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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA


FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

O ENSINO SUPERIOR

NO CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO

DE SÃO PAULO

- UNISAL –

Discutindo Sua Identidade Salesiana

Doutorado Em Educação

DILSON PASSOS JUNIOR

PIRACICABA
2011
O ENSINO SUPERIOR

NO CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO

DE SÃO PAULO

- UNISAL –

Discutindo Sua Identidade Salesiana

Doutorado Em Educação

DILSON PASSOS JUNIOR


ORIENTADOR:
PROF. DR. BRUNO PUCCI

Tese apresentada à Banca


Examinadora do Programa de
Pós-Graduação em Educação da
UNIMEP como exigência parcial
para obtenção do título de Doutor
em Educação.

PIRACICABA
2011
BANCA EXAMINADORA

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________________________________
A história é como uma grande teia. Não se vibra um
fio sem vibrá-la toda. Não se vibra a teia sem vibrar
cada fio. Não existe história de um fio. Este só se
sustenta integrado no emaranhado da teia. Visualizar
o particular descolado do todo é não visualizar nada.
Não existem “histórias”. Existe a História.

O homem. Eis o epicentro da educação salesiana: instruí-


lo, profissionalizá-lo, formá-lo fazendo que chegue à sua
plenitude como ser guiado pela reta razão, embalado por
nobres afetos e integrado na cidade dos homens a
caminho da cidade de Deus.
RESUMO

Este trabalho investiga se o Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL –


permanece fiel aos critérios educacionais elaborados por João Bosco no século XIX
para atender então a adolescentes e jovens das classes populares. Para esta analise
adota-se como referencial teórico o Historicismo. Analisa-se a Itália no século XIX no
seu Risorgimento político e o confronto entre a mentalidade rural de matriz medieval e
a urbana, burguesa e liberal. Neste contexto de confrontos João Bosco elabora seu
projeto educativo denominado Sistema Preventivo, em que a presença física e afetiva
do educador é a chave para a educação. Este projeto educacional é implantado em
vários países, inclusive no Brasil, como um braço da romanização encetada pelo papa
Pio IX e entendida pelos salesianos como uma ação catequética e civilizatória. Em
1952 os salesianos estendem sua ação para o Ensino Superior implantado
sucessivamente nas cidades paulistas de Lorena, Americana e Campinas. Como o
fundador não havia contemplado em seus projetos de trabalho com a juventude o
atendimento ao ambiente universitário, há a rejeição da maior parte dos sócios
salesianos a essa presença no ensino superior, entendendo-a como infidelidade ao
projeto da congregação que se destinava aos jovens pobres e marginalizados. No
final do século XX o projeto universidade salesiana, já implantado e consolidado, é
assumido através das IUS – Instituições Universitárias Salesianas - congregando mais
de cinqüenta escolas salesianas de ensino superior do mundo. O questionamento
central deste trabalho é se existe efetivamente uma identidade salesiana no UNISAL
ou se ela seria apenas um simulacro. A questão é analisada a partir do discurso
institucional e da prática docente procurando verificar se os alunos do UNISAL estão
imbuídos dos princípios e valores educacionais salesianos. A tese, a partir da análise
do Mito fundacional, dos ritos institucionais e dos símbolos da fundação salesiana,
procura verificar se a incidência do ideário desta agência de educação confessional é
real no ambiente universitário ou se sua ação está antes nos discursos institucionais
que nas práticas da docência.

Palavras-chave: Ensino superior; Dom Bosco; sistema preventivo; salesianidade;


UNISAL.
ABSTRACT

This paper investigates whether the Salesian University Center of São Paulo - UNISAL
- remains faithful to the educational criteria established by John Bosco in the
nineteenth century to meet then the teenagers from the popular classes. For this
analysis we adopt as a theoretical Marxist historicism. It looks at Italy in the
nineteenth century political Risorgimento and the confrontation between the rural
mentality with medieval matrix and urban, bourgeois and liberal. In this context of
confrontation, John Bosco prepares its educational project called Preventive System,
where the physical and emotional presence of the educator is the key of the
education. This educational project is implemented in several countries, including
Brazil, as an arm of Romanization initiated by Pope Pius IX and understood by the
Salesians like catechetical and civilization activity. In 1952 the Salesians extended
their action successively deployed Higher Education in the cities of São Paulo:
Lorena, Americana and Campinas. As the founder was not included in their project
work with the youth service to the university environment, there is the rejection of
most members of the Salesian presence in the higher education, understanding it as
disloyalty to the design of the congregation, for poor and marginalized young. In the
end of twentieth century the Salesian University design, already implemented and
consolidated, is assumed through the IUS - Salesian Institution University - bringing
together more than fifty Salesian schools of higher education in the world. The
question of this paper is whether there is indeed a Salesian identity in UNISAL or if it
would just be a sham. The question is examined from the institutional discourse and
practice of teaching students trying to verify whether the UNISAL are imbued with the
Salesian educational principles and values. The thesis, based on the analysis of the
foundational myth, rites and symbols of the institutional foundation Salesian seeks to
verify the incidence of the ideals of this agency confessional education in the
university environment is real or if its action is before the speeches institutional
practices of teaching.

Key-words: higher education, John Bosco, Preventive System, Salesian identity,


UNISAL
DEDICATÓRIA

Aos meus pais


Dilson e Laurete
Que construíram
Sonhos, projetos e família
Á sombra – física e espiritual –
Das grandes chaminés
Da indústria têxtil

Ao professor doutor
Manoel Isaú Ponciano dos Santos
Pesquisador apaixonado e meticuloso
A quem muito deve a historiografia salesiana
E que me incentivou
No ingresso no doutorado.
AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Bruno Pucci, pela serena e firme orientação e pela


postura sempre amiga em acolher-nos em nossas inquirições.

Ao corpo docente de Pós Graduação da UNIMEP ao qual voto respeito,


pelo profissionalismo, e admiração pelo ambiente cordial.

Ao professor Doutor Lino Rampazzo pelo apoio recebido na revisão


metodológica, histórica e nas traduções.

Ao Analista de Sistemas Ronaldo Luis de Souza Pereira pelo suporte


técnico e metodológico nas pesquisas junto ao corpo discente.

Pelo apoio e suporte nas traduções e diagramação:

Prof. Rafael Galvão Barbosa


Prof. Paulo Pereira Neto
Universitário Samir Biaggi
LISTA DE SIGLAS

ADMA Associação das Damas de Maria


Auxiliadora
CCSS Cooperadores Salesianos
CG Capitulo Geral
ETEC Escola de Tecnologia (Campinas)
FASTEC Faculdade Salesiana de Tecnologia
(Campinas)
FMA Filhas de Maria Auxiliadora – (salesianas)
FS Família Salesiana
IEV Instituto de Estudos Vale-paraibanos
IUS Instituição de Universidades Salesianas
SBD Salesianos de Dom Bosco – (Salesianos)
UNISAL Centro Universitário Salesiano
VDB Voluntárias de Dom Bosco
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 22
CAPÍTULO I - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA UMA AVALIAÇÃO
INSTITUCIONAL ....................................................................................................... 35
1.1 Delimitação de Conceitos .................................................................................... 38
1.2 Evolução dos pressupostos teóricos da salesianidade do século XIX na Itália até
o UNISAL do século XXI ........................................................................................... 42
CAPITULO II - OS SALESIANOS NA ITÁLIA E SEU TRANSPLANTE PARA O
BRASIL: TEORIA E PRÁTICA, IDÉIAS E IDEOLOGIAS .......................................... 45
2.1 1.800: A Itália no século da liberdade ................................................................. 47
2.2 O Fundador: um camponês com coração do feudo e uma razão da cidade –
Uma visão histórica ................................................................................................... 59
2.3 Uma Pedagogia com o coração do Feudo e a Razão da Cidade no século da
liberdade.................................................................................................................... 84
2.4 O Transplante da Obra Salesiana para o Brasil - Sua missão civilizatória ......... 96
2.4.1 Os 1900 – Os salesianos na sociedade brasileira num tempo de conflitos .... 112
2.4.2 O Ensino Superior salesiano no Brasil .......................................................... 122
2.4.2.1 Faculdade Salesiana de Lorena: clerical e tomista ..................................... 125
2.4.2.2 Faculdade Salesiana de Americana - Humanista e Pedagógica ................ 147
2.4.2.3 Faculdade Salesiana de Campinas - Tecnologia e Pesquisa..................... 152
2.5 O Ensino Salesiano no Brasil em Busca de identidade ..................................... 157
2.5.1 Dúvidas sobre a eficiência e sentido do ensino confessional no Ensino
Superior ................................................................................................................... 159
2.5.2 Uma reflexão sobre o Ensino Superior Salesiano em nível mundial – As IUS
................................................................................................................................ 163
2.5.3 O UNISAL – à luz dos princípios emanados das IUS revendo sua história .... 167
CAPÍTULO III - O UNISAL ENTRE OS SÉCULOS XX E XXI EM BUSCA DE SUA
IDENTIDADE: TENSÕES ENTRE O PASSADO, O PRESENTE E O FUTURO .... 173
3.1 Passado, presente e Futuro: Da quietude da Idade Média para o movimento da
idade moderna e a aceleração da idade contemporânea ....................................... 176
3.1.1 As bases espirituais da cosmovisão salesiana: a ideologia medieval ............ 180
3.1.1.1 Pressupostos para o entendimento da cosmovisão salesiana: a História em
movimento ............................................................................................................... 183
3.1.1.2 João Bosco diante do seu tempo ................................................................ 190
3.1.2 Década de 1960: abalos nas crenças e estruturas da congregação .............. 199
3.1.2.1 Abalos em nível de mundo ......................................................................... 200
3.1.2.2 Abalos em nível de Igreja ............................................................................ 202
3.1.2.3 Abalos em nível de congregação ............................................................... 206
3.1.3 A Igreja após a crise dos anos 1960 .............................................................. 211
3.1.4 Religião no século XXI e tensões com o pensamento contemporâneo ........ 216
3.1.4.1 Dom Bosco – Mito ou lenda ....................................................................... 219
CAPÍTULO IV - O CENTRO UNISAL NO SÉCULO XXI ......................................... 226
4. 1 O UNISAL no século XXI - desafios ................................................................. 230
4.2 O Lugar da Educação Salesiana ...................................................................... 234
4.3 O pensamento de Dom Bosco na prática docente e pastoral do Centro UNISAL
................................................................................................................................ 249
4.3.1 Salesianidade e corpo docente ...................................................................... 253
4.3.2 Salesianidade e corpo discente ...................................................................... 272
CONCLUSÃO.......................................................................................................... 297
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 315
GLOSSÁRIO ........................................................................................................... 325
LINHA DO TEMPO.................................................................................................. 328
22

INTRODUÇÃO

As instituições nascem, crescem, amadurecem, envelhecem e morrem. E, em se


tratando de uma analogia, podem ao invés de envelhecer e definhar, explodir em
vida produzindo sementes e lançando rebentos. Há uma “previsibilidade biológica”
na vida das instituições que nascem fecundadas pelo húmus de grandes ideais. São
quatro os momentos inevitáveis e necessários em suas vidas: a fundação, a
consolidação, a institucionalização e o predomínio da estrutura. Após estes
momentos ela deixará de existir ou se metamorfoseará em outra instituição com
outros e novos ideais, poderá ainda viver a experiência da re-fundação com o
retorno às origens, na busca da fidelidade primeira.

Num primeiro momento a instituição nascente é marcada pelo ardor do fundador,


figura ímpar com seus ideais e crenças que transcendem sua vida e seus interesses,
imprimindo impulso criador à sua ação. Há o predomínio deste homem e de sua
individualidade, tendo sua experiência fundante um caráter quase divino. A paixão é
o sentimento predominante que impulsiona sua vida e com tal intensidade que atrai
e apaixona discípulos. Muitas “fundações” não duram para além da vida do seu
fundador. Pareciam ter um futuro promissor, mas se esfarelaram qual castelo de
areia, na falta de ardorosos seguidores e intérpretes de seus ideais. Os discípulos
das primeiras horas não podem ser entendidos como meros atores coadjuvantes,
pois serão eles, e, somente eles, que darão sustentabilidade às idéias fundacionais
que permitirão à obra transcender para além da vida do seu fundador.

O segundo momento é o da consolidação. A paixão ainda palpita no coração dos


discípulos das primeiras horas e como co-fundadores são interpretes qualificados do
fundador, porque receberam suas confidências e conviveram com ele, sendo suas
narrações feitas com enlevo de testemunhas. Nasce o mito fundacional que com
suas histórias e ideário dá sustentabilidade à fundação, sendo aos poucos não só
narrado, mas celebrado e ritualizado. A experiência vivenciada pelo fundador e seus
primeiros discípulos é exemplo para seus futuros seguidores, crescendo o sentido
de comunidade quando o sentir-se “nós,” dá forças aos que abraçam este projeto.

O terceiro momento é o da institucionalização, quando o impulso inicial do fundador


e de seus discípulos começa a ser organizado, sendo um tempo de estabilização,
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sabendo-se que os ardores dos primeiros seguidores precisa agora ser organizado,
disciplinado e racionalizado. Há o predomínio de normas, sendo que a experiência
institucional se conduz por leis e princípios. Não mais prevalece a intuição e a
criatividade, mas a legalidade do que e como se deve fazer e viver. O sentimento
que prevalece é o da simpatia. Acredita-se com certa benevolência nas idéias e
ideais do fundador.

O quarto momento é quando os ideais fundacionais sucumbem pelo predomínio de


estruturas organizacionais poderosas e fortes que ignoram ou mesmo desconhecem
as motivações primeiras da fundação. A experiência fundacional fica esmaecida
frente à vigorosa máquina administrativa e às sólidas estruturas que se impõem na
instituição. Prevalece o poder, o domínio, os burocratas, as estatísticas, os
resultados e a eficiência administrativa sem considerar a pulsões fundacionais. Nem
a pessoa do fundador, nem os primeiros discípulos e nem mesmo a dimensão e a
legalidade disciplinadora do ideal fundacional prevalecem, mas a estrutura e o
poder. Aquele ideal e sonho inicial, os princípios e sentido da fundação, a
experiência do fundador e dos co-fundadores não conta mais. Neste momento se
está longe da paixão do fundador, do amor dos co-fundadores, da simpatia dos
discípulos, prevalecendo o simulacro, quando a aparência é mais importante do que
o ser.

Esses pressupostos são importantes quando se quer analisar instituições de


educação que nasceram a partir de ideais, sejam eles políticos, filosóficos ou
religiosos. Sabemos que não existe Instituição de ensino neutro. Seja ela qual for e
de qualquer nível, se apoiará em concepções filosóficas que serão apropriadas por
“engenheiros da educação” que, assumindo essa visão de mundo, irão elaborar
programas educacionais que visem à construção de um determinado tipo de pessoa
e cidadão. A sociedade será fruto de suas escolas, pois é na força deste espaço que
ela se configura. O controle ideológico do ensino é estratégico, como forma de se
construir a mentalidade da nação, sendo este espaço objeto de disputa por seu
controle. E nem sempre a posse material de uma Instituição de ensino é garantia de
seu controle ideológico.

As primeiras universidades – Paris, Oxford e Bolonha – emergiram do coração da


cristandade medieval tendo sido tuteladas e vigiadas, não apenas pelo zelo da
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ortodoxia, mas também pela força convincente da inquisição. Nelas já se


confrontavam as correntes dos espirituais, dos racionais e dos naturais. O
racionalismo aristotélico que invadira a universidade de Paris e que fora banido da
mesma em 1277 pelo zeloso bispo Étienne Tempier parecia garantir uma vitória dos
espirituais sobre os racionais, conservando o tradicional espaço ideológico dos
místicos que se inspiravam em Platão e, sobretudo, em Agostinho que dera sentido
à mentalidade da Idade Média com a idéia da Cidade de Deus. O zeloso bispo não
percebera que a escola anexa ao mosteiro de Chartres já vinha tendo seus flertes
com as ciências experimentais, minando a plácida contemplação que deveria reger
os mosteiros. Neste momento se abria um processo, consolidado posteriormente
pelos escritos de Tomás de Aquino de valorização da razão. As catedrais góticas, se
com suas torres esguias apontam para o infinito indicando explicitamente o ideal
medieval de elevar a alma ao Transcendente, indicavam de outro lado,
implicitamente, a vitória da racionalidade matemática do homem de construir com
ousadia. E mesmo a Suma Teológica de Tomás de Aquino, racionalizava a fé
através de uma “engenharia mental” que primava pela exatidão de sua terminologia
latina pensada com lógica aristotélica. O que se assiste nessa passagem de tempo
não é a erosão assustadora das enxurradas de descem encostas arrastando
consigo volumes imensos de terra. É a erosão do vento que, pacientemente, vai
mudando de forma imperceptível a paisagem.

Duns Escoto, numa tentativa conciliadora, procurara separar em campos autônomos


a fé e a razão, tentando de certo modo conciliar as tensões geradas pelos racionais
que desorganizaram a epistemologia medieval submissa a Deus pela iluminatio. A
imagem “do vento que, pacientemente, vai mudando de forma imperceptível a
paisagem” pôde ser usada até para Duns Escoto. A primeira imagem, porém “da
erosão assustadora das enxurradas de descem encostas arrastando consigo
volumes imensos de terra” é perfeita para Gulilheme de Ockham que, mais que
símbolo e marco do fim do período escolástico, representa antes o seu
desmantelamento total ao negar não só a possibilidade de um real conhecimento de
Deus, vislumbrado na densa névoa da revelação, mas também de negar toda e
qualquer metafísica, prendendo-se ao mais radical empirismo do qual também
desconfia, enquanto incapaz de universalizar o conhecimento experimental. Seu
desmonte atinge as próprias estruturas eclesiais denunciando o contra testemunho
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da riqueza da igreja e a inconsistência do poder temporal e espiritual do papa e do


restante da hierarquia. Condena ainda o poder teocrático civil, afirmando que todo
poder advém do consenso do povo. Este frade franciscano explicitará em germe os
grandes pressupostos que darão sustentação às reformas sociais, políticas e
religiosas dos séculos seguintes.

O resgate histórico que fazemos a partir dessas universidades nos permite


apreender uma verdade não percebida num primeiro momento pela cristandade.
Sua matéria prima é a razão que, inicialmente, até pode aceitar certo controle, mas
conforme avança nas suas inquirições e descobertas campeia livre fora do controle
dos poderes constituídos da sociedade que ora a reprimem, ora a perseguem, ora
tentam corrompê-la ou aniquilá-la. As universidades concentram num espaço físico
e, hoje também virtual, uma elite de pensadores que estarão sempre revertendo a
ordem, quebrando paradigmas, e, mesmo quando no seu ambiente há facções que
se corrompem e se vendem, outras parcelas se rebelam e denunciam. As
universidades não são animais domesticáveis. É sempre preciso olhar o passado
histórico – da sociedade e das universidades – para tirarmos lições para o presente.
Nos séculos seguintes, após a fundação das primeiras universidades, o mundo
ocidental conhecerá profundas alterações. Passemos nosso olhar superficialmente
pela história, não para reconstituí-la, mas para que tendo esse panorama frente aos
nossos olhos, possamos ter motivações que dêem sustentação às nossas
posteriores reflexões.

Em mais de quinhentos anos após o grande abalo da universidade de Paris em que


a Iluminatio agostiniana foi destronada pela Ratio tomista e ambas foram retaliadas
pela navalha de Ockham, a história dos homens e suas instituições no ocidente
viveram num delirante redemoinho. Há um estonteante processo de aceleração da
cultura, do saber, dos costumes, da política e da tecnologia. Século após século o
mundo se supera, avança como grandiosas vagas a destruir e decompor o que
anteriormente havia sido reconstruído e recomposto após a vaga anterior. Um olhar
descuidado e superficial sobre os últimos séculos apenas fazendo menção aqui e
acolá a eventos nos permite a reminiscência de quanto tudo mudou. São lampejos
que apenas tocam nossos sentidos e nossa memória com a rapidez dessas luzes
emitidas em negras noites de tempestades que mais nos cegam que iluminam. Que
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“olhemos” sob as luzes fugazes desses “relâmpagos’ de forma superficial alguns


eventos que se erigiram na planície da história nos últimos séculos. Apenas
vislumbremos numa rápida passagem de olhos esses episódios que por sua
natureza demandariam a demorada contemplação do sol a pino.

No Renascimento o humanismo se infiltrará nos “vasos capilares” da religião e da


igreja apresentando temas religiosos onde os corpos de um Davi, um Moisés, uma
Pietá e de tantas madonas santas, com seus seios fartos de mulher e mãe, falando
do transcendente, mostram uma beleza imanente, ou para sermos menos filósofos,
carnal. Às vezes os temas eram mais explicitamente humanos como no sorriso
enigmático duma Mona Liza, deixando num lusco-fusco indecifrável de seu olhar e
sorriso, os segredos ocultos de uma alma de mulher, ou numa epopéia como os
Lusíadas, pagã e cristã, a exaltação do povo luso a singrar desconhecidos mares,
ou num Dom Quixote de la Mancha, nos seus ridículos e delirantes sonhos de um
anti herói e, que por ser tão fragilmente humano, torna-se herói. Martinho Lutero,
doutor em Teologia, que fizera preleções de Filosofia na Universidade de
Wurtenberg entre 1508 a 1512, procura refletir a organização da cristandade a partir
de uma razão crítica e ao querer colocar em disputatio suas noventa e cinco teses
acadêmicas conhecerá o zelo da ortodoxia. É o homem que continua a ser
vislumbrado no Iluminismo, no século das luzes, da Razão e da Revolução
Francesa. É ainda o homem que aparece no Positivismo capaz da ciência, da
exatidão matemática e do conhecimento objetivo. Paradoxalmente há ambigüidade
na afirmação e negação do homem, pois sua dignidade é valorizada pelo
conhecimento, pela posse do dinheiro e do poder. São ambigüidades de um tempo.
O Liberalismo defende a dignidade e a liberdade do homem enquanto a classe
burguesa acumula suas riquezas a partir da mão de obra escrava ou explorada. Na
Revolução industrial Marx e Engels dois extremos: opressores e oprimidos,
burgueses e operários. O Neo-colonialismo realiza a partilha do mundo entre os
países industrializados da Europa. No século XX há crises e confrontos que bastam
ser citados: Duas Guerras mundiais; ONU; Guerra fria; Regimes totalitários de direita
esquerda; Fascismo e comunismo; Ogivas nucleares; Revolução Cultural na China;
Ida do homem à lua; Woodstock; Hippies; Concilio Vaticano II; Ecumenismo;
Guerras do Vietnam, do Laós, do Camboja e da Coréia; Queda do muro de Berlim;
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Desmonte da União Soviética; Formação dos Blocos econômicos; Modernidade e


Pós-modernidade. No século XXI: Globalização; Mundo virtual...

Nestes séculos, desde a fundação das primeiras universidades nascidas no coração


da cristandade, o mundo fez um longo caminho sinalizado por algumas palavras-
ícones de idéias e momentos históricos da vida e do pensamento humano. Nem
ousamos entrar no emaranhado campo das idéias e ideologias políticas, religiosas e
filosóficas. Seria inviável neste campo trabalhar apenas com citações. O que importa
para o foco de nosso estudo é que em todo este processo histórico há um crescente
afastamento da cultura cristã que vai perdendo paulatinamente sua incidência sobre
a sociedade ocidental. Novos filósofos ocupam as cátedras e novas universidades
são fundadas distantes das sombras dos campanários da igreja. E não faltarão
filósofos da morte de Deus e que apontem a religião como ópio do povo. Nas ultimas
décadas os meios de comunicação escapam ao controle de grupos poderosos com
a popularização das redes sociais que veiculam informações em demasia e nem
sempre confiáveis comprometendo a formação de internautas que não estejam
preparados para o uso criterioso desta ferramenta.

As Instituições de ensino superior de matriz católica sobreviveram aos séculos e aos


diversos tempos e contra tempos da história procurando manter sua identidade. Esta
afirmação, porém, deve ser filtrada. A própria Igreja Católica, apesar de seus dois
milênios de existência, possui certo mimetismo oficioso de adequar-se aos tempos.
E esta adequação é natural porque a Igreja-instituição está plantada num período
histórico com fiéis filhos deste tempo. Ainda que a adesão às religiões
institucionalizadas venha diminuindo, nossa cultura ocidental ainda é cristã em sua
matriz, afinal, foram séculos em que o ensino esteve aos cuidados das igrejas
cristãs que ainda hoje ocupam espaço como agências de ensino procurando reagir
ao secularismo e materialismo modernos. Há, porém a possibilidade que muitos dos
ideais cristãos elaborados nos projetos das universidades confessionais estejam
mais nos seus documentos institucionais que em suas praticas de docência.
Haveria, supomos, um crescente processo de desconexão entre os ideais
fundacionais abraçados por essas instituições como sua missão e o seu dia-a-dia
que se materializa nas pessoas concretas do seu corpo docente e discente.
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Essa pesquisa sobre o Centro Universitário Salesiano de São Paulo coloca o


questionamento se os universitários que aí estudam receberiam o influxo formativo
salesiano proposto por essa escola que se auto-define como uma Instituição de
Ensino Superior, de Inspiração Cristã, Caráter católico e Índole Salesiana? A
proposição pedagógica de João Bosco que nasceu de sua história pessoal vivida na
península itálica no século XIX chega ao século I?

Criaremos três conceitos chaves como ferramentas interpretativas que permitem


auferir se uma instituição é fiel aos princípios que a fizeram surgir: o mito, o rito e o
símbolo. A partir deles poder-se-á verificar se o UNISAL é uma agência de ensino
que se mantém fiel aos ideais educacionais do fundador.

O projeto educativo salesiano tem seu ponto de partida em João Bosco, um


camponês do Piemonte na Península itálica, atingida então por convulsões
revolucionárias inspiradas nos ideais da Revolução Francesa, quando se busca a
integração política da Península, atendendo aos interesses da nascente burguesia
industrial do norte e tendo por maior obstáculo os Estados Pontifícios já que sua
incorporação à Nova Itália era entendida como um ataque, não a um Estado
constituído, mas à própria Igreja Católica entendida como Instituição Divina.

João Bosco é um homem dividido entre uma religiosidade camponesa de origem


medieval e o novo mundo industrial que surge com seus benefícios materiais e
malefícios sociais, com jovens marginalizados, aos quais Bosco procura atender
religiosa e socialmente, elaborando uma pedagogia baseada na bondade, no
acolhimento, no espírito de família, na formação humana, cristã e profissional.

O sucesso do seu empreendimento educacional atrai seguidores se expande pela


Europa e América, chegando ao Brasil com dupla finalidade: no pensamento de
Dom Bosco de atender à população pobre dos jovens marginalizados num país que
faz seus primeiros tímidos passos de industrialização. No olhar da hierarquia
eclesiástica de ser mais um braço da romanização iniciada por Pio IX que buscava
restabelecer a autoridade do papado sobre a Igreja do Brasil, enfraquecida no
período imperial pelas práticas do padroado e beneplácito, por um clero iluminista,
pelo liberalismo e positivismo e por uma religiosidade popular à margem do controle
clerical.
29

O trabalho com jovens no ensino superior jamais fizera parte dos ideais
educacionais do fundador. O ingresso neste campo foi, no caso de Lorena, a
necessidade de garantir que os salesianos continuassem a lecionar nas suas
escolas através de um diploma reconhecido pelo governo. As faculdades de
Americana e Campinas surgiram por ação unilateral de seus diretores sem apoio e
autorização de seus superiores.

Aos salesianos não cabe mais discutir se deveriam ou não atuar no ambiente
universitário. Essa é uma questão superada. O questionamento atual é se a
proposta educacional da congregação salesiana chegaria aos estudantes desta
instituição. Chegariam a conhecer Dom Bosco como modelo e educador?
Conheceriam suas idéias? O UNISAL nas suas proposições e práticas educacionais
estaria afinado c a matriz salesiana? Partir deles poder-se-á verificar se o UNISAL
é uma agência de ensino que se mantém fiel aos ideais educacionais do fundador?

A congregação salesiana não se abiu ao diálogo com as diversas pedagogias


praticadas no Brasil e nem tampouco se propôs como um dos possíveis caminhos
de se educar, salvo nos seus próprios ambientes. Isto fez com que ela no Brasil não
se constituísse numa escola de Educação que disputasse espaço com outras teorias
educacionais se constituindo num centro de irradiação do pensamento do Sistema
Preventivo para além dos pórticos das obras salesianas. Isso parece se refletir até
hoje nas licenciaturas do UNISAL que parecem não enfocar com vigor – se é que
enfocam – essa pedagogia. São hipóteses que devem ser verificadas.

Iremos analisar no UNISAL se, através da narração do rito fundacional, da


celebração dos ritos e no uso dos símbolos se tem conseguido atingir os objetivos
educacionais propostos pelo fundador. É uma empreitada complexa que, passando
pelos quase cento e cinqüenta anos da fundação da congregação, tem o seu foco de
aferimento no sistema preventivo como núcleo pétreo dessa fundação com seus
colorários: Presença, Razão, Religião e Bondade.

A obra salesiana possui seus fundamentos educacionais na pessoa do fundador


enquanto protagonista de atitudes e ações que foram só posteriormente teorizadas.
Capturar sua vida é capturar sua pedagogia, pois Bosco encarnou em sua vida
cotidiana seus ideais educacionais.
30

O primeiro passo para entender o fundador é apreender a situação da Itália no


século XIX marcada por tensões, crises, convulsões políticas, sociais e religiosas. É
neste contexto que emerge a figura de João com seu entorno familiar e cultural. Indo
para a cidade confronta sua formação cristã de matriz medieval com o pensamento
liberal. Em abrir mão de sua matriz religiosa deverá construir pontos de diálogo com
os liberais e anticlericais que vão assumindo o controle econômico e político da
Nova Itália.

O segundo passo é apreender o significado do transplante da obra salesiana para o


Brasil, entendido então como uma missão cristianizadora e civilizatória, sendo ao
mesmo tempo instrumentalizada pelo Vaticano no seu projeto de romanização.

O ingresso dos salesianos no ensino superior aconteceu sob forte rejeição da maior
parte dos salesianos que o consideram como infidelidade, na melhor das hipóteses,
e traição, na pior, dos ideais do fundador que somente pretendera atender aos
jovens pobres e marginalizados. Como já foi assinalado anteriormente, o ensino
superior é um fato consumado e assumido pela congregação. Cabe constatar se o
corpo docente conhece e assimila os valores educacionais salesianos e os faz incidir
sobre o corpo discente. Buscar-se-á elaborar um diagnóstico que permita definir em
que intensidade e qualidade acontece a proposta salesiana neste espaço educativo.

As considerações apresentadas nos oferecem referenciais que norteiam esta tese.


Retomamos agora de forma simplificada os elementos fundamentais de nosso
trabalho.
O Tema central desta pesquisa é a identidade salesiana do UNISAL, entendida
como fidelidade aos critérios educacionais elaborados pelo fundador João Bosco no
século XIX.
O Problema colocado é se hoje o Centro Universitário Salesiano mantém-se fiel ao
ideal educacional proposto pelo fundador, verificando se é praticado na docência da
instituição, atingindo como conhecimento e prática pedagógica o corpo discente.
A Hipótese que se coloca é a de que o Centro Universitário Salesiano de São Paulo
estaria se distanciando do projeto educacional elaborado por João Bosco,
denominado de Sistema Preventivo, que se sustenta na presença do educador, na
razão, na religião e na bondade. Verificar-se-á se, sob as narrações oficiais sobre o
31

fundador e seu método educativo, existe uma real prática de sua pedagogia ou
prevalece o simulacro de seus princípios educacionais e práticas pedagógicas.

O referencial teórico apóia-se nos princípios do Historicismo enfocado sob dois


ângulos: o marxista enquanto envolve a economia, a política e a sociedade e o
agostiniano com sua visão religiosa da História, abordagem que é assumida por
João Bosco.

Será a partir do século XVIII com o iluminismo que os pensadores ligados às


Ciências Sociais, e entre eles os historiadores, serão vistos como intérpretes da
sociedade. A teoria linear da história, reconhecendo a autodeterminação do homem,
é assumida por Santo Agostinho, tendo como chave interpretativa a vontade de
Deus, e por Marx que, ainda que inspirado na dialética idealista de Hegel, a inverte e
a adapta ao conceito materialista da história.

O pensamento marxista possui pressupostos que nos oferecem chaves para a


decodificação da História. Ainda que não o assumamos na sua concepção
dogmática, reconhecemos que o modo de produção, mais do que determinar,
condiciona a organização das superestruturas sociais. No Historicismo marxista
temos como referências alguns de seus intérpretes como Galeano, Hobsbawn e
Huberman. Ao assumir o referencial teórico do historicismo marxista, o fazemos
reconhecendo sua limitação como afirma Antônio Gaspareto Júnior:

A Historiografia Marxista demonstrou ter seus limites. Por causa do


grande enfoque dado às relações econômicas, os historiadores
perceberam que não seria possível explicar todos os aspectos da vida
social. Muitas facetas importantes para as relações do cotidiano na
humanidade não eram abordadas. Hoje se entende que a História é
feita em diversas circunstâncias da vida humana e estão muito em
foco as proposições feitas pela quarta geração da Escola dos Annales
que enfatiza as implicações da cultura nas explicações da sociedade 1.

É a partir desse enunciado, afastando-nos do reducionismo do marxismo ortodoxo e


dogmático que simplifica a realidade, acreditamos ser importante entabular diálogo

1
- GASPARETTO JÚNIOR, Antônio. Historiografia
Marxista. Disponível em:
<http://www.infoescola.com/historia/historiografia-marxista/>. Acesso em: 10 maio 2011.
32

com a mentalidade do historicismo agostiniano que se faz presente nas obras e


epistolário de Bosco, produzidos ao longo de sua vida.

Discordando de Popper2, para quem o historicismo não se sustenta3, acreditamos


que os historicismos marxista e agostiniano, ainda que partindo de matrizes
antagônicas, aquele na afirmação da matéria como a realidade fundamental e este
na afirmação do divino como fonte da matéria “ex nihilo”, ambos oferecem
ferramental teórico consistente porque acreditam na história como resultado da ação
livre do homem, seu único artífice. Como intérprete do hiponense, Amério é incisivo:

A história depende toda do homem e toda de Deus; é objeto da livre


iniciativa humana e da onipotente eficácia divina. Se da multiplicidade
e variedade dos indivíduos ela brota como capricho, desarmonia,
contraste e caos; da unidade simplicíssima da providência divina
deve surgir como continuidade, plano, ordem e sistema. É através do
primeiro aspecto que se tem como penetrar no segundo: o enigmático
entrefecho das vicissitudes da vida de cada indivíduo aparecerá como
trama sapiente dum único plano: a história tem um sentido 4.

É nos intrincados sucederes da história que as instituições, através dos seus mitos,
ritos e símbolos, dão sentido e significado à sua existência e ação. Hoje se entende
que a história é feita de diversas circunstâncias da vida humana 5 sendo os princípios
teóricos do historicismo marxista e agostinianismo instrumentos, neste trabalho, para
o entendimento do Centro UNISAL.

No primeiro capítulo, pressupostos teóricos para uma avaliação institucional, se


analisa o conceito de experiência fundacional e como ela se perpetua através do
Mito, do Rito e do Símbolo como chaves interpretativas que permitem avaliar o grau
de fidelidade das instituições à experiência do fundador. Estes princípios são
utilizados para avaliar o UNISAL do Século XXI.

No segundo capítulo, Os salesianos na Itália e seu transplante para o Brasil: teoria


e prática, idéias e ideologia, apresentamos as grandes transformações econômicas,
políticas, sociais e religiosas da Itália no século XIX e o quanto elas impactaram

2
- Karl Popper (1909-1994) – Defendeu o racionalismo crítico” e foi contundente no seu
ataque ao Historicismo que define como”método pobre – que não produz fruto algum”. Cf. POPPER,
Karl. A Miséria do Historicismo. São Paulo: Cultrix, 1961, p. 2.
3
- POPPER, op. cit.
4
- AMERIO, Franco. História da Filosofia Antiga e Medieval I. Coimbra: Casa do Castelo,
1960, p. 175.
5
- Ibidem.
33

sobre o camponês João Bosco que teve, como educador, de realizar uma síntese
entre sua mentalide camponesa de matriz medieval e o novo mundo urbano de
matriz liberal. É neste contexto histórico que elabora seu sistema de educação que
é, posteriormente, transplantado para o Brasil com dupla finalidade como já
afirmamos: em nível eclesial ser um dos braços da romanização capitaneada por Pio
IX e, em nível social, promover uma ação civilizatória para um país concebido como
rude e distante da modernidade industrial. Neste contexto é implantado o Ensino
Superior salesiano consecutivamente em Lorena, Americana e Campinas. Não
tendo sido querido por boa parte dos sócios salesianos até o final do século XX, o
ensino superior salesiano encontrou dificuldades em “verbalizar” sua identidade
salesiana adequando-a para uma clientela que já ultrapassara a adolescência.

No capitulo terceiro O UNISAL no século XXI e a Busca de sua Identidade:


Tensões entre o passado, o presente e o futuro, apresenta-se a luta dessa
instituição para definir o seu lugar ideológico como agência de educação católica e
salesiana num mundo de grandes transformações econômicas, políticas, sociais,
morais e religiosas. Pesa sobre a instituição sua mentalidade medieval e romanizada
frente a um mundo em permanente processo de aceleração e modernização onde
esses conceitos se tornam obsoletos.

O Capitulo quarto, O Centro UNISAL no século XXI, trabalha-se os desafios e o


lugar da educação salesiana no contexto urbano e cultural das três cidades onde
está inserido. Analisam-se como os ideais educacionais estão presentes nas
praticas docentes e como esse conteúdo é percebido e passado para o corpo
discente.

Na conclusão faz-se uma síntese da situação da identidade salesiana no Centro


UNISAL e apontam-se alguns caminhos que permitam configurar uma identidade
salesiana de forma inequívoca.

Este trabalho pretende ser uma contribuição de forma direta para o UNISAL
avaliando-se a qualidade de sua ação a partir dos valores que o fizeram surgir. E,
ainda que voltado para uma instituição católica, acreditamos que as reflexões
expostas servirão para outras instituições confessionais de ensino superior que se
34

erigiram a partir de crenças e valores que deveriam lhes conferir, num mundo
fragmentado, uma inquestionável identidade.
35

CAPÍTULO I - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA UMA

AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL

As Escolas de Ensino superior confessionais nascem sob a égide de princípios e


valores dos seus fundadores, sendo espaço de interlocução com o mundo
acadêmico. A principal fonte de renda destas instituições é a mensalidade de seus
alunos, base de sua sustentação. As leis de mercado, as exigências do governo, a
competitividade, a necessidade de agregar ao seu corpo docente profissionais
qualificados, não raras vezes faz com que princípios idealizados fiquem relegados a
um segundo e até terceiro plano, frente aos problemas de sustentação de estruturas
e pela incessante necessidade de atualização de pessoal frente a um mercado
dinâmico e competitivo. Some-se a isso o crescimento destas instituições com o
distanciamento entre os ideais elaborados pelos fundadores e o cotidiano acadêmico
com professores de diversas procedências ideológicas, quando nem sempre a
capacidade profissional está alinhada com os ideais dessas fundações. A Missão
Institucional acaba, em muitos casos, sendo desconhecida por educadores e,
conseqüentemente, por educandos. Deve-se ainda destacar que, pela própria
natureza do mundo universitário, muitos dos docentes e coordenadores não
comungam e até mesmo se opõem ideologicamente às crenças e princípios da
fundação e, coerentes com seus princípios, acabam por não sublinhar e assumir os
aspectos relevantes dos princípios institucionais, quando não partem para contestá-
los.

Esta pesquisa tem por escopo verificar o impacto na Academia dos princípios da
Filosofia e da Pedagogia salesiana no Centro Universitário Salesiano de São Paulo
já que o significativo aumento de professores contratados pela capacidade técnico-
pedagógica nem sempre permite um consistente acesso aos princípios filosófico-
educacionais da Instituição. Além disto, questões financeiras e administrativas
absorvem grande energia espiritual de seus gestores, preocupados com a saúde
financeira da instituição. Tem-se por objetivo diagnosticar até que ponto os valores
36

educacionais e humanos deste centro de educação salesiano são conhecidos por


seus educadores e destinatários, não como uma proposta confessional, mas como
um conhecimento a ser confrontado com outros saberes. Pretende-se trabalhar
inicialmente com os documentos que delineiam os princípios educacionais da
pedagogia salesiana, transplantados para o Ensino Superior, já que foram
elaborados, inicialmente, para adolescentes.

6
Retomamos as idéias já expostas que o ingresso no mundo universitário foi visto
7
com desconfiança por muitos salesianos até o fim da década de 1990. A fundação
das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena em 1952 foi apenas a
legalização do Instituto de Filosofia voltado para formação de seminaristas
salesianos que, impedidos de dar aulas pela crescente exigência de diploma
reconhecido, tiveram necessidade de legalizar seus cursos. Poucos salesianos da
época avaliaram a implicação do seminário de Filosofia ser reconhecido pelo
governo: as portas deveriam se abrir para alunos externos tornando-se uma
instituição de prestação de serviço ao público em geral.

Outras duas faculdades de Ensino superior salesianas foram fundadas em


Americana e Campinas que em 19938 se uniram com a de Lorena formando o

6
- Alguns salesianos acreditaram na possibilidade de ingresso no Ensino Superior. Uma
primeira tentativa foi a criação do Curso superior de Administração e Finanças implantado no Liceu
Coração de Jesus no bairro de São Paulo de Campos Elíseos e reconhecido pelo Decreto 20.158 de
30 de junho de 1931. No dia 18 de março de 1939 formava-se a primeira turma. Como Decreto Lei
7.988 de 22 de setembro de 1945 se extingue este curso sendo substituído pelo de Ciências
econômicas. Há, porém, forte resistência dos salesianos que, de um lado não se sentem preparados
para abraçar o ensino superior e, de outro, acreditam que esse não seria o tipo de trabalho fiel o
fundador. Os poucos que o defendem não resistem às pressões da maioria. E, apesar do curso ser
reconhecido definitivamente pelo decreto 25.225 de 15 de julho de 1948, neste mesmo ano, porém,
no dia 3 de agosto o curso é agregado à universidade Católica de São Paulo. Cf. SANTOS, Manoel
Isaú Ponciano dos. Liceu Coração de Jesus. São Paulo: Salesiana, 1985, p. 348-356.
7
- O termo “salesiano” refere-se aos religiosos consagrados por votos religiosos na
Congregação Salesiana. Ainda que seja uma “congregação Religiosa” no sentido estrito, ela se
camuflou frente à sociedade e aos políticos liberais e anticlericais italianos do século XIX adotando
uma nomenclatura e procedimentos leigos, assumindo o nome civil de Sociedade de São Francisco
de Sales, sendo seus religiosos denominados de sócios, o Superior geral assume o nome de Reitor
mor e os superiores das casas religiosas de diretor. Atualmente O termo “salesiano” diz respeito, em
sentido amplo, a todos seguidores dos princípios e práticas pedagógicas elaboradas por João Bosco.
Em sentido restrito se refere aos religiosos que fazem parte da Sociedade São Francisco de Sales.

8
O Centro Universitário Salesiano de São Paulo foi definitivamente credenciado pelo
Ministério da Educação por Decreto Presidencial no dia 24 de novembro de 1997.
37

Centro Universitário Salesiano; e em 07 de janeiro de 2003 se integraram à IUS 9


congregando mais de cinqüenta instituições de Ensino Superior em quatro
continentes. Esse rápido crescimento fomentou o distanciamento entre os ideais da
pedagogia salesiana e o corpo discente cada vez mais numeroso, crescendo o hiato
entre os ideais institucionais e seus destinatários10. Pretende-se avaliar em que nível
e intensidade o conhecimento e a aplicação da pedagogia salesiana acontece nas
unidades de Americana, Campinas e Lorena11.

Antes de se abordar especificamente o UNISAL é preciso analisar como os ideais


nascem e se institucionalizam sofrendo a erosão do tempo e das circunstâncias. Por
que há nas instituições um descompasso entre os ideais da fundação e a prática do
cotidiano, gerando em alguns membros dessas comunidades desalento e
descrença. Serão apresentados pressupostos que se configuram como pano de
fundo desta pesquisa delimitando-se alguns conceitos utilizados para análise desta
instituição. Partir-se-á da experiência individual do fundador que se transforma em
experiência fundante atraindo para si seguidores que procurarão se inspirar nas
suas intuições reproduzindo-as. A narração dessa experiência fundante será
realizada através do Mito, atualizado pelos Ritos e pelos Símbolos. Será sob essa
ótica que se avaliará se o UNISAL consegue manter e transmitir princípios e valores
que devem nortear sua ação educativa.

9
- “Instituições Universitárias Salesianas” congregando inicialmente os seguintes países
fundadores: Argentina, Bolívia, Brasil, Checoslováquia, Chile, Equador, Itália, Papua Nova Guiné,
Polônia, Espanha, El Salvador, Índia, Japão, México e Peru.
10
- Esta questão será objeto neste nosso trabalho de sondagem de campo junto a discentes
para avaliar o impacto da pedagogia salesiana sobre suas formações. Analisaremos também como a
salesianidade é tratada nos projetos dos cursos e nas práticas pedagógicas.
11
No caso de Lorena deve-se considerar que uma significativa parte do corpo docente teve
contato com a Pedagogia salesiana no antigo Colégio São Joaquim com cento e vinte e um anos
(1890-2010) de existência. Acredito que essa pesquisa nos permitirá ampliar para outras instituições
confessionais algumas conclusões plausíveis de universalização.
38

1.1 Delimitação de Conceitos

O homem se constrói a partir de experiências. Prevalece o conceito aristotélico de


que nada está na inteligência sem que por primeiro não tenha passado pelos
sentidos. O experimentar faz parte intrínseca da vida, sendo um patrimônio pessoal
na construção da personalidade. Em geral as experiências vividas esgotam-se na
temporalidade da própria vida do cada indivíduo. Há experiências, porém, que
transcendem ao individuo e são apropriadas por outras pessoas que vêm nelas algo
de singular e extraordinário e, ainda que vivenciadas por outrem, possuem um lastro
de sabedoria que passa a ser para muitos um referencial de vida. A essa
experiência pessoal de alguém, quando transferida ou apropriada por outras
pessoas, denominaremos de experiência fundante. Tal experiência de uma
pessoa, assumida por outras, dá ao individuo que a vivenciou a imediata ou
crescente consciência de que é “mestre”, “guia” e “fundador” e a "consciência de
que tem uma missão” a cumprir. Tal experiência vai aos poucos se
desmaterializando e assumindo um halo místico. A experiência fundante, ao perder
sua materialidade, se torna um princípio, uma doutrina e uma mística. O fundador
atrai seguidores mais fervorosos que o apontam como exemplo a ser seguido.

Os discípulos das primeiras horas são co-fundadores que avalizam a experiência do


fundador como referencial e palavra final. Sua morte qualifica-os com autoridade
porque conviveram com o mestre sendo reconhecidos como seus verdadeiros
interpretes. Com o tempo a experiência fundante se encaminha para a
institucionalização que procura organizar e perpetuar o carisma do fundador e dos
seus primeiros seguidores. A imagem, a vida, as ações e ideais do fundador são
perenizados pelo Mito, pelo Rito e pelo Símbolo.

O Mito é a narração da vida, dos ditos e feitos do fundador e de seus primeiros


discípulos. Não é, porém, uma narração feita uma única vez como numa
comunicação, mas é sempre narrada, porque aquele evento fundacional do passado
se torna sempre presente na comunidade que o assume. Os iniciados ouvem com
unção a história de como tudo começou. Este resgate tem não só a função de
memorial, mas de entendimento do “agora” da Instituição. Perder esse referencial
histórico é perder a própria identidade, pois, os seguidores devem entender que são
continuadores do fundador. O mito é um fato do passado que se atualiza pelo Rito.
39

O Rito é a atualização do Mito que “indo” ao passado, atualiza a experiência


fundante tornando-a presente aqui e agora no hoje, sendo, portanto, não só
evocativo, mas também celebrativo. É a atualização do ontem no hoje, quando
tomamos consciência que “nós” somos a continuação da mesma história. O
cerimonial integra e dá unidade ao passado e ao presente quando temos
consciência que não somos meros observadores, mas protagonistas desta história.
Nas celebrações religiosas, à guisa de exemplo, a divindade sai de sua
transcendência e está “aqui” no rito interagindo com seus crentes ouvindo-os e
atendendo-os. Em Instituições não religiosas o cerimonial também diz a mesma
coisa: os sonhos dos fundadores não ficaram no passado: somos este sonho
tornado realidade, não havendo entre o fundador e seus discípulos o vácuo do
tempo. O ontem é o hoje em nós. Daí a necessidade de uso de roupas e insígnias
que indiquem que o membro da comunidade transcende a sua própria
individualidade.

O Símbolo é o que nos faz remontar e lembrar a experiência do fundador por sinais.
O vestir-se e o envolver-se de símbolos representa conectar o hoje com o ontem. O
paramentar-se, não só no sentido religioso, significa dar identidade ao Rito indicando
a fonte de onde se vem. O Símbolo é um referencial ao Mito inicial. Mesmo as
construções são sinais de uma determinada Instituição que procura se impor pela
grandeza, esplendor e majestade para assinalar o que representa.

O Ideal do fundador, nascido naturalmente ou forjado por seus discípulos, se


visualiza no Mito, no Rito e no Símbolo que sintetizam a experiência fundante. Essa
experiência precisa se institucionalizar para organizar o impulso inicial que vai sendo
ordenado por regras, normas, princípios e procedimentos para garantir a fidelidade
de como a coisa deve ser. Se essa fundação é bem sucedida isso se materializa no
reconhecimento social, garantia de status e poder. Os seus gestores têm como
missão ser interpretes dos ideais fundacionais e, como guardiães zelosos, manter a
“chama sagrada” da experiência fundante.

Uma Instituição que se consolida é um atrativo para novos membros, ora por uma
clara opção pelos ideais fundacionais, ora pela procura de status, poder ou
remuneração. Cria-se tensão entre as dimensões carismática e institucional, entre
os ideais do fundador e o cotidiano pouco romântico com sua materialidade
40

prosaica: contas, captação de recursos, remunerações, competições de mercado,


captação de clientes, direitos e lutas sindicais, contratação de funcionários alinhados
com os ideais do fundador e a demissão dos menos integrados profissional ou
ideologicamente.

Acontece de se ver o retrato de fundadores fixados em paredes de vestutas


fundações, antes venerados e amados, hoje, rostos anônimos a assombrar, como
fantasmas do passado com seus ternos antigos, às novas gerações sedentas de
modernidade e desejosas de sepultarem nos porões dos prédios esses quadros
velhos. Assim como esses retratos, objeto de veneração no passado, também os
mitos, ritos e símbolos podem perder sua atualidade apesar de pendurados na
Instituição. Aqui está diagnosticada a crise profunda de uma fundação onde o Mito
deve ser narrado, o Rito deve ser celebrado e o Símbolo deve ser mostrado por
funcionários sem paixão, sem emoção, sem adesão afetiva, sem se identificar com
eles. Parecem velhos funcionários de velhas instituições apresentando com voz
pastosa e sem brilho nos olhos os “ideais” de fundações das quais recebem o
sustento enquanto esperam com ansiedade a aposentadoria. O Mito fundacional
torna-se mera mitologia, estórias do passado; o Rito torna-se ritualismo, suportado
com olhares constantes ao relógio conscientes de que está demorando muito e se
tem coisa importante a fazer. E os Símbolos não simbolizam mais, sendo relegados
às gavetas ou envergados em cerimônias com tédio ou, tornam-se ainda enfeites
sem seu significado inicial. Essas coisas só são suportadas porque através delas se
tem status ou remuneração.

A Erosão dos paradigmas fundacionais e institucionais faz com que se mantenha um


verniz superficial que apenas se refere ao fundador e à sua experiência fundante. Os
discursos tendem a ser vazios e as ações tornam-se pragmáticas até no fingir que
se adere aos critérios fundacionais quando se vive, efetivamente, atitudes diferentes
das propostas pela Instituição. O Mito não narra mais, o Rito não celebra mais e o
Símbolo não simboliza mais. O que sobrevive é o simulacro. Esta Instituição está
em crise, pois, há uma efetiva ruptura entre o sonhado e o vivido. E ainda que
sobrevivam em seu comando poucas pessoas apaixonadas pela experiência inicial,
efetivamente, porém, não há mais canais entre o impulso inicial repleto de paixão e
os destinatários. Numa escola, para concretizarmos essas afirmações, há
41

educadores que não crêem nas propostas dos mantenedores e alunos que não
recebem os influxos desta experiência fundante. O destino desta Instituição será, ou
a radical presença de vigorosos e violentos reformadores que busquem retomar o
espírito da fundação, ou a ruptura com os paradigmas fundacionais substituindo-os
por outros ou, ainda, o melancólico encerramento de suas atividades.

Ainda uma questão provocadora: seria destino inexorável de que todas as


experiências fundantes devem viver períodos de institucionalização, apogeu e
decadência? Os ideais e princípios educacionais sofreriam erosão inevitável do
tempo tornando-se arcaicos e ultrapassados? Seriam, na história, alguns valores
apenas sazonais? Teria sentido uma Instituição de Ensino Superior possuir
princípios pétreos? São questões que perpassam o suceder histórico e, acima de
tudo, o filosófico. Essas mesmas questões deveriam ser equalizadas para uma
interpretação filosófica: Existiria o perene? Ou prevaleceria a intuição do velho
Heráclito que via no permanente fluir e na mudança em si aquilo que era o mais
certo? Certos valores são de momento ou perenes? Os valores fundantes de uma
Instituição de ensino não perpassariam o tecido acadêmico por incompetência de
seus gestores ou porque seria já um produto fora de linha e, portanto, não
interessante aos consumidores? Seriam os gestores de uma fundação como
vendedores de loterias que gritam a todos os transeuntes que o “bilhete premiado”
está em suas mãos, mas o vendem por um punhado de moedas tidas, então, por
mais valiosas? Por que experiências fundantes perdem seu vigor e exuberância?

O Iluminismo, o Positivismo, o Capitalismo e o Marxismo foram totens que se


erigiram grandiosos nas planícies da história e que conheceram a erosão do tempo.
Será que Mito, Rito e Símbolo das instituições educacionais sofreriam a inexorável
erosão da descrença: ser um mito que não narra mais, ser um rito que não celebra
mais, ser um símbolo que não simboliza mais? São questões que, se respondidas,
independente de qual seja a resposta, darão um norte no governo nas Instituições
de Ensino Superior. Os ideais dos fundadores nas Instituições de Ensino Superior
sofreriam crises conjunturais ou estruturais? São questões que necessitam de
respostas para que o ideário e a missão das universidades seja uma realidade
exeqüível e não uma formalidade nos planos das instituições.
42

1.2 Evolução dos pressupostos teóricos da salesianidade do


século XIX na Itália até o UNISAL do século XXI

Os pressupostos teóricos anteriormente expostos serão aplicados para a avaliação


institucional do Centro Universitário salesiano de São Paulo, tendo como
pressuposto que os fundadores desta instituição acreditavam no projeto educacional
de João Bosco. Deve-se ter presente, porém que a institucionalização de
experiências fundacionais costuma, de um lado encobrir as pulsões primeiras que
apaixonaram os fundadores, minimizando-as e burocratizando-as, e, de outro,
elevando-as a tal nível de idealização que deixam de ser exeqüíveis.

A recuperação histórica desmistificadora é elemento essencial para se avaliar quais


são reais fundamentos duma instituição já que, como afirmamos, toda narração do
passado sofre inevitável processo de idealização. A desmistificação das origens não
diminui, mas plenifica tanto o fundador como sua fundação. Uma historiografia crítica
nos permitirá retornar o mais próximo possível do inicio da fundação, retirando todos
os adereços inúteis fixados por narradores fantasiosos, fazendo-nos perceber que o
fundador foi filho de uma época, possuindo qualidades e limitações, sendo capaz de
artimanhas e articulações, conformando-se com o seu mundo e a mentalidade de
sua época, sabendo-se que suas intuições e dificuldades não foram diferentes da
que se tem hoje. Não raro esses primeiros ideais corporificados agora em princípios
iluminadores do presente parecem distantes de nossas realidades e possibilidades.

As raízes ideológicas, educacionais e pedagógicas do UNISAL estão postadas no


século XIX no norte da Itália na região do Piemonte. Essa mundividência filosófico-
educacional gestada e nascida no contexto do Risorgimento da Itália do século XIX
confronta-se no século XXI com um novo mundo e uma nova mentalidade,
materializando-se nos princípios educacionais que dão fundamento à existência e a
prática pedagógica salesiana aplicada ao UNISAL. Temos, pois, que entender que a
gênese desta pedagogia se deu como resposta para os problemas sociais, políticos
e morais do seu tempo, tendo sido transplantada para o Brasil também como
resposta aos problemas em parte similares aos da Itália no ocaso do século: pré-
industrialização, anticlericalismo, pensamento liberal e romanização da Igreja. A
43

seguir aprofundaremos que itinerário essa pedagogia teve que fazer para se
adequar ao ensino superior12. Explicitemos esses passos.

Um primeiro passo é a reconstituição do ambiente econômico, político e social do


início da fundação no século XIX. A península itálica vive então um contexto
conturbado com o Risorgimento13 com contestações à Igreja14 e ao sistema político
vigente de reinos. A partir da ótica liberal, “l’ancien regime” mostra-se obsoleto e
insuficiente para atender às novas demandas econômicas, sociais e políticas. Os
múltiplos reinos da península se viam fragilizados frente a uma nova ordem política
que desejava se livrar da herança medieval, quando se configura uma pré-
industrialização incrementando a urbanização. Para o homem comum desta época
parece reinar o caos ao sentir que antigas instituições eram abaladas por novas
propostas que pareciam conter em si a desagregação e a instabilidade.

Um segundo passo é contextualizar João Bosco neste cenário, pois também ele vive
as contradições e inseguranças deste tempo. Possui um pé fincado no campo com
uma mentalidade tradicional apoiada nos valores da família, da igreja e do ritmo
sazonal de plantio e colheita. Ao migrar para a cidade em busca de vida melhor toca
nas contradições que os conglomerados humanos mais densos explicitam,
sobretudo numa época de crise. Assiste a revoltas, a movimentações de tropas,
violência urbana, injustiças, ataques explícitos à igreja e a miséria que campeia
entre os migrantes. Como neo-sacerdote se vê numa encruzilhada em que deve
optar por ser um padre com funções estáveis e rotineiras e com proventos
suficientes para uma vida digna, ou se integrar nos inseguros redemoinhos dos
novos tempos que não possuem nem caminhos e nem soluções prontas. A
experiência psico-existencial daquele que mais tarde se tornará um fundador são
fundamentais para compreender a construção de seu ideário de educador.

12
- Logo após a Índia o Brasil foi um dos primeiros países a ter ensino superior salesiano.
Houve uma primeira “join venture” com o ensino superior em São Paulo no com a fundação de uma
faculdade de Administração como já foi explicitado na nota 1 deste trabalho.
13
- Giuseppe TALAMO (Org). Gli Ideale del Risorgimento e dell’unità - Nel Primo centenario
dell’Unità d’Italia. Roma, Ente Nazionale Biblioteche Popolari e Scolastiche, 1961. p. 7
14
- Francesco MORONI. I Cattolici e Il Risorgimento. Torino. Elle DI CI 1961. p. 37
44

Um terceiro passo é apreender as práticas e elaborações teóricas que João Bosco


cria a partir do seu tempo e que se configuram como seu ideário educacional que foi
capaz de atrair discípulos e se projetar para os séculos futuros. Esse transcender da
pedagogia salesiana ao momento histórico do fundador demonstra que se construiu
um conjunto de princípios capazes de ter vida atemporal e válida para diversos
tempos e lugares.

Um quarto passo é perceber que esses princípios educacionais com suas práticas
pedagógicas são transplantados para outros continentes. Aqui, no final do século
XIX e inicio do XX, se recriam condições similares às da Itália no campo econômico
com uma pré-industrialização em marcha tanto no entorno da baía de Guanabara
como, posteriormente em São Paulo

Ao chegar ao Brasil os salesianos tiveram metas bem explicitas: atender a


adolescentes e jovens das classes populares, viverem com fidelidade sua
obediência à Igreja, preparar clérigos que se tornassem professores em seus
colégios, internatos e obras sociais. O ingresso no mundo do Ensino Superior teve
alguns impactos sobre as concepções e práticas da pedagogia salesiana que foram
elaboradas e organizadas para a educação de adolescentes e jovens das classes
populares. Sua transposição para o mundo universitário mostrou-se problemática
quando deveriam, sem perder a fidelidade aos procedimentos elaborados pelo
fundador, se adequar a um universo não pensado por este. De outro lado o próprio
mundo também mudou drasticamente: a popularização dos meios de comunicação
social, o crescente materialismo, o relativismo moral, a aceitação do pluralismo, a
reformulação dos conceitos de família, a globalização, o mundo virtual e a
pluralidade são apenas algumas das muitas facetas que assume a sociedade
moderna com drásticas mudanças no convívio social e no comportamento dos
destinatários da educação.

Algumas questões se colocam: no século I o Mito Fundacional, os Ritos e os


Símbolos salesianos são assumidos como valores? Os educadores destas
instituições acreditam neles e os reproduzem para seus discípulos e para
sociedade? Os elementos pedagógicos da fundação ainda palpitariam como crenças
ou estariam relegados a status de meras formalidades institucionais? São questões
que queremos aprofundar.
45

CAPITULO II - OS SALESIANOS NA ITÁLIA E SEU

TRANSPLANTE PARA O BRASIL: TEORIA E PRÁTICA,

IDÉIAS E IDEOLOGIAS

A História, enquanto suceder de fatos apreendidos pela mente e compilados em


textos, é uma abstração enquanto captura os eventos e lhes dá significado,
estabelecendo conexões com outros acontecimentos e conferindo-lhes um sentido.
A organização das primeiras sociedades primitivas veio acompanhada de narrações
que justificam seus costumes, regras e leis. E, quanto mais complexas elas se
tornavam, mais elaboradas eram as narrações que justificam seus costumes,
sempre a partir do seu modo de produção. Este processo de racionalização é um
emaranhado de ideologias explicativas que justificam práticas sociais, tradições e
formas de dominação.

Nenhuma estrutura erigida numa sociedade pode ser entendida e explicada sem
desvendarmos e desvencilharmos as intrincadas teias ideológicas que se
embaralharam na sua construção e nenhum ser humano pode ser entendido
isoladamente, mas como um filho da sua cultura e do seu tempo. Cabe ao estudioso
decodificar o entorno histórico deste homem, sem o que, jamais poderá apreender
em verdade suas idéias, ideais e projetos. Não se trata de um fatalismo ou
determinismo histórico, mas de algo que de certo modo está na “genética cultural”
de cada geração e de cada tempo.

Uma ultima sinalização importante. A história jamais se refaz ou se repete. Ela traz
lições e mostra caminhos. Ideais, idéias e instituições vindas do passado não são
peças arqueológicas que devem ser mantidas em vitrines. São experiências válidas
e sábias, mas que devem ser recriadas, refeitas, readaptadas para novos tempos,
por novos homens e para novas sociedades. O passado lança luzes para o
entendimento do presente para que se possa construir o futuro. Caberá, porém, a
cada geração, construir o seu futuro do seu modo a partir de sua realidade dando
respostas para suas necessidades e para o seu tempo que sempre será novo e
único.
46

A Sociedade São Francisco de Sales tem suas raízes no século XIX como resposta
de João Belchior Bosco aos desafios de uma época de tensões econômicas, sociais,
políticas e religiosas e que nascem a partir da desestabilização e paulatina mudança
do modo de produção. João Bosco deu respostas ao seu contexto histórico,
conseguido, porém elaborar princípios que transcenderam o seu tempo e ainda hoje
são acolhidos por educadores que os assumem como instrumentos de educação de
jovens confiados aos seus cuidados.

Um conceito que merece especial destaque é o termo desafio. Os protagonistas dos


grandes momentos históricos só se mostraram em tempos de desestabilizações.
Inexistem heróis no mormaço monótono do cotidiano com seu dia-a-dia previsível e
rotineiro. É nas situações de instabilidade que emergem e ganham destaque
homens aparentemente comuns que lideram movimentos, desestabilizam sistemas e
quebram paradigmas.

Somente a História nos faz compreender a gestação, o nascimento, o crescimento e


o desenvolvimento dos grandes ideais, não importando se políticos, econômicos,
religiosos ou sociais. Esses ideais, porém não se cristalizam no passado, mas se
confrontam com os novos desafios.

Entender a gênese da educação salesiana no contexto dos desafios do século XIX é


fundamental para apreender os critérios que a iluminaram. Dar, porém, as mesmas
respostas para nossos desafios do século XXI é partir de imediato para o fracasso. É
importante compreender o momento histórico da gênese da pedagogia salesiana.
Cabe às gerações do século XXI responder aos desafios deste século aproveitando
as lições do passado naquilo que possuem de perene e essencial.
47

2.1 1.800: A Itália no século da liberdade

Em 1789 ao eclodir a Revolução Francesa fica explicito que um antigo mundo


começava a se desintegrar15. As diversas facetas que assume essa revolução com
seu discurso libertário indicavam que não se sabia muito aonde ir, mas certamente
era explicito onde não se queria ficar: o modelo absolutista de governo e medieval
de relações campesinas de tradição feudal16. A paulatina mudança no modo de
produção com uma emergente burguesia exigia da sociedade adequações nos
terrenos econômico, social e político. Hobsbawn apreendeu o espírito desta época
ao cunhar os termos era das revoluções e do capital. Essa Revolução se torna
exacerbada pela incapacidade de adequação e diálogo entre o antigo modelo do
modo de produção econômico e o novo, capitaneado pela burguesia em fase de
consolidação como força econômica. As revoluções burguesas de 1848 em maior ou
menor escala vão acontecendo aonde o modo de produção industrial vai se
implantando e exigindo um modelo político e social mais adequado aos interesses
dos detentores dos meios de produção.

Era um tempo de rupturas. A nobreza de origem feudal se constituía num entrave


aos novos tempos, quando as grandes propriedades, a servidão e os privilégios que
lhes eram conferidos oneravam as classes efetivamente produtivas 17. Os monarcas
absolutos até então tinham dado guarida e proteção à nascente burguesia,
subordinando-a aos seus caprichos, monopólios e impostos. Paralelamente, o
proletariado ia crescendo em consciência de classe passando a reivindicar e lutar
por direitos18. Esses ingredientes sociais explosivos ganharam inicialmente
visibilidade com a Revolução Francesa que “verbalizou” insatisfações que
posteriormente se alastraram na Europa em movimentos cujo escopo era sempre a
ruptura com o antigo sistema sócio-político-econômico buscando condições
favoráveis de governança para a burguesia industrial.

15
- Cf. HOBSBAWN. Eric J. A Era das Revoluções. S. Paulo: Paz Terra, 1981, p. 23-42.
16
- Cf. HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1976, p. 155-164.
17
- A França é o mais explicito modelo onde a nobreza e o alto clero se constituíram como
classes parasitárias.
18
- Cf. HUBERMAN, op. cit., p. 225-245.
48

A Revolução francesa é o divisor de águas entre o antigo e o novo mundo. Práticas


medievais de produção e absolutistas de governo ao adentrarem o século XIX
mostraram-se obsoletas frente à nova ordem econômica que exigia uma
organização política adequada a esse mundo em evolução.

Toda mudança histórica não é um episódio isolado, mas resultado de longos e


demorados processos que ganham visibilidade em determinados episódios que
parecem ser de imediato uma ruptura, mas que de fato, é apenas o momento visível
de processos que vão tendo maturação por séculos. Qualquer episódio que
aparente ser “o divisor de águas” deve ser entendido como, à guisa de exemplo, as
explosões dos vulcões, imensas e assustadoras, mas que foram maturadas no
recôndito da terra por séculos. É preciso ter uma visão ampla sobre a história e na
mentalidade que nela se constrói para compreender os acontecimentos e fatos ditos
revolucionários. O modo de produção é o elemento que determina a configuração e
a mentalidade de uma época e os fatos históricos só podem ser compreendidos em
profundidade se se tiver uma ampla visão de suas formações e configurações a
partir da produção dos meios de sobrevivência.

A partir do século IX na Europa os primeiros comerciantes ensaiam a retomada de


suas atividades. No século XI se consolidam as feiras medievais e em seu entorno
os primeiros burgos19. Nos séculos XIII e XIV no campo do pensamento há
significativas mudanças. As catedrais góticas assinalam um extraordinário avanço
da engenharia ao superar os compactos e sólidos prédios de origem românica. Na
Universidade de Paris jovens professores rompiam com o pensamento místico do
agostianismo platônico para assumirem o pensamento aristotélico despido das
distorções de Averóis20. A escola de Chartres inclinava-se para o humanismo e as

19
Cf. Rubim Santos Leão de AQUINO. Denize de Azevedo FRANCO. Oscar Guilherme Pahl Campos
LOPES. História das Sociedades. Rio de Janeiro, Editora ao Livro Técnico, 1980. pp. 408-411.
20
-“A grande crise que abalou a universidade de Paris em 1277 e que culminou com a expulsão dos
mestres aristotélicos representa um momento de enorme significação dentro do contexto medieval e
é motivo para profundas reflexões sobre o sentido histórico e sua importância para o pensamento
ocidental. (...) O decreto de1277 não é específico contra Siger de Brabante. Nem mesmo é
específico contra o averroísmo, que vinha conquistando o interesse de grande número de mestres da
Faculdade de Artes e até mesmo de alguns teólogos. O decreto de 1277 é muito mais amplo pois
procura atingir o próprio aristotelismo como via para a construção do saber”. Carlos Bento
49

ciências naturais21 procurando na experimentação a confirmação de teorias


acrisoladas, então, pela confirmação empírica. No final da Idade Média Não eram
poucas as mudanças que, como tremores no fundo do oceano geram tal quantidade
de energia que se tornarão nos séculos seguintes qual tsunami em devastadoras
enchentes a demolir cidades e civilizações. Nos séculos XV e XVI vai se impondo o
modo de produção comercial. A necessidade de abertura de novas fronteiras
comerciais incrementa não só a elaboração de tecnologias de navegação como
também de práticas políticas que visam garantir a hegemonia das metrópoles sobre
imensas áreas coloniais. Comerciantes e reis entrelaçam seus interesses, estes
procurando consolidar um poder centralizado e absoluto e aqueles financiando
esses projetos de poder total e, ao mesmo tempo, ampliando seus espaços de ação
comercial. Se essa classe burguesa tivera seu inicio de forma modesta, tendo
singrado os oceanos e acumulado riquezas, se via agora tolhida e cerceada pelos
amplexos do poder absolutista, pois não mais queriam o papel de coadjuvantes, mas
de protagonistas primeiros da economia nas atividades comerciais. Se a burguesia
inglesa não vivera esse problema de forma crônica, pois a Revolução Gloriosa 22 lhe
dera, prematuramente, a governança da Ilha e de suas colônias, cabendo então á
realeza uma função meramente simbólica de poder, em outras regiões, porém,
prevalecia, ou, poder absolutista do rei, como no caso da França, ou a fragmentação
em pequenos reinos, gulosos de impostos vendo na classe dos abastados
burgueses fonte de captação de recursos para financiar os interesses dos príncipes,
como é o caso da península itálica. Com a pré-industrialização intensificam-se as
relações comerciais com o enriquecimento das burguesias comercial e pré-industrial
em detrimento da classe operária que, explorada, não deixa de crescer na
consciência de classe. Neste contexto as práticas comerciais e econômicas da
burguesia não mais suportavam o autoritarismo centralizador de monarcas absolutos
e nem os interesses paroquiais de pequenos reinos com seus impostos, taxas

MATHEUS. A Grande Crise de 1277 na Universidade de Paris. In. Revista da Educação, Lorena,
Editora Stiliano, 1999. pp. 43 e 44.
21
- “Se preocuparon por las ciencias naturales, las matemáticas, la astronimía y hasta la medicina”.
Guillermo FRAILE. Historia de la Filosofia, vol II. Madrid, BAC, 1966. p. 427.
22
- “Um novo movimento, a chamada Revolução Gloriosa, estoura em 1688, depondo Jaime II. Esse
movimento marca a ascensão definitiva da burguesia comercial ao poder. O novo rei Guilherme III,
devendo o trono ao parlamento, que o chamara, abre mão de muitas das prerrogativas laçando-se as
bases da democracia representativa inglesa”. Francisco de B.B. de Magalhães FILHO. História
Econômica. São Paulo, Sugestões Literárias S.A, 1979. p. 263
50

alfandegárias e dízimos. Em contrapartida a crescente concentração urbana de


classes populares permitia o incrudescimento de insatisfações sociais que abalavam
lentamente os pilares ideológicos que até então tinham dado sustentação ao mundo
feudal.

Falávamos, anteriormente, usando uma analogia da formação de um “tsunami


cultural” nos século XIII e XIV. A Razão é valorizada com o racionalismo aristotélico,
com o matematismo da engenharia e do controle da natureza pelas ciências
empíricas. Esta “descoberta” da razão irá gerar e dar sustentação à reforma
protestante e posteriormente ao Iluminismo. A razão, porém, continua “sua
evolução”. Não só a descoberta de novos meios e técnicas de navegação, mas a
razão burguesa racionaliza ao máximo seu controle nos negócios reduzidos então à
férrea lógica matemática. Ainda a razão vai presidindo o domínio de tecnologias de
produção com a industrialização. Os homens pensantes ganham confiança na sua
capacidade, com isso no século XIX é difícil para a burguesia e a classes mais
cultas suportar a tutela de senhores absolutos que agem em nome de Deus e
mesmo da Igreja que também se habituara a ser senhora de terras e de almas e que
agora não aceita ter menos terras23 e almas. Em 1789 tantos “tremores” adentram
furiosos na civilização européia demolindo e destruindo tudo o que lhe oferecesse
resistência, crescendo a dicotomia entre o espiritual e o material, o dogma e a
liberdade, a fé e a razão, o clérigo e o leigo. A racionalidade é a chave desse
processo histórico global. Foi ela que deu sustentação à ruptura com o modo de
produção feudal e à eficiente ação dos primeiros comerciantes. Ergueu catedrais de
pedra e de pensamento24 nas universidades de Bolonha, Oxford e Paris já no século
XIII com a valorização do pensamento aristotélico e nas primeiras incursões nas
práticas experimentais contestando no século XIV a própria estrutura social e
eclesiástica organizada sob a ótica de uma teocracia medieval onde a autoridade

23
- “A Igreja em certa época toda poderosa tantos em assunto espirituais como temporais, perdeu o
controle sobre os Estados, mas expandiu seus esforços na esfera religiosa. A Reforma Protestante
trouxe, por sua vez, grandes alterações nas práticas religiosas e a Renascença revolucionou os
aspectos culturais da vida européia”. John Fred BELL. História do Pensamento Econômico, Rio de
Janeiro, Zahar Editores, 1976. p. 76.
24
- “Há mesmo certa afinidade entre as Sumas de teologia e as belas igrejas românicas ou góticas
emergindo bem no tempo em que as solenes melodias gregorianas fraternizavam com as joviais
canções de amor e a gestas improvisadas dos trovadores. Ativas escolas de teologia e santuários
bem cinzelados brotaram nos mesmos espaços e datas aproximada”. Carlos JOSAPHAT. Tomás de
Aquino e a Nova Era do Espírito. São Paulo, Loyola, 1998. p. 13.
51

tinha sua fonte de validação em Deus. Deu significado às práticas comerciais e à


ocupação do mundo colonial. A Revolução Francesa foi o coroamento teórico e
prático desta ruptura com a mentalidade feudal e cristã tendo seu referencial teórico
no Iluminismo.

Aqui estão postos os ingredientes das convulsões sociais e políticas do século XIX,
pois a mudança de estruturas passa por ações revolucionárias e busca de novas
reformulações. É a tensão entre o antigo mundo com o seu status quo e as
sementes de uma nova sociedade pré-industrial que se configurava.

.Após Napoleão Bonaparte a Europa parecia se estabilizar com o Congresso de


Viena em 1815 com o retorno de l’ancien regime de antes de 1789. Esse retorno,
porém, teve duração efêmera tendo sido derrubado com as revoluções de 1848 em
Paris, Viena, Berlim e Milão denominadas em seu conjunto de Revolução Européia.

Será neste lastro de revoluções que também na península itálica se articularão os


movimentos liberais buscando superar o poder da Igreja e dos príncipes pela
unificação dos diversos reinos na constituição de um estado-nacional burguês. A
península itálica viverá com intensidade esses momentos com grupos que procuram
subverter a ordem vigente como os carbonários, maçons, jacobinos e illuminati.
Lambruschini25 expressa perplexidade pelos novos tempos em que ancestrais
valores são questionados:

Tudo se agita ao meu redor. A Itália, e poderia dizer toda a Europa é


sacudida como um mar em tempestade. Pensamentos desordenados,
paixões furiosas vão e vêm como ondas que correm desenfreadamente,
colidem e ameaçam engolir-nos. Não é desordem passageira, por motivos
passageiros e recentes. É transtorno profundo preparado faz séculos. Mas
os homens fecharam seus olhos para não ver os novos transtornos que se
acumulavam; taparam seus ouvidos para não ouvir os trovões que

25
- Raffaello Lambruschini (1788 – 1873), político, religioso, agrônomo e pedagogo italiano.
Teve marcante influência politico. Sua obra póstuma Dell’Autorità e Della Libertà foi compilada por
Angiolo Gambaro e reúne diversos manuscritos, entre os quais cartas arquivadas na Biblioteca
Nacional central de Florença. A coletânea dessas cartas, anotações e escritos diversos confere a
Raffaerllo Lambruschini especial destaque porque escritos ao longo de sua vida, o que nos permite
captar as palpitações dos momentos históricos por ele vividos da unificação da Itália. Seus escritos,
neste livro-coletânea nos permitem sentir os impactos e percepções deste pensador-pedagogo no
exato momento em que aconteciam, dando-nos uma apreenção mais qualificada dos sentimentos
que permeavam a alma desse autor e seus coetâneos frente aos diversos sucederes históricos dos
quais participovam: o congresso de viena, o Risorgimento, a invasão dos território papais e
constituição do estado-nação da Itália.
52

antecedem a tempestade. Ninguém quer receber a salvação a não ser dos


seus próprios males. O orgulho humano é deste jeito: só a adversidade
pode domá-lo. E Deus nos ensina com a adversidade. Será que bastariam
ao menos os males do passado para sacudir-nos e iluminar-nos? 26

A igreja se constitui no maior obstáculo neste momento enquanto mentora e guardiã


da organização social e política vigente. Os reformistas devem, necessariamente,
enfrentá-la e enfraquecê-la para se obter a unificação da península que se configura
não só como uma luta contra os Estados Pontifícios, mas, sobretudo contra os
princípios religiosos que davam sustentação ao poder temporal do papa.

De fato, a igreja consolidara até então um imenso poder econômico, político e social
que, mesmo se contestado pela Reforma Protestante, garantia-lhe, porém, o efetivo
controle social, político, econômico e ideológico da região sendo significativo
empecilho de progresso para a burguesia por sua tradição e mentalidade medieval
centrada na posse da terra e na dependência das populações ao seu comando.
Além do mais seu prestígio se estendia pelo mundo católico entendido por seus fiéis
como de origem divina. A Igreja se configura como espaço de resistência às
mudanças políticas e sociais, fortalecida por uma visão teocrática que justificava
suas propriedades, seus reinos-bispados e, sobretudo, os Estados Pontifícios, sério
obstáculo material e espiritual para unificação da península, porque encravado no
seu centro impedindo a integração física entre norte e sul. Na mentalidade católica
da época se associa esse confronto com o que Agostinho expressara em sua obra A
Cidade de Deus que polarizara as duas cidades, a de Deus e as dos homens, esta
dissoluta e pecadora, aquela santa e prefeita. Pelas armas os exércitos papais
defendiam a integridade territorial e nos púlpitos se denunciava os ataques a Deus e
à religião. Daí, o anátema ao liberalismo tinha sentido para os católicos porque
atingia em cheio os interesses materiais e espirituais da igreja. A unificação italiana

26
- “Ogni cosa s’agita intorno a me. L’Italia, e potrei dire l’Europa tutta, è sconvolta come um
maré in tempesta. Pensieri disordinati, passioni furiose vanno e vengono como onde che si
accavallano da opposte parti, e si scontrano e minacciano d’inghiottirci. Non è disordine passaggero
per lievi e recenti cagioni. È sconvolgimento profondo preparato da secoli. Ma gli uomini han chiuso gli
occhi per no vedere i nuovi che si accumulavano: han chiuso gli orecchi per non udire la romba della
procella. Nessuno vuol recivere saviezza (sic) se non da’ propri mali. Così è fatto l’umano orgoglio: la
sola l’avversità può domarlo.E Iddio ci ammaestra com l’avversità. Basteran eglino almeno i passati
Mali a scuoterci, e a illuminarci?”. LAMBRUSCHINI, Raffaello. Dell’Autorità e Della Libertà. Firenze:
La Nuova Italia, 1926, p. 5.

.
53

construída entre 1815 e 1870 teve nos ideais da Revolução Francesa o modelo para
se construir um novo Estado-nação.

