemão, trocadilho com o sobrenome de Hermann,
“Van Sinn” (N. do E.)
chamar assim, para inspirar medo em quem caísse em minhas mãos. Eu gostei
do apelido.
– Que tipo de atrocidades o senhor cometia?
– Ah, poupe-me disso. Já tive que me confessar para os padres e para
os guardas, foda-se. Sabe, o básico, assassinato, mutilação, tortura, esse tipo
de coisa que todo mundo já está cansado de ouvir que aconteceu pelas mãos
dos nazistas. – diz Hermann, cansado, olhando agora para o teto enquanto
fala. Ainda evita olhar no rosto da psiquiatra. Medo?
Ou ela é só feia demais mesmo.
– E por que você fez isso?
Hermann não responde. Continua olhando para o teto, a cabeça
recostada na cadeira. Sono.
– Responda-me, senhor Wahnsinn.
– Estou com sono. – ele vira-se para a psiquiatra – Acho que aceito
aquele café.
– Pode pegar – acena em direção a garrafa térmica, sorrindo. O velho
responde estendendo as mãos algemadas. Ela é burra?
– Não posso pegar, estou preso.
– Tenho certeza de que o senhor consegue pegar mesmo assim. – ela é
irritante. Muito irritante, e Hermann sente-se como sofrendo um abuso. Já está
acostumado, entretanto.
Não recebe bons tratamentos dos guardas.
– Eu tenho setenta e dois anos. Não estou bom dos ossos. Seja uma
boa menina e pegue uma xícara para mim, sim?
– Parece lúcido o bastante para alguém tão debilitado.
– Mas estou com sono.
– E eu, recostada.
Sente uma súbita vontade de acertar o rosto da mulher de coque com
suas algemas, mas refreia o ímpeto. Deve controlar-se. Fechou os olhos.
Por enquanto. Por enquanto.
– Responda-me, senhor Wahnsinn. Por que matava as pessoas?
Ela surpreende-se ao ouvir roncos vindos do velho à sua frente.
O filho da puta cochilou.
Dá um chute fraco na canela do prisioneiro, impaciente.
– Responda-me. – diz, servera.
– Adoraria... mas estou com sono.
– Então sirva-se de café.
Mais uma vez, o ímpeto de raiva quase domina Hermann. Não, não
pode jogar a garrafa na cabeça dela. Não, controle-se. Porra. Pelo menos um
insulto, vamos.
– Pegue o café para mim. Ou está com as mãos sujas de tanto se
masturbar, mulher?
– Não preciso disso. – ela permanece impassível. Odeia pessoas
impassíveis.
– É frígida, então?
– Mas é claro. Completamente assexual. Meus dois filhos vieram da
cegonha.
– Ah, é casada? – ele parece mais interessado. Talvez conseguisse
manter a conversa o suficiente para extrair mais alguma coisa do filho da mãe.
Vira o porta-retratos que conserva em cima da escrivaninha. Há a foto de duas
crianças, de cabelos ruivos e castanhos. Há a presença da mesma na foto e
um homem alto, ligeiramente forte, de cabelos longos e óculos. Parece um
hippie.
– Este é o seu marido? – aponta para o hippie, sorrindo.
– Sim. – ela não demonstra emoções na resposta. Hermann está ficando
realmente zangado, mas prefere não deixar transparecer. Ela terá o que
merece, pensa.
– Como se conheceram?
– Ele era o meu paciente.
– Ah, ele é louco? Isso explica muita coisa. – dá uma risada, seca e
rasgada como a sua voz prejudicada pela idade. Tosse um pouco em
decorrência do fôlego. A psiquiatra suspira, cansada.
– Certo, senhor Wahnsinn. Vou pegar o seu café.
E o faz, para a surpresa de Hermann. Enche duas xícaras de café e as
coloca nas duas extremidades da mesa, uma para si própria. O nazista pega a
sua com dificuldade e bebe. Quente e escuro, como gosta, sem açúcar ou
adoçante.
Só o puro e negro amargo.
– Agora pode me contar por que fazia o que fazia?
Suspira. Ok.
– É interessante. Já matou alguém? Digo, devagar. Elas ficam alteradas,
e é sempre diferente como reagem a perspectiva da morte iminente.... –
começa a olhar para o vazio, talvez em devaneios, fazendo pausas enquanto
fala – Algumas imploram pela morte rápida, outras pela vida. Uns começam a
gritar segredos ou desculpas para que fiquem vivos, sugerem informações das
quais não sabem, tudo para se salvar de sua execução. Um chegou a me falar
que era virgem e que eu ou poupasse. Nunca funciona, e é sempre divertido.
– O senhor é um psicopata. – diz Gertruda, anotando.
– Se você diz. – mais uma vez esta resposta. Não parece interessado.
Quer ir dormir na sua cela, arquitetar talvez um plano de fuga, ou ameaçar os
guardas de arrancar seus genitais com uma serra de pão – Já posso ir?
– Ainda não. – pausa – O senhor tem algum interesse em deixar estas
tendências de lado?
Wahnsinn encosta os cotovelos na mesa, gesticulando com o pouco
movimento que tem das mãos:
– Veja pela minha perspectiva. Não acho que tenho mais do que cinco
anos de vida, sociopata ou não. Estou condenado a umas vinte prisões
perpétuas, não sei nem como escapei da sentença de morte. Do que me
adiantaria deixar essas “tendências” de lado? Perda de tempo.
– Posso te tirar daqui quando estiver curado. Ou te mandar para a
cadeira elétrica. A escolha está nas minhas mãos dependendo do seu estado e
progresso, senhor Wahnsinn.
Os olhos do prisioneiro brilham, e a doutora finalmente parece um pouco
mais satisfeita. Pode tirá-lo dali, se ele se comportar e colaborar com calma e
treinamento. Este estilo não parece, entretanto, fazer o tipo do alemão, mas
sempre se surpreendeu com seus pacientes. Ou então, poderia apelar para um
tratamento mais violento. Não tem muita paciência, também, e o nazista parece
um homem difícil de lidar. É mais difícil quando eles são mais velhos.
Bem. Podem tentar.
Um baque metálico é ouvido. A porta está batendo, e os seguranças
altos que haviam trazido Hermann Wahnsinn estão de volta. A primeira sessão
está encerrada, constata Gertruda Letunov ao se despedir com um aceno do
velho prisioneiro, que perde o ar feliz que carregava consigo.
Até semana que vem, senhor Wahnsinn.
==========================================================

15/06/1985

Paciente: Hermann “Wahnsinn” Van Sinn

Idade: 72 anos

Crime: Crimes contra o Estado. Agressão; tortura; homicídio


de civis e prisioneiros de guerra; destruição de
propriedades sem justificativa militar ou necessidade
civil; deportação de prisioneiros e civis para campos de
concentração; nazismo. Crimes de guerra.

Motivo de requisição de tratamento: Homicídio brutal e


premeditado do companheiro de cela como possível
consequência de mente insana.