Na França os acontecimentos que se sucederam à convocação dos


Estados Gerais (5 de maio de 1789) tiveram um rápido contragolpe em toda
a Itália: frente ao grande evento que modificava radicalmente o
relacionamento entre classes sociais com a definitiva abolição dos
privilégios feudais e a afirmação de igualdade de todos os cidadãos diante
da lei, a opinião pública rapidamente se dividiu entre aqueles que viram
nessas novas idéias o fim da ordem constituída, a vitória da violência, o
declínio de todos os princípios sobre os quais até então tinham sido
fundamentados os Estados, e os outros que olharam para a nova
experiência política como a um farol de nova luz, um exemplo a ser mantido
sempre presente por ser válido também além da terra da França. Estes
últimos formaram o movimento que foi chamado de jacobino por analogia
com a homônima corrente política para além dos Alpes, mas cujos
participantes preferiam chamar-se de “patriotas” para sublinhar mais a
dimensão nacional de sua ação do que a dependência ideológica e prática
da França. (...) Através do movimento jacobino a consciência nacional
passa na Itália de um plano cultural para um plano político, e
27
sucessivamente, da formulação ideal para a concreta ação política .

Os Estados Pontifícios dividiam a península em duas regiões bem definidas: o norte


com vocação urbano-industrial com um marcante pensamento liberal e o sul agrário
e tradicional. O Risorgimento deveria no norte enfrentar a ocupação estrangeira e no
sul o tradicionalismo rural afeiçoado ao papado e ainda os vários reinos com seus
príncipes vistos pelos revolucionários como incapazes de buscar o bem comum.

A vontade do príncipe é volúvel, sujeita às mais vis e mais perniciosas


paixões; de tal forma que no Despotismo todas as abominações, todas as
iniqüidades, todas as patifarias podem assumir o aspecto de bondade,
28
justiça e honestidade .

27
- Gli avvenimenti succeduti in Francia alla convocazione degli Stati Generali (5 maggio
1789) ebbero um rapido contracolpo in tutta Italia: di fronte al grandioso evento che modificava
radicalmente i rapporti fra classi sociali con la definitiva abolizione dei privilegi feudali e l’affermata
uguaglianza di tutti i cittadini di fronte alla legge, l’opinione pubblica si divise bem presto tra coloro
che nelle nuove idee videro la fine dell’ordine constituito, la vittoria della violenza, il declino di tutti i
principii sui quali si erano fino ad allora fondati gli stati, e quanti alla nuova esperienza politica
guardarano come ad un faro di nuova luce, ad um esempio da tenere costantemente presente perchè
valido anche al di là della terra di Francia. Questi ultimi formarono il movimento che venne detto
giacobino per analogia con l’omonima corrente politica di oltr’Alpe, ma i cui partecipanti preferirono
chiamarsi patrioti per sottolineare piuttosto l’aspetto nazionale della loro azione che la dipendenza
ideológica e pratica della Francia. (...) Con il movimento giacobino la coscienza nazionale passa in
Italia de un piano culturale a un piano político e, sucessivamente, dalla formulazione ideale alla
concreta azione politica. Cf. TALAMO, op. cit., p. 17.
28
- La volontà del príncipe è variable, e soggetta alle più vili, ed alle più perniciosi passsioni;
talché nel Despotismo tutte le abbominazioni, tutte le iniquità, tutte le ribalderie, possono prendere
aspecto di buono, di giusto, e di onesto. Cf. N. SPEDALIER, apud TALAMO, op. cit., p. 19.
54

. Giuseppe Mazzini é o principal ideólogo29 da unificação fundando a Jovem Itália


com a idéia de união dos estados da península numa única república com o fim de
libertar os autóctones das invasões e domínio estrangeiro, sobretudo das casas de
Habsburgos da Áustria e dos Bourbons da Espanha.

A Jovem Itália é a fraternidade dos italianos que acreditam numa lei de


Progresso e de Dever; e estão convencidos que a Itália é chamada a ser
uma Nação – que pode com suas próprias forças se auto-criar. (...) A Itália
compreende: a continental e peninsular entre o mar ao sul, o círculo
superior dos Alpes ao norte, a foz do rio Varo (“Varo” é o rio que se
encontra em Nice, na época considerada terra italiana hoje se encontra na
França) ao oeste, e Trieste ao leste; as ilhas declaradas italianas pelo
discurso dos habitantes nativos e destinados a entrar, com uma
organização administrativa especial, na unidade política italiana. A Nação é
a universalidade dos italianos, irmanados por um pacto e vivendo sob uma
30
lei comum ”.

O jornal Il Risorgimento, fundado em Turim em 1847 configurou e divulgou os


princípios destes ideais de unificação. Giuseppe Garibaldi foi o braço armado destes
ideais e Giuseppe Verdi, através da ópera, o seu divulgador criando uma
mentalidade social a favor da unificação. Especial destaque neste processo tem o
Conde Cavour que representa os ideais de unificação a partir de uma visão
conservadora e elitista, acreditando nos acordos diplomáticos e nas guerras
localizadas, diferente de Mazzini que coloca nas forças populares a base do levante
revolucionário. Giuseppe Garibaldi defende uma ditadura popular que se imponha
através de grandes ações militares, enquanto Giuseppe Verdi populariza a ópera
com fortes conotações políticas em defesa dos ideais da unificação. Seus temas
operísticos, em geral de origem bíblica do Antigo Testamento, tratam da libertação

29
- Destacam-se neste período alguns escritores e políticos da península que divulgaram,
aprofundaram e deram sustentação teórica a ideal do Risorgimento. Destacamos: Giovanni Dominico
Romagnoni (1781-1835). Escreveu Ciência das Constituições que só foi divulgada em 1848 mas que
teve forte impacto no nível das idéias e princípios; Vicente Gioberti (1801-1852). Escreveu Primato
Morale e Civile degli Italiani (1843); Prolegomini al Primato (1847); Il Rinovamento Civile d’Italia
(1852). Cesar Balbo (1789-1853). Escreveu As Esperanças da Itália (1844). Giuseppe Mazzini (1805-
1872). Os seus escritos foram compilados em 18 volumes. Sua atuação política com significativa
militância republica lhe deram o lugar de principal ideólogo da construção do Estado Italiano
moderno. Cf. MOSCA, Gaetano; BOUTHOUL, Gaston. História das Doutrinas Políticas. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1975, p. 245-252.
30
- La Giovine Italia è la fratellanza degli italiani credenti in una legge di Progresso e di Dovere;
i quali convinti che l’Italia è chiamata ad essere Nazione – che può con forze proprie crearsi da sè
(...). L’Italia comprende: l’Italia continentale e peninsulare fra Il mare al sud, Il cerchio superiore
dell’Alpi al nord, le bocche del Varo all’ovest, e Trieste all’est; le isole dichiarate italiane dalla favella
degli abitanti nativi, e destinati ad entrare, con un’organizazione amministrativa speciale, nell’unità
politica italiana. La Nazione è l’universalità degli Italiani, affratellati in un patto e viventi sotto uma
legge comune. “Giuseppe MAZZINI - Istruzione Generale per Gli Affratellati Nela Giovine Italia
(1831)”. In: TALAMO, op. cit., p. 49.
55

do povo da escravidão, numa explicita analogia à situação vivida por diversos reinos.
A música Va Pensiero se torna hino da unificação tendo na liberdade e na
autodeterminação o ideal do Risorgimento. A Áustria, após 1815, impusera sua
hegemonia no norte da península constituindo reinos absolutistas que gravitavam ao
seu redor. Os governos desses reinos não gozavam de apoio popular o que
favorecia a propagação de ideais nacionalistas e revolucionárias. Essa situação
favorecia a formação de diversas associações secretas que buscavam a libertação
de potências estrangeiras vendo na unificação o melhor meio de garantir a
estabilidade da região até então sujeita a sucessivas invasões. Os carbonários,
oriundos da pequena burguesia e sem ligações com bases populares, não
encontravam apoio dos camponeses católicos tradicionalistas. A Jovem Itália,
fundada por Mazzini, pretendia se libertar do domínio austríaco pelas armas
buscando a unificação dos reinos, enquanto os neoguelfos defendiam a união da
península sob a tutela do papado.

Na Europa os anos de 1848 e 1849 são marcados por inúmeras revoluções de


cunho liberal, quando então em 9 de fevereiro de 1849 os revolucionários cercaram
o palácio papal tendo Pio IX fugido disfarçado enquanto era proclamada a república
Italiana. Com apoio da Áustria, França e Espanha o papa retorna a Roma retomando
o comando da cidade em 1850. Com a derrota dos revoltosos há a restauração do
absolutismo em quase todos os reinos da península. Nas áreas já integradas à nova
Itália há crescente política de restrição aos poderes da igreja. Em 1850 a lei Siccardi
determina a abolição das imunidades eclesiásticas. Há ruptura diplomática entre a
Santa sé e o Estado sardo, sendo o arcebispo de Turim expulso do reino. Em 1855 é
feita a lei contra os conventos que são estatizados com apropriação de seus bens
pelo Estado. Em 1860 parte dos Estados Pontifícios é anexada ao Estado Sardo
sendo, em 1861, proclamado o Reino da Itália 31. A partir de 1870, com a dissolução

31
-Coube a Vitor Emanuel II, com o significativo apoio do seu chefe de gabinete Conde Cavour
obter a unificação da Itália. Com o apoio da França e Inglaterra fez frente à Áustria nas guerras de
independência que foram concluídas em 10 de novembro de 1859 com o Tratado de Zurique. Em
1860 com o apoio de Garibaldi Nápoles e a Sicilia foram integrados à Itália. Neste ano também o
exército de Vitor Emanuel conquista os Estados Pontifícios. Em 17 de março de 1861 é proclamado
rei da Itália sendo reconhecido pela comunidade internacional com exceção da Áustria. Restava
como focos de resistência o Veneto em poder da Áustria e Roma em poder do papa. A Região do
Veneto foi integrada Itália em 1868 depois que a Áustria foi derrotada pela Prússia. O exercito francês
que protegia Roma teve que se retirar para se integrar na campanha contra a Prússia, deixando a
cidade desguarnecida e a 20 de setembro de 1870 que foi ocupada pelo exército de Vitor Emanuel. O
56

dos Estados Pontifícios, Roma se torna a sua capital. No dia 25 de Março de 1861
Cavour como presidente do Conselho dos ministros profere um histórico discurso 32
na câmara dos deputados justificando o sentido de Roma ser a capital da Itália.
Afirma:

Senhores, agora em Roma concorrem todas as circunstâncias históricas,


intelectuais, morais que devam determinar as condições de capital de um
grande estado. Roma é a única cidade da Itália que não tenha lembranças
exclusivamente municipais; toda a história de Roma desde o tempo dos
Césares até hoje é a história de uma cidade, cuja importância vai muito
além do seu território; quer dizer, de uma cidade que é destinada a ser a
capital de um grande Estado. Convencido, profundamente convencido desta
verdade, sinto-me obrigado a proclamar isso da forma mais solene possível
diante de vós, diante da nação, e me sinto obrigado, nesta circunstância, de
apelar ao patriotismo de todos os cidadãos e dos representantes das mais
ilustres cidades, de tal maneira que cesse toda discussão sobre essa
questão, afim de que possamos declarar à Europa, a fim de que quem tem
a honra de representar este país diante das potências estrangeiras possa
afirmar: a necessidade de ter Roma por capital é reconhecida e proclamada
33
por toda a nação ”.

Em 1866 são suspensas as corporações religiosas e no ano seguinte a liquidação


dos bens eclesiásticos. Em 1870, politicamente enfraquecido, Pio IX se auto-declara
“prisioneiro voluntário do Vaticano” recusando-se aceitar as “leis das garantias” que
lhe propunha o governo italiano. O contexto era dramático porque polarizara Igreja e
Estado Italiano:

São anos nos quais parece impossível compor juntos religião e pátria: o
católico está ao lado do papa e, por isso, contra a Itália. O verdadeiro
patriota não pode deixar de ser anticlerical. Após 1870 as coisas,
evidentemente, pioraram: posições intermediárias e conciliatórias
pareceram faltar e a oposição entre Estado e Igreja repercutiu-se no íntimo
da consciência de cada um como antítese entre italiano e católico. Tinha
sido fácil ao neoguibelinismo triunfante envolver o papado político com o

papa Pio IX se nega a qualquer negociação com o novo governo italiano se auto declarando
prisioneiro do Estado Italiano e proibindo aos católicos de votarem nas eleições do novo Reino.
32
- O discurso foi em vários momentos aplaudido e no fim ovacionado com “vivi applausi”.
33
- “Ora, o Signori, in Roma concorrono tutte le circunstanze storiche, intellecttuali, morali che
devano determinare le condizioni della capitale di un grande stato. Roma è la sola cità d’Italia che non
abbia memorie esclusivamente municipali; tutta la storia di Roma dal tempo dei Cesari al giorno
d’oggi è la storia di una città la cui importanza si estende infinitamente al di là del suo territorio; di una
città, cioè, destinata ad essere la capitale di un grande Stato. Convinto, profondamente convinto di
questà verità, io mi credo in obbligo di proclamarlo nel modo più solenne davanti a voi, davanti alla
nazione, e mi tengo in obbligo di fare in questa circostanza appello al pattriotismo di tutti i cittadini e
dei rappresentanti delle più illustri città, onde cessi ogni discussione in propósito, affinché noi
possiamo dichiarare all”Europa, affinché chi ha l’onore di rappresentare questo paese a fronte delle
estere potenze possa dire: la necessita di aver Roma per capitale è riconosciuta e proclamata
dall’intera nazione”. Discorso detto nella câmera dei deputati Il 25 marzo 1861 in ocasione della
discussione sulle interpellanze del deputato Audinot al Ministero intorno alla questione di Roma.
TALAMO, op. cit., p. 170.
57

papado religioso. Afirmavam que combater e golpear o papa como chefe do


Estado pontifício era combater e golpear ao mesmo tempo o papa como
chefe da Igreja católica. Profetizavam que a ruína do Estado pontifício teria
sido a ruína ao mesmo tempo da religião católica. Para eles a tomada de
Roma não era mais apenas o cumprimento de uma legítima aspiração
nacional com a realização da unidade italiana, mas assumia um significado
de luta religiosa, de triunfo sobre o catolicismo, de fim do pontificado
34
romano e coisas semelhantes .

O Risorgimento radicalizava e polarizava a antítese entre ser católico e patriota. É


um período de uma Itália anticlerical e qualquer ato cívico era tido como um ato
contra o Vaticano. Tais radicalizações fizeram com que a unidade política não fosse
acompanhada da unidade de espírito. A Itália nascia cindida e radicalmente
anticlerical passando uma imagem de um Estado frágil, pois repercutia
internacionalmente sobre milhões de católicos o fato do papa ser tido como
prisioneiro. A nova nação nascia com duas grandes fraturas: burguesa e anticlerical.
A massa pobre católica não participava da vida política por imposição do papa,
explicitando e radicalizando a incompatibilidade entre a vida política e a vida
católica. Também no parlamento tenta-se calar as vozes de deputados que eram
católicos militantes. Radicaliza-se a proposição da fórmula “né eletti né elettori,
fortalecendo a imagem de um governo que assumia o papel de usurpador do poder
papal. Qualquer participação política, então, seria dar legitimidade aos usurpadores
dos Estados papais e da Igreja e, portanto, inimigos da religião.

Este é o panorama da península Itálica do século XIX quando em 1815 nasce


Giovanni Belchior Bosco. Campesino, ele teria sido um dos milhares de rostos
anônimos do campo levando uma vida previsível, lavrando a terra, realizando
plantios e colheitas, garantido a sobrevivência de sua família, indo às missa
dominicais e ouvindo as prédicas de curas rurais. Essa vida previsível, porém, foi
rompida. Camponês e católico fervoroso, ao sair do seu mundo rural e adentrar na
vida da urbe confrontou-se com o anti clericalismo e o liberalismo e, ao assumir a

34
“Sono gli anni nei quali sembra impossibile comporre insieme religione e pátria: Il cattolico è
per il papa, dunque è contro l’Italia. Il vero patriota non può non essere anticlericale. Dopo il 1870 le
cose, evidentemente, peggiorarono: le posizioni medie e concilianti sembrarono scomparse e l’antitesi
fra Stato e Chiesa si ripercosse nell’intimo della coscienza di ciascuno come antitesi fra italiano e
cattolico. Era stato facile al neoghibellinismo trionfante coinvolgere nel papato político Il papato
religioso. Professavano che combattere e colpire Il Papa come capo dello Stato pontifício era
combattere e colpire, insieme, Il Papa come capo della Chiesa cattolica. Profetavano che la rovina
dello Stato pontifício sarebe stata la rovina, insieme, della religione cattolica. Per essi la presa di
Roma non era più soltanto l’adempimento di una legittima aspirazione nazionale col compimento
dell’unità italiana, ma acquistava un significato di lotta religiosa, di trionfo sul cattolicessimo, di fine del
pontificato romano, e simili”. MORONI, op. cit., p. 48.
58

missão de educador das classes marginalizadas pelas estruturas de uma economia


pré-industrial, teve que responder aos graves problemas sociais que assolavam a
juventude de seu tempo, tornando-se interlocutor com um governo contrário aos
seus valores religiosos e cívicos, e que, paradoxalmente, não raras vezes o ajudou e
foi seu parceiro. Foi neste contexto que o ministro Cavour não só fechou os olhos
para a fundação de sua congregação, como ainda o aconselhou que desse um
aparente rosto civil à nova agremiação religiosa que nascia na contra mão da
história quando se fechavam conventos, confiscavam-se os bens da igreja e, acima
de tudo, odiavam-se frades. Foi a partir da Sociedade São Francisco de Sales que
seus “sócios” numa Itália conturbada, liderados por Giovanni Bosco construíram
abrigos, internatos, obras sociais, escolas profissionais, gráficas e oratórios35
festivos. Quando de sua morte em 1888 sua “Sociedade” possuía reconhecimento e
respeito civil e eclesiástico e tinha elaborado e consolidado um conjunto de
princípios educacionais que respondiam às necessidades dos novos tempos e que
seria o diferencial de suas inúmeras fundações implantadas e em fase de
consolidação na Itália, França, Espanha, Argentina e Brasil.

35
- O Oratório festivo era um espaço que funcionava nos finais de semana com esportes,
recreações, música e formação religiosa com a finalidade de retirar adolescentes e jovens das ruas
nos dias em que não trabalhavam, quando, ociosos, estavam mais vulneráveis à bebida, jogos,
pequenos furtos e violência.
59

2.2 O Fundador: um camponês com coração do feudo e uma razão


da cidade – Uma visão histórica

A vida de um fundador não pode ser abstraída do seu meio econômico, político e
social. Costuma-se chamar o contexto onde alguém vive de fundo histórico. Esta
expressão, ainda que consagrada, é pobre porque passa a idéia dum fundo de cena
que apenas contextualiza o “ator”. Cada pessoa é produto de seu meio, reagindo e
interagindo a ele. A cultura é resultado do modo de produção das riquezas e dos
meios de subsistência. O ser humano, ainda que dotado de potencialidades
racionais e espirituais, tem como necessidade primeira o atendimento de suas
exigências biológicas ou, de uma forma menos elegante, de suas necessidades
animais. A única e real riqueza é o alimento. Todos os outros elementos culturais
são adereços a essa necessidade primária. Garantida sua vida biológica o homem
organiza a sociedade, as leis e os costumes em torno dos seus meios de
subsistência. Quando a sociedade se torna complexa, a luta pela sobrevivência
ganha foros de embate político, de poder e de status. Nas sociedades mais
complexas os mais capazes de acumular meios de sobrevivência se impõem
psicológica e materialmente ostentando, através das riquezas acumuladas, sua
capacidade não só de sobreviver, mas de se sobrepor sobre os outros numa ótica
darwiniana. Esta demonstração de força animal primária emerge e está subjacente
em todas as formas de modos de produção, seja através do acúmulo de metais
preciosos, seja no capitalismo comercial ou industrial, expressando sempre, de
forma subliminar, o poder de sobrevivência dos mais fortes. Essa desmistificação da
globalidade do suceder social é desconcertante, mas real. O modo de produção dos
meios de subsistência será determinante para a organização ideológica da
sociedade nos seus aspectos teóricos e eruditos. Portanto, lutas sociais e políticas
em qualquer época da história, ainda que em seu meio existam idealistas que
aparentemente transcendam a esse impulso primário, terão essa premissa em sua
origem. Assim, os grandes embates ideológicos, sociais e políticos do século XIX,
ainda que elegantemente etiquetados com as mais variadas e eruditas
denominações, terão na sua essência essas forças primárias que tendem a
determinar os rumos da história. É nesta “calda primária” que estão envoltos os
fundadores e, por mais espirituais que sejam seus ideais e suas visões, no momento
em que promovem interferências na sociedade, explicita ou implicitamente serão
60

expressão desses impulsos primários. Daí, a agressividade dos detentores do poder


a todo e qualquer movimento que de alguma forma promova mudanças na
sociedade desestabilizando ou enfraquecendo o status quo. Todo reformador
sempre encontrará hostilidade dos senhores da situação, seja ela econômica,
política, ou religiosa.

Com relação à experiência fundante de João Bosco no século XIX, seguindo a lógica
dos raciocínios anteriormente expostos, não procede se falar dum “pano de fundo”
histórico-social, mas de uma realidade econômico-social que lhe moldou a
personalidade numa época de conflitos e tensões ideológicas quando se mesclam,
confundem e confrontam modos de produção antagônicos. O subsolo econômico
deste século se mostra instável gerando “abalos sísmicos” sociais. Numa mesma
península estão presentes relações campesinas oriundas da idade média, grupos de
comerciantes e uma nascente classe industrial que se conflitam e antagonizam
desestabilizando a um só tempo a igreja, reinos, feudos, manufaturas e
trabalhadores. Para o homem simples ou letrado dessa época essas movimentações
econômico-sociais eram de difícil compreensão e assimilação porque antigos
modelos eram abalados sem que os novos apresentassem consistência
convincente.

A obra iniciada por João Bosco ao projetar-se para o mundo possui uma explicita
proposta religiosa e educacional. Apreender e compreender o perfil deste homem
representa nos apropriarmos do embasamento humano e religioso que deu
sustentação à elaboração da pedagogia salesiana que, nascida no século XIX, se
projetou para o século XX e procura estabelecer diálogo com o século XXI. Entender
o homem e o seu entorno humano e cultural é captar o modelo pedagógico de
educação que propôs, procurando vislumbrar neste retorno ao passado aqueles
elementos educacionais que transcendem tanto a mentalidade do homem Bosco,
como a de seu tempo, porque atemporais.

João Bosco viu sua experiência pessoal se transformar em experiência fundante. Ele
fez parte daquele contingente de jovens que migraram, foram aprendizes e
passaram necessidades. No entanto, na narração do mito fundacional salesiano
essas experiências são narradas como únicas, heróicas e épicas. A casa pobre que
morava era como a de todos os campesinos. Mas nas narrativas, a “dele”, tende a
61

ser descrita como a mais pobre, a mais sofrida e limitada que as outras. A
idealização exagerada distancia de tal forma a realidade vivida pelo fundador que
seu ideal pode parecer também inexeqüível porque demais desencarnado e
idealizado.

Não se trata de diminuir os fundadores e relativizar suas experiências fundacionais


que, por dotes especiais e/ou circunstâncias históricas, fizeram diferença na história
com soluções inovadoras. Foram homens determinados que agregaram a si
discípulos e fizeram transcender para além de suas vidas e do seu tempo seus
ideais. Essa projeção no tempo e na história de experiências fundantes não pode ser
minimizada, pois houve efetivamente algo de especial e significativo na vida e nas
ações dessas pessoas capazes de criar propostas atemporais. Daí a importância do
mito fundacional como essencial para a perpetuação e reprodução da experiência
fundante. Uma análise crítica da história traz a vida dos fundadores para a sua real
dimensão que, longe de desmistificá-los, ao torná-los mais humanos e próximos de
nós, os fortalece porque a realidade de suas vidas com seus sucessos e percalços
permite ao homem de hoje perceber que os ideais fundacionais existem como
ideais, mas seus fundadores passaram pelas dificuldades naturais da vida no
processo de sua implantação, nem sempre atingindo a perfeição elaborada
teoricamente. E isso pode ser constatado por uma análise real dos caminhos
trilhados pelos fundadores.

A vida do fundador é como a dos outros homens. Há um momento, porém, em que,


de alguma forma, suas ações se destacam das outras, inicialmente, por uma tímida
liderança entre seus pares, ganhando corpo aos poucos e atraindo seguidores, até
que há o “insight” de que algo começa ser diferente de outras ações e pensamentos.
O próprio fundador toma consciência que algo de especial emana de sua vida, o que
é reforçado por seus seguidores, ganhando importância para além do seu próprio
grupo com o reconhecimento da sociedade. Uma aura o envolve começando
acreditar que tem uma missão, divina ou humana, de caráter soteriológico para a
humanidade. Consciente ou inconscientemente criam-se mitos e idealizações sobre
o fundador e seus discípulos, desencarnando suas experiências do cotidiano e do
trivial ao dar-lhes um caráter que transcendente a vida comum. Os primeiros
discípulos se auto-qualificam como intérpretes autênticos, se mostrando arredios a
62

críticas e a contestações, não raro, demonizando opositores e críticos.


Eventualmente alguns discípulos fanatizados adquirem tal miopia frente ao mundo
que assumem uma visão reducionista de apreender a realidade unicamente sob a
ótica dos princípios do fundador. Acreditam-se também possuidores de uma missão
e, essa certeza, tanto mais se fortalece na medida em que crescem em prestigio.
Mesmo suas edificações são provas-símbolo de sucesso de “predestinação”
enquanto materialização de seus ideais. Os elementos agora elencados devem ser
levados em consideração quando se estuda fundações.

Este processo também aconteceu com Dom Bosco que, como tantos camponeses
do Piemonte, também deixou o mundo rural e ingressou no urbano. Essa passagem
não é apenas física, mas, sobretudo espiritual. No século XIX ir para uma cidade em
início de industrialização é mais que percorrer alguns quilômetros entre o campo e a
urbe, mas era transpor no percurso de uma pequena viagem a barreira de vários
séculos com a quebra de paradigmas culturais, religiosos e sociais. Sua história
pessoal36 é como a de tantos adolescentes e jovens que saíram dos campos para se
integrarem no ambiente urbano-industrial que começa a se organizar em algumas
cidades da península, acreditando-se que nelas as oportunidades seriam melhores.
João Bosco na cidade busca sua subsistência37 como aprendiz. Em 1835 ingressa

36
- Bosco nasce no dia 16 de agosto de 1815 numa modesta família de meeiros na região de
Turim. Margarida Occhiena é casada com Francisco Bosco, viúvo que trazia para essas segundas
núpcias um filho de nome Antônio. Dois anos após o nascimento de João seu pai vem a falecer
vitimado por pneumonia. A vida da família fica transtornada pela ausência de seu chefe. São a mãe,
três irmãos e uma velha avó. As dificuldades de sobrevivência se ampliam sendo inclusive Margarida
Occhiena processada por não cumprir compromissos assumidos com um arrendatário. A figura de
Margarida é um referencial significativo na vida dos filhos. . Cf. BOSCO, João. Memórias do
Oratório São Francisco de Sales. São Paulo: Salesiana, 2006, p. 23-27.

37
- Camponeses alternam suas vidas entre as lidas do campo, os trabalhos nos celeiros e a
freqüência a vida religiosa. O piemonte é uma região de significativa tradição religiosa e mística com
a religião perpassando toda a vida dos camponeses. A Igreja com seus capelães dá significado à vida
e à morte, ao plantio e às colheitas. A liturgia dos templos se confunde e se mescla com o suceder
das estações. João Bosco, adolescente e jovem, assistindo a desintegração dos estados papais, o
avanço do liberalismo e os movimentos anticlericais, não deixa de descrever de forma idealizada a
vida no campo regida pelas duras lidas do manejo da terra, mas adocicada pelo som dos
campanários a lembrar a caducidade desta vida. Prevalecia aí o tempo de Deus e não o tempo dos
homens, retratando quase de forma idílica esta sociedade com reis, trabalho e reza com o olhar
sempre voltado para eternidade. Essa cosmovisão cristã impregnará alma de João Bosco por toda
vida, mesmo depois que adentrando na cidade e se relacionando politicamente com os liberais, tenha
assumido ações afinadas com o mundo urbano e industrial. Os ideais inculcados em sua educação
no campo serão referencias por toda sua vida, mesmo quando realize ações pragmáticas no mundo
industrial que nasce. Cf. BOSCO, op. cit., p. 23-27.
63

no seminário de Chieri38 para os estudos eclesiásticos. Ordenado sacerdote em


1841, por conselho de seu amigo José Cafasso39, ao invés de assumir logo um
trabalho pastoral, ingressa no Convitto ecclesiastico40 que preparava sacerdotes
para um trabalho religioso próximo das necessidades do povo, fugindo da índole
teórico-acadêmica do seminário de Chieri, o que, aliás, se enquadrava bem com sua
índole pragmática de camponês.

A finalidade explicita era a formação moral prática com finalidade pastoral.


Entretanto, de modo crescente, revelou-se determinante seu impacto com a
cidade de Turim e o envolvimento na sorte de uma juventude que no futuro
Dom Bosco definiria como “pobre e abandonada”, “em perigo e perigosa”.
(...) Turim era uma cidade burocrática, rica de manufaturas e oficinas de
artesanato, em expansão idílica e demográfica, também em razão da
crescente imigração. (320 mil habitantes). Aumentava ao mesmo tempo os
problemas sociais, inclusive a delinqüência juvenil, masculina e feminina:
41
era a outra face da cidade .

Após três anos de estudo coloca-se a serviço da marquesa Barolo42 na sua obra de
assistência a meninas carentes e órfãs. Egresso do mundo acadêmico,

38
- Chieri é um município italiano da região do Piemonte, província de Turim.
39
- José Cafasso nasceu em 1811 em Castelnuovo D’Asti. Ordenou-se sacerdote aos 23 anos
e foi responsável pela formação de mais de 100 sacerdotes. Exerceu boa parte do seu ministério no
atendimento aos condenados à forca. Foi formador de João Bosco a quem fez sentir a miséria moral
em que vivia a juventude pobre. Faleceu em 1860 aos 49 anos.
40
- A anotação que segue é extraída dos regulamentos e objetivos que regem a fundação do
Convitto: “A necessidade de ter bons eclesiásticos ministros da Igreja, e a calamidade dos tempos
que fizeram encalhar todos os meios para isso, fizeram refletir. Sempre se reconheceu ser necessário
aos eclesiásticos, depois do qüinqüênio de teologia, o estudo da moral prática. Ser necessário para
os jovens eclesiásticos algum exercício de preparação para o púlpito antes de nele se encontrarem
obrigados por razão de emprego, e por isso foram tomadas providências pelos nossos
reverendíssimos arcebispos a esse respeito”. BOSCO, op. cit.,. Nota AAT 19,15, p. 117.
41
- BRAIDO, Pietro. Dom Bosco, Padre dos Jovens no Século da Liberdade Vol. I e II. São
Paulo, Editora Salesiana, 2008, v. I., p. 160.

42
- French Julieta Colbert de Maulévrier ( 1764 - 1838 ), more well-known like Marquesa de
Barolo, was famous Turinese lady of Siglo XIX that was interested in the situation of the children and
marginal young people or in difficult situations in a time in which Turin lived its own industrial
Revolution and Italy marched towards its unification obtained in 1870 and that had like hepicentro to
Piedmont . It founded several religious institutes and civil, all to the benefit of the girls and their figure
in addition and are related to another Turinese illustrious like Don Bosco Jose Allamano . The
description of its person and her apostolate carefully was elaborated by the biographer of Don Bosco,
G. Lemoyne thanks to the encounter between these two remarkable personages of the piamontesa
society. SPEEDYLOOK. Marquesa de Barolo. Disponível em:
< www.myetymology.com/encyclopedia/Marquesa_de_Barolo.html>. Acesso em: 23. abr. 2011.
64

paulatinamente, vai tomando contato com a realidade social do entorno miserável de


Turim, sensibilizando-se com o grande número de crianças, adolescentes e jovens
nas prisões, muitos deles condenados à forca. Percebe que qualquer ação nas
cadeias seria apenas um paliativo a uma situação já sem solução de criminalidade.
Intuí que seria necessário evitar que os jovens chegassem às prisões.

Um episódio será marcante em sua vida. No dia 8 de dezembro de 1841 tem um


primeiro contato que lhe forneceria um horizonte de trabalho. O adolescente de 16
anos, Bartolomeu Garelli, amedrontado e faminto, adentrara a sacristia da igreja São
Francisco de Assis, sendo acolhido com atenção e, após uma cordial conversa, lhe
propõe que retorne no final de semana para ter catecismo e que traga alguns
colegas. Garelli traz alguns colegas que, em poucos meses, já chegavam a
quatrocentos. Vinham em busca de alimento e brincadeiras organizadas por aquele
padre que se mostrava amigo. Essa forma de reunião de jovens se chamava de
oratório festivo43 e tinha por finalidade o ensino do catecismo e a criação de um
ambiente recreativo saudável para adolescentes e jovens de famílias que
freqüentavam as paróquias, mas se mostrava insuficiente para atender a vida
concreta destes jovens marginalizados.

Sua preocupação inicial fora o atendimento religioso a esses adolescentes e jovens


e a prática de algumas recreações que os mantivessem afastados dos ambientes
onde pudessem se corromper. Sente, porém, que é necessário dar-lhes meios para
que se integrem na sociedade pré-industrial que se implantava, constatando que
jovens oriundos dos campos não estavam aptos profissionalmente para o nascente
mundo industrial. A profissionalização lhes traria vantagens como mão de obra

43
Os Oratórios festivos já eram uma prática da Itália dos mil e oitocentos. Em torno das
paróquias criavam-se esses ambientes que tinham por objetivo o atendimento das crianças das
famílias que freqüentavam as igrejas, sendo espaço especificamente paroquial e familiar. Reunir um
grupo de 400 adolescentes com dificuldades de integração social, sem família e propensões a ações
anti-sociais não era bem visto. Rodeado de um grupo numeroso, suspeito e itinerante pelas ruas de
Turim fazia com que a sociedade se sentisse ameaçada. Era um padre que se misturava em nível de
igualdade com essa gente. Os locais de recreação iam variando conforme as reclamações dos
vizinhos chegassem à policia ou aos líderes da Igreja. A situação só irá melhorar com o aluguel e
posterior compra da Casa Pinardi que será então o primeiro oratório com propriedade própria, se bem
que comprado num bairro suspeito tendo com vizinho um prostíbulo conhecido como a Jardineira.
65

especializada com poder de barganha por melhores salários. Cria as Escolas


Profissionais de Artes e Ofícios a partir duma visão humanista cristã. Elabora
contratos de trabalho salvaguardando salário digno, direitos, tempo de descanso
sendo, ele mesmo, o negociador com os patrões como avalista de que tais contratos
seriam cumpridos de ambas as partes. O internato é outra solução para jovens que
perambulavam pela cidade vivendo de esmolas ou pequenos furtos. Implanta ainda
escolas noturnas para os jovens trabalhadores percebendo no estudo uma
necessidade fundamental para a integração deles no ambiente urbano-industrial.

Essa sua busca de soluções para os problemas sociais dos jovens de Turim, longe
de ser entendida como um benefício é recebida pelas autoridades e parte da
burguesia com estranhamento e eventuais hostilidades. Aos poucos chama a
atenção da cidade, menos pelo trabalho realizado, e mais pela clientela que reunia e
que parecia – em tempos tão conturbados – uma ameaça à segurança pública, pois
se eram tempos de revoltas e insatisfações, temia-se que se tornassem massa de
manobra para sublevações políticas ou mesmo para tumultos de arruaceiros. Essa
preocupação é explicitada do diálogo encetado entre João Bosco e Cavour44:

Um dia, ao ver que com um simples gesto de mão eu impunha silêncio a


cerca de 400 jovens que pulavam e faziam algazarra no prado, um guarda
pôs-se a exclamar:

- “Se esse padre fosse um general, poderia combater contra o mais


poderoso exército do mundo”.

(...) Essa afirmação ridícula novamente mereceu crédito entre as


autoridades locais e especialmente o marquês Cavour. (...) Mandou-me
chamar ao palácio municipal e depois de muito discorrer sobre as intrigas
que circulavam a meu respeito, concluiu:

-“Meu bom padre, aceite meu conselho: não se meta com esses canalhas.
Eles são causarão aborrecimentos ao senhor e às autoridades públicas,
Garantiram-me que essas reuniões são perigosas e por isso não posso
tolerá-las.

44
- Camilo Benso, Conde de Cavour. (Turim 1810- 1861) - Político piemontês, iniciador da
unidade italiana. Funda o jornal Il Risorgimento que exerce uma considerável influência na unificação
da península e na divulgação do pensamento liberal. Foi presidente do conselho por volta de 1852,
permanecendo no cargo até sua morte. Em política interna preocupa-se em afirmar a liberdade
individual, a liberdade de imprensa e a dos cultos, combate o clero, cuja influência se encarrega de
limitar, faz vender os bens eclesiásticos improdutivos e arrebata às ordens religiosas o monopólio do
ensino. VIDAS Lusófonas. Conde de Cavour. Disponível em:
<http://www.vidaslusofonas.pt/conde_de_cavour.htm>. Acesso em: 23 abr. 2010. .
66

-Não tenho outro objetivo, senhor marquês – respondi – que não o de


melhorar a sorte desses pobres filhos do povo. Não peço recursos
pecuniários, mas somente um lugar para recolhê-los. Espero desse modo
diminuir o número de desordeiros e dos que vão para a cadeia.

-Engana-se, meu bom, padre. O senhor se cansa inutilmente. Não posso


arranjar-lhe nenhum lugar, pois suas reuniões são perigosas; e onde
arranjará recursos para pagar aluguéis e fazer frente a tantas despesas que
lhe trazem esses vagabundos? Repito que não posso permitir essas
concentrações.

-Os resultados alcançados, senhor marquês, dão-me a certeza de que não


estou trabalhando em vão. Muitos rapazes totalmente abandonados foram
recolhidos, libertados dos perigos, encaminhados a algum ofício e não
foram parar na cadeia. (...)

- Tenha paciência, obedeça-me sem mais; não posso permitir-lhe essas


reuniões.

- Não é por mim, senhor marquês, mas pelo bem de tantos rapazes
abandonados, que talvez tivessem um triste fim.

-Cale-se. Não estou aqui para discutir. Trata-se de uma desordem e eu


45
quero e devo impedi-la. (...)

Sua determinação, porém, em agregar esses jovens é maior que as considerações e


ponderações das autoridades civis e eclesiásticas. Há até os que chegaram a ajudá-
lo, mas, seus métodos fora dos padrões educacionais e assistenciais da época
criavam conflitos com esses voluntários que, no mínimo, não o entendiam ou, no
máximo, achavam insensatez seu método de educação, acabando quase todos por
abandoná-lo. Faz então uma opção ousada: seleciona entre seus assistidos os mais
velhos e de melhor índole e os constitui seus auxiliares na educação dos mais
novos, conferindo-lhes responsabilidades cada vez maiores na medida em que
correspondiam aos seus projetos educacionais46.

Apesar do crescente anticlericalismo acirrado pelos embates do governo com os


Estados Pontifícios e a radicalização dos liberais com crescentes hostilidades aos
“frades47”, Bosco começa a angariar reconhecimento pelo impacto social positivo do
seu trabalho, enquanto apresenta resultados tangíveis ao problema dos jovens

45
-BOSCO, op. cit., p. 152-154.
46
- Inicialmente João Bosco não cria um projeto de ação, mas apenas dá respostas às
emergências que surgem.
47
- No contexto do Risorgimento o termo “frade” torna-se pejorativo indicando ordens religiosas
não produtivas e parasitárias da sociedade. Fundar mais uma ordem religiosa neste contexto é estar
na contramão da história.
67

marginalizados por ele atendidos e que recebem educação e qualificação


profissional.

Se as coisas iam se resolvendo em nível civil o mesmo não acontecia no contexto


da diocese de Turim. Dois bispos, inicialmente seus amigos, tornaram-se,
posteriormente, seus adversários48. Dom Alexandre Ricccardi49 esfriará seu antes
amistoso relacionamento com Dom Bosco, enquanto Dom Lorenzo Gastaldi 50 far-
lhe-á sistemática hostilidade com retaliações que cerceavam sua ação, procurando
desacreditá-lo junto à Santa Sé. O reconhecimento definitivo por Roma, já em
andamento e que daria autonomia à congregação declarando-a de direito pontifício e
ligando-a diretamente ao papa, torna-se emergencial frente às hostilidades
autoritárias de Gastaldi. Propor, porém, a fundação de uma associação religiosa
quando o liberalismo rejeitava os “frades” tidos como improdutivos no sistema da
Nova Itália e muitas congregações eram fechadas e seus bens confiscados seria
uma utopia. João Bosco usará, porém, de uma artimanha que lhe garantirá o
reconhecimento civil, considerando o impacto social positivo de seu trabalho. A
solução para a constituição da nova congregação partirá, paradoxalmente, do

48
- Se com Dom Riccardi as tensões se iniciaram, elas se tornaram exarcebadas nos dez anos
seguintes com Dom Gastaldi feito bispo de Turim por influência direta de Bosco junto do papa Pio IX.
Inicialmente eram amigos. João Bosco, porém, cometera a inabilidade diplomática ao lhe falar que lhe
devia o cargo de Arcebispo. Essa afirmação os distanciou de forma radical. O arcebispo expressara
toda sua mágoa ao ex-aluno do oratório teólogo Tereso ao desabafar-se: “Vangloria-se de ter
conseguido minha nomeação para bispo. Aliás, escreveu-me até uma carta, lançando-me isso no
rosto”. Na catedral de Turim numa pregação inflamada dissera que “a sua eleição era um gesto
inesperado da divina providência, para a qual não havia contribuído nenhum favor humano. Fora o
Espírito Santo, e somente ele, a pô-lo à frente da Arquidiocese de Turim”. Após dez anos de
confronto, o caso é levado a julgamento no Vaticano e a maior parte dos cardeais que julgaram a
questão ficou favorável a João Bosco, mas, visando não quebrar a autoridade de Dom Gastaldi e,
portanto enfraquecer a hierarquia, Leão XIII impõe a João Bosco a obrigação de pedir perdão em
carta pública ao bispo e, determina que o bispo, também em carta publica, lhe dê o perdão. Essa
situação – com forte impacto em Turim - não deixou de ser um rude golpe na congregação quando
seu fundador recebia a pecha de indisciplinado e desobediente à hierarquia. Alguns sacerdotes e
clérigos abandonaram a congregação. Frente à obediência incondicional de João Bosco neste
episódio, Leão XIII, talvez com fim reparar a injustiça cometida, com rapidez atendeu a todos os
trâmites solicitados por ele para o reconhecimento definitivo e autonomia de sua congregação. O
desgaste emocional dessa querela, porém, começou a minar fortemente a saúde do fundador. Cf.
BOSCO, Terésio. Dom Bosco: uma Biografia Nova. São Paulo: Salesiana, 2008, p. 487-499.
49
- Bispo de Turim entre 1867 a 1870.
50
- Bispo de Turim entre 1870 a 1883.
68

ministro liberal e anticlerical Urbano Rattazzi 51 que lhe proporá a fundação de uma
sociedade civil52 dedicada à juventude.

Numa tarde de verão de 1857, Dom Bosco foi recebido pelo ministro
Rattazzi, A conversa foi cair sobre a “obra dos oratórios” que o ministro
apreciava, especialmente depois da dedicação dos jovens em favor dos
coléricos da generala. Segundo a relação de Lemoyene, a conversa teve o
seguinte desenvolvimento:

.(...) senhor ministro, que poderei fazer para a sobrevivência de minha obra?

- a meu ver, deveria escolher dentro os leigos e os eclesiásticos de sua


confiança, algumas pessoas. Impregná-las do seu espírito. Adestrá-las no
seu sistema. E formar uma sociedade. Por ora, serão seus auxiliares.
Amanhã, seus continuadores.

Dom Bosco sorriu.

- Mas Vossa excelência, há dois anos, fez aprovar uma lei para a
suspensão de muitas comunidades religiosas. O que está propondo é
exatamente uma nova comunidade religiosa. Deixá-la-á sobreviver o
governo?

-Eu conheço muito bem a lei da suspensão – sorriu por sua vez, Rattazzi. O
senhor poderá fundar uma sociedade que nenhuma lei poderá jamais
afundar.

- E como?

- Um Estado leigo não poderá nunca reconhecer uma sociedade religiosa,


como dependente da igreja, isto é, de uma autoridade diferente da sua.
Mas, se nasce uma sociedade, em que cada membro conserva os direitos
civis, se submete às leis do Estado, paga os impostos, então o Estado nada
poderá objetar. Perante ele, tal sociedade é apenas uma associação de
cidadãos livres, que se unem e vivem juntos com uma finalidade de
beneficência, assim como outros se unem para uma finalidade de comércio,
de indústria e de mútuo socorro. E depois, internamente, esses sócios
aceitam também a autoridade dos bispos e do papa, o Estado lava as mãos.
Qualquer associação de cidadãos livres é permitida. “Basta que respeite as
53
leis e a autoridade do Estado .

51
- Primeiro ministro da Itália.
52
- “Em 1857, Dom Bosco conversava com o ministro Urbano Rattazzi. Este, uma vez
encaminhado o discurso para a continuidade que deveria ter a obra dos Oratórios, mesmo após a
morte de dom Bosco, o aconselhou a fundar uma sociedade para tal fim. Diante do governo não seria
mais que uma associação de livres cidadãos, os quais se unem e vivem juntos para o escopo de uma
obra de beneficência. Para Dom Bosco, tal conselho foi o início de uma série de reflexões e consultas
a várias pessoas que o levaram a uma conclusão: transformar os salesianos em congregação
religiosa. Conservariam os direitos civis, cumpririam as leis do Estado, não se apresentariam com
bens de mão morta e pagariam os impostos e taxas, como era seu dever”. FERREIRA, Antônio da
Silva. Dom Bosco e a Política. São Paulo: ISSP, 2009, p. 59.

53
- BOSCO, T., 2002, p.339-340.
69

João há muito tempo vinha planejando o esboço de uma congregação. No dia 9 de


dezembro de 1859 reunirá no seu quarto um grupo de dezenove jovens propondo-
lhes a formação de uma comunidade religiosa para o bem da juventude. Essa
proposta na contramão da história e da mentalidade da época parecia-lhes, então,
descabida porque, se votavam a Bosco respeito e veneração, eram, porém, filhos
dos 1800 com forte rejeição aos “frades54.” Em suas cabeças essa proposta estava
na contramão da história e da mentalidade da época. Frente à perplexidade e temor
da vida religiosa desses jovens, João Bosco propõe que retornem ao seu escritório
uma semana depois para uma resposta definitiva. No dia 18 de dezembro dezessete
retornaram e aceitaram “ficar com Dom Bosco55”. O projeto de uma nova ordem
ficara guardado no seu íntimo até que o encontro com o ministro Rattazzi lhe dera a
idéia da “fundação de uma sociedade civil”. A obra salesiana poderia ir em frente
assumindo dupla face, uma interna para a Igreja e outra externa para o governo.
Funda-se assim a Sociedade São Francisco de Sales que adota organização e a
terminologia civil56 com a manutenção das obrigações para com o Estado dos seus
sócios.

No âmbito civil as coisas se assentavam melhor que em nível de igreja. A


congregação trilharia um difícil caminho para obter reconhecimento junto à Santa
Sé. Não eram poucos os que se opunham à pessoa de João Bosco e ao modelo
dessa congregação fora dos padrões tradicionais. Pio IX, que antes de ser papa
havia visitado sua obra, manifestava irrefutável simpatia por ela. Não é, porém, sem
sentido que a Cúria romana olhasse com desconfiança para uma congregação que
fugia dos padrões tradicionais e cujo fundador estava envolvido em conflitos com
seus dois bispos, sucessivamente. Além do mais, o ativismo dos salesianos nos
pátios contrastava com a solidão e o silêncio dos claustros, ou, pelo menos, com a

54
- Essa rejeição torna-se oficial em 29 de maio de 1855 com a lei contra os conventos quando
são fechados os que não possuem finalidade social como hospitais e orfanatos, sendo seus bens
confiscados.
55
- “No aposento do sacerdote João Bosco, reuniram-se, às 21 horas o sacerdote João Bosco,
o sacerdote Vitório Alasonatti, os clérigos diácono Ângelo Sávio, subdiácono Miguel Rua, João
Cagliero, João Batista Francésia, Francisco Provera, Carlos Ghiavarello, José Lazzero, João Bonetti,
João Anfossi, Luís Marcelino, Francisco Cerruti, Celestino Durando, Segundo Pettiva, Antônio
Rovetto, César José Bongiovanni e o jovem Luís Chianale. Aprove aos mesmos erigirem-se em
Sociedade ou Congregação...” Ata redigida pelo padre Alasonatti. – BOSCO, T., 2002. p. 344.
56
- A terminologia religiosa é substituída por terminologia civil: congregação por sociedade;
superior geral por reitor-mor; superior local por diretor; confrades por sócios.
70

rígida disciplina dos internatos católicos de então. E a descompostura dos clérigos e


dos sacerdotes envolvidos em jogos em meio aos recreios, representava uma
afronta ao estado sacerdotal que religiosos deveriam honrar.

Dom Caetano Tortone, encarregado dos negócios da Santa Sé junto ao


governo de Turim, em longo relatório, escreverá em 1868: “experimentei
bem penosa impressão ao ver, nas horas de recreio, aqueles clérigos
misturados com os outros jovens, que lá aprendem a profissão de alfaiate,
carpinteiro, sapateiro etc., a correr, a jogar, pular com pouco decoro... o
bondoso Dom Bosco, satisfeito com que os clérigos se mantenham
recolhimento na igreja, pouco se interessa em infundir neles aqueles
sentimentos de dignidade do estado que querem abraçar”. Segundo Dom
Tortone, Dom Bosco devia ensinar aos clérigos a “conservar as distâncias”
dos... vulgares alfaiates e sapateiros. Nada mais distante, porém, da
57
sensibilidade de Dom Bosco ”.

Num tempo de desestabilizações, toda novidade era vista pelos prelados maiores
como ameaça à Igreja, já questionada e fragilizada pelas novas mentalidades,
quando o Vaticano havia perdido muito de seu prestigio político, social e religioso.
Ao se constituírem os Estados Modernos a partir do século XV, eles ainda traziam
consigo a visão medieval do orbis christianus, conceito este que a Igreja, em pleno
século XIX ainda não conseguira perceber que estava em descrédito, pois tal visão
era inadequada para os tempos de Revolução Industrial:

O orbis christianus é uma imagem cristã medieval do mundo. Fundou-se na


crença que o mundo é de Deus, cujo representante na terra é a Igreja
Católica. Este Deus por ser verdadeiro, exigia que todos o reconhecessem
e prestassem culto. (...) papas e reis tinham por missão precípua tirar-lhe
os óbices, estender e sustentar a fé, fazer reinar a graça de Deus.(..) mais
importante , porém, era fazê-la viger. Este era o reino de Deus que se
constrói nesta terra; por conseguinte devia se identificar com os reinos
58
existentes .

De fato tal conceito aceito pelos reinos católicos, começa a se deteriorar, pois o.
papado vivia embates com o mundo que o rodeava ao querer impor sua hegemonia.
A prática do beneplácito59 em vários reinos católicos punha as decisões papais sob
o crivo de seus governantes e o padroado conferia-lhes poder para nomear bispos e
párocos, criar dioceses e paróquias subordinando a hierarquia eclesial aos

57
- BOSCO, T., 2002. p. 497.
58
PAIVA, José Maria. Colonização e Catequese. São Paulo: Arké, 2006, p. 22.

59
- O que aqui está sendo desestabilizada é a visão do “Orbis Christianus” que no contexto
quinhentista haviam fundido fé e império numa única visão. Todos deveriam concorrer sempre para a
glória de Deus não existindo mundo “civil e religioso”. Cf. PAIVA, op. cit., p. 22.
71

governantes, considerada como funcionária dos governos que lhes pagava os


proventos. Isso distanciava o papado das igrejas dentro das diversas nações. Havia
ainda parcelas do clero mais intelectualizadas sob forte influência do iluminismo e do
liberalismo que enfraquecia o poder papal, inclusive com inclinação a se constituir
igrejas nacionais.

Neste contexto de desestabilização do poder político e religioso do papado, Pio IX


encetava sua luta pelo fortalecimento do centro de comando da Igreja procurando
constituir um episcopado e um clero alinhados com o vaticano. A congregação de
João Bosco apresentava para Pio IX alguns traços fundamentais para o
fortalecimento da Igreja. Professava uma religiosidade tradicional com profunda
veneração e fidelidade ao papado e, ao mesmo tempo respondia aos novos tempos
por sua ação atualizada no mundo urbano, atendendo de um lado aos interesses da
burguesia industrial e de outro às necessidades espirituais e materiais das classes
urbanas empobrecidas, sobretudo entre os jovens. O papa via na sociedade
salesiana um dos muitos braços do seu projeto de romanização. Muitos liberais, ao
hostilizarem a congregação, o faziam porque percebiam sua absoluta e incondicional
fidelidade ao papado, o que minava os projetos de integração e formação de um
novo Estado laico, a Nova Itália. De outro lado, ainda que paradoxalmente, o
reconhecimento papal dessa congregação e o impacto positivo dela sobre as
classes populares impediam que fiéis se bandeassem para o socialismo marxista60
que ampliava sua incidência junto das classes trabalhadoras, sobretudo através dos
sindicatos. Isso não deixava de ser, paradoxalmente, simpático à parte da
burguesia que se sentia atemorizada frente ao crescimento das idéias socialistas e
marxistas.

Nos últimos anos de sua vida seu empreendimento é visto como uma ação
educacional de sucesso que responde aos desafios sociais do mundo industrial,
quando começa a se construir o mito sobre o homem Bosco e sua fundação 61.
Frente ao liberalismo e ao socialismo seu trabalho se apresentava como resposta

60
- O manifesto comunista fora lançado em 1848.
61
- Em suas viagens ao final de sua vida à França e à Espanha fora aclamado por milhares de
pessoas nas ruas, sendo esse fato noticiado pelos principais jornais da época como Le Figaro e Le
Pélerin. Cf. BOSCO, T., 2002, p. 507-512.
72

católica62 ao mundo do trabalho onde se priorizava, além da eficiência do


operariado, uma boa formação humano-cristã. João Bosco mesmo participa
conscientemente da construção deste mito de sua obra ao procurar mostrar a
eficiência e os resultados obtidos e ao idealizar alguns de seus educandos como
modelo e resultado positivo de sua ação educativa. Isso atraía não só simpatia, mas
abria portas e, sobretudo, captava recursos para suas obras em franca expansão.

Nos ditos e nos escritos de dom Bosco encontram-se muitas figuras de


jovens exemplares, hóspedes reais ou ideais do seu oratório (...). A história
de Bartolomeu Garelli encontra-se toda ela no episódio narrado nas
Memórias do Oratório. A pesquisa anagráfica não individuou ainda a
origem, o meio e o termo do protagonista. No jovem encontrado na festa da
Imaculada, Dom Bosco parece querer simbolizar, em uma narração
relativamente tardia, todos os jovens – entre os quais aqueles que lhe foram
confiados pelo padre Cafasso – encontrados em datas diversas em suas
primeiras experiências de beneficência turinesas. Com esse jovem, além
disso, ele pretende sublinhar a singularidade dos inícios do oratório, da
dúplice origem, terrena e celeste, ele mesmo símbolo de diversas formas de
convivências juvenis, enfim, de um movimento para os jovens dos jovens,
sem limites espaciais e temporais. Dessa dimensão biográfica
indeterminada parece eco as documentações que dizem respeito ao
adolescente que chega por acaso à sacristia da igreja de São Francisco de
Assis. É, ao invés, rica a significação ideal e exemplar do episódio, seja
para o oratório, seja para os jovens que o buscam e os adultos que aí
63
agem, em particular graças ao padre que é o protagonista .

Nos últimos anos de sua vida João Bosco vê a obra salesiana adquirir
reconhecimento internacional por seu trabalho com os jovens empobrecidos e
marginalizados, granjeando simpatia de governos, empresas e de vários segmentos
da igreja. De várias partes do mundo pede-se a presença da congregação com
oferta dos meios materiais necessários para sua implantação.

O trabalho social, as linhas de uma pedagogia inventiva, a capacidade de


interlocução com o mundo industrial e político, não devem, porém, enfraquecer um
traço determinante deste fundador. João Bosco interpreta a realidade a partir de
uma visão de tradição medieval, onde Deus com sua providência preside a todos os
acontecimentos da vida e da história. Ele é um místico e sua cosmovisão

62
- Em 1891 Leão XIII lança a Rerum Novarum, primeiro documento que dá origem à Doutrina
Social da Igreja. Essa resposta aos problemas sociais é, porém, tardia já que soluções como o
liberalismo de Adam Smith ou o socialismo de Karl Marx já tinham forte aceitação ente a classe
patronal e operária, respectivamente.
63
- BRAIDO, 2008, p. 579.
73

essencialmente religiosa. Entende-se como instrumento dos desígnios de Deus. A


narração de seus feitos e sucessos é creditada à providência divina. Pio IX, apesar
de político e das lidas palacianas, era também o líder espiritual do catolicismo e
como cristão sentia-se perplexo e desnorteado frente aos novos tempos de
liberalismo. No campo espiritual e na concepção religiosa esses dois homens, um
príncipe e outro camponês, possuíam a mesma leitura da realidade, ainda que de
lugares e posições diferentes, como filhos de uma espiritualidade com raízes
medievais quando a organização mental desses homens tinha seu epicentro em
Deus. As atitudes políticas de Pio IX na defesa dos Estados Pontifícios e contra o
pensamento liberal eram movidas pela defesa da religião. O movimento por ele
promovido e definido pela historiografia como “romanização” era, na sua ótica, zelo
pelas coisas de Deus. Bosco será um dos primeiros interlocutores do catolicismo a
estabelecer diálogo com os interesses do mundo industrial que se sustentava numa
política liberal, unindo as expectativas desse segmento com os interesses da igreja.
As fábricas queriam operários qualificados, os novos Estados Nacionais procuravam
criar a consciência de cidadania a antigos súditos de reinos e a igreja desejava
cristãos fervorosos. Os interesses com relação ao trabalhador eram diferentes, mas
João os aproximava ao propor formar bons cristãos e honestos cidadãos.

A obra salesiana era para a igreja-instituição um importante veículo de acesso ao


mundo urbano. Para Giovanni Maria Mastai-Ferretti64 e Giovanni Belchior Bosco
tudo era ação da providência divina na história. Pio IX quando impõe a João Bosco
que deixe por escrito suas primeiras experiências como fundador, o exige não por
uma preocupação histórica, que até poderia existir, mas por uma finalidade mais
profunda: essa história do homem e de sua instituição escondia nas entrelinhas do
suceder dos fatos a invisível ação de Deus e da sua providência. Daí nasce o livro
Memórias do Oratório São Francisco de Sales65 escrito em linguagem amena e

64
- Nome de batismo de Pio IX.
65
- Ao escrever essa obra Bosco já possui considerável reconhecimento pelo seu trabalho, o
que gera esse pedido explicito do papa que não lhe esconde admiração e respeito; sua congregação
está sendo convocada a ser presença em vários países por autoridades civis e religiosas; há um
significativo ingresso de jovens em suas fileiras; cresce para Bosco uma explicita certeza: percebe-se
como fundador, possuindo discípulos que o amam e o seguem, começando a gozar de respeito social
e eclesiástico. Ao escrever sua vida dois elementos se somam: suas reminiscências reais e históricas
que são importantes, ao se perceber modelo para milhares de seguidores e a necessidade de, com
sua vida, apontar um caminho a ser trilhado por seus seguidores. Braido não titubeia em afirmar que
74

familiar, quase como um colóquio ao narrar a vida e as peripécias de Giovanni


quando o autor confere à narrativa o sabor das cálidas conversas em torno das
lareiras das casas de campo da Itália nas frias e nevadas noites de inverno. Mas,
por trás dessas saborosas narrações se entrevê a providência divina que a tudo
encaminha. O espírito e a mentalidade dessa obra não se diferem da das
Confissões de Santo Agostinho escrita no século IV. Ainda que o estilo e linguagem
sejam diferentes, há uma matriz comum: ambos possuem uma mesma visão dos
fatos cotidianos dirigidos por Deus no projeto maior da história da salvação.

Alguns elementos perpassam as Memórias. Existe o tempo de Deus, como muito


bem define Le Goff, que é principio e fim de toda ação humana e o único capaz de
dar sentido à história pessoal e social.

O tempo da Bíblia e do cristianismo primitivo é antes de tudo um tempo


teológico. “Começa com Deus e está dominado por Ele”. Como
conseqüência a ação divina em sua totalidade, está tão naturalmente ligada
ao tempo que este não seria motivo de problema, aliás, muito pelo contrário,
66
é a condição necessária e natural de toda ação divina .

Repudia-se, assim a tudo que não concorra para a glória de Deus, sendo a igreja
sua interprete. Nesta chave de leitura entende-se que Deus escolhe João Bosco e o
destina para um projeto explicitado no sonho67 dos nove anos.

sua obra é, acima de tudo, uma descrição do futuro, de como as coisas deviam ser. As descrições do
seu passado são apresentadas como modelos ideais de como deveriam ser as práticas educacionais
e o relacionamento dos educadores com seus educandos no futuro. Cf.BRAIDO, 2008, p. 14-17.
66
- “Le temps de la Bible e du christianisme primitif est avant tout um temps théologique. Il
“commence avec Dieu” et il “est dominé par Lui”. Par conséquent l’acion divine, dans sa totalité, est si
naturellement liée au temps que cellui-ci ne saurait donner lieu à un problème; Il est au contraire, la
condition nécessaire et naturelle de tout acte divin”. GOFF, Jacques le. Au Moyen Âge: temps de
l’Église et temps du marchand. Annalles, Economies, Sociétés, Civilisations, France, 1960, v. 15, n.
3, mai-juin. n. 3 p. 419.

67
- Neste sonho tido aos nove anos Dom Bosco acredita que nele estaria expressa sua missão
de educador dos jovens devendo tornar “ferozes lobos” em “mansos cordeiros”. Neste “sonho” estaria
já definida a missão de sua vida. Tudo que realizar a partir daí estaria nos projetos de Deus. Não
entramos aqui na questão se esses sonhos seriam apenas narrações didáticas para seus discípulos,
sobretudo porque narrado nas Memórias do Oratório São Francisco Sales que Braido entende que,
mais que um livro de reminiscências, teria sido escrito, sem fugir ao seu fundo histórico, com a
finalidade didática de “como deveria ser o oratório”. Pietro Braido é historiador e mestre em
salesianidade do Instituto histórico de Roma. Sua ultima obra - reúne em dois volumes uma análise
profunda sobre Dom Bosco e o seu tempo. Seu livro Dom Bosco, padre dos jovens no século da
liberdade é tido como o coroamento de sua vida de pesquisador. Cf. BRAIDO. P., 2008. p. 11-17 .
75

Na idade de 9 anos tive um sonho, que me ficou profundamente impresso


na mente por toda a vida. Pareceu-me estar perto de casa. Numa área
bastante espaçosa onde uma multidão de meninos estava a brincar. Alguns
riam, outros divertiam-se, não poucos blasfemavam. Ao ouvir as blasfêmias,
lancei-me de pronto no meio deles, tentando, com socos e palavras, fazê-
los calar.

Neste momento apareceu um homem venerando, de aspecto varonil,


nobremente vestido. Um manto branco cobria-lhe o corpo; seu rosto, porém,
era tão luminoso que eu não conseguia fitá-lo. Chamou-me pelo nome e
mandou que me pusesse à frente daqueles meninos, acrescentando estas
palavras:

Não é com pancadas, mas com a mansidão e a caridade que deverás


ganhar esses teus amigos. Põe-te imediatamente a instruí-los sobre a
fealdade do pecado e a preciosidade da virtude.

Confuso e assustado, repliquei que eu era um menino pobre e ignorante,


incapaz de lhes falar de religião. Senão quando aqueles meninos, parando
de brigar, de gritar e blasfemar, juntaram-se ao redor do personagem que
estava a falar.

Quase sem saber o que dizer, acrescentei:

- Quem sois vós que me ordenais coisas impossíveis?

Justamente porque te parecem impossíveis, deves torná-las possíveis com


a obediência e a aquisição da ciência.

- Onde, com que meios poderei adquirir a ciência?

- Eu te darei a mestra, sob cuja orientação poderás tornar-te sábio,

- Mas quem sois vós que assim falais?

- Sou o filho daquela que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia.

- Minha mãe diz que sem sua licença não devo estar com gente que não
conheço; dizei-me, pois, vosso nome.

Pergunta-o à minha mãe

Nesse momento vi ao seu lado uma senhora de aspecto majestoso, vestida


de um manto todo resplandecente, como se cada uma de suas partes fosse
fulgidíssima estrela. Percebendo-me cada vez mais confuso em minhas
perguntas e respostas, acenou para que me aproximasse e, tomando-me
com bondade pela mão, disse:

- Olha.

Vi então que todos os meninos haviam fugido, e em lugar deles estava uma
multidão de cabritos, cães, gatos, ursos, e outros animais.

Eis o teu campo, onde deves trabalhar.

Torna-te humilde, forte, robusto; e o que agora vês a esses animais, deves
fazê-los aos meus filhos.
76

Tornei então a olhar, e em vez de animais ferozes apareceram mansos


cordeiros que, saltitando e balindo, corriam ao redor daquele homem e
daquela senhora, como a fazer-lhes festa.

Neste ponto, sempre no sonho, desatei a chorar, e pedi que falassem de


maneira que eu pudesse compreender, porque não sabia o que significava
tudo aquilo. A senhora descansou a mão em minha cabeça dizendo:

A seu tempo tudo compreenderás.

Após essas palavras, um ruído qualquer me acordou, e tudo


desapareceu.Permaneci atônito. Parecia que minhas mãos doíam devido
aos socos que tinha dado, que minha face doía pelos socos recebidos.
Aquele personagem, aquela senhora, as coisas ditas e ouvidas, me
ocuparam de tal forma a mente que não consegui retomar o sono aquela
68
noite ."

João Bosco entende-se como escolhido por Deus que, em vários momentos de sua
vida e através de sonhos69, mostra-lhe caminhos que deve trilhar em vista da
salvação da juventude sabendo que a providência divina não o deixará carente de
recursos espirituais e materiais. Aos seus seguidores dá a certeza que a causa pela
qual batalham é uma causa de Deus70. Uma análise historiográfica mostra que a
narração nas Memórias do Oratório São Francisco de Sales possui algo de partilha
familiar dirigida aos seus discípulos e membros da sociedade. A obra dá a certeza
da atuação de Deus em sua vida. A proibição que esses escritos fossem divulgados
tem sentido enquanto o autor mostra, em clima de confidência, o segredo do seu
sucesso: Deus o escolheu e à sua obra para realizar uma imensa missão: a
salvação da juventude. Todos os eventos que vivem não são obra do acaso, mas
um bem arquitetado plano da providência divina 71.

68
- BOSCO, J., 2006, p. 28 et seq.
69
- Os sonhos de Dom Bosco ocupam um lugar de destaque na elaboração de sua pedagogia.
Os seus interpretes se dividem no sentido de entendê-los. Para alguns seriam apenas parábolas
motivadoras para seus discípulos, através dos quais dava força aos seus projetos deixando um
espaço de mistério para suas ouvintes que veriam neles sinalizações de Deus. Outros, a partir de
interpretações psicanalíticas, acreditam que teriam seu fundo real, como expressão das
preocupações e angústias que permeavam sua vida de educador e fundador e que afloravam do seu
inconsciente como sinalizações das preocupações que levava para o leito após um dia de intensa
atividade. Nas suas descrições, porém, haveria o colorido dramático de um bom narrador.
70
- Quando seus seguidores sentiam-se esgotados repetia uma promessa: Pão, trabalho e
paraíso.
71
- Cf. BRAIDO, 2008.pp. 14-17.
77

A essa visão mística e visionaria, se soma a estrutura de um homem pragmático,


trabalhador, empreendedor, ousado, idealista e esperto72, transitando em meio à alta
sociedade da época e conquistando benevolência política e milhões de liras para
suas imensas construções em todo mundo. Essas posturas pragmáticas não
empanam suas crenças e convicções, mas, ao contrário, as reforçam pelos
resultados e conquistas.

Se João Bosco nos seus relacionamentos pessoais com os jovens e as classes


populares agia como um pai bondoso, frente aos líderes da sociedade urbano-
industrial mostrava ousadia e capacidade de pensar com a lógica do capital e do
capitalismo quando demonstrava ousadia, esperteza, capacidade de negociar e
barganhar até com certo atrevimento na abordagem dos ricos, não pedindo esmolas,
mas recursos substanciosos para suas obras. Em confidências a amigos dizia que
pela juventude pobre era capaz de se humilhar, sabendo que seu orgulho camponês
mostrava resistência em freqüentar ricos salões da alta sociedade em busca de
recursos sob o olhar não poucas vezes simpático de anticlericais e liberais. Tinha
consciências que suas inúmeras e grandes obras não seriam financiadas pelos
pobres, mas pelas avultadas contribuições de nobres e burgueses. A um rico
industrial que não queria lhe dar contribuição, responde com serenidade: “Esse
dinheiro irá para os pobres. Se eu não levá-lo hoje, daqui alguns anos, esses
mesmos pobres que não terei podido educar, virão “buscá-lo” como ladrões”. O
maior de todos os argumentos, porém que permitia a João Bosco captar grandes
quantias era a visibilidade do seu trabalho e os resultados trazidos à sociedade. Em
1870 quando Pio IX se auto-declarava “prisioneiro do Vaticano” e em que a tensão
entre a igreja e a nova Itália chega ao seu mais alto grau, quando se polarizavam
Igreja e Estado e o anti-clericalismo era levado a grau máximo, paradoxalmente a
Itália de norte a sul era sacudida pela Grande Rifa de Dom Bosco com distribuição
de talões inteiros para os ricos que, se a rejeitavam das mãos dos emissários de
dom Bosco, recebiam-nos de novo por suas mães e esposas. O sucesso de seu
empreendimento em favor dos jovens das classes populares era inquestionável,
mesmo na década de 1870. Apesar de toda a crise do governo com o papado os

72
- No ambiente salesiano consagrou-se a palavra “furbo” em italiano para denominar a
esperteza de João Bosco caracterizada por uma argúcia marota e inteligente, não sendo em geral
traduzida para não perder a força do seu sentido.
78

salesianos eram chamados aos palácios episcopais e de governos para receberem


pedidos de fundações de novas frentes de suas obras. De outro lado não faltaram os
detratores que o definiam como ganancioso e oportunista:

Dom Bosco foi acusado de astúcia declarada, de manipulação dolosa e


outras coisas mais. Não só a imprensa – determinada imprensa – estava
contra ele, mas também pessoas bem intencionadas, que não conseguiam
compreender a grandeza dos seus sentimentos e a retidão. (...) quem não o
conhecia bem, observando seus gestos mais audazes e sua desenvoltura
em se expor à opinião pública, podia julgá-lo um padre temerário, até
mesmo exibicionista. (...) suas contas estavam sempre no vermelho. (...)
Por meio das loterias e das incessantes solicitações de ajuda, (...) oferecia
aos políticos, crentes e não crentes, aos filantropos contrários à igreja, a
todos em suma, um “modo de fazer beneficência, por assim dizer,
charmosa” – como bem escreveram – isto, é, bem aceita, não
73
comprometedora. E não se pode chamar a isso de ingenuidade .

A vida de Bosco pode ser narrada pelo suceder cronológico de seu cotidiano com a
seqüência dos episódios que marcam a vida de um homem do seu tempo. Sua vida,
porém pode ser capturada e compreendida a partir das impressões que lhe tocaram
a mente e a alma. É a visão dos fatos a partir de dentro do seu psiquismo
procurando captar como o mundo lhe parecia e era percebido. Essa percepção da
vida, do mundo e da história a partir do olhar do protagonista primeiro em forma de
autobiografia nos permite angulações privilegiadas e não capturadas por um
narrador externo. E João através das Memórias do Oratório São Francisco de Sales,
pelos seus escritos e intensa correspondência deixa entrever não só como pensava,
mas como via o mundo.

Sua vida poderia ter ficado restrita aos estreitos horizontes dos Becchi74 e se
desdobrando na previsível lógica campesina de arar a terra, plantar e colher, ter uma
esposa e filhos, fazer as preces de um bom cristão e se dirigir a cada domingo à
igreja para os serviços religiosos. Neste momento histórico, porém, muitos jovens do
campo quebrando essa lógica camponesa, seja pela necessidade ou pelo desejo do
novo, partem para as vilas e cidades procurando algo melhor e com mais futuro,
rompendo o secular circulo de camponês tem filho camponês, pois os canteiros de
obra e as indústrias pareciam oferecer mais que a vida rotineira e previsível do

73
- BROCADO, Pedro. Dom Bosco: profundamente homem, profundamente santo. São Paulo:
Salesiana, 1986, p. 91 et seq.

74
- Distrito de Turim.
79

campo. João Bosco poderia também ter sido um dos tantos migrantes anônimos que
povoaram os principais centros urbanos da Europa buscando subsistência. Sua
lembrança ficaria para os parentes próximos até ser apagada pelo tempo, restando
um nome nos registros paroquiais de batismo, crisma e casamento ou ter sido, numa
outra hipótese, obscuro cura cuidando da vida religiosa do povo.

Este século de liberdade introjetava, porém nos jovens o desejo de superar o


passado campesino de seus pais, saindo do interior e procurando se integrar no
ambiente urbano em formação e do qual sequer poderiam avaliar a dimensão
revolucionária que possuía. É compreensível a revolta do seu meio irmão Antônio,
ao perceber neste irmão mais novo sua inclinação para os livros e estudos75. O
acesso à cultura não fazia parte dos horizontes de pobres agricultores que mal
conseguiam o necessário para sua subsistência, tendo sentido a agressividade de
seu irmão com os devaneios deste pré-adolescente que não se enquadrava neste
estreito mundo rural que ia ficando pequeno frente às oportunidades que se
delineavam no horizonte de sua vida.

O adolescente João Bosco que sai do campo para a cidade tinha uma rígida
formação pautada em severos princípios morais e de religiosidade popular.
Aprendera a obediência e o respeito a todas as formas de autoridade: família,
governantes e eclesiásticos dentro de uma ótica medieval no qual se concebia que
toda a autoridade viria de Deus. L’ancien régime, é mais que um modelo político e
econômico: é uma mentalidade.

Dom Bosco nasceu em 16 de agosto de 1815, ano que, também para a


mentalidade dos chefes de Estado reunidos no Congresso de Viena (1814-
1815), real e simbolicamente coloca-se entre l’ancien régime e o novo
mundo iniciado ou entrevisto pelas revoluções que tinham acontecido,
proximamente, a partir da segunda metade do século anterior. Isso o
marcará pela vida toda, numa não resolvida ambivalência de tradição e
modernidade, também ela fecunda, além de interpretações antitéticas, como
76
a propósito se verifica na realidade o reino Sardo, do qual nasce cidadão ”.

João se deslumbra com a cidade, mas também testemunha situações inexistentes


no campo. Impressiona-lhe as prisões e aí as crianças e adolescentes presos e,

75
- Cf. WIRTH, Morand. Dom Bosco e os Salesianos. São Paulo: Dom Bosco, 1971, p. 24-
25.

76
- BRAIDO, 2008. p. 22-23.
80

muitas vezes, condenados à morte, assim como os costumes devassos contrários


ao pudor do campo, a violência, os furtos, o desprezo pela igreja e pelo papado e a
miséria das periferias em tudo diferente da frugal e digna pobreza das famílias
rurais. Esse descompasso social deixa-o perplexo. Ao invés de se refugiar numa
religiosidade intimista procura interagir com esse mundo urbano. Sua
personalidade77 fogosa, voluntariosa e criativa o faz entender que é preciso ir além
do puro e tradicional assistencialismo para a promoção do homem, sabendo que o
jovem só terá condições de vida digna e cristã se estiver apto para ter um lugar
produtivo no sistema urbano pré-industrial. É preciso, portanto, formá-lo em sua
totalidade humana e espiritual. Será esse projeto que norteará sua ação: formar
bons cristãos e honestos cidadãos. Terá no mote Da mihi animas, coetera tolle78 o
farol que guiará sua ação pastoral que fez da educação um instrumento para salvar
almas.

Idoso, faz com que seja seu sucessor um dos primeiros jovens de seu oratório,
Miguel Rua que foi um dos que mais contribuíram para o crescimento da obra e
fortalecimento da imagem de João Bosco. O zelo pela memória e fidelidade ao
fundador foi seu empenho maior. Apoiou a confecção do livro Memorie Biografiche di
Don Giovanni Bosco79 que narrava em detalhes a vida do fundador.

Com sua morte esperava-se o arrefecimento de seu projeto e até mesmo o termino
da sociedade. Os burocratas da Cúria Romana previam que passado um pequeno

77
- BROCADO, op. cit., p. 40-47 .
78
- Dai-me Almas, fique com o resto. Essa expressão foi tirada do livro do Gênesis quando
Abraão e o seu sobrinho não conseguem mais se manter juntos pelas desavenças dos seus pastores
e se dividem. Abrão diz, “dai-me os homens e fique com o resto”. Essa passagem bíblica foi
entendida por João Bosco num sentido restrito que pretendia a “salvação das almas”. No texto bíblico
“animas” tem o sentido amplo de “homens” e não de “almas”.
79
- A congregação salesiana sempre teve preocupação com o arquivamento de todas as
documentações e narração da própria história. Logo após a morte de Dom Bosco, padre Rua, seu
sucessor, incentivou que fosse escrita uma detalhada biografia, hoje em inglês e Italiano. Essa tarefa
durou 50 anos e foi escrita por quatro autores perfazendo um total de 20 volumes e cerca de 18 mil
páginas, rica em farta documentação e detalhes. Responderam por essa obra, intitulada Memorie
biografiche di Don Giovanni Bosco os autores G.B. Lemoyne (I a IX), A. Amadei (X), E. Céria XI-XIX e
E. Foglio (volume índice). A partir dos centros históricos salesianos se vem trabalhando com uma
historiografia crítica com significativas produções em nível mundial. Em Roma existe um Centro
Histórico dedicado à pesquisa e ao recolhimento e conservação de documentos. No Brasil, na cidade
de Barbacena – MG - está constituído um centro de História e Documentação de todo o país. Na
cidade de Lorena o arquivo histórico possui documentações dos 120 anos da congregação no Brasil
com atas, relatórios, diários, documentos pessoais de salesianos, crônicas e cerca de 55 mil fotos.
81

prazo da morte do fundador a exuberância alcançada pela Sociedade cairia,


existindo até alguns pré-estudos e hipóteses de se anexar seus membros
remanescentes a outra congregação. A figura de Miguel Rua, magro e esquálido,
não permitia aos observadores externos imaginar que, sob aparência tão frágil,
estava um líder empreendedor. João Bosco sabia que a sobrevivência e a
continuidade do seu projeto dependeria de jovens educados nos padrões e
mentalidade dos valores do oratório. Assim, ao longo de sua vida, prepara um
seleto grupo de jovens que deveriam assumir seu projeto sem desfigurá-lo. E entre
esses jovens de sua confiança e que lhe votavam incondicional fidelidade
destacava-se Miguelito, filho de operários nascido em 1837 e que ingressara no
oratório em 1845, mesma data em que perdera o pai, vindo a se ordenar sacerdote
em 1860. Bosco perceberá que por baixo das aparências daquele jovem pobre e
tímido havia uma das pedras fundamentais de sua obra.

Certa ocasião João Bosco distribuía brindes aos adolescentes do oratório. Miguelito
era o último e chegando sua vez não havia mais nada para lhe oferecer. Bosco fez
como se cortasse metade de sua mão e a oferecesse ao jovem dizendo-lhe:
Facciamo la metà80,explicando-lhe que a partir daquele momento tudo que tivesse e
tudo que fizesse seria dividido com o adolescente Rua81. Mais do que uma metáfora
isto foi uma realidade, pois Miguel dividiu com Bosco os projetos, sonhos e dívidas.
Grande parte da exuberância da obra de Bosco esteve apoiada neste discípulo que
como estrategista teve que conter e “domesticar” os exuberantes sonhos do
fundador, tornando-os exeqüíveis. Sua vida junto de Dom Bosco foi um tirocínio até
assumir a liderança da obra.

Possuía inteligência lúcida, inata propensão à disciplina, bom preparo cultural,


propenso a uma vida mística, gosto pela ordem e exatidão na administração
financeira e no cuidado do gerenciamento material das obras. Se aos 17 anos,
apesar da aparente timidez, se mostrava líder82 e aos 22, mesmo antes de se tornar

80
- Façamos tudo meio a meio.
81
- BOSCO, T., 2008, p. 172.
82
- Cf. DESRAMAUT, Francis. Vida do Padre Miguel Rua. São Paulo: Salesiana, 2010, p.
14-31.
82

sacerdote, Bosco o fez responsável pela dimensão espiritual e carismática de sua


obra. Sua inteligência a capacidade de aprendizagem conferia-lhe bases para uma
boa liderança. Além do italiano e de vários dialetos de sua região, falava, lia e
escrevia com facilidade o latim, o hebraico, o grego, o árabe, o inglês, o espanhol e
o francês. Dom Bosco já o nomeara seu vice em 1865 e em 1884, quando sua
saúde declinava, o nomeou seu sucessor.

Quando Miguel Rua assume o lugar de Bosco a congregação83 que já mostrava


exuberância passa a crescer muito rapidamente. Ele assume o cargo de reitor-mor
de 1888 até 1910. Nestes 22 anos o projeto salesiano não foi uma ação de meros
visionários, mas dependeu de um profundo espírito pragmático que levantou
imensas quantias que permitiram sua implantação em diversas partes do mundo84.

O prestígio da nova congregação e seu estilo de vida jovial e moderno atraiu grande
contingente de jovens para suas fileiras. As solicitações de fundações partem de

83
- A Congregação salesiana estava composta por uma ala feminina e outra masculina. No
ramo masculino eram 773 salesianos em 58 casas espalhadas por 22 nações. Vinte e dois anos
depois quando morre Rua eram 4.001salesianos em 387 casas e 38 nações. Nas mesmas condições
as salesianas eram 415 em 54 casas e 6 nações. Quando da morte de Dom Rua, neste momento o
Vaticano já havia separado integralmente os dois ramos masculino e feminino, formando uma nova
congregação, eram 2.716 religiosas em 320 casas em 22 países. João Bosco havia fundado um
movimento leigo autônomo que seguia sua pedagogia e fazia a mesma ação dos religiosos
denominados de Cooperadores Salesianos (CCSS). Esses leigos assumiam de forma solene e
publica um compromisso anual de viver o espírito salesiano praticando o Sistema Preventivo pelo
bem da juventude podendo fundar colégios, oratórios, obras sociais sob sua direção e tendo no Reitor
Mor não um superior, mas guia espiritual. Em 1888 eram 30.000 e 1m 1910 chegam próximos dos
300.000 compromissados em todo mundo. Para ser cooperador salesiano é necessário filiar-se à
associação dos Cooperadores Salesianos (CCSS) possuindo uma regra de vida e assumindo
trabalho ligados às juventude. Possuem uma hierarquia local, regional e mundial. Podem possuir
bens e patrimônio. Equivaleriam às “ordens terceiras” de outras congregações. A Única relação com
a Congregação salesiana é o reconhecimento oficial de pertencerem à família salesiana e de terem
um diretor espiritual sacerdote salesiano acolhendo os referenciais doutrinários e carismáticos do
Reitor Mor, sempre visualizado como centro de unidade da Família salesiana e guardião da fidelidade
ao carisma do fundador.
84
- Deve-se destacar que entre 1888 e 1910 foi feito o envio de 31 expedições missionárias
para novas fundações com o envio de 1.515 salesianos e 24 expedições do ramo feminino com o
envio de 395 salesianas para regiões do Equador, Brasil entre os indígenas bororos, Argentina na
Terra do Fogo, México e Tunísia. Entre as Escolas profissionais e regulares já se contabilizava cerca
de 300.000 jovens atendidos na Itália, Inglaterra, França, Egito, Israel, Espanha, Polônia, Argentina,
Uruguai, Brasil, Estados Unidos e outros. Dom Bosco havia fundado a revista Boletim Salesiano, até
hoje editado, sendo o principal veículo de comunicação da Família Salesiana . A edição italiana fora
fundado por Bosco. Rua o lança em diversos idiomas: em 1892 em inglês, em 1893 em alemão, em
1897 em polonês, em, 1901 em português, em 1903 em húngaro e em 1907 em esloveno. Em 1910 a
congregação atende, contando-se os ramos feminino e masculino, em nível mundial a 677 oratórios
festivos, 1.121 escolas profissionais, 77 internatos e 40 editoras.
83

dioceses, governos e entidades de caridade de todas as partes do mundo 85


oferecendo-se condições materiais como terrenos, construções e recursos
financeiros. As motivações para o aporte de recursos e condições para a
congregação iam desde a preparação de mão de obra qualificada, assistência social
eficiente à juventude até a busca do fortalecimento da Igreja, combalida por sua
dificuldade em dialogar com os novos tempos. É um momento de especial euforia,
tanto dos jovens que ela aderem, como dos que a buscam vendo nela resposta para
os novos desafios do ambiente urbano industrial.

Nenhuma fundação em nível mundial e com expansão tão ampla e em tão pouco
tempo pode ser explicada com um ou dois motivos. Há uma junção de elementos
que favoreceram seu surgimento, crescimento, expansão e consolidação. Deve-se
destacar, porém, que houve um núcleo teórico que, aplicado, correspondeu às
necessidades na só de um momento histórico, mas atravessou um século e hoje
está presente em mais de 120 países.

A educação e a pedagogia elaboradas e praticadas por João Bosco possuem um


conjunto de elementos que só podem ser denominados de salesianos se existirem
organicamente integrados tanto na sua elaboração teórica, como na sua aplicação
prática, sem o que se perde a autenticidade. Ela poderá adequar-se aos tempos e
aos desafios das sociedades, não poderá, porém abrir mão desses elementos que
formam o seu núcleo e, sem os quais deixará de existir ou será um grotesco
arremedo, uma falsificação grosseira onde o “rótulo” salesiano não dará identidade a
um conteúdo falsificado. A “grife” salesiano é uma marca, nem pior e nem melhor
que outras. É apenas uma identidade. Qualquer outra coisa é outra coisa, talvez até
melhor e superior, mas “outra coisa”.

85
-Até hoje anualmente a congregação envia Expedições Missionárias para algumas partes do
mundo fundando novas comunidades. São arregimentados salesianos de todas as partes do mundo
para essas novas fundações ou, em alguns casos, para o reforço de pessoal em fundações em fase
de implantação.
84

2.3 Uma Pedagogia com o coração do Feudo e a Razão da Cidade


no século da liberdade.

João Bosco não foi um teórico da educação. Sua ação educativa nasceu de sua
intuição a partir de suas experiências de vida, de sua índole e de sua inteligência
arguta e observadora. Sua formação familiar foi embasada no respeito à autoridade
de seus progenitores, nas tradições camponesas do Piemonte e nas prédicas dos
capelães de sua região. O ambiente em que viveu sua infância em pouco se
ressentia dos questionamentos políticos e econômicos que já abalavam os centros
urbanos. A religião e suas práticas ofereciam aos camponeses uma organização
mental que integrava os ciclos dos campos, o ano litúrgico e o devocionário popular
com suas festividades religiosas. Deus era o centro explicativo da vida e da morte a
tudo presidindo com sua providência.

Não se podem minimizar na vida de Bosco suas experiências existenciais: a perda


do pai aos dois anos, os conflitos com o irmão mais velho, sua saída precoce de
casa, sua vida de adolescente migrante e aprendiz e, finalmente, seu ingresso no
seminário de Chieri, marcado por uma teologia espiritualizada e desencarnada das
realidades terrestres, que será revista mais tarde com seu ingresso por três anos no
convitto ecclesiastico que o sensibilizará para o sofrimento e carências das
populações pobres do entorno de Turim.

No campo filosófico, o pensamento aristotélico86 com sua concepção antropológica


deu-lhe, como educador, a base teórica do seu projeto de construção do homem.
Nos 1800 o pensamento platônico-agostiniano, que presidira a mentalidade de toda
a idade média, continuava a ser um significativo referencial teórico com forte impacto
na espiritualidade cristã. Se entre o clero intelectualizado o aristotelismo era um
referencial, nos ambientes mais simples permanecia a visão de mundo herdada da
idade média de matriz significativamente agostiniana. Platão, ao elaborar o seu
mundo das idéias, identificara o homem com a alma aprisionada ao corpo, visto
como elemento indesejado e que lhe ofuscava a percepção das idéias eternas. O
objetivo existencial da alma era libertar-se do corpo e retornar ao mundo ideal. Essa

86
- O concílio de Trento foi uma das ações da Igreja no processo de contra reforma. Além da
fundação dos seminários e da imposição de uma rígida disciplina para o clero, o pensamento tomista-
aristotélico vai progressivamente conquistando cidadania nos seminários católicos até se impor como
o grande referencial filosófico a partir do “doutor angélico”, Santo Tomás de Aquino.
85

visão enquadrava-se como uma luva na mística medieval que tinha no


franciscanismo um dos mantenedores desses princípios que espiritualizavam o
homem.

Nos três primeiros séculos do cristianismo os pensadores da patrística tentaram


equacionalizar o relacionamento entre fé e razão. Três correntes87 polarizaram a
questão: a africana que apregoava a superioridade da revelação afirmando que a
filosofia é mãe de todas as heresias, enquanto que a gnóstica reduzia a fé cristã à
ciência. Será a escola alexandrina que aceitará a convivência entre fides et ratio
destacando-se Agostinho de Hipona que, tendo passado por várias experiências
religiosas e filosóficas, consegue realizar a síntese entre o pensamento cristão e o
filosófico, entendendo que não se contrapunham, mas se complementavam, vendo
inclusive no platonismo muitos elementos pré-cristãos. O pensamento platônico-
agostiniano será responsável pela formação da mentalidade medieval, onde o corpo
é minimizado, visto como fonte de pecado, enquanto que a alma será exaltada. O
homem é a alma. A espiritualidade medieval buscará na ascese uma forma de
domar os impulsos do corpo vendo nele fonte de pecado. Esta é uma típica visão do
cristão do Piemonte.

Quando na universidade de Paris88 um grupo de jovens professores redescobre


Aristóteles, entre eles Tomás de Aquino, procuram num primeiro momento despi-lo
das influências de Averóis que o havia “arabizado” e passam a estudá-lo no original
grego. O ingresso de Aristóteles na Universidade de Paris apresenta-se como um
elemento demolidor dos valores e da cosmovisão da Idade Média. Os filósofos
racionais são estigmatizados vigorosamente pelo bispo de Paris Etiene Tempier que
procura eliminar essa má influência expulsando os racionais da universidade como
desestabilizadores da arquitetura mental medieval. Efetivamente apresentavam uma
epistemologia que quebrava o pensamento agostiniano predominante até então.
Para os místicos, representados especialmente pela escola franciscana, tendo como
matriz o hiperurânio platônico, o conhecimento era uma “Iluminatio” divina. Deus,
como o mundo das idéias de Platão, era a fonte do conhecimento. Sendo assim, era
necessário para se conhecer, ser um místico, um homem de Deus. Platão afirmara

87
- Cf. AMÉRIO, op. cit., p. 155-158.
88
Cf. MATHEUS, op. cit., p. 43-78.
86

que só o conhecimento racional intuitivo permitiria ao homem ver as idéias eternas.


O misticismo, de fonte platônico-agostiniana, vira nessa proposta do filosofo o
modelo do êxtase. Entende-se então que o pensamento aristotélico assumido pelos
racionais da universidade de Paris causasse impacto quando afirmavam que a
Razão por si mesma era capaz de chegar à verdade. Ao se afirmar a autonomia da
Razão para o conhecimento, por simples lógica, a iluminatio ficava excluída. De
outro lado, seguindo o conceito de substância de Aristóteles que concebia a
realidade composta de matéria e forma, esta determinante, aquela determinada,
realizava-se uma nova quebra com o pensamento platônico-agostiniano. O homem é
concebido como uma unidade substancial entre matéria e forma, corpo e alma. A
salvação, portanto, deve ser do homem, e não de um os seus componentes. O
platonismo fizera do nosso mundo uma cópia empalidecida do verdadeiro mundo
das essências puras, uma realidade menor que enganava nossa razão pelos
sentidos. Agostinho não só acolherá essa idéia no mundo físico, mas a fará também
impactar na ótica social e política ao engendrar a Cidade de Deus versus a cidade
do homem. O conceito aristotélico, ao contrário, punha somente este mundo como
realidade ontológica e, portanto, objeto de verdadeiro conhecimento.

João Bosco jamais gastou tempo com essas filigranas filosóficas, mas elas são o
fundo do seu pensamento como matriz teórica de sua organização mental e de sua
ação pedagógica. O primeiro ponto a se destacar é que seu sistema educativo é
apoiado na razão sendo o educando por meio dela capaz de conhecer. O segundo
ponto é a visão do homem dotado de corpo e alma. Cabe aqui o velho adágio latino:
Mens sana in corpore sano. Isto se impacta diretamente nas atividades lúdicas e
recreativas vistas como dimensões de se viver bem. Esse entendimento do homem
como um todo – corpo e alma – impulsiona também no campo social a superação do
simples assistencialismo para a promoção da pessoa.

No assistencialismo medieval apenas se atenuava pela caridade as necessidades


biológicas do corpo na ótica de que tudo era transitório e que os verdadeiros bens
seriam obtidos com a vida eterna. No pensamento de Bosco não bastava apenas
atenuar as necessidades físicas, como fome e frio, mas era preciso ir muito além,
dando autonomia ao homem através do trabalho, o que lhe conferia dignidade e
cidadania, sendo este um dos objetivos da educação elaborada por ele.
87

Em terceiro lugar, finalmente, há uma visão otimista do mundo que nos cerca, sendo
o mal existente na sociedade resultado do livre arbítrio do ser humano ao não se
deixar guiar pelos princípios éticos apreendidos pela razão. O mundo que nos cerca
é belo e bom e o homem seu construtor pela sua racionalidade e capacidade de
empreendimento.

Essas idéias de matriz aristotélico-tomista, exaltando a interação entre fides et ratio,


eram entendidas como um “anelo” amoroso pelo qual fé e razão se
89
complementavam em defesa da ortodoxia . Essa racionalidade exaltada pela
escolástica clássica naquele período que se convencionou chamar de seu apogeu,
qual corcel fogoso não se conteve nos cercados da ortodoxia. Como dissemos
anteriormente a racionalidade não é domesticável. Duns Escoto, prenunciando ou
explicitando de certo modo a crise entre a visão dos místicos e racionalistas, voltava
de certo modo e com grande ambigüidade ao conceito da dupla verdade de Averóis,
sem afirmá-la, porém. Procurava acalmar as tensões ao afirmar linearmente e sem
maiores desdobramentos especulativos a autonomia dos campos da fé e da razão.
No século XIV o franciscano Guilherme de Ockham ao buscar o retorno à pobreza e
simplicidade do franciscanismo primitivo abominava as inúteis guirlandas racionais
com seus intrincados silogismos de argumentos e contra argumentos. Radicaliza:
nega a metafísica. A fé é um ato cego de crença em Deus que não precisa de
justificativas. Deus – por ser Deus – age de forma arbitrária e não previsível, daí a
impossibilidade de “conhecer” as leis que regem as coisas físicas e espirituais.
Defende o puro nominalismo em conjunto com o empirismo, única porta para algum
conhecimento, mesmo assim duvidoso, porque incapaz de formular leis universais.
O papado com seu poder temporal e espiritual e as teocracias imperiais sucumbem
sob a fina lâmina navalha de Ockham. Convencionou-se escolhe-lo como o
demolidor final da escolástica. A partir deste momento, qual corcel selvagem, a
razão campeia descomprometida dos cercados da ortodoxia religiosa e filosófica
chegando nos séculos seguintes a uma quase divinização. O Iluminismo exalta essa
razão que se torna objeto de “culto quase religioso” no Positivismo com seus
templos à razão ao se erigir não só como sistema filosófico, mas também “religioso”,
ou para escapar deste termo com toda a carga histórico-metafísico que traz consigo,

89
- cf. Carlos JOSAPHAT. Tomás de Aquino e a nova era do espírito. São Paulo, Edições Loyola,
1998. P. 5.
88

num sistema mítico onde a “contemplatio” da “Ratio” em sua plenitude e poder eleva
o sábio ao “êxtase”.

Se o aristotelismo no século XIII fizera adentrar a racionalidade na Universidade de


Paris, e posteriormente nos seminários por meio de Tomás de Aquino, esta ganhará
cidadania no comércio no século XV e nas indústrias no século XVIII.

Os negócios em vista do lucro são elaborados a partir de uma racionalidade


matemática e pragmática que mede e avalia os empreendimentos em vista do lucro.
Se a intuição fora guia do mundo rural, a razão presidia a organização da cidade
comercial. Não é sem motivo que o livre exame proposto por Lutero fora uma reação
racional à credulidade e subserviência que presidira a mentalidade medieval ao
considerar toda forma de autoridade advinda de Deus. Aliás, a racionalidade avança
por toda a idade moderna passando sob seu crivo crítico a religião, a ciência, a
sociedade, a mente humana e o sistema de produção. Durante a vida de João
Bosco discutia-se – ainda que num círculo restrito – as idéias do positivismo, do
liberalismo, do marxismo e mesmo Freud já iniciava seus primeiros ensaios de
psicanálise. A distância do tempo nos permite visualizar que novas concepções
imiscuíram-se sorrateiramente no tecido social atingindo homens ligados às velhas
instituições, entre elas a igreja para a qual parecia ruir um mundo sem se repor
outro. João Bosco viveu essas angustias do seu tempo e no ambiente da urbe não
se fechou em sua visão campesina, mas acolheu essas novas formas de
racionalidade, sendo não apenas capaz de dialogar com elas, mas também de
utilizá-la de forma instrumental para atingir seus fins educacionais,

As primeiras práticas educacionais de Bosco, como já se afirmou anteriormente,


foram baseadas nas suas intuições e bom senso. Mais tarde, porém surge a
necessidade de elaborá-las teoricamente, sobretudo quando saem do estreito
círculo do piemonte e seus discípulos necessitam de referenciais teóricos para ação.
Seus escritos são simples, lineares, claros e objetivos feitos do tempo roubado de
suas atividades e dirigidos aos educadores de suas obras. João Bosco escreveu
sobre seu método educativo e muitas vezes o apresentou em palestras e boas-
89

noites90 anotados e compilados por seus alunos e salesianos. Para uma a


apreensão dessas produções91 é necessário visualizá-las ao longo de toda sua vida.

O núcleo92 da pedagogia salesiana é o Sistema Preventivo93 oposto ao sistema


repressivo. Este se apóia no educador autoritário, distante e pronto a fazer uso do
castigo onde a dimensão hierárquica94 entre educador e educando é explicita, não
existindo proximidade entre ambos95. Nele não existe afeto, mas leis, regras e
castigos que geram nos jovens mágoas, ressentimentos, rancores e até desejo de
vingança.

No Sistema Preventivo a finalidade da educação não é punir, mas impedir que faltas
aconteçam a partir da presença do educador em meio dos educandos, também nos
recreios, onde se misturam com eles participando de suas atividades. É importante
sublinhar que essa presença não é um episódio casual ou acidental. Ela é o
fundamento do seu sistema e, portanto deve ser intensa, sistêmica e cotidiana.
Não é tão pouco uma presença meramente física, mas, afetiva e efetiva na qual o

90
- O “Boa-noite” era uma mensagem dada aos alunos e educadores no final do dia devendo durar
cinco minutos. Era um bom pensamento para a noite. Nela tratavam-se dos acontecimentos do dia ou
de fatos agradáveis e edificantes. Dom Bosco era um excelente narrador prendendo seus ouvintes
com a dramatização das narrações dramatizadas. Em não poucas boas-noites narrou seus sonhos.
Essa prática permanece até hoje em todas as obras salesianas conhecida por esse nome nos
internatos e adaptada para as escolas e obras sociais com o nome de “bom-dia” ou “boa-tarde”.
91
- Ao longo da vida de João Bosco houve uma boa produção de textos que permitem visualizar sua
proposta pedagógica. São autobiografia, biografias de alunos, regulamentos, livros didáticos e
religiosos, cartas, textos pedagógicos e a coletânea mensal das “leituras católicas” com estórias
infanto-juvenis, teatros, vida de santos tendo em vista os jovens das classes populares.
92
- A partir da Revolução Francesa ampliou-se a educação para o povo com dicussão de diversas
propostas pedagógicas. João Bosco sofreu influência deste contexto. Cf. Pietro BRAIDO. Prevenir,
não Reprimir. São Paulo, Editora Salesiana, 2004. pp. 89-112.
93
Cf – João BOSCO. O sistema Preventivo na Educação dos Jovens. In.Constituições e
Regulamentos, São Paulo, Editora Salesiana, 2003. Pp. 266-274
94
- “As Relações do jovem com o diretor criou a imagem de ser ele onisciente, onipresente, todo
poderoso, árbitro irrecorrível, “ungido” como Providência divina e como tal lembrado Poe pais e
professores pelos pais e mestres, para intimidar e submeter à criança. Em O Ateneu, diretor,
Aristarco assume as feições de um deus assassino e antropófago, selvagem. Essa imagem aparece
em toda vida interna da escola no Brasil”. Manoel ISAÚ. Luz e Sombras – Internatos no Brasil.
São Paulo, Editora Salesiana, 2000. p.. 101
95
- O filme Sociedade dos Poetas Mortos retrata bem essa realidade da educação tradicional. Cf.
Peter WEIR. Dead Poets Society, USA, 1989.
90

educador interage com o educando seja como pai, amigo ou irmão, captando-lhe
não só a simpatia, mas também o afeto. Nada e ninguém podem substituir essa
presença qualificada do educador salesiano, entendido como educador somente
desta forma. Sem ela, neste formato, não se consolida e nem se realiza a educação
entendida como salesiana.

João Bosco realiza um novo conceito de educação ao propor que o educador seja
objeto de afeto e amor dos educandos. Esta proposta se coloca na contramão da
educação católica do século XIX que tinha por escopo levar os educandos ao amor
a Deus, à prática da virtude e à fuga do vício como objetivos finais, onde os
educadores eram concebidos como instrumentos para se alcançar esse fim. Bosco,
ao contrário, coloca a figura do educador como objeto primeiro da educação já que o
adolescente não trabalha com idéias abstratas, mas com modelos e experiências
concretas. O Educador deve assim não só captar a benevolência, mas o afeto do
educando, tratando-se na linguagem do educador piemontês, de fazer-se amar.

Chegando-se a este estágio de interação, acreditava então que as propostas


educativas seriam acolhidas pelo jovem que, sabendo-se amado, veria na presença
participativa e alegre do educador um referencial para sua vida e felicidade. Este
estilo de educação foi definido como pedagogia da presença. Para que isso
acontecesse era necessário que o Educador amasse tudo que os jovens amam96.
Nesta pedagogia o jovem, e não os princípios, é o foco de uma prática educativa
personalizada onde os ambientes e situações favorecem essa integração. Os
espaços físicos das obras devem ser amplos permitindo ao aluno correr e se divertir
à vontade e sem restrições. Nos recreios não deve haver momento para a
ociosidade, mas ser marcado por jogos, brincadeiras, música e ensaios de teatro,
sendo os educadores a alma do recreio, reinando aí um clima de família,
acolhimento e respeito com uma eventual “parolina all’orecchio97” de incentivo e

96
- O educador nesta pedagogia promove e apoio tudo que seja agradável ao jovem desde que
isso não possua aspectos morais negativos e nem impacto desaconselhável em sua vida.

97
- Essa expressão, “uma palavrinha no ouvido” é consagrada na pedagogia salesiana e
representa a atenção e preocupação personalizada para cada adolescente que se sente objeto da
atenção do educador.
91

apoio individualizado fazendo o adolescente sentir-se importante e centro das


atenções e dos educadores.

A presença entre os jovens não é, porém “genérica”. Ela apóia-se no tripé Razão,
Religião e Bondade, e, basta que falte um destes elementos para que todo o sistema
desmorone. Esses elementos foram extraídos das vivências de João Bosco em
vários momentos de sua vida.

Viveu numa família marcada pelo afeto de sua mãe Margarida, mulher terna e de
temperamento resoluto. Na pré-adolescência recebeu o apoio do padre João
Melquior Calosso que, percebendo sua inteligência, lhe instruíra nos primeiros
rudimentos do latim. Foi um tutor que o fez se sentir valorizado granjeando-lhe o
afeto. João viveu também, como contraponto, a experiência psicológica da ausência
paterna que falecera quando tinha dois anos e as hostilidades do irmão mais velho
que deveria fazer às vezes de pai. Soube tirar lições desta ausência, sublimando-a
quando assume uma presença firme, terna e provedora junto dos adolescentes e
jovens submetidos ao frio sistema de produção, “órfãos” da ternura familiar, que
passavam a encontrar em Dom Bosco e nos seus cooperadores aquele pai que lhes
faltava, como faltara a João. O fundador não abre mão de sua formação camponesa.
Valoriza o trabalho e a religiosidade eivada de confiança e submissão a Deus que,
como acreditava, com sua providência, a tudo preside. Esta é a espiritualidade
simples vivida pelos camponeses e que Bosco implanta nas suas obras.
Finalmente a Razão que conhecera na academia e que estava presente na lógica da
cidade industrial guiará a condução dos seus jovens para o Bem, entendido como
tal. Bosco integra suas experiências familiar, religiosa e acadêmica num sistema de
educação que se fundamenta na intimidade da família, na religiosidade do campo e
na racionalidade da urbe.

A Razão, a Religião e a Bondade possuem no seu pensamento e na sua prática


educacional um sentido bem definido.
92

A Razão deve presidir a educação enquanto leva o jovem a entender98 a verdade e


o bem. Bosco acredita que uma determinação dos educadores só calaria fundo no
jovem se esse apreendesse o seu sentido, acolhendo-a para sua formação; daí, a
necessidade das orientações dos educadores serem explicitadas no seu sentido
lógico e nos benefícios que trará para a vida do educando. Somente quando
entende e está racionalmente convencido das orientações dos educadores, só então
as assumirá. .

A Religião com seus ensinamentos e preceitos oferecia a mística da verdade


abraçada pela razão. Valoriza sobremaneira a conversa pessoal e o
aconselhamento de um guia espiritual para moldar e formar o bom cristão. A religião
é vista como fonte e sustentáculo dos grandes ideais de vida.

A Bondade,99 ainda que sempre nomeada em terceiro lugar, após a razão e a


religião é, porém, a primeira a ser sentida pelo jovem ao perceber o respeito e amor
com que é acolhido. Não é uma forma afetiva pegajosa, mas, temperada pela razão
e sobriedade. O jovem deve se sentir compreendido naquilo que é e do que gosta,
sabendo-se respeitado no seu modo de ser e, acima de tudo, percebendo-se
amado.

Esses três elementos se articulam organicamente num sistema educacional que


envolve um conjunto de valores, atitudes e situações que devem corroborar para se
atingir a finalidade fundamental do seu projeto que é formar bons cristãos e
honestos cidadãos100. Apreender essa cultura educacional é possuir um coração
oratoriano que é a incorporação de uma mentalidade e modo de pensar e agir a
partir dessa cosmovisão filosófico-educacional. Alguns fatores devem ser
organicamente articulados para que exista educação salesiana, somatório de

98
- Sócrates, segundo Platão, punha uma profunda confiança na razão que, compreendendo a
verdade racionalmente, estaria determinada a abraçá-la. É neste sentido que Sócrates pode afirmar:
“Ao que erra não se deve castigar, mas educar”.
99
-A palavra “bondade” se diz em italiano “amorevolezza” . Os teóricos salesianos mostram
resistência em traduzi-la, por considerarem que ela teria seu sentido enfraquecido. Alguns a traduzem
por ternura, bondade, o amor demonstrado e o afeto.

100
- O conceito de cidadania corresponde a cumprimento dos deveres cívicos com a nação.
Bosco discretamente insere esse objetivo que atendia à nova situação da Itália unificada.
93

diversos elementos para a formação integral de seus destinatários. Identifiquemos


os principais.

Um primeiro ponto é a mística do educador que, mais que o conhecimento de


princípios, encarna na sua pessoa os valores dessa educação. Seria como rasgar os
conteúdos teóricos e, ao se conviver com o educador, se pudesse reescrevê-los a
partir de sua vida e atitudes. Sua figura física e humana deve ser a materialização
dos mais profundos ideais educacionais. Apresenta-se como modelo que se impõe
pela presença jovial, ativa e cativante. O Educador jamais fala de si: mostra-se.
Convive. Está presente. Não fala de trabalho, trabalha. Não fala de esportes, pratica-
os. Não fala de honestidade, age com retidão. Não prega o amor, é amigo. Bosco
procurou sintetizar todo esse modo de ser com a expressão: a educação é obra do
coração.

Em vários “sonhos” dramatizou o que entendia por verdadeiro e falso educador. No


sonho dos dez diamantes101 apresenta as virtudes que devem ornar o educador
salesiano. Descreve um jovem com um rico manto cravejado de dez diamantes.
Cinco são visíveis na parte da frente do manto e cinco encontram-se escondidos na
parte de trás. Nesta parábola-sonho mostra o educador com tal gama de virtudes
que é modelo de perfeição e, sobretudo, de serviço. Na mesma parábola apresenta
de novo esse jovem, agora com o manto puído, desbotado e com buracos nos
lugares dos diamantes. É o modelo de como o educador não deve ser.

Na parábola-sonho do caramanchão de rosas indica as dificuldades a que está


submetido o verdadeiro educador. Quem olha de longe o vê num caminho de rosas,
mas de perto sabe que pisa em espinhos. Somente os que acreditam na educação
são capazes de trilhar esse caminho enquanto que os fracos e inconstantes
desanimam nas primeiras dificuldades. A educação possui uma dimensão de
aparentes rosas, mas é realizada na dureza de espinhos invisíveis.

101
- Os diamantes são valores humanos e cristãos que devem fazer parte dos valores do
educador salesiano, com especial destaque para o trabalho e o amor. Cf. VIGANÓ, Egidio. Un
Progetto Evangelico di Vita Attiva. Torino: Elle di Ci, 1982.
94

Na carta de Roma mostra um pátio onde os alunos brincam, enquanto seus


educadores estão distantes conversando entre si sem lhes prestar atenção. Há
alunos cheios de maldade não percebidos por seus educadores, porque distantes.
Não basta que estejam num canto do pátio, deveriam estar inseridos no meio dos
educandos como animadores, pois presença não se delega e sem ela não se educa.

Um segundo ponto é visão otimista do adolescente e do jovem entendidos como


capazes de receber a educação e assumi-la. O ser humano é apto para o bem
sendo capaz de progredir de sua situação atual para uma melhor. Um bom educador
consegue, ainda no pior jovem, descobrir um lado bom que possa ser o ponto de
partida para a construção de uma vida virtuosa. O jovem é o protagonista de sua
formação ao se apossar do conteúdo teórico da própria educação e aplicá-lo a si e
aos seus pares. A educação é entendida não como ação passiva de receber, mas
ativa de autoconstrução com o apoio dos educadores. É preciso incentivar a
liderança de cada jovem tornando-o participante de todas as atividades que
envolvam sua formação.

Pelo fato dos adolescentes gostarem de viver em grupo, deve-se favorecer e


promover o associacionismo onde possam, não só desenvolver seus gostos e
habilidades, mas ainda ampliá-los. Numa comunidade educativa se deveria
favorecer a formação de grupos religiosos, de teatro, música, esportes e o que mais
fosse necessário de acordo com a índole de cada jovem.

O ambiente de família é fundamental nessa educação para que o adolescente se


sinta com liberdade de correr, brincar, rir e desenvolver suas potencialidades. A esse
ambiente familiar deve-se somar um ambiente físico102 com amplos espaços para
esportes e recreações que dê a sensação de liberdade. Passeios e excursões
favorecem o estreitamento de relacionamento entre os jovens e com seus
educadores.

102
Esse ambiente deve ter harmonia, beleza, luz e claridade. Em síntese as obras devem ter
largos pórticos, marcados pela música, pela alegria e pelos jogos, que permitam ao adolescente
extravasar suas energias sendo um ambiente favorável para desenvolver sentimentos nobres,
sentindo-se amado, respeitado e percebendo-se centro da atividade educativa.
95

A aplicação destes ingredientes deve ser vivida pelos educadores, jovens e


funcionários103 pressupondo-se que todos conheçam e pratiquem este sistema. No
pensamento de João Bosco cria-se um ambiente educativo onde tudo tem
importância: construção, jardins, campos de esporte, iluminação, espaços vazados
por vidro, cores alegres, recreios, salas de música e teatro. Todos que prestam
serviço na obra, não importando a função, são entendidos como educadores pelas
atitudes, posturas, palavras e exemplos.

Finalmente, o diretor deve ser, antes de tudo, um pai com seu escritório aberto com
acesso livre para os educandos,sendo o primeiro a chegar e o último a sair do pátio
nos horários de recreio como presença qualificada neste espaço que é o termômetro
de sua fidelidade ao projeto educativo, pois a presença não é um acessório da
educação, mas sua essência mesma e chave do seu sucesso. O “fazer-se amar” é
conquistado por uma presença amiga e significativa na vida dos educandos.

A Educação salesiana ao ser elaborada o foi tendo por destinatário primeiro o


adolescente. Estendia-se um pouco atendendo a pré-adolescentes e a rapazes104
egressos da adolescência. Outras idades não são contempladas na sua elaboração
inicial. Estes são princípios pétreos para que uma educação seja chancelada como
salesiana.

103
- João Bosco entendia que todos que estivessem num ambiente de educação salesiana eram
educadores, não importando a função que exercessem, mesmo se distante dos alunos. Um
funcionário que não tivesse atitudes de educador salesiano, não importando o profissionalismo da
função que exercesse, deveria ser desligado da obra.
104
- No século XIX a educação dada a rapazes e moças era separada. Para atender às moças
foram criadas as salesianas tendo como co-fundadora com João Bosco Maria Domingos Mazzarello,
natural de uma pequena aldeia do norte da península itálica com o nome de Mornese.
96

2.4 O Transplante da Obra Salesiana para o Brasil - Sua missão


civilizatória

A revolução francesa enquanto divisor de águas do antigo regime para o novo


mundo liberal teve influencia não somente na Europa, mas também nas colônias da
América. No século XIX o Brasil viverá significativas mudanças políticas. Deixará de
ser colônia em 1808 com a vinda da família real de Portugal em fuga da invasão
napoleônica às terras lusitanas, assumindo o status de Reino Unido a Portugal. Em
1822 se separará da metrópole se constituindo em império, ainda que de fato
subordinado economicamente à Inglaterra. Após um breve período regencial seu
segundo imperador governará por 49 anos tendo seu poder enfraquecido com
sucessivos desencontros que desestabilizam seu relacionamento com suas bases
de sustentação política: o exército, a igreja e os grandes proprietários de terra. Em
1889 será proclamada a república.

O poder político central estava nas mãos dos grandes proprietários de terras do Vale
do Paraíba e, regionalmente, com os coronéis no nordeste e os caudilhos no sul.
Uma frágil classe média de profissionais liberais, funcionários públicos, militares e
clérigos estavam presentes com alguma visibilidade em algumas cidades maiores. A
política nacional se polariza entre conservadores e liberais de fachada oriundos das
classes ricas e que defendiam, em última análise, seus interesses. As grandes
massas populares, analfabetas e despolitizadas viviam alijadas das questões
políticas.

No campo econômico o Brasil terá no café seu principal produto de exportação,


ainda que apoiado num modo de produção arcaico escravista em processo de
extinção por um conjunto de leis implantadas por pressão da Inglaterra, necessitada
de mercados consumidores de seus produtos industrializados. Surgiram algumas
indústrias, que são porém, fragilizadas frente ao avanço tecnológico das indústrias
inglesas, a uma política alfandegária complacente com o mercado internacional e à
falta de capitais e de mão de obra qualificada.

A Igreja implantada no Brasil possuía então características sui generis, fruto dum
longo processo daquilo que foi definido por Eduardo Hoonaert como Espírito
97

português105 nascido do catolicismo guerreiro gestado em Portugal na luta contra os


mouros que lhes ameaçaram por mais de setecentos anos a fé e as terras. Esta luta
de resistência por séculos permitiu que se configurasse quase que uma igreja
nacional nas terras lusitanas.

A Igreja do Brasil nasceu como um departamento do Estado Lusitano, em


vista dos direitos do padroado conferidos pela Santa Sé à Coroa de
Portugal. Durante todo o período colonial, e ainda nas primeiras décadas
do século XIX, o chefe efetivo da Igreja aqui estabelecida era o monarca
106
lusitano, sucedido posteriormente pelo monarca do Brasil .

De outro lado, devido à grande extensão de terras, há a organização de um


catolicismo leigo onde predominavam irmandades e confrarias com suas normas,
celebrações e hierarquias à margem da igreja oficial que, sem se opor a ela, se
organizava, não raro, mesclando elementos sincréticos afro-ameríndios, dando
vazão às necessidades espirituais do povo simples com seus rezadores, beatas,
sacristãos, rituais e folias com tênues laços com a igreja dos padres.

Para compreender o catolicismo luso-brasileiro é preciso se considerar sua


obrigatoriedade107. Em Portugal não existe outra interpretação da realidade que não
seja a cosmovisão cristã. Nossa colonização é feita por católicos portugueses com
sua organização social, política e religiosa. A configuração do povo brasileiro só
acontecerá depois de alguns séculos de ocupação quando novas gerações vão
tendo aqui o seu referencial de pátria.

Como já afirmamos, a mentalidade portuguesa108 se configura a partir da invasão


moura quando os peninsulares sistematicamente lutaram para expulsar os invasores

105
- Hoornaert utiliza o termo “espírito português” representando a mentalidade lusitana que fez
da fé e do Estado uma unidade indissociável.
106
- Riolando AZZI, R. Os Salesianos no Brasil à luz da História. São Paulo: Salesiana, 1983,
p.15
107
- HOORNAERT, Eduardo. Formação do Catolicismo Brasileiro 1550 – 1800. Petrópolis:
Vozes, 1974, p. 13.
108
- A formação da mentalidade portuguesa que é apresentada a seguir, ainda que assumida no
presente texto, não possui unanimidade, porém. Não há dúvidas de que Hoorrnaert possui uma
decodificação da história a partir de uma ótica da teologia da libertação que polariza, numa visão
marxista, oprimidos e opressores. José Maria Paiva no livro “Colonização e Catequese” trabalha com
o contexto da imagem de um “mundo indiviso” constituído pelo “orbis Christianus” que “é uma
imagem cristã medieval do mundo”. A lógica que permeia o seu pensamento dá profundo significado
à expansão portuguesa, fora da lógica do catolicismo guerreiro. “A missão aos infiéis – infiéis não por
98

infiéis, sendo a catolicidade um dos elementos ideológicos fundamentais de


resistência. A luta de Reconquista da península ibérica possui a tríplice finalidade:
no campo religioso a expulsão dos infiéis, na ótica dos proprietários de terras e
comerciantes a autonomia econômica e na ótica dos nobres a independência
política. Esses séculos de luta foram moldando o espírito português que fundiu numa
só idéia os conceitos de fé e nação que se entranharam e se fundiram de forma
orgânica e unitária na alma portuguesa, lembrando-nos que Portugal será o primeiro
estado moderno mercantil a ser constituído. A partir disto, a expansão comercial é
vista como uma missão religiosa e a conquista de terras é marcada pela cruz fincada
no solo como sinal de posse e submissão daquelas terras e do seu povo ao rei e à
Igreja, fundidos na mentalidade da época a uma unidade: o orbis christianus. A
expansão comercial, indo além de sua materialidade, é vista como expressão desse
catolicismo guerreiro que vê no domínio econômico sobre os infiéis uma
expressão dessa guerra santa de um povo com uma visão messiânica e missionária
da sua existência. Concretamente há invasão, imposição, submissão e expropriação
sendo essa mentalidade não só portuguesa, mas também espanhola enquadrando-
se na da lógica de “guerra santa contra os infiéis” como nos atesta Galeano ao citar
Daniel Vidart no seu livro Ideología y Realidad de América:

Antes de cada entrada militar, os capitães de conquista deviam ler para os


índios, sem intérprete, mas diante de um escrivão público, um extenso e
retórico Requerimiento que os exortava a se converterem à santa fé

terem renegado a fé mas por não a terem conhecido ainda – era dever de todos (...). Havia urgência
de anunciar a Palavra da Salvação, para que, crendo, fossem batizados e ingressassem no mundo
verdadeiro, e não crendo, fossem castigados e escravizados. (...) Era a sua mesma sobrevivência
que impunha a conquista, pela força das armas, em guerra santa, guerra justa, para declarar aos
índios o seu direito de se tornarem cristãos, de se salvarem. Os direitos humanos do orbis
christianus eram, com efeito, direitos esses de ser cristão, direitos estes que ninguém poderia
restringir, mas direitos estes, também que ninguém podia recusar. Daí o compelle illos intrare. Não
se perguntava, a esta época, se os ouvintes tinham condições de entender o que se passava, tão
evidente era a necessidade da cristianização, tão evidente a naturalidade da sobrenatureza. O
importante era a execução aparente, legal, pública, da anexação dos novos territórios, incluindo
evidentemente o batismo dos seus habitantes. A ação externa significava (era sinal de) a conversão:
a realidade se tornava outra, ainda que não se percebesse de imediato toda a sua conseqüência.
Uma vez batizados, os atos que contradissessem a fé cristã expressariam tão-somente distorção
individual da vontade, e não mais, deformidade total da realidade, deformidade coletiva. Disposições
especiais se ativariam para sanar a situação individual, mas a ordem estaria preservada. Salvava-se
o orbe cristão, preservava-se sua estrutura, permanecia o equilíbrio”. Cf. PAIVA, op. cit., p. 21-23.
Ambos autores partem de interpretações diferenciadas da colonização portuguesa. Hoornaet como
uma luta de resistência que teria forjado e fundido no homem português uma mentalidade de
resistência gerando o catolicismo guerreiro; Paiva, como uma forma de manutenção de uma
cosmovisão teocêntrica unificadora medieval. Apesar, porém, de interpretações divergentes quanto à
origem da mentalidade do colonizador do Brasil, ambos concluem que a cristandade e tudo aquilo
que ela significava era uma verdade a ser imposta pela pregação e pela espada. Subjugar-se a Deus
era subjugar-se a Portugal e subjugar-se a Portugal era subjugar-se a Deus.
99

católica: “Se não o fizerdes, ou nisto puserdes maliciosamente dilação,


certifico-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei poderosamente contra
vós e vos farei guerra por todas as partes e maneira que puder, e vos
sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de Sua Majestade e tomarei
vossas mulheres e filhos e vos farei escravos, e como tais vos venderei, e
disporei de vós como Sua Majestade mandar, e tomarei vossos bens e vos
109
farei todos os males e danos que puder... ”

Frente a tão cáusticos e explícitos propósitos deste Requerimiento, as palavras que


Dom João III escreve ao primeiro governador geral do Brasil soam como um enlevo
místico de um evangelizador zeloso pela salvação das almas, mas que efetivamente
participa do mesmo processo e da mesma lógica de expropriação do gentio: “A
principal causa que me levou a povoar o Brasil foi que a gente do Brasil se
convertesse à nossa Santa fé Católica”110.

A ocupação territorial é marcada por sinais religiosos como ermidas, capelas,


cruzes, sendo o batismo não só um sinal de conversão, mas de integração ao Reino
de Portugal. Acolher a fé é integrar-se no Reino. Padre Antônio Viera bem define
essa missão ao afirmar:

Todos os reis são de Deus, mas os outros reis são de Deus feitos pelos
homens: o rei de Portugal é de Deus feito por Deus e por isso mais
propriamente seu. [...] os outros homens por instituição divina tem a
obrigação de ser católicos: o português tem obrigação de ser católico e de
ser apostólico. Os outros cristãos têm obrigação de crer a fé. O português
111
tem a obrigação de crer e, a mais, de a propagar .

A expansão religiosa e comercial é a expressão de um único ato que impõe aos


infiéis a fé e a hegemonia portuguesa, daí a devoção a muitos santos guerreiros que
pugnam pelas causas de Deus e de Portugal. Ocupam-se terras e dominam-se
povos para Deus e para o rei.

Na colonização predominou essa mentalidade nas primeiras populações. A religião


organizava e mantinha a vida social e ao mesmo tempo era mantida pelo Estado
justificando seu poder. Hoornaert cita como exemplo, o Triunfo Eucarístico celebrado

109
- GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1982, p. 25.

110
- Ibidem. p. 32
111
- Apud HOORNAERT, op. cit,. p. 35.
100

em 1733 na cidade de Ouro Preto quando o governo português, identificando-se


com a própria religião, justificava a forte repressão portuguesa aos moradores da
Vila:

Nenhuma comunidade colonial brasileira sofreu repressão tão rigorosa


como a comunidade mineira [...]. a hóstia sagrada carregada entre as mãos
do sacerdote e cercada de perto pelas autoridades repressivas significou
simbolicamente o triunfo da ordem colonial. Após ter mostrado o braço forte
em violências e castigos, o governo mostrou sua piedade e união com
Deus. O povo tinha que saber guardar o seu devido lugar na sociedade e
respeitar a força consagrada por Deus, através de ordens e hierarquias tão
manifestadamente apresentadas no caminhar da procissão em confrarias,
irmandades, ordens terceiras divididas segundo as posições sociais e
raciais, pois “nas procissões as cores não se confundiam”. A procissão toda
ensinava: cada qual no seu devido lugar, respeitando as leis impostas pelos
112
fortes e poderosos, pois o “triunfo” é deles .

Na mentalidade portuguesa a sociedade se divide em ordens sociais por vontade de


Deus, criando-se no Brasil uma postura subserviente frente aos representantes do
poder temporal e espiritual, tidos como representantes diretos de Deus. Esta
submissão ao divino não impediu que se vivesse uma dupla moral, rígida e exigente
nos discursos, permissiva, porém, no cotidiano.

Em contrapartida, no século XIX nos ambientes do clero culto, sobretudo o


paulistano, há forte influência dos filósofos iluministas. Substituem a “iluminatio”
agostiniana pelas luzes da razão. Liberdade e realização nesta terra é o escopo
desta vida. Há o conceito de Deus como origem do movimento cósmico cabendo à
racionalidade humana, e não à providência divina, a organização deste mundo,
ficando a cargo da religião ser apenas fonte de princípios morais. Essa mentalidade
impregna os seminários dos beneditinos e dos franciscanos do Rio de Janeiro e de
Olinda em consonância com as tendências ilustradas da Europa. Os padres
ilustrados, longe de ser místicos, abraçavam as realidades terrestres sendo
fazendeiros, professores, homens de negócios e políticos 113. Eram intelectuais
deístas vendo nas práticas do catolicismo tradicional, sobretudo o popular, formas
de superstições e de fetichismo ou politeísmo primitivo, enquanto que para o

112
- HOORNAERT, op. cit., p. 50.
113
Cf. WERNET, Augustin. A Igreja Paulista no Século XIX. São Paulo: Ática, 1987, p. 37 et
seq.
101

catolicismo tradicional o deísmo iluminista não passava de irreligiosidade e


ateísmo114.

O quadro apresentado mostra que a situação da Igreja do Brasil era preocupante,


sobretudo se se considerasse as reformas exigidas pelo concílio de Trento com suas
propostas rigoristas para se constituir uma igreja reformada. O Catolicismo que já
vivera um rude golpe com a perda do seu poder temporal na península itálica, se via
fragilizado para enfrentar os muitos problemas do Brasil: a divisão do seu poder com
o imperador através do padroado, a existência de uma religiosidade popular
marginal e sincrética, um clero iluminista e deísta, a decadência moral das ordens
religiosas tradicionais e os desregramentos do clero diocesano. Pio IX no seu longo
pontificado115 enfrentara com firmeza esses problemas procurando criar um
episcopado alinhado com os valores do tridentino apoiando as ordens afinadas com
seus ideais. Através da convocação do Concílio Vaticano I116 procura fortalecer a fé
católica, na só reafirmando as doutrinas do Concílio de Trento, mas atacando as
tendências modernas do racionalismo, liberalismo e materialismo. Um dos pontos
mais controversos dentro e fora da igreja será a proclamação do dogma da
infalibilidade do papa nos campos da fé e da moral quando fala “ex-cathedra”. Seu
sucessor, Leão XIII117, manteve essa política de fortalecimento do poder do Vaticano
e da centralidade do comando da Igreja na figura do papa e da cúria romana.

A situação do clero do Brasil preocupava também ao imperador Pedro II. Em 1855 o


ministro Nabuco havia proibido por decreto que as antigas ordens recebessem
noviços e impedira que novas ordens ingressassem no Brasil, esperando realizar
uma concordada com a Santa Sé através da qual a mesma realizaria a reforma das
ordens aqui existentes.

Na mente de Dom Pedro II, os frades e os monges, vivendo de seus


patrimônios e dedicados especialmente à vida contemplativa, constituíam
um grupo de pessoas inúteis para a sociedade. Daí seu desinteresse em
prover a reforma das antigas ordens. Em seu diário particular, o imperador

114
- Ibidem, p. 39-40.
115
- Pontificado de 1846-1878
116
- O concilio Vaticano I durou de 8 de dezembro de 1869 a 18 de julho de 1870, tendo sido
interrompido pela eclosão da guerra franco-prussiana.
117
- Pontificado de 1878 a 1903.
102

fazia seguinte observação: “Concordo com os meus ministros que acham as


118
ordens monásticas aqui irrecuperáveis” .

Padre Lasanha119, um dos responsáveis por implantar a ordem salesiana no Brasil,


testemunhava em carta datada de sete de agosto de 1883:

Lembre-se, o caríssimo, de que o clero está aqui numa situação que causa
espanto; e as velhas ordens dos carmelitas, beneditinos, mercedários e
franciscanos estão para extinguir-se, o que, aliás, é uma fortuna, porque
eles não têm mais o espírito religioso. Nadam na abundância e na
devassidão, com rendas fabulosas, com milhares de escravos (que horror!)
120
às suas ordens. .

Duas coisas preocupam o império a respeito do clero: a falta de observância do


celibato e as ideais liberais que ameaçam a ordem social escravocrata tradicional. O
imperador percebe ser premente a reforma do clero nos costumes, na mentalidade e
na formação.

No Brasil a reforma da igreja121 se inicia com os lazaristas122 que assumem a


direção dos seminários do Caraça, Campo Belo e Mariana que serão celeiros de

118
- AZZI, 1983. p. 59-60.
119
- Dom Luigi Lasagna nasceu em Montemagno (Asti) em Monteferrato, Itália, no dia 4 de
março de 1850. Foi aluno de Dom Bosco no Oratório São Francisco de Sales. Torna-se salesiano e
missionário no Uruguai. Firme nas suas posições, fidelíssimo a Dom Bosco, homem de visão ampla
possui presença destacada no Uruguai onde consolida a presença salesiana. Atua com grande
eficiência no Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina. Feito bispo é homem de ampla visão para o
futuro dos salesianos no Brasil. No dia 6 de novembro de 1895 sua vida é ceifada em acidente
ferroviário próximo da estação ferroviária de Mariano Procópio, Juiz de Fora. Sua morte possui eco
nos principais jornais do Brasil e da Europa, representando um rude golpe na organização dos
salesianos no Brasil. Cf. FERREIRA, Antônio da Silva. Epistolário, Mons. Luigi Lasagna. Roma:
LAS, 199, p. 5-41.
120
- AZZI, 1983, p. 60.
121
Pio IX percebera a fragilidade do poder papal quando a autoridade do sumo pontífice não era
referencial para muitos segmentos da igreja. Iniciara, então, o projeto de fortalecimento da igreja
nomeando bispos alinhados com o papado que por sua parte formavam um clero com a mesma
mentalidade, preferencialmente formado em Roma.
122
Congregação da Missão (Congregatio Missionis, CM), Lazaristas ou ainda Padres e Irmãos
Vicentinos, é uma congregação religiosa masculina católica fundada em Paris, no dia 17 de abril de
1625, por São Vicente de Paulo (1581-1660). A origem remonta às missões junto aos pobres
realizadas por Vicente de Paulo e cinco outros padres. Em 1624 a comunidade religiosa instalou-se
no Collège des Bons Enfants, em Paris, França. Receberam aprovação episcopal em 1626. Em 1634,
através da bula Salvatoris Nostri do Papa Urbano VIII a Congregação teve aprovação pontifícia.Seus
membros são conhecidos como padres e irmãos vicentinos ou lazaristas porque a primeira casa da
Congregação, em Paris, se chamava «Casa de São Lázaro». Cf. CONGREGAÇÃO DA
MISSÃO. Padres Vicentinos. Disponível em: <http://ssvp-
portugal.org/component/content/article/81/760-congregacao-da-missao-padres-vicentinos.html>.
Acesso em: 10 maio 2011.
103

sacerdotes alinhados com os valores ultramontanos e dos quais sairão reitores de


vários seminários e bispos de grande destaque na reforma da igreja do Brasil 123
como Dom Luís Antônio dos Santos, bispo de Fortaleza, Dom Antonio dos Santos,
primeiro bispo de Diamantina e Dom Pedro Maria Lacerda que em 1861 tornou-se
arcebispo do Rio de Janeiro sendo responsável pela vinda dos salesianos ao
Brasil124.

Dom Lacerda será um dos grandes baluartes da restauração da igreja do Brasil.


Trouxera os lazaristas franceses para o seminário diocesano do Rio de Janeiro,
fortalecera a presença dos capuchinhos italianos do Morro do Castelo tidos como
fiéis observantes dos valores da igreja reformada e instalou os jesuítas em Nova
Friburgo no final do império. Mesmo antes da chegada dos salesianos, o nome de
Dom Bosco era exaltado pela imprensa católica que destacava suas grandes obras
na Europa. Sua viagem à França em 1883 e a calorosa acolhida pelos parisienses
teve grande repercussão na imprensa católica, enquanto que na imprensa liberal
percebia-se que a nova congregação que se implantaria no Rio de Janeiro seria
mais um reforço à afirmação progressiva do movimento dos bispos reformadores,
com sua marca ultramontana e antiliberal125.

De fato, a vinda dos salesianos para o Brasil fazia parte de uma política gestada por
Pio IX de retomada do poder central de Roma levada a cabo por bispos
reformadores de todo o mundo. Segundo Roger Bastide126 alguns elementos
marcaram esse processo de romanização: a afirmação de uma igreja institucional
hierárquica que se impunha a todas as formas de catolicismo popular; o controle da
doutrina, das instituições, do clero e mesmo do laicato; a dependência da igreja
brasileira de um clero estrangeiro europeu, principalmente de ordens religiosas, para
realizar a transição do catolicismo colonial para um catolicismo mais universalista,

123
- Cf. WERNET, op. cit., p. 97.
124
Dom Bosco quisera que sua congregação fosse missionária e já havia enviado algumas
expedições à América, especialmente à Patagônia. O Brasil, porém, não fazia parte de seus projetos
imediatos. A insistência, porém, de Dom Lacerda, inclusive pessoalmente com Dom Bosco fez com
que este antecipasse a vinda dos salesianos ao Brasil.

125
- AZZI, 1983, p. 23
126
- Roger Bastide, sociólogo francês, integrou a missão de professores europeus Universidade
de São Paulo.
104

com absoluta rigidez doutrinária e moral; a imposição das decisões de Roma acima
dos interesses locais e, finalmente, a integração da igreja no plano institucional e
ideológico nas estruturas altamente centralizadas e centralizadoras da cúria
Roma.127.

João Bosco, como assinalamos anteriormente, professara incondicional fidelidade


ao papado e imbuíra seus discípulos deste sentimento. Pio IX era considerado o
insigne benfeitor da congregação e a quem, seja em nível pessoal, seja em nível
institucional os salesianos professavam incondicional fidelidade nos mínimos
detalhes, como ensinara Dom Bosco. Dom Lasagna, a guisa de exemplo, ao chegar
à América entendia que essa fidelidade estava até em se manter a pronúncia do
latim à moda romana e não à moda espanhola como era usado na América. Só
muitos anos mais tarde se entenderá que essa “fidelidade” em coisas acidentais
criava obstáculo para a convivência com os demais segmentos da igreja e da
intelectualidade laica.

Entende-se, então, que apesar do governo imperial haver se posicionado contra o


ingresso de ordens religiosas no Brasil, os salesianos são aceitos pelo imperador
Pedro II, tendo por princípio que as portas do império estariam abertas para ordens
estrangeiras que, tendo lisura moral, se dedicassem a atividades missionárias e à
educação da juventude128. Dom Lasagna narra a boa acolhida do imperador Pedro II
em audiência concedida a pedido de dom Lacerda:

O próprio imperador D. Pedro II, monarca sábio e ativíssimo como nenhum,


dignou-se admitir-me em audiência particular no seu palácio de Petrópolis,
no dia de Pentecostes, e se entreteve comigo em familiar conversação, a
informar-se minuciosamente sobre a origem dos salesianos, sobre o
objetivo de sua missão na Igreja de Deus, sobre o método de ensino e de
educação da juventude, sobre os meios com que se conseguem sustentar
as suas obras de beneficência, sobre os resultados obtidos e ainda sobre
muitas outras coisas.

Depois de bem informado acerca de nossos oratórios, colégios, escolas


profissionais, colônias agrícolas, missões na Patagônia nos Pampas,
sumamente satisfeito, exprimiu vivo desejo de ver transplantado a nossa
instituição para o seu vasto império, prometendo-nos sua augusta proteção,
sobre os resultados obtidos e ainda sobre muitas outras coisas·.

127
- Cf. AZZI, 1983, p 27
128
- Ibidem, p. 61.
105

O conde d’Eu e a Princesa Isabel manifestaram imediata simpatia com os salesianos


querendo já de inicio confiar-lhes uma obra social de amparo à infância e, da parte
do governo da província do Rio de Janeiro, de inicio já obtinham subsídios
financeiros para manutenção de quarenta crianças pobres129.

Da parte da imprensa liberal as hostilidades não foram poucas, pois entendiam que
o Brasil sempre estivera sob o poder do clero e que era necessário diminuir essa
influência, já que os religiosos estrangeiros que chegavam apenas reforçavam o
poder de Roma na política nacional. O jornal A Folha Nova tecia ácidas criticas aos
estrangeiros e aos “novos jesuítas” vendo neles o fortalecimento do clericalismo e do
jesuitismo que consolidava o processo de reforma da igreja católica do Brasil que,
nada mais era, do que configurá-la ao modelo romano. O estilo salesiano de
sacerdotes modernos apresenta-se como um perigo pela sua simpatia como meio
de cativar o povo.

Implantada a república, os salesianos souberam se adaptar aos novos tempos


mantendo um fecundo diálogo com o governo, não criando atritos, apesar do
predomínio de idéias liberais e positivistas nas elites. Tinham consciência de serem
padres modernos que respondiam às necessidades de progresso do Brasil. Apesar
disso, os liberais continuavam a vê-los como inimigos perigosos por não se
enquadrarem nos esquemas dos velhos sacerdotes e, com sua simpatia e estilo
extrovertido, serem acolhidos com grande simpatia pelos filhos do povo.

A modernidade dos salesianos foi certamente uma chave que lhes abriu a
porta à sociedade brasileira, em vias e abandonar um padrão arcaico,
patriarcal e escravocrata, rumo a uma concepção social mais burguesa,
130
progressista e democrática .

Esperados pela igreja, acolhidos pelo governo imperial e rejeitados pelos liberais e
anticlericais os primeiros salesianos chegaram ao Brasil trazendo uma proposta
educativo-pedagógica nova nos seus métodos. Por outro lado perscrutavam com
olhar crítico a realidade religiosa, social e humana da cidade onde deveriam atuar.
Era um olhar europeu para a América, de homens do berço de uma civilização
clássica para um lugar de pessoas rudes. Mesmo o catolicismo praticado nestas

129
- Cf. AZZI, Riolando A Obra de Dom Bosco no Brasil. Barbacena: Centro de
Documentação e Pesquisa, 2000. v. I. p. 101-105.
130
- Ibidem, p. 75.
106

plagas parecia-lhes distorcido e desfigurado com práticas estranhas para pessoas


habituadas às rígidas rubricas do ritual romano.

Poder-se-ia falar de um “país atrasado” como o já fizeram alguns escritores locais.


Euclides da Cunha alguns anos mais tarde, já no período republicano, expressara
nos Sertões o conceito de um Brasil arcaico, atrasado e interiorano e o mesmo fizera
Monteiro Lobato ao descrever o caipira vale paraibano. Essas visões do homem
brasileiro eram também da Europa acrescidas ainda com a idéia de ser um povo
devasso. São abundantes no centro histórico salesiano de Roma as cartas trocadas
pelos primeiros missionários com seus superiores. Se de inicio se mostram
deslumbrados com as belezas naturais da Baia da Guanabara, a seguir descrevem
a miséria moral e material da população. O Rio é descrito pelo padre Tiago
Costamagna a Dom Bosco em carta datada de 14 de dezembro de 1877, numa
parada em direção a Argentina, como covil de Satanás, mísera cidade, a qual muito
mais que pela febre amarela, é atribulada pela febre negra da irreligião e da
imoralidade131. O Editorial do jornal O Apóstolo do dia 10 de janeiro de 1878 no Rio
de Janeiro assim se expressava:

Se há cidade em a qual maiores progressos tenha feito a devassidão dos


costumes, o vício e o crime, com certeza é esta Babilônia a que se deu o
nome de Rio de Janeiro. As messalinas, além de viverem em completa
ociosidade, debruçadas nas janelas em quase completa nudez, com a
lascívia provocadora estampada no rosto desbotado pela devassidão, saem
e percorrem as ruas da cidade, umas de carro, outras a pé, cada qual mais
indecente, e andam na maior ostentação de um luxo escandaloso,
envergonhando os homens honestos, escandalizando as famílias, dando
132
ao estrangeiro o triste certificado de nossa desmoralização .

A cidade é ainda apresentada como imunda e desorganizada não só por


estrangeiros, mas também por brasileiros133. Tal situação mostrava a uma
congregação de educadores o quanto urgia atender a essa população.

131
- AZZI, Riolando. Os Salesianos no Rio de Janeiro Vol. I 1875-1884 – Os Primórdios da
Obra Salesiana, São Paulo: Salesiana Dom Bosco, 1982. v. I., p. 37.

132
- Ibidem, p. 38.
133
Cf. FREIRE, Gilberto Vida Social no Brasil nos meados do século XIX. Rio de Janeiro:
Artenova, 1977.
107

Apreender essa percepção dos europeus é fundamental para se entender suas


posturas educacionais frente ao nosso povo. A grande missão que lhes cabe é
civilizatória que como europeus, se entendem portadores de uma cultura superior
que deve ser passada para um povo bárbaro. Como educadores devem passar o
saber para ignorantes. Como sacerdotes devem converter a pecadores devassos.
Como católicos devem restaurar verdadeira religião fiel ao papa. Da nova terra nada
têm a receber e tudo tem a dar. Transplantar, literalmente a Europa, seus costumes,
mentalidade, hábitos e práticas são um ato de caridade cristã e civilizatório. Daí, os
colégios se fecharem como ilhas para o mundo “lá fora” e se constituírem “cidades”
perfeitas de sabedoria, ciência, saber e conhecimento. Ignora-se a realidade dos
autóctones que serão educados quando forem europeizados e serão evangelizados
quando forem romanizados.

Alguns elementos são fundamentais para se entender a mentalidade destes


religiosos que estavam iniciando sua inserção na história da América. A figura de
Dom Bosco, ainda vivo, estava envolta numa imensa mística por seus seguidores,
sendo amado, respeitado e imitado. O conceito de fidelidade ao fundador era tal que
seus primeiros seguidores não possuíam sequer preocupações de se aculturar à
nova realidade. O transplante da ordem para a América buscava ser fiel ao que se
vivia na Europa. Em Niterói mantinha-se o horário da Itália em contraponto com o
clima tropical do Brasil. O cardápio servido nas refeições era o mesmo de Turim,
incluindo o vinho e o pão. O banho diário foi banido mesmo sob o calor dos trópicos
mesmo após à prática de esportes como o futebol, quando para manter o decoro, os
clérigos jogavam de batina e os irmãos leigos com sua roupa civil, quando muito
tirando o paletó. Essa roupa iria acompanhá-los pelo dia afora, mesmo após dois
momentos de práticas esportivas e de corridas pelos recreios em meio à meninada
sob os quarenta graus do entorno da Baía de Guanabara ou de qualquer outro ponto
dos trópicos. Fidelidade... Tradição... Transplante... Com a morte de Dom Bosco em
1888 seu primeiro sucessor Miguel Rua consolidou a congregação tendo por idéia
central a fidelidade incondicional aos caminhos traçados pelo fundador.
108

No Brasil o engenheiro e arquiteto italiano Delpiano134, como salesiano, foi


responsável por grandes construções no Rio de Janeiro, São Paulo e Nordeste que
mantiveram a mesma estrutura arquitetônica da Europa. As escolas e oratórios
possuem um pátio135 interno rodeado por pórticos com imensas colunas com um
bom espaço para recreações nos dias de chuva e um pátio central para jogos. Essas
estruturas arquitetônicas se possuem em si a praticidade para a assistência dos
educadores dentro dos padrões da pedagogia salesiana, ao mesmo tempo, gerando
um espaço acolhedor e envolvente, se fecham sobre si mesmas delimitando com
clareza o “lá de fora” do “aqui de dentro”. Os educadores procuram, na medida do
possível, passar uma cultura mais refinada e, além das matérias exigidas pelo país,
ensinam o latim, o italiano136, o gregoriano, a literatura internacional e a história da
Itália. O Colégio possui tudo a oferecer e pouco a receber sendo passada uma
mentalidade da Europa que se compreende como berço da civilização e da cultura.
O colégio é uma ilha de progresso e civilização no meio das populações de rudes
fazendeiros do Vale do Paraíba e de Minas.

134
- Domingos Delpiano arquiteto salesiano cujo nome está ligado à história do Colégio Santa
Rosa. Fez parte do primeiro grupo de salesianos que chegou a Niterói em 1883. Tinha 38 anos. Veio
da casa salesiana de Villa Colón, Montevidéu, Uruguai. Como arquiteto, fez o projeto para o
Monumento de Nossa Senhora Auxiliadora, inaugurado na passagem do século e, posteriormente,
também o projeto para a construção do Santuário de Maria Auxiliadora. Dedicou-se muito à
construção dos nossos colégios e principalmente das igrejas, tendo bom gosto, afinando seu estilo
pelas obras do célebre arquiteto francês Jean Pierre Bossan, com quem estudou em Paris e de quem
recebeu forte influência. Obras de Delpiano: No Uruguai, de onde veio, o Santuário Nacional de Maria
Auxiliadora, Villa Colón, Montevidéu. No Brasil, o Monumento de Nossa Senhora Auxiliadora, em
Niterói, os santuários de Nossa Senhora Auxiliadora: de Niterói (RJ), do Bom Retiro (SP) e de
Jaboatão (PE) e o santuário do Sagrado Coração, em Recife (PE). Em São Paulo, obras como: a
torre do Liceu Coração de Jesus, o Colégio Santa Inês, o Liceu de Artes e Ofícios Nossa Senhora
Auxiliadora (Campinas), o Colégio São Joaquim de Lorena, o primeiro teatro do Liceu de São Paulo,
a Vila Dom Bosco (parte primitiva), em Campos do Jordão, o projeto do Instituto Dom Bosco, no Bom
Retiro, e o jazigo da Congregação Salesiana, no Cemitério do Santíssimo, que foi inaugurado com o
seu sepultamento em 09 de setembro de 1920 – Cf. SLIDE5HARE. Monumento. Disponível em:
<http://www.slideshare.net/thiagopetra/monumento>. Acesso em: 23. abr. 2011.

.
135
- Em italiano “cortile”.

136
- Ainda hoje em Lorena encontram-se velhos ex-alunos fluentes no italiano e francês que
ainda mantêm conversações nesses idiomas entre si e com, os atuais salesianos.
109

Os salesianos se inseriram inicialmente em três cidades: Niterói, São Paulo e


Lorena. Essas fundações implantadas num breve espaço de tempo 137 tiveram
características próprias em cada uma dessas cidades. Em nível estratégico Niterói
representou a porta de contato com o resto do Brasil através do porto do Rio de
Janeiro e da capital da República. São Paulo teve sua importância como região onde
mais intensamente se incrementava a industrialização da república e, finalmente
Lorena como ponto estratégico porque entre São Paulo e Rio de Janeiro e por ser
uma região onde os barões do café ainda que decadentes, controlavam o governo
central juntamente com a oligarquia mineira. Em cada cidade se viveu situações
diferenciadas.

A chegada a Niterói foi difícil. Se de um lado existia o apoio incondicional da igreja e


do império, de outro as hostilidades dos liberais e dos anticlericais não podiam ser
ignoradas, sobretudo porque usando da imprensa atacaram sem tréguas os “novos
jesuítas”. Além da falta de recursos, os salesianos iniciaram com poucos alunos, só
aos poucos conquistando a confiança da população. A implantação da obra nesta
cidade foi heróica pela resistência dos primeiros salesianos às hostilidades que
foram de tal monta que mesmo o bispo Dom Lacerda havia proposto que
desistissem da empreitada de ficar no Brasil.

Assim os primeiros tempos no Santa Rosa (Niterói) não foram fáceis. Basta
dizer que o Oratório Festivo não se manteve, o diretor recebeu um forte
soco na cabeça, quando num bonde um bando de moleques chegou a gritar
para Pereto: ‘mata jesuíta’. Até no carnaval o padre diretor foi ridicularizado
num boneco, como conta o padre Marcigaglia: ‘Era a representação fiel do
padre Borghino: baixo, gordo, aquela fisionomia, aquele jeito dele! E o povo
gritava: olha o padre Miguel! Dê nele seu moço! Mata! O bispo Dom
Lacerda chegou a desanimar: Vejo que não mereço ter os salesianos na
minha diocese. Não tenho ânimo para vê-los sofrer assim. Podeis retirar-
138
vos...

A segunda casa fundada na cidade de São Paulo vive uma situação bem diferente.
É querida pela nascente indústria paulistana que precisa com urgência de mão de
obra qualificada para a indústria. A majestade do prédio do Liceu de Artes e Oficio

137
- As três primeiras fundações seguiram a seguinte ordem: 1883 – Niterói; 1885 – São Paulo;
1890 – Lorena.
138
EVANGELISTA, José Geraldo. História do Colégio São Joaquim. 1890-1940. São Paulo:
Salesiana Dom Bosco, 1991, p. 52.
110

edificado no bairro dos Campos Elíseos ainda hoje impressiona por sua grandeza
com sua majestosa igreja riquíssima em detalhes139 construída em estilo romano e
com seus majestosos pórticos, salas, amplos ambientes, teatro e campos
esportivos. Nela se formaram muitas gerações de jovens absorvidos pelas indústrias
paulistas, contribuindo na formação de mão de obra no inicio da industrialização da
cidade.

A localização da cidade de Lorena a meio caminho entre Rio de Janeiro e São Paulo
com acesso à região das Minas Gerais pela Antiga Estrada Real é estratégica.
Some-se a isso o apoio incondicional dado pelo Conde Moreira Lima 140, que deu
suporte financeiro à implantação da obra salesiana na cidade. Lorena tornar-se-á a
sede de governo da congregação e local de formação dos novos salesianos e centro
de irradiação da presença salesiana para o Brasil. Na cidade abre-se o internato
para filhos de fazendeiros, a escola agrícola, o noviciado e o curso de filosofia para
seminaristas.

A Congregação Salesiana com sua presença no Brasil dava suporte ao capitalismo


industrial em formação, contribuía na sustentabilidade política da República Velha
promovendo a paz social enquanto dava oportunidade de empregabilidade às

139
- Até 1922 a torre da igreja do Liceu coração de Jesus estava entre as três mais altas
edificações da cidade de São Paulo. Sua nave central é uma cópia da basílica de Santa Maria Maior
de Roma. O altar é feito de mármore de carrara. É ornamentada por quarenta lustres de cristal da
Boêmia.
140
- Joaquim José Moreira Lima – nasceu em Lorena no dia 11 de junho de 1842, filho do
negociante e capitalista Joaquim José Moreira Lima, natural de Portugal e de Carlota Leopoldina de
Castro Lima, filha do capitão-mor de Lorena, Manoel Pereira de Castro e Ana Maria de São José. Foi
comerciante, agente dos correios, fazendeiro, político, titular do império, mecenas e capitalista. Na
Guarda Nacional de Lorena obteve as patentes de Alferes Secretário e Major Ajudante de Ordens.
Fundador da Santa Casa de Misericórdia de Lorena e seu provedor por mais de cinqüenta anos. Um
dos fundadores e diretor do Engenho Central de Lorena, inaugurado em 1884. Fazendeiro, foi um dos
maiores senhores de terras e de escravos, proprietário de 52 fazendas de café na região vale-
paraibana. Suas propriedades agrícolas espalhavam-se pelos municípios de Caçapava, Taubaté,
Pindamonhangaba, Campos do Jordão, Lorena, Cachoeira Paulista, Lavrinhas, Cruzeiro, Silveiras,
Areias, São José do Barreiro, Itajubá, Resende. Benemérito lorenense, contribuiu com avultadas
quantias para a reforma da igreja matriz, e para a construção do santuário São Benedito, das igrejas
do Rosário e de São Miguel das Almas do Asilo e da Casa dos pobres de São José. Para as obras de
reforma e ampliação da velha igreja matriz de Nossa Senhora da Piedade contratou os serviços do
célebre arquiteto e engenheiro Francisco de Paula Ramos de Azevedo, contribuindo com mais de
trinta contos de réis, além de superintender as obras e adiantar todo o dinheiro necessário para sua
continuidade. Trouxe os salesianos para Lorena, auxiliando-os na construção do Colégio São
Joaquim. Presidiu a Conferência São Vicente de Paulo de 1912 até sua morte. Cf. PASIN, José Luiz.
Os Barões do Café. Aparecida: Vale Livros, 2001, p. 70.
111

classes populares e com isso favorecia a estabilidade dos detentores do poder e dos
meios de produção e fortalecia a igreja por estarem inseridos no processo de
romanização. A implantação do modo de produção industrial se fortalecia e se
estabilizava na medida em que a mão de obra se tornava especializada e eficiente
no movimento da máquina industrial e, qualificada, recebia da indústria, em
contrapartida, a remuneração que lhe garantia na vida pessoal dignidade e na vida
social, estabilidade. É uma contribuição significativa dos salesianos neste momento
histórico.

Não se pode perder de vista nesta abordagem que, por trás da organização
burocrática e administrativa de uma instituição religiosa, há homens que através de
uma visão de fé empenham suas vidas num projeto religioso que dá sentido às suas
vidas numa dimensão humanista e espiritual. Suas ações e sentimentos individuais
e subjetivos, porém, não deixam de estar a serviço de macros sistemas econômico,
político e religioso

Durante todo o século XX os salesianos se expandirão por todo o Brasil em


inumeráveis frentes de trabalho sempre voltadas para a juventude. O Ensino
superior será um novo campo que se descortinará e meio a grandes incertezas,
sobretudo a partir da segunda metade do século.
112

2.4.1 Os 1900 – Os salesianos na sociedade brasileira num tempo de conflitos

A Sociedade São Francisco de Sales teve sua origem no conturbado século XIX.
Implantada na Itália, iniciou sua expansão por várias partes do mundo. Suas ações
foram quase sempre reconhecidas de imediato como beneméritas pelos resultados
sociais obtidos juntos de adolescentes e jovens atraindo para si não só a simpatia,
mas generosa ajuda financeira de vários segmentos sociais e políticos. Muitas vezes
se confrontaram com condições adversas que dificultaram sua ação como
educadores e religiosos da Igreja.

É importante traçar uma visão geral das grandes questões que envolviam a igreja, a
educação, a política e a economia do Brasil nas primeiras décadas do século XX. Os
grandes colégios e obras sociais serão implantados em meio a essa realidade com a
qual devem interagir.

No Brasil o regime imperial que os recebera cai seis anos após sua chegada.
Instalam-se governos de tendência liberal, positivista e anticlerical. Deparam-se com
uma Igreja fragmentada com desmandos morais e sem organização e lideranças
significativas. A república recém implantada vive os primeiros embates sociais entre
o operariado e a classe patronal. É uma jovem república que busca construir sua
identidade quando intelectuais, sobretudo a partir da década de 20, questionam a
educação católica no lastro liberal da Europa desde a Revolução Francesa.

Logo de início os salesianos recebem apoio daquela parcela da igreja comprometida


com a restauração que, internamente lutava para qualificar o clero moral e
intelectualmente, e, externamente, buscava consolidar de forma inequívoca a
autoridade papal frente aos desafios de uma religiosidade popular leiga e autônoma,
de um catolicismo tradicional barroco, formalista e laxo, procurando impor o prestigio
da religião ao poder político através da demonstração da força do catolicismo.

Neste contexto, conta-se com a fidelidade incondicional desses educadores frente


às muitas tensões entre o Estado e a Igreja e que não lhes eram estranhas porque,
de certo modo, as tinham vivido na península itálica. Nas cinco primeiras décadas
assiste-se ao surgimento do regime republicano, à decadência das oligarquias
rurais, à emergência de uma burguesia industrial, aos movimentos sindicais
operários, à luta por uma educação laica e positivista, às grandes discussões sobre
113

a educação e à luta da igreja para impor seu prestigio. Como estrangeiros era-lhes
difícil entender os mecanismos e a mentalidade cultural que permeavam a política e
a vida do povo. Como sacerdotes católicos recém chegados não tinham influência
nos embates e confrontos da Igreja com os poderes políticos laicos e positivistas,
nem com parte do clero católico, em parte relapso e em parte iluminista. Como
educadores, porém, tinham muito a oferecer: ao estado o atendimento e a promoção
de grupos de adolescentes marginalizados ou em via de marginalização, ao povo a
educação, a formação e a profissionalização de seus filhos; à Igreja, o compromisso
de aliados incondicionais da restauração nas dimensões da fé, da moral e da
ortodoxia. A rapidez com que se expandiram nos primeiros anos pode ser
materialmente visualizada pela monumentalidade dos prédios construídos por uma
congregação recém chegada à América, sinalizando um acolhimento por parte do
Estado, da Igreja, das elites e do povo.

O Brasil que os salesianos encontram ainda procura definir sua identidade política,
econômica, social e religiosa. Implantada a república141, a elite agrária dos
cafeicultores do Vale do Paraíba assume o controle político em nível federal,
enquanto oligarquias menores davam continuidade ao controle de suas regiões. Há
uma crescente, ainda que modesta participação política da classe média e da
nascente burguesia industrial. A república oscila entre os interesses da oligarquia
agrária, da classe média e da burguesia urbana que desejava o desenvolvimento de
atividades ligadas à indústria, comércio e serviços. Com a eleição de Prudente de
Morais em 1894 prevalecem os interesses da oligarquia cafeeira. A partir de 1910 as
oligarquias regionais buscam apoio nas camadas urbanas como forma de conquistar
maior espaço em nível federal. Há o crescimento do mercado interno fortalecendo a
classe industrial e dando maior consistência ao operariado enquanto classe,
segregada em vilas operárias e nas periferias das cidades e que vai se fortalecendo
ao ampliar e organizar sua vida sindical.

141
- Nossa historiografia convencionou chamar de República Velha o período que vai da queda
do regime imperial em 1889 até 1930 com a tomada do poder por Getúlio Vargas. O império em
processo de erosão era uma monarquia enfraquecida, desatualizada e ineficiente que paulatinamente
perdia suas bases de sustentação política até que uma simples quartelada o derrubou sem
derramento de sangue.
114

A discriminação contra os operários, desenvolvida pela classe dirigente,


introduziu uma verdadeira situação de segregação geográfica sociocultural.
Assim nasceram as vilas e os bairros operários, concentrando os
trabalhadores, isolando-os das proximidades dos centros urbanos onde se
instalavam as atividades comerciais e os bairros burgueses. Esse
isolamento propiciou maior integração dos trabalhadores assalariados. Não
demorou muito que essa aglutinação revela-se profícua na luta travada
entre os interesses do capital e do trabalho. (...) da mesma forma que
nesses espaços se reproduziam o regime de trabalho nas fábricas, a que os
membros das famílias operárias se submetiam, como extensão necessária
aos rigores da produção de mais-valia, também se solidificaram os laços de
142
companheirismo e solidariedade de classe .

As reivindicações dos movimentos operários da Europa ecoavam em meio à classe


trabalhadora que em São Paulo, até a primeira guerra mundial, era 90%
estrangeira143 com idéias anarquistas, socialistas e comunistas. Até 1930 mais de
200 greves tinham eclodido no Brasil sinalizando que uma economia voltada apenas
para os interesses da classe agrária dominante não correspondia ao novo rosto da
república que ia deixando de ser rural, o que é demonstrado pelas manifestações de
insatisfação de um povo marginalizado num mundo urbano-industrial que emergia.

As elites dominantes expressavam forte xenofobismo acrescido por um


grande desprezo pelo trabalho manual, herança do regime escravocrata.
Dessa maneira era negada ao proletariado a condição de cidadania, pois
eram vistos como força de trabalho. À margem do mercado de trabalho
formou-se um enorme “exército de reserva industrial” típico das sociedades
em transição ao mundo industrial. Nas cidades, era integrado por
desempregados, artesão arruinados, migrantes subnutridos e prostitutas; no
campo, camponeses pobres, colonos, parceiros, posseiros e índios
aldeados compunham o resto deste contingente de reserva. Destituídos de
mínimas condições de vida, não hesitavam em participar de revoltas contra
144
opressão .

O movimento tenentista, o romantismo da coluna Prestes, a fundação do partido


comunista e o inconformismo da Semana de Arte Moderna eram apenas
sinalizações de uma ruptura com um Brasil arcaico que deveria ser superado.

Do ponto de vista das condições histórico-sociais, e de acordo com a


afirmação de que “os movimentos espirituais precedem sempre as
mudanças de ordem social”, o modernismo foi apresentado como o “criador

142
- PENNA, Lincoln de Abreu. República Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.
125.