Familiares vivos de primeiro grau: Karolin Krause Wahnsinn


(cônjuge, 67 anos), Karl Wahnsinn (filho, 25 anos)

Resultados, parecer geral e recomendações:

O paciente não demonstra remorso pelas atrocidades que fez


em seus dias de trabalho para o Partido Nacional Socialista
dos Trabalhadores Alemães. Cita “assassinato, mutilação,
tortura etc” como o que cometeu. Age cinicamente, com a
intenção de fazer o ouvinte perder a paciência. Descreve a
sensação de matar alguém como “interessante”, parece
admirar os últimos momentos antes da morte e as mudanças
que eles trazem ao futuro morto, e gosta de se sentir no
poder absoluto. Diz que as preces nunca funcionavam e que
sempre matava suas vítimas.

Desconfio de transtorno de personalidade antissocial,


psicopatia. ICD-9 301.7. E de transtorno de personalidade
sádica. Porém, ele não demonstra interesses em mudar e
abandonar os velhos hábitos. Diz que não vale a pena.

Imagino que ele deva ser levado para uma instituição


especializada para melhor tratamento. Meu desejo é enviá-lo
para um GULag, mas creio que, caso consiga tratá-lo
devidamente e recuperá-lo, será um estudo de muito
rendimento para o entendimento de transtornos de
personalidade vistos em prisioneiros nazistas e traidores
em geral.
Aguardar duas semanas para tomar uma decisão de para onde
levá-lo. Tomar cuidado na escolha da instituição, pois não
o quero com a mente pior que já está, nem com o corpo mais
ferido do que já está. Quero-o são e salvo na medida do
possível.

Gertruda Mikhailovna Letunov

==========================================================
EIN HEISSER SCHREI
Por Klown e Anon

Dia II

O rapaz de cabelos pretos já se alimentou de sua caça. Não pôde


cozinhá-la direito, mas satisfez a fome voraz que fez as suas entranhas
gritarem no dia anterior. Refeição terminada, tomou o cuidado de desfazer a
fogueira antes que a noite raiasse, e tudo ficou bem.
No momento procura pelo abrigo no qual passará a noite. Não tem
certeza de quanto tempo durará vivo, andando por aquelas regiões geladas a
esmo, à procura de sua terra natal, antes que os inimigos finalmente o
alcancem. Não que tivesse cometido um crime excepcional, mas o rapaz
realmente não sabe se a fuga que realizou seria o suficiente para ter pessoas
atrás dele.
Está esperançoso de que conseguirá sair impune. Ele não é importante
o suficiente para ser caçado.
A pequena vila na qual o russo se encontra está bonita, apesar de
escura. A iluminação é escassa, provavelmente porque há muito não habitam
aquele local. As pequenas construções que pipocam à vista do rapaz parecem
a beira do desabamento, castigadas pelo tempo e desprovidas de alguém que
as cuidasse. Não, aqueles que lá moraram há muito foram embora. Talvez para
a própria Rússia, talvez para as redondezas mais próximas. Geladas.
O pequeno caçador caminha com o rifle em mãos pela neve fofa, com as
suas botas mal-cuidadas que havia roubado de seu antigo algoz. As botas
deixam uma marca sutil na neve, não perceptível a longa distância, mas tem de
tomar cuidado para o caso de estarem lhe rastreando.
Não, não é importante. Ele está a salvo. É o que pensa.
Olha de um pobre casebre para outro, procurando algo que não fosse
desabar pela próxima semana. Não gosta da idéia de ser esmagado pela
madeira podre enquanto dorme pacificamente abraçado em seu rifle e coberto
pelo seu poncho.
Seu querido poncho, seu melhor amigo e companheiro de longa data.
Suspira, e o hálito se condensa no ar, formando uma pequena nuvem de
vapor. Engraçado, sempre adora aquele efeito.
Aquela casa na esquina parece interessante. Não está tão apodrecida
quanto as outras, apresenta um estado razoável. O russo cogita ficar lá pelos
próximos dois, três dias, alimentando-se de veados até decidir seguir em frente
em sua epopéia pela Mãe Pátria.
Prestando atenção no caçador juvenil, o oficial esconde-se no topo da
torre próxima. Talvez tivesse sido usada para vigia contra ataques exteriores
antigamente, mas no momento não passa de um bando de madeira e pedra
projetando-se contra o céu com o tamanho suficiente para permitir um
esconderijo. O alemão está trajando roupas pesadas, porém discretas contra a
superfície branca da neve que cai pela superfície de todas as construções. Um
par de binóculos enfeita seu rosto, segurado pelas suas mãos, enquanto
observa o russo entrar no pequeno casebre, para dormir.
Ótimo, ele entrou. Está esperando aquele momento. Finalmente a caça
está à mão.
Hora de divertir-se.
Em contraste, um alemão condenado alimenta-se em sua cela. Está na
solitária, o que considera muito mais prático do que ter de dividir a cela com
algum retardado qualquer. Colocaram-no ali porque matara seu último parceiro,
o tal Schneider, que digamos de passagem era um cara insuportável. Hermann
Wahnsinn está muito mais feliz em sua nova cela, apesar de estar planejando
sair dali logo.
Não está mais interessado na liberdade. Não, aos setenta e dois anos,
não acha que vai sobreviver o suficiente para sequer aproveitar uma golfada de
ar puro. Mais provável que morra antes que o tratamento acabe, ou quando
acabar sua capacidade física estará tão debilitada que não poderá aproveitar o
mundo como gostaria.
Então que se foda o tratamento. Trabalho demais para pouca
recompensa. Vamos ficar na cadeia, que tal? Também não. Chato demais, não
quer morrer como dezenas de pessoas morrem todos os dias, desconhecido e
anônimo, sem pessoas para chorarem a sua tumba.
Se irá morrer, irá levar gente consigo.
Muita gente.
Matutando pensamentos em sua cabeça potencialmente insana, mal
repara quando o segurança bate a sua porta. Toc, toc, som de metal, berro do
lado de fora. “Vamos, seu monstro.” O quê? É dia de jogar com a psiquiatra
outra vez?
Não gosta da Dra Letunov. Ela é detestável, arrogante. Merece a morte
mais do que muitos encarcerados naquele presídio, deve deixar crescer um
pouco de caráter antes de tentar julgar a mente alheia. Mas Hermann não pode
negar que acabou divertindo-se na última sessão, da semana anterior. É
engraçado assistir as reações dela a suas fábulas, e a consulta se tornará
imensamente interessante agora que lembra de um pequeno detalhe que pode
vir a afetá-la.
Um pequeno detalhe que lembrou-se ao ver a pequena plaqueta na
mesa dela. Será engraçado assistir seu rosto se contorcer quando a ela o
pequeno detalhe vier a tona.
Então, vamos lá. Levanta-se e coloca o corpo de frente a porta. O
guarda a abre e o algema com rapidez. O oficial não tem feições amigáveis,
mas um rosto severo, e Hermann lembra-se daquele cara em especial. Não
gosta dele, é um oficial particularmente cruel com os ex-nazistas.
O segurança o ladeia para fora da cela, e começa a guiá-lo para o
mesmo corredor da semana passada. Vamos ter mais uma hora de chatice e
diversão com a doutora Gertruda Letunov.
E lá está ela, com sua eterna expressão arrogante de que irá pisar na
cabeça de alguém, sentada em sua poltrona de costa alta e lendo seus
arquivos. O consultório está o mesmo da semana passada, com seu branco –
ligeiramente cegante – espalhado por todo o lugar e as cadeiras de sempre.
Mas um homem ocupa a cadeira. Um homem anormalmente alto com
cabelos arruivados e longos. Usa um par de óculos e tem o rosto pálido como
um fantasma, rosto este atravessado transversalmente por uma cicatriz.
Reconhece o homem como o marido da Dra Letunov. Está trajando um terno
branco que combina com a palidez de sua pele. E uma gravata azul.
Legalzinho.
O homem levanta-se ao notar a presença de Hermann, e seu rosto
demonstra uma expressão tímida enquanto ele coloca-se ao lado de sua
esposa, que não parece alterada pela chegada do paciente. Ele parece meio
desconfortável, como se não quisesse estar lá. Talvez não quisesse.
O alemão imagina o que ambos estariam discutindo antes de sua
chegada. Relacionamento? Ou seria uma sessão, para o caso do marido ainda
ser louco como quando eles se conheceram?
Não sabe, mas fica interessado. Sem cerimônias e sem palavras,
adianta-se manco e atado para a cadeira de seu lado da escrivaninha e senta-
se.
– Bom dia, senhor Wahnsinn – e assim começa mais uma hora ouvindo
este tom de voz estóico. Hngh.
– ‘Dia, doutora. Imagino que este – aponta para o homem agora
encostado no canto da sala – seja seu marido, é?
– Sim. Podemos começar?
– Claro. Antes, me conte o que o seu marido está fazendo por aqui? –
sorri, tentando parecer simpático e interessado.
– Se quiser, ele pode sair. Ele só parece não gostar de deixar um ex-
nazista condenado do seu feitio na mesma sala que eu, não é uma graça?
Hermann ri secamente. Está com medo de que ele vá machucá-la?
Bem, há fundamento. Vira o rosto para o homem com cara de hippie e
pergunta, encarando:
– Qual o seu nome, colega?
O homem franze as sobrancelhas, desconfortável. Parece assustado ao
ser dirigido a palavra. Ele ajeita os óculos e pigarreia. Sua mão está trêmula.
Responde em um tom firme, parecendo calculado.
– Victor. Rosenberg.
Hermann sorri. Divertido de se conversar, esse cara.
– Sofre do quê?
– Esquizofrenia. – responde no mesmo tom calculado
– Como conseguiu esse treco no rosto? – aponta para a cicatriz de
Rosenberg, ainda sorrindo.
– Um acidente. Envolveu um garfo e um garoto psicótico. – fala
abaixando o rosto e encarando o fundo da alma de Hermann. As sombras
fazem a cicatriz em seu rosto se pronunciar ainda mais claramente, dramático.
A psiquiatra dá um puxão em seu terno, como se dissesse para seu marido se
acalmar e parar de dramatizar.
– Entendo. Já matou alguém? – o alemão continua perguntando. Sente-
se O psiquiatra da situação. Victor parece demorar para responder.
– Já.
– O que achou da situação? – agora está interessado mesmo.
Rosenberg faz uma expressão de nojo, obviamente desconfortável com
as perguntas. Olha para sua esposa, que coloca-se a frente da situação,
recuperando o controle.
– Chega, senhor Wahnsinn – diz Gertruda, desconfortável – Vamos
partir para o que interessa aqui: a sua cura. Hoje farei mais uma série de
perguntas e conversaremos, para eu poder diagnosticar com precisão a sua
enfermidade.
Hermann acena com a cabeça, parando de sorrir. Acha que será
divertido lidar com Rosenberg caso cruzasse. Não tem muita fé de que
acontecerá, entretanto.
Não vai se demorar muito mais por ali.
– Sua esposa ainda está viva, senhor Wahnsinn?
Hm, ponto complicado.
– Sim, está. Não sei se ela gostaria de vir me ver.
– Por que não? – franze as sobrancelhas
– Ela cortou relações comigo depois de presenciar meu julgamento. –
diz, entediado.
– Bem, ela devia saber com que tipo estava se metendo quando casou
com um oficial nazista.
– Ela nunca soube o que eu fazia. Não misturo trabalho com família.
– Então escondeu dela? – a doutora indaga, interessada.
– Omiti.
– Escondeu. – constatou, anotando em sua prancheta.
– Se prefere por nesses termos – Hermann começa a irritar-se
novamente. Não gosta do tom autoritário pelo qual Letunov se dirige a ele. Tão
prepotente.
Ao menos nem todos os membros da família dela são assim.
– Acho que precisarei te encaminhar para um hospital psiquiátrico,
senhor Wahnsinn. – ao ouvir isso, Rosenberg faz uma careta de desgosto ou
medo. Hermann toma nota. – Mais uma vez, conte-me sobre a sua vida no
Reich. O que exatamente você fazia?
– Eu era oficial da Schutzstaffel, encarregado de tomar conta de campos
ou enviado em missões para execução, minhas favoritas.
– Sua motivação era matar os outros, então?
– Não exatamente, doutora. Eu gosto de subir na hierarquia. Matar era o
meu meio. Entenda que minha... “dedicação” ao serviço me fez ser bem visto
entre o alto escalão.
– E o que acontecia?
– Não era de uma posição muito alta, mas gozava de influência o
suficiente para poder escolher as missões para as quais seria designado aos
trinta anos. Optava por execuções.
A doutora pensa por um momento, enquanto anota mais. A caneta faz
um barulho irritante a ser arranhada contra o papel, e Hermann fica entediado.
Olha para o teto, admirando as lâmpadas que pendem alegres. Rosenberg não
parece se incomodar, imerso em sua própria mente esquizofrênica.
– Alguma execução que se destaque, senhor Wahnsinn? – pergunta a
doutora, tentando achar a real motivação por trás da matança de Hermann.
Ele está esperando por essa pergunta.
– Ah, sim. – sorri, após uma pausa – lembro-me de uma em especial.
==========================================================

22/06/1985

Paciente: Hermann “Wahnsinn” Van Sinn

Idade: 72 anos

Crime: Crimes contra o Estado. Agressão; tortura; homicídio


de civis e prisioneiros de guerra; destruição de
propriedades sem justificativa militar ou necessidade
civil; deportação de prisioneiros e civis para campos de
concentração; nazismo. Crimes de guerra.

Motivo de requisição de tratamento: Homicídio brutal e


premeditado do companheiro de cela como possível
consequência de mente insana.

Familiares vivos de primeiro grau: Karolin Krause Wahnsinn


(cônjuge, 67 anos), Karl Wahnsinn (filho, 25 anos)

Resultados, parecer geral e recomendações:

O paciente prossegue com a mesma atitude arrogante e


incrédula do tratamento. Realmente não parece gostar da
possibilidade de ser curado, e rejeita essa ideia. Será
difícil lidar com ele. Não posso ajudar quem não quer ser
ajudado – O tratamento necessita principalmente de força de
vontade do próprio enfermo. Não creio, porém, que seja um
caso perdido. Vou insistir até ele ceder. Afinal, é a única
coisa que possa ser feita.

O paciente parece não se importar com a sua situação atual,


o que é preocupante. Ele já está velho, claro, viveu
bastante e creio que morrer ou não de velhice ou pela
cadeira elétrica não vai mudar muita coisa. Essa falta de
motivação de viver se traduz na falta de interesse por
melhorar. Chamar sua esposa e filho para conversar sobre o
paciente, talvez ache lá uma razão ou motivo que possa ser
usado como motivação para receber o tratamento.