143
- Ibidem, p. 117.
144
- Ibidem, p. 125.
115

de uma festa do espírito revolucionário e de um sentimento de


arrebentação”, embora não tenha sido o “o fator das mudanças político-
sociais posteriores a ele no Brasil”. Procurou-se, também, mostrar a ligação
entre o modernismo e São Paulo – fruto da economia do café e do
industrialismo e com um comércio incontrastável. Daí ser “natural o tom
profético da arte modernista, ao contar o aparecimento de uma sociedade
nova, que é a sociedade industrial”. Foi então, “a primeira arma brandida
contra a mentalidade do burgo”, embora não tenha sido uma “atitude
145
proletária ”.

Essas diversas manifestações que afloram de forma pontual e desarticulada no


início do século XX são expressões de que era necessário configurar um novo Brasil
para além daquele arcaico.

O povo é concebido por intelectuais como primitivo, inculto e incivilizado que deveria
ser trazido à luz da civilização146. Os ideais positivistas da bandeira da república
propõem a ordem e o progresso. Acredita-se que é preciso organizar o Brasil,
tornando-o verdadeira “res-publica” modernizando-o e libertando-o do estigma de
um país foco doenças tropicais. O Prefeito Pereira Passos resolve tornar o Rio de
Janeiro uma cidade civilizada como Paris. Abrem-se grandes avenidas retirando-se
os pobres para as periferias. Os sanitaristas Oswaldo Cruz e Carlos Chagas lançam
campanhas para sanear, curar e vacinar o país. O médico é o que cura. É preciso
acabar com os dois “brasis” e isso se fará dentro dum processo civilizatório
passando-se do mundo arcaico para o moderno.

Os intelectuais acreditam que a chave libertadora do Brasil arcaico é a educação.


Oscar Thompson cria a Escola Caetano de Campos para qualificar o aparelho
escolar147. As escolas normais, grandiosas nas suas arquiteturas e com decorações

145
- NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. Rio de Janeiro: DP&A,
2001, p. 115.

146
- O breve comentário traçado pelo professor Ricardo Oticica, doutor em Literatura da PUC do
Rio de Janeiro na introdução do livro “Os Sertões” Euclides da Cunha apresenta um víéis de
interpretação que nos permite conferir na leitura da obra um autor republicano e positivista que, ao
descrever sucessivamente a terra, o homem e luta desvenda que a descrição do suceder dos fatos –
descritos a partir de uma visão de uma republica positivista e liberal – o homem, Euclides da Cunha,
vive uma luta interior ao visualizar o preconceito contra o sertanejo, e neste embate a única vitória é
do literato sobre o cientista, quando este sucumbe à constatação do genocídio do sertanejo em
nome do progresso. Cf. Ricardo OTICICA, Apud CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro:
Record, 2006, p. 5-8.
147
- Dermeval SAVIANI, Dermeval. História das Idéias Pedagógicas no Brasil. Campinas,
Autores Associados, 2008, p. 171.
116

explicitamente positivistas exaltando a Ciência, são responsáveis pela formação de


professores que, acreditam, renovarão o país. Nagle sintetiza o espírito e a
mentalidade deste tempo como um período marcado pelo entusiasmo pela
educação e pelo otimismo pedagógico. Será pela educação que a civilização
urbano-industrial se contraporá à civilização agrário comercial, sendo a
escolarização o motor da história:

Uma das maneiras mais diretas de situar a questão consistem em afirmar


que o mais manifesto resultado das transformações sociais mencionadas foi
o aparecimento de inusitado entusiasmo pela escolarização e de marcante
otimismo pedagógico: de um lado existe a crença de que, pela
multiplicidade de instituições escolares, da disseminação da educação
escolar, será possível incorporar grande camada da população na senda do
progresso nacional, e colocar o Brasil na senda dos grandes países do
mundo; de outro lado existe a crença de que determinadas formulações
doutrinárias e a escolarização indicam o caminho para a verdadeira
148
formação do homem brasileiro (escolanovismo) .

Estas palpitações da intelligentsia brasileira terão sua expressão mais visível no


Manifesto dos Pioneiros capitaneado por Fernando de Azevedo 149. Seus signatários
ainda que de matizes ideológicas diversas, eram intérpretes dessa realidade, desde
um Paschoal Lemme que, fiel aos seus princípios marxistas, de fato não acreditava
na educação como elemento transformador da sociedade 150, mas somente numa
ação revolucionária que modificasse a infra estrutura econômica, até um Anísio
Teixeira de formação inicial jesuítica, que ao retornar dos Estados Unidos, mostrava-
se “convertido” ao progresso gerado pela democracia americana e pelo american
way of life. Acreditava que uma educação igualitária gerenciada pelo Estado151
ofereceria oportunidades iguais para todos e diagnosticara o mal da educação
dual152 do Brasil que, por sua própria prática impedia o progresso dos pobres,

148
- NAGLE, op. cit., p. 134.
149
- SAVIANI, op. cit., 2008, p. 234-239.
150
- Cf. PASSOS JÚNIOR, Dilson. Pioneiros: convergências e divergências na interpretação dos
ideais da educação. Revista de Ciências da Educação, Lorena, ano 5, n. 8, p. 146-150.
151
Anísio TEIXEIRA, Anísio. Educação é um Direito. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1968a,
p. 13-25.

152
- Anísio TEIXEIRA. Educação não é Privilégio. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1968b, p.
22-29.
117

polarizando uma educação para as elites e outra para as classes populares,


consolidando uma sociedade de privilégios. Anísio, no lastro do pensamento de
John Dewey, acreditava que somente uma escola pública, gratuita e laica
promoveria o progresso do Brasil. A defesa dessas idéias polarizavam as escolas
católicas e as públicas.

Aqui está o grande nó da questão entre a Igreja e República brasileira. No período


imperial fora a igreja a detentora da educação. E, apesar dos desmandos de muitos
de seus membros, a igreja pós tridentina tivera, sobretudo nos jesuítas, guardiães
fiéis da ortodoxia e educadores impares. Na Restauração disciplinar, doutrinal e
moral da igreja, que teria reflexos na sua prática educacional, a escolástica e o
tomismo erigiram-se como únicas possibilidades e formas de se ser igreja. Alguns
princípios eram explícitos: Ela era uma organização divina. Todo o poder,
hierarquicamente organizado, provinha de Deus e a obediência a Ele e aos seus
legítimos representantes era condição sine qua non poder-se-ia ser um bom cristão.
As verdades da fé153 e a santa tradição deveriam ser acolhidas sem restrições. A
escola era uma extensão da igreja paroquial e sua função era catequizar e
converter, oferecendo aos seus alunos os sacramentos e a salvação eterna.

O processo de romanização atinge não somente a disciplina da Igreja, mas possui


impacto também sobre a educação e o modelo de sociedade a ser construído. Pio
IX e seus sucessores não foram românticos, mas hábeis estrategistas, sabendo que
o processo de restauração aconteceria a partir de uma hierarquia sintonizada com o
Vaticano e da formação de um clero com uma vida austera, coerente, fiel à Igreja,
aos valores do Evangelho e aos caminhos traçados pelos Concílios de Trento e
Vaticano I. A constituição da República, ao separar o Estado da Igreja, fazia com
que essa saísse fortalecida, sobretudo a partir da liderança de Dom Leme, cardeal
do Rio de Janeiro. Já no Império a ação da Igreja ultramontana se vinha
fortalecendo pela ação dos lazaristas no seminário do Caraça, no envio de teólogos
para Roma e na locação de bispos em pontos estratégicos do país.

Na década de 1920 ganha visibilidade um grupo de educadores leigos guiados pelo


positivismo, pelo pensamento de Durkhein e de John Dewey para os quais a escola

153
- Depositum fidei.
118

é uma necessidade social. Fernando Pessoa, Lourenço Filho, Anísio Teixeira e


outros ao ocuparem pontos estratégicos no governo, implantam suas idéias
acreditando que o escolanovismo é a forma de educação que irá construir uma
verdadeira democracia, consciente, igualitária e crítica respeitando a individualidade
e integrando o individuo na sociedade. A escola para Dewey não prepara para a
vida, mas é vida tendo a função democratizadora e de igualar as oportunidades. O
choque das escolas católicas com a estatal está baseado em significativa base
ideológica das partes litigantes. Há explicito confronto entre Anísio Teixeira e o
episcopado brasileiro. Estes viam na defesa de uma escola laica uma forma de
descristianização, enquanto que aquele entendia que as escolas privadas, religiosas
ou não, eram formas de perpetuar privilégios das classes dominantes. A Revista
Vozes assume defesa da escola particular enquanto que a Anhembi a defesa da
pública. Nos mútuos ataques as facções em disputa se demonizam 154.

A década de 1920 é um período crucial na vida política do país, pois é quando se


procura definir numa dimensão ideológica qual será o rosto da República.
Segmentos do movimento sindical operário buscam no socialismo, no anarquismo e
no marxismo referenciais na luta por seus direitos, enquanto que a igreja parte para
a condenação destes movimentos por sua matriz atéia e pela negação da
propriedade privada embasada na Rerum Novarum de Leão XIII de 1889, primeiro
documento social da igreja.

O catolicismo respondera até então por significativos trabalhos sociais nos últimos
séculos através de hospitais, escolas, asilos, atendimentos aos pobres e
sepultamentos. O socialismo rejeitava, porém esse assistencialismo caritativo vendo
nele apenas paliativo de injustiças que só seriam superadas com a distribuição
igualitária dos bens, já que entendia que a posse deles era resultado da mais-valia.
A Igreja ao contrário justificava esta posse, se honestamente acumulada, como
materialização do trabalho do homem. Com essas posições a igreja entrava em linha
de choque com segmentos da esquerda operária parecendo defender as classes
detentoras do capital, e, portanto a ordem burguesa.

154
- BUFFA, Ester. Ideologias em Conflito: Escola Pública e Escola Privada. São Paulo:
Cortez & Morales, 1979, p. 21-36.
119

A Igreja, porém lutava em diversas frentes contra as idéias que queriam se impor
diferente dos princípios do cristianismo tanto do lado positivista e liberal como do
lado socialista e marxista. Ela encontrará no Integralismo de Plínio Salgado uma
expressão urbana e conservadora do cristianismo tradicional, enquanto defendia
valores como a família, a pátria e a religião. Ela coopta com esse fascismo caboclo e
com as forças arcaicas tradicionais contra os movimentos modernistas e de
esquerda que ameaçavam o modelo de cristandade defendido pela romanização.

O principal campo de batalha destas correntes é o da educação. Alguns segmentos


da intelectualidade brasileira acreditavam que a escola Nova e Ativa era um modelo
de educação que levaria a sociedade para a modernidade, resgatando-a do mundo
arcaico. A igreja, ao contrário procurava neutralizar os traços brasileiros da religião
impondo o modelo romano ao clero e aos fiéis. Ao se engajar nas questões155
candentes da época como, educação, questão operária e relações entre Estado e
Igreja, o faz para, acima de tudo, preservar um modelo de sociedade hierárquico,
estamental e conservador.

Se as décadas de 1920 e 1930 ofereceram ao nosso país uma elite de pensadores


leigos da educação que, além de teóricos, foram engajados na ação política, não se
pode de outro lado minimizar a ação agressiva e bem orquestrada da Igreja neste
mesmo período, que saindo do torpor que vivera durante o império, iluminada pelos
ideais da restauração ultramontana, agiu, no seu interior procurando purificar seu
clero moralmente, prepará-lo cultural e pastoralmente e, sem as benesses do
Estado, em seu exterior impor sua hegemonia religiosa, cultural e moral sobre a
república que nascia. Uma elite de bispos e padres romanizados e um grupo de
leigos preparados por eles não temeram se bater no campo intelectual com a
nascente elite positivista e liberal que ganhava espaço no Brasil. Será um longo
confronto.

Dom Leme tinha consciência que era um tempo de confrontos e medição de forças.
O império se dissolvera na incapacidade administrativa de se adequar aos novos

155
- Essas questões que definimos como “candentes” aqui no Brasil já haviam sido vividas
intensamente no século XIX pelos principais países da Europa central. Cf. SUFFERT, Georges. Tu
És Pedro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010, p. 382-418.
120

tempos e novas mentalidades. A Igreja, até então por ele sustentada, padecera
deste mesmo marasmo que se refletia num clero acomodado, patrimonialista,
familiar e com uma moral ambígua. A República nascia agressivamente positivista,
liberal e laica, afirmando sem equívocos a ruptura da interdependência entre Estado
e Religião. Leme entendia que, apesar da perda das côngruas estatais, podia-se
agora governar a Igreja sem interferência do Estado. Era tempo de implantar o
Concílio Vaticano I pela seleção de bispos e pelo envio do futuro clero para ser
formado na sede da Igreja Universal. Essa forma vigorosa de ação entre os anos de
1890 a 1940 consegue realizar uma radical reviravolta na qualidade da igreja no
Brasil156 atingindo não só o clero, mas também as elites católicas. Dom Sebastião
Leme157 coloca no topo de suas prioridades a educação como forma de solidificar a
fé, procurando consolidá-la ainda mais pela implantação da Educação Superior
Católica158. Fomenta o surgimento de intelectuais católicos como expressão desta
nova Igreja e que têm na revista A Ordem o meio de divulgação dos ideais da igreja
renovada fazendo parte do seu corpo de editores, Jackson de Figueiredo
representante do Integralismo e que buscava a cristianização da vida brasileira em
todos os aspectos159 e Alceu de Amoroso Lima numa linha mais jesuítica.

O cardeal procura mostrar a Igreja como força religiosa, social e política. Promove
eventos sempre grandiosos marcados por celebrações impecáveis. Em 1922 entre
os dias 26 e 30 de setembro realiza-se o Congresso Eucarístico Nacional. A 04 de
outubro é lançada a pedra fundamental do Cristo Redentor. Em 1923 é realizado o
primeiro Congresso do Apostolado da Oração,160 irmandade nascida à sombra da
romanização sob o controle do clero. Em 1924 – num Estado de origem positivista –
e feita a Páscoa dos Militares. Em 1930 quando Getulio Vargas dá o golpe de
Estado, o cardeal tem no padre Leonel Franca um intelectual amigo do presidente
que lhe garante acesso seguro a esta instância maior de poder. Em 1931 é feita a

156
- CASALI, Alípio. Elite Intelectual e Restauração da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 60.

157
- Ibidem p. 79.
158
- Ibidem. p. 80.
159
- FIGUEIREDO, Jackson. Correspondência. Rio de Janeiro: A.B.C., [s.d.], p. 23.

160
- CASALI, op. cit., p. 83.
121

coroação de Nossa Senhora Aparecida como padroeira do Brasil e Inaugurada


Estátua do Cristo Redentor. No mesmo ano em que era lançado o Manifesto dos
Pioneiros, 1932, era aberto o Instituto Católico de Estudos Superiores que viria a ser
o núcleo da Universidade Católica161 do Rio de Janeiro.

A Igreja romanizada se consolidara como presença influente no Brasil recebendo


respeito, consideração e status do Estado que lhe reconhece um poder apoiado nas
bases populares e intelectuais católicas. No maior país católico do mundo mantém-
se essa relação ambígua do poder religioso e do Estado laico, onde autoridades
religiosas têm assento cativo ao lado de autoridades civis. São traços de nossa
cultura, por mais ambíguos que possam parecer.

É neste contexto político, religioso e educacional que os salesianos se inserem na


história do Brasil. Integram-se no exato momento em que Miguel Rua, primeiro
sucessor de Dom Bosco, tinha como meta consolidar a nova congregação. Neste
momento de consolidação não podiam despender energias nem com questões
locais da igreja do Brasil e nem tampouco com questões nacionais do Estado. Eram
estrangeiros alheios aos problemas da política e da igreja no Brasil. E, como suas
obras se destinavam especificamente à educação de jovens pobres, o seu espaço
de ação era fisicamente limitado ao prédio, às salas e pátios de suas obras, atraindo
para esses ambientes jovens para educá-los e catequizá-los não participando dos
grandes embates da Igreja do Brasil, já que, recém chegados, focavam suas ações
num trabalho definido de implantação e consolidação de suas obras.

Essa ausência no conjunto da história global do país e da Igreja perdurará por


muitos anos gerando desconforto pelo fato da congregação restringir sua ação às
suas obras e ao entorno onde estavam inseridas, ausentes dos grandes eventos da
Igreja e do Estado. No fundo assumiam a política do Pai-Nosso que o fundador
defenderá na Itália quando da unificação política quando as paixões se
exarcebavam: aos salesianos cabia rezar e cuidar dos meninos pobres e não se
imiscuir em questões políticas.

161
Ibidem, p. 87-88.
122

2.4.2 O Ensino Superior salesiano no Brasil

O Centro Universitário Salesiano de São Paulo162 nasceu da junção de três


faculdades isoladas fundadas pelos salesianos em Lorena, Americana e Campinas.
Lorena foi uma das primeiras163 faculdades salesianas do mundo, quebrando o
paradigma de que os salesianos deveriam se voltar apenas para educação de
adolescentes. Sua evolução para escola de ensino superior, no sentido próprio da
palavra, foi, porém, um processo repleto de equívocos, pois seus fundadores não
dimensionaram os desdobramentos da legalização do estudo oferecido por um
seminário que se transformava numa faculdade legalmente constituída, pois, não
existia um projeto nem Inspetorial164 e nem local para o trabalho com o ensino

162
- UNISAL.
163
- A primeira Escola de Ensino Superior salesiana foi a a St. Anthony’s College fundada na
Índia em 1932. Cf. DIREZIONE GENERALE OPERE DON BOSCO. IUS - Istituzioni Salesiane di
Educazione Superiore. Roma: S.D.B., 2003. archive n. 2.
164
- A Sociedade São Francisco de Sales – salesianos – se organiza da seguinte forma: Reitor-
mor e seu Conselho que também possui funções à semelhança de ministérios de governos civis. O
Governo central se faz representar mundialmente por Conselheiros regionais que fazem a ponte
direta respondendo delegadamente por suas regiões diretamente ao Reitor-mor. Equivalem a
embaixadores que representam e falam em nome do Reitor Mor. No mundo há oito regiões: América
Latina- Cone Sul; África e Masdagascar; Ásia Leste e Oceania; Ásia Sul; Europa Norte; Europa
Oeste; Interamérica e Itália e Oriente Médio. No segundo grau da hierarquia está o Inspetor. No
Brasil existem seis Inspetorial: Norte, Nordeste, Minas (Leste e parte do Centro Oeste, menos São
Paulo), São Paulo, Sul e Centro Oeste. Elas se congregam num Conselho Consultivo chamado
CISBRASIL sendo seus membros os inspetores. E, finalmente o Diretor e seu conselho. Toda a
congregação é dirigida por dois documentos fundamentais: As Constituições que definem a
dimensão carismática, religiosa e a base organizacional da Instituição e os Regulamentos. Todos os
setores são regulamentados detalhadamente nos padrões do governo de uma sociedade civil. A cada
três anos são realizados os Capítulos Inspetorias durante os quais todos os sócios possuem
poderes iguais, inclusive os cargos de direção. Suas decisões, se sancionadas pelo Reitor Mor,
possuem força de lei e só podem ser revogadas por outro Capítulo. E a cada seis anos são feitos os
Capítulos Mundiais quando é eleito o Reitor-mor. A organização da Congregação – respeitados os
princípios das Constituições – é democrático. Há três níveis reais de poder: O Reitor-mor, o Inspetor
e o Diretor. Efetivamente, porém, a missão desses cargos é mais carismática devendo fazer cumprir
as Constituições e manter o carisma da congregação. O verdadeiro poder deliberativo nas três
instâncias é confiado respectivamente ao Conselho Geral, ao Conselho Inspetorial e ao Conselho
local. As decisões de governo não previstos na rotina das casas devem emanar das decisões dos
conselhos locais por voto presidido pelo diretor. Algumas ações, pela sua magnitude, devem, depois
de aprovados localmente, ter a aprovação por voto do Conselho Inspetorial. Certas questões ainda
devem ser levadas, aprovadas nas instâncias inferiores, ao Conselho Mundial. Em casos mais raros
decisões do Conselho Mundial devem ser aprovadas pelo Vaticano. Todos os cargos são objeto de
consulta e de voto a todos os sócios, mesmo a jovens que já possuam votos simples de apenas um
ano, alguns até com dezoito anos. Essas consultas se estendem aos cargos de Diretor, Conselheiros
Locais e Inspetores e muitas decisões que são objeto de avaliação e posicionamento de todos os
sócios.. É previsto peso diferenciado entre sócios temporários e perpétuos. Decisões arbitrárias de
diretores ou administradores, sem a aprovação do Conselho podem ser anuladas. Nenhum cargo é
permanente. O Reitor-Mor exerce seu cargo por seis anos, podendo ser reconduzido a mais seis. O
Inspetor exerce seu cargo por seis anos. O Diretor por três anos podendo ser reconduzido a mais três
na mesma obra. O cargo de diretor pode ser suspenso a qualquer momento pelo Inspetor, com
123

superior para leigos. E, as duas unidades que surgiram posteriormente foram


resultados de iniciativas individuais e circunstanciais de salesianos que fizeram
dessas fundações um fato consumado e arbitrário apenas para ser referendado
pelos conselhos superiores.

O ensino superior dos salesianos no Brasil foi um incidente de percurso e não um


projeto planejado e pensado. Quando os salesianos vieram para essas terras, como
para o resto do mundo, o fizeram num momento de exuberante crescimento
numérico e de prestígio da congregação, que no lastro da romanização, prestigiados
pelo papado e pelos bispos reformadores, eram reconhecidos como competentes
educadores das classes populares e formadores de jovens profissionais para a
indústria. No final dos séculos XIX e início do XX não faltavam convites e facilidades
em várias partes do mundo para implantarem suas obras. Estrategistas, estudavam
minuciosamente as ofertas que se apresentavam considerando a região, sua
população, previsão de crescimento, população jovem pobre, doações de terrenos e
recursos materiais para a construção e manutenção das fundações. Suas
construções e projetos nasciam grandiosos e eram pensados para se ampliarem e
se expandirem. Pensavam as coisas de Deus com a mentalidade da indústria:
crescer, ampliar e multiplicar. As fundações se sucedem umas às outras, no mínimo
prazo de anos.

aprovação do seu conselho e geralmente acontece por necessidade de transferências. Não existe
carreira. Os salesianos se alternam entre os cargos mais altos e os mais simples. Não existe
remuneração, dentro dos princípios religiosos da congregação. Remunerações tidas por atividades
profissionais devem ser postas em comum, assim como aposentadorias e todo e qualquer recurso
obtido. Se fossemos abstrair de toda dimensão religiosa, usando de uma – digamos – ousada
analogia - poderíamos definir a sociedade São Francisco de Sales como uma “República
Democrática Socialista” onde os “cidadãos-sócios” trabalham para o “Estado” em vista do bem
comum e têm suas necessidades humanas, sociais e culturais garantidas por esse mesmo
“Estado”através da socialização de todos os bens, fruto do trabalho de todos e onde todos participam
de forma colegiada das decisões em vista do bem comum dos seus sócios e da sociedade onde
atuam. Se abstraíssemos das motivações religiosas que movem uma congregação, esta definição
leiga explicitaria o modo de vida desta sociedade nascida nas entranhas do capitalismo comercial e
industrial e que absorve de certo modo, para a milenar vida religiosa uma forma de governo que –
paradoxalmente – os superiores não personificam a vontade de Deus de forma arbitrária, muitas
vezes atribuindo Lhe seus caprichos, mas se submetem a uma constituição e chegam ao comando
por um período temporário e pela “vontade popular majoritária” dos seus sócios, desde que seja
coerente com a vida religiosa e com as constituições. São paradoxos radicais: num período de
romanização onde firmam-se as diversas instâncias de poder da Igreja como advindas de Deus,
inclusive com a declaração do dogma da infalibilidade papal, nasce uma congregação, ou melhor,
uma sociedade, fidelíssima ao papa, mas que se organiza interiormente com ideais de governo
defendido por liberais e marxistas para um novo tempo, para um mundo mais liberal, para a Jovem
Itália. Paradoxos não se explicam, se constatam.
124

A chegada dos salesianos numa cidade seguia em geral um roteiro pré-


estabelecido: fundava-se um oratório festivo, uma obra social e escola,
seqüencialmente ou concomitantemente e eventualmente uma escola profissional.
Não se pode, portanto, falar em fundação de faculdades salesianas 165, sem se
considerar, anteriormente a implantação dessas estruturas materiais em geral
amplas e grandiosas. Quando as faculdades foram criadas já existia uma infra
estrutura física construída que facilmente se adequava a essa nova finalidade.

165
- Nosso estudo refere-se especificamente ao Centro UNISAL de São Paulo. Não
trabalharemos fundações de faculdades e universidades surgidas em outras áreas do Brasil (Campo
Grande, Nordeste, Amazonas) e nem tampouco pouco no Estado de São Paulo que não estejam
ligadas ao UNISAL como as faculdades salesianas de Piracicaba, Lins e Araçatuba.
125

2.4.2.1 Faculdade Salesiana de Lorena: clerical e tomista

O inicio da obra em Lorena se dá em três de março de 1890 que rapidamente se


torna o centro irradiador da presença salesiana para o Brasil 166. Em 1892167 já
existia o noviciado com brasileiros. Em 1895 Lorena já se consolidava como uma
casa de importância, residindo nela sete capitulares168. Em 1894 Dom Lasagna parte
para a fundação de três novas casas no Estado de Minas Gerais, morrendo, porém,
tragicamente em desastre ferroviário em Juiz de Fora. Sua morte apresa a fundação
da Inspetoria Salesiana de Nossa Senhora Auxiliadora de São Paulo em 1896
tornando-se Lorena a sede da nova Inspetoria que abrangia as atuais regiões
sudeste e sul. A sua expansão por todo Brasil, depende apenas do número de
salesianos disponíveis, tornando-se então necessário de imediato garantir a
formação de religiosos autóctones. Em Lorena, onde já funcionava o noviciado,
funda-se em 1895 o Instituto Salesiano de Pedagogia e Filosofia169 para preparar
clérigos que sejam sacerdotes e professores nas escolas, pois na mentalidade da
época, a presença de leigos como professores ou em qualquer outra atividade
escolar deveria ser exceção. Esse Instituto funcionará em Lorena até em 1913
quando será transferido para a cidade de Lavrinhas distante cerca de trinta

166
- A implantação da obra salesiana no Brasil foi bastante rápida no fim do império até Revolução de
1930. Eis a listas das fundações: Colégio Santa Rosa, Niterói, 1883; Liceu Coração de Jesus, São
Paulo, 1885; Ginásio São Joaquim, Lorena, 1890; Escola Dom Bosco, Cachoeira do Campo, 1895;
Liceu Nossa Senhora Auxiliadora, Campinas, 1897; Liceu Leão XIII, Rio Grande, 1901; Ginásio
Municipal Nossa Senhora Auxiliadora, Bagé, 1904; Escola Agrícola Coronel José Vicente, Lorena,
1908; Externato São João, Campinas, 1910; Colégio São Manoel, Lavrinhas, 1914; Instituto Dom
Bosco, Bom Retiro – São Paulo, 1919; Colégio São Paulo, Ascurra, 1922; Colégio Anchieta, Virginia,
1923; Colégio Dom Bosco, Araxá, 1926; Instituto São Francisco de Sales, Rio de Janeiro, 1929.
Instituto Teológico Pio XI, São Paulo, 1931. No inicio da década de 1930 já existiam casas em fase
de implantação nas seguintes cidades: Araras, Guaratinguetá, Ponte Nova, Ipiranga, São José dos
Campos e Campos do Jordão. Já havia incursões estudando fundações em Rio dos Cedros, Luís
Alves, Rio Oeste, Rio Sul e Nova Breslau. Esta enumeração refere-se apenas ao ramo masculino da
congregação. Semelhante expansão tinha também o ramo feminino das irmãs salesianas que tinham
a mesma origem, o mesmo fundador, os mesmos princípios e escopo educacional. Cf. André
DELL’OCA, A Obra salesiana no Brasil no seu Cinqüentenário 1883 – 1933. São Paulo, Escolas
Profissionais salesianas, 1933. p. 35
167
- José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim 1890-1940. São Paulo,
Editora Salesiana Dom Bosco, 1991. p.75
168
- Na ordem salesiana os Capitulares são salesianos e que se reúnem a cada três anos, tendo um
poder legislativo, desde que respeitadas as Constituições. Esse Número é significativo para uma casa
recém fundada. Cf. Ibdem. p.76
169
- Será este Instituto que será em 1952 reconhecido oficialmente como faculdade.
126

quilômetros, funcionando aí até 1943, quando retornará para Lorena. Efetivamente


torna-se uma verdadeira universidade católica, de estudos gerais, sem contar, no
entanto, com o reconhecimento oficial170. A Teologia era realizada em Roma,
garantindo-se, assim, aos brasileiros beber na fonte a fidelidade à Igreja e à
Congregação.

A Educação na história do Brasil coube à Igreja desde os padres mestres das


fazendas, passando pelos jesuítas e pelas diversas congregações religiosas
dedicadas para esse fim. Com a República, passados os primeiros momentos de
estabilização do novo sistema político, a partir de 1920 aprofunda-se a reflexão
sobre a educação pública e a responsabilidade do Estado frente a ela. A Igreja
continua sua ação educadora. O Colégio salesiano São Joaquim de Lorena 171, já na
segunda década do século XX era equiparado ao colégio Pedro II do Rio de Janeiro
podendo seus alunos realizar todos os exames de conjunto, como era chamado, na
própria casa, embora diante de bancas de professores nomeadas pelo governo
federal172. Isso demonstra que o Estado reconhecia que o título dos professores-
padres adquirido numa “faculdade” juridicamente não reconhecida, mas atrelada à
tradição educacional da Igreja, sobretudo nos seminários, conferia-lhes, ipso facto,
legitimidade. Na história do Brasil muitos intelectuais serão formados pelos
seminários como professores sem titulação oficial. É a partir de 1920 que começa
uma reflexão mais sistemática sobre a Educação pública com a efervescência de
idéias liberais e positivistas onde a dimensão laica da república é acentuada,
cabendo-lhe a implantação de uma educação moderna e desligada dos tentáculos
da Igreja, identificada então com o passado e o arcaico que devem ser superados.
No conceito de Iglésias a educação católica não foi capaz de gerar uma
intelectualidade que fosse significativa nos destinos educacionais da nação:

O catolicismo continua a ser a vaga religiosidade, epidérmica, sem


consistência, apegado a exterioridades e convenções. É mínimo o número
de padres e baixo o seu nível intelectual. A carreira eclesiástica ainda é em
grande parte – embora menos que no império – seguida por alguma

170
Francisco Sodero TOLEDO. Igreja, Estado, Sociedade e Ensino Superior: A Faculdade
Salesiana de Lorena. Taubaté, Cabal Editora e Livraria Universitária, 2003. p. 34.
171
Fundado em 1890.
172
José Geraldo EVANGELISTA. História do Colégio São Joaquim. 1890 – 1940. São Paulo.
Editora Salesiana, 1991. p. 100
127

conveniência, pelo prestigio que dá, pela imposição materna ou da


madrinha sobre os jovens, com a conseqüente falta de aptidões.
Dominando o ensino através dos colégios, os padres nacionais e
estrangeiros, marcam a instrução com o sinal acadêmico, retórico,
formalizado. A grande prova do relativo malogro da Igreja está na sua
completa perda de terreno em matéria de direção intelectual. Basta que se
lembre que as camadas mais expressivas da intelectualidade brasileira são
173
positivistas, evolucionistas ou apenas indiferentes .

Esta década é marcada por fortes tensões ideológicas entre a antiga mentalidade
rural e patriarcal e o mundo que se moderniza. As classes operárias vêm no
anarquismo, socialismo e marxismo possíveis saídas para suas lutas sociais. O
integralismo com o seu nacionalismo, defendendo a Religião, a Pátria e a Família,
procura garantir os interesses e a estabilidade das novas classes médias urbanas174,
antiliberais e antidemocráticas e o modernismo que, mais que um movimento
estético, é uma corrente de idéias e um movimento político-social, pois nosso
modernismo investe essencialmente em sua fase heróica, na libertação de uma
série de recalques históricos, sociais étnicos, que são trazidos triunfalmente à tona
da consciência literária175.

A quebra da bolsa de Nova York em 1929, ao desestabilizar os produtores de café


explicitando de forma contundente sua fragilidade que já vinha de tempo, favorece a
Revolução de 1930 que tem como ideário um novo Brasil moderno, industrial e
urbano. Adota-se um modelo nacional-desenvolvimentista com base na
industrialização176. A questão da Educação que já vinha sendo objeto de profundas
reflexões na década de 20 tem sua visibilidade maior no Manifesto dos Pioneiros de
1932. O governo de Vargas toma de imediato providências práticas para o
gerenciamento da educação em nível nacional. Já em 1930 cria o Ministério da
Educação e Saúde Pública traçando uma política educacional nacional com um
sistema escolar centralizado.

173
- IGLÉSIAS, Francisco. História e Ideologia. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 132.

174
- O Integralismo apresenta facetas bem complexas. Possui sua origem em vários segmentos
conservadores da sociedade, urbanos e rurais. Possui elementos do modernismo unidos a aspectos
do catolicismo conservador. Não é nosso objetivo aqui aprofundar esse tema, mas apenas assinalá-
lo como um dos fenômenos da época. Nagle apresenta uma análise de suas várias vertentes em sua
formação. Cf. NAGLE, 2001, p.118-129.
175
- Ibidem, p. 117.
176
- EVANGELISTA, 1991. p. 39.
128

Na década de 1930 os salesianos já possuem colégios consolidados em várias


cidades da região sudeste e sul. O Colégio salesiano São Joaquim de Lorena
continua sendo referência e mais se consolida no interior do Estado de São Paulo.
Alguns salesianos compõem livros para atender às necessidades das escolas
salesianas como, por exemplo, padre João Ravizza autor de densa obra de livros
didáticos de latim utilizados até a década de 1970. Continua a prevalecer o não
envolvimento da congregação com a política educacional do Brasil. Esse
desligamento das políticas educacionais tão intensamente discutidas no Brasil tem
parte de sua explicação no fato de que a congregação está se implantando no
mundo, e neste momento foca suas energias em mostrar competência e resultados
avalizando com isso seu fundador como educador. Há também empenho em
mostrar que João Bosco poderia ser beatificado, pois um santo como fundador daria
à congregação status na Igreja. A declaração de santidade de João Bosco, porém,
não estava sendo fácil, pois ele fugira pelo seu estilo de vida dos padrões clássicos
dos místicos e contemplativos da igreja. Era um homem pragmático, esperto e
calculista. Entrava nas cidades e povoados acompanhado por ruidosa fanfarra que
competia com a algazarra e alarido dos seus educandos atraindo atenção de todos.
Era seu modo de fazer marketing. Não possuía aos olhos da igreja e, mesmo da
sociedade, aquele clássico estereótipo dos homens de Deus. Sua vida de oração
não tinha nada de especial. Sisudos monsenhores da Cúria romana não se sentiam
confortáveis em apresentar como modelo de santidade um sacerdote que
participava nas ruas de jogos e corridas liderando uma barulhenta molecada. Os
intelectuais da congregação despenderam grande energia na defesa deste novo
modelo de santidade e somente a partir de 1934, quando ele é canonizado, é que
poderão se dedicar em aprofundar um novo foco de interesse da congregação: a
pedagogia salesiana177. Se essas considerações não justificam, ao menos ajudam a
entender a constante ausência dos salesianos na construção dos rumos da
educação católica no Brasil e seus confrontos com o governo.

177
- E no final do século , a partir do centro Histórico salesiano de Roma, volta-se para decifrar a
dimensão humana procurando despi-la de idealizações dentro dos mais modernos métodos da
historiografia moderna.
129

Nas reformas que são realizadas com relação à regulamentação do Ensino no Brasil
uma decisão atinge de modo especial aos salesianos. A constituição de 1946 exigia
que para prática do magistério fosse necessário ter concurso de títulos reconhecido
pelo Estado. Essa exigência desestabilizava as escolas salesianas de todo o Brasil
que tinham como professores salesianos com certificados fornecidos pelo Instituto
de Pedagogia e Filosofia salesiano não credenciado pelo governo. No dia dois de
setembro de 1950 o padre José Stringari era recebido pelo ministro da Educação e
Saúde Dr. Pedro Calmon solicitando que os clérigos salesianos, após terem feito o
curso de Filosofia, Pedagogia e Didática e terem adquirido o certificado do seminário
desses cursos, fossem declarados pelo ministério idôneos, ao menos para lecionar
nos colégios salesianos. O ministro fez ver ao sacerdote a inconstitucionalidade
desta proposta e, em contrapartida e de forma inesperada, faz-lhe uma contra
proposta: Por que não resolve o caso dos seus seminaristas fundando uma
faculdade? Essa proposta teve resposta imediata, e, realizados os procedimentos
legais, no dia 14 de fevereiro de 1952 pelo decreto 30.552 o presidente Getulio
Vargas autorizava o funcionamento dos cursos de Filosofia, Pedagogia, Geografia,
História, Letras Clássicas, Letras Neolatinas e Letras Anglo-Germânicas, da
Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências E Letras178.

O Historiador professor Francisco Sodero Toledo, membro do Instituto de Estudos


Vale-paraibanos capta o significado desta fundação ao defina-la como uma
Instituição de ensino superior singular179. Efetivamente, esta “singularidade”
representará para a história da Instituição um profundo conflito de identidade, que só
será superada depois da década de 70. O seu nascimento atípico e inesperado
impede-lhe o amadurecimento enquanto instituição educacional a serviço da
sociedade brasileira, já que existia há 57 anos como Instituto de Filosofia de um
seminário de religiosos fechado, não só às realidades políticas do Brasil, como
também às grandes lutas da própria Igreja na sua busca por um lugar de prestigio
dentro da sociedade republicana.

178
- CENTRO UNISAL. Sedoc: Arquivo histórico. Lorena.
179
- TOLEDO, op.cit., p. 60.
130

A Era Vargas, com seu projeto de modernização do Brasil, herdara também os


grandes debates sobre o Ensino superior travados nas décadas de 20 e 30 sobre
sua importância para a formação do Brasil. Boa parte dos intelectuais que discutiam
a Educação no Brasil fará parte do governo. Prevalece a tese da necessidade da
formação de uma elite intelectual para conduzir pela educação a nação do
obscurantismo para o progresso. Era necessário, portanto, também interiorizar a
educação para além das grandes capitais. Debatia-se mesmo a necessidade de um
“estudo desinteressado” que desse uma base teórica para que o educando pudesse
agir não como técnico, mas como portador dos princípios educacionais180. A obra de
Vaidergorn intitulada As Seis Irmãs: As Faculdades de Filosofia Ciências e Letras do
Interior Paulista nos permitem uma análise das motivações da fundação dessas
instituições na década de 50. Elas estão no bojo da política do governo de ampliar a
educação para o interior com a meta de formação das elites. Deve-se destacar que
nos grandes debates nacionais sobre a educação o conceito de “elite” não tem o
sentido capitalista burguês, mas o sentido que é exposto por Fernando de Azevedo
e como nos explicita Vaidergorn:

As elites seriam para ele (Fernando de Azevedo) “as verdadeiras forças


criadoras da civilização” de quem dependeriam as grandes civilizações,
fossem antigas ou modernas. A Marca das civilizações não seria dada pela
educação popular, mas pela força das elites dirigentes. (...) Fernando de
Azevedo definia “elite” de acordo como seu conceito de democracia (que
“consiste não no governo do povo pelo povo” – uma ficção – “mas no
governo constituído por elementos tirados do povo e preparados pela
educação”) como uma classe “francamente aberta e acessível”, formada por
cooptação que “se renova e se recruta em todas as camadas sociais” sendo
“aquela que teria condições de propor um projeto de nacionalidade que
estivesse acima das paixões partidárias na medida em que seria composta
pelas iniciativas particulares esclarecidas e sustentadas em todas as
181
classes e direções ”.

A fundação na década de 50 das Faculdades de Araraquara, Assis, Marília,


Presidente Prudente, Rio Claro e São José do Rio Preto fora do eixo da capital,
numa nova política do governo, onde se discutia o tipo de conhecimento a ser
ministrado foi precedida por profundos debates nacionais sobre a educação e o seu
sentido na formação da nação do Brasil, onde se discutia desde um ensino

180
Cf. VAIDERGORN, José. As Seis Irmãs: As FFCL do Interior Paulista. Araraquara, UNESP,
FCL, Laboratório Editorial. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2003, p. 75-102.

181
- Ibidem,- p. 97.
131

pragmático até uma cultura geral e desinteressada, baseada num ensino comum a
todos e voltado à formação do caráter e da mentalidade182. O governo brasileiro
começa essa nova política de interiorização da Educação num projeto debatido ad
nauseam pela sociedade. Mesmo as universidades católicas ao se constituírem são
resultado de confrontos e embates na luta por manter e defender uma cultura e uma
visão do mundo herdada da colonização. Daí entende-se a força da expressão do
professor Sodero ao afirmar a “singularidade” dessa fundação. Até este momento os
salesianos não haviam participado dos grandes debates educacionais travados no
Brasil. Até em nível de Igreja, contrariando a prática de toda a América latina,
utilizavam o latim com a pronúncia romana e não a espanhola, criando desconforto
frente ao clero local e dificuldades aos seus alunos egressos de suas escolas que
poderiam ser reprovados nos exames orais em outras escolas que adotavam a
pronúncia espanhola. Quando o governo realiza exigências legais para o exercício
do magistério numa conversa amigável, solicita-se um favor e se ganha, sem se
pedir, uma faculdade no interior, isso não é, obviamente absorvido em seu sentido
pleno dentro dos grandes debates travados sobre educação no país. Essa é a chave
para se entender o fechamento social no qual a faculdade salesiana nasce. Para a
mentalidade dos salesianos da época parece não ter havido o real entendimento da
extensão do que significava ser “ensino superior reconhecido”. Para a maioria deles
apenas o estudo do seminário era validado pelo governo como oficial. Houve
dificuldade em entender que a partir deste momento as portas da faculdade estavam
abertas para toda a sociedade brasileira.

Lorena neste período era uma cidade provinciana. Seus alunos eram jovens
seminaristas oriundos de diversas partes do Brasil que queriam ser padres
salesianos. Era em suma, um seminário. Como afirma Sodero:

Nascia mais uma instituição e nível superior de caráter privado e católico.


Ligada, portanto ao projeto de Igreja, formulado no bojo dos processos da
romanização e de restauração com total unidade com o Vaticano e
obediência ao papa e à Cúria romana. (...) seus esforços tendem a
acompanhar o processo conservador, seletivo e excludente que caracteriza
o sistema educacional brasileiro. (...) Os salesianos, em seu movimento

182
- Ibidem, p. 99.
132

educacional, buscavam a disciplina moral, o rigor intelectual e total afinidade


183
com os superiores da ordem e com o Vaticano ”.

A faculdade nasce como um seminário reconhecido, como atesta o artigo 153 que
reza: os alunos eram “do sexo masculino e em de regime de internato, cabendo
somente ao diretor abrir exceção a este dispositivo184” Tinha-se o paradoxo da
existência de um curso de ensino superior interno e masculino com 80% dos
professores sendo padres e mantendo-se a estrutura de seminário. A sociedade
local começa desde o inicio a exigir vagas, sendo os superiores obrigados a admitir
leigos denominados então de externos e que devem se submeter ao estilo
seminarístico da faculdade. Exige-se também a presença feminina – inconcebível
então dentro dos rígidos padrões de uma igreja romanizada – o que é solucionado
com a criação da faculdade feminina que funciona na escola das irmãs salesianas,
ainda que mantenha uma administração unificada. Sendo a cidade de Lorena
provinciana e tradicional essa formatação não causa incômodo. Os clérigos, dentro
da tradição tridentina, vivem isolados das coisas do mundo não podendo se
ausentar dos claustros sem autorização e não podendo ter acesso a jornais e
revistas, salvo se antes censurados por seus superiores. O estudo acadêmico
continuava embasado no pensamento tomista e com abordagens a partir de uma
ótica apologética da igreja e da religião. A cultura era ampla e clássica, sem, porém,
trabalhar uma dimensão critica. Não era permitida a leitura de muitos autores
vetados pelo Index Librorum Prohibitorum185 da igreja e da congregação. O
isolamento da sociedade é bem expresso pelo ex-aluno e ex-clérigo José Paulino:

Ao sair para enfrentar a vida laica até então desconhecida, eu só possuía os


conhecimentos acumulados em minha experiência de quatorze anos da vida
enclausurada, onde conseguira dois títulos acadêmicos, além de dois anos
do curso superior de Teologia. Com esta bagagem comecei a procurar
emprego na cidade de São Paulo. E comecei como agente previdenciário.
(...) Não consegui durar sequer uma semana nesse emprego. Tudo me era
totalmente estranho. Até mesmo as situações mais corriqueiras do
cotidiano, como conversar numa mesa de bar, descontar um cheque, abrir
uma conta bancária, falar sobre futebol, mulher, custo de vida. Esses
assuntos, incógnitos para mim, eram fonte de angústia e de dolorosas
aprendizagens. Para quem vivera quatorze anos em companhia de muitas
pessoas e, de repente, começava a viver só, mesmo estando no meio da

183
- TOLEDO, op. cit., p. 63.
184
Ibidem, p. 77
185
- Índice dos livros proibidos.
133

multidão, era uma sensação de deslocamento, como se estivesse num país


186
estrangeiro, ou perdido em outro planeta, ou numa grande solitária .

O fato de o Instituto ter se transformado em faculdade não mudava o modelo de


formação. A principal força da manutenção de uma igreja com um clero coeso e
tradicional, sem as contaminações do mundo, era o modelo de seminário tridentino
onde a formação era dada completamente isolada do mundo e permitia incutir na
mente dos seminaristas um único modelo de vida e de igreja sem o confronto com a
realidade. Alguns seminários recebiam os meninos com 10 ou 11 anos e estes só
voltavam às suas casas com 24 a 26 anos, já sacerdotes. Mantinham frágeis laços
com a família e tinham irmãos que sequer conheciam. Viviam completamente
isolados da sociedade conhecendo apenas as coisas da Igreja. Era prática comum e
aceita nos seminários que todas as correspondências fossem abertas e lidas pelos
superiores, tanto as que chegavam como as que saíam. Algumas eram retidas ou
mesmo destruídas. As noticias eram filtradas ou censuradas, sendo fixadas apenas
as aprovadas pela censura dos superiores no quadro das tiras de jornais. Os livros
de crônicas dessas comunidades nos documentam que os seminários se
constituíam em verdadeiras ilhas187. Revistas e jornais externos eram “traficados”
como leituras não autorizadas. Os problemas abordados eram sempre sob a ótica
apologética do catolicismo, tendo como referenciais a hierarquia ou a intelligentsia
católica liderada por Jackson Figueiredo ou Gustavo Corsão. Toda “análise da

186
- SILVA, José Paulino da. Itinerário de Libertação: a educação na encruzilhada entre o
discurso progressista e a prática conservadora. São Luís: Sotaque Norte, 2002, p. 63
187
- Como exemplo cita-se três dias de anotações da “Crônica da casa” que até hoje é feita
pelos clérigos. No dia 31 de março de 1964 são feita anotações domésticas. “Comemoração mensal
de Dom Bosco. Não houve comemoração porque o rito não permitia. Bodas de ouro de ordenação
do Rev.mo senhor padre Júlio Deretz. Não houve festa porque se esperava comemorar essa data
quando o padre Julio pudesse celebrar. À noite houve uma pequena manifestação de afeto. Passeio
geral à fazenda do Mondezir. Recebemos a notícia do falecimento do senhor coadj. João Trombeta”.
Nenhumas referência ao golpe militar. A casa de formação está distante apenas um quilometro do
quartel. Houve grande movimentação de tropas. No dia primeiro de abril há está lacônica nota: “30º.
Aniversário da canonização de Dom Bosco. Revolução no país. Demitiu-se o presidente e tudo se
acalmou”. No dia 15 de abril de 1964: “Tomada de posse do novo presidente da República Sr. Mal.
Castelo Branco”. Nada mais. Cf. CENTRO UNISAL. Sedoc: Arquivo histórico. Crônicas da Casa, de
18/07/61 a 10/07/61, Lorena.
134

realidade” é sempre realizada a partir da ótica da igreja romanizada e numa postura


apologética188.

A década de 1960 em nível mundial é um divisor de águas na história do século XX.


Nela eclodiram movimentos sociais que representaram divisores de água em nível
cientifico, político, social, econômico e religioso que impactaram diretamente na vida
da Faculdade Salesiana. O inicio das viagens interplanetárias, o concílio Vaticano II,
o Movimento estudantil de Paris, o festival de Rock de Woodstock, o movimento
hippie, a liberação sexual, a polarização do comunismo versus capitalismo, a luta
pelos direitos civis de Luther King e o cerco de Cuba pela marinha americana são
apenas alguns dos movimentos emblemáticos que deram novo formato ao mundo. O
Brasil, a partir de Janio Quadros e João Goulart, começa a adernar para a esquerda
até o golpe de 64 que tem sua radicalização em 1968 com o Ato Institucional
numero 5 quando eram intensas as reflexões sobre a realidade brasileira. Após o
Concílio Vaticano II há na Igreja Católica significativa crise de identidade com grande
numero de sacerdotes abandonando a batina ou aderindo a linhas de esquerda de
matriz marxista. Os superiores maiores dos salesianos continuavam na sua linha
tradicional procurando que seus clérigos não se contaminassem com essas novas
idéias, procurando mantê-los numa redoma ideológica tomista e tradicional.

Julgou oportuno, senhor padre Inspetor, que as aulas de Filosofia para os


clérigos não fosse feitas com os alunos externos, mas separados (...) Há
clérigos, observa-nos padre Inspetor, que se mostram muito auto-
suficientes. Se não vivermos os sinais de verdadeira vocação será
necessário tomar decisões mais firmes, permitindo-lhes uma vida prática
189
salesiana .

Não raro, porém, nos quadros de tiras de jornais do seminário apreciam noticias
favoráveis à revolução cubana, contra o imperialismo americano ou a favor da
libertação dos pobres e oprimidos postas por mãos “desconhecidas”, certamente
padres, que são “denunciados” no conselho da casa: Até padres e teólogos
inteligentes com teorias que em pouco tempo fariam grandes estragos. (...) Muito
cuidado em pôr os clérigos em contato com essas coisas. Bastam as idéias gerais,

188
- Mereceria especial estudo no CEDOC dois tipos de documentos. As Crônicas da casa que
a partir de um clérigo redator narra o dia a dia e as Atas do Conselho da Casa onde se sente o
embate dos Salesianos entre si frente aos problemas que começam a atingir a sociedade.
189
- Cf. CENTRO UNISAL. Sedoc: Arquivo histórico. Atas do Conselho da Casa do Instituto
Salesiano de Pedagogia e Filosofia. 15/03/67 a 14/08/73 – Lorena, p. 49 v .
135

Claríssimas190. Houve também salesianos mais radicais que provocaram o exército


seja por discursos, seja colocando ramalhetes de flores na boca de um canhão de
um tanque de guerra. A ala feminina, sobretudo sob a liderança da Irmã Iracema 191,
partia para uma linha muito mais progressista e engajada dividindo ideologicamente
a faculdade entre padres conservadores e irmãs progressistas.

Irmã Iracema teve atuação marcante na formação dos alunos, mesmo antes
do golpe militar ( ... )Ela tinha uma cabeça incrível, muito aberta. Formou
uma geração de discernimento, de saber o que era bom e o que não era. (
...) A professora fazia de sua aula um instrumento esclarecedor e
conscientizador da realidade brasileira, com o objetivo de formar cidadãos
justos e com desejo de transformação. ( ... ) Foram anos áureos de
conscientização e de ação, porque nós acabávamos tendo uma missão
junto aos jovens. Mesmo antes da implantação da ditadura militar, pela
própria característica da disciplina de Sociologia, irmã Iracema discutia
questões relativas às injustiças sociais, como a pobreza, a falta de moradia
192
e o trabalho mal remunerado .

Fazia então grande sucesso o “cine-fórum” onde eram apresentados filmes do


momento para discussões. Escandalizavam-se os padres conservadores quando as
irmãs pregavam o engajamento, a inserção nas periferias e a discussão com a
realidade brasileira. Apesar de toda redoma em que os formadores pretendiam

190
- Ibidem, Ata da Casa. De 14 de março de 1956 a 07 de maio de 1968. Lorena, p. 64v-65v.

191
- Iracema Noemia Farina - 1920 – 2011. Graduada em Filosofia, Pedagogia, Teologia e
Ciências Religiosas, e Orientação Educacional, pós-graduada em Filosofia, Psicologia Educacional,
Educação Moral e Cívica, Monitoria, Comunicação e Educação Cinematográfica, Mestre e Doutora
em Ciências pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Cursou inúmeras
extensões universitárias nos campos da Psicologia, Sociopolítico e Econômico, Cultura Brasileira,
Filosofia, Comunicação e Artes, todos em renomadas instituições como USP, PUC, Faculdade
Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena, Faculdade Católica de Belo Horizonte,
Faculdade Jesuíta São Luiz/SP, FMU. Em 1969 esteve em Roma, onde participou de um curso sobre
Cultura Cinematográfica promovido pela Confederação Portuguesa dos Meios de Comunicação
Social (CPMCS). A partir de 1959 até 1974, desenvolveu suas atividades docentes na Faculdade
Salesiana de Filosofia Ciências e Letras de Lorena – sessão feminina. Em Lorena criou o Cine Clube
de Lorena da FATEA que funciona até hoje. “Era uma professora com idéias avançadas tendo lutado
muito pela liberdade e democracia. Foi educadora propositiva, acreditava nas possibilidades da
juventude como protagonista da história e capaz de mudar a situação socioeconômica e política do
País. – Cf. FATEA. Saudades de uma grande educadora. Disponível em: <
http://fatea.br/fatea/blog/saudades-de-uma-grande-educadora-salesiana/>. Acesso em: 10 ago.
2011.

192
- BORREGO, Beatriz; MARIA, Letícia; MAIA, Paula. Uma Lacuna na História: Movimento
de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida. Taubaté: Papel Brasil. 2000, p. 52-
53.
136

manter seus formandos, a convivência no ambiente da faculdade impedia essa


filtragem da realidade externa como nos testemunha o historiador Pasin, membro do
Instituto de Estudos Vale-paraibanos (IEV):

Elas eram progressistas e sempre estavam à frente em todos os sentidos -


desde o espaço físico da faculdade -, lá havia um campus universitário, uma
liberdade de idéias e filmes no Cine-clube fundado pela irmã Iracema. Hoje
a FATEA tem uma ótima videoteca e lá você encontra todos os filmes,
inclusive "Je Vous Salue Marie" proibido pela CNBB. Se você quiser assistir
ou projetar o filme vai lá e retire a cópia seja aluno, professor ou
consulente.... Isto significa que, embora elas sendo religiosas têm uma
visão moderna e científica do que seja uma universidade e fazem uma
leitura correta dos filmes. O Cine Clube funciona a mais de 25 anos e todas
as sextas feiras à noite projetando um filme de um bom diretor com temas
polêmicos e, depois da projeção, é feito um debate com a participação de
todos os cinéfilos presentes. Você vai à biblioteca Conde Moreira Lima e
consulta todos os livros, jornais e revistas. Nunca houve nada censurado ou
interditado. Isso explica o choque ocorrido na década de 70, entre padres e
as freiras. Elas estavam sempre à frente, com uma mentalidade aberta e
progressista para época. Eu participei, como representante dos professores,
da reunião que resultou no rompimento das duas seções da faculdade.
Nesta reunião presidida pelo padre Anderson Paes da Silva, estavam
presentes entre outros, o padre Antônio Lages de Magalhães e o padre
José Pereira Neto, que assistiam às sessões do Cine Clube e professor
Francisco Sodero Toledo, como representante dos alunos. No calor das
discussões padre Anderson, referindo-se ao Cine Clube disse às irmãs: "As
senhoras com o Cine clube comprometem a moral da faculdade porque
para mim filme de arte é pornografia". Eu saí em defesa das irmãs e apelei
para o padre Pereira pedindo que ele desse sua opinião, e ele respondeu:
"arte para mim é algo subjetivo” e não disse mais nada. O motivo
fundamental da ruptura foi, entre outros, o Cine clube. Os padres achavam
que as irmãs estavam fora do espírito das faculdade. Elas eram modernas e
progressistas e modernas demais para os padrões e conceitos da época.
Em 1970 houve a prisão de vários professores e alunos da faculdade pelo
quinto Batalhão de Infantaria Leve de Lorena. Eu, o Ivo Malerba, o João
Bastos, o Carlos Chagas, o Nelson Pesciota, irmã Iracema e penso que
Irmã Olga, também. Este fato, na época abalou toda a sociedade lorenense
e vale paraibana e repercutiu de maneira chocante dentro da faculdade,
contribuindo do desdobramento da crise que resultou na ruptura entre as
duas secções. Acredito, que naquele momento o padre Anderson estivesse
tentando deter a onda revolucionária que tomara conta da faculdade
193
salesiana .

Não se pode também ignorar que os documentos emanados pelo Vaticano II


desestabilizaram essa visão de igreja fechada que os formadores tinham cultivado
até então. Analisando-se os Livros do Conselho e as Crônicas da Casa verifica-se
que timidamente vão sendo tratados temas externos. Na década de 1960 o numero
de alunos externos já era maior que o de internos, seja pelo crescimento da
faculdade, seja pela diminuição das vocações e o seminário começava ser um
apêndice da faculdade.
193
- CENTRO UNISAL. Sedoc: Arquivo histórico. Entrevista a José Luis Pasin em maio de
2002, Lorena.
137

O ano de 1968 será decisivo. Na academia começa a discussão do documento de


Buga elaborado em 1967 e que procurava definir o lugar da universidade católica
frente ao mundo moderno à luz do Vaticano II.

A proposta do CELAM, expressa no documento de Buga tinha como meta


para as Universidades da América Latina: gerar a conscientização da
realidade histórica; realizar a promoção social que conduza ao
desenvolvimento; criticar a mentira social e política; resgatar a autenticidade
da cultura; promover a integração do continente; ter uma participação ativa
e crítica na sociedade; tornar-se, enfim, uma esfera privilegiada de encontro
entre a Igreja e o mundo. O Documento de Buga sintetizava o projeto de
Universidade Católica para a América Latina. Uma verdadeira universidade
católica, crítica, libertadora, dialogal, politizada, denunciadora da mentira
social, conscientizadora, cientificamente competente, inserida no processo
de mudança social, inovadora, enfim revolucionária, procurando uma efetiva
participação no processo de libertação da América Latina. Buga busca
assegurar o diálogo entre as Ciências, as Técnicas e as Artes, de um lado,
e de outro, a Filosofia e a Teologia. Uma universidade que não pode querer
se reduzir a formar profissionais, mas, sobretudo, deve cuidar da promoção
194
humana .

Dom Cândido Padim, bispo da Diocese e Lorena, em duas ocasiões195 analisará a


importância do diálogo da universidade no seu interior com a sociedade que a
circundava. O Vaticano II abria através dos seus documentos novas vertentes de
diálogo da igreja com o mundo e, também, do mundo universitário católico com a
sociedade, respeitando-lhe as diversidades.

As reflexões e os debates que se sucederam, indicaram uma virada na


concepção do Ensino Superior Católico. O ponto de partida dos presentes
foi a análise da pergunta fundamental: “nós estamos realmente dialogando
com a realidade que nos circunda? Estamos de fato servindo aos interesses
196
dessa realidade? .

O que se refletia na congregação era algo inédito nos padrões de um seminário


organizado hierarquicamente. Existiam até propostas bem concretas de diálogo com
o mundo discente:

Convidar pelo menos o presidente do DA e presidentes dos diversos


Centros de Estudos para participarem das reuniões, como forma concreta
de começar um diálogo mais profícuo no interior da faculdade e a facilitação
do diálogo com sociedade, visto também os alunos conhecerem essa
realidade, com a própria experiência de vida, que nos pode iluminar sobre

194
- TOLEDO, op. cit., p.164.
195
1º. De abril e 7 de maio de 1978. Ibidem, p. 167-168.
196
-Ibidem, p.168.
138

muitas decisões a tomar, para melhor servir região na qual estamos


197
inseridos (Cg, 1968, 46v) .

Essas idéias tinham algo de novo e somente salesianos com uma longa vida no
mundo universitário podiam perceber o seu alcance. Para os salesianos que
trabalhavam apenas na casa de formação e que viam o espaço universitário apenas
como uma extensão do seminário essas proposições não eram apreendidas na
dimensão e profundidade que tinham. Aliás, o próprio Vaticano II no seu espírito
ainda não era bem compreendido. Havia neste momento uma reta intenção de
reestruturação da faculdade dando-lhe uma maior consistência no seu espírito de
universidade. As reuniões congregando professores e alunos eram conduzidas pelo
padre Ferreira198. A partir das reflexões de Dom Padim o processo participativo
passa a ser significativo. Discutiu-se organização, gestão acadêmica, administração,
estruturas físicas. Entre os muitos pontos debatidos optava-se pela criação de um
clima ecumênico e pela abertura da faculdade para a sociedade local e seus
problemas. Este momento, e a crise que viria a seguir, vistos numa perspectiva de

197
- TOLEDO, 2003, p.169.
198
- Padre Antônio da Silva Ferreira nasceu em São José do Rio Pardo, no dia 13 de junho de
1927. Licenciado em Filosofia pela Faculdade Dom Bosco de Filosofia e Letras de São João del Rei,
Teologia pelo Instituto Pio XI em São Paulo e Pedagogia pela Faculdade de Ciências e Letras de
Cruzeiro, SP. Doutorou-se em Pedagogia pela Universidade Pontifícia Salesiana de Roma. Professor
e diretor das Faculdade Salesiana, foi assessor para o setor das Escolas da Pastoral Juvenil do
Conselho Geral da Congregação salesiana em Roma. Psicólogo. Foi membro fundador do Instituto
Histórico Salesiano de Roma, onde atou por 18 anos Foi vice diretor e membro do Centro Salesiano
de Documentação e Pesquisa de Barbacena. É membro fundador da Associação Nacional de
profissionais de administração e membro da Associação de Cultores da História Salesiana, com sede
em Roma. Autor de muitos livros sobre educação e salesianidade no Brasil e na Itália. Autor de várias
pesquisas com edições de documentos inéditos e artigos em Revistas especializadas. A publicação
da última edição das “Memórias do Oratório São Francisco de Sales” de Dom Bosco na edição
italiana, posteriormente traduzida para vários idiomas, com comentários e notas historiográficas do
padre Ferreira tornou-se um referencial obrigatório para o estudo critico da personalidade, dos
escritos e da obra de João Bosco. Sua presença em Lorena foi marcante como pensador, tendo dado
à Faculdade Salesiana seriedade, sobretudo na dimensão das pesquisas. No momento da grande
crise da universidade em 1968 manteve uma postura acadêmica que, sem abrir mão dos seus
princípios, soube respeitar e dialogar com todas as correntes de pensamento e defendê-las
publicamente frente à crescente truculência do regime militar. Defendeu a liberdade de pensamento
dos alunos marxistas ligados ao DA, desde que suas argumentações estivessem embasadas em
critérios científicos da academia. Sua autoridade moral como pensador, escritor, pesquisador e
professor granjeou-lhe respeito até mesmo do regime militar, apesar de ter sofrido uma breve
detenção. Quando irmã Iracema foi detida por sua liderança política, conta hoje com um sorriso
brejeiro, se dirigiu ao comando militar avisando que “estariam criando um sério problema diplomático
internacional com o Estado do Vaticano, pois uma das normas da Igreja é que jamais uma freira
deveria pernoitar fora do convento. Foi-lhe solicitado então que garantisse que naquele mesmo dia a
“irmã revolucionária” fosse banida da cidade de Lorena, o que aconteceu. Atualmente reside na
unidade de Santa Teresinha do UNISAL em São Paulo onde atua como professor convidado,
pesquisador, tradutor, consultor dos centros históricos do Brasil e de Roma e escritor.
139

distância do tempo pode ser entendido como o verdadeiro início da faculdade


salesiana no seu sentido próprio de academia. Será um nascimento doloroso com
rupturas e tensões na busca do equilíbrio na formação de uma verdadeira
mentalidade de uma academia.

O momento político era tenso e os ambientes acadêmicos eram focos de resistência


à ditadura. Desde 1966 alunos já faziam manifestações públicas pedindo mais
verbas para educação e o cancelamento do acordo MEC-USAID. Em 1967 o
Diretório Acadêmico da Faculdade sofrerá intervenção policial. O presidente do DA
apresentou à Congregação da faculdade as dificuldades vividas recebendo apoio da
mesma que, inclusive, se dispôs a contratar um advogado em defesa dos alunos.
Essa atitude da direção foi entendida por quatro membros da direção do DA como
sendo uma interferência e com isso parte da direção da representação dos alunos
se dividiu e os membros dissidentes pediram demissão. Em Assembléia os alunos
optaram por nova eleição. Havia um clima de desconfiança de toda parte. Agentes
militares do exercito de Lorena e da aeronáutica de Guaratinguetá estavam
infiltrados em todos os segmentos da sociedade. A direção do Diretório Acadêmico
de 1968 radicalizava também contra toda forma de autoridade. O aumento da
radicalização do processo político nacional, a partir do mês de outubro, acabou por
repercutir no interior da vida universitária na Faculdade Salesiana:

Era o corre-corre com as urnas da UNE, as reuniões noturnas, e os


congressos universitários (...). Eram a divisão de idéias políticas entre
padres, seminaristas, professores, alunas e alunos externos, e os alunos do
199
exército e da aeronáutica .

As tensões políticas no Brasil se avolumavam. A UNE tornara-se um dos


significativos focos de resistência ao regime militar. Neste ano vence a chapa AGIR
liderada pelo jovem Ivo Malerba que promovia a mobilização dos estudantes em
consonância com o movimento nacional da UNE, setor USP. A faculdade já vinha
desde inicio da década se abrindo para algumas questões, isso, porém, sob o crivo
de uma visão aristotélico-tomista que fazia uma leitura “crítica” a partir desta ótica.
Os conferencistas vindos à faculdade por convite da direção eram alinhados com a

199
- Hércio PEREIRA, apud TOLEDO, op. cit., p. 176.
140

linha romanizada da Igreja e mesmo o bispo Dom Padim 200, com explicita inclinação
para a Teologia da libertação, apesar de suas convicções pessoais, por ser membro
da hierarquia católica, devia manter certa postura esperada de um bispo de uma
conservadora e provinciana cidade do interior. A greve dos 100 dias dos estudantes
no ano de 1968, porém, precipitou os acontecimentos assumindo um contorno que
escapava ao controle dos padres salesianos.

A ala radical do DA pretendia o controle da gestão da faculdade assumindo algumas


estratégias para enfraquecer a interferência dos salesianos: proibiu a presença de
professores nas assembléias, sabendo ser na sua maioria religiosos salesianos;
marcou as assembléias na ala feminina, esperando que os clérigos estudantes não
participassem pelas restrições do seminário que impedia por seus regulamentos que
os clérigos convivessem ou freqüentassem ambientes femininos.

No livro Uma Lacuna na História201 é apresenta a descrição da situação da


faculdade salesiana no ano de 1968 a partir da ótica de alunos que destacam
acontecimentos, nomeiam educadores salesianos e salesianas, assim como leigos

200
- Dom Cândido Padin – 1915-2008 - Graduado em Direito pela USP,Filosofia e Teologia. Foi
um dos fundadores da Juventude Universitária Católica no Brasil, Participou do Concílio Vaticano II.
Foi bispo auxiliar de Dom Jaime Câmara (1962 e 1965) no Rio de Janeiro atuando como assistente
nacional da Ação Católica. Em 1966 foi nomeado bispo diocesano de Lorena, onde permaneceu por
quatro anos e a seguir foi bispo de Bauru até 1990 quando retronou ao Mosteiro de São Bento de
São Paulo. Na CNBB trabalhou no setor de comunicação social e de educação. Presidiu o
Departamento de Educação do Conselho Episcopal Latino-Americano - CELAM (1967-1972). Foi
consultor da Congregação para a Educação Católica, entre 1968 a 1973. (espaço) Em 1962, no
governo João Goulart foi membro do Conselho Federal de Educação. Foi vice-reitor da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Empenhado na causa da justiça e da promoção humana, foi um
dos primeiros juristas a denunciar a inconstitucionalidade da Lei de Segurança Nacional durante o
regime militar. Era considerado um bispo da ala progressista da Igreja Católica por seu engajamento
social e político. Insistia que a vocação dos leigos exigia que fossem agentes transformadores da
sociedade. Atuou, ainda, no setor de comunicação social e de educação da CNBB. Também foi
membro do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), presidindo o Departamento de
Educação. Fundou, em Bauru, a Comissão de Justiça e Paz, atento à dignidade da pessoa humana,
conforme sempre se empenhou em unir a promoção humana à evangelização de modo especial em
favor dos pobres e excluídos. Foi um dos primeiros juristas a apresentar estudo sobre a
inconstitucionalidade da Lei de Segurança Nacional em vigor no período da Ditadura. Destacou-se
assim dentre o episcopado brasileiro. Cf. CNBB. Pastoral Familiar. Disponível em:
< http://www.pastoralfamiliarcnbb.org.br/novo_site/noticias/noticia.asp?id=1092>.Acesso em: 10 out.
2011.

201
- Destacam-se os professores José Luiz Pasin, Irmã Iracema Farina, Irmã Olga de Sá, Padre
Carlos Leôncio, Padre Antonio da Silva Ferreira, Padre Eliseu Cintra. Todos são intelectuais de
destaque comprometidos com o mundo acadêmico formados com o verdadeiro espírito do Ensino
Superior. Junte-se a estes, também destacado pelos alunos, o bispo Dom Cândido Padim também
alinhado com as lutas estudantis. Este livro recebeu no Congresso da Intercom – encontro de
pesquisadores, profissionais e alunos de comunicação do pais dois prêmios: primeiro lugar como livro
reportagem e o melhor trabalho de jornalismo do Brasil de 1997. Cf. BORREGO et al., 2000.
141

que estiveram intelectual e fisicamente ao lado deles nos momentos de repressão


da ditadura militar. A estratégia que os superiores salesianos adotam para
enfraquecer o movimento estudantil era a de que os clérigos participassem das
assembléias sem batina e que estudassem os “livros proibidos202” para estarem
aptos a participarem dos debates.

O prolongamento da paralisação das aulas gerou cansaço nos próprios alunos que
começaram a temer a perda do ano letivo, e enfim as aulas retornam enquanto o
líder estudantil Ivo Malerba é preso no Congresso da UNE de Ibiúna203.

Neste ano de 1968 a Faculdade Salesiana deveria apresentar ao Ministério da


Educação o seu novo regimento com a participação do corpo docente e discente.
Essas tensões, porém, comprometeram todo processo, com o retorno das aulas
após quase cem dias de paralisação. Padre Ferreira, encarregado de redigir as
contribuições dos alunos e professores para o novo regimento da faculdade, não
consegue obter a contribuição destes últimos e, usando de uma estratégia, protocola
o processo em Brasília sabendo que, incompleto, o regimento entraria em diligência,
quando se teria tempo para recolher as contribuições do corpo docente. Três
episódios, porém alteram o processo. O Ato Institucional No. 5204 radicalizará o
golpe militar com a suspensão dos direitos civis; o regime militar assume uma
política educacional205 tecnicista e finalmente no âmbito interno em Brasília a
senhora Nair Fortes Abu-Mehry, ao perceber as falhas no processo das faculdades
salesianas, ao invés de submeter o documento a diligências, por conta própria
completa o que faltava, fora de todo ideal da participação acadêmica, e, mais ainda,
divide a faculdades em duas, uma das irmãs, o Instituto Santa Teresa 206 e outra dos

202
- O Capital; Manifesto Comunista.
203
- 12 de outubro de 1968.
204
- 3 de dezembro de 1968
205
- Lei 5,540/68 de 28/11 impõe a reforma do Ensino determinado pelo acordo MEC/USAID.
“Os Decretos leis 464 477 de 1969 davam o golpe de misericórdia nos avanços e sonhos
desenvolvidos pela Faculdade Salesiana, na busca de sua reestruturação”. Cf. TOLEDO, 2003, p
177.
206
- Atual FATEA – Faculdades Integradas Santa Teresa D’Ávila, das irmãs salesianas.
142

padres. Da crise emergia, paradoxalmente, sem conhecimento das partes, duas


faculdades. Eis como padre Ferreira narra este episódio:

Preparou-se um regimento que tratava somente da estrutura da faculdade


deixando em descoberto outros itens. Tal regimento, entregue em tempo,
satisfaria a exigência de prazo do CNE e cairia em diligência. No satisfazer
a diligencia, já com um ambiente mais calmo, seria possível uma comissão
estudar o regimento definitivo. E foi o que se fez preparando-se um
regimento parcial e protocolando-o no MEC. A diligência não veio. Tratava-
se da aprovação de um curso novo na faculdade e era necessário um
Regimento de acordo com a lei. Dona Nair Fortes Abu-Mehry, relatora do
processo, fazendo notar as incoerências e falhas do regimento aprovado,
preparou ela mesma um regimento novo, que foi aprovado e enviado para
Lorena. Evidentemente os grandes debates sobre a aplicação do sistema
educativo de Dom Bosco na faculdade e demais preocupações da
assembléia Universitária não figuravam nesse regimento. Ao Mesmo tempo,
a Escola Superior de Ciências Domésticas e Educação Rural das FMA
(irmãs salesianas), que era uma instituição ligada à faculdade salesiana, foi
207
reconhecida como faculdade independente .

O tumultuado ano de 1968 em Lorena é visto, tanto pelos superiores de São


Paulo,como de Roma, como um período de grande desestabilização do seminário.
Não tendo entendido o que efetivamente acontecera, entendem que é preciso pôr
ordem na casa.

Os jovens clérigos tinham saído vitoriosos dos embates nas assembléias. Muitas
das idéias que haviam combatido, porém, não deixaram de tocá-los, como os
conceitos de participação, liberdade, decisões colegiadas e acesso a pensadores
fora do eixo tomista. Ao retornar para a vida regular do seminário, suas mentes já
não eram as mesmas. Os livros de atas das reuniões dos superiores demonstram
preocupações com os “tempos atuais”. Sem que os superiores percebessem, os
formandos haviam “se contaminado” em parte com os ideais e mentalidade dos anos
60. Na ótica dos formadores era o momento de reordenar e disciplinar o seminário.
Enquanto o AI 5 impunha uma linha dura à sociedade, o mesmo acontecia com a
casa de formação. Professores salesianos progressistas são transferidos.
Seminaristas rebeldes e progressistas são dispensados. O novo diretor apresenta-se
como quem veio restaurar a ordem e disciplina. Essa proposta, porém, que x
representava um forte freio na vida do seminário, não iria apresentar os resultados

207
Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena. Entrevista concedida pelo
Vice-diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, MG, 16 de
julho de 2002. In: CENTRO UNISAL. Sedoc: Arquivo histórico. Lorena.

Arquivo CEDOC – UNISAL – Unidade de Lorena – SP.


143

que imaginavam os superiores-interventores. A vida do claustro voltava à rotina


monástica208. O sino, sinal da voz de Deus, ecoava pelo cortile indicando os horários
sagrados da liturgia e da vida. Tudo aparentemente voltava ao ritmo do passado,
como deveria ser. Tudo. Menos as mentes. Nelas palpitavam as idéias de liberdade,
participação, luta contra a opressão do governo, da igreja, dos formadores e do
conservadorismo. Acreditava-se que era tempo de aggiornamento, rupturas com
estruturas, opção preferencial pelos pobres. Tudo era igual. Externamente tudo volta
a ser igual. Menos as mentes. Então tudo era diferente... as décadas seguintes no
seminário não serão tranqüilas. A mão de ferro, que procurava a tudo pôr em
ordem, não conseguirá mais domesticar as mentes,nem adestrar os corações. Serão
anos de rebeldias em que a militância política contra todas as formas de opressão
encontrarão na Igreja e em suas alas mais progressistas o amparo e a defesa. A
“pax” imposta pelo novo diretor será só momentânea. Os atos de rebeldia no
seminário não deixarão de conhecer retaliações contra os clérigos que não mais
possuem o espírito de obediência.

A década de 60 representará uma forte reorganização e redimensionamento do


mundo e da sociedade. O Vaticano II estabelecerá um novo modelo de igreja, já
que o antigo mostrava-se inadequado para um mundo em crescente processo e
mudança. Milhares de sacerdotes e religiosos abandonam a igreja não mais
conseguindo se identificar com antigos modelos e tão pouco sendo capazes de
elaborar novos, com fortes baixas no numero de vocações religiosas e sacerdotais,
havendo crise de identidade mesmo para os que permaneceram nas suas fileiras.
Na faculdade salesiana o numero de clérigos decai radicalmente, não representando
mais a maioria dos alunos. Por outro lado a Lei da Reforma Universitária 209, imposta
a todas as instituições de Ensino Superior, criava um novo modelo de universidade
tecnicista, distante de um modelo social inovador, transformador e revolucionário210.

208
- Tanto o termo “claustro” como “monástica” são aqui usados de modo impróprio. A vida
salesiana possui toda uma organização interna com regulamentos e vida em comum. Prevalece,
porém, um clima de família muito diferente dos mosteiros. Elas aqui são usadas apenas para definir a
regularidade, a sistematicidade do cotidiano duma casa religiosa, mas são usadas de forma até
caricata.
209
- lei 5.540/68.
210
Cf. TOLEDO, 2003. p. 180
144

Entre os anos de 1969 e 1972 duas coisas se explicitam para os salesianos mais
esclarecidos. A tentativa de volta ao modelo do antigo seminário não era mais viável
como fora no passado. A Igreja mudara com o Vaticano II. As vocações diminuíram
drasticamente, com boa parte do clero em crise de identidade frente a um mundo de
rápidas mudanças tecnológicas, sociais e, sobretudo, de mentalidade. O sonho da
reestruturação da faculdade nos moldes de um seminário estava acabado, pois ela
deveria se enquadrar ao modelo de uma escola superior atendendo às exigências
do MEC e do mercado. O Novo regimento será aprovado no dia 12 de dezembro de
1972 pelo parecer 1.433/72, organizando-se segundo o modelo tecnicista imposto
pelo regime militar.

O novo diretor das Faculdades salesianas, Padre Anderson Paes da Silva, tomara
posse em agosto de 1969, com a leitura da Sagrada escritura em que se viam claras
as dimensões da verdadeira autoridade211. O governo do novo diretor mostra-se de
imediato ousado abrindo novos cursos já nos anos seguintes, como Química,
Ciências Naturais e Psicologia. Em 1971 já se conta com 11 Cursos. Em 1970
termina a divisão dos alunos por sexo a partir do curso de Psicologia. Essa rápida
modernização da faculdade, porém, não foi bem absorvida pelos formadores.

O curso de Filosofia deixou de ser oficialmente desenvolvido pela faculdade.


Ele continuou existindo para os alunos internos, os clérigos salesianos, no
ambiente separado da faculdade, junto ao Instituto Salesiano de Pedagogia
e Filosofia, que passou a ocupar todas as dependências que até então
abrigara a faculdade. A sua oficialização foi resolvida com a aplicação de
exames de validação.

O motivo do surgimento da Faculdade Salesiana de Lorena como doação do Estado


que autorizou seu funcionamento, reconheceu seus cursos e validou os documentos
expedidos212 fora o de se ter um espaço especial de formação de professores e
educadores salesianos com diplomação reconhecida pelo governo. A Faculdade foi
criada para a formação dos seminaristas, e ao multiplicar seus cursos, ela se
desestruturou213. Essa ambigüidade inicial obstaculou a formação de uma

211
- Ibidem, p. 187.
212
Ibidem, p. 200
213
- Guido NASCIMENTO, apud TOLEDO,2003, p. 193.
145

verdadeira mentalidade universitária. Alguns salesianos, como padre Leôncio e


padre Ferreira, vivenciaram e defenderam esses ideais da verdadeira universidade.
Serão homens fora de época. Passada as crises da década de 60, quando enfim as
faculdades assumem seu perfil de Escola de Ensino Superior, os Cursos de
Pedagogia e Filosofia se desligam da faculdade reconhecida pelo governo e se
recolhem à interioridade do claustro e do cortile no Instituto Salesiano de Pedagogia
e Filosofia sob a visão escolástico-tomista. As validações darão legalidade aos
“estudos de seminário” não só dos salesianos, mas também de seminários de
dioceses e de pastores de igrejas evangélicas. Uma parte dos salesianos
professores recolheu-se como professores no Instituto deixando a faculdade. Em
1975 as divergências ideológicas com as irmãs salesianas se radicalizam e surge a
ruptura afetiva e efetiva de mentes, deixando mágoas, ressentimentos e cicatrizes
que não mais se apagarão, assumindo-se definitivamente a separação legal e de
corações, o que já fora feita formalmente pela senhora Nair Fortes Abu-Mehry,
criando-se Instituto Santa Teresa (FATEA).

Com tristeza relembro um período de crise da Faculdade, no momento em


que as duas, a “Masculina” e a”Feminina” pareciam se dividir, sem ter nada
uma com a outra: briga com os padres, as freiras, os alunos,
214
incompreensões, discussões (...) .

A Faculdade nesta década de 1970 começa a se organizar atendendo à demanda


do mercado quando o corpo docente de sacerdotes é substituído por leigos. Há a
preocupação de se contratar, na medida possível, ex-alunos que tivessem, além da
competência profissional, a formação salesiana. O curso de psicologia foi composto
em boa parte com professores oriundos de correntes conflitivas, o que representou a
primeira a primeira grande quebra da unidade da faculdade. “Havia conflitos entre
professores contratados da PUC de Campinas (que seguiam orientação skineriana,
na linha comportamental) com outros professores cuja orientação era rogetriana ou
freudiana (Andrade 15)” 215.