É um paciente difícil e possivelmente perigoso, mas não


creio que ele seja capaz de fazer muita coisa no momento.

Nota: O paciente pareceu interessado por Victor Rosenberg,


perguntando sobre sua enfermidade e sobre detalhes pessoais
de sua vida, como sobre a cicatriz em seu rosto ou se já
foi violento com outra pessoa. Creio que o princípio é o
mesmo dos homicídios: O paciente gosta de se sentir no
poder sobre outras pessoas. O complexo de superioridade
está claro, mas não chega ao ponto do paciente ter
desilusões de grandiosidade o que é algo bom, não sei se
suportaria um ex-nazista metido bipolar.

Gertruda Mikhailovna Letunov

==========================================================
EIN HEISSER SCHREI
Por Klown e Anon

Dia Final

Aleksandr Bulatovich Letunov, russo, vinte e três anos. Tem cabelos


pretos e lisos que se espalham pelo rosto mal-tratado pelos nazistas no campo
de concentração de onde havia escapado... já havia quanto tempo? Não sabe
dizer. Uma semana? Um mês? A noção de tempo pode ser distorcida quando
você está ocupado demais correndo pela sua vida, e Aleksandr já não sabe
dizer o quanto havia prosseguido. Mas sobrevive, e não seria tão cedo que os
alemães o pegariam.
Só sabe que está chegando à Rússia, é isso é bom. Sim, bom.
Lá pode conseguir abrigo, lá pode encontrar seus irmãos. Talvez,
quando a poeira assentar-se, poderia continuar a fazer mais tarde a única coisa
que sabe fazer: Matar. Com seu rifle, seu amado rifle, recuperado no campo.
E servindo o seu país. Ou não. Só matar. Não faz diferença. Carrega
consigo, também, o fuzil que roubara do senhor Krause no campo de
concentração. E o poncho, seu melhor amigo, que recuperou antes da
escapada. Está com algumas marcas de queimadura e corte no rosto, somado
aos hematomas deixados pelo senhor Krause durante sua estadia no campo.
Mas agora está tudo bem, está chegando a seu objetivo e arranjou uma
casa naquele vilarejo abandonado. Está dentro da casa, procurando por
qualquer coisa que possa ajudá-lo. Cobertas, combustível. Ótimo, pensa ao
achar dois tanques de combustível. Não pode ajudá-lo em muita coisa, a não
ser que ache algum tipo de veículo ou queira queimar todo aquele lugar abaixo.
E é lógico que não faria isso.
O jovem caçador ainda está satisfeito pela caça que capturara na noite
anterior. Aquela carne poderá mantê-lo por algum tempo, pelo menos até estar
organizado o suficiente para caçar novamente. Sairá da casa e caçará outro
animal desavisado. Manteria uma rotina, talvez por uma semana, até estar bem
alimentado novamente, com seus afazeres organizados. Vamos formar um
plano, para variar, não?
Senhor Krause disse que ele não sobreviveria mais do que uma semana
se não tivesse um plano. Já está foragido a um mês. Com um “plano” (planos,
pra que, eu me viro, senhor Krause, não vou morrer), conseguiria escapar.
Retornar ao seu país mãe. Sem obstáculos, ok?
Sinto muito. O jovem Aleksandr Letunov, em seus devaneios, não conta
com aquele que o havia caçado pela última semana. O alemão, que se
encontra no momento saindo da torre de vigia e dirigindo-se a casa, com o rifle
pendurado nas costas e seu revólver de confiança em mão, está ávido por
sangue. Por fogo. FOGO.
Mexe distraído no revólver, carregando-o enquanto é castigado pelo
vento e neve daquelas terras. Abaixa o capuz por um momento e desarruma os
próprios cabelos, loiros e claros, que o incomodam. Prossegue.
Os olhos verdes de Hermann Van Sinn, aquele que chamam de
Wahnsinn (mas que nome engraçado! hahaha) desde o ano anterior, observam
com desdém o casebre aonde se esconde o russo caçado. O alemão toma o
cuidado de não fazer barulho enquanto se aproxima, o que não apresenta
muita dificuldade. A neve fofa forra todo o terreno.
Hermann está satisfeito. Em breve, poderá retornar para a Alemanha e
contar a Karolin (Karolin, oh Karolin Krause, minha esposa, agora você pode
parar de chorar e em breve poderemos ter aquele filho!) que o trabalho foi
executado como maestria e que o algoz de seu cunhado já não está mais
naquele mundo. Wahnsinn geralmente não pegaria uma missão como aquelas.
Caçar um foragido e executá-lo antes que retornasse a sua terra de origem...
não. Não faz seu tipo. Mas sua esposa insistiu. Temos que agradar a patroa de
vez em quando, não, Hermann?
Aquele russo dentro do casebre havia matado no mês anterior o
cunhado de Hermann, cujo nome agora o alemão não se recorda. Lembra-se
do sobrenome, o mesmo de solteiro da sua mulher, “Krause”, mas não está
muito interessado. Não chegara a conhecer de fato a família de sua mulher,
não é uma pessoa que está acostumada com socializar.
Só quer dar um fim no moleque, talvez demorar um pouco. Assistir
enquanto o russo implora por vida. E então, ir para casa.
O revólver está pronto. Rodeia o casebre, devagar e silenciosamente.
Não quer denunciar a si mesmo e entrar pela porta da frente. Isso seria idiota,
duh. Algo mais sutil, como uma janela, deixaria o trabalho de incapacitar o
foragido com mais facilidade.
Ahá! Uma janela. Se um dia houvera um vidro por aquela abertura, há
muito este se desfez. A abertura é limpa, e graças a isso o cômodo está
forrado por um bocado de neve. Isso não incomoda o oficial, que pula em
silêncio para dentro da construção.
Escuro. Não consegue enxergar, mas já esperava por algo do tipo. Está
frio, assim como o exterior, ao contrário do que esperava. Aparentemente o
russo ainda não tomou nenhuma providência para deixar o lugar ao menos
habitável. Incompetência.
É de se esperar.
Não gosta de frio. O frio é ruim, o frio te fere e acaba com sua vontade
de viver. O fogo é infinitamente mais divertido, não? É bonito.
Sim, sim, o fogo é bonito. Quer tocar no fogo?
Consegue ouvir um barulho de ofegar, uma respiração pesada não muito
distante. Dá um passo devagar, evitando fazer barulho. Espera que as botas
acolchoadas façam o serviço, e não é desapontado. Ótimo, não denunciado,
continua a andar em direção ao ruído.
Seus olhos lentamente se adaptam a falta de luz, permitindo ao alemão
identificar melhor as formas ao seu redor. Há um buraco de porta, pelo qual
passa. Coloca a mão no bolso e sente o toque gelado de metal, o relevo em
forma de um felino se faz presente e reconforta o alemão. Seu isqueiro, seu
confiável isqueiro de estimação. Por tanto tempo o havia acompanhado,
aquecendo-lhe, iluminando.
E queimando.
Queimar é seu método favorito de execução. O fogo é lindo, o fogo é
atraente. Porém, aproxime-se demais do fogo, o desafie, e ele o queima, o
consome. Lembra-se de si próprio, modéstia a parte.
Ao queimá-los, pode ouvir os gritos, os berros de quem tem seu interior
consumido pelas chamas enquanto percebe que a morte é iminente. É
fascinante ouvir os condenados sentindo seus órgãos em brasa, liquefeitos
pelo calor fatal.
Oh, o fogo. O lindo fogo.
Tira o isqueiro do bolso, na mão direita, enquanto aponta o revólver com
a mão esquerda. É canhoto.
O russo está por ali.
Acende o isqueiro, com uma faísca indiscreta. As formas e cores de
Aleksandr Letunov surgem a sua frente, sentado no canto do cômodo abraçado
ao seu poncho. Nos segundos longos em que ambos se encaram, Hermann
consegue identificar todas as marcas na face do russo, que variam de uma
expressão de surpresa para uma de medo.
Substituída por uma de dor quando Wahnsinn aperta o gatilho. Com um
estrondo, consegue perceber uma parte do pé do russo que se desfaz na
explosão. Sangue espirra para os arredores, sujando a perna do russo e o
chão fedorento do casebre. Havia mirado para que ficasse impossibilitado de
se levantar, e parece funcionar bem. Aleksandr berra de dor e surpresa ao ser
atingido pelo projétil, substituído por um choramingar enquanto segura o que
sobra de seu pé. Hermann está satisfeito.