A faculdade de Lorena se consolida apesar da linha tecnicista imposta pelo golpe


militar, continuando numa linha de uma educação libertadora ligada ao pensamento

214
- Ney GUIMARÃES, Apud TOLEDO, 2003, p. 191.
215
- Ibidem, p. 193.
146

de Buga216, Medellín217 e mais tarde Puebla218. Apesar dos clérigos terem sido
retirados da faculdade reconhecida pelo governo para o interior do antigo Instituto de
Filosofia, validando só posteriormente os estudos, muitos deles haviam absorvido
uma mentalidade crítica própria do ensino superior.

Os diretores salesianos dos primeiros tempos da faculdade serão ex-diretores de


escolas de primeiro e segundo grau, sem uma visão universitária, em contraponto,
outros serão egressos destes tempos de confrontos e terão presença marcante na
configuração do Ensino Superior salesiano.

Os salesianos obedientes às orientações do Vaticano procuram assumir as


orientações pós-conciliares e dos documentos de Buga e Medellín, ainda que tendo
de conviver com os constantes ajustes do Estado, como em 1961, com a
promulgação das leis de diretrizes Básicas da Educação Nacional, com a
centralização do ensino de 1964 e com modelo tecnicista de 1968. Preocupam-se
em formar os alunos para o mercado, mas também imbuídos de valores humano-
cristãos e salesianos. A partir da década de 1980 o número de salesianos vai
diminuindo e aquela figura do salesiano sonhada por dom Bosco como “alma do
recreio” no meio dos jovens vai desaparecendo das salas de aulas e do recreio pela
diminuição de pessoal salesiano, sobrecarga de trabalho e mesmo desinteresse em
trabalhar no meio universitário. De fato a ampliação desmedida das obras vai
comprometendo a pedagogia da presença que vai sendo transferida para
funcionários, nem sempre afinados com a pedagogia e os princípios educacionais da
instituição. Para muitos salesianos a nomeação para o trabalho na faculdade é
suportado como obediência religiosa, sendo assumido sem paixão e
comprometimento. O crescimento das obras vai comprometendo na raiz a
pedagogia da presença que passa a ser terceirizada. São novos tempos...

216
- Documento de Buga – fevereiro 1967.
217
- Documento de Medellin 1968.
218
- Documento de Puebla – 1979.
147

2.4.2.2 Faculdade Salesiana de Americana - Humanista e Pedagógica

A presença dos salesianos em Americana219 se deu a partir do empenho de ex-


alunos do Liceu Nossa Senhora Auxiliadora de Campinas220 que residiam nesta
cidade e que se mobilizaram para que a obra salesiana fosse aí implantada e,
através do ex-aluno do liceu de Campinas Eric Marrhiensen, entram em tratativas
com a sede da congregação para esse fim. Houve apoio por parte da prefeitura que
tinha carência de escolas primárias frente ao rápido crescimento da população e do
bispo que conhecia e desejava a presença salesiana na diocese, pois faltavam
sacerdotes para atenderem as diversas colônias de italianos.

Em 16 de outubro de 1949 o trem especial da Companhia Paulista de Estadas de


Ferro deslocava para Americana os superiores maiores da Inspetoria de São Paulo
e seiscentos alunos do Liceu de Campinas com sua banda de Música que
festivamente percorreu as principais ruas da cidade abrilhantando a inauguração da
obra salesiana com a presença de autoridades civis, militares, religiosas e grande
multidão. Começava o Oratório Festivo e uma Escola Primária221. A experiência
escolar durante várias gestões, porém, não foi suficiente para consolidar
economicamente a obra. De 1949 até 1968 passaram por ela cinco diretores 222 sem
conseguirem equilíbrio econômico. Apesar do grande envolvimento com a
comunidade e uma significativa vitalidade, as questões de sobrevivência se
agravavam seriamente. Toma-se, então uma drástica decisão. Em 1968 o padre

219
- Tanto na apresentação do histórico de Americana como de Campinas seremos mais
sucintos, pois essas fundações seguem um caminho menos conflitivo enquanto instituições de
terceiro grau na sua organização interna, ainda que tenham sido fundações que geraram
estremecimentos em nível de congregação religiosa por serem atos de rebeldia de seus diretores.
220
- O Liceu foi fundado em 25 de julho de 1897 pelo empenho do jovem cônego João Batista
Corrêa Nery como Liceu de Artes e Ofícios para atender os jovens órfãos da peste de 1889 que se
abatera sobre a cidade dizimando inúmeras famílias. A partir desta fundação partiu-se para o
internato com escola que atenderia a jovens de toda a região paulista.

221
- DENARDI, Cláudia Bevilaqua; BARBOSA, Silvana Mota. Os Salesianos em Americana:
50 anos tecendo a educação. Campinas: Arte Brasil, 2001, p. 10-27.

222
- 1949-1952 P. Osvaldo de Andrade; 1953-1954 P. Luiz Gonzaga de Oliveira; 1955-1960 P.
José Del Mônano; 1961 P. Fausto Santa Catarina; 1961-1968 P. José Dal Mônaco. 1968-1974 P.
João Baldan. Ibidem, p. 14.
148

João Baldan é nomeado diretor com instruções de encerrar as atividades da casa


caso não conseguisse resolver sua viabilidade econômica. No seu dizer, “tinha como
missão fechar tudo”. Apostava-se na sua nomeação como última cartada nessa obra
fadada ao fracasso.

Em 1970 o novo diretor celebra um convênio com a prefeitura para manter uma
escola municipal onde se aplicaria a pedagogia salesiana com a estrutura e
funcionários mantidos pela cidade. Já no mesmo ano se percebe que o projeto não
daria certo, pois os professores se mostravam resistentes em assumir o estilo de
educação salesiana, sendo o convênio desfeito no fim do ano, com reflexos em 1971
quando a fragilidade financeira é sentida de modo especial. No livro do Conselho da
casa do dia 15 de abril de 1971, após vários arrazoados sobre a saturação do
mercado de escolas de primeiro e segundo grau na cidade de Americana, padre
Baldan conclui com a seguinte reflexão:

Pensa-se então numa obra que possa garantir a vida das demais. Essa
obra seria uma faculdade? Um curso técnico superior? Não sabemos,
precisamos de levantamentos, e de estudos, digo, de pesquisa de
223
mercado .

Uma pesquisa inicial mostra que a cidade está em franco crescimento com a
perspectiva da construção de grande numero de escolas para atender à crescente
população, atraída, sobretudo pela indústria têxtil. Constata-se, porém, não existir
cursos superiores na cidade224. A isso se soma uma política adotada pelo governo
militar que, numa ótica progressista, promove entre o final da década de 60 e início
da década de 70, uma política favorável à autorização de abertura de novas
instituições de ensino superior que dessem demanda a essa procura 225. Deve-se
lembrar, porém, que os salesianos estavam traumatizados com os eventos ocorridos
na faculdade de Lorena no ano de 1968. As greves estudantis em que se havia
perdido o controle da situação consolidavam para muitos a certeza que a
congregação não nascera para atender ao ensino superior. Além disso, sob a
influência dos movimentos eclesiais de base, crescia em outros não só a rejeição ao
ensino superior, mas ampliava-se o questionamento sobre a atuação nas escolas de

223
- Ibidem, p. 68.
224
- Ibidem, p. 89.
225
- Ibidem, p. 93.
149

primeiro e segundo grau para classe média que, entendiam, fugia ao carisma
fundacional. Levar, portanto, o tema da fundação de uma faculdade em Americana
ao Capitulo226 seria ter a questão sepultada para sempre. Padre Baldan assume a
criação da faculdade unilateralmente,227 justificando-se:

Argumentavam muitos salesianos: "nós fomos feitos e criados por dom


Bosco para tomar conta de meninos e da juventude. Mas eu sempre pensei
assim: a juventude é o maior tesouro de um povo, os meninos são a jóia
das famílias, mas o homem vai crescendo, e vai amadurecendo, e vai se
formando e nós precisamos formar homens para o dia de amanhã.
228
“Cabeças que saibam governar como se deve ”.

Por iniciativa pessoal padre Baldan abre o processo de criação da faculdade que é
aprovada em 10 de maio de 1971 pelo Conselho Nacional de Educação, 229 sendo
oficializada no Diário oficial pelo decreto do dia 13 de julho de 1971, 230 com
aprovação das faculdades de Educação, Administração de Empresas e Serviço
Social. A aprovação é objeto de uma festa improvisada no Instituto Dom Bosco para
onde acorrem autoridades e amigos dos salesianos para se confraternizarem pela
conquista indicando o envolvimento da sociedade americanense que entendia que
essa fundação correspondia aos seus anseios como resposta para uma real
demanda dessa comunidade. Da mesma forma o decreto de 12 de julho foi saudado
por um foguetório danado na cidade!231

226
- O “Capítulo” nas congregações religiosas é uma assembléia periódica que toma decisões
com poder de lei e que só podem ser vetadas pelos superiores maiores de Roma. Um veto ao
ingresso neste caso tornaria legalmente inviável qualquer possibilidade de abertura de um curso
superior e certamente essa decisão capitular em São Paulo seria sancionada pelos superiores
maiores de Roma.
227
- Não é objetivo de nossa pesquisa fazer um levantamento dos bastidores deste processo de
aprovação. A historiografia oficial fala da estratégia da fundação de uma Instituição leiga constituída
por personalidades da cidade e que assumiriam a gestão da nova faculdade. O fato é que padre
Baldan tendo tirado férias, ao retornar à Inspetoria havia assumido a condução dessa nova fundação.
Cf. DENARDI et al., 2001, p. 91-100.

228
- Cf. Entrevista a padre Baldan, apud DENARDI et al., op. cit., p. 93.
229
- Ibidem, p. 97.
230
- Ibidem, p. 97 .
231
- Ibidem, p. 27.
150

O surgimento da faculdade salesiana de Americana possui características diferentes


da de Lorena232, pois, ainda que não fosse um projeto oficial da congregação, nasce
com raízes numa sociedade que a quer, assume e dela participa respondendo às
necessidades regionais e ao mercado com envolvimento da igreja, das autoridades
civis, de educadores e empresários. Padre Baldan233, condutor primeiro deste
processo, tem ainda consciência das limitações com que se começa essa frente de
ação salesiana.

os salesianos tinha experiência com o ensino fundamental e com alguns


professores leigos que eram contratados, contudo, agora se deparavam
com outro profissional, o professor universitário, e também com um novo
perfil de aluno, adultos e trabalhadores. Nossa estrutura universitária, o
relacionamento entre os salesianos e os professores era algo novo, pois
requeria uma instância de decisão mista, de leigos e salesianos, para
garantir os rumos do ensino superior. pois poucos percebiam que formar um
ambiente universitário seria algo que provocaria mudanças não só nos
espaços físicos da casa, mas também na mentalidade, dos padres e
cooperadores da obra. E uma mudança desta natureza demanda tempo. O
terreno desconhecido foi sendo explorado com muito trabalho de todos
234
aqueles que queriam ver a faculdade funcionar.

É importante verificar a lucidez do primeiro diretor nessa etapa da fundação. De


certo modo, essa fundação "era sua," por não ser uma opção oficial da congregação,
mas um corajoso ato seu contra a mentalidade da maioria dos salesianos da época
que acreditavam que o único espaço de trabalho deveria ser, dentro de um conceito
de fidelidade ao fundador, junto de adolescentes. Fora ousado, pois tendo recebido
ordens que encerrar as atividades de uma obra, não só não a encerrou, mas a
incrementou, tornando-a maior e ainda acima de tudo e de certo modo, na contra

232
- Na pesquisa realizada fora das produções da historiografia salesiana, nunca se encontrou
até o presente momento nenhuma referência à fundação da Faculdade salesiana de Lorena. Ainda
que tenha sido criada por decreto presidencial e, portanto, histórica e legalmente, devidamente
documentada, sua criação é desconhecida para a maioria dos historiadores da educação no Brasil, o
que reforça a tese do professor Sodero de ser uma “fundação singular”.
233
- Em pesquisa de campo tivemos sinalizações que essa fundação causou certo mal estar em
alguns segmentos da Inspetoria por se ter feito sem anuência explicita do comando central. Nos
bastidores do livro “Os salesianos em Americana: 50 anos de Educação”, houve censura a uma
pretendida homenagem ao padre Baldan porque então alguns ressentimentos ainda estavam vivos.
Aos poucos, porém, vai sendo reconhecido como um visionário e responsável pelo início de um
projeto que representa uma das grandes frentes e referência da presença salesiana no Estado de
São Paulo. Esses bastidores, porém, não serão objeto de nossa pesquisa, mas mereceriam futuras
pesquisas de acontecimentos que hoje só podem ser captados na oralidade das narrações.
234
- Ibidem, p. 99-100.
151

mão da história e tradição da inspetoria, fundando uma faculdade - que se tornaria


mais tarde a sede do Centro Universitário Salesiano. Foi um homem de visão pouco
entendido nessa época. Enquanto no inicio da década de 1970 Lorena procurava
“restaurar a autoridade” fechando-se, Americana iniciava suas atividades em
profunda sinergia com a sociedade onde estava se implantando.
152

2.4.2.3 Faculdade Salesiana de Campinas - Tecnologia e Pesquisa

Em comemoração ao cinqüentenário do Liceu Nossa Senhora Auxiliadora de


Campinas, fundado em 25 de julho de 1897, foi lançada a pedra fundamental de
uma nova obra salesiana na cidade, a Escola salesiana São José. Em 25 de maio
de 1952 fundava-se oficialmente esta obra que foi projetada para ensino da prática
agrícola235. Esse projeto já existia como uma ramificação das atividades do liceu
através da Escola Agrícola Campineira. Em 1950 já se havia construído imponente
complexo para ministrar cursos profissionalizantes e agrícolas a meninos pobres,
órfãos e necessitados236. A evolução dessa obra foi muito rápida adequando-se
rapidamente às modificações da economia produtiva de Campinas, respondendo de
imediato às transformações econômicas da cidade que se tornava importante pólo
industrial e tecnológico da região. Na primeira década de 1950 instalara-se a Escola
Agrícola com o internato e uma escola regular. Na década de 1960, período
politicamente conturbado, sobretudo nos governos de Janio Quadros e João Goulart
quando se discutia a intelectualização do ginásio secundário que se mostrava
inadequado às exigências político-econômicas237 porque, para pessoas de baixa
renda e que deviam se integrar no mercado de trabalho, esse estudo nada
acrescentava, pois saíam da escola com uma cultura inútil. Acreditava-se que a
escola deveria ter um caráter eminentemente social, assumindo o ginásio industrial,
que mantinha seu caráter de cultura geral, permitindo, entretanto uma iniciação em
atividades nos ramos industriais predominantes na região da escola 238. Nos fins dos
anos 60, sensíveis a essas demandas, muitos salesianos da escola partiram para
cursos de aperfeiçoamento e especialização em eletrônica, artes gráficas,
marcenaria, mecânica de máquinas e tudo o que se mostrasse tecnologicamente
necessário para responder às rápidas mudanças industriais da região. As oficinas
são rapidamente modernizadas com a criação do Ginásio Industrial. Segundo a tese
de doutorado de Maria de Lourdes Pinto de Almeida, o pioneirismo da Escola São

235
- Manoel ISAÚ, Manoel. Com Dom Bosco e com os Tempos. Campinas: Escola Salesiana
São José. Campinas: Arte Brasil, 2003, p. 32.

236
- Ibidem, p. 62.
237
- Ibidem, p. 86.
238
- Ibidem, p. 88 – Esta política assumida pela escola estava de acordo com o decreto 50.942
de 25 de abril de 1961.
153

José antecedia ao da UNICAMP239. Neste momento os contatos internacionais em


busca de tecnologia e recursos passaram a ser uma das marcas da escola que
perdura até hoje. Avançou-se para tudo que estivesse na vanguarda da tecnologia
da época: Eletrônica Geral, Áudio e Tele-comunicações, Metrologia Eletrônica,
Eletrônica Industrial e Computação Digital. Ao mesmo tempo vão sendo desativados
com rapidez cursos que deixavam de ter interesse no mercado, como por exemplo,
o de Artes Gráficas, que é transferido para a Editora salesiana no bairro da Mooca
em São Paulo. Intensificavam-se as parcerias internacionais, especialmente com a
Misereor Alemã e com grandes empresas multinacionais implantadas ou em fase de
implantação na região que, em parceria com a escola absorvem a mão de obra
especializada formada por ela. A escola assume um perfil eminentemente
profissionalizante tornando-se também responsável pela formação de salesianos-
irmãos que na congregação são religiosos não sacerdotes, que se tornam
profissionais qualificados e trabalham nas oficinas como educadores e mestres de
oficio240. A escola São José passa a ser uma referência na formação profissional na
congregação salesiana para toda a América e África.

Na década de 70 a Escola São José ingressa no ramo da eletrônica, respondendo


ao modelo tecnicista do governo golpista. O Brasil precisava neste período formar
cinco mil técnicos por ano e formava mil. A região Metropolitana de Campinas vê
ameaçado seu progresso pela falta de técnicos para sua expansão, estando este

239
- Ibidem, nota 93, p. 100.
240
- A compreensão desta vocação religiosa é de difícil entendimento no sentido como foi
elaborada por João Bosco, porque revolucionária para o seu tempo. No seu conceito o que existe é a
vocação salesiana, isto é, aquelas pessoas que se sentem chamadas por Deus para educar a
juventude com o sistema preventivo baseado na Razão, Religião e Bondade. Podem ser leigos,
casados e, até... padres. O Vaticano para aprovar sua obra engessou-a dentro dos padrões de outras
congregações. No século XIX ele, apesar de sua formação medieval, falava em “padres em mangas
de camisa”. Assim dentro da moderna Congregação salesiana existem padres e irmãos. Por
imposição da igreja o diretor religioso de uma comunidade sempre deve ser um padre. Mas todas as
outras funções podem ser exercidas por irmãos leigos como diretores de escolas, universidades,
obras sociais, economatos, etc, tendo inclusive sob sua jurisdição sacerdotes. No inicio das suas
obras sociais João Bosco contratou profissionais para ensinar aos aprendizes. Percebeu, porém, que
esses não ensinavam os segredos da profissão, pois teriam nos seus próprios alunos futuros
concorrentes. Muitos jovens entraram na congregação sem o desejo de serem padres, mas dispostos
a se consagrem na vida religiosa se profissionalizando. Esse é o perfil definido do chamado “irmão
salesiano”: um religioso consagrado por votos e que é um profissional qualificado se fazendo
presente nas oficinas como mestre de ofício e educador. Sua atuação modernamente se estende a
todos os campos de atuação salesiana.
154

profissional no meio termo entre o engenheiro e o trabalhador qualificado241. Os


técnicos formados na região de Campinas não conseguiam sequer atender à
demanda no campo da eletrônica e da computação das empresas IBM e Companhia
telefônica brasileira que ofereciam boa remuneração. Por se tornar um importante
pólo de atração de empresas de tecnologia de ponta a região metropolitana da
cidade já era denominada de a região do silício brasileira.

A direção da escola possui sensibilidade a essa exigência de mercado e age com


rapidez. Em convênio com a MISEREOR242 obtém-se moderno equipamento da
Alemanha e de imediato instala-se a ETEC243 com apoio do Banco Itaú e a presença
dos primeiros técnicos244 da Alemanha que se hospedavam na própria comunidade
salesiana. São celebradas parcerias com grandes multinacionais de eletrônica
instaladas no Brasil com urgência de mão de obra especializada, além de diversos
convênios com empresas do Vale do Silício nos Estados Unidos. O avanço e
sucesso da ETEC se tornam de tal nível que muitas multinacionais, agora parceiras
da escola, a pressionam para que abra cursos superiores que possam melhor
atender às crescentes demandas de mercado, já que apenas tecnólogos não
atendem a todas as necessidades destas empresas em crescente necessidade de
mão de obra cada vez mais especializada. Começam em nível Inspetorial as
discussões da necessidade da implantação de uma faculdade de tecnologia. A
resistência é total. Além do Ensino superior não ser contemplado no carisma
salesiano e já se ter duas faculdades, Lorena e Americana, os salesianos não
possuíam experiência na área tecnológica em nível superior, além do que muitos
entendiam que a área de atuação da congregação era na dimensão humanística e
não tecnológica. Os salesianos que dirigem a escola, porém, vivenciam o problema

241
- Ibidem, p. 116 et seq.
242
- A MISEREOR é uma organização católica alemã que capta recursos no período da
quaresma com a finalidade de ajudar instituições ligadas à igreja católica no campo social. Existe
movimento similar que capta recursos no tempo do advento e cujos recursos são aplicados em obras
especificamente religiosas, chamando-se essa organização de ADVENIAT.
243
- Escola Técnica de Campinas - Fundada em Primeiro de março de 1972.
244
- Era contra os regulamentos da congregação salesiana que não salesianos se
hospedassem e convivessem na comunidade religiosa. A premência, porém, em implantar e
implementar novos programas da ETEC eram considerados de tal urgência, que essas normas
foram decuradas. Os primeiros a serem hospedados foram Walter Gotzemberger mecânico de rádio
e Christoph Shween engenheiro eletrotécnico. Cf. ISAÚ,. 2003, p. 118, nota 107.
155

mais de perto e conseguem uma primeira e tímida vitória. O Capitulo Inspetorial de


1975 admitiu ao menos estudar o tema. Superiores de Roma, porém, acreditam não
ser o momento de se tratar disto e travam essas pretensões:

Em 1975, o Capítulo Inspetorial, art. 48, aprovava o estudo da viabilidade da


implantação dos cursos superiores da Escola Salesiana São José. Mas por
ocasião da sua visita extraordinária, o padre Edmundo Vecchi dava parecer
desfavorável, aduzindo o seguinte: “não é o caso no momento de pensar
245
em faculdade, ao menos por nossa conta”.

O diretor padre Juvenal Zonta não se dá por vencido. Os estudos continuam. No dia
18 de abril de 1977 é realizada uma reunião com o professor Sérgio Zanilato que
apresenta um longo relatório onde apresenta situações favoráveis.

(...) Nesta perspectiva, quer-me parecer que a Escola Salesiana São José
está situada numa região das mais propícias uma vez que inúmeras são as
indústrias e empresas de Campinas e região circundante que diariamente
estão a solicitar técnicos. Faz-se conveniente lembrar aqui que nem a
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), nem a Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (PUCC), possuem ainda muita iniciativa
ou atividade relativa a cursos superiores de curta duração (a não ser na
área da Tecnologia de alimentos), por falta de espaço físico ou falta de
instalações adequadas e de material específico a ser utilizado nesses
cursos. (...) Quanto às instalações devo afirmar que, dentro de todas as
escolas que visitei em inspeções pelo MEC, seguramente colocaria estas no
grupo das melhores. À qualidade das instalações acresce o corpo docente
especializado em eletrônica e telecomunicações, bem como o prestígio que
a escola goza na região de Campinas. “Tudo isso me leva a crer que a
iniciativa de instalar curso de alto nível superior é altamente viável e apenas
com gastos relativamente pequenos poder-se-ia aproveitar o equipamento
246
já existente e atender a enorme clientela que aspira e tem solicitado ”.

São realizadas conferências na ETEC ainda neste ano com diretores de


universidades e pessoal ligado à gestão de indústrias sobre a necessidade do curso
superior de tecnologia247. Neste momento o diretor da Escola São José não titubeia:
está certo, moralmente, que esse é o caminho e parte para a solicitação unilateral da
aprovação da faculdade o que acontece no dia 26 de fevereiro de 1980 quando, o
Conselho Inspetorial se mostra surpreso ao tomar conhecimento desta aprovação,

245
- Ibidem, p. 130.
246
- Ibidem, p. 131.
247
- Ibidem, p. 131-133.
156

pedindo a presença do diretor da Escola para obter informações oficiais do fato248.


Esta faculdade será denominada FASTEC249, sendo uma continuidade do curso de
tecnologia da ETEC, e tendo sua base na computação e robótica. Esse estilo de
Faculdade deixava completamente perplexos os salesianos mais conservadores que
viam na formação humanista e não na tecnológica o espaço da ação de educadores.
Desta vez a resistência à implantação da faculdade foi forte. Nem mesmo o
conselho inspetorial conseguia unanimidade. Além dos altos custos, considerava-se
o problema pastoral de como passar os valores salesianos num espaço voltado
especificamente para a tecnologia. Passaram-se sete anos da aprovação e só sob a
direção do padre Vicente Moretti Guedes, a conselho de alguns salesianos,
instalaram-se os cursos, após se verificar que os mesmos não haviam caducado,
porque baixados via-decreto presidencial estando a autorização ainda válida250.
Implantava-se a terceira faculdade salesiana da Inspetoria Salesiana, sendo uma
continuidade natural da ETEC, a FASTEC que, apenas plenificou os convênios e
parcerias mantidas em nível nacional e internacional.

248
- Ibidem, p. 173.
249
- Faculdade Salesiana de Tecnologia
250
- Ibdem p. 175
157

2.5 O Ensino Salesiano no Brasil em Busca de identidade

Por décadas os salesianos do Estado de São Paulo adquiriram reconhecimento e


respeitabilidade por suas obras sociais e colégios. Este prestígio atinge de imediato
as três faculdades quando de suas fundações porque associadas aos colégios onde
passaram a funcionar.

João Bosco simplificara seus objetivos educacionais no mote: formar bons cristãos e
honestos cidadãos. As instituições educacionais salesianas possuíam um ideário
filosófico-cristão que norteava inequivocamente sua ação educativa. Quando se
tratou da transposição da prática pedagógica das escolas e obras sociais para o
ensino superior, isto ensejou desencontros e equívocos, quando nem sempre se
adequou conteúdos e metodologias praticadas para adolescentes para o
atendimento de jovens e adultos.

A implantação das faculdades, especialmente a de Lorena, se fez a partir de sua


origem confessional católica e seminarística, quando não se favoreceu inicialmente
a abertura da academia para a pluralidade da sociedade nas dimensões política,
social e religiosa. Deve-se entender que homens e mulheres que deram início a
essa incursão no ensino superior eram formados em critérios de matriz medieval
com horizontes fechados em nível de diálogo com o mundo externo e com outras
confissões religiosas. Apesar do movimento salesiano ter sido intrumentralizado
como uma das pontas de lança no fortalecimento do papado no processo de
romanização do século XIX, estes homens e mulheres subjetivamente tinham
consciência que consagraram suas vidas a um projeto religioso longe de estratégias
políticas e de fortes confrontos com visões não cristãs, ao menos nos seus nos
ambientes fechados onde atuavam e que estavam marcados pela cultura católica.
Acreditavam terem sido chamados por Deus pela vocação religiosa a educar a
juventude pela catequese. Entendiam ainda que pela vocação salesiana deveriam
imitar Dom Bosco na doação das próprias energias físicas e espirituais em favor da
juventude pobre. O ensino superior voltado para classes sociais
financeiramente aquinhoadas não fazia parte dos seus horizontes. O foco posto na
juventude pobre e marginalizada parecia-lhes como única forma de ser salesianos.
158

A incursão no ensino superior parecia trair os projetos do fundador, especialmente


quando esta escolha não foi feita pela congregação, mas uma aventura de um ou
outro salesiano mais afoito. Inicialmente não se pensa sequem em discutir a
identidade dos salesianos no ensino superior, mas sim sua presença neste
ambiente. Para alguns a crise que viveu Lorena em 1968 era o sinal de que os
salesianos não deveriam estar presentes no ensino superior, pois não tinham sido
fundados para essa finalidade.

Ao contrário alguns sócios defenderam e defendem a presença dos salesianos no


ensino superior acreditando que a congregação deve responder aos desafios dos
tempos sem abrir mão de sua identidade. A faculdade no campo do conhecimento
filosófico-religioso deve ser propositiva251 enquanto portadora duma mundividência
própria e tendo uma proposta de mundo, de homem, de sociedade e de sentido da
vida. Erige-se em instituição de ensino com a proposta de sinalizar o cristianismo
como uma plataforma de diálogo com a sociedade. Acreditam que a academia é o
espaço de acrisolamento dos ideais fundacionais salesianos que devem ser
apresentados, discutidos, questionados, aprofundados e confrontados com a
diversidade dos saberes. Sabem dos perigos que vivem instituições confessionais
quando não se apresentam com sua identidade bem definida e delineada: ela não
representará nada ou fomentará a criação de efeitos cenográficos ilusórios com
momentos pirotécnicos que quanto mais parecem verdadeiros, mais fomentam o
simulacro.

251
- Este princípio aplica-se não só a instituições confessionais, mas também a comunitárias e
àquelas que se erigem sob determinada escola filosófica, seja ela marxista, tomista, positivista, etc. É
a lógica da matriz Fundacional de uma instituição de ensino superior. O importante é que ela seja
espaço da pluralidade e uma instância de diálogo da corrente mantenedora com as demais correntes.
159

2.5.1 Dúvidas sobre a eficiência e sentido do ensino confessional no Ensino


Superior

Um dos equívocos mais constantes na história das fundações é quando se confunde


fidelidade às ações do fundador com a fidelidade ao seu espírito e aos seus critérios.
Nesse erro incorreram os salesianos dos primeiros tempos que, preocupados que
estavam em ser fiéis ao fundador, respeitavam nos trópicos horários, hábitos e
costumes das comunidades européias. O tempo os fez descobrir que a verdadeira
fidelidade não era reproduzir as ações e atitudes de João Bosco, mas se apossar do
seu espírito, entendendo que foi um homem de vanguarda dando respostas aos
desafios do seu tempo, sendo capaz de ir além de sua formação campesina
medieval para a lógica de mundo urbano e moderno. Salesianos do período pós-
conciliar captaram esse espírito quando assumiram a expressão: com Dom Bosco e
com os tempos.

Houve e ainda há rejeição à presença salesiana no ensino superior. Muitos


segmentos da congregação contestaram e ainda contestam essa presença, tanto da
Igreja, como dos salesianos na gestão e propriedade de Instituições de Ensino
Superior. Os argumentos oscilam entre as dimensões carismáticas da congregação,
que deveria se voltar para a promoção social e evangelização dos jovens pobres,
até aos aspectos da descristianização da sociedade que não mais comportaria uma
ação religiosa no campo da educação formal. Essas teses estariam em boa parte
embasadas no descrédito da eficiência e incidência do pensamento cristão e católico
no meio intelectual. Esses debates se prolongam polarizando posições.

Alguns se apóiam na crença que as Instituições salesianas de Ensino Superior não


conseguem mostrar sua identidade de forma explicita e, portanto, se tornam
incapazes de conferir aos seus egressos um perfil salesiano como expressão dos
princípios e valores que emanam dessa pedagogia. Acreditam que o objetivo e o
projeto de educação salesiana de jovens das classes populares numa obra social,
lhes conferiria elementos suficientes de formação para que, como egressos,
levassem valores apreendidos por essa educação para a vida pessoal e profissional.
Mas, quando se trata de aplicar a pedagogia salesiana para alunos do ensino
superior, ela se tem mostrado insuficiente, pois muitos dos egressos quando
ocupam espaços de importância na sociedade, na economia ou educação, por
160

exemplo, se são reconhecidos como competentes no exercício de suas profissões,


nem sempre se vislumbra neles e na sua formação humana as marcas dos valores
que a educação salesiana pretendia imprimir em suas vidas. Num conceito de custo-
benefício acreditam que os resultados são pífios.

João Bosco sintetizara o objetivo de suas obras numa singela frase: Formar bons
cristãos e honestos cidadãos. Os que contestam a presença salesiana no ensino
superior argumentam que, se ela pôde ser acolhida como significativa na
configuração da vida de adolescentes, torna-se, porém, insuficiente quando se trata
de jovens e adultos. A Educação superior salesiana tem por escopo formar humana
e profissionalmente pessoas que sejam significantes na sociedade. Para que essa
formação humanística e salesiana aconteça supõe-se que haja estreita e orgânica
interação entre projeto curricular, o ambiente acadêmico e os valores salesianos que
efetivem esses objetivos. E isso é quase impossível de ser gerido numa
universidade pela sua própria natureza plural enquanto acolhe diversas correntes e
tendências de pensamento e a presença de educadores salesianos não tem sido
significante.

Para muitos críticos do ensino superior salesiano, a globalização não é só um


fenômeno cultural, mas também econômico que atinge a educação pensada como
negócio rentável para quem a vende e investimento para quem a compra, onde não
mais contaria a identidade religiosa, política ou social, mas apenas os dividendos
que com ela se possa auferir num conceito essencialmente mercantil. As expressões
religiosas tradicionais e históricas, ao perder seguidores, perderiam na mesma
proporção espaço para formas mais ecléticas de espiritualidade, à moda “self-
service” que atenderiam aos anseios imediatos do espírito. Portanto, não teria
sentido impor um ensino confessional sob uma bandeira quando a grande maioria
dos consumidores da educação não seriam “consumidores” de religiões
confessionais e sim de uma espiritualidade eclética e genérica que não se prende
aos limites do dogma e aos códigos morais de conduta proposto pelas religiões, mas
às experiências momentâneas e tópicas que se apóiam na crença de um divino cada
vez mais compreendido como energia cósmica ou, numa visão mais simples e
direta, na negação total do transcendente, ao se afirmar a matéria como única
realidade.
161

Outros ainda afirmam que as universidades católicas teriam perdido seu espaço e
finalidade, seja pela laicização da sociedade frente ao surgimento de uma sociedade
pós-cristã, seja pela incapacidade do cristianismo de entabular um diálogo fecundo
com a modernidade pela falta de interlocutores católicos competentes. A pluralidade
cultural ofuscaria propostas educacionais fechadas, acreditando que a dimensão
religiosa pertenceria nesta nova sociedade ao âmbito privado.

Consideram ainda que as bases da pedagogia salesiana estariam assentadas numa


espiritualidade de origem medieval, onde se sublinha o respeito pela Igreja e pelo
papado, com conceitos que não mais fariam parte da mentalidade do homem
moderno, como graça e pecado, salvação e perdição. Ainda que existam alguns
conceitos como bondade e espírito de família simpáticos ao homem de hoje, a
matriz católica que deu origem ao pensamento salesiano, porém, não mais se
sustentaria no mundo contemporâneo.

Existem, enfim, contestações à simples presença salesiana no ambiente do Ensino


superior, quando os críticos mais radicais argumentam que a congregação teve na
sua origem e finalidade de evangelizar adolescentes das classes populares,
devendo-se simplesmente, como pleito de respeito ao fundador, retornar às
periferias e aos pobres deixando o espaço elitista e infecundo, no sentido religioso,
das escolas de ensino superior.

Essas afirmações dificilmente são verbalizadas numa escola confessional. Mas


podem estar implícitas no agir e no viver do seu pessoal, salesiano ou não, podendo
permear as relações e atitudes, sendo um clima que se respira, um “sujeito” oculto
da ação, quando uma instituição faz de conta ser o que de fato não é, confessional
e religiosa. A presença de mito, rito e símbolos institucionais poderiam mascarar
elementos nos quais não se acredita, se constituindo, portanto, em simulacro, não
só para funcionários, mas mesmo para religiosos que acreditariam que tudo estaria
funcionando como o fundador queria.

Em contrapartida há uma linha otimista de salesianos que consideram que um


elemento que favorece apriori a pedagogia salesiana é que a residência dos
salesianos está dentro dos ambientes físicos da faculdade garantindo uma
presença constante, um dos elementos essenciais da educação salesiana.
162

Acreditam que se na universidade essa presença for alegre, participativa, paterna,


bondosa e integrada com os alunos ela, por si só, já passaria os valores salesianos.

Nestes embates pró e contra a presença da Congregação Salesiana no Ensino


Superior as posições assumidas tendem a ser superficiais com análises periféricas
que carecem de embasamentos profundos, seja no ataque, seja na defesa.

Os educadores de todos os tempos sempre tiveram que propor valores à sociedade


acima do nível que em esta estava, fosse ele político, econômico, social ou religioso.
A educação tem por finalidade não apenas manter, mas propor novos e maiores
valores, pois educar é sempre ir além de onde se está propondo ideais e projetos
para além do cotidiano dos educandos e da sociedade onde vivem. As grandes
invenções não nasceram do ócio de seus inventores, mas foram respostas a
desafios que se colocaram e que exigiram soluções.

Os salesianos que entendem o ensino superior como um problema que deve ser
deletado, parecem se distanciar do espírito do fundador. O surfista nunca luta contra
o oceano, mas enfrenta cada onda no momento em que ela se delineia, cresce e
ameaça. Para ele nenhuma derrota ou vitória é definitiva. Novas ondas se formarão
para desafiá-lo, para derrotá-lo ou para serem vencidas. E o mar, manso ou bravio,
seguirá seu inexorável destino de “problematizar” a vida do surfista, que, por ser
surfista, sempre há de querer as maiores ondas, e nunca as tranqüilas águas das
tépidas baías. Só existirão grandes surfistas se existirem grandes ondas. Só
existirão grandes educadores se existirem grandes desafios, porque só esses
elementos desestabilizadores, não importando se filosóficos, sociais, religioso ou
morais permitirão o surgimento de pensadores que os enfrentem com criação de
novas respostas criativas e inventivas.

O Centro UNISAL pode ser visto na ótica da pedagogia salesiana, sob dois ângulos:
um problema ou um desafio. A resposta a essa questão depender do olhar. Se João
Bosco tivesse olhando a nascente urbe industrial como um problema, teria tomado
sua inchada e sido um digno camponês do Piemonte como foram seus irmãos.
Deitou, porém, a inchada na terra e escolheu fazer da urbe um desafio com todos os
riscos que isso comportava. Foi uma opção.
163

2.5.2 Uma reflexão sobre o Ensino Superior Salesiano em nível mundial – As


IUS

No século XXI quando a sede da congregação traça as primeiras elaborações para a


educação de universitários salesianos em nível universal, o que não tinha sido feito
até então, elabora-se uma definição que pontua a identidade das IUS: Instituições de
Ensino Superior, de Inspiração Cristã, Caráter Católico e Índole salesiana252.

Essa declaração de identidade não é em si algo novo, pois ainda que tenham sido
fundações realizadas aleatoriamente, foram sempre iluminadas pela cosmovisão do
fundador João Bosco. A tradução e transposição de sua pedagogia, porém, para o
mundo universitário tem sido complexo frente a esse novo público. Bosco não
cogitou a universidade253, pois no século XIX respondia aos desafios imediatos do
seu tempo procurando estar alinhado com os problemas de então que eram atender
às necessidades de profissionalização de jovens pobres e tirá-los dos perigos de
degradação moral e da criminalidade. Procurou intervir na mentalidade do seu
tempo com a divulgação de suas idéias educacionais254 e de sua pedagogia através
da imprensa, então um meio moderno e avançado de comunicação e, quando
grupos opositores tentaram impedi-lo de realizar essas publicações, não teve

252
- Cf. IUS, op. cit., archivio n. 14.
253
As fundações de faculdades em muitos casos na congregação foram ações isoladas de
pessoas ou de comunidades não tinha jurisdição para tal. Isso fica explicito numa entrevista ao
Boletim Salesiano Espanhol do padre Garulo que é questionado se as universidades salesianas
atuais seriam mais fruto de instituições salesianas individuais ou derivariam de projetos assumidos
pelas inspetorias? Ele responde:

Ambas as coisas. Contudo eu inclinaria a balança um pouco mais no sentido da primeira. O


que não significa nada de mal ou deficiência. Ao contrário. A leitura que faço do fenômeno expressa
que a vida é mais forte que os planejamentos, um sinal de que há salesianos cuja fidelidade à
vocação despertou o olfato ou a sensibilidade para a descoberta de novos cenários nos quais se
requer a presença desses salesianos, sua companhia, seus serviços. A industrialização, os
planejamentos vêm quase sempre depois. E bem-vindos sejam! Desse modo, o serviço melhora e
passa a ser compartilhado por maior número de pessoas, consolidando com maior sucesso.
Cf.ius.edinf.com/portal/images/2assembly/chronicle_por.pdf
254
- Já no século XIX e inicio do século a educação é tratada não apenas como prática, mas
também como teoria, como elaboração acadêmica. Não podemos ignorar, à guisa de exemplo, que
no Brasil a Educação foi muito teorizada, sobretudo na década de 1920 com as teses da Escola Nova
e do positivismo. Os pioneiros da Educação – por mais variadas que fossem suas matizes – não só
defenderam idéias – mas atuaram de forma incisiva no processo educacional do Brasil República.
Nesta década em que a Igreja está numa verdadeira cruzada em defesa da educação católica, os
salesianos, no Brasil, não divulgam suas idéias educacionais de forma incisiva, se bem que já em
1906 fossem publicadas as Leituras Catholicas da Typographia salesiana com o Título “Moral em
Exemplos”. Esse tipo livros mensais com contos e ensaios teve grande aceitação no Brasil, sobretudo
nos internatos.
164

dúvidas em construir gráficas255, montar escolas profissionais de edição e até


mesmo uma fábrica de papel impedindo que a divulgação de suas idéias
educacionais fossem truncadas por seus opositores.

Em 152 anos os salesianos se tornaram a segunda maior congregação masculina


da Igreja Católica presente em mais de 120 países com mais de 18 mil membros
consagrados no ramo masculino. Gravitam ao redor da congregação mais de 27
instituições denominadas como da Família Salesiana que, juridicamente
independentes, seguem o projeto educacional e pedagógico elaborada por João
Bosco. Reconhece o Reitor Mor256 e o seu Conselho como intérpretes e guardiães
do ideário do fundador e estes validam a pertença destes grupos ao vasto
movimento nascido sob a inspiração de Dom Bosco.

Em nível mundial as escolas de ensino superior foram surgindo, como já foi


afirmado, aleatoriamente por circunstâncias diversas, jamais, porém, fruto de um
projeto orgânico. Ao serem fundadas eram assumidas como “mais” uma frente de
ação. Na medida em que iam ganhando importância, as inspetorias lhes davam
maior atenção e, concomitantemente, sofriam contestações também maiores vistas
como um corpo estranho257, pois, nas constituições da congregação não existia uma
única linha referente a essa frente de trabalho.

255
- Essa tradição editorial se projetou em suas obras pelo mundo. Na Inspetoria de São Paulo
foi constituída a Editora Salesiana que, além de escola profissional com seu parque Gráfico, garante
também a produção das obras salesianas para todo o Brasil. Se isso de um lado é uma vantagem, de
outro gera certa endogenia que dificulta a divulgação dessas obras, sobretudo, as pedagógicas, para
além das fronteiras e dos ambientes salesianos.
256
- O Reitor Mor é o sucessor direto de Dom Bosco e é considerado como o interprete e o
centro de unidade da congregação cabendo-lhe garantir a fidelidade carismática de todos os ramos
da Família salesiana aos princípios do fundador. É eleito pelo Capitulo Mundial por um período de
seis anos, podendo ser reconduzido ao cargo por mais uma vez.
257
Um problema de fundo, porém se coloca de forma contundente. A maioria dos salesianos
não se entende vocacionados para o trabalho universitário. Alguns até consideram que a incursão
neste campo é uma infidelidade ao carisma do fundador que direcionou sua vida e suas obras para
os adolescentes e jovens empobrecidos, sobretudo nas obas sociais. O forte dos salesianos seriam
o colégio, o pátio e o oratório. A isso Garulo responde: “Os salesianos nasceram em Valdocco, a
periferia pobre de Turim que começava a se industrializar, e não no recinto universitário da Sorbonne
em Paris, como os jesuítas. Isso define uma vocação, uma marca sem qualquer dúvida. Por
fidelidade ao carisma de suas origens, a missão salesiana se desenvolveu tradicionalmente – creio
que com competência e sucesso - em lugares e ambientes pobres. As grandes virtudes de Dom
Bosco, porém, são a flexibilidade e a versatilidade em função da presença dos jovens, objeto de
nossa consagração. Os jovens “pobres e necessitados” e os setores populares da sociedade
continuam a ser o campo da missão salesiana. Contudo, esses mesmos estratos sociais evoluíram e
165

O primeiro encontro mundial para refletir sobre a identidade do ensino salesiano de


terceiro grau foi realizado em Brasília em julho 1995 sob a presidência do vigário 258
do Reitor Mor padre Luc Van Loy com salesianos representantes das principais
Instituições Superiores de todos os continentes. Funda-se então um organismo
internacional para congregar de forma colegiada todas as Instituições Universitárias
Salesianas (IUS). Nesse encontro são traçados os rumos a serem assumidos pelo
ensino superior salesiano. O ano de 1997 é considerado como um divisor de águas,
quando o Reitor Mor declara que o ensino superior passa a fazer parte da Missão
salesiana259,deixando de ser considerado um corpo estranho na Congregação. Em
julho de 1998 realiza-se o segundo encontro das IUS em Roma com todos os
reitores e diretores das faculdades e universidades, o Conselho Mundial da
Congregação e os Inspetores em cuja jurisdição houvesse escolas de ensino
superior para um diagnóstico da ação salesiana nestas instituições e para definir as
políticas da presença salesiana no ensino superior. Em 8 de dezembro de 1998 é
nomeado o padre espanhol prof. Dr. Carlos Garulo para a direção geral das IUS.
Entre os anos de 1999 e 2000 foi constituída uma comissão para definir um
programa comum aplicável em nível mundial. Em junho de 2000 e fevereiro de 2001
foram feitos estudos sobre o potencial de nossa sinergia nas cidades de Quito,
Benediktbeum e Bangkok, sendo posteriormente apresentadas as provas dos
documentos a fim de que fossem lidas, repensadas e debatidas dentro das
comunidades acadêmicas para melhorar-lhes as propostas. Finalmente no dia 07 de
janeiro de 2003 O Reitor-Mor e o seu Conselho aprovaram os documentos
“Identidade das Instituições Salesianas de Educação Superior” (IUS) e as “Políticas
para a presença salesiana na educação superior, 2003-2008”, a fim de alcançar
essa identidade ainda ideal260.

Estes documentos traçam as linhas gerais de como a educação e a pedagogia


salesiana devem ser aplicadas no ensino superior, já que até então o que se fizera

são distintos hoje do que eram em tempos anteriores, e é evidente que têm necessidade de novos
serviços. A entrada dos salesianos no campo universitário é um sinal dessa versatilidade posta a
serviço dos destinatários de sempre. Cf.ius.edinf.com/portal/images/2assembly/chronicle_por.pdf
258
- Equivaleria a um vice-reitor mor, mas sem direito a sucessão.
259
- Cf. IUS, op. cit., archivio n. 06.
260
- Ibidem.
166

fora uma transposição de práticas educacionais elaboradas para atender a


adolescentes e que foram artificialmente adaptadas para adultos. A nota final é
muita assertiva ao afirmar uma “identidade ideal”, pois se trata de uma nova cultura
a ser implantada no mundo universitário salesiano, marcado pela dinâmica e desafio
da modernidade e pós-modernidade, num mundo globalizado. Estes documentos
são antes de tudo uma “carta de intenções”, ou como foi definido, Carta de
Navegação que aponta um norte para as instituições superiores salesianas a partir
dos princípios filosófico-pedagógicos de João Bosco.

O Grande mérito das IUS foi a elaboração teórica em nível acadêmico dos princípios
e referenciais que definem uma instituição salesiana de Ensino Superior. Essa
identidade, se bem definida, somada aos seus objetivos e práticas permitirá que
essas instituições mantenham a fidelidade ao fundador e ao mesmo tempo
consigam delinear um perfil salesiano adequado para o ensino superior.
167

2.5.3 O UNISAL – à luz dos princípios emanados das IUS revendo sua história

Passados 50 anos da fundação das Faculdades salesianas no Estado de São Paulo,


hoje Centro Universitário, com pretensões a ser universidade, cabe auferir se os
ideais fundacionais construídos no século XIX são conhecidos, se foram adequados
ao século XXI e se são hoje diferencial na vida dos universitários desta instituição.

Para o Centro UNISAL os documentos Identidade das Instituições Salesianas de


Ensino Superior e as Políticas para a presença salesiana no Ensino Superior
ofereceram, de imediato, respostas e orientação para a aço educativa e pedagógica
dos salesianos de São Paulo junto desta nova frente de ação. As fundir as unidades
de Americana, Campinas e Lorena, inicialmente em faculdades integradas e
posteriormente em Centro Universitário, Inspetoria procurou dar organicidade
acadêmica e ideológica a essas fundações. Coincidentemente esta preocupação em
nível local era a mesma em nível mundial. O Centro da Congregação buscava sua
intervenção configurar a identidade salesiana do ensino superior de forma
inequívoca.

A partir de uma releitura crítica da História do Ensino Superior salesiano em São


Paulo tendo como parâmetro de avaliação os referencias do carisma salesiano
numa ótica agora objetiva, será possível perceber luzes e sombras, encontros e
desencontros, acertos e desacertos na implantação das três unidades.

Parte-se para se reconstituir a história do ensino superior salesiano da Inspetorial de


São Paulo, procurando verificar se as metas da pedagogia salesiana teriam sido
alcançadas nas práticas pedagógicas até então vivenciadas.

Constata-se inicialmente, como já foi exposto, que o ingresso dos salesianos no


ensino superior não fora um projeto orquestrado a partir de um projeto global, mas
de eventos isolados nascidos de circunstâncias diversas e, não raras vezes, por
iniciativas de pequenas comunidades e mesmo de indivíduos. Não houvera em
nível de salesianidade a elaboração de princípios norteadores específicos para o
ensino superior, mas a simples transposição para o contexto universitário de práticas
pedagógicas e pastorais utilizadas com adolescentes. O sucesso dessa
transposição e adaptação dependia muito mais do engenho e arte do educador do
que de um projeto com objetivos claros. De fato muitos salesianos bem
168

intencionados nem sempre entendiam que os destinatários do ensino superior


possuíam exigências diferenciadas e mais maduras que adolescentes. Faltava
assim um projeto orgânico.

É oportuno retornar de forma sintética e unificada às situações históricas que


ensejaram a organização do UNISAL como hoje está configurado.

A Faculdade Salesiana de Lorena foi um “presente” inesperado do governo


constituindo-se numa unidade “singular” de ensino superior onde o que prevalecia
era o seminário. O fato de Lorena não se ter preparado para ser uma faculdade fez
com que se perdesse uma oportunidade impar de se constituir numa verdadeira
instituição de Ensino superior já que seu primeiro diretor, Padre Leôncio261, trazia
consigo uma vasta experiência, tendo sido o fundador da faculdade salesiana de
Pedagogia de Roma onde teve que convencer a setores da Cúria Romana que a
Pedagogia se constituía numa Ciência. Sua ação junto da faculdade salesiana de
Lorena, porém, foi amortecida, porque a mesma estava atrelada ao seminário.

A Faculdade Salesiana de Americana se nasceu como resposta a uma crise


econômica da obra, ao mesmo tempo, foi a que melhor se configurou como uma
faculdade, inclusive com seu diretor procurando ter prudência em ser fiel ao projeto
educacional salesiano e tendo consciência de que pisava em um solo novo no qual
não era especialista. Seu nascimento envolveu a sociedade americanense que via
nessa instituição de ensino superior resposta às suas necessidades.

261
- Padre Leôncio nasceu no Recife a 6 de dezembro de 1887, filho de tradicional família
pernambucana, descendente de senhores de engenho. Em 1902 estudou no colégio salesiano do
Recife. Tornou-se salesiano em 1910, indo em 1913 para Turim onde concluiu seus estudos
teológicos. De 1917 a 1937 atuou no nordeste como professor e diretor de colégios salesianos,
sendo que em 32 fundou o Centro de Cultura Religiosa e Pedagógico-didática. Em 37 foi transferido
para o Instituto teológico Pio XI em São Paulo onde se tornou professor. Neste ano trabalha em sua
primeira obra pedagógica: Manual teórico-prático para uso dos educadores. Em 1939 vai para a Itália
a fim de dirigir e organizar a fundação do Instituto de Pedagogia do Pontifício Ateneu, sendo a
primeira faculdade de Pedagogia reconhecida pela Igreja. Na Itália dedica-se a escrever sobre o
Sistema Educativo de dom Bosco. Na Universidade católica de Friburgo doutora-se em Pedagogia.
Em 1952 retorna para o Brasil por problemas de saúde e assume a direção da recém fundada
Faculdade Salesiana onde permanece como diretor até 1965, quando se afastou da direção por
problemas de saúde. Por duas vezes participou, a convite do governo brasileiro, de reuniões da
ª
UNESCO: em 52, em Paris, como delegado do Brasil na 7 Conferência daquele órgão, e em 53 em
uma reunião de educadores, como representante das escolas particulares. Deste período ficaram
amizades com Lourenço Filho, Carneiro Leão, Tristão de Athayde e outros. Faleceu no dia 21 de
julho de 1969 na cidade de Lorena. Cf. TOLEDO, 2003, p.116-119.
169

A unidade de Campinas foi uma resposta à mentalidade tecnicista do golpe militar e


às necessidades imediatas das indústrias da região em rápido desenvolvimento e
carente de mão de obra especializada. Os próprios salesianos da época tiveram
dificuldade em configurá-la enquanto faculdade salesiana, pois não viam como
aplicar de forma eficiente uma pedagogia humanista para um curso técnico.

Na história das faculdades, conforme os salesianos foram se distanciando de sua


direção deixando de dar aulas, cresceu a discreta pressão de coordenadores e
colegiados de cursos para a diminuição de disciplinas humanísticas e religiosas,
priorizando-se a formação profissional262. A busca da identidade salesiana do Ensino
superior tem sido um caminho trilhado com grande dificuldade por ter faltado até
recentemente referenciais teóricos e por se tratar de um espaço novo de ação dos
salesianos. Alguns elementos dificultaram a clara definição e consolidação da
identidade salesiana de forma efetiva.

Em primeiro lugar com a redução do número de salesianos a presença destes como


sonhada por Dom Bosco, tem sido inviável, pois estão envolvidos em múltiplas
atividades com jornadas triplas, sem descanso nos finais de semana, em equipes
pequenas que se desdobram em atender as demandas administrativas e ao mesmo
tempo ao colégio, à obra social, ao ensino superior, aos oratórios festivos além do
atendimento religioso ao bairro no entrono da obra. Como religiosos devem ainda
manter uma mínimia vida comunitária com orações e refeições em comum,
atividades em nível inspetorial, retiros e encontros de formação. Esse acúmulo de
atividades fomenta o distanciamento dos destinatários, pois a gestão administrativas
sugam suas energias físicas e espirituais.

Em segundo lugar a organização da vida religiosa dos salesianos também interfere


na estruturação do Centro Universitário. O diretor de uma comunidade só pode
exercer essa função no mesmo lugar pelo prazo máximo de seis anos 263, sendo
nomeado por um primeiro triênio podendo ser reconduzido por mais um. Assim, as

262
- Mereceria um estudo de como aos poucos as disciplinas de formação humana e cristã
foram sendo retiradas do currículo ou ao menos diminuídas, não raras vezes com um conteúdo
rarefeito e genérico onde a identidade institucional sequer era percebida.
263
- Cf. DIREÇÃO GERAL OBRAS DE DOM BOSCO. Constituições e Regulamentos. Roma:
Elle di Ci, 1984, no. 177.
170

transferências são constantes, gerando descontinuidade de direção. Mesmo os que


pensam o Ensino superior acabam por fazê-lo por pouco tempo, pois as
transferências acontecem até para áreas diferentes, muitas vezes antes mesmo dos
seis anos, quando se pode, por exemplo, passar do ambiente universitário para uma
obra social ou escola, bastando para isso que o inspetor, com o consentimento do
seu conselho, o destine a outro encargo que julgue necessário. O Centro UNISAL
tem procurado através de reforma regimental garantir sua estabilidade através de
direções leigas locais que não mais seriam entregues a religiosos salesianos, como
forma de dar estabilidade às políticas universitárias.

A Congregação salesiana, ao assumir o Ensino Superior como uma das novas


vertentes da missão salesiana junto à juventude e ao fundar as IUS como organismo
colegiado para garantir a sinergia mundial das universidades salesianas, sinaliza
com clareza que os princípios educacionais de João Bosco, adaptados à faixa etária
e maturidade dos universitários, é um instrumento válido para a sua formação
humana embasada em princípios cristãos. Além disso, há o favorecimento do
intercâmbio internacional entre instituições que já mantêm entre si denso
relacionamento no âmbito religioso e que facilmente pode distendê-lo para o
ambiente acadêmico.

Deve-se compreender de que maneira a pedagogia salesiana foi elaborada para os


adolescentes para capturar o que nela pode ser transposto para o mundo
universitário com as devidas adaptações e o que deve ser descartado. O fato é que
a transposição e práticas pedagógico-pastorais elaboradas para adolescentes é um
novo desafio. No pensamento de Bosco sua pedagogia se organiza a partir da
integração orgânica entre ambientes, atividades, horários, princípios, educadores,
professores e funcionários, sendo sua educação concebida de forma sistêmica e
global tendo no Sistema Preventivo e na presença do educador junto dos
educados uma das chaves fundamentais de sua prática e do seu sucesso ensejando
um clima de familiaridade.

Esses elementos fizeram com que sua congregação pudesse se expandir com
rapidez por todo o mundo atraindo seguidores religiosos e leigos que acreditaram
neste método educativo. Para João Bosco todos, desde o diretor ao mais humilde
funcionário, são educadores.
171

A História dos salesianos granjeou simpatia dos destinatários e da sociedade onde


se implantou. João Bosco com sua pedagogia, sua obra e seus discípulos formaram
gerações de homens que tiveram nos seus ensinamentos referências para suas
vidas. Existiram educadores que vestiram a camisa apostando neste modelo de
educação o melhor de suas energias e competências. Valores religiosos e humanos
foram incrustados em muitas vidas fazendo-as melhores. Foi uma experiência vivida
por muitos adolescentes que se sentiram amados e respeitados e que reproduziram
essa experiência nas famílias que constituíram. Muitos adultos se recordam 264 como
memórias saudosas dos pátios, dos jogos, teatros, academias literárias, excursões,
mágicas, conselhos, “pitos”; são memórias265 quase sempre idealizadas como
costumam serem todas as memórias. E existem também as que foram negativas e
que marcaram para o resto da vida. De qualquer forma essas experiências, boas e
más, permitiram identificar uma prática educacional e até avaliá-la ao longo da vida.
São experiências subjetivas e educadores de educandos que possuem percepções
não quantificáveis, mas que estão presentes nas narrações, estórias, episódios e
reminiscências. A presença em mais de 120 países após 150 anos de fundação
testifica uma acolhida significativa destas práticas educacionais

Hoje milhares de jovens freqüentam o ambiente universitário salesiano. Esta


pedagogia nos seus fundamentos os atinge? O que isso significa na formação de
suas vidas? Agrega algum valor? Faz algum diferencial? O que significam o mito o
rito e o símbolo salesianos para esses jovens? Sabem quem é Dom Bosco? O que

264
- Odor de santidade, tibieza, temperança, murmuração, abstinência, (...)”Angelus”, Tantum
Ergo, “Magnificat”, “De Profundis”, (...) oratório festivo, gramática do Ravizza, o Grêrmio(...), o
sistema preventivo, o espírito salesiano, o boa noite, o rendiconto mensal, as leituras edificantes, as
sessões liter-musicais, o porquê das festas, aulas de civilidade, português, latim, grego, italiano,
inglês, francês, espanhol, os terríveis escrutínios, brinquedos gerais, estafeta, cajado, barra
cumprida, espiribol, boccia, amizades particulares, jogo de botão, ping-pong, colóquios, superiores,
Notas A-B-C-D (Aptus, Bonus, Corrigens, Demitens), os feijões pretos, banho frio, festas, colunatas,
refeitório, sino, passeios gerais, Escola Agrícola, Horto Florestal, os aparelhos do laboratório, (...).
Aroldo Azevedo de PAIVA – Reminiscências (folha avulta s.d.).In: CENTRO UNISAL. Sedoc:
Arquivo histórico, Lorena.
265
- Merece especial referência o livro A República dos Sciuschiá que trata do oratório no
bairro da periferia de Roma chamado Borgo. um projeto único de intervenção em favor da infância e
da adolescência na periferia de Roma. Trabalhando com a História Oral, Alessandro Portelli e seu
grupo de pesquisadores do Circolo Gianni Bosio recuperam uma parte importante do período que se
prolonga do pós-Segunda Guerra Mundial até hoje, mostrando o valioso trabalho dos salesianos junto
aos jovens em situação de risco social. Cf. PORTELLI, Alessandro (Coord.). República dos
Sciusciá: a Roma do pós-guerra na memória dos meninos de Dom Bosco. São Paulo: Salesiana,
2004.
172

ele representou? Algo muda em suas vidas? Em suas histórias? Conhecem, ao


menos no nível teórico a pedagogia salesiana? Seus valores?

João Bosco quisera pela sua ação educativa gerar mudanças qualitativas na vida
dos seus destinatários. As questões acima expostas ainda tocariam superficialmente
os objetivos mais profundos da Educação salesiana. Ela almeja, mais do que ser
objeto de conhecimento, gerar atitudes atingindo o próprio sentido da existência
humana. Se as questões apresentadas acima tiverem resposta negativa, isto
significa que nem sequer perifericamente a educação salesiana estaria
acontecendo. Se, ao contrário aas respostas forem positivas , poder-se-ia partir para
questões mais profundas, a saber:

Neste novo ambiente de ação da pedagogia salesiana tem-se configurado uma


linguagem propositiva que sinalize valores que favoreçam a construção de uma
integridade humana embasada em valores espirituais e morais?Favorece-se a
formação de pessoas integradas consigo mesmas que nos ambientes da família e
do trabalho sejam mais que provedor ou um técnico?

Seriam facetas tangíveis da integração da racionalidade, dos valores do espírito e da


amorevolezza que se tornariam quase como uma segunda natureza desses
egressos. É um tipo de ser humano que João Bosco e seus discípulos almejaram
formar.
173

CAPÍTULO III - O UNISAL ENTRE OS SÉCULOS XX E XXI

EM BUSCA DE SUA IDENTIDADE: TENSÕES ENTRE O

PASSADO, O PRESENTE E O FUTURO

A obra salesiana fundada por João Bosco vem respondendo aos desafios de cada
tempo: no século XIX atendeu jovens empobrecidos procurando integrá-los no
mundo industrial pela profissionalização. No início do século voltou-se para
internatos e colégios e na segunda metade deste século teve início uma join venture
com o ensino superior. Este estudo é restrito a três dessas escolas superiores
circunscritas à Inspetoria e Estado de São Paulo.

No final do século passado o governo central da congregação não pode


desconsiderar a existência de mais de cinqüenta instituições de ensino superior
salesianas em várias nações, resultado de ações isoladas e circunstanciais de
alguns salesianos. Como já analisamos anteriormente, em resposta a estes fatos
consumados e irreversíveis, ainda que bem sucedidos, em 1995 são fundadas as
Instituições Salesianas de Educação Superior - IUS – e, em 2003 é elaborado o
documento “As Políticas para a presença salesiana na educação superior, 2003-
2008”, denominado no meio acadêmico salesiano internacional de carta de
navegação, tendo por meta fazer com que estas instituições, já em funcionamento,
pudessem em nível de salesianidade, alcançar essa identidade ainda ideal266. Com
ele se encerram as discussões e questionamentos sobre o sentido da presença dos
salesianos no ensino superior que, agora, oficialmente ganha reconhecimento e
cidadania na congregação.

O ensino superior salesiano nasce no contexto de uma instituição confessional, com


dupla identidade, católica e salesiana267. Nada havia sido elaborado ou pensado
para organizar o ensino superior a partir dos princípios educacionais elaborados por

266
Cf. IUS, op. cit., archivio n. 06.
267
- Católica enquanto apoiada nos princípios do cristianismo sob a chefia do papa e salesiano
enquanto adota o catolicismo sob a ótica educacional e pedagógica de João Bosco.
174

João Bosco. Fez-se então o simples transplante das práticas pastorais e


pedagógicas das escolas e obras sociais para o ambiente universitário olhado, pela
maioria dos salesianos, como um corpo estranho na congregação e até mesmo
como uma traição dos ideais do fundador, pois, na maioria das vezes, fora fruto de
“ação isolada” e “ato de desobediência e insubordinação” de diretores que
“levianamente” haviam fundado faculdades contra o espírito da congregação que
surgira para atender jovens e adolescentes pobres. Alguns poucos salesianos nela
trabalharam comprometidos com o projeto do ensino superior, enquanto que a
maioria ocupou esse espaço e exerceu nele funções, até acadêmicas, por
obediência religiosa, sem um envolvimento real com esse projeto.

Os primeiros momentos das faculdades em nível de identidade foram mais fáceis,


pois se viviam tempos em que a igreja desfrutava de prestigio junto às sociedades
de Lorena, Americana e Campinas, contando com o apoio de influentes e
tradicionais famílias católicas. As contestações da década de 1960 não deixaram
incólumes as instituições tradicionais como a família e a igreja, que se confrontariam
com as novas mentalidades que desconstruiriam o passado, sendo momento de
desmoronamento de antigos paradigmas com seus valores.

A década de 1960 é um período de crise da política internacional e dos valores das


sociedades ocidentais com um crescente processo de descristianização e acentuada
laicização, quando muitos religiosos não se sentem mais confortáveis com a
mentalidade da igreja e não conseguem se enquadrar a uma nova identidade que
norteasse suas vidas e que desse re-significação à consagração religiosa abraçada
por eles. Essa crise de identidade pessoal se refletia nas instituições que
governavam. É bem verdade que essa identidade era reafirmada e atualizada pelos
intelectuais da igreja e da congregação gerando, ideologicamente, qualificada
documentação. Tais produções, porém por si só não bastavam: eram “apenas”
textos. Os conflitos aconteciam nos corações das novas gerações que, ao romper
com antigos modelos de igreja e de mundo, não conseguiam delinear,
existencialmente, que caminhos seguir. Neste contexto de perda de identidade
pessoal era impossível definir a identidade de instituições e lhe dar um destino frente
aos desafios que se apresentavam quando não se sabia como e para onde
encaminhar a própria vida. Era um norte que deveria primeiramente ser descoberto
175

pelos indivíduos para, posteriormente, ser aplicado para as instituições, pois


somente com a resolução desses problemas pessoais, esses religiosos, no caso
salesianos, teriam condições de entrar de corpo e alma na luta pela construção da
identidade das faculdades. O mito fundacional atualizado pelo rito só teria eficácia se
fosse crença, vida e projeto pessoal268. Caso contrário se viveria numa instituição
onde o mito não narra mais, o rito não celebra mais e o símbolo não simboliza mais.
Este é o tributo que devem pagar as instituições confessionais: seus fundamentos
não se sustentam em definições de identidade, ementas de cursos e descrições de
ideais, mas em mitos narrados com paixão, ritos celebrados com vida e símbolos
que não sejam desfigurados por interpretações apócrifas. Sem esse pulsar de
crenças, ainda que subjetivas, os ideais fundacionais serão um punhado de textos
relegados e esquecidos em empoeiradas prateleiras.

268
- A vida dos religiosos acontece dentro dos ambientes onde trabalha. O “quintal’ de suas
casas são os pátios, a “varanda” são os pórticos. Não existe um “fim de expediente” e nem tão pouco
“ir para casa”. A vida da instituição mescla-se, funde-se e confunde-se com a vida pessoal.
176

3.1 Passado, presente e Futuro: Da quietude da Idade Média para


o movimento da idade moderna e a aceleração da idade
contemporânea

A congregação salesiana269 possui suas raízes espirituais na cosmovisão e


mentalidade medieval. João Bosco, sem perder essa base, foi capaz de se adequar
ao mundo urbano industrial que se implantava na Itália. A reconstituição do seu
pensamento e do cotidiano de suas obras é muito facilitada pela abundância de
fontes primárias. Poucos fundadores tiveram tanta preocupação com o registro
histórico, com o arquivamento e preservação das crônicas, atas, fotos, impressos e
panfletos exigindo que todas as casas tivessem arquivos bem cuidados e em dia. No
arquivo histórico de Roma mantido pela congregação há muitos cadernos de alunos
com anotações das conferências do fundador, assim como de seus sucessores,
proferidas em formações, palestras e diversas circunstâncias. Este farto material
permite um retorno às motivações primeiras e às movimentações estratégicas dos
salesianos desde a fundação, permitindo realizar confrontos e paralelos entre os
desafios do século XIX e hoje. O conselheiro mundial da congregação salesiana
para o cone sul da América, padre Natale Vitali270 em conferência em março de 2011
aos salesianos de Lorena, afirmava:

Os desafios educacionais do século XXI são imensos. Aliás, não são


diferentes dos vividos por Dom Bosco nos tempos em que viveu. Disso
nasce a necessidade de aprofundá-lo e conhecê-lo no seu tempo. Como
nos tem afirmado o reitor mor Paschoal Chaves, é preciso retornar a Dom
Bosco, não para imitá-lo, pois estaríamos realizando ações do passado,
mas para redescobrir seus critérios de ação e aplicá-los nos tempos
atuais. Esta é a síntese do nosso pensamento: retornar a dom Bosco para,
a partir dele com seus critérios de ação iluminar nossa presença na
realidade do nosso tempo. É preciso retornar a Dom Bosco, não para
recomeçar dele, não para imitá-lo, mas para apreender seus critérios de
271
ação .

269
- A Congregação Salesiana foi fundada em 1859 tendo sido reconhecida de direito pontifício
em 1874 pelo papa Pio IX. Está presente em 132 países.
270
- Padre Natale Vitali é chileno responsável pelo Cone Sul da Congregação salesiana que
atinge os seguintes países: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. Doutor em Educação foi inspetor no
Chile entre os anos de 1991 a 1994; 1995-2000 e 2006 a 2008 quando foi eleito para o Conselho
Mundial da Congregação salesiana com sede em Roma.
271
- Padre Natale VITALI – Conselheiro mundial da congregação Salesiana. – Conferência aos
salesianos de Lorena. No dia 30/034/2011. Cf. Livro de Atas das Visitas Canônicas 1991 a ...
anexada: Ata da Visita Extraordinária do Conselheiro do Cone Sul. p. 28 v. In: CENTRO UNISAL.
Sedoc. Lorena.
177

Ainda que os princípios elaborados e praticados pelo fundador sejam atualizados


pelos Capítulos Gerais272 que respondem aos desafios de cada época, não se pode
prescindir de se lançar um olhar retrospectivo sobre a história para se entender os
salesianos do século XXI.

O pensamento e a prática educacionais salesianos não foram elaborações de


escritório e nem tampouco fruto de algum desdobramento lógico de alguma escola
filosófica. Nasceram como resposta pragmática aos desafios de um tempo, de
circunstâncias e embates de um momento histórico utilizando-se dos “ingredientes à
mão” da idade média, do nascente mundo industrial, dos contatos com adolescentes
nos canteiros de obras e das cálidas conversas familiares ao redor das lareiras nas
frias noites invernais. Nasceram da vida e dos seus embates, combates, alegrias e
tristezas. Não foram planejados, inicialmente, mas resposta às circunstâncias, com
muito de intuição e pouco de razão. Primeiro se fez o laboratório, sem se ter
consciência de que era um laboratório e só depois se pôs por escrito os princípios já
testados e aprovados no cotidiano.

Daí a necessidade de se falar de histórias de vidas, pois, só capturando e


organizando mentalmente esses diversos sucederes humanos se pode apreender o
sentido desta pedagogia que brotou no sistema industrial da península itálica como
uma “adaptação genética” do cristianismo, tomando emprestada a visão de Darwin,
para garantir sua sobrevivência nesse meio hostil. O sistema educacional salesiano
com sua pedagogia é uma resposta a um desafio pontual da história que, possuindo
uma base teórica, adota um critério de ação móvel, adaptável273 às circunstâncias,
procuraando preservar no torvelinho da história os valores humanos e cristãos. É
necessário apreender como se moldou o espírito salesiano e quais os seus critérios

272
- Até hoje foram celebrados 26 capítulos gerais que atualizam os projetos congregacionais
aos desafios de cada tempo. O ultimo foi realizado em 2008.
273
- Entende-se então porque um colégio salesiano pode sobreviver, por exemplo, num
ambiente islâmico, ter mais de 90% de alunos não cristãos e ser defendido por pessoas que não são
cristãs. Como exemplo pode-se citar que no Líbano onde havia estabilidade entre cristãos e
islâmicos, quando estourou a guerra civil, essa estabilidade foi quebrada, mas um colégio de irmãs
salesianas de 800 alunos, dos quais apenas poucas dezenas eram cristãos, foi defendido por grupos
armados islâmicos, que tinham nesta escola também abrigo contra os bombardeios. Era o único lugar
seguro para cristãos e islâmicos. A comunidade islâmica do povoado, inclusive com seu chefe tribal,
tinha nas salesianas um referencial de amizade e respeito como educadoras de seus filhos. Cf. o
Documentário: Hadath Baalbek, costruendo insieme Il futuro. Valdocco – Media centre Torino –
Associazione Missioni Don Bosco – 2009.
178

para enfrentar os desafios do seu tempo e como resposta para o momento histórico
que então se vivia. Tentar, porém, “congelá-lo” nos moldes praticados no século XIX
seria traí-lo no seu espírito; apreender, porém o seu espírito e os seus critérios de
ação é capturar aquela postura essencial que é aplicável em qualquer tempo e lugar
porque fundamentado em princípios e valores atemporais.

Para o surfista cada onda é um desafio sempre novo e diferente que deve “encarar”
com suas peculiaridades e desafios sem, porém, jamais deixar a prancha, que é sua
única base de segurança. É uma boa imagem para os desafios da educação
salesiana no século XXI O Educador salesiano apóia-se em alguns poucos
princípios dos quais jamais pode abrir mão com o risco de perder sua identidade.
Mas quanto ao resto, deverá “surfar” no momento presente enfrentando os
obstáculos sem medo.

O Salesiano não desanima diante das dificuldades, porque tem plena


confiança no Pai. “Nada te perturbe”, dizia Dom Bosco. Inspirando-se no
humanismo de S. Francisco de Sales, acredita nos recursos naturais e
sobrenaturais do homem, embora não lhe ignora a fraqueza. Acolhe os
valores do mundo, evita lamentar-se do tempo em que vive; conserva tudo
que é bom, especialmente quando agrada aos jovens. Já que anuncia a
Boa Nova, está sempre alegre. Difunde essa alegria e sabe educar à
274
felicidade da vida cristã e ao sentido de festa (...)

João Bosco educador só é entendido a partir dos desafios do seu tempo. Os atuais
educadores salesianos devem ter como diferencial a capacidade de se adequarem
aos tempos sem abrir mão dos princípios iluminadores de sua ação.

Nos cento e cinqüenta anos da fundação da congregação salesiana se conseguiu


implantar uma bem definida identidade, sendo hoje a segunda maior congregação
em numero de membros275 da igreja católica. Com mais de 50 instituições de Ensino
superior gravitando em torno da Sociedade São Francisco de Sales torna-se
necessário dar respostas imediatas e adequadas ao mundo universitário, não
apenas em nível pedagógico, mas também em nível humanista, salesiano e cristão,
pois a força desagregadora da sociedade moderna com muita facilidade poderia pôr
em risco essa identidade preservada até agora. É na história, com a história e pela

274
- DIREÇÃO GERAL OBRAS DE DOM BOSCO Constituições e Regulamentos. Roma: Elle
di Ci, 1985, p. 24, n. 17.
275
- A congregação chegou a contar com cerca de 22.000 mil membros consagrados só no
ramo masculino.
179

história que nasce a congregação como reação a situações desestabilizadoras da


igreja, da sociedade, da família, da economia e do ambiente político. Estudá-la
desencarnada destes contextos é construir ideais fugidios e “metafísicos”, pois toda
educação irá sempre incidir sobre homens encarnados num tempo, numa
mentalidade e num ambiente, a partir do modo como realiza a busca de sua
sobrevivência.

É a partir da história que se entende a gênese e o desenvolvimento da congregação.


E será somente inseridos nela que se continuará sua missão, pois é no viver de
cada homem e de todos os homens e nas formas que garantem suas sobrevivências
que se organiza a sociedade. E é neste espaço que necessariamente interfere o
educador imprimindo valores, apontando horizontes e preparando gerações para a
construção de suas vidas e da sociedade na qual viverão.
180

3.1.1 As bases espirituais da cosmovisão salesiana: a ideologia medieval

Quem circula pelas dependências físicas das unidades do UNISAL percebe que as
diversas edificações acompanharam as tendências da engenharia do Brasil de cada
época. As últimas construções abandonaram por completo as antigas concepções
italianas dos enquadramentos dos pátios pelos pórticos. Lorena, a unidade mais
antiga, ostenta suas colunas fundidas na Inglaterra, retrato da dependência
tecnológica do nosso país com o exterior. O ultimo prédio concluído em 2008 tentou
ser um arremedo dos tempos passados nas suas forçadas linhas arquitetônicas. A
Unidade de Campinas possui três conjuntos de construções bem definidos. Um
primeiro que compõe a fachada central – solene – remonta às grandes construções
italianas pela sua imponência e austeridade com o pórtico imenso tomando toda sua
frente. Do seu lado direito surgem dois conjuntos. Um, hoje com aparência de
envelhecido, lembra o final da década de 50 e inicio da de 60. O outro, repleto de
meandros, contrariando de forma gritante tudo que a pedagogia salesiana ensina
sobre ambientes276, remonta aos anos 70 pretendendo passar a idéia de
modernidade. Finalmente a unidade de Americana possui dois Campi. O Campus
Dom Bosco é um conglomerado de estilos dos anos 60 e 70, enquanto que o da
Auxiliadora é contemporâneo com seus prédios de concreto e vidros entre os
canaviais. Num dos seus prédios investiu-se em avançada tecnologia de construção
com paredes duplas para conter o calor, estudos de ventilação e iluminação. O
segundo, ainda que siga as linhas do primeiro, foi construído sob o peso de
dificuldades financeiras com menos tecnologia, mas sem perder o aspecto de futuro
e de devir. Poder-se-ia falar da evolução das faculdades a partir dos seus prédios
que demonstram num crescendo a constante adequação aos novos tempos.

As construções, porém, podem esconder as verdadeiras fundações ideológicas que


sustentam as idéias que ergueram esses prédios. Paradoxalmente, ainda que a
congregação salesiana tenha sido fundada oficialmente em 1859, ela foi um
conglomerado de tensões, sendo, contraditoriamente, foco de resistência e de
integração, ponte entre a idade média e a modernidade em mão dupla. Nela tanto se

276
- As construções salesianas possuem um layout próprio que favoreça a assistência dos
educandos. Para que um arquiteto desenvolva bem um projeto é necessário que tenha um bom
conhecimento da pedagogia salesiana e seja supervisionado por salesianos competentes para que a
construção possa corresponder e facilitar a pratica dessa pedagogia.
181

passava da idade média para a modernidade como da modernidade para a idade


média. João Bosco foi um dos cavalheiros medievais que adentraram a cidade
moderna, não para se submeter a ela, mas para dominá-la e subjugá-la pela força
da Igreja e da fé. Não levou as armas medievais, mas utilizou as que a cidade
produzia para submetê-la: a tecnologia, a educação e a profissionalização. Atraiu
seus filhos, primeiro para torná-los cristãos e católicos e, depois, os preparou para
sobreviverem material e espiritualmente. Capturar “este espírito” significa entender
de que têmpera foi moldada os antigos salesianos e como esses formaram seus
discípulos. Os ex-alunos, no projeto educacional de Dom Bosco, deveriam manter
sólidos laços com as casas que os tinham formado, não apenas sendo cristãos, mas
intervindo na sociedade com os ideais da cristandade. Este era o ideal da educação
salesiana.

As construções modernas, portanto, enganam exatamente pela suas


contemporaneidade, pois sendo construídas com tecnologia de ponta, são erigidas
a partir dos ideais da cristandade. É necessário, portanto, realizar uma verdadeira
arqueologia dos fundamentos que deram sustentação aos ideais salesianos na sua
fundação e que foram expressos por cantos, marchas, entradas grandiosas nas
cidades, demonstrações de força e presença frente à cidade dos homens. Por trás
das estruturas visíveis das obras sociais, das máquinas nas oficinas, nas escolas e
nos seminários palpitavam no coração dos antigos salesianos os grandes ideais que
sustentaram por mil anos a cristandade ocidental, a Cidade de Deus.

Apesar da distorção de se conceber a idade média como uma noite de mil anos de
trevas iluminada pelas fogueiras da inquisição, ela é um referencial para o estudo da
história277 porque congrega em si aspectos que lhe dão uma identidade e que a

277
- Enciclopedistas: consideraram a Idade Média um período bárbaro, supersticioso,
tenebroso, tirano, escravocrata e estéril. Afirma isso Diderot [1713-1784], Voltaire [1694-1778],
Montesquieu [1689-1755] e Helvético [1715-1771]. A Escolástica [período medieval da formação de
escolas de pensadores] representa a tirania do poder eclesiástico sobre o poder socio-político. Isso
segundo eles foi herdado da Patrística [Primeiros Teólogos Cristãos que como os pais, buscavam
transmitir aos seus discípulos as heranças advindas da tradição apostólica]. Em geral denominavam
este período como “Noite de mil anos de obscurantismo ou de recuo da cultura”. Esta terá sido
cultivada brilhantemente pela Antigüidade greco-romana até 476 e haverá caído em decadência
tenebrosa até o século XV [1450]. A Idade Média haverá sido um túnel escuro. Gótico e Bizantino
serão vistos como sinônimos de bárbaro. Caracterizaram-na como um período de superstição [alusão
à ciência do sobrenatural – a Teologia], de ingenuidade da mente [alusão à ciência racional – a
Filosofia – que ascendia à verdade como instrumento e serva da teologia] e de loucura [alusão à
ciência empírica – Ciências físicas, alquimia, biologia etc. – que pautavam suas investigações em
teoremas filosóficos].[d] Historiografia: a partir do século XVIII, com a ascensão da paleografia,
182

diferencia de outras épocas, sendo um contraponto quando confrontada com a idade


moderna. Prevalece o questionamento que deve avaliar se estes ideais fundacionais
perduram e fazem sentido no século I, seja da parte dos mantenedores da
Instituição que devem conhecer, acreditar, divulgar e praticar esses princípios, e se
estes chegam até os educandos, inicialmente como conhecimento e,
posteriormente, como valor a ser assumido e integrado em suas vidas pessoal e
profissional como princípio e referencial iluminadores de suas ações. Em outras
palavras, se o ideal salesiano gestado com conceitos medievais possui incidência
sobre os egressos do mundo contemporâneo.

paleontologia, arqueologia e da historiografia, ainda prevaleceu num primeiro momento a mentalidade


pejorativa e pouco informada dos pesquisadores que classificaram a Idade Média como ‘noite de mil
anos iluminadas pelas fogueiras da inquisição e entregue às superstições e à bruxaria’. A partir do
século XIX até meados do , com a influência marxista, observavam-se mais a dimensão sócio-
econômica e política em detrimento da visão cultural e científica, por estarem atreladas à Fé cristã e a
Religião, considerada teórica, utópica e ópio social. Isso sem dúvida contribuiu para não analisar a
cultura, a ciência, negar e piorar ainda mais a visão preconceituosa da Idade Média e deixá-la no
esquecimento. Mas ainda no século XIX, isso mudaria, com novos estudos que buscavam entender o
período no conjunto, e a partir de então, a visão cada vez mais crítica do período, foi melhorando.
Não obstante, ainda estamos vivendo um período de descoberta dos valores medievais em Ciência
teológica e filosófica e Cultura arquitetônica, lingüística e musical, etc. Em nossos dias duas são as
reações: a agressiva que em geral pauta-se numa visão negativa e preconceituosa, marcada pela
influência não douta, pejorativa, por ignorância factual ou por soberba intelectual contemporânea das
visões anteriores; a outra visão é serena ou positiva, acenando para um interesse e abertura de
estudo deste universo ainda tão desconhecido. Prof. Dr. Paulo Faitanin/ Dept. Filosofia –UFF –
Editora PDF – 1910 – ISSN – 1808-5733 . s/p.
183

3.1.1.1 Pressupostos para o entendimento da cosmovisão salesiana: a História em


movimento

A História é o somatório de sucederes unificados com lógica pela razão humana,


não sendo uma entidade ontológica, mas lógica. Antes de se debruçar sobre o
UNISAL tem-se que aprofundar o sentido da dinamicidade da história com um
conjunto de conceitos que servirão de ferramentas para a leitura dessa instituição no
século XXI: são os conceitos de movimento e aceleração.

Na história entende-se por movimento as mudanças culturais e de mentalidade que


alteram a sociedade nos seus hábitos e costumes. É a passagem de um modo de se
viver e ver o mundo para outro. Nos primitivos tais mudanças eram lentas,
prevalecendo a tradição e a figura do ancião-narrador que transmitia o passado aos
seus descendentes garantindo aos povos ágrafos a sobrevivência material e cultural.
Mudanças culturais aconteceram quando, para garantir sua sobrevivência biológica,
deveu-se buscar novas formas de produção.

A Vida do homem – e, portanto sua história – é movimento em sentido amplo: é,


inicialmente, movimento animal como caçador ou coletor. As primeiras comunidades
gentílicas criaram, mantiveram e garantiram sua perpetuação como grupo coeso em
torno do pater familiae vivendo de forma comunitária e que foram desestabilizadas e
entraram em crise quando a partilha de terras com grupos privilegiados representou
a exclusão dos segmentos mais frágeis da comunidade. Essas movimentações
econômicas e culturais, sendo a passagem de uma comunidade coletivista para uma
sociedade de proprietários tendo por sustentação a busca da sobrevivência foram
formas dos mais fortes buscarem sua sobrevivência impondo aos seus pares novas
adaptações a novos meios de vida, garantindo com isso a estabilização social.

As mudanças culturais, de mentalidade, de modo de vida e de costumes


acontecerão em todos os tempos, sendo um processo lento se o modo de produzir a
sobrevivência for estável e, ao contrário, será ágil se ágil for o modo de produzir e,
mais ainda, acelerada se tal for a produção de riquezas. Mudanças sociais
aceleradas serão expressões da economia que se acelera desestabilizando antigos
modelos de produção que até então organizavam a sociedade.
184

Na Idade média o que sobrou da desintegração do império romano ganhou


estabilidade pelo cristianismo nos feudos. O ritmo da terra e das estações favorecia
um ambiente místico que induzia à contemplação, fazendo emergir nos campos
grandes mosteiros que alternavam as lidas agrícolas com os momentos de silêncio
contemplativo e de oração nos intervalos e no ritmo da semeadura, do crescimento,
das colheitas e dos períodos invernais, moldando a alma e a mentalidade do homem
medieval que, cultivando a terra, ansiava habitar um dia a prometida e perene
morada, a gloriosa Cidade de Deus.

O mosteiro é a síntese entre a “liturgia” das estações e liturgia das horas. O canto
gregoriano e o canto chão ecoando pelas naves de pedra no lento compasso da
liturgia dão tempo à semente de nascer, crescer, florir e frutificar. Era um só tempo,
o de Deus, o dos homens e o do campo. O belicoso Império romano do ocidente em
sua derrocada militar e política era de novo unificado sob a fé católica.

A gloriosa Cidade de Deus que no decurso do tempo, vivendo da fé, faz sua
peregrinação no meio dos ímpios, que agora espera a estabilidade da
eterna morada com paciência até ao dia em que será julgada com justiça, e
que, graças à sua santidade, possuirá então, por uma suprema vitória, a
paz perfeita. (...) Também é preciso falar da Cidade da Terra, na sua ânsia
de domínio, que, embora os povos se lhe submetam, se torna escrava da
sua própria ambição e domínio. (...) É desta Cidade da Terra que surgem o
278
inimigos dos quais tem que ser defendida a Cidade de Deus .

Este conceito de Cidade de Deus elaborado por Agostinho deu sentido e unidade ao
mundo medieval, apesar de conter em si contradições, como um Francisco de Assis,
doce menestrel de Deus e um cruzado a matar com crueldade os infiéis ao fio de
espada, ambos, ainda que de formas diferentes, agindo à luz de uma cosmovisão
unitária do cosmos, da vida e do fim escatológico do homem.

No século IX recomeçam trocas comerciais que se ampliam com as feiras medievais


e, já no século XIII, comerciantes e artesãos se consolidam em corporações. A
atividade comercial, ao movimentar bens de uma região para outra, contrasta com o
trabalho do campo que tem no esforço físico a base da produção, enquanto que as
práticas comerciais apoiadas na racionalidade, contam com a agilidade mental e
desempenho nas negociações que podem multiplicar riquezas muito além das

278
- SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996,
p. 97-99.
185

produzidas pela laboriosa labuta nos campos. O trabalho da classe burguesa


pressupõe uma razão criativa e criadora e a finalidade da produção não é mais
atender a necessidades, mas fazer com que o capital gere o capital.

O camponês medieval, cultivando o campo, sente surgir materialmente ao seu redor


um mundo novo, com igrejas paroquiais e góticas catedrais, de avançadas
engenharias; monges de seus claustros vêm se erguer palacetes de onde se ouve
gestas melódicas de feitos heróicos ou amorosos se contrapondo ao canto litúrgico;
as cidades dos homens enfeitam-se de obras de artes que louvam a vida nos
burgos. Cidades tornam-se opulentas: Veneza, Milão, Paris, Oxford... Mudam as
cidades e as mentes. Na universidade de Paris os racionais discorrem sobre a
autonomia da razão para chegar à verdade sem necessidade da iluminatio divina
que fora para tantos místicos o único meio “acadêmico’ para se chegar à verdade. A
Idade média vive seu ocaso sinalizado pelo emblemático Guilherme de Ockham que
coloca em cheque as estruturas de poder e riqueza da Igreja e do papado aderindo
ao movimento franciscano dos “espirituais279”, buscando retornar ao cristianismo
primitivo que, pretendiam, desprovido de todos os bens.

A estabilidade, a harmonia e o equilíbrio medieval que haviam sido sustentados nas


suas estruturas feudais com a mundividência cristã são minados na medida em que
se verifica um maior distanciamento ideológico, organizacional e cultural de um novo
modelo econômico em que se acelera com o comercio como novo modo de
produção fomentando novas formas de organização social. A reforma protestante
nada mais é que uma adequação do cristianismo ao mundo urbano-comercial com
uma nova mentalidade humanista, autônoma e racional que não mais aceita a tutela
da igreja. O Calvinismo elabora uma moral que corresponde aos anseios da
burguesia comercial vendo no lucro um sinal da benção de Deus. E assim as
rupturas ideológicas com a igreja vão acontecendo sucessivamente. O Iluminismo
exaltará a capacidade racional do homem e mais tarde o positivismo a supremacia

279
- Era uma controvérsia entre os franciscanos conventuais e os “espirituais”. Fraile assim
descreve essa crise: “Os franciscanos ao renunciarem a todos os bens e propriedades elevavam-se à
perfeita imitação de Cristo e à perfeição evangélica elevando-se acima do clero e do papa. (...) se
Cristo havia condenado a riqueza a sua posse era um sinal de fragilidade (...) Chegaram a rebelar-se
contra seus superiores e a negar a legitimidade do poder eclesiástico. A Igreja era uma nova
Babilônia e o papa o anti-Cristo. Negava-lhe o poder de interpretar a regra franciscana e
profetizavam a vinda de uma igreja do Espírito Santo , governada pelos espirituais em regime
‘democrático’”. FRAILE, 1966, p. 1.112.
186

da ciência. São levas de religiosos e pensadores que vão se distanciando das


concepções de mundo e de sociedade da velha igreja.

O catolicismo, ao longo dos séculos acostumara-se a ser, pensar e viver de forma


medieval, mesmo quando os meios de sobrevivência mudaram, quando, por
exemplo, a Inglaterra produzia bens em grande escala e acontecia a revolução
industrial americana com a produção em série e eram construídas estradas de ferro
para integrar mercados. Através de ações políticas o capitalismo procurava garantir
mercados. O neo-colonialismo era implantado à revelia dos povos africanos e
asiáticos. No campo das idéias no século XIX o positivismo buscava se libertar das
amarras das “ciências teóricas” e o liberalismo se apresentam como modelo de
governo para uma sociedade de homens livres.

No fervilhar dessas mudanças econômicas, religiosas e ideológicas a igreja


mantinha-se firmemente ancorada em conceitos e práticas medievais. Na
aceleração do mundo e da história, ela freava. O protestantismo histórico, em
contrapartida, que nascera urbano e quando, como egressos da igreja católica,
inclinava-se para certo dogmatismo, tornando-se tradicionalista, o livre exame e a
autonomia das congregações permitia mudanças imediatas, nem sempre felizes,
mas respostas aptas a novos tempos e desafios com rupturas no seio de diversas
igrejas. A reforma pela sua própria origem era arredia às rédeas e ao controle
hierárquico.

Instituições seculares como a igreja têm dificuldades de se adaptarem a novos


tempos. Pela sua universalidade e atingindo povos e culturas tão diversificados, ela
corre o risco de se fragmentar. Entende-se então que o empenho de romanização
encetado por Pio IX no século XIX foi uma forma de implantar um modelo de
autoridade centralizada que desse identidade e certeza de fidelidade aos fiéis
católicos num tempo de grandes mudanças. A Igreja conseguira até manter o
controle ideológico e de uma cosmovisão sobre as massas campesinas, apesar dos
limitados meios de comunicação do passado. Não se dava conta, porém, que as
mudanças nas formas de produção não eram pequenas e nem pacíficas, a ponto de
que a historiografia veio titulá-las de “revoluções”, porque desestabilizaram a
sociedade, governos, povos e vidas desde que os primeiros comerciantes se
aventuraram em direção ao oriente e as caravelas começaram singrar os mares
187

nunca d’antes navegados280. A história começou não só a se movimentar, mas a


viver um processo de aceleração.

Quietude e contemplação. Progresso e aceleração. Duas atitudes do espírito na


mesma época. Enquanto de um lado a igreja mantinha sua cultura campesina com
suas solenes e demoradas liturgias, quando o papa, bispos e padres envoltos em
cerimoniais repletos de rubricismo281 acreditavam num modelo de igreja hierárquica
e imperial, de outro aconteciam as pulsões e o crescente burburinho da vida na
cidade industrial, injusta, mal organizada e exploradora, onde os homens eram
desprovidos do mínimo de dignidade. O operariado se inclinava para as lutas sociais
por justiça, salário, moradia e dignidade crescendo em sua consciência de classe. A
igreja fora a mentora das obras sociais, de assistência e caridade na idade média e
continuava a sê-lo no século XIX e início do XX. O problema é que sua “ancoragem”
na mentalidade medieval e natural resistência ao moderno a impedia de oferecer
respostas rápidas a um mundo em aceleração quando as mudanças mal eram
absorvidas e já existiam outras.

A Igreja no século XIX se distanciava também das pessoas letradas e cultas não
aceitando pontos de vista que pudesse pôr em cheque a cristandade, sendo até
natural essa resistência, pois alguns pensadores do período tinham explícitos
embates ideológicos e doutrinais com a igreja282.

Tais filigranas intelectuais, porém, não passavam pelas mentes e corações de rudes
agricultores e do povo simples que se apegavam com as tradições que tinham
recebido dos antepassados e para os quais, em épocas tão difíceis, duas coisas
eram fundamentais: nesta terra a sobrevivência e na eternidade a salvação. É neste
contexto que os camponeses do Piemonte mantinham uma religiosidade recebida
dos antepassados e que certamente passariam para seus filhos e netos. Os curas
rurais, sem grande cultura, sustentavam essa cosmovisão de séculos sem especiais
retoques, embasada na longínqua síntese agostiniana que dera significado à vida de

280
- Luiz CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 1.
281
- São anotações em vermelho contidas nos livros de cerimônias católicas onde se
determinam os mínimos detalhes e as mínimas posturas que devem ser obedecidas nas cerimônias
religiosas.
282
- Karl Marx, Nietzsche, Durkheim, Augusto Compte e outros.
188

milhares de homens e mulheres: a cidade de Deus. Cada momento da vida com


suas dificuldades e agruras era uma preparação para o juízo final que deveria ser
preparado por uma vida de acordo com os mandamentos de Deus e da Igreja, a
recepção dos sacramentos a fuga do pecado e das insídias do demônio. À hora da
morte, confortado pela Extrema unção e pela benção do sacerdote, esse fiel partiria
para a pátria definitiva confiante na misericórdia do Senhor. Missas seriam rezadas.
Preces seriam feitas. E o ciclo da vida do camponês continuaria como o ciclo do
campo onde se alternavam semeadura, brotação, crescimento, floração, frutos,
colheita e morte, para recomeçar de novo a vida. Era, como já afirmamos, uma
liturgia do campo, dos homens e de Deus.

Apreender essa mentalidade acima descrita nos permite compreender a


complexidade destes séculos para os homens que neles viveram. O camponês
João Bosco em plena revolução industrial italiana, querendo salvar almas confronta-
se em Turim com o pensamento liberal anticlerical. Tivesse ficado a celebrar missa
para o povo simples, a atender ricas senhoras piedosas e alguns senhores do antigo
catolicismo tradicional, sua vida não teria tido maiores confrontos com esses grupos
radicais. Suas obras, porém, necessitavam de apoio governamental, de grandiosas
somas em dinheiro, de trânsito político com os chefes de cidades e províncias para
que pudesse dar aos adolescentes carentes mais que o conforto da religião:
educação, profissionalização, um lugar na sociedade de respeito e uma vida digna e
útil na sociedade industrial. Sacerdote católico, defensor incondicional do papado, é
introduzido por pessoas influentes em meio às altas rodas políticas e sociais para
negociar ajuda financeira, licença para obras, recursos estatais com as alas
progressistas e anti-clericais da Nova Itália. É um ativista que percorre os meandros
do poder civil e eclesiástico procurando recursos, buscando impressionar e formar a
opinião publica a favor de suas obras e de seus jovens. À argúcia do camponês
soma-se uma visão da importância da atuação de uma igreja mais moderna, inserida
nas realidades deste século. Na cidade de Turim em 26 de abril de 1884, na
Exposição Nacional da Indústria, da Ciência e da Arte na qual estariam presentes a
família real, o corpo diplomático, industriais e políticos, João Bosco consegue licença
para ser um os expositores. Expõe volumes científicos, literários, históricos,
didáticos e religiosos. O Boletim Salesiano em três idiomas: italiano, francês e
espanhol. No ano anterior, ao visitar a exposição de Zurique, João Bosco
189

encomendara uma máquina de tipografia com um novo desenho aperfeiçoado por


sua equipe das Escolas Profissionais. Eis como nos narra Céria o impacto gerado
nesta exposição em Turim por essa máquina tipográfica que João Bosco fizera
funcionar durante toda a exposição:

Lia-se na porta de Entrada: ‘Fabbrica Di Carta, Tipografia, Fonderia,


Legatoria E Libreria Salesiana’. Falava-se bem que Dom Bosco era
conhecido; Naqueles tempos, porém, um padre expositor numa Exposição
Nacional e na sessão de trabalho parecia um verdadeiro anacronismo.
Muitos que por aí passavam, lendo o letreiro à porta, sorriam, imaginando
encontrar objetos de sacristia, que em nada lhes interessava. Se, porém,
superado o preconceito, resolvessem entrar, ficavam pasmos com duas
novidades: o trabalho e os trabalhadores. Estes, todo jovens de várias
idades, mostrando simpatia, aplicação, competência e serenidade,
procuravam fazer bem sua parte. O trabalho aí realizado (de impressão de
livros) prendia a atenção de todos do princípio ao fim tornando-se uma das
maiores atrações para o público na grande mostra. A intenção de dom
283
Bosco era mostrar as várias etapas da produção de um livro .

Bosco colocava-se em pé de igualdade com suas oficinas e Escolas Profissionais


com a avançada tecnologia da época e procurava mostrar sua obra como geradora
de resultados palpáveis para o mundo industrial. É um típico ativista católico com os
pés plantados na realidade do seu tempo e falando a linguagem da modernidade do
século XIX.

283
- CERIA, Eugenio. Memorie Biografiche di san Giovanni Bosco 1884-1885. Torino:
Società Editrice Internazionale,1936,v. XVII, p. 244-245.
190

3.1.1.2 João Bosco diante do seu tempo

As religiões são objeto de estudo de muitas ciências que as abordam sob vários
ângulos, sociológico, histórico, político, econômico ou de qualquer outro ponto que
se considere oportuno. Todas elas, porém, possuem um espaço íntimo subjetivo que
não é nem mensurável e tampouco descritível. Alguns termos procuram desvendar
esse espaço interior denominado “fé” que se projeta na vida humana motivando
ações nobres, assim como a capacidade de oblação que dá sentido para se viver e
morrer. O inefável não pode ser descrito, narrado e explicado porque envolto sob o
véu do mistério: possui, porém sua visibilidade através dos frutos que gera na vida
das pessoas e da sociedade. Alguns termos procuram explicitar essas experiências
que transcendem os sentidos e representam a experiência da divindade284.

A Mística, diferente do êxtase, possui uma dimensão mais ativa e tangível quando o
ser humano a partir de sua experiência com a divindade procura adequar-se aos
projetos divinos. Essas crenças indescritíveis e inefáveis precisam de fórmulas
simplificadoras que verbalizem o inenarrável tornando-o compreensível e exeqüível,
também para as pessoas simples que por um insight apreendem intuitivamente o
projeto de vida da religião. O cristianismo construiu fórmulas simplificadoras como
amor, caridade e salvação. Nessas três palavras se podem resumir as mais
profundas especulações teológicas para o homem comum. São palavras-síntese.

Foi essa síntese que Santo Agostinho conseguiu elaborar ao escrever o livro “De
Civitate Dei”, que não só justificava a queda do Império Romano, como também
sinalizava o sentido e os ideais da cristandade. É um conceito que, mesmo se não
usado, está implícito em toda ação evangelizadora e catequética que pretenda
construir homens e sociedades novos à luz do cristianismo.

A Gloriosa cidade de Deus é não só a síntese de quatro séculos de tensões no


nascente cristianismo, quando a patrística discutia o relacionamento entre a fé e a
razão através das correntes Gnóstica, Africana e Alexandrina285. Essa idéia será

284
- No campo filosófico a reminiscência platônica é um êxtase da razão na feliz contemplação
do hiperurânio.
285
- Essas três correntes discutiram no período da patrística, que termina m 430 com a morte de
santo Agostinho, o relacionamento entre a Fé cristã e a Razão grega. A corrente gnóstica afirmava a
191

posteriormente o farol de toda a idade média. Como as marés vivem o fluxo e


refluxo, essa tensão entre a Cidade de Deus e a cidade dos homens será
permanente na igreja intramuros. Mesmo neste nosso século ela permanece
implícita na mente dos cristãos. O “Reino dos Céus” apregoado pelo evangelista
Mateus, construído no outro mundo ou neste, espiritual ou materialmente, traz
implícita a consolidação de uma civilização apoiada no essencial.

O Filme “Irmão Sol e Irmã Lua”286 de Franco Zeffirelli é um melodrama


hollywoodiano. Há, porém uma cena que é antológica que, independente de sua
historicidade, demonstra em negativo o ideal de igreja não apenas na Idade Média
quando as cenas são locadas, mas em todos os tempos, porque falam de um ideal
atemporal.

Francisco de Assis287 consegue enfim a audiência com o papa Inocêncio III288 para
pedir autorização de sua nova ordem religiosa mendicante. Ao entrar na sala de
audiências sua pobreza contrasta com a magnificência e suntuosidade do ambiente:
a guarda postada, os levitas enfileirados sustentando turíbulos, os cardeais
envolvidos em riquíssimas roupas de seda compõem o ambiente da coorte papal.
Uma imensa escadaria leva ao trono do pontífice, ladeado pelos mais altos
dignitários da igreja vestido de ricas vestes, destacando-se no papa a capa magna
com preciosas pedras. O maltrapilho Francisco, autorizado, começa ler em latim um
pergaminho com palavras protocolares para o momento, soletrando-as... não são
suas... o pergaminho cai de suas mãos... e num arroubo começa a citar o sermão da
montanha do Evangelho de São Mateus: olhai os lírios do campo289,... conforme vai
pronunciando as palavras os cardeais vão franzindo o rosto, crispando os lábios até
que revoltados começam a gritar que ele seja posto para fora pelos guardas.

supremacia da Razão sobre a Fé, a Africana a superioridade da Fé sobre Razão e Alexandrina a


conciliação entre essas duas. Foi a essa que Agostinho de Hipona aderiu.

286
FRATELLO Sole, Sorella Luna. Direção: Franco Zeffirelli. Atores: Graham Faulkner, Judi
Bowker, Leigh Lawson, Kenneth Cranham. Gênero: Drama. INGLATERRA: Estúdio Vic Films / Euro
International Film S.A.1972. (121 min).
287
- Interpretado pelo ator Graham Faulkner.
288
- Interpretado pelo ator Alec Guinness.
289
- Evangelho de São Mateus Capitulo 6, versículo 28ss.
192

Havia desrespeitado o papa, quebrado o protocolo, pronunciando palavras ofensivas


contra a Igreja, o papado e a hierarquia, sinais visíveis da autoridade de Cristo na
terra, e, pressuroso, dois cardeais correm para se desculpar com o chefe da igreja,
enquanto os guardas arrastam Francisco e seus companheiros para fora. As
palavras atribuídas a Jesus no Evangelho soavam como estranhas, revolucionárias
e ofensivas.

A câmara vai fechando foco no rosto Inocêncio III com os olhos semi serrados
atordoado, quase em transe. Parece ter a reminiscência, em meio à sufocante
opulência não evangélica que o circunda e envolve, a pálida recordação de crenças
e sonhos da juventude. Determina que trouxessem de volta o jovem, que é posto
aos pés da escadaria de joelhos e com o rosto voltado para o chão. A cena continua
a ser significativa. O pontífice se desprende da capa magna e desce lentamente as
escadas não mais como rei, mas como ser humano despido agora em parte dos
adereços do poder. Aos pés da escada dois homens que se encontram, um, no
borbulhar dos grandes ideais da juventude, outro, na recordação de uma vida
também permeada por sonhos juvenis, mas traída: também na minha juventude...
balbucia Lottário290, confidenciando ideais amortecidos em seu coração. O papa
percebe num olhar o quanto que sua igreja estava distante dos ideais do Evangelho.
Num impulso, ajoelha-se e beija os pés de Francisco. Há um contido frenesi de
espanto e revolta entre os cortesãos. Um cardeal, porém, tranqüiliza seu vizinho
vendo nesta ação um jogo de cena para recuperar o controle sobre os pobres que
se haviam distanciado da igreja.

Última cena: o homem-papa afasta-se alguns passos de Francisco. Dois clérigos o


recompõem com rica capa fazendo desaparecer o homem, engolido pela pompa,
poder e autoridade. A tiara papal é elevada sobre sua cabeça pelos clérigos que
traçam com ela por três vezes a benção em forma de cruz. Cresce o canto litúrgico
sob forte nuvem de incenso. Francisco parte eufórico pela aprovação da sua ordem
e a cena seguinte é da idílica paz no entorno da capela campestre de São Damião
com os pobres vivendo o amor cristão. Termina a cena.

290
- Nome de batismo do papa Inocêncio III, cujo nome completo era Lottario dei Conti di Segni
193

Esses clichês com tintas fortes para atingir os sentidos e os sentimentos, e porque
não dizer, para bater recordes de bilheteria, não deixam de sublinhar o
distanciamento da igreja que se perdera no poder e no ritualismo e não soubera
manter o passo da história. A Mensagem do poverello de Assis transcende os
séculos porque traz em si e no que representa os ideais de cristianismo: o amor e o
desprendimento da cidade dos homens na busca da cidade de Deus. O filme de
Zeffirelli é um conto, com base histórica, mas com sabor de parábola. Fala mais do
que narra e mostra mais do que fotografa. Seja em nível intelectual ou afetivo diz
que tipo de igreja e de religião se quer e qual não se quer. O problema é que tanto
Inocêncio III como os altos dignitários da igreja, mostram-se seduzidos pela pompa
e poder, sendo a cristandade com seu poder e pompa mais forte do que o carisma
despojado do cristianismo.

A estória denuncia que a Igreja fora perdendo os valores evangélicos. Francisco


personifica um novo modelo de Igreja que pretende o retorno às fontes. Não será
sem motivo que no final do século XIII e inicio do século XIV o próprio
franciscanismo rachará entre os conventuais, agora proprietários de grandes
conventos, e os espirituais, que queriam fidelidade a Francisco e a tudo que ele
representava na igreja enquanto fidelidade aos ensinamentos de Jesus. Há o anseio
de retorno às fontes na medida em que cresce e se fortalece a cidade dos homens,
adentrando os ambientes da Cidade de Deus.

A descrição da experiência de Francisco é uma matriz que “verbaliza” os mais


profundos e nobres anseios do cristianismo. É uma chave para entender a dimensão
mística de João Bosco que foi um “invasor” da cidade moderna com os ideais da
Cidade de Deus. E na cidade dos homens plantou não mosteiros, mas orfanatos,
oficinas, escolas que com seus amplos ambientes recriavam os ideais do
cristianismo medieval. Mas as “muralhas” dessas edificações espirituais e materiais
com suas cidadelas sempre alerta contra os males do mundo passaram a sofrer
crescente sítio da cidade dos homens. Francisco de Assis foi um invasor da igreja
opulenta denunciando-a com sua pobreza, deixando atordoado o príncipe, rei e papa
com seu olhar repleto de sinceridade evangélica. João Bosco, quando assiste a
investidas contra a Igreja, contra o papado, tem a mesma sensação que teria
Francisco de Assis, caso visse seu doce refugio de São Damião ser assediado e
194

tomado pela púrpura, pelo ouro e pela seda dos cardeais que, adentrando aos
simples cômodos, enchessem o olhos de seus discípulos de outro modo de vida,
com luxo, poder e vaidade. No palácio papal alguns cardeais queriam expulsar
Francisco, que silenciosamente denunciava seus desmandos, mas acabaram tendo
que se submeter pela coerção imperial do papa de ao menos ouvir o poverello.
Agora, num efeito semelhante, Bosco e seus discípulos fiéis àquele mesmo
evangelismo de Francisco professado tantos séculos antes, querem expulsar essa
coorte barulhenta e frívola dos modernos e liberais que contestam a cristandade
como um modelo ultrapassado frente a um mundo economicamente industrial e
politicamente liberal. As armas e modos de ação podem ser diferentes, mas o ideal é
único.

João Bosco foi um cidadão desta cidade do alto e que não abriu mão dos seus
princípios de cristão convicto, mas se integrou na cidade dos homens usando sua
linguagem, seus valores, vivendo em sua dinâmica e no seu “jogo” fazendo-se
respeitar, não só como sacerdote, mas como cidadão produtivo e construtor da
cidade terrena e formando mão de obra especializada, além de oferecer educação e
instrução aos jovens das classes populares. Une-se à modernidade com
inventividade, educando os jovens cidadãos dessa nova era, com a esperteza,
porém, de um jogador de xadrez que, ao movimentar as peças no tabuleiro, ora
indo, ora recuando, tudo faz com uma única meta: a vitória da Igreja. Para Bosco
seu fim único e inequívoco é implantar a Cidade de Deus utilizando-se das melhores
armas que estavam disponíveis na urbe industrial.

Entende que a comunicação pela imprensa é um meio eficiente para divulgar suas
idéias. Lança as leituras católicas com publicações mensais, onde alterna leituras
infanto-juvenis recreativas, teatros, vidas de jovens exemplares, livros apologéticos
em defesa da igreja, de atualidades, escolares291 e de formação. Consegue alternar
com maestria o que há de mais moderno e, ao mesmo tempo, conservador mirando
seus públicos alvos e utilizando uma linguagem especifica para cada um deles.

291
- Para fazer frente aos constantes ataques sofridos pela Igreja na historiografia da época,
para suas escolas, João Bosco escreve “La Storia D’Itália” para uso em suas escolas onde faz uma
leitura do passado e do presente da península a partir de uma ótica apologética da igreja.
195

Bosco se integra na dinâmica do mundo industrial, que supõe produção e


competição por qualidade. Suas oficinas gráficas292 primam pela qualidade e
eficiência e, quando na feira de tecnologia de Turim sua impressora aperfeiçoada é
merecedora do primeiro prêmio e recebe o segundo lugar, nega-se a receber
prêmio, pois a qualidade tecnológica da máquina era tal que a colocava
naturalmente em primeiro lugar, mas o anticlericalismo reinante de então não
permitiria conferir a um padre o primeiro prêmio. Em carta datada de 25 de outubro
de 1884 solicita revisão da premiação e descreve em detalhes a imensa produção
de livros, sua qualidade, seu serviço prestado à Itália e à juventude pobre. A firmeza
de sua carta impressiona pela exatidão das imensas quantias pecuniárias envolvidas
na tipografia, dos trabalhos realizados para toda a Itália e da qualidade do serviço
prestado e conclui a carta com as seguintes palavras:

Neste caso basta-me ter podido com minha obra participar na Grandiosa
Mostra da invenção e indústria italiana e demonstrar com fato que no
período de 40 anos sempre promovi o bem estar moral e material da
juventude pobre e abandonada,isto sim o verdadeiro progresso da ciência e
da arte. Para mim já é um prêmio suficiente o reconhecimento do público,
que pode verificar com os próprios olhos a índole desta minha obra e dos
293
meus colaboradores (...)

E, paradoxalmente, este homem que fazia presença numa feira de Ciências da Itália,
competindo inclusive com invenções, era ao mesmo tempo o autor do livro “o Jovem
Instruído294”, um manual de formação e piedade para os jovens de seus oratórios,
onde estabelecia valores morais e procedimentos de vida cristã a partir de uma
visão do temor da perdição eterna, do perigo das insídias do demônio contra a

292
- Num período de confronto entre a igreja e o poder liberal as portas das gráficas eram
facilmente fechadas aos padres. Com sua gráfica João tinha autonomia de publicação. Quando foi
boicotado pelos fornecedores de papel, abriu uma fábrica dessa matéria, se bem que sua incursão
neste ramo de produção não foi bem sucedida, tendo que em pouco tempo fechar essa indústria.
293
- CERIA, op. cit., p. 254.
294
- Este livro foi escrito por João Bosco endereçado especialmente para os jovens. Nele trata
dos “dois ardis de que principalmente costuma servir-se o demônio para afastar o jovem do caminho
da virtude (p.7). Nesta introdução João Bosco pretende mostrar como o jovem pode se livrar do
inferno fugindo do vício pela prática da virtude e da piedade: “se começarmos a viver bem agora que
somos moços, continuaremos a viver bem pela vida afora, teremos uma boa morte, que será o
princípio de uma felicidade eterna” (p. 6) Nessa obra traça o que é necessário para um jovem ser
virtuoso, ser perseverante, o que deve fazer e evitar. (p.12-50) A seguir apresenta sete meditações
para os dias da semana tendo a seguinte seqüência: domingo: o fim do homem; segunda-feira: o
pecado mortal; terça-feira: a morte; quarta-feira: o juízo; Quinta-feira: o inferno; Sexta-feira: a
eternidade das penas; sábado: o paraíso. (p 51-75) A seguir segue-se o devocionário para as práticas
de piedade (p.551) onde se alternam orações em latim, instruções, catequese e a vida espiritual que
deveriam viver os jovens. A sua linha de pensamento possui seu embasamento na visão medieval de
mundo e de igreja.
196

juventude e recheado de orações tradicionais em latim para jovens pouco afeitos às


letras e muito menos ao idioma eclesiástico.

Dois são os ardis de que principalmente costuma servir-se o demônio para


afastar os jovens do caminho da virtude. O primeiro é fazer-lhe crer que
para servir a Deus é preciso levar uma vida melancólica, longe de todo
divertimento e prazer. (...) outro engano é a esperança de ter uma longa
vida e a de converter-se mais tarde, quando velhos ou na hora da morte.
(...) Adolescens iuxta viam suam, etiam cum sunuerit, non recedet ab ea.
Isto significa: sem começarmos a viver bem agora que somos moços,
continuaremos a viver bem pela vida afora, teremos uma boa morte que
será o principio de uma felicidade eterna. Pelo contrário, se desde moços
nos deixarmos dominar pelos vícios, geralmente assim continuaremos em
todas as fases de nossa vida até a morte, que será inicio funesto de uma
infelicíssima eternidade. Para que tal não aconteça a vós, aqui vos
proponho uma breve e fácil norma de vida, mas suficiente para vos
tornardes a consolação dos vossos pais, a honra da pátria, bons cidadãos
295
na terra e mais tarde venturosos habitantes do céu .

Esse opúsculo de quatrocentas páginas é, sob o olhar crítico de hoje, um estranho


monumento medieval edificado em plena planície moderna e liberal do século XIX
que coloca a eternidade como único sentido da vida e a presença insidiosa do
demônio a impedir a todo custo que a juventude chegue ao paraíso.

O mesmo sacerdote, que usava em suas oficinas tecnologia de ponta, que redige
cartas ao governo com uma linha de raciocínio e de lógica impecável e que era
autor de páginas avançadas sobre educação que transcenderam seu tempo pelos
seus conceitos educacionais, era também autor de páginas onde palpitavam idéias
que poderiam ter brotado da pena dum obscuro cura medieval do século XII. É
aparentemente contraditório que haja um coração que tenha uma cosmovisão de um
mundo povoado de demônios como autores e princípio do mal junto de uma mente
que pensa, trabalha e age alinhada com o mundo moderno e com a lógica do
mercado e do capital e com uma visão política que, se não tivesse profundas
amarras com o papado, não teria dificuldades em abraçar o pensamento liberal na
sua dimensão democrática porque, afinal, a congregação religiosa que fundara tinha
já na sua origem ideais liberais de governo, onde mais que sublinhar a autoridade de
Deus que se encarna nos superiores, destacava o clima de familiaridade que deveria
reinar nos ambientes educativos, sendo o superior considerado como um pai e
possui um profundo respeito pelos educandos.

295
- BOSCO, João. O Jovem Instruído. São Paulo: Livraria Salesiana, 1952, p. 5-6.
197

Não foram poucos os clérigos que se escandalizaram com a “falta de disciplina


religiosa” e mesmo com a “desordem” que reinava nas casas de Dom Bosco. Para
eles valia a lei expressa pela autoridade como representante da vontade de Deus,
enquanto que, para Bosco, deveria prevalecer a paternidade dos diretores que
sempre agiriam com afeto e coração. Para os primeiros a autoridade se sustinha em
nome de Deus e pela força da lei. Bosco, ao contrário, valoriza a autoridade moral,
muito mais que a legal, sabendo que, se os superiores fossem amados, seriam
respeitados.

Dom Bosco, mais do que uma sociedade, queria uma família fundada quase
que unicamente sobre a paternidade suave, amável e vigilante do superior,
e sobre o afeto filial e fraterno dos súditos.Aliás, ainda que mantendo o
princípio da autoridade e da respectiva submissão, não queria distinções,
296
mas igualdade entre todos em tudo .

Esse João Bosco “urbano” viveu conflitos com igreja institucional porque seu
comportamento fugia aos rígidos padrões da época. Era uma situação conflitiva
porque seu coração medieval o fazia se inclinar diante da hierarquia representante
de Deus, mas sua mente pragmática urbana o fizera entrar em rota de colisão com
seus dois bispos, antes seus amigos pessoais, com a cúria Romana e não teria ido
longe se não tivesse o beneplácito de Pio IX que lhe deu respaldo frente à rejeição
de segmentos da sociedade tradicional católica turinense, seus dois bispos, algumas
autoridades civis e membros da cúria romana.

Em nível eclesial era um pragmático. Não criou comunidades monásticas com


clérigos e padres circunspectos mergulhados numa espiritualidade desencarnada da
vida e do cotidiano dos pobres. Seus noviços, ao invés de uma vida contemplativa
de oração, viviam no pátio brincando com a molecada, dando aula, mantendo uma
disciplina duvidosa para os olhares externos e “poucos envolvidos nas coisas de
Deus”. Afirmar que queria “padres em mangas de camisa” no século XIX soava
como afronta e desrespeito à toda mística que circundava o sacerdócio. Se,
publicamente, manteve sempre docilidade e respeito com seus bispos, efetivamente
não se dobrou às suas exigências e nem tão pouco às dos governantes civis. Seu
temperamento resoluto e pouco inclinado a abrir mão de suas convicções, quando
parecia recuar, apenas o fazia como estratégia para, com novas investidas, atingir
seus objetivos.

296
- Felipe RINALDI, apud BROCADO, 2008, p. 50.
198

Foi um daqueles personagens polêmicos dos quais se poderia dizer, com


embasamento, o bem e o mal. Sendo rotulado como humilde ou atrevido, obediente
ou desobediente, prepotente ou dócil dependo da angulação pelo qual fosse
percebido.

Reconstituir as palpitações íntimas deste homem pode ser um processo psicológico


e historiográfico ainda por ser feito em profundidade297, pois possui algo de um
cavaleiro medieval que incursiona no espaço moderno impondo diálogo entre dois
mundos que se rejeitam: a igreja resistente a mudanças e os pensadores liberais
saturados do dogmatismo prepotente dos líderes religiosos. Essa luta foi também
travada no íntimo deste homem que teve que quebrar resistência, rever posições e
avançar para o novo. E, para além das querelas político-religiosas do seu tempo foi
capaz de elaborar princípios e valores educacionais que transcenderam o século
XIX.

297
- “O citado livro “Profundamente homem e profundamente Santo” de Pietro Brocado realiza
esse intento. Falta-lhe, porém, uma metodologia científica. O autor por gozar de amplo conhecimento
descuidou-se do recurso às fontes com uma apresentação que é válida ainda que careça de
embasamento documental de sustentação de suas afirmações que certamente nasceram de suas
pesquisas e estudos, mas que não são visualizadas em notas e nem na citação bibliográfica, o que
compromete a cientificidade da obra, que passa a ter como fonte de credibilidade apenas o nome do
seu autor.
199

3.1.2 Década de 1960: abalos nas crenças e estruturas da congregação

Após as lutas para ser aceito pela igreja como congregação e pela sociedade civil e
política como educador, João Bosco morre reconhecido e consagrado em 1888. Ao
seu sucessor Miguel Rua caberia a missão de consolidar essas vitórias, pois muitos
esperavam o declínio do movimento salesiano. Ao contrário, porém, foi um momento
de grande expansão.

Com a morte de Miguel Rua em 1910, a Congregação havia se consolidado na


educação das classes populares. Em 1934 João Bosco é declarado Santo pelo papa
Pio XI, sendo isso uma vitória memorável, pois, afinal, ele fugira aos padrões
daqueles tradicionais santos da igreja, mais anjos que homens. Sua vida
desconsertava por seus procedimentos incomuns esperados dos santos do
“panteon” católico que tinham esmaecida sua humanidade, em detrimento de um
angelicalismo desencarnado das realidades terrestres. Com sua canonização, a
congregação ganha cidadania e respeito definitivo em âmbito eclesial. Nos anos
seguintes a sociedade ocidental será estremecida por diversos eventos que a
desestabilizarão com reflexos na educação promovida pela igreja em sentido amplo
e na salesiana de modo particular. Sinalizemos alguns desses pontos
desestabilizadores.
200

3.1.2.1 Abalos em nível de mundo

Os anos 60 podem ser visualizados como um divisor de águas de mentalidades


das sociedades ocidentais. Essas mudanças foram gestadas por décadas e até
séculos e se materializaram com maior visibilidade através de transformações
econômicas, sociais e políticas criando uma demarcação mental entre passado e
futuro.

É um momento político crítico com a guerra fria e com o aumento das tensões
internacionais que se acirram com as guerras no Laós, Camboja e Vietnã,
confrontando-se belicamente direita e esquerda. Regimes totalitários procuram
impor suas hegemonias sobre países de terceiro mundo, apoiando guerrilhas, lutas
contra o colonialismo e regimes ditatoriais. Do lado capitalista a Aliança para o
Progresso com a distribuição de alimentos, capitaneada pelos Estados Unidos,
procura neutralizar os desequilíbrios sociais do terceiro mundo,vulneráveis aos
discursos de esquerda. Do lado socialista, a União Soviética consolida sua
hegemonia reprimindo “autonomias” como na “Primavera de Praga”. Uma
hecatombe nuclear parece mais que uma hipótese frente às crescentes tensões
internacionais.

A instabilidade atinge também a sociedade com eventos que se tornaram


referências-símbolos desta década. Os hippies quebram paradigmas numa era
belicosa em defesa da paz, do amor livre e das drogas. O festival de Woodstock,
improvisado numa fazenda sob chuva e falta de infra-estrutura, programado para
200.000 expectadores é invadido por mais de 500.000 mil pessoas que, deixando de
ser expectadores, tornaram-se protagonistas de um dos maiores eventos de
contracultura da década com a quebra de padrões comportamentais em nível de
sexualidade, drogas, defesa da não-violência e respeito pela liberdade individual. O
movimento estudantil de Paris de 1968, no lastro da mesma mentalidade, se espalha
por vários países demonstrando a insatisfação da juventude contra um sistema
educacional que não lhes respeitava direitos.

“Havia um ar estranho: a revolução inesperada arrastara o adversário, tudo


era permitido, a felicidade coletiva era desenfreada” (Antonio Negri). 1968
foi o ano louco e enigmático do nosso século. Ninguém o previu e muito
poucos os que dele participaram entenderam afinal o que ocorreu. Deu-se
uma espécie de furacão humano, uma generalizada e estridente
insatisfação juvenil, que varreu o mundo em todas as direções. Seu único
201

antepassado foi 1848 quando também uma maré revolucionária - a


“Primavera dos Povos”-, iniciada em Paris em fevereiro, espalhou-se por
quase todas as capitais e grandes cidades da Europa, chegando até o
Recife no Brasil. O próprio filósofo Jean-Paul Sartre, presente nos
acontecimentos de maio de 1968 em Paris, confessou, dois anos depois,
que “ainda estava pensando no que havia acontecido e que não tinha
compreendido muito bem: não pude entender o que aqueles jovens
queriam... então acompanhei como pude... fui conversar com eles na
Sorbonne, mas isso não queria dizer nada” (Situations X). A dificuldade de
interpretar os acontecimentos daquele ano deve-se não só à “múltipla
potencialidade do movimento” como à ambigüidade do seu resultado final. A
mistura de festa saturnal romana com combates de rua entre estudantes,
operários e policiais, fez com que alguns, como C. Castoriaditis, o vissem
como “uma revolta comunitária” enquanto que para Gilles Lipovetsky e
outros era “a revidicação de um novo individualismo”. Tornou-se um ano
mítico porque “1968” foi o ponto de partida para uma série de
transformações políticas, éticas, sexuais e comportamentais, que afetaram
as sociedades da época de uma maneira irreversível. Seria o marco para os
movimentos ecologistas, feministas, das organizações não-governamentais
(ONGs) e dos defensores das minorias e dos direitos humanos. Frustrou
muita gente também. A não realização dos seus sonhos, “da imaginação
chegando ao poder”, fez com que parte da juventude militante daquela
época se refugiasse no consumo das drogas ou escolhesse a estrada da
violência, da guerrilha e do terrorismo urbano.“1968” foi também uma
reação extremada, juvenil, às pressões de mais de vinte anos de Guerra
Fria. Uma rejeição aos processos de manipulação da opinião pública por
meio dos mass-midia que atuavam como “aparelhos ideológicos” incutindo
os valores do capitalismo, e, simultaneamente, um repúdio “ao socialismo
real”, ao marxismo oficial, ortodoxo, vigente no leste Europeu, e entre os
PCs europeus ocidentais, vistos como ultrapassados. Assemelhou-se
aquele ano aloucado a um calidoscópio, para qualquer lado que se girasse
novas formas e novas expressões vinha a luz. Foi uma espécie de fissão
nuclear espontânea que abalou as instituições e regimes. Uma revolução
que não se socorreu de tiros e bombas, mas da pichação, das pedradas,
das reuniões de massa, do alto-falante e de muita irreverência. Tudo o que
298
parecia sólido desmanchou-se no ar .

No Brasil a UNE ganha corpo fomentando as massas estudantis a uma inserção


sócio-política nos problemas brasileiros. O confronto com o regime militar tem seu
apogeu em 1968 com prisão em Ibiúna dos participantes do congresso da UNE 299
e, logo a seguir com AI 5300, quando explicitamente o governo golpista começa a
mostrar a face truculenta do regime militar.

298
- HISTÓRIA por Voltaire Schilling. Mundo: 1968. Disponível em:
<http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/1968.htm>. Acesso em: 18 jun. 2011.
299
- 13 de outubro de 1968.
300
- 13 de dezembro de 1968.
202

3.1.2.2 Abalos em nível de Igreja

No Início do século XX começa emergir “certo” iluminismo cristão de intelectuais


católicos na busca de atualização, como o emblemático Movimento litúrgico-
catequético e bíblico de Innsbruck301. Eram, porém, vozes abafadas, caladas e
enfraquecidas pela força do tradicionalismo e da hierarquia, que se faziam árbitros
não só da ortodoxia, mas das mais corriqueiras ações da igreja. Em palácios,
rodeados de cortes em vestimentas purpúreas, com preciosos anéis e com pessoas
se ajoelhando aos seus pés, homens, considerados sucessores dos apóstolos, se
distanciavam do mestre que lavara os pés dos apóstolos apresentando-lhes um
modelo de como ser maior naquilo que os Evangelhos definiram como uma contra
cultura chamada Reino de Deus no qual, para ser senhor, dever-se-ia ser servidor.

Nesta década de 1960 a Igreja se agarra às suas tradições diante de um mundo que
se agita em tensões econômicas, políticas, sociais e morais. Esses novos desafios
não são assimilados por parte da hierarquia, incapaz dum confronto com essas
realidades, havendo miopia de muitos príncipes da igreja acreditando que sua
estabilidade estava assegurada na solidez das catedrais, na liturgia sob o som dos
órgãos de tubo solenizando os pontificais, na nobreza do canto gregoriano, nas
alfaias usadas em rituais impecáveis, de acordo com as rubricas litúrgicas. O latim
utilizado nas catedrais ou nas minúsculas capelas parecia dar estabilidade e unidade
à Igreja. Preservar a tradição parecia tornar incólume a religião frente às intempéries
do mundo contemporâneo, como se a unidade da Igreja fosse sustentada em rituais
e não nas fontes primeiras daquilo que os cristãos acreditavam como manancial de
sua fé, as Escrituras ditas Sagradas. A maior parte dos anciãos da igreja
desconectava-se dos desafios do mundo real para se anestesiarem numa tradição
que pouco contribuía para a projeção espiritual, política e social de uma instituição
que socialmente perdia força e prestígio frente aos novos tempos.

301
- Na Áustria na faculdade de Teologia o teólogo Josef A. Jungmann (1889-1975) lançou um
livro no qual preconiza a necessidade de uma radical reforma da Igreja Católica nas dimensões
Bíblica, litúrgica e Catequética rompendo com a mentalidade apologética e intelectualista que até
então o catolicismo vinha assumindo como reflexo de sua reação à reforma protestante. A partir do
seu pensamento, surge em 1939 a Escola Querigmática de Innsbruck. Em 1950 essa busca de
depuração do catolicismo ganha o nome de “Movimento de Innsbruck” que buscava uma renovação
bíblica, litúrgica e catequética na igreja. Esse movimento terá influência na proposta de Renovação
do Concílio Vaticano II.
203

No seio da Igreja alguns teólogos e pastoralistas se angustiavam ao perceber o


descompasso desta com esse mundo em crescente aceleração. O movimento de
Innsbruck sinalizava que se viviam novos tempos e a necessidade de que a
hierarquia se adequasse a eles, eram, porém, vozes poucas vezes ouvidas por uma
hierarquia conservadora.

Com a eleição de João XXIII esperava-se um governo de transição até o


amadurecimento da escolha de um líder capaz de fazer frente aos estonteantes
desafios da época, pois se delineava um previsível choque ideológico entre uma
linha conservadora e reacionária e uma pequena e ativa parcela de cardeais
progressistas que, conscientes da rapidez das mudanças do mundo cada vez mais
secularizado, acreditavam ser preciso buscar uma corajosa adequação da igreja aos
novos tempos. Esse papa, que deveria ser apenas uma presença figurativa na igreja
pela sua velhice, desconcerta, porém, e usando o poder absolutista que o cargo lhe
conferia convoca o Concilio Vaticano II tendo por mote o aggiornamento. Nem João
XXIII e nem os padres conciliares tinham idéia do que estavam iniciando. Comparar
o concílio à abertura da caixa de pandora chegou a ser uma imagem utilizada para
se referir ao seu impacto sobre a igreja. Quando o Concilio é “fechado”, como na
mitologia, a igreja trilhará caminhos e descaminhos perdendo-se em muitos males
que a afligirão por muito tempo. O concílio apenas explicitara uma latente crise na
igreja que agora apenas era explicitada. A maioria dos padres conciliares ao
iniciarem os trabalhos em 1963, acreditava que essa reunião mundial iria trabalhar
apenas algumas questões disciplinares para a Igreja no século XX .

Uma composição internacional e eclética. Mas o resultado a que chegaram


– totalmente assíncrono, comparado com o andamento indicado por João –
constituiu a primeira prova evidente de que uma representatividade assaz
universal geograficamente, não era critério suficiente para a renovação a
que o Concílio houvera devido tender. Os textos resultantes permitiam
ajuizar que o Concílio seria uma reafirmação de todo o dogma e de toda a
moral..." (...) "O Concílio, nos moldes que o Papa deixara entrever, era coisa
bem diversa daquilo que os trabalhos preparatórios deixavam prever. Todos
os que tinham conhecimento deste trabalho ficavam impressionados pelo
caráter dogmático, acanhado, escolástico dos textos. Muito ao invés de
representarem um progresso, algumas formulações referentes à Revelação,
à ordem moral, aos problemas do matrimônio, acabavam sendo um
retrocesso, quando comparadas à teologia formulada pelo Magistério, e
especialmente pelo Papa Pio XII." “Porém”, continua Zizola "se é verdade
que, de fato, por baixo da casca do organismo eclesiástico, uma surda
germinação evocava um Concílio renovador, e secretamente lhe preparava
o terreno, por outro lado também é verdade que o anúncio do Concílio
apanhara o mundo católico despreparado. Poucos eram os espíritos que
tinham consciência da vastidão da crise religiosa em curso; correntes
204

reformadoras pulsavam no corpo do catolicismo, mas de forma erradia,


clandestina, farejadas por rastreamentos intelectuais mais ou menos
declarados: o anúncio do Concílio foi a primeira oportunidade para essas
correntes encontrarem um centro de condensação e manifestação, de
302
reabilitação e expressão pública a serviço oficial de toda a Igreja .

Nos seus bastidores, porém, os reformistas, agiam com agilidade. Articulavam-se,


faziam alianças, procuravam convencer, tendo por objetivo quebrar os paradigmas
do passado, sabendo que novas idéias deveriam passar pelo crivo de velhos
cardeais apegados às tradições. Dom Helder Câmara foi um dos articuladores na
busca de novos Caminhos.

Outro feito decisivo de D. Hélder Câmara no Concílio foi conseguir que os


melhores teólogos e peritos ali presentes começassem a trabalhar em
conjunto e em estreita colaboração com os bispos reunidos no "Ecumênico"
e na "Igreja dos Pobres". Esse mesmo grupo de teólogos prestou
inestimável serviço aos bispos do Brasil, por meio das conferências da
Domus Mariae, que na soma das três últimas sessões alcançaram o
respeitável número de 80, às quais devem ser acrescentadas outras dez da
primeira sessão. A essa força tarefa, já esboçada entre Dom Hélder, Larrain
e o Pe. Houtart de Lovaina na Bélgica que desempenhou o papel de seu
secretário, foi dado o nome de "OPUS ANGELI", a Obra do Anjo. Esta
trabalhou durante as sessões mas também nas inter-sessões, no sentido de
oferecer textos alternativos aos esquemas provindos da etapa preparatória
do Concílio, de preparar intervenções para serem lidas na aula conciliar, de
assessorar os bispos nas questões mais complexas, de elaborar "modos"
substitutivos para determinadas passagens dos esquemas submetidos a
votação. Um dos teólogos mais importantes deste século, o Pe. Yves
Congar e que colaborou estreitamente com Dom Hélder e com os grupos
por ele animados, tornando-se um pouco o coordenador do "Opus Angeli",
percebeu logo no primeiro encontro entre ambos, a importância de Dom
Hélder e de sua liderança que aportava ao Concílio algo mais que faltava
aos outros: uma "visão", no sentido do visionário, daquele que enxerga
longe e com largueza de vistas. Congar anota no seu diário a 21 de outubro
303
de 1962 : “Depois chega Hélder Câmara secretário do CELAM. Algo de
extraordinário: Hoje ao meio dia eles falaram de mim e conta-se que ele
disse que precisava encontrar-me. Após conversarmos por um bom tempo,
fomos a uma sala, onde se reúnem conosco uma dúzia jovens bispos.
Interrogam-me, mesmo Dom Hélder: um homem não somente muito aberto,
mas repleto de idéias, de imaginação e entusiasmo. Isto é o que falta a
Roma: a visão”. Dias depois, em circular à sua "família" de colaboradores
no Rio de Janeiro, Dom Hélder comentando sobre as pessoas que mais o
haviam impressionado como homens de Deus em Roma, chega ao teólogo
dominicano: "- O Pe. Yves Congar, cuja visão da Igreja, cujo ecumenismo,
cuja caridade e cuja cultura extraordinária, brilham ainda mais pela
humildade que ele encarna". Dom Hélder, finalmente, alcançara um agudo

302
- ZIZOLA, G.. A Utopia do papa João. Tradução de Maurício Rufier. São Paulo: Loyola,
1983, p. 307-309.
303
- "Puis arrive Hélder Câmara, secretaire du CELAM. C’est extraordinaire: aujourd’hui même,
à midi, ils ont parlé de moi et ont dit qu’il faudrait me faire venir. Après avoir bavardé un bon moment,
nous allons dans une salle, où se réunissent avec nous une douzaine de jeunes évêques. Ils
m’interrogent. Mgr. Helder même: un homme non seulement très ouvert, mais plein d’idées,
d’imagination et d’enthousiasme. Il a ce qui manque à Rome: la ‘vision’
205

senso de que mais do que as palavras e documentos, o que realmente


chegava às pessoas e as tocava, eram determinados gestos e símbolos e
que era pelas imagens que se fixava no povo o sentido do Concílio. Estava
sempre em busca destes gestos que pudessem causar impacto. Ao Papa
João XXIII havia proposto uma celebração final que abandonasse o fasto
barroco da Roma pontifícia e primasse pela simplicidade e profundidade dos
gestos. Repete a mesma proposta ao Papa Paulo VI e exulta quando alguns
destes sinais são por ele incorporados à celebração de encerramento do
304
Concílio .

O concílio apresentou ao mundo um conjunto de robustos e corajosos documentos,


bastante avançados para os padrões da velha igreja. O verdadeiro concílio, porém,
aconteceu nos bastidores e, se pode dizer que foi muito mais que os conservadores
queriam e muito menos que os progressistas desejavam. Posteriormente os
documentos conciliares sofrerão interpretações dando base tanto para ações
conservadoras como para postulações progressistas. Em seu nome foram feitos
avanços que não eram seus e freadas que ele não pretendia. Essa ambigüidade
pode parecer, enganosamente, ter vindo do concílio, mas nasceu da “calda cultural”
na qual estava imersos os filhos dessas novas gerações e desses novos tempos que
muitas vezes se organizaram na igreja desconhecendo os documentos conciliares e
papais e, paradoxal e chocantemente, mesmo o Evangelho, organicamente 305.

O resultado dos inúmeros eventos de 1960 foi o enfraquecimento da autoridade


papal, a relativização dos documentos conciliares e de todas as formas de
autoridade da igreja. Por mais de vinte anos, após o concílio grupos progressistas
ocuparão espaços nos postos de comando e da hierarquia. O longo pontificado de
João Paulo II foi marcado pelo permanente esforço de realinhamento do episcopado
mundial ao controle da Cúria romana desejosa de uma igreja doutrinalmente mais
conservadora frente à crescente fragmentação do ocidente eivado de materialismo,
hedonismo e relativismo. Busca-se recriar um “ecossistema religioso” pré conciliar
com retorno à valorização da autoridade, da hierarquia, do ritualismo e dos sinais
externos da catolicidade.

304
- ROCHA, Zildo. Helder o Dom: uma vida que marcou os rumos da igreja no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1999, p. 37.
305
- Em pesquisa conduzida por dez anos por formadores da Inspetoria de São Paulo verifica-se
que em média não chegam a 5% os jovens que entram nos seminários para os estudos sacerdotais e
que leram uma única vez linearmente os Evangelhos e as cartas apostólicas. Deve-se considerar que
essa proporção é muito baixa porque são jovens, em geral, oriundos de lideranças da Igreja que
pretendem ser pegadores do cristianismo e nem sequer conhecem a sua fonte de inspiração primeira,
os Evangelhos.
206

3.1.2.3 Abalos em nível de congregação

Visualizar a faculdade salesiana de Lorena sem esse entorno histórico, político e


religioso seria construir uma visão míope sobre sua realidade, já que essa situações
assinaladas terão impacto na congregação.

No fim dos anos sessenta começa o ocaso – agora o percebemos – de um modelo


de Ensino Superior não oficial engendrado pela congregação no final do século XIX
para religiosos e oficializado pelo decreto presidencial de Getúlio Vargas 1952 306
que legalizava, mais do que uma faculdade, um seminário. Teoricamente as
incertezas e as turbulências ideológicas, sociais, políticas e religiosas da década de
1960 deveriam ser superadas após o concílio. A Igreja-instituição elaborara
documentos com referenciais claros e bem definidos dos novos caminhos a serem
trilhados nestes novos tempos. Há, porém, para além da instituição, pessoas que
organizaram seu universo mental com bases na tradição, acreditando e apostando
suas vidas nela. As crises da década impactam sobre os homens da congregação
que sentem a insuficiência de antigos modelos para os desafios contemporâneos,
gerando com isso uma crise de identidade de milhares de membros da igreja que
não se sentem adequados e integrados aos novos modelos de mundo, ou porque
presos ao passado, ou ainda por considerarem pouco oxigenadas as soluções
elaboradas para o presente.

Os salesianos tinham conseguido encetar com eficiência o diálogo com as


modernidades dos séculos XIX e XX, apesar de representarem uma igreja do
passado em nível doutrinal. Tornam-se cônscios, dolorosamente, que essa igreja
que lhes dera segurança doutrinal e dogmática, ela mesma agora parece
desnorteada frente à crescente aceleração da sociedade com novas formulações

306
Decreto no. 30.552, de 14 de fevereiro de 1952 - "Concede autorização para o
funcionamento dos cursos de Filosofia, Pedagogia, Geografia e História, Letras Clássicas, letras
neolatinas e Letras Anglo-germânicas, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras". O presidente
da República, usando das atribuições que lhe confere o artigo 87, item I, da Constituição, e nos
termos do artigo 23 do decreto-lei no. 421, de 11 de maio de 1938, decreta: Art. 1 - É concedida
autorização para o funcionamento dos Cursos de Filosofias, Pedagogia, Geografia, e História, Letras
Clássicas, Letras Neolatinas e Letras Anglo-germânicas, da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras, mantida pela Inspetoria Salesiana do Sul do Brasil e com sede em Lorena, Estado de São
º º
Paulo. (...) Rio de Janeiro, 14 de fevereiro de 1952, 131 da Independência e 64 da República.
Getúlio Vargas. E. Simões Filho. CENTRO UNISAL. Sedoc: Arquivo histórico. Lorena.
207

religiosas, morais e doutrinárias. Some-se a isso que o espírito do Vaticano II ainda


não tinha sido integrado na prática e na vida da Igreja que fazia com que muitos
preferissem se reportar à formação recebida dos concílios de Trento e Vaticano I. A
solidez da velha Igreja parecia comprometida ao perder milhares de padres,
religiosos e religiosos que não mais se identificavam com ela nesta nova
configuração intermediaria entre o passado e o futuro. Paulo VI gerenciará essa
crise na busca de um difícil equilíbrio entre o passado o presente. João Paulo II fará
uma dupla opção: no âmbito político e social avançará com o mundo moderno e no
doutrinal consolidará um episcopado tradicional que se fortalecerá até o final do seu
longo pontificado.

Todas essas crises dos anos 60 atingirão a congregação salesiana e de modo


especial no Brasil, sua casa de formação de Lorena. As turbulências do mundo
exterior são perceptíveis nas atas, às vezes truncadas, das reuniões dos formadores
que parecem influenciar seu redator que se perde nas idéias registradas:

Política Nacional: É deixado. Peço o favor de serem salesianos verdadeiros.


A Doutrina e os princípios devem ser defendidos. Se o governo faz algo
contra os princípios, paciência. Não tenho culpa. Mas devemos respeitar as
pessoas. Na prática: os clérigos são imaturos e vamos nos calar.
Contentemo-nos de expor os princípios. Leviandades podem nos levar a
conseqüências graves em casa e na faculdade. É contra o espírito
salesiano imiscuirmos na política (...) Até padres e teólogos inteligentes
com teorias que em pouco tempo fariam grandes estragos ( ...) não
podemos formar nosso pessoal como há pouco tempo. Hoje se precisa uma
formação mais sólida, profunda, clara e madura. Vocês devem ser mais
rigorosos na admissão aos votos (... ). Assiste-se a uma influência sempre
maior de uma mentalidade racionalista que prescinde o espírito de fé,
humildade, obediência, votos... (... ) observa-se uma grande tendência ao
que favorece o mundo: os divertimentos do mundo, jornais, revistas
televisão. (...) procurar entusiasmá-los para nossa missão. Falar pouco de
movimentos de apostolado de barulho... falar das atividades nossas. Coisas
sociais... conferências... Onde vamos? Será o superior a designar o
salesiano para essas coisas e não o indivíduo a decidir-se. Muito cuidado
em pôr os clérigos num contato com essas coisas. Bastam as idéias gerais.
307
Claríssimas.

O seminário, porém mantém uma política de isolar os clérigos das “coisas do


mundo”.

Há revistas como Fatos e Fotos, Realidade, que não devem estar na


Biblioteca, à disposição dos clérigos. Para as outras é necessário formar-
lhes o critério e a força de vontade para que não leiam o que não presta.

307
- CENTRO UNISAL. Sedoc: Ata da Casa. De 14 de março de 1956 a 07 de setembro de
1966. Arquivo histórico. Lorena, p. 64v. 65v. 89v.
208

Para os problemas de Rádio, cinema e TV vejam o que diz D. Ricceri no


308
Capítulo XIX.

Com a greve dos 100 dias liderada pelo estudante Ivo Malerba, presidente do DA e
ligado ao DA da USP e, conseqüentemente à UNE ,os clérigos antes protegidos
num seminário-redoma, serão lançados em meio aos candentes temas sobre a
realidade brasileira. Por circunstâncias locais e buscando defender a congregação
participam dos debates estudantis que eram vetados aos professores 309, lêem os
livros proibidos nos ambientes do seminário para poder rebater os argumentos dos
alunos de esquerda que buscavam seu embasamento sobretudo nas obras de Marx.

“Influenciados por alguns professores e também por freqüentes leituras das


obras de Karl Marx, os alunos tinham o desejo de mostrar à sociedade que
a doutrina marxista não era exatamente o que os governantes e a maior
parte da Igreja Católica transmitiam. "Esse período foi de grandes brigas,
mas na área ideológica. O comunismo era tido como um regime de pessoas
que eram carrascos, que comiam criancinhas. Era a pior coisa do mundo.
Nós líamos muito, conhecíamos e tínhamos com que argumentar.
Queríamos provar que o marxismo era uma coisa boa e a grande maioria
queria provar o contrário", explica o ex. diretor sociocultural do DA da
310
faculdade de Lorena, Fausto Padilha.

As assembléias estudantis são calorosas. Estando os salesianos-padres proibidos


de participar delas pelas lideranças estudantis serão os clérigos que, como alunos,
se farão presentes. Quebra-se a rotina e a rígida disciplina do seminário com
participação dos formandos nos debates políticos, uso de roupas civis, leitura de
livros até então proibidos e contato com moças, já que inicialmente os líderes do DA
haviam, como estratégia, organizado todas a reuniões na Ala Feminina da
Faculdade para que os clérigos não participassem, já que conheciam a rigidez das
normas do seminário que proibiam o contato com o sexo oposto. Quase que como
anedota, o professor Sodero, cita o depoimento do ex-aluno Ivan Maia, que afirma
que os alunos do DA usam de todos os meios para causar baixas entre os clérigos
salesianos.

Outros aspectos das reuniões, como os artifícios para conseguir os


importantes votos dos clérigos, são lembrados pelos ex-alunos: 'as moças
tinham orientação de atacar os clérigos, usando mini saia e outros artifícios.

308
- Palavras do Inspetor padre.... In: CENTRO UNISAL. Sedoc: Ata das Reuniões do
Conselho da Casa do Instituto Salesiano de Pedagogia e Filosofia – 15/03/67 – 14/08/73.
309
- Leia-se “os padres”.
310
- BORREGO et. al., 2000, p. 58.
209

Pois havia pressão dos padres para que os clérigos votassem contra o
311
AGIR . Era pressão contra pressão' ( Ivo Malerba 2001) 'as colegas da
Feminina compareceram em massa. Só que na época estava em moda a
minissaia. Resultado de Integração: diversos clérigos abandonaram a
312
batina' (Ivan Maia).

Os clérigos vivem a experiência de liberdade fora dos rígidos horários do seminário,


quando também cresce nestes jovens salesianos a autoconfiança pelas vitórias
obtidas nos debates das reuniões estudantis. Os seminaristas, até então tutelados
ideologicamente, mergulham nos temas políticos e sociais que questionam o regime
militar e defendem os movimentos populares. O estudo da realidade brasileira infla
em muitos a simpatia pela União Soviética e Cuba e a rejeição do imperialismo
americano. Em meio à crise, os ramos masculino e feminino da congregação se
polarizam, assumindo as irmãs o lado dos alunos e a missão de conscientização dos
estudantes, enquanto que a maioria dos padres, o status quo. As irmãs conseguem
cativar os estudantes por sua inserção e engajamento político-social.

"Nossos alunos iam para esses bairros menos favorecidos, próximos


da faculdade, dar aulas à noite, e, às vezes, durante o dia, para
ensinar a comunidade a ler e escrever", conta irmã Iracema. Ela
esclarece que o método Paulo Freire parte da necessidade do
pobre, do injustiçado e do oprimido, despertando-o para uma visão
mais abrangente e politizada da realidade. "As palavras brotam
dessa necessidade e têm uma carga de conscientização muito
grande. Então, em poucas horas, eles aprendem a ler e a abrir os
olhos para tornarem-se mais ativos no meio onde vivem", diz.313

Era objetivo do DA assumir o controle da faculdade tirando-a das mãos dos


salesianos. Os seminaristas defendem a faculdade graças ao seu preparo
acadêmico e sólida formação, amparada, agora em leitura critica de muitos autores
polêmicos para os padrões conservadores da maioria dos salesianos e que, nesta
situação, não conseguem controlar como chegam as informações aos formandos.
Estes tomam consciência da força das idéias e dos princípios que lhes garantem
êxito nos embates ideológicos. A situação que vivem com acesso a informações e
debates sem o controle dos padres jamais foi imaginada por seus formadores e

311
Aliança do Grupo de Integração e Renovação. Chapa vitoriosa do D.A. em 1968 sob a
liderança do Ivo Malerba.
312
- TOLEDO, 2003, p.176.
313
- BORREGO et al., 2000, p. 57.
210

deixará marcas profundas na mentalidade desses jovens que vivenciaram essas


experiências e que, futuramente, assumirão o comando da congregação. E essa
marca inicialmente pessoal, terá posteriormente significativos reflexos sobre a
própria Instituição na sua posterior elaboração de uma nova forma de leitura da
realidade pois esses jovens serão os responsáveis pela presença salesiana em todo
o Brasil e em boa parte dos países sul americanos. Será uma nova forma de ler a
realidade, muito diferente da européia.

A geração dos salesianos que sairão dessa experiência representarão a ruptura com
o modelo de congregação construída até então e que tivera na tradição e nos
padrões conservadores da igreja o seu referencial. Os grupos ortodoxos de
salesianos continuarão tentando impor seus modelos e referenciais do passado. As
novas gerações, porém, como filhos de um novo tempo realizarão uma releitura do
carisma salesiano que vai paulatinamente se descolando do modelo de congregação
sustentado até então.
211

3.1.3 A Igreja após a crise dos anos 1960

Já no final do século XIX a produção industrial exigia transformações estruturais


em níveis globais para atender sua demanda de mercados, de matéria prima, de
combustíveis e de mão de obra. A consolidação do Estado moderno torna-se
premente frente às exigências do capital industrial gerando a unificação política de
várias regiões da Europa como resposta aos desafios econômicos desses novos
tempos. Essa é a realidade da península itálica quando questões candentes e
desestabilizadoras são postas pelo liberalismo, socialismo, capitalismo e as diversas
vertentes do sindicalismo. A Igreja não tem como se mostrar indiferente a estas
novas demandas sociais e ensaia, ainda que tardiamente, sua primeira intervenção
na questão social através de Leão XIII na Rerum Novarum314.

Em pouco mais de cem anos, porém, as transformações geopolíticas, econômicas e


sociais alcançam um nível impensável até então. O Capitalismo e o Socialismo
redesenham a história, a política a economia, a mentalidade, os costumes e as
ideologias num processo de aceleração cultural que neste século começa a escapar
do controle dos detentores do poder político, ideológico e econômico dos povos. No
inicio do século os movimentos totalitários de direita e esquerda, as guerras
mundiais, a guerra fria, a expropriação iniciada pelo neo-colonialismo de países
pobres pelo imperialismo serão apenas aspectos visíveis deste macro processo de
mudanças e de aceleração da história e da sociedade.

No século I, incrementado pela interação de pessoas pelas redes sociais, cresce a


perda do controle de informações das sociedades, tanto do poder econômico, como
político. Os “criadores” do atual sistema de comunicação sabem que a comunicação
e a informação são capitais valiosos no sistema político, econômico e social e os
detentores do poder percebem que esse capital escapa-lhes do controle quando, em
nível global notícias, informações, protestos e manifestações circulam sem a tutela
dos poderes constituídos.

314
Leão XIII – 15 de maio de 1891 - Este documento dará inicio à Doutrina Social da Igreja e
será o primeiro referencial para os católicos a respeito do confronto entre o capitalismo e o
socialismo. É, porém, uma intervenção tardia, quando as principais soluções já haviam sido
sinalizadas por socialistas utópicos e científicos. O modo majestático com que Leão XIII se expressa
também contrasta com a forma mais moderna do Manifesto Comunista de Marx mais direto para o
homem do século XIX.
212

Esta passagem da organização do mundo é muito rápida e merece uma visão


panorâmica. Inicialmente o capitalismo inclinara-se para o fisiocratismo quando
Adam Smith acreditava na auto regulação do capital. O Laissez faire, laissez passer, le
monde va de lui même315 conhece sua insustentabilidade na quebra da bolsa de Nova
York que colocou em cheque esse sistema econômico. O New Deal teve como
percepção que o capitalismo teria que ser não só controlado pelo Estado, mas
fomentar o Estado de bem estar social com redução do lucro das empresas em favor
das classes menos favorecidas, garantindo-se com isso a sobrevivência do sistema
capitalista. Superada essa crise, o neoliberalismo se voltará para a defesa do Estado
minimalista cuja finalidade única seria garantir a estabilidade social para a ação
voraz do capitalismo. A formação de blocos econômicos é o primeiro sinal da
insuficiência do antes todo poderoso Estado Moderno de se auto-sustentar. Mesmo
o regime comunista implantado pela revolução bolchevista e pelo maoísmo
explicitará sua falência econômica e política em 1989 com a queda do muro de
Berlim316 e pelo massacre de jovens universitários na Praça da paz celestial em
Pequim317. A queda do muro representava então mais que a queda de um sistema
político que resistira com tenacidade aos poderosos embates do capitalismo, mas
tivera sua ruína intra muros pela sua ineficiência de garantir o bem estar das
populações da cortina de ferro. O comunismo chinês manteve-se enquanto sistema
político, mas vai sofrendo a erosão de seus princípios, especialmente aqueles
defendidos por Mao-Tse-Tung na Revolução Cultural, enquanto se rende com
luxúria a uma economia de mercado.

O capital domesticado por banqueiros nos século mostra-se hoje volátil


internacionalmente escapando ao controle das poderosas corporações
internacionais.Os meios comunicação social que sempre estiveram sob o controle
do poder econômico e político, não importando se de direita ou esquerda, escapam
a esse controle quando circulam idéias que interagem entre si sem o controle de
Estados e de Corporações econômicas, seja furtando bens de consumo e

315
- Vincent de Gournay (1712 – 1759) autor desta frase teve como discípulo Adam Smith e o
influenciou na sua teoria da auto regulação da economia expressa no seu livro “A Riqueza das
Nações” que foi um marco para o pensamento liberal capitalista.
316
9 de novembro de 1989
317
- 4 de junho de 1989
213

entretenimento,seja acessando a informações confidenciais de Estados e


divulgando-as ou promovendo levantes contra governos fragilizados pela livre
circulação de insatisfações e frustrações. O Web site é um espaço livre e
democrático.

Essas movimentações econômico-políticas atingem em cheio à velha igreja. Iludem-


se os que acreditam que ela no século I se estabilizará voltando ao modelo medieval
com alguns retoques de modernidade. A sociedade pós-moderna é materialista e
individualista, distanciada de religiões institucionais, podendo-se constatar que
muitos templos perdem seu caráter de lugar de culto para se tornarem museus.
Além disso, o controle de natalidade fragiliza muitas regiões católicas e protestantes
da Europa, com a crescente invasão dos bárbaros do sul que, com alta taxa de
natalidade, geram desequilíbrio demográfico pondo em xeque a cultura cristã de
países como a França, Inglaterra e Alemanha. Prevê-se que para 2030 mais de
cinqüenta por cento da população européia, até então centro irradiador do
cristianismo, professará a religião islâmica. Também na América a igreja católica
vem perdendo espaço e incidência na sociedade com a diminuição de freqüência de
jovens aos templos e, mesmos os que o fazem, costumam, na sua maioria, dissociar
a prática religiosa institucional da vida privada, não aceitando ingerência nas suas
vidas da moral cristã. Consolida-se, assim, uma sociedade pós cristã com o
distanciamento das novas gerações das práticas religiosas tradicionais da Igreja. As
reações de re-catolização através de movimentos modernos e dos meios
comunicação não conseguem repor o déficit de fiéis jovens.

O conceito do Orbis Christianus sobrevive apenas no imaginário de poucas


comunidades arcaicas, interioranas ou fundamentalistas, desconectadas da
realidade. O poder nivelador dos meios de comunicação, ao invadir os meandros da
sociedade, violenta culturas, mentalidades e cosmovisões. O modelo formatado
pelos meios de comunicação social, quebra, abala e minimiza valores como família e
religião que não mais são apresentados como referenciais às novas gerações, salvo
em alguns poucos focos de resistência cultural, todos, porém, decadentes e fadados
por uma conjuntura de elementos desagregadores à extinção, seja com a morte de
seus maiores, ou com o desligamento dos jovens de suas raízes ancestrais, ao
214

absorverem novos estilos de vidas alinhados com os modelos unificadores da


globalização.

O modelo do catolicismo romano-medieval poderá ser recordado nas paredes dos


grandes templos, nos moribundos focos de resistência cultural, em alguns
segmentos conservadores e tradicionalistas que buscam o retorno à mentalidade e
ao modo de vida do passado. Esse movimento busca a restauração do passado,
apenas testifica a incapacidade desses grupos de lidarem com os desafios
contemporâneos. Tais movimentos estão fadados a serem peças arqueológicas que
atrairão curiosidade por sua dimensão excêntrica e exótica, seja pelas vestimentas,
seja pelo comportamento, não, porém como força coercitiva de reformulações
sociais.

O verdadeiro cristianismo não se mantém puro como o rio que passa pelas planícies
da história onde a água cristalina da fonte mistura-se com os resíduos dos vales, os
dejetos das culturas, dos campos e das cidades – do tempo, enfim –, mas só será
cristalina e pura se for captada na fonte de sua origem.

A década de 60 foi o marco divisório entre a antiga congregação salesiana do século


XIX e a que viverá no século I. No Brasil dois grandes eventos atingiram diretamente
a congregação salesiana. O primeiro, em nível mundial e só aparentemente mais
tranqüilo, foi o Concílio Vaticano II com suas reformulações e, a acima de tudo, com
seus “intérpretes”, que viam nesse evento a oportunidade para fazerem campear
soltas e selvagens diversas ideologias. Em médio prazo essas idéias, transvertidas
de renovação, invadiram todos os espaços da igreja e deram sustentação por mais
de vinte anos a toda e qualquer tese que se auto-rotulasse de renovação e espírito
do concílio. O segundo evento foi a greve dos 100 dias318 na faculdade de Lorena. O
impacto deste movimento ainda não foi objeto de estudos profundos 319, mas

318
- Esse evento durou menos que 100 dias, mas consagrou-se assim, provavelmente como
forma de torná-lo mais emblemático para definir o evento.
319
- O Professor Francisco Sodero Toledo no seu trabalho Igreja, Estado, Sociedade e
ensino Superior aborda um estudo histórico sobre esse eventos e nos quais esteve envolvido. Como
um dos principais historiadores o Instituto Histórico Vale-paraibanos é um intérprete qualificado deste
momento histórico. Não se pode ignorar também o citado trabalho de Ana Beatriz Borrego et. al. Uma
Lacuna na História: Movimento de oposição ao regime militar nas cidades de Lorena e Aparecida,
aborda o mesmo tema sob a ótica dos estudantes. Um terceiro trabalho de mestrado pela
Universidade São Francisco de Bragança Paulista, não publicado por Dilson Passos Júnior com o
título A Emergência do Protagonismo Juvenil: a crise do Paradigma “Razão” na faculdade
215

representou a primeira grande fenda que irá impactar a congregação nas décadas
seguintes. A congregação salesiana que emerge desses dias de crise e
contestações não será mais a mesma porque, apesar de ter acontecido apenas
numa cidade e numa obra, nela se formavam os líderes da congregação que nas
futuras décadas irão dirigi-la no Brasil e em parte da América. Neste momento se
aninham nas mentes desses futuros líderes os conceitos de participação política,
inserção na sociedade e conscientização numa mescla confusa de elementos da
teologia da libertação e marxismo com explicita ruptura ideológica com os padrões
europeus da congregação que até então vivera para si, intramuros, tendo no “cortile’
o espaço civilizatório das populações autóctones. Estes eventos inseriam de modo
abrupto os formandos nas pulsões e palpitações da realidade brasileira. Esses
poucos dias distantes da tutela formativa e eroupeizadora dos formadores desses
jovens permitiu-lhes debutar com a realidade do seu país rompendo com o
enclausuramento denunciado pelo professor doutor José Paulino da Silva, egresso
desses tempos de formação fechada:

"Ao sair para enfrentar a vida laica até então desconhecida, eu só possuía
os conhecimentos acumulados em minha experiência de quatorze anos de
vida enclausurada, onde conseguira dois títulos acadêmicos, além de dois
anos completos do curso superior de Teologia. Com esta bagagem comecei
a procurar emprego na cidade de São Paulo. E comecei como agente
previdenciário. (...) Não consegui durar sequer uma semana nesse
emprego. Tudo me era totalmente estranho. Até mesmo as situações
mais corriqueiras do cotidiano, como conversar numa mesa de bar,
descontar um cheque, abrir uma conta bancária, falar sobre futebol,
mulher, custo de vida. Esse assuntos, incógnitos para mim, eram
fonte de angústias e de dolorosas aprendizagens. Para quem vivera
quatorze anos em companhia de muitas pessoas e, de repente,
começava a viver só, mesmo estando no meio da multidão, era uma
sensação de deslocamento, como se estivesse num país estrangeiro,
ou perdido em outro planeta, ou numa grande solitária.320

salesiana de Lorena nas décadas de 1960 e 1970 discute a partir das obras de Sodero e Borrego a
alteração do conceito “Razão” elaborado por João Bosco quando esse conceito é confrontado com as
idéias marxistas e sofre alteração no seu entendimento pelos salesianos do Brasil e de alguns países
do Sul da América. Esse primeiro ensaio, que discute as linhas ideológicas desse movimento se
estabelecem como uma nova tese de releitura de um dos pilares da pedagogia salesiana e que
impacta profundamente toda a congregação em nível mundial ao afirmar que no Brasil um dos pilares
fundacionais da obra salesiana possui um entendimento diferenciado do resto do mundo. Essa idéia
foi acolhida pelo Prof. Dr. Antônio da Silva Ferreira membro do Conselho Histórico Salesiano de
Roma, que inclusive faz uma citação desse trabalho e pelo professor Luiz Passin então presidente
do Instituto de Estudos Vale-paraíbanos e que estivera no epicentro desses acontecimentos como
aluno e militante das lutas sociais dos anos 60.