– Bom dia. – sorri, atirando no outro pé de Letunov. AH! Ele berra
novamente, e parece incapaz de responder. Não parece estar muito são,
balbuciando coisas sem nexo, perdendo os sentidos. O alemão espera
pacientemente enquanto os sentidos de Aleksandr se recuperam. O pequeno
fugitivo sabe que está fodido, que dali não passa. Estará bom para formar
alguma frase?
Murmura alguma coisa em russo.
Пожалуйста, оставьте меня в покое.2
– Não falo russo. – diz Hermann, ainda sorrindo. Chega próximo a
Letunov, com o isqueiro ainda em mãos, iluminando o trecho de cômodo entre
ambos. – Fala alemão?
– Um... pouco. P-por favor, senhor, se afaste. – recupera um tom mais
firme para a voz – Não quero espalhar suas entranhas pelo chão daqui.
Hermann ri. Este russo ainda acha que está em condições de ameaçá-
lo. O foragido ainda segura o fuzil. Wahnsinn dá um chute entre os braços de
Aleksandr, para que solte a arma. Não funciona.
– O que o senhor quer? – diz o jovem, incomodado, porém com incrível
compostura para quem está com os dois pés em frangalhos.
– Estou aqui para acertar as contas por você ter matado o oficial...
Krause, é isso? – lembra-se do nome do cunhado com dificuldade. – Ele era o
irmão da minha esposa. Qual seu nome, russo?
2
Por favor, me deixe em paz.
– Aleksandr Letunov, senhor. Por que pergunta? – Senhor. Aquele cara
é estranho, de fato. A maioria de seus prisioneiros costuma cuspir aos seus
pés ou insultar a sua mãe. Acha engraçada essa atitude diferenciada do
moleque, mas fica de olho no fuzil descarregado.
– Pergunto porque orgulho-me de anotar o nome de cada um que eu
executei – responde o nazista, sorrindo. O russo não parece reagir bem a
informação, olhando de um lado para o outro, agora com a certeza de que está
a beira da morte.
– Senhor, foi... aquilo foi um erro meu.
– Um erro seu? – ri novamente – É sempre um erro, sempre culpa de
outra pessoa, sempre não foi você que começou. Poupe as desculpas, guri.
– Mas foi assim. Fizemos um acordo.
Hermann chuta mais uma vez o russo, que dessa vez deixa o fuzil cair.
Pega o fuzil para si, colocando-o fora do alcance do rapaz, para garantir a
segurança enquanto cuida de seus afazeres. Ótimo.
– Conte-me tudo, temos tempo. – Hermann afasta-se, colocando a
mochila que carrega no chão. Abre-a, sem olhar para Aleksandr, e tira algumas
facas, lâminas afiadas e finas. Brilham em rubro a luz do fogo do isqueiro de
Wahnsinn.
– Eu pedi que ele... me deixasse andar no campo a custo de apanhar.
Éramos, hm, companheiros, de certa forma. Era um cara legal. Mas... nós
brigamos. Nos desentendemos. Não gosto de apanhar.
– Que pena. – Hermann sorri mais uma vez e dá um soco no rosto do
russo, possivelmente quebrando seu nariz. Seu rosto agora apresenta mais
hematomas do que outrora, e ele berra “Desgraçado!” enquanto estende a mão
para segurar o pulso de Hermann.
Um brilho prateado passa rapidamente pelos olhos de Aleksandr ao
estender o braço, e logo vê um corte profundo abraço pela extensão de seu
membro. A sua frente, a faca brilhante de Hermann agora goteja o sangue
Letunov. Retrai a mão boa, antiga companheira de aventuras. Agora não pode
mais atirar. Sente-se derrotado.
Oh o senhor Krause me avisou que isso aconteceria sabia que iam me
caçar iam me matar se eu tivesse matado alguém oh merda ele morreu e
agora eu morrerei também desculpe
.......
Vamos acabar com isso logo, que tal?
– Só me mate rápido. – diz Aleksandr, tentando manter a postura. Já
não sou mais o mesmo daquele campo. Eu não quero morrer..
– E qual seria a graça, aí? – sorri Hermann, desconsiderando
completamente. Não. Sem graça. Rápido, esfaqueia a perna do garoto, e a
retrai a vista da expressão de dor novamente. O rubro brilha a luz do isqueiro.
Sangue!
Quer ouvi-lo implorar. – É mais divertido fazer... devagar.
– Só... só quero uma morte rápida. – fala, respirando com dificuldade. A
dor é imensa, e sua perna agora apresenta um rombo. Não vai voltar a andar
tão cedo. Porra.
– Não quer viver? – pergunta Hermann, já não sorrindo. Ele não vai
pedir pela vida? Não vai implorar? Onde está a diversão, porra?
– Estou longe de casa, de meus companheiros, não posso mais atirar.
Matei a única pessoa que talvez fosse meu amigo, me arrependo e não vou
encontrar outro tão cedo.
– Então volte para casa e crie uma família, porra! – Hermann já não se
diverte mais. Se ele não quer viver, tudo vai abaixo.
– Está louco? – Hermann parece confuso com a acusação – Eu... é....
não gosto de mulheres. Nem de homens. Uh.
– Assexual? – ri uma risada seca que anos mais tarde seria ouvida pela
sobrinha de Aleksandr Letunov – Pena. Não é divertido. Então ok, vamos
acabar com isso logo.
O alemão pega os galões de combustível que o russo havia recolhido.
Balança o recipiente vermelho, sorrindo ao ouvir o combustível balançar, feliz,
em seu interior. O fogo já surgiria, fique tranquilo. Uma expressão de satisfação
surge em seu rosto ao ver os olhos do jovem se arregalando.
– Senhor... por favor, n-não faça isso. – está soando nervoso. Merda
merda merda merda.
– O quê? – volta a sorrir o nazista – Algum problema? Só vou acabar
com isso logo. Como você pediu.
Wahnsinn abre o galão rubro de gasolina e despeja pelo cômodo o
líquido cheiroso, um pouco no corredor e da sala pela qual havia entrado,
enquanto o russo formula uma resposta. Ele parece realmente nervoso agora.
Ótimo.
– E-eu não quero morrer queimado. Me mate com um tiro, por favor. Não
quero que meu corpo jamais seja encontrado. Não quero morrer devagar. Não
quero que enviem um carvão para meu pai na R-rússia.
O oficial termina de espalhar a gasolina pelo ambiente e aproxima-se
mais uma vez de Aleksandr, aproximando-se. Coloca a mão na garganta do
foragido. Ótimo, vamos acabar com isso. Estrangule. A mão do alemão para na
corrente que Letunov carrega no pescoço. Puxa com força, arrebentando a
dogtag. Balança a peça de metal com informações na frente do russo, lendo.
– “Aleksandr Letunov”, uh? Hm. Pode deixar, vão achar seu corpo com
isso aqui nele.
– P-por favor, não faça isso. Mate-me com um tiro. Por favor.
Sorri Hermann. Pega o segundo galão de combustível e o despeja
inteiramente sobre a cabeça de Aleksandr, que parece estar quase em
desespero, em contraste à impassibilidade que havia demonstrado até então.
Está coberto daquele líquido fedorento. Tremendo.
Ao terminar, Hermann o pega pelo poncho e o arrasta até fora da casa.
A dor de seus pés desfeitos é intensa e o russo não pode deixar de ganir de
dor ao entrarem em contato com o vento exterior mais uma vez.
– Dê uma última olhada na paisagem, Letunov – diz Wahnsinn,
satisfeito. – Alguma última coisa a dizer?
A paisagem está bonita. A neve já não cai. Os morros estão bonitos,
cobertos de branco. Está frio. O garoto suspira, sem o que dizer, e volta a
encarar o alemão. O desespero agora é visível em seus olhos.
– E-eu queria não ter matado o Konrad. Teria sido melhor assim. Mas
eu- não consegui evitar. Me desculpe.
Hermann acena com a cabeça, sem mudar a expressão. Está na hora.
Pega o isqueiro e o acende novamente. A chama parece mais insignificante no
exterior, em contraste com a branca neve que para de cair. O vento vai apagá-
la?
– Minha mulher vai ficar sabendo disso, Aleksandr. Te vejo do outro
lado.
Coloca o isqueiro em contato com as vestimentas do russo, que se
incendeia lentamente, e o joga com um empurrão para dentro da casa forrada
de combustível. Aleksandr tenta levantar-se, mas não consegue. Seus pés
estão destruídos.
Está quente.
Tenta tirar o poncho incendiado, mas já é tarde. O fogo espalha-se para
o interior de suas roupas, e para a sua pele agora inflamável. Começa a gritar,
as chamas consumindo sua pele e partindo para seus cabelos. Grita, um berro