320
- SILVA, 2002. p. 63.
216

3.1.4 Religião no século XXI e tensões com o pensamento contemporâneo

No final do século XIX os salesianos medievos na mentalidade, paradoxalmente,


conseguiram fazer um significativo passo a frente ao entabular diálogo com a
modernidade urbana, valorizando o homem na sua totalidade, não apenas como
homo spiritualis, mas também como homo faber e o homo ludens. A dimensão social
urbana e política deste novo homem-cidadão preconizado pela revolução francesa
haviam sido incorporadas por João Bosco no seu projeto educativo quando
pretendeu, como já afirmamos, formar bons cristãos e honestos cidadãos.

Se na idade média o catolicismo deu ritmo à sociedade, aos poucos, porém, esta
passou a avançar mais depressa ficando a igreja para trás, se distanciando do
pensamento leigo em nível de mentalidade. Nos primeiros quatro séculos da era
cristã ela teve que assumir os passos do império romano, e o fez com eficiência,
apesar de suas crises internas. Na Idade Média ela se tornou senhora da situação
ditando normas, costumes e engendrando a organização da sociedade. A partir do
século XV, porém, leigos começam a tomar as rédeas da sociedade enquanto os
lideres da igreja se mostravam incapazes de se desprender das estruturas do
passado e que lhes custará um alto preço por sua incapacidade de responder aos
desafios de cada tempo.

Quando João III propôs o aggionarmento com o Vaticano II as soluções


apresentadas já eram tardias num mundo em crescente aceleração. E este tem sido
historicamente seu dilema: sua incapacidade de estabelecer um eficiente diálogo
com a modernidade. Um primeiro movimento de formação de uma intelectualidade
leiga católica foi no início da república capitaneado por Dom Leme para que essa
pudesse fazer frente ao positivismo e ao liberalismo que se opunham à educação
até então praticada, eminentemente clerical, livrando-a dos tentáculos da Igreja.

É crescente o número de pessoas que afirmam sua crença em Deus, desligadas,


porém, das formas institucionais de religião. Em muitas sociedades não é motivo de
constrangimento declarar-se ateu. Tais posturas naturalmente justificam a perda do
controle ideológico, cultural e religioso da igreja católica, com forte impacto sobre a
educação praticada por suas agências de educação, sendo, portanto uma situação
desafiadora para a congregação salesiana.
217

O velho púlpito de onde o clero conduzia os corações e as mentes é coisa do


passado frente às multiformes modos de acessos às experiências religiosas extra-
ecclesiae. As aspirações e projetos dos jovens deste novo milênio passam ao largo
dos ideais e discursos das religiões, pois esses mesmos jovens estabelecem ideais
de vida ligados ao consumo, ao prazer e ao individualismo. Materialismo,
Hedonismo, Consumismo e Pragmatismo são os ingredientes existenciais de boa
gama das novas gerações.

Há grupos de resistência cultural que se posicionam contrários às estruturas


massificadoras dos meios de comunicação social existindo um leque multifacetado
de resistências conscientes ou inconscientes, militantes ou omissas, assumindo
formas marginais de vida e de atitudes dentro da sociedade que vivem.

No âmbito da igreja católica ganham visibilidade movimentos que poderíamos


denominar de regressistas vendo no passado, especialmente na idade média, um
mundo perdido que deve ser reconstituído. Essa visão idealizada e romântica
interfere no modo de se viver e vestir 321 rompendo com o mundo atual que
acreditam, degrada o ser humano. Além dos regressistas ou medievalistas há ainda
os fundamentalistas que ignoram por completo a realidade em que vivem
procurando um retorno fiel às origens, cultivando profundo senso de fidelidade e
coerência com o momento fundacional do catolicismo. Há os rupturalistas que
consideram o cristianismo insuficiente e, rompendo com a tradição cristã, buscam
no oriente ou em outras civilizações modelos de vida que harmonizem suas vidas
consigo mesmos, com a sociedade e com o universo, por considerarem a civilização
ocidental vazia de sentido e valores, não tendo nada a oferecer que lhes dê sentido
à vida. E, finalmente os alternativos que, sem abandonar a sociedade em que vivem,
buscam, sobretudo nos grandes centros urbanos formas tribais e marginais de

321
- Recentemente no Brasil ter feito bastante alarde dois grandes movimentos: Arautos do
Evangelho e Toca de Assis. Os primeiros mantêm um férreo regime militar, formação moral rígida,
disciplina acima de tudo e uma formação muito tradicional. Impressionam pela grandiosidade de suas
cerimônias e pela harmonia de seus corais. A Toca de Assis veste-se pobremente com trapos e
dedica-se aos irmãos de rua. É um retorno ao franciscanismo mais radical das origens. Outros grupos
apresentam uma faceta mais exigente como a Tradição, Família e Propriedade inspirada em Plínio
Salgado. A Renovação Carismática possui diferenciada vertente: em geral seus jovens vestem-se
como os jovens do atual século, estão infiltrados nos meios sociais, nas universidades, em geral não
se distinguindo dos demais jovens. Professam, porém a prática de um catolicismo e de uma moral
tradicional, em alguns segmentos com grande ênfase para o pecado e para a ação do demônio.
218

vida322. No catolicismo esta atitude pode tomar as feições de grupos fechados que
não dialogam e nem se abrem a outras experiências de vida cristã, alimentando a
idéia de serem eles os verdadeiros cristãos fiéis à tradição deixada por Jesus Cristo
à Igreja do passado.

322
- Tribos urbanas: Emos, góticos.
219

3.1.4.1 Dom Bosco – Mito ou lenda

O mito fundacional nascido com Dom Bosco vem sustentando gerações de


salesianos que têm nessas narrações o sentido para suas vidas e para seus ideais
de educadores. A avalanche de informações às quais têm acesso as novas
gerações podem colocar a figura de João Bosco como mais uma informação entre
as milhares que povoam a mente dos jovens. O vigor dos mitos, ritos e símbolos
salesianos pode ser tornar apenas uma lenda, até crível, como máxima que nasce
de uma parábola, uma estória do passado na qual o fundador pode perder sua força
motivadora, tendo sua imagem esmaecida por tantas outras imagens sobrepostas à
sua.

O movimento religioso-educacional salesiano é filho da igreja e teve por meta


primeira defendê-la contra o liberalismo, o materialismo e a reforma protestante
procurando implantá-la da forma mais pura possível nas classes populares
ameaçadas pela cultura dissolvente das nascentes cidades industriais. De fato, a
cristandade que Pio IX procurou restaurar foi diluída pelos redemoinhos da
modernidade. Hoje o cristianismo se vê fragilizado pelas ondas avassaladoras do
pensamento contemporâneo que, tal qual tsunami, deixa um rastro de destruição ao
demolir os ideais religiosos e morais sobre os quais se ergueu a civilização cristã do
ocidente. A gloriosa cidade de Deus defendida pelos medievais continuava a cantar
nas suas solenes liturgias a grandeza do Cristo pantocrátos como o rei do universo:

Christus323 vincit! Christus regnat! Christus imperat!

Summo pontifici et universali patri, pax, vita et salus perpetua!

Reverendissimo episcopo et universo clero ac populo ei commisso, pax, vita et salus


perpetua!

Tempora bona veniant! Pax Christi veniat! Regnum Christi veniat!

323
- Cristo vence, Cristo Reina, Cristo Impera!. Ao Sumo pontífice pai universal que tenha paz,
vida e saúde para sempre. Ao nosso reverendíssimo bispo e a todo o clero e ao povo a eles
confiados, que tenham paz, vida e saúde perpétua. Venham para nós os bons tempos!. Venha a Paz
de Cristo. Venha o reino de Cristo!
220

Essa proclamação repleta de fé e embalada pelo odor do incenso e pela luz de velas
nos templos desde o século XIX cada dia se torna menos real, pois a cidade dos
homens se sobrepõe à cidade de Deus, não só ideológica, mas fisicamente, ao
desbaratar os territórios papais integrando-os na Nova Itália.

A década de 1960 foi um divisor de águas para a civilização ocidental e,


conseqüentemente, para a Igreja e para a congregação salesiana, quando a
crescente indiferença ao catolicismo institucional é obstáculo para os educadores
salesianos. Nas igrejas ainda se canta o Christus Vincit que atrai mais pela beleza
estética de sua melodia que pelo significado teológico. Nesta década de mudanças
eram ainda vivos velhos salesianos que se orgulhavam de ter conhecido Dom
Bosco, como também a segunda geração daqueles que foram educados pelos co-
fundadores, sendo memória e referencial das tradições dos primeiros tempos. Estes
salesianos, na crise da faculdade de Lorena e 1968, defenderam com autoridade
moral os princípios salesianos frente aos universitários rebeldes tendo como
referencial as tradições da congregação. O que não se esperava é que nos
episódios de 1968 os jovens clérigos se contaminassem com as novas idéias que os
líderes estudantis levantavam como bandeira e que apaixonavam a juventude
destes anos. Os jovens clérigos que só deveriam fazer frente às reivindicações
revolucionárias do DA, ao lerem os livros proibidos324 e tendo convivido com jovens
engajados na política universitária e do país, puderam perceber que as denúncias de
autoritarismo, de censura e de arbitrariedades atiradas contra o governo eram
situações semelhantes às que eles viviam na própria estrutura do seminário com
uma organização hierárquica, européia e medievalmente organizada, onde os
superiores encarnavam não os ideais de uma Revolução Francesa, mas o conceito
medieval da autoridade advinda de Deus.

Ao terminar a Greve dos cem dias, todos estavam extenuados física e


emocionalmente: foram feitas discussões sobre a realidade brasileira, realizadas
passeatas e o campus fora algumas vezes cercado pelas tropas militares, inclusive

324
- Manifesto Comunista e o Capital de Karl Marx. Os panfletos “revolucionários” que
circulavam no meio acadêmico distribuídos pela UNE. Algumas idéias explicitadas pela Teologia da
libertação.
221

com tanques de guerra. Pelo AI 5325 o governo demonstrara que usaria mão de
ferro contra toda insubordinação contra ordem vigente. A prisão dos líderes
estudantis no congresso da UNE em Ibiúna326 arrefecera os ânimos em diversas
universidades. As energias dos estudantes agora se concentravam em concluir o
ano letivo recuperando o tempo gasto em tantas assembléias.

Os clérigos que voltaram à vida regular da formação no seminário, porém já não


eram os mesmos. Os superiores que se tinham exasperado pela greve e pela
aparente balbúrdia, agora acreditavam que a vida regular do seminário voltava aos
eixos. A imposição da ordem pelo regime militar tinha eco também nos ambientes da
casa de formação. Padres-professores que tinham manifestado inclinações pela
esquerda e pelas lutas sociais defendendo o engajamento com as bases populares
foram afastados, muitos deles para a Europa. O relacionamento com as irmãs
estava inexoravelmente perdido. O diretor327 de 1968 foi frágil diante da crise sendo
substituído em 1969 por novo diretor328 que viera implantar a ordem e a disciplina

A posse do novo diretor ocorreu em seção solene da Congregação,


cercada de formalidades, a 14 de agosto do mesmo ano, com
leituras de trechos da Sagrada Escritura em que 'se viam claras as
dimensões da verdadeira autoridade.329 Padre Anderson pegou muito
pesado. A UNE quando começou tinha uma orientação de esquerda
e marxista. Mas havia uma mentalidade adulta. Depois a UNE virou
coisa de adolescente, (perdoem-me o pessoal da Une ). Perdeu
aquela base séria de estudo e de análise da realidade. O problema é
que a UNE trazia soluções que não se adaptavam a Lorena. O
choque com o padre Anderson foi forte porque ele possui um
conceito muito forte de autoridade e é no tempo dele que surgem
presidentes de DA que quebraram a tradição, de gente que com
radicalizações, não possuíam a postura de Malerba, Pasin, Almada,
Balerini... que tinham capacidade política, que sabiam discutir,

325
- 13 de dezembro de 1968
326
- 12 para 13 de outubro de 1968.
327
- Padre Júlio Comba exímio latinista e cuja obra de Gramática Latina ainda é muito utilizada
no Brasil.
328
- Padre Anderson Paes. Mostrou-se em grande empreendedor dando impulso à faculdade
salesiana pela sua visão de administrador e pedagogo.
329
- TOLEDO, 2003, p.186.
222

argumentar. Surgem presidentes com propostas clientelistas. Falta-


lhes visão de totalidade.330

Os clérigos questionadores e resistentes à obediência e pouco dóceis à formação


foram dispensados da congregação. Restaram, porém alguns sobreviventes, que
guardaram e cultivaram in pectore esses ideais que apaixonaram a juventude da
década.

Na década de 1990 estes ex-clérigos, agora sacerdotes, começarão a ocupar


posições estratégicas dentro da congregação em São Paulo e mesmo na faculdade
trazendo de volta aqueles ideais que rompiam com o estilo europeu de congregação
firmando uma mentalidade mais brasileira. Esta passagem não foi tranqüila e nem
sempre aceita por salesianos de origem italiana, ou brasileiros que haviam se
formado na Itália. A nova geração, tendo vivido com intensidade os conflitos da
década de 1960, tinha percebido que a congregação deveria interagir com a
sociedade assumindo uma identidade brasileira.

No final da década de 60 um grande número de salesianos abandonou a


congregação criando-se um hiato entre as gerações dos mais velhos e dos mais
novos com a perda de elementos da tradição salesiana, que ainda que escritos,
eram de fato melhor absorvidos na vivência cotidiana de práticas educacionais
monitoradas por salesianos experientes nos recreios e no convívio com os
destinatários. As novas gerações, desguarnecidas de monitores e educadores
salesianos em numero suficiente, não “tocaram” empiricamente com profundidade e
intensidade essas práticas que são mais bem apreendidas e compreendidas a partir
de experiências de campo.

Serão esses jovens – agora adultos –que terão a missão de conferir ao Ensino
Superior da congregação a identidade salesiana. Ainda que teoricamente
conhecedores de todos os princípios e práticas educacionais da pedagogia
salesiana, não tiveram “treinadores” experientes que os introduzissem na aplicação
prática desses princípios. Outros até viveram com alguns salesianos com muita

330
Padre Antônio da Silva FERREIRA. Testemunhos em Barbacena.. Entrevista concedida pelo Vice
diretor do Centro Salesiano de Documentação e Pesquisa de Barbacena. Barbacena, 16 jul. 2002. In: PASSOS
JÚNIOR, Dilson. A Emergência do Protagonismo Juvenil: a Crise do Paradigma Razão na
Faculdade Salesiana de Lorena nas décadas de 1960 e 1970. Bragança Paulista, Universidade São
Francisco, UNISAL: SEDOC, Lorena, 2004, p. 159.
223

experiência, só que na educação de adolescentes. Esses adultos, egressos das


crises dos anos 60, serão os responsáveis por adequar para o ensino superior os
princípios praticados por João Bosco com adolescentes e que eles pouco
vivenciaram, não se pode falar neste caso nem em restauração porque, pouco foi
construído e nem tão pouco de construção, pois seus promotores não conseguem
definir e nem configurar uma identidade salesiana para o século XXI. A situação
torna-se ainda mais complexa quando se considera que na nova reestruturação
regimental do Centro UNISAL, os salesianos são afastados dos cargos de direção
das unidades sendo seu governo entregue nas mãos de leigos que deveriam, em
tese, garantir a identidade católica e salesiana da instituição, sendo, porém, que boa
parte de seus gestores não vivenciam um compromisso existencial com a fé católica
e muito menos conhecem organicamente o pensamento filosófico, religioso e
educacional de João Bosco. Os ideais fundacionais, educacionais e religiosos de
João Bosco deveriam ter como guardiães os salesianos que, no lastro dos ideais do
fundador, deveriam zelar pela identidade e fidelidade das obras a essa prática
educacional.

Deve-se considerar ainda que as novas gerações de jovens salesianos, como


católicos, são egressos da cultura deste tempo trazendo na sua mentalidade as
marcas da atual sociedade e não tendo referencias nem do passado da igreja e
nem dos valores do tempo de Dom Bosco. Parte desses jovens sequer se conecta
com as realidades política, social e econômica que os envolve, não tendo o hábito
de ler jornais e revistas de circulação nacional, possuindo assim uma cultura
fragmentada, já que são pouco afeitos à leitura de livros e, mesmo quando lidos no
curso superior, não o são para efeito de reflexão e aprofundamento sobre a
realidade do seu tempo.

Serão esses os futuros guardiães do mito salesiano e intérpretes do ideal de João


Bosco junto da academia. Certamente receberão, ao menos em parte, a formação
tradicional331, mas mesmo seus formadores já representam um “intermezzo” entre

331
- A formação tradicional inclui aquela prevista pela Igreja com a Filosofia e Teologia numa
linha tomista. Mas incluía também o estudo da congregação, da pratica pedagógica de Dom Bosco, o
aprendizado de conhecimentos que favoreçam a integração com a juventude: teatro, música,
liderança, promoção de acampamentos, computação, comunicação, idiomas, trabalhos manuais e
braçais, cursos sobre política, problemas sociais, prática de leitura, retórica e comunicação.
224

as origens e o futuro. É importante apresentar alguns traços gerais dos que


ingressam nas fileiras salesianas para que possam entender as potencialidades
desses jovens em assumir o projeto salesiano no ensino superior.

Na escolha dos futuros religiosos salesianos a seleção é rígida, com exigências de


valores humanos, religiosos, morais e inserção na vida da igreja. São solicitadas
cartas de recomendação e feitas minuciosas pesquisas sobre suas vidas. Dos
candidatos que se apresentam somente a média de 10% possuem aprovação para o
ingresso no propedêutico para uma posterior seleção para então ingressarem na
formação salesiana que durará 10 anos no mínimo e na qual o candidato será
avaliado quatro vezes por ano e julgado por dois conselhos, um local de casa de
formação e um Inspetorial. Dificilmente 5% concluirão todo processo de formação
até se tornar salesiano perpétuo.

Neste grupo há dois tipos de jovens bem diferenciados. Um primeiro, bem mais raro,
são jovens com uma formação cristã sólida e com opções definidas de vida e de fé.
Possuem critérios delineados de como viver os princípios e a moral cristã, possuindo
adesão pessoal ao cristianismo e a sua prática. Em geral tendem a uma
espiritualidade conservadora. Alguns conseguem assimilar bem o modo de vida
salesiano, outros, porém, outros porém, preferem buscar outro estilo devida religiosa
em outras congregações.

. O segundo grupo, mais numeroso, possui um simpatia genérica pela estilo de vida
salesiana com concepções religiosas fragmentadas e sem delineamentos claros.
Utilizam-se de clichês católicos e salesianos que não expressam convicções
profundas. Possuem – quando possuem – uma frágil formação catequética,
desconhecendo em profundidade a religião332 e não raro a própria congregação.
Apresentam concepções morais ecléticas e confusas com conceitos contrários ao
magistério da igreja. Concebem a pastoral como uma atuação assistencialista e
social e se prendem a uma religiosidade sentimental e sensitiva sem clara adesão a
princípios. São plugados aos últimos lançamentos da internet, com resistência às
leituras e aprofundamentos, ainda que possuam, não raro, bons resultados
acadêmicos. Dificilmente chegarão à consagração religiosa definitiva e, se

332
- Dos que entram nos seminários 95 % nunca leram linearmente uma única vez os
Evangelhos.
225

chegarem, não abraçarão os ideais fundacionais com a paixão que marcou a vida do
fundador e dos seus primeiros discípulos. Se esse grupo for numericamente grande,
poderá comprometer de forma estrutural a própria congregação na sua essência
porque não serão comprometidos com o espírito do fundador. Trabalharão com
habilidade o ferramental pedagógico, mas o pluralismo ambíguo, a pastoral
genérica, a formação catequética frágil, a flexibilidade ambígua de discurso e de
atitudes fará com que o projeto inicial do fundador venha a perder seu vigor
propositivo de uma pedagogia alicerçada em princípios da Racionalidade, da Razão,
da Amorevolezza e da Presença do educador entre os jovens no jeito e no modo dos
moldes praticados e elaborados pelo fundador.

A falta de qualidades pessoais do educador salesiano, seja por má preparação ou


por inadequação pessoal a esse projeto pedagógico, fará com que a Educação
salesiana, como elaborada por João Bosco, seja rebaixada à categoria de um
“genérico educacional” sem identidade, o que não a torna, nem melhor, nem pior,
que outros projetos educativos, mas empalidece sua especificidade própria da “grife”
que a define e qualifica como salesiana.

O grande desafio é ter jovens bem formados que terão como missão dar
continuidade ao projeto de dom Bosco a partir de critérios elaborados por este.
Caberá a eles a missão de configurar a instituição salesiana de ensino superior aos
critérios explicitados nas narrativas do mito fundacional. Somente se estiverem bem
preparados, irão contribuir para conferir ao ensino superior salesiano essa
identidade, pois Dom Bosco só será assumido como proposta respeitável de um
projeto educativo se for traduzido para o século XXI por intelectuais e educadores
qualificados que, sem trair os ideais fundacionais serão capazes de capturar aquilo
que há de perene nas intuições do fundador e reinterpretá-las, integrando-as às
realidades do nosso tempo.
226

CAPÍTULO IV - O CENTRO UNISAL NO SÉCULO XXI

Se o Centro universitário salesiano fosse apenas uma instituição comunitária, já


estaria cumprindo suas funções a contento. Ele é, porém, uma instituição
confessional católica e salesiana entendido como tal por milhares de homens e
mulheres que se consagram a Deus pela Profissão333 Religiosa como educadores
da juventude. O termo “consagraram334” tem um sentido maior do que dedicação e
empenho. Essas pessoas deixaram suas famílias, profissões335 e fazem votos
religiosos vivendo sob obediência, não possuindo bem pessoais e não constituindo
família. Para eles o trabalho na vida religiosa é diferente daquele da vida civil, pois
envolve todo seu tempo e sua vida.

João Bosco quis uma congregação integrada no sistema produtivo urbano-industrial.


No seu tempo os frades eram tidos por ociosos a partir de uma visão do mundo
industrial do século XIX. Bosco quis que seus seguidores tivessem por identidade o
trabalho braçal, cotidiano e contínuo como o faziam os trabalhadores. Prometera aos
que chegavam às suas comunidades: “Pão, trabalho e paraíso”. No pão entendia o
atendimento às necessidades básicas da sobrevivência; no paraíso, na ótica
medieval, a salvação eterna; e, no trabalho, o meio mais eficaz para conseguir o
pão. Essa mentalidade faz parte do estilo de vida dos salesianos que chegam a
trabalhar em três turnos: manhã, tarde e noite. Nos sábados e domingos realizam
atendimentos religiosos e acompanhamento dos oratórios festivos. Bosco, que
prometera aos seus seguidores pão, trabalho e paraíso, concluía: para descansar
temos a eternidade. Pára-se efetivamente no domingo à noite. A semana não possui

333
- O Salesianos fazem sua consagração religiosa através de um momento solene definido
como profissão, quando assumem por toda a vida o compromisso de serem fiéis às constituições da
congregação e de se dedicarem de tempo integral à juventude vivendo os votos de pobreza,
obediência e castidade.
334
- A expressão “se consagram” tem um sentido eminentemente religiosa de uma integra total
a Deus.
335
- muitos com curso superior e com trabalho em multinacionais.
227

intervalo. As férias336 são de sete dias em julho e sete dias em janeiro. Não há
aposentadoria para os idosos, mas apenas diminuição de funções por limitação da
idade quando se dedicam a ser conselheiros, confessores, tradutores, secretários e
revisores de publicações337. Essa mentalidade deve ser destacada porque nos
permite perceber como o salesiano vê as suas obras. O Centro Universitário
Salesiano é uma instituição jurídica com regimento próprio, mas os salesianos a
entendem como algo seu, Importando-lhes assim a fidelidade carismática. O
fracasso ou o sucesso da instituição lhes diz respeito, pois trabalham para sua
manutenção, construção dos prédios e organização. Há forte sentido de pertença
daqueles que gastaram suas vidas neste projeto. Entende-se, assim, que para o
salesiano religioso não basta apenas o sucesso acadêmico, mas exige-se que a
instituição cumpra os objetivos de sua fundação como pensada pelo fundador.

Em nível mundial as Instituições de Ensino Superior – IUS - de forma institucional e


acadêmica definem a identidade salesiana que, nada mais é do que as palpitações e
anseios de homens que apostaram suas vidas nesse ideal religioso de educadores.
Não é de bom tom trazer para interlocuções acadêmicas palpitações subjetivas e
anseios humanos para instituições que têm na razão acadêmica seu sentido de
existir e de ver o mundo. Ela se constitui, porém, no dizer do professor Francisco
Sodero, uma instituição de educação singular também neste aspecto.

O século XXI vive intensa aceleração cultural atingindo a todas as instâncias da


sociedade. Neste contexto as IUS reconhecem que o ideário salesiano ainda não
está configurado ao modelo universitário, não só por não ter sido planejado nas
estratégias globais da congregação, mas também pelos sucessivos desafios

336
- Esse conceito de férias é mais recente. Nos períodos de férias muitos jovens salesianos se
dedicavam a algumas atividades recreativas em oratórios e colônias de férias. Também participavam
da construção de grandes obras ou em reformas. Há na congregação o seguinte princípio: férias é
mudança de rotina e atividades.
337
- Padre Lages Magalhães foi um destacado professor do colégio São Joaquim, reconhecido
cultor da língua portuguesa. Falava sete idiomas. Proferiu a primeira aula inaugural das Faculdades
salesianas em 1952. Até os 96 anos corrigia os textos publicados pela diretoria da unidade de
Lorena. Não se furtava de encaminhar cartas a diversos autores apontando erros gramaticais
apresentando suas justificativas a partir do confronto de teses de gramáticos. Aos 100 anos afinal
teve eu se render ao peso da idade produzindo apenas um pequeno opúsculo de trovas “para
edificação da juventude” e aos 102 poucos meses antes de sua morte produziu seu último livro de
trovas, publicado algumas semanas antes do seu falecimento em 2011.
228

culturais que se formam, se substituem e se contrapõem num contexto em constante


mudança.

Enquanto instituição de educação o Centro Universitário Salesiano tem respondido


com presteza às exigências do MEC e do mercado, seja no atendimento as
exigências legais na estruturação dos cursos e na qualificação do pessoal docente,
seja no atendimento às oscilações dos humores e demandas do mercado. Algumas
de suas faculdades possuem reconhecimento de qualidade regional338. Suas
estruturas se aprimoram e seu pessoal se qualifica. Estão ultrapassados os
primeiros momentos românticos e ousados da fundação. Vive-se as dificuldades
financeiras das instituições comunitárias e confessionais, não sendo isso obstáculo
para sua expansão e para intercâmbios e parcerias internacionais. Anualmente o
centro UNISAL disponibiliza para o mercado um numero considerável de
profissionais cumprindo sua missão de Instituição de Ensino Superior frente à
sociedade civil.

O Ensino superior salesiano é filho do ideal do camponês dos Becchi que pretendeu
levar a religião a adolescentes e jovens marginalizados pelo sistema industrial e
oferecendo-lhes formação e oportunidades como profissionais. Seu sonho se
ampliou para a cidade de Turim, para a península itálica, para a Espanha e França,
e a seguir transpondo o atlântico chegou até a Argentina, Uruguai e Brasil. Aqui, em
menos de uma década surgiram três fundações: Niterói, São Paulo e Lorena,
expandindo-se rapidamente nas duas primeiras décadas da república, para o interior
paulista, Minas Gerais, Nordeste, Mato Grosso e Sul.

Foi no lastro desse ideal, como já vimos, que as faculdades salesianas surgiram: a
de Lorena para qualificar seus sacerdotes como professores de suas escolas; a de
Americana para sanar uma questão econômica da obra em vias de falência e a de
Campinas como capacidade de rápida adaptação ao mercado que saía do campo e
caminhava para a indústria. Houve perplexidade entre os salesianos, pois muitos
consideram que se estava traindo o que o fundador havia vivido e sonhado. Foi uma
dúvida que pairou por anos nas mentes e corações.

338
- O curso de/Direito de Lorena está qualificado pela OAB entre os oito melhores do Estado
de São Paulo.
229

Num mundo em aceleração, respondendo às exigências do governo e das


demandas de mercado as faculdades se integraram tornando-se o centro
universitário salesiano e que hoje pleiteia o status de universidade. As estruturas se
organizam, tornam-se complexas, burocráticas, modernizadas e “on line”. As
estátuas de Dom Bosco continuam solenes no centro dos pórticos e jardins. Suas
fotos, com seu olhar e seu sorriso paterno, se espalham por diversos ambientes.
Novos e modernos prédios se erguem. Os nomes “Dom Bosco”, “Auxiliadora”,
“salesiano” continuam a ser sinônimo da identidade dessas obras de ensino
superior.

Num mundo em contínua aceleração permeado por um emaranhado de informações


cabem algumas questões. Hoje, século XXI, qual a real e tangível identidade desta
instituição que teve sua origem ideológica e pedagógica em João Bosco? O que
representa para o UNISAL o Mito Fundacional? É conhecido? É Narrado? O Rito é
celebrado? O que dizem os símbolos que rememoram o fundador e seus ideais? É
algo a ser conferido a partir das propostas institucionais e da sensibilidade dos
alunos. A Identidade salesiana é apenas uma marca no frontispício da instituição ou
permeia a prática pedagógica e o ambiente, interferindo, como queria o fundador,
existencialmente na vida dos seus destinatários?
230

4. 1 O UNISAL no século XXI - desafios

O movimento religioso e educacional oficializado por João Bosco em 1859, sob o


nome de Sociedade São Francisco de Sales, teve uma grande vantagem sobre as
ordens religiosas fundadas nos séculos anteriores: ainda que tendo suas raízes
ideológicas e espirituais fincadas na Idade Média, teve que medir forças com o
mundo industrial. Esse confronto fez com que os salesianos respondessem com
rapidez aos desafios da modernidade, adequando-se ao novo modelo de sociedade
que emergia desse modo de produção. A obra salesiana não se perdeu numa
atitude místico-contemplativa, mas assumiu uma atuação pragmática, respondendo
às necessidade da juventude, sem o que entraria em descompasso com o progresso
da sociedade industrial.

Na fundação das três faculdades de São Paulo alguns equívocos foram cometidos.
A inicial rejeição ao ensino superior em nome de uma fidelidade ao fundador foi um
deles. Essa atitude fez com que somente tardiamente, por meio das IUS, se
tomasse consciência que as classes populares, objetivo primeiro da congregação,
estavam saindo das fábricas e oficinas para ingressarem no ensino superior. Outro
equivoco foi o de querer impor para o ensino superior padrões educacionais, ora de
um seminário para a formação de religiosos, ora de um oratório festivo ou de um
colégio de segundo grau para adolescentes. Esta visão míope impediu que se
configurasse e consolidasse um diálogo entre a pedagogia salesiana e a academia.
Com o crescimento das três faculdades, agora fundidas, ficou difícil acompanhar os
passos da instituição e dos cursos que cresceram em projeção geométrica enquanto
que os salesianos se distanciavam do ensino superior porque em numero cada vez
mais reduzido e ainda não preparados para uma imersão qualificada no espírito e na
mentalidade da academia. A questão ainda se complicava porque muitos dos que se
preparam adequadamente para atuar no ensino superior não conseguiram e não
conseguem consolidar um trabalho sistemático por causa das constantes
transferências para atender às demandas da congregação e que muitas vezes os
retira do ambiente universitário para atividades em colégios e obras sociais. Esta
instabilidade do pessoal salesiano em constante processo de transferência fragiliza
e até impede a formação de uma orgânica presença da pedagogia salesiana no
UNISAL. E não só se transferem salesianos qualificados de docência e de
231

administração universitária, como também se integra nestes ambientes salesianos


desqualificados para essas funções.

Os avanços tecnológicos dos meios de comunicação foram rapidamente assimilados


pelas obras salesianas do Brasil porque, preparando jovens para o trabalho,
deveriam habilitá-los para um mercado em permanente evolução que, exige mão de
obra atualizada. Com apenas 150 anos de fundação a congregação teve que se
adequar com rapidez aos vários desafios da civilização industrial. Entenderam de
imediato que no ambiente urbano era necessário ter o apoio da opinião pública para
ajudá-los financeiramente e dar-lhes sustentação social e política frente às
adversidades. De fato, em pouco mais de um século, a comunicação avançou como
nunca o fizera antes: telégrafos, telefone, rádio, cinema, televisão, computadores e
internet tornaram-se veiculadores de idéias. Essas invenções ocorreram muito
próximas339 umas das outras e com sua rápida evolução representaram alteração
radical no modo de se pensar e viver. No Brasil o rádio marca presença na década
de 1950, a televisão a partir de 1960, a ampliação do uso de computadores a partir
da década de 1990 e da internet a partir do ano 2000. Formula-se a idéia de “aldeia
global” com dois momentos: o primeiro é de uma globalização passiva, quando as
noticias mundiais chegam em tempo real a todas as partes; e a atual globalização
ativa, quando, através de sites sociais, é possível interagir com todas as partes do
planeta. O controle das idéias e a censura fogem do crivo de governos e do poder
econômico, expostos à opinião publica que derruba governos, faz denúncias e
promove pessoas.

Neste contexto perdem força o púlpito, a cátedra e os meios de comunicação


oficiais. O velho modo de educar “ex-cathedra”, onde prevalece a autoridade
institucional, está encerrado para pessoas esclarecidas. A informação torna-se
democrática, a partir das redes sociais; e argumentos fundamentados na
autoridade não se sustentam, já que a informação e a veiculação de idéias se
democratizaram e a interação entre as partes permite posicionar-se criticamente

339
- As datas são apenas referências, pois tais invenções foram fruto do somatório de várias
pesquisas que se complementaram. Optou-se por se apresentar não o ano exato, mas a década.
Também é apresentado entre parênteses o período que essas invenções se instalaram no Brasil:
telégrafos 1830 (1850); telefone 1870 (1870); rádio 1890 (1920); cinema; Televisão 1930 (1940);
Computadores 1940 (1960).
232

frente a questões políticas, sociais, religiosas, éticas, filosóficas e sobre qualquer


questão lançada em nível de rede mundial. São desafios frente aos quais os
educadores do século XXI devem se confrontar, procurando fazer deles não
ameaça, mas oportunidades340. A inserção nessa realidade global é muito rápida
com os alunos341 se plugando ao mundo virtual em nível planetário e onde a voz do
educador fica esmaecida frente a tantas vozes de tantos interlocutores a fazerem
ruído à sua mensagem.

É uma mudança radical de cenário. Assim como nas antigas cidades do Brasil a
igreja com o seu campanário erguia-se como construção principal em torno da qual
a vida religiosa, social e política acontecia sinalizando a submissão ideológica à
cristandade, assim também os colégios salesianos atraíam por suas majestosas
construções ladeadas por seus campos, piscinas, quadras de jogos e largos pórticos
fortalecendo a idéias de uma educação especial acima de outros educares,
acreditando-se serem espaços de vida e formação por excelência da juventude. Não
deixava de ser uma visão de uma cristandade da educação. Hoje muitos dos
campanários urbanos perderam a visibilidade, seja porque “diminuídos” por imensos
prédios, seja porque não mais construídos, porque a cidade dos homens não mais
tem a religião como seu centro, mas mero adereço contingente na organização
social. Assim também os colégios salesianos perderam seu espaço social enquanto
modelo perfeito de agência de educação e como lugar de encontro e formação,
porque outros colégios surgiram e competem, quando não se sobrepõem a eles, e, o
lazer, passou para os clubes, parques públicos e shoppings dissociando-se da
religião e dos padres. Os grandes colégios com seus vestutos e solenes pórticos são
apenas um lugar na urbe moderna. Em nível ideológico, também os ideais da
cristandade são apenas uma visão entre tantas visões no mundo real e virtual. Na
vida dos estudantes a escola perdeu a primazia de ser um lugar de educação,

340
À guisa se exemplo basta citar que na unidade de Lorena o sistema Wi-Fi para
computadores portáteis foi previsto para 300 aparelhos considerando-se se estar numa região pobre
em relação às outras unidade do UNISAL locadas em regiões mais ricas. Em pouco tempo, porém
essa previsão foi superada sendo inscritos 2.600 computadores na rede.

341
- Deste trabalho não fazem parte do estudo as unidades localizadas em São Paulo nos
bairros da Lapa, Campos Elíseos e Santa Terezinha.
233

tornando-se apenas uma agência prestadora de serviços que habilita ao jovem o


acesso a profissões e oportunidades de crescimento material.

Não se pode discutir a educação salesiana sem levar em conta esse mundo
globalizado por meios de transporte cada vez mais eficientes e baratos que
permitem a locomoção física entre regiões do mundo, mas também, pelo web site
que permite a locomoção virtual entre todos os convergentes e divergentes
pensares disponíveis pelas modernas tecnologias de comunicação.

Essa visão global, porém, não pode ficar desfocada da realidade local. O
economista Ladislau Dowbor342 vem defendendo com ênfase que a vida não se
realiza no global, mas no local, tendo publicado muitas páginas nas quais procura
desmitificar o conceito do global como uma realidade real. Para ele a vida acontece
na circunscrição do espaço físico do local que deve ser descoberto como a maior
das realidades, pois é aí que os pés do homem pisam. Efetivamente, por mais que
se visualize o global, as necessidades biológicas, as paixões e emoções do homem
ou mulher estudantes acontecem em âmbito local, numa cidade, numa cultura e
numa mentalidade. E por mais que naveguem no mundo virtual, suas vidas estarão
ligadas a uma polis, a um espaço físico e espiritual que constituem a sociedade em
que vivem e na qual se constroem como pessoas.

O Centro Universitário salesiano de São Paulo possui sua história ligada a cidades e
culturas onde estão plantados seus prédios e onde as palpitações da vida
universitária acontecem. É a partir desses lugares físicos e sociais que se constrói e
materializam os ideais educacionais salesianos no Estado de São Paulo.

342
- Ladislau Dowbor, formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suiça;
Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia,
Polônia (1976). Atualmente é professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, nas áreas de economia e administração. Continua com o
trabalho de consultoria para diversas agencias das Nações Unidas, governos e municípios, bem
como do SENAC. Atua como Conselheiro na Fundação Abrinq, Instituto Polis e outras
instituições. Fonte: http://dowbor.org/sobreld.asp. Sobre o pensamento político econômico do autor
pode-se obter informações no site http://dowbor.org/poder_local.asp.
234

4.2 O Lugar da Educação Salesiana

O Centro Universitário Salesiano de São Paulo está presente em quatro cidades:


Americana, Campinas, Lorena e São Paulo343. As três cidades, objeto de nosso
estudo, apresentam características próprias advindas de seu passado histórico e
das condições econômicas em que atualmente vivem e que lhes conferem
identidade própria. Deve-se considerar que Campinas e Americana, distantes 37
quilômetros entre si, vivem um processo de conturbação que lhes dá características
econômico-sociais semelhantes quando se trata de verificar a população
universitária atendidas nos seus cursos.

A cidade de Lorena344 nasceu como caminho da Estrada Real entre Paraty no


Estado do Rio e Diamantina em Minas Gerais. Os tropeiros ultrapassavam a serra
do mar e desciam pelos contrafortes da atual cidade de Cunha, indo posteriormente
de barco pelo rio Paraíba até o Porto da Piedade,345 ponto de parada obrigatório
para o descanso, a obtenção de víveres e pedidos de proteção à Padroeira346. Daí,
passando por Passa Vinte, subiam a serra da Mantiqueira pela garganta do Embaú,
ponto mais baixo para se adentrar às terras das minas gerais, seguindo
posteriormente em direção das atuais cidades de Caxambu, Madre de Deus,
Tiradentes, São João Del Rei, Barbacena, Congonhas, Ouro Preto até Diamantina.

A região viveu três ciclos econômicos bem definidos: inicialmente foi lugar de
passagem das tropas de mulas para as minas gerais para além da Serra da
Mantiqueira; posteriormente viveu seu apogeu no ciclo do café, primeira riqueza que
alavancou seu progresso. Lorena, no apogeu do café, prometia ser o centro
econômico do Vale do Paraíba, vislumbrando na riqueza dos seus prósperos
fazendeiros um prenúncio de poder econômico e prestígio político347, crença esta

343
- Optou-se por não se integrar o campus de São Paulo neste estudo porque os três Campi
existentes nesta última cidade só surgiram quando da oficialização do Centro Universitário
344
- A cidade está distante da capital 207 km com uma população de 82.553 habitantes com um
crescimento populacional de 5,85% e com uma renda per capita de R$ 12.551- IBGE - Censo 2010.
345
- Atual cidade de Lorena.
346
- Cf. TOLEDO, Francisco Sodero. Estrada Real, caminho novo da piedade. Campinas:
Alínea Editora 2009, p. 93-97.
347
Para aquilatar a riqueza e influência política do Conde Moreira Lima basta citar que a
construção e manutenção dos principais prédios da cidade estavam ligados a ele: catedral, santa
235

que pareceu se materializar no Conde Moreira Lima, proprietário de mais de


cinqüenta fazendas no vale do Paraíba paulista e fluminense e no sul de Minas
Gerais. Com a lei áurea, porém, selou-se o destino da já combalida produção
cafeeira das fazendas do Vale que tinham sua base de sustentação na mão de obra
escrava e que já vinha sendo comprometida pelas leis libertárias do ventre livre e do
sexagenário, que iam indicando o ocaso do modo de produção escravista. O centro
econômico da região paulatinamente se deslocará em direção a São José dos
Campos, que se tornará um dos principais pólos industriais do Brasil.

O terceiro ciclo foi marcado pela criação do gado, sobretudo por fazendeiros
mineiros que ocuparam as terras deixadas pelo ciclo da café que, se tivera sua
decadência decretada pela abolição da escravidão em 1888, entrará em colapso
definitivo em 1929 com a quebra da bolsa de Nova York.

O ciclo atual - o quarto - é tímido para Lorena, pois ele tem suas bases nas
indústrias concentradas em São José dos Campos e cidades vizinhas 348. Os três
ciclos econômicos anteriores criaram comunidades pobres, carentes e dependentes,
sem condições de competitividade numa economia moderna e de ponta.

O habitante, o caboclo vale-paraibano, tornou-se responsável por todos os


fracassos dos fazendeiros. “Pardo”, “ignorante”, “doente” eram adjetivos
qualitativos dos seres impossíveis de progresso. Os Jecas junto com as
Cidades Mortas formavam o binômio inerente ao fracasso. Seriam,
também, o avesso do novo em continuidade às urbes do Vale, idilicamente
falidas, em que nunca tiveram pujança nenhuma, depois de uma hipotética
fase de esplendor seriam mostra de um fim que clama por soluções. Os
demais personagens daquele mundo (o padre, a beata, a prostituta, o
fazendeiro, o ex-escravo) compunham um complexo ideológico em que se
movia a coletividade atemporânea, deslocada do espaço e da modernidade
349
desejada .

Parte da população das periferias de Lorena se encontra alijada das oportunidades


oferecidas pelo mercado de trabalho. Poucos jovens conseguem emergir dos ciclos

sasa, asilo de idosos, santuário São Benedito e o colégio São Joaquim dos salesianos. Pela sua
influência política obteve do Vaticano que a capela da irmandade de São Benedito fosse elevada à
categoria de Basílica Menor, subordinada diretamente ao papa, a única deste santo no mundo. Ela
indica o poder político do Conde Moreira Lima que obteve da Santa Sé, através de seus contatos,
esse título para essa igreja elevada pelos escravos.
348
- Jacareí, Caçapava, Taubaté e Pindamonhangaba.

349
- MEIHG José Carlos Sebe Bom. O Perfil Político de Monteiro Lobato. In: CHALITA, Gabriel.
(Org). Vale do Paraíba: política e sociedade. Aparecida: Santuário, 1993, p. 103.
236

seculares de pobreza, não só por falta de recursos para financiar uma educação de
qualidade, mas também por certa miopia cultural350 que lhes impede de vislumbrar
oportunidades econômicas e de autopromoção social para além da realidade local. É
comum encontrar-se jovens sentados nas calçadas a matutar como velhos num
misto de desânimo e indolência sonhando com a balada de sábado e um “rolê” pela
praça à caça de “minas” para as quais pagarão um lanche com algum dinheiro
“descolado” por meios lícitos ou ilícitos. A Feira da Barganha, que acontece todos os
sábados e domingos no decadente mercado municipal é o retrato desse mundo sem
horizontes de parte da população onde, por meio de compras ou trocas, se pode
negociar objetos que em outras cidades estariam nos aterros sanitários. Se há
grupos que aceitam com resignação a sobrevivência em empregos de baixa
remuneração, outros buscam alguma qualificação superior que lhes permita
ascender socialmente, e, finalmente um grupo não desprezível, carente de todas as
oportunidades, encontra no tráfico de drogas o caminho de obtenção de recursos
financeiros. Num mesmo bairro coabitam e convivem jovens ligados ao comércio de
drogas e aqueles voltados para a cultura tradicional, subserviente, religiosa e
acomodada recebida dos antepassados, uns e outros vocacionados à alienação.

350
- É comum no Centro Universitário funcionários mais humildes pedirem para ser mandados
embora com o fim se apossar do fundo de garantia e ter em mãos a indenização para pagamento de
dívidas ou adquirirem bens de consumo. O UNISAL paga salários acima do mercado local. Essas
pessoas não avaliam que estão abrindo mão da estabilidade e da sua manutenção. Quando
inquiridas de como obterão novo emprego, respondem que pensarão nisto depois. O imediatismo é a
cultura e o endividamento sem fim um estilo de vida para as populações mais pobres. Na cultura
local prevalece também uma necessidade de “ganhar” e de “pedir” resquício da dependência dos
senhores de escravos, ricos fazendeiros e da própria igreja (incluindo os salesianos) que sempre
cultivaram forte paternalismo com os pobres. Há uma mística de “ajudar os pobres” servindo comida
e dando cestas básicas. Duas grandes festas são marcadas por almoços gratuitos fornecidos pela
irmandade e pelos cavaleiros de São Benedito. Mais de mil pessoas comendo e “repetindo à vontade”
faz remontar ao período patriarcal do senhor escravocrata. Nestes dias parecem emergir do passado
pobres pré-urbanos, sobretudo nas folias de São Benedito, com suas batucadas e danças que
remontam a praticas religiosas do catolicismo colonial. Na elevação do mastro de São Benedito frente
ao Santuário sintetiza-se essa mentalidade. O majestoso santuário iluminado pelos holofotes (anexo
aos prédios do UNISAL), ao cair da tarde, tem o sacerdote com seus solenes paramentos à sua
porta ladeado pela coorte de São Benedito: é o poder da igreja recordado nesta “cena do passado”.
De um lado as folias, todas de branco, batucando e dançando – todos muito pobres -. De outro os
mantenas, antigos fazendeiros, empertigados nos seus ternos brancos sobre seus cavalos em
postura solene assistem – superiores – à elevação do mastro. É uma sociedade que pode ser
estamentalmente visualizada. E durante todo o ano na nave central do santuário ecoarão os pedidos
de oferta para as 250 famílias dos pobres do padre Hugo e de Dona Dalva. Pobres vitalícios, quase
“profissionais” de uma pobreza sem fim e de uma generosidade desmedida por décadas sempre
pronta a “dar” esmolas e jamais em promover os necessitados. É uma mentalidade... uma
cosmovisão...
237

Os salesianos de Lorena, em relatório enviado à sede da congregação em Roma,


procuram sintetizar sua visão sobre a incidência da congregação na sociedade local
e, num extenso relatório, delineiam a realidade que os circunda. Reconhecem a
secular incidência da presença salesiana na região, mas constatam a perda de
terreno frente a novos desafios.

A região é repleta de contradições. Nela habitam cientistas e miseráveis. A


globalização e o consumismo como em toda parte permeiam todo o corpo
social. As famílias mais simples – marcadas pelo catolicismo barroco
tradicional - vivem no seu interior conflitos com seus filhos que assumem
posturas contrárias aos valores morais “dos antigos”. Há uma latente
vocação à violência entre os jovens dos bairros periféricos envolvidos com
drogas, de um lado, enquanto outros segmentos de jovens vivem em busca
do espiritual e do místico. Como salesianos não temos conseguido imprimir
uma significativa identidade espiritual salesiana em nossa juventude. Somos
reconhecidos e amados pelos jovens e pelo povo. Os referenciais espirituais
351
deles, porém, estão ligados com fortes laços à Renovação Carismática ,
352 353
ao movimento vicentino e às Aldeias de Vida – movimento surgido
nesta cidade – e que configuram as principais correntes de espiritualidade
da região. Não conseguimos imprimir e constituir uma marca salesiana no
sentido de formar lideranças vigorosas e que se imponham e encantem a
cidade. Um sério e crescente problema é que cada vez mais nos estamos
distanciando fisicamente da Escola, da Universidade e mesmo do Oratório.
Os motivos podem ser diversos: de um lado, excesso de trabalho e de
frentes de atuação e de outro as exigências burocráticas, as atividades
inspetorias e administrativas que impedem a presença dos salesianos com
a sistematicidade do passado como professores e assistentes, convivendo o
dia-a-dia com o educandos e criando com eles laços de amizade e
354
convivência .

Nesta cidade com menos de cem mil habitantes os contrastes sociais se tocam e
coabitam. Nela residem cientistas do INPE355, pesquisadores da USP, doutores e

351
- Grupos de oração que possuem adesão de boa parte da juventude da região.
352
- Grupo de ajuda as pobres inspirados na caridade de são Vicente de Paulo. Seu fundador foi
Frederico Ozanam nascido em Milão em 23 de abril de 1813. Filho de médico e de família abastada
freqüenta a Sorbonne sendo aluno brilhante dominando vários idiomas. Em 1833 com apenas 20
anos funda a conferência de São Vicente de Paulo para assistência aos pobres. Torna-se doutor em
Direito e Letras e possui intensa atividade política e cultural na França. As Conferencias Vicentinas
fazem parte da cultura do Vale do Paraíba; além da ajuda do “quilo” para os pobres, ela responde
por santas casas, vilas vicentinas para idosos e orfanatos. Possuem uma presença assistencial muito
forte incluindo entre seus membros pessoas de todas as classes sociais.
353
- Movimento de conversão especialmente para jovens.
354
- Relatório sobre a obra salesiana de Lorena, Descrição da realidade da cidade. Conselho da
Casa, Arquivo Geral da obra salesiana, Roma, Via della Pisana, 1111. 27 de maio de 2011.
355
- Centro de medições meterológicas a 10 km em Cachoeira Paulista.
238

mestres a serviço das escolas de ensino superior da região356 e diretores de


multinacionais ao lado de populações pobres e carentes oriundas do Vale agrário e
de Minas Gerais. Domesticados para as lidas do campo são seres alienígenas que
emergem dos fundões do vale como seres estranhos ao vale industrial sem
condições materiais e espirituais de crescimento econômico. O catolicismo fortalece
a religiosidade tradicional, popular e subserviente com práticas que dão a impressão
de se estar vivendo nos séculos passados nos quais o homem não só se submetia a
Deus, mas ao clero e a todas as formas de autoridade, parecendo não ter sido
superada, em alguns casos, a descrição de Euclides da Cunha:

As estradas são ermas. De longe um caminhante. Mas também decaído.


Não é daqueles caboclos rígidos e mateiros que abriram neste Vale as
picadas atrevidas das bandeiras. O caipira desfigurado, sem o desempenho
dos titãs bronzeados que lhe formam a linguagem obscura e heróica,
saúda-nos com humildade revoltante, esboçando o momo de um sorriso
deplorável, deixa-nos mais apreensivos como se víssemos uma ruína maior
357
por cima daquela enorme ruinaria da terra .

A falta de horizontes da população mais pobre é cultural e consolidada pela falta de


recursos financeiros e perspectivas de futuro marcadas pelo conformismo e pela
resignação, vendo em tudo a vontade de Deus. Jovens das periferias assumem essa
cultura quando afirmam:

Tendo um feijãozinho e meu arroz é o que me basta. É só encontrar um


358
emprego que me garanta isto .

Não tenho preocupações com os bens materiais. O que me importa é ter


meu violão e poder cantar. Tenho um emprego e pago minhas
359
prestaçõeszinas. O que mais preciso?!

Estudar para que? (abrindo mão de uma bolsa de estudo). Não quero sabe
de esquentar cabeça. Meu salário (pouco mais que o mínimo) dá para “mim”
360
viver, eu e minha mulher. “Prá” que esquentar a cabeça ?

356
- A UNESP está distante de Lorena 15 km.
357
- CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. Rio de Janeiro: Lello Brasileiro, 1967, p.
164 .
358
- Testemunho oral de jovem de 19 anos feito no bairro Parque das Rodovias no ano de 2010
em data incerta.
359
- Testemunho oral de jovem de 21 anos no bairro Parque das Rodovias no ano de 2011 no
dia 22 de maio de 2011.
360
- Testemunho oral de jovem de 25 nos da cidade de Piquete (15 km de Lorena) em outubro
de 2010.
239

Essas afirmações tacanhas e caricaturais são o retrato de uma parcela de jovens


que, interiorizando a acomodação social existente, se percebem incapazes de alçar
vôo para ideais maiores. Há outra parcela de jovens que lutam por ascender
socialmente ainda que sem condições financeiras e com pouca base do ensino
público. Finalmente há jovens e adultos que encontram no trafico de drogas, como já
foi afirmado anteriormente, o acesso para uma boa remuneração favorecida pelo
fato de Lorena localizar-se no entroncamento entre os Estados de Minas, São Paulo
e Rio de Janeiro, como ponto estratégico para a distribuição de drogas, o que faz da
cidade um lugar violento361.

Os alunos da faculdade são oriundos de Lorena e da região362, do fundo do Vale363,


do sul de Minas364, do Estado do Rio365 e Litoral Norte366. Os das cidades maiores
vêm atraídos pelo curso de Direito367 que possui alta qualificação nos Exames da
OAB. A presença física do centro universitário na região atrai naturalmente uma
clientela local, sobretudo para os cursos de humanas.

Os salesianos do Centro Universitário possuem uma histórica presença na região


desde 1890, com a fundação do colégio São Joaquim368 marcando a região com
nítida e centenária cultura salesiana que é reforçada por obras em Cruzeiro,

361
- Na cultura da cidade está integrado o assassinato de jovens por dividas de drogas ou por
controle do tráfico. É comum ocorrer num único dia até quatro assassinatos, já que as gangs tendem
a se vingar de imediato pela morte de seus membros.
362
- Cidades de influência direta: Cruzeiro, Lavrinhas, Cachoeira Paulista, Canas,
Guaratinguetá, Aparecida, Roseira, Pindamonhangaba; Cidades de influência indireta: Caçapava,
Taubaté e São José dos Campos e Campos do Jordão
363
- Cidades de influência direta: Queluz, Silveiras, Arapeí, Areias, São José do Barreiro; cidade
de influência indireta: Bananal.
364
Cidades de influência direta: Itajubá, Passa-Quatro; Itanhandu, São Lourenço e Caxambu;
Cidades de influência indireta: Virginia, Marmelópolis, Bahependi e Cruzília.
365
Cidade de influência Direta: Resende. Cidades de influência indireta: Barra Mansa e Volta
Redonda.
366
- Paraty e Ubatuba
367
- O Curso de Psicologia possui uma boa tradição. Atraem também pela atualidade os cursos
de Administração e Informática.
368
- Deve-se destacar que boa parte dos professores e funcionários foram alunos do Colégio
São Joaquim ou participaram de alguma obra salesiana em Lorena ou no Vale. Parte do alunado
possui algum contato com o ambiente salesiano na região. A presença salesiana se estende pela
cidade com nove oratórios festivos, o mais antigo deles o São Luís com 116 anos de fundação.
240

Guaratinguetá, Campos do Jordão, Pindamonhangaba e São José dos Campos o


que reforça uma mentalidade regional favorável à ação desses educadores.

Esta influência regional é facilitadora na escolha do Centro UNISAL, pois a


sociedade vota respeito aos salesianos com um clima favorável à ação pedagógica
da congregação e com receptividade aos ideais educacionais propostos. Isso é
corroborado pela adesão de funcionários369 que, de alguma forma, eles ou seus
familiares, como alunos ou oratorianos, tiveram acesso às práticas educacionais
dos salesianos.

Apesar de se estar caminhando para uma sociedade pós-cristã, há um contexto no


qual o ideário educacional de João Bosco é acolhido, sendo Lorena um ponto de
resistência do catolicismo tradicional barroco com reflexo na vida e mentalidade dos
universitários que não deixam de possuir uma cultura marcada pela cosmovisão
cristã, o que favorece o diálogo da educação salesiana com as novas gerações.

As cidades de Campinas370 e Americana371 distantes entre si 37 km estão numa


região marcada por franco progresso industrial e tecnológico.

Campinas é uma metrópole regional responsável por perto de 1% do PIB do Brasil


por cerca 15% da produção científica do país. Foi caminho para as Bandeiras que se

369
A atuação dos salesianos nos mais de cem anos de presença em Lorena tem sido marcante,
atingindo a todas as classes sociais da região. O Colégio São Joaquim, a Escola Agrícola, os
oratórios festivos e as obras sociais atingiram uma gama expressiva de crianças, jovens e adultos de
várias gerações. Há um envolvimento expressivo e diferenciado na região. As participações nas
políticas públicas em favor do menor, o envolvimento nos direitos dos adolescentes, o trabalho com
jovens infratores e o trabalho com a liberdade assistida são apenas facetas da presença salesiana na
região. Deve-se ainda destacar o trabalho com a cultura popular, com as manifestações culturais
religiosas e populares, o trabalho junto dos grupos de consciência negra, o trabalho de ecumenismo.
Há qualificado contato com empresas maiores numa parceria de formação de obra especializada
para indústrias, hotelaria e o comercio em geral. A promoção de cursos de extensão com intercâmbio
com outras universidades salesianas do mundo, como por exemplo, o curso de enologia promovido
pelo UNISAL com docentes da universidade Mendonça na Argentina especializada não só na
produção como degustação de vinhos e que realiza na região curso para atender a rede hoteleira,
especialmente de Campos do Jordão. Na sociedade regional é difícil conhecer pessoas cujos
caminhos da existência não tenham em algum momento cruzado com os salesianos (SDB) e as
salesianas (FMA). Se este contato for ampliado para a Família salesiana que envolve todos os
movimentos inspirados na pedagogia de Dom Bosco (Cooperadores salesianos - CCSS – e Ex-
alunos) não existe parcela da sociedade do Vale que não seja atingida.
370
- Localizada a 100 km. Da capital. População 1.080.999. Crescimento de 11,51 % entre o
censo de 2000 e 2011. IBGE - Censo 2010.
371
- Localizada 132 km da capital. População de 210.701 habitantes. Crescimento 15,39%
entre o censo de 2000 e 2010. IBEGE – Censo de 2010.
241

dirigiam para o interior em busca de pedras preciosas e ouro. Em 1842 torna-se


cidade com vocação para a agricultura graças à fertilidade da terra, plantando-se
inicialmente cana de açúcar e, posteriormente, o café. Diferente do Vale do Paraíba,
a produção cafeeira foi feita com trabalhadores assalariados, não sofrendo colapso
quando da abolição da escravidão. Após 1930 intensifica-se a chegada de
migrantes, sobretudo italianos, mostrando-se a partir desta década crescente
vocação para a indústria e a tecnologia. Entre 1970 e 1980 recebe o epíteto de
princesa do oeste quando se acentua a migração interna de trabalhadores para
atender a demanda das indústrias, sempre mais numerosas na região, sendo
favorecida pelo entroncamento de diversas rodovias. A partir de 1998 amplia sua
atuação não só no comércio, como na pesquisa e serviços de alta tecnologia,
graças à presença de grandes universidades.

Americana foi povoada por portugueses e mais tarde por americanos após a guerra
da secessão. A partir de 1930 torna-se pólo industrial têxtil até 1990 quando as
baixas taxas alfandegárias para produtos importados comprometem essa economia,
voltando-se então para as indústrias metalúrgica, química e de alimentos.

Esta região teve uma história econômico-social bem diferente do Vale do Paraíba.
Os imigrantes, como estrangeiros, dependiam unicamente de suas forças espirituais
e físicas para vencer e mostram-se empreendedores para garantir não só a
sobrevivência, mas seu enriquecimento. Esta foi a tempera dos imigrantes que
adentraram as terras da paulista sabendo aproveitar oportunidades e sendo
sensíveis às demandas econômicas da região e do país. A passagem das práticas
agrícolas para a industrialização foi rápida e ensejou a riqueza de suas cidades.

Empreendedorismo e trabalho árduo foi um estilo de vida das comunidades dessas


regiões. Essa mentalidade de lançar-se em busca de oportunidades ficou na cultura
de parte da juventude que procura estabelecer projetos pessoais muito além da
acomodação: cursar o ensino superior e se especializar para o mercado de trabalho
investindo na própria carreira fazem parte dos ideais também de jovens das classes
populares que almejam superar a pobreza e ascender socialmente.

A região do entorno de Campinas apresenta exigências de uma população que


possui um nível cultural esclarecido e que está integrada com uma visão lúcida de
242

modernidade expressa no relatório encaminhado aos superiores maiores da


congregação em Roma:

Os moradores desta região fazem parte de um grupo social (...) com bom
grau de instrução e diferenciado padrão econômico. Acompanham, de
perto, a conjuntura econômica do mundo e do país por meio da leitura de
jornais e acesso à mídia. (...) São famílias que desejam oferecer aos seus
filhos um colégio que, em primeiro plano, possua um corpo docente
qualificado, seguido de boa infra-estrutura e segurança. O desafio para as
boas escolas da região é o de oferecer uma educação de excelência, cuja
meta é formar indivíduos capazes de lidar com as intensas e rápidas
mudanças tecnológicas e sociais. Pessoas íntegras, com sólida formação
372
humana (...) preparadas para o mercado de trabalho .

A educação é vista como algo que agrega valor, sendo um investimento fundamental
das famílias. Esta visão fomenta ações sociais que visam fazer progredir as
camadas mais pobres da sociedade na conquista do trabalho especializado, saindo
da informalidade, com reflexos na queda da violência urbana e geração de paz
social que se reverte para a sociedade como um todo, acreditando-se que numa
sociedade com melhor nível de educação, se assume naturalmente atitudes
positivas como o cuidado com o meio ambiente, a valorização das artes e dos
esportes.

Se de um lado cresce a consciência solidária, de outro também se intensifica o


consumismo com maiores oportunidades de aquisição de bens. Há na juventude o
afã de se viver intensamente o presente e de aproveitar a vida numa dimensão
lúdica e hedonista que pode descambar no uso de drogas, alcoolismo e mesmo
violência. E, como há um fluxo de dinheiro significativo, há o perigo da
mercantilização da educação que pode estar mais preocupada em dividendos que
nos valores éticos, já que seu escopo maior é o bom êxito dos alunos no mercado
de trabalho. Neste contexto o ensino superior é visualizado como meio necessário
para o sucesso na vida.

Há na região uma religiosidade inata em grande parte da população mais idosa que
é passada para os filhos e netos que, ainda que professem uma fé, o fazem em
parte de forma desvinculada da vida, já que o crescente bem-estar e maior nível de
escolaridade permite se constituir uma sociedade mais pluralista e aberta à

372
CONSELHO DA CASA. Relatório sobre a obra salesiana de Americana: descrição da
realidade da cidade. Roma: Arquivo Geral da Obra Salesiana, Roma, Via della Pisana, 1111. 27 de
maio de 2011.
243

convivência pacífica das diversas expressões de religiosidade onde prevalece,


sobretudo nesses jovens, muito mais a busca do sagrado do que a inserção em
formas institucionais de religião.

A educação salesiana nesta região deve se confrontar com esses desafios


educacionais, diferentes dos existentes em Lorena no Vale do Paraíba.

Esta é a juventude que está no Centro Universitário Salesiano de São Paulo com
suas características regionais e que trazem também em si impressos de forma
contundente as marcas da globalização e dos meios de comunicação especialmente
a internet. Ela é objeto da ação educativa salesiana a partir dos critérios elaborados
pelo seu fundador e transmitidos aos seus discípulos. Esses critérios são a chave
da educação salesiana, sendo possível contestá-los ou questioná-los, mas sua
substituição por outros desconfigurará o projeto do fundador tornando-se um outro
projeto educacional, até melhor, mas outro. A tensão que vive a congregação
salesiana entre a fidelidade aos critérios do fundador e, ao mesmo tempo, sua
atualização é verbalizada no mote, com Dom Bosco e com os tempos.

João Bosco, quando realizou seu projeto educacional, procurou intervir e modificar
a realidade do século XIX, sendo esse o mesmo desafio da educação e da
pedagogia salesiana neste século. Ela possui balizamentos e um fim claro,
especifico e inequívoco que são os critérios fundamentais para a avaliação do
projeto pedagógico salesiano que servirá de parâmetro para a avaliação de sua
eficácia e sucesso.

A congregação salesiana vem, ao longo de sua história, procurando responder aos


desafios dos tempos. Os últimos Capítulos Gerais (CG) realizados em Roma
procuraram responder aos prementes desafios de cada momento na instabilidade
dos últimos tempos. O CG 22 (1984) também chamado de CG especial, procurou
definir a identidade da Congregação após o Concílio Vaticano II. Dele nasceu a
Constituição Renovada que perde o seu caráter estritamente normativo para assumir
um caráter eminentemente coloquial estabelecendo um rosto atualizado dos
salesianos do final da década de 1960. O CG 23 (1990) manifesta a preocupação da
congregação em responder aos jovens dos novos tempos sem abrir mão de sua
identidade eclesial:
244

A opção decidida pelos jovens em sua situação atual e nos diversos


contextos, com atenção especial para os mais necessitados; uma autêntica
educação à fé, a explicita ação evangelizadora que não se detenha nos
umbrais do Evangelho; uma educação aberta ao empenho social, à
formação da consciência, ao crescimento no amor; uma educação à fé que
373
leve a opções vocacionais, à proposta da espiritualidade juvenil .

Este Capítulo de forma inequívoca define os objetivos da Congregação


transcendendo em muito a uma visão meramente social ou assistencialista. O
objetivo da congregação é a Evangelização através de todas as suas presenças. O
CG 24 (1996) volta-se para a Vocação dos leigos entendendo que a atividade
pedagógica dos salesianos deve ser uma ação não apenas daqueles que se
consagraram pela profissão religiosa374, mas é uma forma de ação daqueles que se
encontram inseridos nas obras salesianas e que devem ser não só funcionários,
mas agentes dos valores elaborados pelo fundador. O CG 25 (2002) atinge uma
crise do início do século XXI: o tamanho e abrangência das obras, o trabalho em três
turnos, a imensa quantidade de atendidos acaba por desfocar os salesianos da vida
comunitária levando-os a uma vivência religiosa fragilizada. Este capítulo entende
que a reconquista da vida comunitária375 e do planejar e agir em equipe é uma das
chaves fundamentas da congregação e da qual não se pode abrir mão. Finalmente o
CG 26 (2008) define como prioridade em nível mundial o retorno a Dom Bosco, a
urgência de Evangelizar através de projetos de vida e o caminho para novas
fronteiras, apesar das obras terem se tornado grandes, complexas, ainda que
modernas e atualizadas. Os bons resultados educacionais e sociais não
representam, na ótica da congregação, um objetivo único a ser alcançado. A
identidade cristã emerge como fim que define os caminhos a serem trilhados.

A presença salesiana na Inspetoria de São Paulo, em consonância com a


congregação em nível mundial, deve estar atenta aos princípios que são
fundamentais para se garantir a fidelidade ao fundador e que devem estar presentes

373
- VITALI, Natale. Visão de Conjunto, Inspetoria salesiana Nossa Senhora Auxiliadora.
São Paulo, 2011a. Roma: Arquivos da congregação, Via della Pisana 1111, p. 4.

374
- A Profissão religiosa é um ato solene no qual o jovem se torna sócio (equivalente a
religioso) na congregação salesiana. Essa profissão, popularmente conhecida como votos, pode ser
temporária ou perpétua.
375
- Como religiosos a vida em comum com orações, refeições e trabalhos é fundamental e tão
importante
245

nos colégios, obras sociais e Ensino Superior não representando, porém um


regresso ao passado e nem uma postura fundamentalista. A sociedade moderna é
pluralista, sendo o ensino superior salesiano aberto ao diálogo com essa cultura a
partir do lugar cristão e salesiano.

Nas últimas décadas a Inspetoria de São Paulo ampliou significativamente suas


estruturas e serviços, crescimento este que não foi acompanhado de forma
proporcional de salesianos para atendê-los, o que se traduz na diminuição da
incidência desses educadores sobre seus destinatários.

Tal situação de distanciamento dos salesianos cada vez em menor número em


obras cada vez maiores tem ensejado o crescente desconhecimento dos princípios e
valores da salesianidade. Os salesianos acabam por concentrar suas energias na
gestão das obras e manutenção de suas estruturas.

O jovem destinatário vem perdendo o contato pessoal, amistoso e fraterno com os


educadores salesianos e este problema se tornou maior a partir da fusão das três
unidades quando os salesianos passaram a contratar pessoal especializado para a
gestão pedagógica e administrativa do ensino superior, sendo a qualificação
profissional o critério primeiro e necessário das contratações e não,
necessariamente, a adesão aos valores do fundador. Alguns profissionais até fazem
menção em suas falas a uma ou outra expressão do fundador, mais como chavões
e menos como crença. Os salesianos passaram a ter dificuldade em transmitir a
pedagogia e os princípios salesianos pois muitos desses profissionais – sobretudo
no corpo docente – não dedicam seu tempo integral à instituição, tendo que se
desdobrarem em várias frentes como professores e em outras profissões, sendo o
UNISAL apenas mais uma frente de trabalho. Isso se reflete sobre a instituição
quando os ideais educacionais salesianos não são conhecidos e portanto não
abraçados.

Os salesianos, distanciados dos pátios, ausentes das salas de aula e de


professores, gerenciando recursos, estruturas e crises financeiras tornaram-se um
nome sem rosto. A pastoral, mencionada como carro chefe da instituição mostra-se
apagada, sem verbas significativas, com pessoal nem sempre especializado.
246

Analisando a Home Page do UNISAL nos ano de 2010 e inicio de 2011376 verifica-se
bem essa situação quando um eficiente portal acadêmico se contrapõe aos
conteúdos da pastoral desatualizados em alguns setores a mais de quatro anos.
Pode-se verificar também que nos programas de cursos e nas suas ementas nem
sempre traduzem objetivos ligados aos princípios e valores da salesianidade, e em
alguns casos, ignoram mesmo a formação humanística, base de qualquer educação
universitária, pressuposto de qualquer educação universitária.

Padre Natale Vitali na visita extraordinária à Inspetoria de São Paulo, realizada em


2011 em nome do Conselho mundial sinaliza pontos fundamentais377 que devem ser
assumidos pela congregação nos próximos sexênios e que são, simplificando, os
ideais fundacionais que foram expressos e vivenciados nos primórdios da
congregação, sendo necessário equacionalizar as práticas educacionais atuais com
o projeto educacional do fundador. São princípios pétreos sem os quais o projeto
educativo salesiano se desconfigura deixando de ser salesiano. São três os
referenciais para que uma educação possa ser definida como salesiana segundo os
critérios de João Bosco:

O primeiro elemento é a presença. João Bosco acreditou que educação só se


realiza pela presença efetiva e afetiva. Na Carta de Roma378 critica veementemente
a salesianos que estavam nos pórticos “olhando” os jovens.

Observei que bem poucos padres e clérigos se misturavam com os jovens e


bem menos ainda eram os que tomavam parte nos seus divertimentos. Os
superiores já não eram mais a alma do recreio. A maior parte deles
passeava conversando entre si, sem ligar ao que faziam os alunos; outros
olhavam o recreio sem se preocuparem absolutamente com os jovens;
outros vigiavam, mas tão de longe que não poderiam perceber se os jovens
cometiam alguma falta; um ou outro avisava, mas em atitude ameaçadora e
bem de raro. Ainda havia um ou outro salesiano que gostaria de intrometer-

376
- Acesso à Home Page no dia 13 de Junho de 2011 às 11h30min.
377
- VITALI, op. cit., p. 5.
378
- Este escrito conhecido como “Carta de Roma” traça o ideal da presença salesiana
configurando o que Bosco entendia por presença que se faz acima de tudo pelo envolvimento do
educador com o educando, diferente de simples e distante vigilância.
247

se no meio dos jovens; vi, porém, que estes procuravam propositalmente


379
afastar-se dos superiores e professores .

Deveriam estar entre e com os jovens. Este conceito não possui interpretações:
presença não se delega, sendo a primeira e essencial ferramenta dessa pedagogia.
O salesiano, mesmo se gestor deve ser presença abrindo mão de tudo para estar
nos recreios, nas festas e nas salas de aula. Na arquitetura salesiana o escritório do
diretor deve ser aberto para o pórtico com fácil acesso para os educandos; e, na
tradição salesiana o diretor não deve estar no escritório nos horários de recreio
devendo receber os alunos à porta do colégio e despedir-se deles na sua saída,
conhecendo-os pelo nome e construindo amizade com eles. Deve estar pronto para
uma parolina nello orechio380.

Familiaridade com os jovens especialmente no recreio. Sem familiaridade


não se demonstra afeto e sem essa demonstração não pode haver
confiança. Quem quer ser amado deve demonstrar que ama. (...) Quantas
conversões não provocaram algumas palavras suas ditas ocasionalmente
aos ouvidos de um jovem enquanto brincava! Quem sabe que é amado
ama. E quem é amado alcança tudo, especialmente dos jovens. A confiança
381
estabelece uma corrente elétrica entre jovens e superiores .

A congregação tem sinalizado para que a gestão administrativa e financeira seja


confiada a leigos para que os educadores salesianos382 possam voltar a ser
presença nos pátios.

O segundo elemento é a Educação e Evangelização. Educar é imprimir princípios


que dão sustentação a valores resultado de convicções. A evangelização atual,
diferente dos conceitos pré-conciliares que a entendia como catequese, não
pretende necessariamente a conversão. É o testemunho de vida cristã que enseje o
diálogo com a cultura quando os ensinamentos dos Evangelhos são “o lugar” a partir
do qual se estabelece diálogo com o mundo contemporâneo. Se alunos desejarem

379
- BOSCO, João. Carta de Roma. IN: SOCIEDADE DE SÃO FRANCISCO DE SALES
(SALESIANOS DE DOM BOSCO). Constituições e Regulamentos. São Paulo: Escolas Profissionais
Salesianas, 1985, p. 242
380
- João Bosco acredita que palavras dirigidas aleatoriamente aos alunos no pátio ( uma
palavrinha no ouvido) mostra afeto e estima. Poder ser um pequeno elogio, a valorização do aluno
granjeia afeto.
381
- Ibidem, p. 243-244.
382
- Entendidos aqui não só os religiosos, mas agentes de pastoral, professores etc...
248

um atendimento mais numa linha da fé e da confessionalidade, o salesiano deve


estar pronto a atendê-lo, respondendo aos seus anseios religiosos.

O terceiro e ultimo elemento é a Missão. A educação e a pedagogia salesiana são


propositivas pretendendo a mudança da sociedade à luz de valores humanistas e
evangélicos.

Estas três referências representam o retorno ao mito fundacional naquilo que tem
de essencial: ser uma proposta de diálogo com a modernidade a partir do lugar
cristão, católico e salesiano. Se o ensino superior salesiano trilhasse outros
caminhos diferentes destes, isto representaria a desconfiguração dos ideais
fundacionais de Bosco que, alterados, se tornariam “outra coisa”. Trata-se não de
uma fidelidade ao passado, mas fidelidade aos critérios do fundador que
garantam a autenticidade à “grife” salesiana.
249

4.3 O pensamento de Dom Bosco na prática docente e pastoral do


Centro UNISAL

As obras salesianas nasceram no século XIX de uma congregação religiosa que


tinha por escopo inequívoco a santificação383 de seus membros e de seus
destinatários. Era uma das frentes da Igreja Católica para levar a juventude e as
classes populares à prática da religião pelo conhecimento do catecismo, pela
freqüência aos sacramentos384 e vivência do cristianismo. Oficinas, colégios,
internatos e escolas profissionais eram apenas meios para se atingir esse fim: a
salvação das almas, explicitado no escudo da congregação: Da Mihi animas, coetera
tolle385.

O catolicismo a partir do Vaticano II, seguindo as orientações dos documentos


Unitatis Redintegratio386 e o Nostra Aetate387, reconhece que as igrejas da Reforma
são co-herdeiras da mensagem do Evangelho e que nas religiões não-cristãs
existem lampejos de verdade, existindo nelas expressões de anseios profundos do
homem na busca do transcendente. O ecumenismo impacta a congregação
salesiana sinalizando práticas educacionais mais tolerantes. Entende-se que as
escolas confessionais não têm função de promover a catequese paroquial, mas criar
diálogo com outras confissões religiosas. Com isso cresce o destaque da dimensão
social em detrimento da missão evangelizadora pretendida pelo fundador. Abre-se
espaço para a presença de educadores não-católicos de diversas denominações
cristãs, sobretudo porque nas obras sociais mais de 60% dos atendidos são
oriundos das regiões mais pobres das cidades e são de denominações cristãs não

383
- Este termo é de cunho religioso, significando a aproximação da perfeição na vida religiosa
através da intimidade com Deus e a prática de ações de acordo com os mandamentos da Lei de
Deus expressos na Bíblia.
384
- A Igreja católica estabelece sete sacramentos que são entendidos como sinais sensíveis da
doação de Deus aos homens. João Bosco, numa sociedade onde todos eram batizados, dava
especial destaque aos sacramentos da Confissão e Eucaristia. O primeiro permitia uma orientação
pessoal do jovem no âmbito do seu íntimo e o segundo o inseria, através da missa onde se recebe
esse sacramento no âmbito da igreja.
385
- Dai-me almas e fique com o resto.
386
- “Restauração da Unidade” trata o diálogo da igreja católica com as igrejas cristãs.
387
- “Nosso Tempo” que trata do diálogo inter-religioso da igreja católica com as religiões não
cristãs.
250

católicas, levando com isso, naturalmente, à diminuição de práticas religiosas


católicas que, em muitos casos, se tornaram meras formalidades, tanto da parte dos
educadores, como dos educandos. Essa situação se projeta nas escolas e no
Ensino Superior.

A imagem do século XIX de João Bosco como “cavaleiro medieval adentrando a


cidade dos homens para implantar a Cidade de Deus” perde seu brilho. Os
salesianos, em menor número e em obras cada vez maiores e mais exigentes, se
distanciam dos jovens transferindo para leigos muitos encargos que até então lhes
cabiam. Na práxis cotidiana, diferente dos discursos oficiais, diminuem se as
exigências para que educadores e funcionários sejam católicos e pratiquem o
Sistema Preventivo, assim como diminuem sobre os funcionários as exigências de
coerência de vida moral e cristã que, no passado, seriam critérios de dispensa. Se
João Bosco entendera no seu sistema educativo que nas suas casas todos eram
educadores, desde os sacerdotes e professores até o porteiro, agora esse critério é
bastante minimizado, já que a capacidade profissional é o que mais conta nas
contratações, ficando em segundo plano – e até em último - a adesão ao projeto
educacional salesiano. Cada vez mais há funcionários e educadores que não
conhecem e/ou não comungam dos ideais educacionais da Instituição, vendo nela
apenas uma agência de emprego.