abafado, um grito quente, quando observa seu corpo começar a se desfazer
em frente a seus olhos, a dor intensa que exala de cada poro de seu corpo.
Observa, antes de seus olhos se liquefazerem para as chamas, o fogo de seu
corpo espalhar-se para o resto da casa, o chão queimar em calor junto a si.
Hermann está sentado na neve, a alguns metros da casa incandescente.
Logo a construção inteira começa a incendiar-se, e os gritos do russo cessam.
A estrutura se desfaz, e agora só há uma fogueira disforme que se destaca
contra a noite gelada. O fogo é bom, o fogo aquece a alma e consome o corpo.
O fogo é quente.
Eventualmente a casa para de queimar. Wahnsinn aproxima-se dos
destroços fumegantes, tomando cuidado para não se queimar no ambiente. Há
um cadáver carbonizado, coberto de preto e disforme do que um dia fora
Aleksandr Bulatovich Letunov. Hermann pega a dogtag que retirou de cima do
garoto, com as inscrições do soldado, e a coloca em cima do corpo. Seu pai te
achará agora, Letunov.
Ruhe in Frieden, Aleksandr.
E esta é a história que havia sido contada em partes para a doutora
Gertruda Letunov no dia anterior. Hermann não havia citado nomes, não. Não
quer estragar a surpresa para Gertruda, não falou que havia matado um
membro de sua família, mas lembra-se com perfeição de que matara de modo
“épico” um Letunov. Dividem sobrenomes, talvez sejam parentes. Wahnsinn
não sabe se é um sobrenome comum, mas quais as probabilidades.
Aleksandr Letunov, tio de Gertruda Letunov por parte de pai, está morto
há quarenta e um anos. Morto pelo oficial da Schutzstaffel Hermann Wahnsinn,
na época Van Sinn, procurando-o para a vingança de um cunhado que mal
conhecera.
Já se passara uma semana desde a última consulta, e Gertruda aguarda
pacientemente a vinda de Hermann a seu consultório. Em dez minutos, o
alemão ex-nazista logo apareceria em seu consultório e ela lhe poderia
informar que em breve ele seria realocado para um hospital psiquiátrico de alto
calibre e segurança, para casos como o dele. Seria observado, tratado e
devidamente medicado.
E ele estaria por fim fora de suas mãos. Não mais seu problema.
Apesar de um caso interessante, para Gertruda, Hermann é... um pé no
saco, por assim dizer. Não colabora, talvez por não ter interesse nenhum no
tratamento, talvez por não ter interesse na própria vida. Na própria saúde.
Isto é um empecilho para o tratamento.
Pensa em Victor. Seu marido, advogado, está em algum lugar da ala de
administração cuidando de seus afazeres. Talvez pudesse buscá-lo ao terminar
com Wahnsinn e ambos poderiam dar uma volta, lanchar alguma coisa antes
de voltar para casa.
Victor Rosenberg. Esquizofrênico. Quarenta e três anos, alemão.
Lembra quando o conheceu. Ah, fora uma experiência possivelmente
traumático tanto para ele quanto para ela, mas tudo está bem quando acaba
bem. Confia em Victor, apesar do marido não ser muito bom socialmente.
Por que é advogado? Não é como se falasse muito bem.
Gosta de direito.
Gosta de Gertruda. Para ela, isso é tudo. Eles se amam, eles se
casaram, eles tem filhos. Filhos bons, cresceriam bons.
Oh.
Seus pensamentos são interrompidos por um som alto e estridente. Faz
uma careta de desgosto, até identificar o ruído: Um alarme. Este começa a
tocar em um volume mais baixo, para ser substituído por uma voz grave, que
Gertruda reconhece como o diretor do presídio. O velho “Ozzie”.
Todos os detentos, de volta para suas celas. Todos os detentos, de
volta para suas celas. Qualquer detento encontrado fora de sua cela será
tratado com violência.
Está confusa. Uma rebelião? O que está acontecendo? Alguém
provavelmente fugiu. Talvez o Wahnsinn. Isso é uma boa desculpa para
mandá-lo para a cadeira elétrica. Sim.
Ouve uma batida contra sua porta. Toc, toc. Quem é? Um segurança
abre a porta com força, e com uma expressão assustada. Está com o lado da
face cortado, possivelmente por um detento. Lembra a cicatriz de Rosenberg.
– Doutora Letunov? – diz o segurança, com sua voz ligeiramente
atrapalhada. Inseguro. Parece novato – Fui designado para escoltá-la até a
área de segurança, os funcionários estão sendo evacuados.
– Que porra está acontecendo aqui? – responde a psiquiatra, sempre
impaciente. Que amor de pessoa – Alguém fugiu?
– Sim, sim, doutora. Dez detentos. Aparentemente um de menor calibre
conseguiu se disfarçar, passar despercebido e... não temos tempo para isso,
me siga! Antes que apareça alguém!
Estamos em perigo.
Resmungando que todos ali são um bando de incompetentes
excetuando ela mesma, a doutora se coloca a seguir com seus passos curtos o
segurança alto. Todos aqueles seguranças são altos como o próprio lúcifer,
onde já se viu algo do tipo?
– Vocês sabem quem fugiu?
– Uns cinco de baixa segurança, quatro de média e um da segurança
máxima, que todos os outros tiveram de libertar juntos. Não tenho os nomes.
– Incompetência...
O segurança parece esboçar uma expressão de raiva, mas disfarça. Não
lhe admira que ninguém goste da psiquiatra.
Logo ouvem um som alto e chiado vindo dos alto-falantes, seguido por
batidas. O segurança parece desconfortável, e Gertruda começa a se
preocupar. Andam rápido por alguns corredores de metal. Aquele lugar
realmente parece um labirinto para quem não está familiarizado com o
ambiente, e Letunov não tem certeza de para onde está indo – não costuma
seguir até aquela parte do presídio.
– Boa noite, senhoras e senhores – diz uma voz áspera ao microfone,
sendo ouvida por todos no presídio através do sistema de som e comunicação
– aqui quem lhes fala é o novo Diretor da Prisão, e eu particularmente acho
que o sistema anda muito rígido.
Cadê a diversão, amigos? Vamos fazer a festa!
Um som alto de buzina é ouvido quando Hermann termina de falar, e um
baixo ruído de metal se abrindo indica que as celas estão abertas. Os detentos
estão soltos.
O clima está quente, como o FOGO!
– Quanto falta para chegarmos, oficial? – Gertruda está nervosa, quase
entrando em desespero. Apresenta a mesma expressão impassível que seus
anos como doutora lhe ajudaram a criar, entretanto.
– Estamos chegando, mantenha a calma. – ele responde, rápido, mas
enrolado.
Esquerda, direita, em frente, abre a porta, vai pra trás, entra naquela,
segue pra esquerda. Letunov pensa em seu marido, que provavelmente ainda
está a serviço. Pergunta-se se a ala de administração fica próxima às
acomodações dos detentos, e sinceramente espera que ele esteja bem. Ele
sabe se cuidar, apesar disso. O tempo no hospício lhe mostrou que Rosenberg
era bom, apesar de tudo, em se virar sozinho quando surge a necessidade.
Victor não se deixaria vencer por detentos em fuga. Ele é melhor que
isso. Ele é... bom.
O segurança abre a porta, e Gertruda não está satisfeita. O que surge
atrás das portas abertas pelo segurança é um pátio ao ar livre, e o céu indica
que é noite. A lua está cheia e bate em todo o chão do pátio gramado. É bonito.
No meio do local, entretanto, atado, há um corpo enforcado. A corda
pende, frágil, e parece a ponto de arrebentar, em estado de carbonização. O
cadáver do antigo diretor do presídio pende da corda, em chamas. Queimando
no fogo. Queimando, lindo, mais bonito do que fora em vida, o velho Ozzie.
Observando-o, de costas, está o idoso nazista, trajando calças de
segurança e despido da cintura para cima.
Agora, sem vestimenta, Gertruda percebe a extensão dos maus-tratos
recebidos pelo velho em seu tempo encarcerado. Além de ferimentos próximos
às costelas e nos ombros, há uma suástica marcada a faca por toda a
extensão de suas costas. Ouch. Parece cicatrizada, mas ainda forma uma
mancha escura, uma marca de seus crimes que leva nas costas.
Simbólico, huh?
Hermann coloca o colete de segurança antes de virar-se e ficar
novamente de frente com sua médica. Boa noite, doutora Letunov. Seus olhos
verdes brilham com uma juventude incomum, e ele parece anormalmente feliz.
Seu sorriso mostra uma sinceridade não usual. Parece mais monstruoso do
que seu habitual esgar cínico.
Dá uns passos para trás, apenas para sentir o cano da arma contra suas
costas. O segurança que a ladeara até ali tira o quepe, e a manda ir para
frente. Ah, um criminoso vestido de segurança. Explica a incompetência, de
fato. Não é possível que alguém seja tão estúpido, mesmo.
– Doutora Letunov, bem a tempo! – Hermann abre os braços como se
fosse abraçar a recém chegada – Fiz questão de que estivesse aqui para ver o
espetáculo. Como minha psiquiatra, merece assistir ao show.
Gertruda não sabe como reagir. Mantém uma expressão de confusão e
choque, se perguntando como que um detento de segurança máxima
conseguiu chegar até o diretor da prisão e queimá-lo no pátio de exercícios.
Começa a mexer na caneta que guarda em seu bolso, sem reação.
– Agora, você vai ter a honra de ver a cadeia queimar junto comigo e
morrer no processo. Não é demais?
– Ora, senhor Wahnsinn, não era necessário – sorri de um modo
obviamente falso, sarcástico – Como pretende fazer isso?
– Instruí meus comparsas a me ajudarem aqui... arranjamos combustível
que por algum motivo guardam no depósito, um pouco de contrabando, e só
vamos incendiar o prédio todo. – anda em direção às portas do pátio,
diametralmente opostas as quais Gertruda tinha entrado. Tira um isqueiro do
bolso, um isqueiro escuro e bonito. Não é o dele, mas já serve.
– E os detentos que você acabou de soltar...?
– Oras, nunca disse que eles podiam sair daqui. – sorri e acende o
isqueiro, jogando-o para dentro da área dos detentos, que se incendeia. O fogo
começa a lamber o chão, subindo para as paredes. E em breve, os gritos.
– Você é um caso sem cura, senhor Wahnsinn – ela diz, permanecendo
impassível. Aquilo irrita Hermann. Ela é mais doente do que ele se não
consegue sentir nada naquela situação. Cadê os gritos, cadê os pedidos pela
sua vida patética? – Sinto um alívio pensando que você já vai morrer.
– Oras – o alemão puxa um revólver escuro, sem brilho, que aponta para
a psiquiatra – Vamos juntos.
– Ainda consegue segurar um revólver? Estou espantada – percebe que
pode levar um tiro se continuar assim, mas não consegue evitar de responder
ao alemão, como se aquilo estivesse intrincado em seus genes.
Infelizmente.
Hermann perde a paciência e atira em seu pé esquerdo. A doutora dá
um berro e cai no chão, de joelhos. Ela, se sobreviver, vai ficar manca, manca
como o alemão agora já o é há anos, com aquele tiro na perna de tempos
atrás. Manco, manco da perna esquerda, ele é, ela será, e daqui a vinte anos
ou mais seu neto também o será – o mesmo neto que conhecerá em seu futuro
uma linda garçonete em um café parisiense, mas isso não é assunto de agora.
O nazista não pensa em sua descendência.
Ele ouve os berros. Sorri ao ouvir o início de berros vindos de dentro do
presídio em chamas.
O fogo. O fogo é lindo e consome, atraente e perigoso.
– Eu não vou te dar nenhuma satisfação, Wahnsinn.
O sorriso surge no rosto do alemão.
– Você me lembra um outro Letunov, o que matou meu cunhado.
A expressão impassível de Gertruda vacila.
– C-como?
– Aquele moleque que eu matei perto da Rússia. – coloca a mão no
queixo, como se lembrando de algo – O nome era... Aleksandr? Aleksandr
Letunov.
O rosto de Gertruda está pálido. Aleksandr, irmão de seu pai. Ela pode
lembrar-se de quantas vezes Mikhail Letunov lhe contava de como seu irmão
havia desaparecido na guerra, capturado pelos alemães. Um exemplo a ser
seguido pela família, um mártir pela causa russa. Nasceu depois da morte de
seu tio, mas sempre o admira pelos discursos que seu pai já fez.
Aleksandr, o bravo.
Morto por aquele bastardo. Aquele velho nazista irritante que agora ri de
sua situação, aquele bastardo que incendeia seu trabalho e ameaça lhe matar.
Não. Deixa sua raiva transparecer, uma ira eufórica que a faz tirar a caneta na
qual está mexendo no bolso e fincá-la entre os dedos da mão de Hermann, que
deixa o revólver cair. O alemão berra de surpresa e faz uma careta de dor.
– Então, conhece o Letunov. Botei fogo no bastardo e ele gritou como
esses prisioneiros gritam agora. Em chamas. Insignificante.
O fogo começa a espalhar-se para a grama do pátio, mais devagar.
Gertruda arrasta-se para a área de concreto para proteger-se das chamas. O
revólver jaz para trás de Hermann, e ela não consegue alcançá-lo.
– Eu achei que você tivesse salvação, um mínimo de dignidade. Parece
que não.
– Eu avisei que não ia dar em nada, doutora. Ainda bem que acabou,
uh?
– Agora vai morrer!
– Nunca disse que pretendo sair daqui vivo, Letunov. Vivi o suficiente, e
a prisão não me interessa, o hospício não me interessa. Vou queimar junto com
a minha arte, e meu nome vai ser lembrado. E vou ter o prazer de te ver
queimar comigo. – pega a doutora pela gola do jaleco – Vamos pro fogo. O
fogo é lindo.
Uma das portas do pátio abre, ficando aberta por alguns segundos.
Ambos viram-se para olhá-la, e o fogo revela a figura de um homem alto, com
um terno branco chamuscado e rasgado e cabelos ruivos com as pontas
tostadas. A cicatriz de Victor Rosenberg se denuncia com mais clareza contra
as chamas, e seus óculos parecem estar quebrados. Ele arrasta um cadáver
morto e carbonizado contra o ombro, aparentemente sem motivo. Talvez seus
devaneios o fizessem pensar que ainda desse pra salvar o homem. O larga
perto das chamas e levanta o rosto para os dois. Daquele jeito, parece uma
criança que tenta salvar seu boneco de ser jogado no lixo, inocente.
– Gertruda? – fala em um tom baixo, mas assustado – O que- O que
está acontecendo?
Hermann joga o rosto para trás. Só me faltava essa. Cai a ficha de
Rosenberg, que levanta os braços para o alto e começa a gritar:
– FOI VOCÊ QUE BOTOU FOGO NISSO TUDO?! FILHO DA PUTA!
Esse ruivo é louco, mesmo.
Hermann suspira e tenta arrastar Gertruda para próxima do fogo.
Incendiá-la. Seu marido, entretanto, pega o revólver que o nazista deixara cair
no chão e aponta para o mesmo, pretendendo atirar. A psiquiatra gesticula
para que pare. Não quer que ele morra a balas.
Ele precisa sofrer.
– Vai fazer o que? Atirar em mim? – desafia Hermann.
– Não duvide disso.
– Faça o que quiser. – O novo “Diretor da Prisão” volta a arrastar a
psiquiatra para as chamas. Encerremos este drama de uma vez.
Rosenberg não está satisfeito. Largando o revólver para o lado, corre na
direção de Hermann, que não solta sua esposa. Continua correndo e acerta em
cheio o alemão, fazendo-o soltar sua esposa e cambalear para trás, em direção
ao fogo. O ruivo faz uma expressão assustada quando o nazista atinge o fogo
ao cair.
O fogo é lindo. É quente.
Hermann olha para frente, e percebe que está sendo lambido pelas
chamas. A dor começa a invadir seu corpo. Está finalmente sendo consumido
pelas chamas, as chamas que ama, o fogo que alimenta. Suas mãos estão
ardentes e seu cérebro queima, mas não faz barulhos. Só levanta-se e se
admira enquanto vê o próprio corpo em combustão. Dá um passo para frente,
cai de joelhos com a perna manca, e agora está deitado. Sua pele se desfez, e
já não mais enxerga. Não consegue ver Rosenberg colocando sua esposa nos
braços. Não vê que os policiais já chegam, já vão colocar tudo em ordem. Não
sabe que ninguém mais saberá seu nome, não conhecerão o lunático que
incendiou a prisão e morreu nas chamas.
Já não sente mais dor. Só há o calor.
Está quente. Quente, quente, quente, quente.
Te vejo do outro lado. Hermann dá um último grito, não um grito de
agonia, não um grito de felicidade. Só um grito, um grito sem motivo.
Um grito quente.
==========================================================
29/06/1985

Paciente: Hermann “Wahnsinn” Van Sinn

Idade: 72 anos

Crime: Crimes contra o Estado. Agressão; tortura; homicídio


de civis e prisioneiros de guerra; destruição de
propriedades sem justificativa militar ou necessidade
civil; deportação de prisioneiros e civis para campos de
concentração; nazismo. Crimes de guerra.

Motivo de requisição de tratamento: Homicídio brutal e


premeditado do companheiro de cela como possível
consequência de mente insana.

Familiares vivos de primeiro grau: Karolin Krause Wahnsinn


(cônjuge, 60 anos), Karl Wahnsinn (filho, 25 anos)

Resultados, parecer geral e recomendações:

O paciente morreu hoje.

Na revolta dos prisioneiros, que o paciente liderou,


demonstrou grande carisma e eloquência. Demonstrou, também,
que não havia perdido seu gosto por matar e ferir, seus
hábitos piromaníacos permaneceram com ele até o fim. São
desconhecidas quantas mortes ele provocou nesse dia, e
quantos feridos, além de mim, se resultaram do episódio.
Noto também que ele tinha uma incapacidade de superar ou
vontade de prosseguir conflitos, levando a uma série de
vinganças, mais especificamente uma vendeta. Espero que ela
esteja encerrada agora.

Encerro seu arquivo com o diagnóstico de transtorno de


personalidade antissocial grave. Psicopatia. Sem cura.
Desejo que esses arquivos sejam usados como prova de que
indivíduos com esses transtornos devem ser observados a
todo o tempo para mais mortes e, se demonstrando
instabilidade, serem levados imediatamente à cadeira
elétrica, forca ou fuzilamento.

Gertruda Mikhailovna Letunov

==========================================================

Você também pode gostar