Deve-se ainda considerar que, a partir da década de 1970, vão se consolidando


algumas posturas norteadoras da sociedade civil e dos seus poderes constituídos,
incidindo na ação pedagógica das instituições católicas que devem estar abertas ao
pluralismo cultural, não podendo mais a docência ser instrumentalizada para a
catequese, entendendo-se que o pensamento cristão é apenas uma instância de
diálogo com os vários saberes e cosmovisões.

Para alguns teóricos, para que esse diálogo seja fecundo, é premente que as
instituições confessionais tenham sua identidade bem definida, pois é somente a
partir disso é que será possível um diálogo fecundo “tetê-à-tête” de diferentes
visões. Assim, quando uma instituição de ensino superior perde sua identidade
fundacional ou a tem esmaecida, ela perde, ipso facto, as condições de estabelecer
um verdadeiro diálogo, passando a ser suas intervenções na academia inócuas por
não serem portadoras dos ideais que pretende representar. Neste caso o Mito, o
251

Rito e o Símbolo tornam-se simulacros porque não mais encarnam os ideais do


fundador e nem tampouco mantém vivos os critérios que deram origem e
sustentação a essa obra.

Tem-se como premissa e ponto de partida que o Centro Universitário Salesiano


possui como inspiração o sistema educativo e a pedagogia de Dom Bosco
entendendo-se a um tempo guardião e promotor deste patrimônio educacional. É a
partir destes pressupostos que se torna necessária uma avaliação da identidade
educacional do UNISAL para se averiguar se os critérios elaborados por João Bosco
estão presentes nesta instituição, apesar dos obstáculos culturais que naturalmente
a sociedade moderna opõe às instituições de matriz religiosa num mundo em
crescente dessacralização. Deve-se levar em conta que a educação proposta por
Dom Bosco estava marcada por uma visão cristã e humanística buscando formar o
homem em sua totalidade, sendo agentes desta ação pedagógica os salesianos e
todos educadores que assumissem esta proposta educacional. Para que isso seja
realidade, porém é preciso que no âmbito da academia as proposições educacionais
da pedagogia salesiana sejam assumidas de forma sistêmica e orgânica. Mas, para
que isso aconteça, é necessário que os educadores as conheçam para fazê-las
conhecidas dos educandos. O conhecimento é, pois, o pré-requisito para a adesão
e até mesmo para a rejeição desses ideais. É, pois preciso verificar o tratamento que
é dado à questão da salesianidade no centro UNISAL para que se possa aquilatar
se esse pensamento educacional é, inicialmente conhecido, a seguir proposto e
posteriormente aplicado.

Esta verificação supõe um trânsito pela instituição verificando se há elementos de


salesianidade no seu ambiente físico e espiritual. Algumas questões se colocam: Os
ambientes físicos, a arquitetura e layout sinalizam valores salesianos? Existe a
presença física de salesianos acolhendo alunos e estando disponíveis para atendê-
los? A proposta institucional e dos cursos, através de seus programas e ementas,
correspondem ao projeto do fundador? Existem projetos de formação de professores
e funcionários em salesianidade? A pastoral possui uma atuação sistêmica ou
funciona apenas para eventos? São realizadas publicações que sejam referenciais
dos valores salesianos da Instituição? Os cursos de pedagogia e mestrado dão lugar
de destaque à pedagogia salesiana?
252

São questões que procuram aquilatar a intensidade e qualidade da proposta


salesiana numa instituição de ensino superior e verificar se ela possui incidência na
academia.

É preciso salientar que pelo termo “salesianidade” entende-se o conjunto orgânico e


sistêmico de princípios e práticas que nasceram e estão de acordo nos seus critérios
fundamentais com o sistema preventivo de Dom Bosco com seus três elementos
fundamentais: razão, religião e amorevolezza388 e que se “encarnam” e materializam
na presença física e espiritual dos educadores.

388
- Bondade
253

4.3.1 Salesianidade e corpo docente

Para conferir o grau e a qualidade da salesianidade ensinada e praticada numa obra


nascida de João Bosco devem-se considerar alguns elementos: o primeiro é se
esses princípios são compartilhados com professores e educadores que devem,
inicialmente, conhecer a vida do fundador, suas ações e seus conceitos
educacionais. Num segundo momento devem reconhecer valores acreditando nesta
maneira de educar para, só então, se sentirem envolvidos como protagonistas nesta
ação pedagógica. Em terceiro lugar devem encarnar esses valores com seu estilo de
vida transmitindo-os aos seus alunos que, além de conhecê-lo, possam assumi-lo
na sua vida privada, social e profissional.

O conhecimento do Sistema Preventivo é o primeiro passo para a educação


salesiana, insuficiente, porém. Esses princípios educacionais não são ação erudita
de conhecimento ou uma teoria educacional plausível, como o foi, por exemplo, as
teorias de Jean Jacques Rousseau no seu livro Emílio. Aqui está o “complicador” da
educação salesiana como elaborada por João Bosco. Esse método de educação só
se materializa na medida em que se “encarna” em sentido literal na pessoa do
educador. Mais que “vagos princípios” é um estilo de vida. Não se pode abrir mão
deste diferencial, sem o que, a educação salesiana se desconfigura transformando-
se em “outra coisa”. Deve-se sublinhar que o educador salesiano não deve ser
entendido como o religioso pertencente à congregação salesiana. Educador
salesiano, no pensamento do fundador, é todo aquele389 que assume na própria vida
o estilo de educação de Dom Bosco, que foi, antes, um estilo de vida vivido primeiro
e só teorizado posteriormente. Aliás, deve-se dar especial destaque ao fato de que
Bosco não se perdeu em teorias educacionais. A meta primeira da educação por ele
praticada foi a sua presença qualificada, significativa e significante tendo por
objetivo se fazer amar390. O objetivo é construir o homem através de laços afetivos

389
- Daí tem sentido o termo “família salesiana” (FS) que congrega milhares de religiosos e
leigos que possuem como características serem reconhecidos como seguidores dos princípios
educacionais de Dom Bosco.
390
- Esta postura causava furor nos teóricos católicos do século XIX. A finalidade para eles era
despertar o amor a Deus, à virtude e ao bem. Fazer do educador objeto da ação educativa
representava algo inominável e contrário aos valores cristãos assumindo para eles ares de orgulho e
vaidade. No conceito de Bosco, porém, na medida em que se estabelecessem laços afetivos entre
educador e educando, entendido aquele como pai ou irmão mais velho, isso lhe permitiria indicar os
caminhos de Deus, da virtude e do bem e sua proposição ser aceita porque feita por alguém que
254

sem, porém, sequer insinuar dimensões sensíveis e possessivas. É um afeto que


nasce do respeito pelo adolescente como protagonista de sua história e da história
de sua sociedade. É promovê-lo acreditando e apostando que é capaz do bem. O
Educador procura amar tudo que o jovem ama para que ele possa amar o que ele
ama: Deus, teoriza João Bosco. Daí a frase: a Educação é obra do coração.
Entende-se, então, porque na Carta de Roma o fundador critica os salesianos que
estavam no pátio, mas não no meio dos jovens. João Bosco professa profunda
crença na bondade. Com clareza define os dois métodos educativos que se opõem:
o repressivo e o preventivo.

São dois os sistemas até hoje usados na educação da juventude: o


Preventivo e o Repressivo. O Sistema Repressivo consiste em fazer que os
súbditos conheçam a lei, e depois vigiar para saber os seus transgressores
e infligir-lhes, quando necessário, o merecido castigo. Nesse sistema, as
palavras e o semblante do superior devem constantemente ser severos e
até ameaçadores, e ele próprio deve evitar toda a familiaridade com os
dependentes. (...) Diferente e, eu diria oposto é o Sistema Preventivo.
Consiste em tornar conhecidas as prescrições e as regras de uma
instituição, e depois vigiar de modo que os alunos estejam sempre sob os
olhares atentos do diretor ou dos assistentes. Estes como pais carinhosos,
falem, sirvam de guia em todas as circunstâncias, dêem conselhos e
corrijam com bondade. Consiste, pois, em colocar os alunos na
impossibilidade de cometerem faltas. (...) O Sistema Repressivo pode
impedir uma desordem, mas dificilmente melhorará os culpados. Diz a
experiência que os jovens não esquecem os castigos recebidos, e
geralmente conservam ressentimento acompanhado do desejo de sacudir o
jugo e até de tirar vingança. Podem, às vezes, parecer indiferentes; mas
quem lhes segue os passos sabe quão terríveis são as reminiscências da
juventude. Esquecem facilmente os castigos que recebem dos pais; muito
dificilmente, porém, os dos educadores. Há casos de alguns que na velhice
se vingaram com brutalidade de castigos justos que receberam nos anos de
sua educação. O Sistema Preventivo, pelo contrário, granjeia a amizade do
menino, que vê no assistente um benfeitor que o adverte, quer fazê-lo bom,
livrá-lo de dissabores, castigos e desonra. O Sistema Preventivo predispõe
e persuade de tal maneira o aluno, que o educador poderá em qualquer
lance falar-lhe com a linguagem do coração, quer no tempo da educação,
quer ao depois. Conquistado o ânimo do discípulo, poderá o educador
exercer sobre ele grande influência, avisá-lo, aconselhá-lo, e também
corrigi-lo, mesmo quando já colocado em qualquer trabalho ou empregos
públicos, ou no comércio. Por essas e muitas outras razões, parece que o
391
Sistema Preventivo deve preferir-se ao Repressivo .

Ainda que esses textos tenham sido escritos para a educação de adolescentes,
reproduzem, porém, na essência a educação e a pedagogia salesiana tal como

fizera o educando sentir-se amado e que, em contrapartida, amava. Afeto e amorevolezza são
ingredientes fundamentais de sua prática pedagógica.
391
- BOSCO, João. O sistema Preventivo na Educação dos Jovens. In: SOCIEDADE DE SÃO
FRANCISCO DE SALES (SALESIANOS DE DOM BOSCO). Constituições e Regulamentos. São
Paulo: Salesiana, 2003, p. 231-232
255

elaborada por Bosco e assumida por seus discípulos. E, ainda que deva se adequar
aos tempos e às novas frentes de ação, como o ensino superior, tais valores,
“presença, razão, religião e amorevolezza” são princípios pétreos que configuram a
educação salesiana; e, retirá-los, significa desfigurar e desconfigurar essa educação
salesiana. Este é o desafio do Centro UNISAL: adequar ao ensino superior esses
princípios pétreos da educação salesiana, sem traí-los, porém.

Para verificar o quesito salesianidade optou-se por uma análise a partir da Home
Page392 enquanto vitrine da Instituição e por ser um espaço bastante atualizado e
utilizado como ferramenta da ação pedagógica e administrativa da instituição. Serão
objeto de breve análise a apresentação do reitor, a identidade corporativa, a
apresentação da pedagogia salesiana, a pastoral universitária, a ementa de alguns
cursos nos quais será dado destaque para os objetivos, o perfil do egresso e o
conteúdo de algumas matérias. Isso permitirá que se “tome as pulsações” dos
valores salesianos em várias dimensões da instituição neste início do século XXI.

Deve-se considerar que o trabalho educacional dos salesianos foi realizado desde o
século XIX até a década de 60 em contato pessoal com os jovens. Será a partir dos
anos 70, como já se assinalou, que começará a crescer o distanciamento dos
destinatários. Alguns defenderam que, frente ao crescimento das obras, aos
salesianos não seria mais possível conviver diretamente com os jovens, cabendo-
lhes então preparar educadores que fossem multiplicadores desta pedagogia. Este
conceito de terceirização das práticas pedagógicas não é aceito com unanimidade.
Este distanciamento, porém, cresceu, com muitos salesianos assumindo funções de
gestores de estruturas físicas e se tornando meros teóricos da educação salesiana.
João Bosco já percebera essa tendência e advertira aos salesianos que jamais
deveriam se ausentar do meio dos jovens, preocupação esta que será expressa num
sonho393 cognominado Carta de Roma na qual o fundador dialogava com um jovem
recordando-se dos tempos de outrora:

392
- O material exposto na Home Page está também na sede UNISAL em Americana.
393
- João Bosco apresentou muito dos seus princípios através da narração de sonhos.
Independente se tenham acontecido ou não, eles são utilizados como parábolas nas quais dramatiza
situações do cotidiano e nos quais há valores educacionais explicitados.
256

(...) Então meu amigo continuou: — Nos velhos tempos do Oratório o


senhor não estava sempre no meio dos jovens, especialmente na hora do
recreio? Lembra aqueles belos anos? Era um santo alvoroço, um tempo que
lembramos sempre com saudade, porque o afeto é que nos servia de regra,
e nós não tínhamos segredos para o senhor.

— Certamente. Tudo então era alegria para mim. Os jovens corriam ao


meu encontro, para falar-me; ansiavam por ouvir meus conselhos e pô-los
em prática. Vês, porém, que agora as contínuas audiências, os muitos
afazeres e minha saúde não o permitem.

— Está bem: mas se o senhor não pode, por que seus salesianos não o
imitam? Por que não insiste, não exige que tratem os jovens como o senhor
os tratava? — Eu falo, canso-me de falar, entretanto muitos não se sentem
dispostos a enfrentar os trabalhos como outrora. E então, descuidando o
menos, perdem o mais, e esse “mais” são seus trabalhos. Amem o que
agrada aos jovens e os jovens amarão o que aos superiores agrada. E
assim ser-lhes-á fácil o trabalho. A causa da mudança atual no Oratório é
que bom número de jovens não tem confiança nos superiores. Antigamente
os corações estavam todos abertos aos superiores, a quem os jovens
amavam e obedeciam prontamente. Mas agora os superiores são
considerados como superiores e não como pais, irmãos e amigos; são pois
temidos e pouco amados. (...) É importante ter familiaridade com os jovens
especialmente no recreio. Sem familiaridade não se demonstra afeto e sem
essa demonstração não pode haver confiança. Quem quer ser amado deve
demonstrar que ama. (...) O professor visto apenas na cátedra é professor e
nada mais, mas se está no recreio com os jovens torna-se irmão. Se
alguém é visto somente a pregar do púlpito, dir-se-á que está fazendo
apenas o próprio dever; mas se diz uma palavra no recreio, é palavra de
alguém que ama. (...) Quem sabe que é amado, ama; e quem é amado
alcança tudo, especialmente dos jovens. A confiança estabelece uma
corrente elétrica entre jovens e superiores. Os corações se abrem e dão a
conhecer suas necessidades e manifestam seus defeitos. Esse amor faz os
superiores suportarem canseiras, aborrecimentos, ingratidões, desordens,
faltas e negligências dos meninos. (...) Por que se afastam os superiores da
maneira de educar que Dom Bosco ensinou? Por que ao sistema de
prevenir com a vigilância e amorosamente as desordens, se vai substituindo
pouco a pouco o sistema, menos pesado e mais cômodo para quem manda,
de impor leis que se mantêm com castigos, acende ódios e geram
desgostos, e se não se cuida de as fazer observar, geram desprezo aos
superiores e causam gravíssimas desordens? É o que acontece
necessariamente se faltar a familiaridade. Se se quiser, pois, que o Oratório
volte à antiga felicidade, reponha-se em vigor o antigo sistema: O superior
seja tudo para todos, sempre disposto a ouvir qualquer dúvida ou queixa
dos jovens, todo olhos para vigiar-lhes paternamente a conduta, todo
coração para procurar o bem espiritual e temporal dos que a Providência lhe
394
confiou .

O ideal de presença como princípio pétreo foi relativizado por salesianos de São
Paulo: caberia aos leigos serem protagonistas da ação educativa do Sistema
Preventivo monitorados por salesianos. Um reflexo primeiro desta postura foi que a
resposta afetiva esperada por essa educação transferiu-se dos salesianos para os
professores e educadores que, não necessariamente, aderiam aos princípios

394
BOSCO, J. Carta de Roma, op. cit., p. 280-283.
257

salesianos. Os religiosos passaram a ser visto como os “donos do negócio” pelos


educandos e como “patrões” pelos funcionários.

Colocados esses princípios deve-se afirmar sem se titubear que o ensino superior
do UNISAL tem sua fonte de inspiração e ação nos critérios educacionais de João
Bosco não podendo abrir mão desses princípios pétreos, sem os quais se perderia
sua identidade salesiana. Cabe verificar se esses princípios educacionais e essa
prática pedagogia são veiculados, conhecidos e praticados pelo Centro Universitário
Salesiano, levando em conta obviamente, as adaptações exigidas pelo público alvo
dos tempos atuais. Para auferir se existe veiculação desta pedagogia entre docentes
e discentes, passo primeiro para que seja conhecida e praticada, optou-se por
pesquisar a documentação dos cursos através de suas ementas395 nos seus
objetivos e nas expectativas depositadas nos seus egressos.

Para se avaliar a incidência da salesianidade no UNISAL serão analisados sete


títulos no Home Page396: a - Histórico b – apresentação do reitor; c – identidade
corporativa; d – apresentação da pedagogia salesiana; e – pastoral universitária; f –
ementa de alguns cursos; g – conteúdo de algumas matérias que poderiam
comportar no seu projeto elementos de salesianidade.

No título “Histórico” faz-se uma retrospectiva da figura de João Bosco, acentuando-


se os referenciais fundamentais da educação salesiana com destaque para o
Sistema Preventivo como o eixo da práxis da pedagogia salesiana:

Dom Bosco foi um sacerdote italiano que dedicou sua vida ao trabalho com
os jovens. Seu projeto educativo, denominado Sistema Preventivo, é
adotado nas escolas e demais obras salesianas. Razão, Religião e
397
amorevolezza são os valores do Sistema Preventivo, e amorevolezza é o
elemento-chave dessa pedagogia. Essa palavra italiana não tem tradução
literal para o português e é entendida como bondade, carinho, afeto, amor.

395
- Essas informações estão disponibilizadas no site do Centro UNISAL e foram consultadas
na primeira quinzena do mês de julho de 2011. Os itens pesquisados foram impressos e encontram-
se disponíveis no SEDOC do Centro Universitário de Lorena na pasta referente aos documentos de
pesquisa deste doutorado no arquivo sob o nome do titular deste trabalho.
396
- A Home Page do UNISAL (www.unisal.br) tem sido eficiente ferramenta de relacionamento
entre o corpo docente e discente pelo do portal acadêmico. A eficiência desta ferramenta no âmbito
pedagógico e administrativo não é a mesma no âmbito da pastoral.
397
- Em italiano “amorevolezza”. Muitos especialistas em salesianidade negam-se m traduzir
essa palavra por considerar que seu sentido seria algo mais que a simples bondade, mas um amor e
carinho demonstrado. Será comum encontrar essa palavra sem tradução nos textos em português
que trabalham a salesianidade.
258

Esses valores devem nortear todas as ações dos Salesianos nas escolas e
398
obras sociais que a congregação mantém em quase todo o mundo .

A apresentação do Reitor399 reafirma o exposto no histórico, apontando o Sistema


Preventivo como o referencial-chave desta pedagogia. O UNISAL é apresentado
como continuidade da Faculdade Salesiana de Filosofia e Letras de Lorena fazendo
memória de antigos educadores dos primeiros tempos. Refere-se à máxima Scientia
ad sapientiam400 que se encontra há quase um século num quadro de marchetaria
nos saguões do palacete veneziano em estilo neo-clássico onde está instalada a
direção da unidade de Lorena, numa clara intenção de sinalizar o elo do passado
com o presente. Procura mostrar a extensão do pensamento educacional de Dom
Bosco para além das fronteiras salesianas:

Sobre Dom Bosco, fundador da Família Salesiana, afirmou Carlos


Drummond de Andrade: “De cada criança fez um ser humano, pelo amor
e trabalho diligente, o santo amigo, o santo irmão da gente, João
Bosco, luz acesa no futuro”. E Umberto Eco, intelectual italiano,
reconhecido especialista da área da comunicação e semiótica: “À
sociedade está faltando o seu ‘projeto Dom Bosco’, isto é, alguém ou
algum grupo com a mesma imaginação sociológica, o mesmo senso
dos tempos, a mesma inventividade organizativa. Fora deste quadro,
nenhuma força ideológica pode elaborar uma política global das
comunicações de massa, e deverá limitar-se à ocupação,
freqüentemente inútil e muitas vezes danosa, dos vértices dos grandes
401
dinossauros, que contam cada vez menos do que se crê" .

Finalmente o reitor define de forma inequívoca a fidelidade institucional a Dom


Bosco, apesar das novas realidades do século XXI.

(...) embora seja de natureza confessional, o UNISAL, acompanhando as


tendências sócio-eclesiais dos últimos anos, amadureceu uma acentuada
índole ecumênico-dialógica e, hoje, busca decididamente maior
significatividade no âmbito educacional brasileiro, pretende-se
suficientemente capaz de colaborar no processo de amadurecimento
humano de muitos jovens e procura construir um saudável clima intra-
institucional que favoreça o desenvolvimento humano-profissional de todos
os que dele fazem parte. Para tanto, além dos salesianos religiosos, há um
robusto grupo de profissionais-educadores envolvidos nos muitos serviços
prestados pelo UNISAL. As obras e empresas salesianas gostam de olhar

398
- UNISAL. Histórico. Disponível em: <www.unisal.br>. Acesso em: 4 jun.2011.
399
- Prof. Dr. Edson Donizetti de Castilho.
400
- Ao conhecimento pela Sabedoria.
401
-- UNISAL. Apresentação do Reitor. Disponível em: <www.unisal.br>. Acesso em: 4 jun.
2011.
259

para os profissionais e educadores nelas envolvidos como sendo “um vasto


movimento de pessoas a serviço da complexa e exigente missão salesiana”.
Dessa forma, olhando com responsabilidade para a missão que nos
interpela, podemos refletir, em cada ação, o compromisso com a máxima
salesiana que herdamos de Dom Bosco: “Formar bons cristãos e honestos
cidadãos”.

Ainda na Home Page o título Identidade Corporativa define a índole salesiana da


Instituição.

Missão: O UNISAL, fundado em princípios éticos, cristãos e salesianos, tem


por missão contribuir para a formação integral de cidadãos, por meio da
produção e difusão do conhecimento e da cultura, e pelas experiências de
ação social, em um contexto de pluralidade.

Valores: A prática educativa do UNISAL apóia-se nos seguintes valores:


Amorevolezza, Diálogo, Ética, Profissionalismo e Solidariedade.

Visão: Consolidar-se como centro de excelência, reconhecido nacional e


internacionalmente na produção, sistematização e difusão do conhecimento
402
e na qualidade de serviços prestados à comunidade .

403
A Pedagogia salesiana é apresentada de forma coloquial procurando-se
estabelecer sinergia com os leitores:

“Para você que está entrando pela primeira vez numa casa salesiana. Para
você que veio trabalhar com os salesianos. Para você conhecer melhor
Dom Bosco e os salesianos é que o P. Antonio Carlos Galhardo organizou
404
este texto ”

O texto é ainda uma recapitulação histórica da vida de João Bosco, a fundação da


congregação em 1857405, a presença de salesianos em mais de 120 países e
descrição do Sistema Preventivo. É um texto, porém reducionista com linguagem
própria para uma paróquia católica, mas pouco adequado para o ambiente pluralista
da academia. É um texto fora de lugar pelo teor doutrinal e catequético com um
conteúdo apoiado no dogma católico. Essa forma de linguagem “a partir do púlpito”

402
- UNISAL. Identidade Corporativa. Disponível em: <www.unisal.br>. Acesso em: 4 jun.
2011.
403
- Carlos Galhardo
404
- UNISAL. Pedagogia salesiana. Disponível em: <www.unisal.br>. Acesso em: 24 jun. 2011.

405
- Alguns autores identificam o ano de 1857 como o da fundação da congregação salesiana.
Será quando João Bosco terá o encontro com um grupo de jovens propondo-lhes esse projeto. O ano
de 1859 é reconhecido como o da fundação pois será nele que João Bosco obtém a adesão dos
primeiros jovens salesianos. .
260

foi abandonada após o Vaticano II. De qualquer forma, explicita o pensamento


religioso do fundador no século XIX e suas intenções pastorais para o futuro da
congregação.

Pode-se perceber na linguagem institucional coerência nas afirmações que


procuram delimitar sua identidade: a consciência de ser um movimento que nasceu
de Dom Bosco; a finalidade das obras voltadas especificamente para juventude e a
identidade católica e salesiana da instituição. Há, portanto, uma clara e inequívoca
definição nos princípios teóricos dos referenciais religiosos que norteiam a ação
educacional e pedagógica dos salesianos.

Colocados esses princípios e referenciais teóricos, se deve verificar se os mesmos


estão materializados e visíveis no dia a dia da instituição, seja através da pastoral
que propõe ao alunado serem protagonistas dos ideais salesianos, seja nos
programas de cursos e nas suas disciplinas garantindo aos seus educandos a
aquisição de alguns valores preconizados pela Instituição ao descrever o perfil dos
egressos

A Pastoral, em consonância com a fala institucional, afirma sua identidade e


finalidade:

O Centro Universitário Salesiano de São Paulo, UNISAL, instituição


universitária “NASCIDA DO CORAÇÃO DA IGREJA, como centro
incomparável de criatividade e irradiação do saber para o bem da
humanidade”, a fim de consagrar-se inteiramente à causa da verdade e
garantir uma presença cristã no mundo universitário, tem na Pastoral
Universitária Salesiana um feixe de atividades que oferecem ao ambiente
educativo a ocasião de integrar a vida com a fé. A Pastoral Universitária
Salesiana preocupa-se, especialmente, “em encarnar a fé em suas
atividades cotidianas”. Por isso, o ambiente educativo (clima de relações
que torna possível a ação formativa e pastoral) é seu elemento chave e,
deste modo, suas ações implicam, especialmente, em:- revelar um
ambiente familiar, caracterizado pela acolhida e disponibilidade; - orientar e
estimular uma formação humana que evidencie o respeito e a
disponibilidade para o encontro pessoal entre todos os membros da
comunidade acadêmica; - exercitar uma preocupação e atenção visível à
juventude, aos estudantes; - priorizar o reflexo da prática dos valores que se
transmitem - como solidariedade, justiça, liberdade, respeito, igualdade –
em todos os setores da universidade. A Pastoral Universitária Salesiana é,
portanto, entendida como uma ação unitária – acadêmica e de formação
406
integral – dirigida e endereçada a toda a comunidade universitária .

406
UNISAL. Pastoral. Disponível em: <www.unisal.br>. Acesso em: 24 jun. 2011.
261

Nos documentos oficiais da congregação e da Inspetoria Salesiana de São Paulo a


Pastoral é nomeada como carro chefe da presença salesiana nas obras. No
passado a coordenação desta frente nas escolas e obras sociais era entregue a
salesianos jovens que a articulavam com criatividade, empreendedorismo e
presença. Pelo fato de o ensino superior ter sofrido rejeição por boa parte dos
salesianos e só ter sido assumido como uma frente carismática da congregação
tardiamente, fez com que essa função fosse assumida de forma acanhada e com
metodologias inadequadas transpostas de escolas de segundo grau e de obras
sociais. Os salesianos que assumiam a pastoral universitária possuíam,
concomitantemente, encargos similares no colégio, ficando essa função junto ao
ensino superior sem um atendimento prioritário, possuído poucas verbas e contando
com uma equipe de apoio reduzida e nem sempre especializada em salesianidade.
Com a redução do pessoal salesiano e com o crescimento do Centro Universitário
resolveu-se, num tempo de crise financeira, confiar a coordenação deste setor aos
salesianos-ecônomos para que os mesmos provessem financeiramente essa frente
com mais “boa vontade”. Esse cargo, porém, entregue a ecônomos, teve sua
eficiência comprometida, pois eles trabalhavam em três turnos407 para atenderem
suas responsabilidades no gerenciamento da administração da unidade, no zelo
pela conservação do patrimônio, no comando do departamento de pessoal e
recursos humanos e ainda respondendo pela gestão da escola de primeiro e
segundo grau e obra social anexas à comunidade religiosa, sendo-lhes impossível
atender às demandas do dia-a-dia e, sobretudo, à elaboração de projetos da
pastoral de forma orgânica, fazendo com isso que o setor se tornasse muito mais
promotor de eventos que organizador e mentor de ações educativas num projeto
consistente.

Esta realidade acima descrita é facilmente perceptível ao se analisar a home page


“www.unisal.br”. Este site possui um bom e prático layout e grande eficiência
acadêmica, administrativa e financeira com atualizações permanentes que envolvem
significativos investimentos financeiros. O único setor que se mostra

407
- Os trabalhos dos salesianos nas obras não são remunerados, não havendo necessidade de
se cumprir as horas legais exigidos pela CLT.
262

desatualizado408 é a pastoral, reduzida a uma posição secundária frente ao conjunto


das outras demandas. Uma “navegação” superficial409 apresenta textos produzidos
há mais de quatro anos e que muitas vezes não “abrem”. Considerando que a
pastoral deveria alavancar os valores cristãos e salesianos da instituição, percebe-
se que estão, de fato, relegados a um plano periférico, contrariamente a tudo que
desejara o fundador.

Se as proposições do Histórico, da Apresentação do Reitor, da Identidade


Corporativa e da Apresentação da Pedagogia Salesiana apontam ideais almejados,
de fato tais projetos ficam fragilizados quando a pastoral, que se pretendia ser um
dos braços visíveis da ação salesiana, se mostra estruturalmente acanhada,
fragilizada e desprovida de atualidade e interesse, tanto para docentes, como
discentes. A mensagem subliminar que fica é que a pastoral não é significativa no
contexto do ensino superior.

Há um segundo espaço no qual se pode conferir a incidência dos ideais salesianos e


onde, efetivamente, palpita a vida da academia: são os cursos com suas disciplinas
nas quais se materializam e são tangíveis os seus objetivos educacionais. Cabe
conferir se nas ementas dos cursos estão presentes explicita ou implicitamente,
declarados ou insinuados os ideais do fundador e do próprio Centro Universitário
Salesiano já explicitado nas apresentações institucionais. Verificar-se-á se as
ementas levam em consideração os seguintes referenciais:

408
- Este verificação foi monitorada a cada dez dias do mês de julho de 2010 a julho de 2011.
Poucas alterações foram realizadas. No CEDOC do Centro UNISAL – unidade de Lorena na pasta do
titular deste trabalho encontram-se arquivadas as páginas impressas que são analisadas nesta
pesquisa.
409
- Uma análise sumária nos demonstra isso. No titulo “Pastoral” das três unidades existem
cinco subtítulos. 1 – Universidade em Pastoral; 2 – Celebrações; 3 – Links; 4 – Frases e textos; 5 –
Assessor de pastoral. Quando se parte para uma “navegação” nos portais das unidades encontra-se
a seguinte situação. No item “Celebrações” têm-se horários repetidos de todas as unidades. Em
Americana têm-se citações genéricas que apenas indicam intenções: Atividades da PDU: Retiros,
Formação, Manhãs de Espiritualidade, Missas Festivas, Esportes, Missas de formatura e celebrações
ecumênicas. Este enumerado de “atividades’ indica muito mais uma “carta de intenções” que
efetivamente ações pastorais. No título Links há um conjunto de fotos da Pastoral de Lorena que
foram lincadas para as demais unidades. Constam links para fotos de 2009 e 2010, textos e “vem por
ai”. Nenhum dos links abre. E no mesmo setor na página de Americana nada consta. No setor
“Frases e Textos” há 10 textos. O mais velho de 29 de setembro de 2007 e o “mais atual” e único
que abre é de 13 de maio de 2008. No título ‘Assessor” não consta nada.
263

1. O Preparo profissional – trata-se da preparação do aluno numa área do saber


que o qualifica para o exercício de uma determinada profissão. Este aspecto
é parte essencial na configuração de um curso.

2. O Embasamento humanista – Na pedagogia salesiana a atividade docente


transcende às meras informações técnicas. A partir de uma antropologia cristã
entende-se que a formação profissional passa pela formação do homem em
sua totalidade.

3. Os Valores de cidadania- A educação salesiana, rompendo com os


paradigmas da idade média e afinada com a unificação política da península
itálica, pretendeu a formação de cidadãos também para a Nova Itália. A
formação profissional contempla também uma ação na Polis onde, como já
preconizara Aristóteles, deve-se garantir o Bem Comum que é a soma de
todos os bens individuais.

4. Os Valores Éticos – São os princípios morais que nascem de uma consciência


filosoficamente bem formada. Os princípios morais direcionam a educação
salesiana que supõem uma base humana que dê sustentação à posterior
formação cristã.

5. Os Valores salesianos – É o modo de se auto-educar e de ver a vida. Razão,


Religião e Bondade fazem parte integrante da ação educativa dos formadores
sobre seus destinatários que são concebidos como protagonistas desta
educação. Sem interação afetiva entre educadores e educandos, não é possível
formação.

6. Os Valores cristãos – O cristianismo a base da cosmovisão salesiana. Esses


valores não representam hoje, necessariamente, a conversão para a prática do
catolicismo, mas a aceitação de valores do humanismo cristão .

A interação do Centro Universitário com o alunado se dá nos cursos e no cotidiano


das salas de aula onde deveria ser perceptível por osmose o humanismo cristão e
salesiano. Para que se possa avaliar essa incidência, deve-se verificar se os seis
elementos supra-enumerados são contemplados nos cursos através de suas
ementas e disciplinas. Deve-se levar em consideração que neste nosso século está
superada para a maioria dos educadores a idéia que bastaria a formação técnica,
sendo entendida a formação humana como tão importante quanto a habilitação
profissional, pois o trabalho supõe interação de equipe em nível técnico e humano.
Recursos humanos de empresas bem estruturadas buscam selecionar pessoal
qualificado para seus quadros atentos à vida social, familiar e pessoal dos
candidatos. O ensino superior, sem abrir mão da formação profissional, deve zelar
para que essa formação humana integral seja a mais aprimorada possível.
264

É ponto pacífico que o UNISAL nas suas elaborações teóricas, alinhado com o
pensamento do fundador, sinaliza uma formação humana, ética, cidadã, salesiana e
cristã. Torna-se necessário verificar, porém se esses princípios teorizados interagem
com os projetos dos cursos.

Avaliando 29 cursos410 do UNISAL procurou-se, através de suas ementas, fazer o


levantamento de elementos que apontassem, para além do preparo profissional, a
formação humana, cidadã, ética, salesiana e cristã oferecida aos alunos. A partir da
análise dos seus objetivos e do esperado do profissional egresso 411 de seus cursos
pode-se aquilatar em que medida há interação desses projetos com os propósitos
institucionais.

410
- Lorena: Filosofia, Psicologia, Direito, Pedagogia, Ciência da Computação, Engenharia de
Produção, Matemática, Geografia, História, Turismo.

Americana: Psicologia, Direito, Pedagogia, Engenharia ambiental, Engenharia de Automação


e Controle, Engenharia de produção, Engenharia Elétrica, Sistema d Informação, Tecnologia em
Sistemas Automotivos, Ciências contábeis, Moda, Publicidade propaganda, Serviço Social,

Campinas: Direito, Engenharia de Automação e Controle, Engenharia de produção,


Engenharia Mecânica, Tecnologia de Automação Industrial e Tecnologia em Sistemas Automotivos.
411
Curso Preparo Embasamento Valores Valores Valores Valores
Profissional Humanístico cidadania Éticos Salesianos Cristãos
Filosofia L x x x x x x
Psicologia L x x x x
Psicologia A x x x x
Direito L x x x x
Direito A x x x x
Direito C x x x x
Pedagogia L X
Pedagogia A x x
Ciencia computação L x
Engenharia ambiental A x x x
Engenharia Automação A x x x
Engenharia Automação C x x x x
Engenharia de produção L x
Engenharia de produção C x x
Engenharia Elétrica A x x x x
Engenharia Mecânica C x x
Matemática L x x
Sistema Informação A x x x
Automação Industrial C x x x x x
Tec.Sistema automotivo C x
Ciências contábeis A x x x
Geografia L x x x
História L x x x x
Moda A x x x x
Serviço Social A x x x x x x
Turismo L x x x x
265

Todos os cursos definem com clareza o preparo profissional como essencial e


prioritário. 73% deles se preocupam com um embasamento humanístico. 61%
sinalizam compromissos com a cidadania; 57% mostram preocupação com a
formação ética. 23 % apontam valores salesianos a serem passados no currículo e
apenas 7,6% fazem menção a referenciais cristãos.

É de imediato explicito o descompasso entre os referenciais teóricos explicitados


pela Home Page através do Histórico, da apresentação do Reitor, da Identidade
Corporativa e da discrição feita na Pedagogia Salesiana e os projetos dos cursos. O
Curso de Filosofia412 é o que melhor e mais qualitativamente se encontra afinado
com os objetivos da congregação e com os referenciais institucionais do UNISAL,
talvez por ter sido o primeiro das faculdades salesianas e o que até hoje possui a
presença de três salesianos como docentes preocupados com a fidelidade do
projeto da congregação. As descrições dos seus objetivos e do perfil do egresso
contemplam o preparo profissional, o embasamento humanista, os valores de
cidadania, éticos, salesianos e cristãos:

Objetivos Gerais: Formar a pessoa humana, cidadã, profissional, docente


de Filosofia, que desenvolva uma atitude reflexiva sobre o sentido da
própria existência, sua identidade e sua relação com Deus, com a
sociedade e com o mundo. Essa atitude deve ser entendida como
possibilidade de esclarecimento de pressupostos e de engajamento, na
busca e posse de uma plena estatura humana, que envolve o cultivo da vida
do espírito, do conhecimento, da cultura, da educação, da ética e do
convívio social, na história.

Objetivos Específicos • pensar e desenvolver sistematicamente o


raciocínio, capacitando-o a formular e propor, de um modo especificamente
filosófico, soluções a problemas; • ler, compreender, interpretar, analisar e
sintetizar os clássicos da Filosofia segundo os rigorosos procedimentos
científicos e da Hermenêutica; • desenvolver uma consciência crítica acerca
da realidade humana e das questões sociais, políticas e econômicas; •
estabelecer um diálogo constante entre Fé e Razão • capacitar o estudante
para ser agente de reflexão da educação integral nas áreas do Ensino
Fundamental e Médio, favorecendo o desenvolvimento da criatividade
educativa, didática, pedagógica e crítica.

412

Filosofia – Lorena
Preparo Embasamento Valores de Valores Valores Valores
profissional Humanista cidadania Éticos salesianos Cristãos
Sim Sim Sim Sim Sim Sim
266

Perfil Profissional: A partir dos objetivos desenvolvidos ao longo do curso


e norteadores desta sociedade contemporânea, espera-se do egresso uma
sólida e profunda formação filosófica e pedagógica a qual fundamenta o
respeito à pessoa. Pautado em princípios éticos que o tornem capaz de
dialogar com as diferenças e de agir como cidadão autônomo-crítico de
forma consistente na transformação do ambiente em que vive e atua o
egresso, portanto, precisa ser um profissional da educação, atento à
pesquisa, à reflexão e à ação didática renovadora.

Somente o Curso de Serviço Social413 de Americana terá a mesma abrangência,


mas não a mesma profundidade, atendendo a todos os requisitos propostos nesta
pesquisa:

Objetivos Gerais: Oferecer ao graduando uma formação profissional


orientada para enfrentar uma conjuntura de profundas mudanças globais no
âmbito das relações sociais, bem como os desafios da crise de paradigmas
e da especificidade da profissão. Sobretudo, a revitalização das políticas
sociais de caráter público e direitos humanos universais garantem a
interdisciplinaridade e as estratégias de intervenção.

Perfil Profissional: Visão Humanística com habilidades para compreender,


intervir e interagir com pessoas, grupos e comunidades através de postura
ética profissional e cristã salesiana. Postura crítico-analítico da realidade
internacional, nacional, regional e municipal para o aprofundamento teórico-
metodológico da ação; Compromisso e prática vinculados à realidade, para
criticamente e com domínio de técnicas específicas, desenvolverem a
capacidade de analisar as conjunturas e formular estratégias de
intervenção. Autonomia e empreendedorismo, desenvolvendo
continuamente a capacidade de criação, inovação e tomada de decisões
voltadas para o saber ser e o saber fazer profissionais, vinculados a
particularidades da intervenção do Assistente Social.

O curso de Pedagogia414 de Lorena, que deveria ser um dos carros chefes na


propagação do ideário salesiano, ignora todos os itens de formação humana,

413

Serviço Social - Americana


Preparo Embasamento Valores de Valores Valores Valores
profissional Humanista cidadania Éticos salesianos Cristãos
Sim Sim Sim Sim Sim Sim

414

Pedagogia – Lorena
Preparo Embasamento Valores de Valores Valores Valores
profissional Humanista cidadania Éticos salesianos Cristãos
Sim não não não não não
267

formulando apenas objetivos profissionais em vista do desenvolvimento de


habilidades.

Objetivo: Os principais objetivos do curso são: - Oferecer formação inicial


ampla para o exercício da docência na Educação Infantil, Anos Iniciais do
Ensino Fundamental, Ensino Médio – modalidade Normal, e em cursos de
Educação Profissional na área de serviços, no apoio escolar e em outras
áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos; • Articular o
ensino, a pesquisa e a extensão, buscando a produção do conhecimento e
a solução de desafios e de problemas da prática pedagógica; • Reconhecer
a aprendizagem como um processo de construção contínua de
conhecimento realizado pelo indivíduo, que está inserindo em um contexto
social e cultural específico; • Trabalhar em espaços escolares e não-
escolares na promoção da aprendizagem de sujeitos em diferentes fases do
desenvolvimento humano, em diversos níveis e modalidades do processo
educativo;

Perfil Profissional: Ao final do Curso de Pedagogia, o profissional deverá


ter desenvolvido as seguintes habilidades e competências: • Selecionar e
organizar atividades e conteúdos de Linguagem oral e escrita, Língua
Portuguesa, alfabetização e letramento, além das áreas que envolvem
Matemática, História, Geografia, Ciências Naturais, Arte e Motricidade. •
Planejar e gerenciar o tempo, o espaço e as rotinas em espaços escolares e
não escolares. • Selecionar e usar bons recursos didáticos e estratégias
metodológicas para desenvolver atividades pedagógicas. • Trabalhar os
temas que são transversais ao currículo dessa etapa de ensino, tanto em
sua área específica como no convívio escolar. • Trabalhar com crianças
portadoras de necessidades especiais, na perspectiva da pluralidade e
inclusão.

Da mesma forma o curso de Ciência da Computação415 de Lorena apresenta uma


visão tecnicista, ignorando toda e qualquer dimensão humana no seu projeto. Sendo
um curso mais recente, demonstra claro distanciamento mesmo de dimensões
humanísticas.

Objetivo: Formar profissionais na área de Computação e Informática, com


sólidos fundamentos em Ciência da Computação com vistas ao mercado
profissional, tanto nas áreas teórica e de aplicação de computadores, como
no projeto e desenvolvimento de equipamentos e software básico, utilizando
tecnologias da Engenharia de Software. O Curso oferece uma boa
preparação para estudos avançados na pós-graduação (mestrado) visando
a carreira acadêmica em Ciência da Computação.

Perfil Profissional: Formar profissionais na área de Computação e


Informática, com sólidos fundamentos em Ciência da Computação com

415

Ciência da computação – Lorena


Preparo Embasamento Valores de Valores Valores Valores
profissional Humanista cidadania Éticos salesianos Cristãos
Sim Não Não Não Não Não
268

vistas ao mercado profissional, tanto nas áreas teórica e de aplicação de


computadores, como no projeto e desenvolvimento de equipamentos e
software básico, utilizando tecnologias da Engenharia de Software. O Curso
oferece uma boa preparação para estudos avançados na pós-graduação
(mestrado) visando a carreira acadêmica em Ciência da Computação .

Entre 2010 e 2011 foram aprovados pelo MEC novos cursos para Lorena. O Curso
de Engenharia de Produção416, recém elaborado e aprovado pelo MEC, é um
clássico exemplo do distanciamento da faculdade dos ideais do fundador, ao
apresentar uma visão tecnicista despida das dimensões cristã e salesiana. A
Ementa deste curso, a seguir transcrita integralmente da Home Page, é exemplo do
bandeamento da Instituição para uma visão pragmática e como reflexo do novo
regimento, onde os salesianos perderam funções nas primeiras linhas de decisões
com o encerramento do cargo de Diretor de Unidade que lhes permitia zelar pela
fidelidade aos ideais educacionais do fundador. A figura do reitor salesiano é
distante do cotidiano das unidades que hoje contam apenas com três salesianos
professores que ministram poucas aulas concentradas no curso de Filosofia.

Ainda que haja referência a aspectos humanos, econômicos, sociais e ambientais,


com visão ética e humanista em atendimento às demandas da sociedade, essas
informações não correspondem posteriormente à grade curricular e aos conteúdos
das disciplinas humanísticas que possuem uma linha meramente informativa e
ilustrativa como apoio aos interesses do mercado.

417
Objetivo : Contribuir com a formação de engenheiros de produção por
meio da transmissão, análise e questionamento acerca do conjunto de
conhecimentos e ferramentas que favoreçam o desenvolvimento de
competências/capacidades a fim de proporcionar uma sólida formação
científica e profissional geral que o capacite a identificar, formular e
solucionar problemas ligados às atividades de projeto, operação e
gerenciamento do trabalho e de sistemas de produção de bens e/ou
serviços, considerando seus aspectos humanos, econômicos, sociais e
ambientais, com visão ética e humanista em atendimento às demandas da
sociedade. Esse profissional deve ser criativo e flexível, ter espírito crítico,
iniciativa, capacidade de julgamento e tomada de decisão, ser apto a

416

Engenhara de produção - Lorena


Preparo Embasamento Valores Valores Valores Valores
profissional Humanista de Éticos salesianos Cristãos
cidadania
Sim Sim Não Sim Não Não

417
- Esta ementa foge por demais aos seus objetivos com longas descrições inclusive situações
sazonais de mercado.
269

coordenar e atuar em equipes multidisciplinares, ter habilidade em


comunicação oral e escrita e saber valorizar a formação continuada. O
atendimento ao objetivo proposto para o curso de graduação em
Engenharia de Produção do UNISAL UE Lorena implicará com que seu
egresso também seja capaz de: · Dimensionar e integrar recursos físicos,
humanos e financeiros a fim de produzir, com eficiência e ao menor custo,
considerando a possibilidade de melhorias contínuas; · Utilizar ferramental
matemático e estatístico para modelar sistemas de produção e auxiliar na
tomada de decisões; · Projetar, implementar e aperfeiçoar sistemas,
produtos e processos, levando em consideração os limites e as
características das comunidades envolvidas, legislação pertinente e outros
aspectos socioeconômicos; · Prever e analisar demandas, selecionar
conhecimento científico e tecnológico, projetando produtos ou melhorando
suas características e funcionalidade; · Incorporar conceitos e técnicas da
qualidade em todo o sistema produtivo, tanto nos seus aspectos
tecnológicos quanto organizacionais, aprimorando produtos e processos, e
produzindo normas e procedimentos de controle e auditoria; · Prever a
evolução dos cenários produtivos, percebendo a interação entre as
organizações e os seus impactos sobre a competitividade; · Acompanhar os
avanços tecnológicos, organizando-os e colocando-os a serviço da
demanda das empresas e da sociedade; · Inter-relacionar os sistemas de
produção com o meio ambiente natural, tanto no que se refere à utilização
de recursos escassos quanto a disposição final de resíduos e rejeitos; ·
Utilizar indicadores de desempenho, sistemas de custeio, bem como avaliar
a viabilidade econômica e financeira de projetos; · Gerenciar e otimizar o
fluxo de informação nas empresas utilizando tecnologias adequadas.

Perfil Profissional: O engenheiro de produção tem como área específica


de conhecimento os métodos gerenciais, a implantação de sistemas
informatizados para a gerência de empresas, o uso de métodos para
melhoria da eficiência das empresas e a utilização de sistemas de controle
dos processos da empresa. Tudo o que se refere às atividades básicas de
uma empresa tais como planejar as compras, planejar e programar a
produção e planejar e programar a distribuição dos produtos faz parte das
atribuições típicas do engenheiro de produção. É por isso que o engenheiro
de produção pode trabalhar em praticamente qualquer tipo de indústria.
Sobre as diferenças entre os cursos de Administração e Engenharia de
Produção, essa última tem um conteúdo tecnológico, isto é o aluno cursa as
disciplinas básicas de química, física e matemática complementadas por um
conjunto de matérias de engenharia, tais como materiais, desenho técnico,
eletrotécnica, automação industrial etc. Naturalmente a profundidade que o
aluno estuda essas matérias técnicas é menor que a dos seus colegas da
engenharia elétrica, mecânica, etc. Ambas as carreiras têm matérias sobre
administração, comércio, contabilidade e técnicas de gerência. Na
engenharia de produção essas matérias estão mais voltadas para a
realidade industrial. Entre as engenharias no Brasil, o mercado de
engenharia de produção é sem sombra de dúvida o que desfruta da melhor
situação. Todos os engenheiros de produção vêm conseguindo boas
colocações no mercado principalmente em função do seu perfil que coincide
com o que se está demandando nos dias de hoje: um profissional com uma
sólida formação científica e com visão geral suficiente para encarar os
problemas de maneira global. O mercado de trabalho para o engenheiro de
produção tem-se mostrado extremamente diversificado. Além do mercado
tradicional (empresas e empreendimentos industriais), instável e
dependente da estabilidade econômica, uma série de setores e áreas
passaram a procurar os profissionais formados em engenharia de produção.
270

Uma análise do quadro dos referenciais teóricos dos cursos demonstra que valores
cristãos são nomeados apenas em duas ementas e os salesianos em seis num
plantel de vinte e nove. Os conteúdos humanísticos, salesianos e cristãos são, na
maioria dos casos, meros adereços incrustados nos projetos. A simples menção
“en passant” de valores cristãos, salesianos, éticos, de cidadania e humanísticos
não representa necessariamente que eles estejam integrados nos currículos das
matérias ministradas. Isto é facilmente verificado numa análise dos programas das
disciplinas. Deve-se levar em conta que as disciplinas que trabalham a formação
humana, social e ética praticamente ignoram ou desconhecem a cosmovisão
salesiana, assim como as teorias educacionais e práticas pedagógicas, exceção
feita apenas para o curso de Filosofia, como já foi mencionado. O pensamento
salesiano, quando enfocado – e raramente o é –, é feito de forma superficial e
através de umas poucas frases de efeito418. No curso de mestrado de Educação a
pedagogia salesiana não recebe tratamento qualificado. Não há produção de livros
que tratem dela e a Revista Ciências da Educação419, ligada ao Mestrado e que
possui como linha editorial a Educação Salesiana, Educação Sócio-comunitária e
Educação Formal apresenta poucas produções qualificadas sobre os temas de
salesianidade, natural reflexo de um assunto que não é aprofundado e nem é
referencial do curso.

Constata-se descompasso entre os ideais educacionais salesianos elaborados


pelos documentos mundiais da congregação, os discursos oficiais da Inspetoria
salesiana de São Paulo e da direção do UNISAL e a práxis docente. A Pastoral,
proclamada como carro chefe da ação salesiana é carente de verbas, de pessoal
especializado e de um projeto orgânico. Os cursos em geral cada vez mais carecem
de uma explicita configuração salesiana.

Em síntese: A resistência inicial dos salesianos ao ensino superior, a falta de


pessoal salesiano preparado para o ambiente da academia, o afastamento físico dos

418
- “Basta que sejais jovens para que eu vos ame”; “Até meu último suspiro será pela
juventude”; “obra salesiana: salesiana: casa que acolhe, paróquia que evangeliza, escola que
encaminha para a vida e pátio para se encontrarem como amigos e viverem com alegria”; “Educação
é obra do coração” – Todas pronunciadas por Bosco.
419
-Revista indexada sob o registro: ISSN 1518-7039. O primeiro número é de 1999 e foi
continuação dos Sumários de Folhas Pedagógicas (1959-1972) E Revista da Faculdade Salesiana
(1973-1997). Cf. Revista de Ciências da Educação, Lorena, ano 1, n. 1, 1999, p.171-190.
271

salesianos das salas de aula, dos pátios e dos pórticos tornando-se burocratas e a
extinção do cargo de diretor de unidade que era conferido a um salesiano fez com
que a pedagogia da presença ficasse comprometida a partir do que elaborara o
fundador.

Conferir aos leigos a missão de serem os promotores desta educação é um fato


positivo enquanto desclericaliza o perfil desta Instituição. Este passo será falho,
porém se se descurar da formação dos agentes desta educação com informações
histórico-pedagógicas sobre o fundador, sua vida, obras e seu espírito e, sobretudo
se não se conseguir imbuir parte dos educadores, não só com o conhecimento, mas,
e sobretudo, com a formação de uma mentalidade salesiana.

Torna-se importante verificar o quanto e em qual intensidade o pensamento e a


práxis educacional salesiana impacta sobre os jovens destinatários das três
unidades. Eles chegam a conhecer e a experienciar essa pedagogia nos ambientes
do UNISAL?
272

4.3.2 Salesianidade e corpo discente

Educar é agregar princípios e valores que dêem significado à vida do educando. Na


Filosofia clássica Sócrates e Platão acreditavam que o conhecimento estava no
interior do homem, cabendo ao educador apenas fazê-lo aflorar. Aristóteles,
rompendo com seu mestre Platão, afirmará que o homem é tabula rasa in qua nihil
scriptum est420 cabendo ao educador preencher este vazio. Para o estagirita era a
partir do mundo que nos rodeia e através dos sentidos que se construía o
conhecimento: nihil est in intelectu quod prius non fuerit in sensu421. Com isso
contrariava tanto a Sócrates que afirmara que ao que erra não é preciso castigar,
mas ensinar, entendido como maiêutica, como a Platão para quem a educação era
a reminiscência do mundo das idéias por meio do conhecimento racional intuitivo.
Aristóteles implanta uma verdadeira “revolução copernicana” com o conceito da
“tabula rasa”, ganhando primazia a ação educativa, o ambiente “tocado” pelos
sentidos e o Educador como artífice e agente da educação.

Se João Bosco teve sua espiritualidade fincada na Idade Média, sob forte influência
do platonismo e neo-platonismo, teve de outro lado, também e paradoxalmente, sua
racionalidade marcada pelo pensamento aristotélico, enquanto acreditava que o
educando é plausível e “possível” do bem. Será o educador que, ainda que lhe
respeite a liberdade de autodeterminação, poderá conduzi-lo pelas sendas da
verdade. E, mesmo que o jovem tenha vivenciado descaminhos, nele continuará
sempre existindo a possibilidade do bem. João Bosco assume a mesma visão de
Aristóteles que no lastro de seus mestres Sócrates e Platão, professava
incondicional confiança na Razão. Os conceitos de ato e potência aplicados na
metafísica de Aristóteles se distendiam logicamente para a dimensão da moral
humana. O ser em ato tem a potencialidade de se projetar para outro modo de ser.
Daí, sob a influência deste filósofo, Bosco professava crença inquebrantável na
Educação a partir da construção da verdade nascida da reta razão e contando com

420
- Tábua rasa na qual nada está escrito. ARISTÓTELES – De Anima 3.4. In: KOCHER,
Henerik. Dicionário de expressões e frases latinas. Disponível em:
<http://www.hkocher.info/minha_pagina/dicionario/t01.htm>. Acesso em 20 jun. 2011.
421
-- Nada está na inteligência que por primeiro não tenha passado pelos sentidos.
ARISTÓTELES. Cf. BUNGE, M. Dicionário de Filosofia. Tradução de Gita K. Guinsburg. São Paulo:
Perspectivas, 2002.
273

a colaboração e adesão da racionalidade do educando que naturalmente tenderia


para a verdade e o bem.

No seu Sistema Preventivo faz confluir e se complementar três correntes de


pensamento. A Razão comporta não só o pensamento aristotélico, como também a
racionalidade do século XIX, fascinada com a capacidade criativa e industriosa do
ser humano. Na ótica de Bosco através dela não só se produzia o progresso, como
também se podia apreender o bem. Na Religião há o conceito platônico-agostiniano
que põe no espiritual o sentido da vida e da história, onde a intervenção de Deus
perpassa o cotidiano do ser humano. A Bondade corresponde, no seu lado
psicológico, aos mais profundos anseios do ser humano de afeto e respeito e, no
campo político, afina-se com os ideais da Revolução Francesa e do Liberalismo,
ainda que atenuado do seu lastro burguês, enquanto busca o respeito pelo ser
humano. De fato João Bosco na sua concepção educacional- antropológica punha o
ser humano como centro do processo educativo, valorizando sua racionalidade,
respeitando-o politicamente e promovendo-o como homem no mais puro conceito
aristotélico, enquanto uma unidade substancial de corpo e alma. Diferente da idade
média, não se tratava de “salvar” a alma, mas o homem na sua totalidade como ser
espiritual, corporal, psicológico e cidadão. Era uma visão unitária e otimista do
homem também nas suas atividades não-essenciais, contrário ao rígido conceito da
espiritualidade de tradição agostiniana, quando ganhavam destaque aspectos
“supérfluos” da vida como jogos, a predigitação, os passeios pelo campo, o teatro e
a música. Era uma educação que, opondo-se à opressão capitalista do
trabalhador422, não se amargurava, porém, com retaliações ao sistema vigente, mas
possuía uma visão otimista e que valorizava a alegria de viver neste mundo
enquanto não chegava o vindouro. Esta educação comportava uma síntese entre a
Idade média e a modernidade, naquilo que ambas tinham de melhor, o espiritual e a
interioridade medieval somada ao trabalho, à produção, à inserção na urbe dos
homens numa vida privada repleta de amor, carinho, ternura e alegria de viver. Tudo
rodopiando ao redor de um ser especial, capaz do bem, de realizações e de
projetos: o homem.

422
- João Bosco era muito exigente que se respeitasse os direitos dos seu ex-aprendizes. A
mão de obra preparada nas suas escolas profissionais e pelas quais estava sedento o mercado
industrial, carente de mão de obra especializada, era protegida por contratos de trabalhos onde se
estabeleciam direitos e deveres, buscando salvaguardar o respeito pelo trabalhador.
274

O homem. Eis o epicentro da educação salesiana: instruí-lo, profissionalizá-lo,


formá-lo fazendo que chegasse à sua plenitude como ser guiado pela reta razão,
embalado por nobres afetos e integrado na cidade dos homens a caminho da cidade
de Deus.

O ideal educacional salesiano, se fiel aos critérios do fundador, continua sendo o


mesmo, não importando que tenham ocorrido mudanças na sociedade. A
congregação nasceu sob as procelas de um tempo difícil de mudanças econômicas,
sociais, políticas, religiosas e culturais. Independente do tempo em que se viva, o
importante é que não se perca o foco de sua obra que é educar e promover os
jovens com princípios e valores que lhes dêem sentido à vida.

Deve-se verificar se essa congregação com mais de um século está interagindo com
os seus destinatários de hoje estabelecendo diálogo e lhes passando seus valores.
Algumas questões se impõem: No UNISAL qual é a qualidade de relacionamento
entre os educadores salesianos e seus destinatários? O Mito fundacional dá
sustentabilidade à ação educadora desta instituição? Que impacto a pedagogia
salesiana possui nos seus educandos? Torna-se premente verificar se as estruturas
pedagógicas, administrativas e físicas alcançam o fim para o qual foram criadas:
oferecer aos jovens valores humanos e cristãos que sejam significativos e
significantes para suas vidas.

Numa sondagem423 entre alunos das unidades de Americana, Campinas e Lorena


objetivou-se verificar a qualidade da incidência da educação salesiana por meio de
quatro focos:

1. Sondar os motivos pelos quais os entrevistados ingressaram no ensino


superior salesiano;

Conferir se os princípios da pedagogia salesiana estão presentes nas ementas,


conteúdos e disciplinas dos cursos, o que já foi realizado.

423
- Essa sondagem visa apenas “tomar o pulso” da instituição. Um pesquisa em sentido estrito
demandaria para esse fim a contribuição de profissionais qualificados e métodos que permitissem
uma medição levando em conta as variáveis.
275

Verificar se há a presença de salesianos junto dos alunos;

Constatar se os princípios, valores e estilo salesianos possuem incidência na vida do


alunado.

Para que esta sondagem pudesse avaliar com objetividade o acima proposto, com
relação aos seus objetivos fundacionais optou-se, como primeiro passo o uso da
ferramenta conhecida como Cubo424 que realiza o cruzamento interativo de
informações.

424
- “A ferramenta OLAP (On-Line Analytical Processing) possui a principal função de suporte,
possibilitando que analistas, gerentes e executivos tenham uma visão mais apurada dos dados, através de acessos
rápidos, iterativos e consistentes a uma ampla variedade de possíveis visões sobre as mesmas informações. A
ferramenta OLAP permite aos seus usuários terem acesso aos dados que descrevem os negócios da empresa,
permitindo-lhes uma melhoria contínua na compreensão, gerenciamento e planejamento destes negócios. Permite
ainda, analisar as múltiplas dimensões dos dados usados nas empresas, em qualquer combinação e em qualquer
ângulo, além de identificar tendências e descobrir o que está conduzindo seus negócios (BISPO, 1998).A
facilidade do usuário em construir suas próprias consultas ad-hoc, no momento em que contempla novas e
diferentes correlações nas dimensões do negócio, dão o foco da ferramenta para o ponto de vista analítico da
atividade da empresa. Neste intento, as respostas não são automáticas: elas são construídas naquele momento,
conforme a visão daquela oportunidade.

Figura 1: Visões de um Cubo – Análise de Dimensões.


Fonte: Gentia Software, 1998

O OLAP é a tecnologia utilizada para se ter uma visão dimensional dos dados na qual são
modelados em uma estrutura conhecida por cubo. As dimensões do cubo representam os
componentes dos negócios da empresa. A célula resultante da intersecção das dimensões é
chamada de medida e geralmente representa dados numéricos como “unidades vendidas”, “lucros”
ou “custos”. No exemplo anterior, a medida é o total de vendas e as dimensões são o produto, o
tempo (mês) e a região. Ronaldo Luis de Souza PEREIRA. Tecnologia OLAP (On-Line Analytical
Processing). Ferramenta OLAP. 2005. pp. 6 -7. TCC - FIAP - Faculdade de Informática e
Administração Paulista. São Paulo. 2005.
276

Um segundo passo foi definir seis pontos para verificação:

1. A identidade dos entrevistados e seu relacionamento com o pensamento e a


prática educacional salesiana antes de seu ingresso no UNISAL;

2. A procedência acadêmica dos alunos;

3. Em que nível se encontra seu contato e conhecimento com o conceito


genérico de “salesianidade”.

4. Como o ambiente salesiano é percebido por esses alunos;

5. Qual o impacto deste ambiente salesiano nas suas vidas;

6. Quais disciplinas apresentam valores humanos e cristãos em consonância


com a mundividência salesiana.

Antes de analisar os resultados desta sondagem, é necessário levar em conta o


histórico das cidades de Americana, Campinas e Lorena naquilo que podem
interferir ou causar ruído.

As cidades de Americana425 e Campinas426 tiveram historicamente um bom


relacionamento com os salesianos. Ao crescerem, naturalmente é diminuída a
incidência social que eles tiveram nos primeiros tempos. Em Campinas o liceu
Nossa Senhora Auxiliadora com 114 anos de fundação427, é um referencial pela sua
tradição e monumentalidade. A Escola Salesiana São José com 59 anos de
fundação428, e possuindo o maior Campus do UNISAL, não possui, porém, tal
visibilidade. O Externato São João429 com seu principal prédio no centro da cidade e
sua sede no bairro popular Vida Nova é um referencial no que tange à assistência
social. A presença salesiana numa cidade com mais um milhão de habitantes se
dilui frente às universidades e empresas aí existentes. Em Americana a visibilidade

425
- 210.701 habitantes. IBGE - Censo de 2010.
426
- 1.080.999 habitantes – IBGE – Censo de 2010.
427
- 25 de julho de 1897.
428
25 de maio de 1952.
429
- 1909 sem data precisa.
277

é maior por ser uma cidade de tamanho médio que, apesar de seu progresso, ainda
guarda traços interioranos, o que, aliás, é uma das marca de boa parte das cidades
da paulista.

A cidade de Lorena guarda traços marcadamente provincianos com seus 82.553 430
habitantes, ladeada por cidades de porte semelhante431. Os salesianos432 são
responsáveis por boa parte do seu progresso cultural, social e econômico 433. Essa
presença significativa pode comprometer a avaliação da incidência salesiana do
UNISAL sobre as novas gerações, distorcendo resultados. Alguns critérios foram
adotados434 para que essa sondagem não sofresse distorções ou que as sofresse o
mínimo possível, optando-se pelos seguintes procedimentos.

1. A idade máxima dos entrevistados não seria além dos 25 anos e


preferencialmente deveriam estar cursando pelo menos o segundo ano.

2. Não seriam incluídos alunos do Curso de Filosofia, pois a maioria deles estão
ligados à Igreja católica como seminaristas ou como líderes de movimentos de
jovens.

3. Não seriam incluídas pessoas ligadas às lideranças da pastoral universitária,


porque se integram à pastoral em geral é porque, já anteriormente estavam
ligadas ao movimento salesiano em outras obras.

4. Não foram incluídos alunos que são funcionários e estagiários, porque suas
escolhas eventualmente poderiam estar ligadas a algum movimento religioso,
social ou educacional salesiano.

430
- IGBE – Censo de 2010.
431
- Cachoeira Paulista, Cruzeiro, Piquete e Guaratinguetá.
432
- Deve-se lembrar que a presença salesiana está marcada na cidade por duas Escolas de
Ensino Superior Salesianas: O UNISAL e a FATEA ligada às irmãs salesianas. Há presença
salesiana com grande significado atendendo ao ensino formal ou a obras sociais nas cidades de
Cruzeiro, Guaratinguetá e Pindamonhangaba.
433
- A presença salesiana na cidade aconteceu há 121 anos. O Oratório São Luís, que foi
inicialmente escola agrícola foi fundada há 116 anos. Dele se irradiaram vários serviços salesianos
para a cidade. O PROVIM (projeto de Vida Melhor) que chegou a contar com cinco unidades
localizadas em vários bairros da cidade com infra-estrutura completa e atendendo acerca de 1.200
crianças e jovens carentes; os oratórios festivos com atendimento nas periferias com nove unidades.
434
- Os mesmos critérios foram distendidos para Americana e Campinas.
278

O objetivo é atingir o “jovem comum” permitindo minimizar a interferência de uma


cultura católica praticante que poderia maquiar qual a real incidência das práticas
pedagógicas no jovem universitário, pois se deve considerar que ele, mesmo de
uma região conservadora, possui percepções e leituras de mundo para além de seu
entorno social.

Feitas essas considerações, acrescidas às peculiaridades já descritas das três


cidades, pode-se agora partir para a análise dos resultados. Objetiva-se avaliar em
que medida na presença do Ensino Superior dessas unidades se consegue vivenciar
e transmitir os princípios e valores salesianos, entendidos aqui como as práticas
educativas na transmissão do mito fundacional e a incidência dele na vida dos
egressos.

Um primeiro ponto deve ser assinalado. Considerando que a pesquisa envolve


jovens até 25 anos, no quesito, estado civil435, a taxa de 20% de casados436 contra
79% de solteiros437 e 1% de divorciados deve ser considerada alta.

435
- Metodologicamente sempre se trabalhará em porcentagem com o resultado global das três
unidades. Em nota serão dados os pontuais de cada unidade. Quando for necessário, os percentuais
de cada unidade será trabalhado no texto principal. Um estudo completo desta sondagem encontra-
se com seus respctivos gráficos no SEDOC de Lorena na pasta do autor.
436
- Americana 28%; Campinas 19%; Lorena 9%
437
- Americana 71%; Campinas 78%; Lorena 91%.
279

Deve-se levar em conta que parte destes jovens são oriundos das classes populares
e ingressaram no ensino superior depois de empregados, quando buscam melhor
qualificação que lhes permita ascender na profissão. Isto é confirmado pelo
percentual de Americana (28%), seguido do de Campinas (19%), onde há muitas
indústrias. Nesta região há oferta de ensino superior em federais e estaduais que,
em geral, absorvem jovens da rede particular de ensino, enquanto que boa parcela
dos egressos do ensino público se direcionam para o ensino particular, pois não
possuem o mesmo grau de competitividade dos seus pares das escolas privadas. A
maioria, não possuindo recursos familiares para financiar a própria educação
privada, deve primeiro organizar sua vida financeira e pessoal, incluindo não raras
vezes o casamento, para posteriormente custear a própria educação 438.

Um aspecto relevante a se considerar é que 85% dos pesquisados não tiveram


nenhum contato com o ambiente salesiano439.

A Congregação atende a jovens que, antes de ingressarem no ensino superior,


estão concentrados em três segmentos: nas escolas particulares, nas escolas
profissionais gratuitas e nos oratórios festivos. Os alunos das escolas salesianas
pagas, estão habilitados a competir por vagas em instituições universitárias públicas
e privadas buscando aquelas que mais correspondam aos seus interesses, mesmo

438
- A maioria dos alunos estão no período noturno, pois devem trabalhar.
439
- Americana 90%; Campinas 91%; Lorena 85%.
280

se distantes de suas residências. Os formados nas escolas profissionais gratuitas,


devido às suas necessidades econômicas, partem de imediato para o mercado de
trabalho em busca de subsistência, e, como os oratorianos, não possuem recursos
para bancar o ensino privado. Apenas 15% dos alunos do Centro Universitário
tiveram contato com a pedagogia salesiana. Isso representa que o quesito
“salesianidade” é desconhecido para a maioria dos ingressantes. Se essa situação
enfraquece, de um lado, o início do processo de formação salesiana, de outro
porém, o fato de ser pequena a presença de alunos formados em sua adolescência
pela Sistema Preventivo permitirá, neste estudo, perceber qual a real incidência da
pedagogia salesiano sobre os alunos do Ensino Superior.

A motivação para estudarem no UNISAL está fundamentada no interesse pelo curso


por parte de 74% dos entrevistados440. A proximidade de casa é o motivo de 9%
das opções e o custo em 6%. O fato de ser uma escola salesiana pesou pouco na
opção da escolha. Em Americana isso influenciou a apenas 5% dos entrevistados e
em Lorena apenas 4% .

Como 85% dos jovens não possuíam contato com o universo salesiano é óbvio que
essa opção não é afetiva e, apesar de serem de uma região com forte incidência

440
- Americana 77%; Campinas 62%; Lorena 78%.
281

salesiana, isso não foi significativo para boa parte desses jovens para sua opção e
nem foram influenciados apesar de seus pais e avós terem laços com a
congregação.

Um resultado que mostrou descompasso foi o de Campinas que atribui à escolha


“por ser uma escola salesiana” o percentual de 16%, quando 91% dos alunos
declararam que nunca tiveram contato com o universo salesiano. Este descompasso
de porcentual pode ser explicado porque antes da unificação das unidades, a então
a FASTEC441 gozava de reconhecimento na área de tecnologia pelos seus laços
com o Vale do Silício nos Estados Unidos e suas parcerias com as maiores
indústrias multinacionais da região. No ambiente industrial os termos “FASTEC” e
“Salesianos” se correspondiam na linguagem comum e, portanto, “estudar nos
salesianos” era uma forma de se dizer que se fazia essa faculdade de tecnologia.
Isto será demonstrado adiante no cruzamento de novos dados.

Quanto à avaliação da existência de salesianidade nesta pesquisa, tomou-se


cuidado no cruzamento de informações para que um termo tão amplo não gerasse
ambigüidades. Para sondar esse quesito foram feitas questões com os seguintes
conteúdos:

441
- Faculdade Salesiana de Tecnologia.
282

1. Se havia conhecimento dos princípios educacionais salesianos;

se Dom Bosco era conhecido;

Se sabia algo sobre a vida de dom Bosco;

Se havia conhecimento do Sistema Preventivo.

Se 85% dos alunos não freqüentaram o ambiente salesiano é obvio que


desconhecessem essas questões. Deve-se, porém, considerar que logo que
ingressam na faculdade, a Pastoral promove uma semana de recepção e integração
dos calouros, quando são apresentados os cursos e os princípios que regem a
instituição com palestras, filmes e documentários, dando-se destaque para a figura
do fundador. Isto faz com que alguns termos comecem a fazer parte do vocabulário
dos ingressantes, como salesianos, dom Bosco, razão, religião, bondade, os
percentuais ficam acima de cinqüenta por cento: 67% declaram conhecer os
princípios salesianos442 e 62% de conhecer Dom Bosco443. A última questão no
âmbito da salesianidade, porém dirime a dúvida, quando se pretende auferir para
além das percepções imediatas. Quando se questiona se conhecem o Sistema
Preventivo de Dom Bosco444 as coisas se invertem, pois este é um conhecimento
especializado e supõe iniciação. 59% em Americana, 28% em Campinas e 30% em
Lorena afirmam desconhecê-lo. Indo além, quando se procura verificar com os que
afirmaram positivamente de onde vieram as informações sobre salesianidade e a
vida do fundador 36%, em Americana, 59%, em Campinas e 74% em Lorena
afirmam não ter lido nenhum texto que narrem sua vida.

Estes dados são reveladores porque o que sustenta uma instituição é o Mito
Fundacional quando se narra “as origens” e “como tudo começou”. Portanto,
“conhecer Dom Bosco” como responderam os pesquisados de Lorena com a alta
porcentagem de 74% representa apenas visualização de sua estátua, do pronunciar
o nome e de conhecer duas ou três frases-chavões e alguns fragmentos de sua

442
- Americana 63 %; Campinas 41%; Lorena 83%.
443
- Americana 63%; Campinas 41%; Lorena 74%.
444
- Responderam “não”: Americana 59%; Campinas 66%; Lorena 30%.
283

vida. O filme445 de Dom Bosco446 é a principal fonte de conhecimento por 23% de


Americana e 22% de Lorena contra apenas 6% de Campinas. Outros
instrumentos447 de conhecimento sinalizados são assuntos de aulas, palestras,
documentários448. A Unidade que menos informações oferecem – talvez porque
voltada para a área tecnológica – é Campinas. Verifica-se assim que, apesar de todo
o esforço da instituição de popularizar a vida do fundador, ela de fato é
desconhecida pela maioria dos alunos.

A Pastoral é um dos principais espaços de divulgação e manutenção do ideário


salesiano. O termo Pastoral possui, na sua configuração inicial, sentido religioso. Na

445
- Dois filmes recentes tiveram grande repercussão na Itália e no ambiente salesiano mundial:
Dom Bosco, Leandro Castelani, Itália, RAI, 1988; e Uma Vida para os jovens, Ludovico
GASPARINI, Itália, RAI, Itália, 2007. Cf. DON BOSCO. Direção: Leandro Castellani. Atores: Philippe
Leroy, Leopoldo Trieste, Raymond Pellegrin, Edmund Purdom, Rick Battaglia, Ben Gazzara, Laurent
Terzieff, Patsy Kensit, Karl Zinny, Pierluigi Misasi, Piera Degli Esposti, Luca Lionello. Gênero:
Biográfico. ITÁLIA: RAI, 1988. (96 min). UMA VIDA para os jovens. Direção: Ludovico Gasparini.
Atores: Flavio Insinna, Lina Sastri, Charles Dance. Gênero: Espiritual. . ITÁLIA: RAI, 2007. (146 min).
446
- Muitos filmes foram lançados na Itália sobre Dom Bosco que é muito popular neste país. Os
primeiros filmes são em preto e branco. Os dois ultimos foram lançados pela televisão estatal RAI
tendo sido exibidos em rede nacional com alto índice de audiência e posteriormente reproduzidos em
todo o mundo.

447

Sobre a vida de Dom Bosco


Geral Americana Campinas Lorena
Não teve nenhum 30% 36% 59% 74%
contato
Foi assunto de aula 23% 13% 19% 43%
Participou de 16% 15% 13% 20%
Palestra
Só viu o filme 20% 23% 6% 22%
Já viu mais de um 0% 0% 0% 2%
filme
Assistiu 6% 8% 0% 7%
documentário
Já leu um livro 2% 2% 0% 2%
Nulo 1% 1% 0% 0%
Já leu mais de um 2% 2% 3% 0%
livro

448
- A cada mês é lançado em nível mundial um documentário sobre a presença salesiana em
algum lugar do mundo ou tratando de algum tema específico de salesianidade. As versões são
distribuídas com as opções dos seguintes idiomas: Italiano, Inglês, Espanhol, Frances, português,
alemão e polaco. Há publicações também em mesmo nível impressas pela agência internacional ANS
(Agência de Noticias Salesianas).
284

Bíblia, no Antigo Testamento, Deus é apresentado como o pastor do povo. No Novo


Testamento Jesus associa essa imagem a si como o bom pastor que dá a vida pelas
ovelhas. Este termo assumiu o sentido do cuidado espiritual pelas “almas” e a
preocupação com sua salvação.

Nas escolas confessionais a pastoral é o braço religioso institucional. Este sentido


nem sempre é percebido pelos destinatários e mesmo por seus agentes. No
UNISAL a pastoral possui uma significativa atuação nos eventos. Os calouros são
recebidos por ela com eventos lúdicos para integrá-los no ambiente universitário.
Nem sempre os funcionários da pastoral possuem vida religiosa convicta,
conhecimento de salesianidade e vida pessoal coerente com os princípios do
cristianismo, havendo naturalmente descompasso entre os objetivos deste
departamento e o pessoal que o assume. Para os alunos novos os membros da
pastoral são identificados como promotores de eventos sociais, campeonatos
esportivos, manutenção de espaços com jogos e de uma “sala de estar” para
convivência. Essas ações sociais e lúdicas são parte da pedagogia salesiana,
concebidas, porém, como preâmbulo de uma ação mais profunda que deveria ser,
organicamente, planejada, com a finalidade de implantar um clima salesiano no
ambiente. Na maioria das vezes este setor fica numa proposta genérica e imprecisa
quanto à sua identidade cristã e salesiana. Isto pode ser verificado quando se
questiona se os alunos conhecem a finalidade da Pastoral: 59% em Americana, 66%
em Campinas e 37% em Lorena afirmam desconhecer “para que serve e o que é”.
285

Americana Campinas Lorena

Quando se questiona se “freqüentam a pastoral”, entendida neste caso como seu


espaço físico, entre “não e raramente” declaram-se como não freqüentadores deste
ambiente 90% dos alunos em Americana, 66% em Campinas e 67% em Lorena 449.

Merece destaque notar que o departamento de pastoral é minúsculo em relação à


população global de estudantes de cada unidade450 possuindo pessoal e recursos
reduzidos. O único sacerdote, teoricamente disponibilizados para ela em cada
unidade, é o ecônomo absorvido integralmente pelas funções administrativas.

Na Carta de Roma João Bosco criticara àqueles salesianos do seu tempo que não
interagiam com os educandos. Esse relacionamento, mais do que um encontro
superficial, é entendido pelo fundador como contatos diários, significativos e
elevados ao grau de pedra angular do seu sistema educativo. Dos alunos
entrevistados, 77% de Americana, 72 % de Campinas e 26% de Lorena afirmam que
nunca tiveram contato ou conversaram com os salesianos.

449
- Nesta última unidade deve-se considerar que as mesas de jogos estão no pórtico, sendo
este trecho conhecido como “pastoral” e que é uma das passagens para a cantina, portanto a “maior
freqüência” deve ser entendida também como passagem por ele e alguma eventual parada.
450
- Lorena dois funcionários; Americana 3; Campinas.
286

Contato com os salesianos

Geral

Visão nas três Unidades

Americana Campinas Lorena

Este aspecto, por si, só compromete na raiz o projeto do fundador para quem era
exatamente o relacionamento pessoal qualificado a chave de seu projeto educativo.
Neste caso o termo “nunca” representa um elemento que atinge na essência esse
287

projeto educacional. Mesmo quando se afirma que se mantém “algum contato


formal451”, esta informação não alivia o problema da falta de um relacionamento
pessoal452.

Estes resultados demonstram o distanciamento dos salesianos de seus destinatários


enquanto devem responder cada vez mais às exigências burocráticas e
administrativas do UNISAL frente ao crescimento das obras, situação que é ainda
mais agravada quando se leva em consideração que nas três cidades as
comunidades possuem apenas dois ou três salesianos jovens ou de meia idade 453,
sendo os restantes idosos e doentes. Essa presença difusa dos salesianos coloca
em xeque a pedagogia da presença como elaborada por João Bosco quando 33%
dos alunos afirmam não conhecer nada da congregação salesiana454, ainda que 47
% afirmam possuir alguma simpatia455.

Este distanciamento dos religiosos dos destinatários não impede que nos ambientes
ainda se percebam valores salesianos a partir de professores e funcionários. O
ambiente de família é reconhecido por 58% dos alunos456, enquanto que 72%

451
- 8 % em Americana, 6% em Campinas e 42 % em Lorena
452
- Apenas afirmam que possuem “algum” contato de Amizade 14% em americana, 22 % em
Campinas e 30 % em Lorena é um dado que mereceria um aprofundamento de se medir a qualidade,
o que neste caso não convém aprofundar nesta visão panorâmica, pois demandaria detalhada
pesquisa.
453
- Em Americana são três salesianos jovens que devem responder pelo Centro UNISAL, pelo
Colégio, por obra social e pela paróquia. Além disso, devem responder por dimensões
administrativas. O mesmo sucede em Campinas onde apenas dois salesianos jovens devem atender
ao Centro Universitário, ao colégio, à Escola profissional e a uma capelania. No caso de Americana o
principal contingente constituído por alunos que saem do trabalho e ingressam na faculdade, muitas
vezes vindos as cidades vizinhas. O mesmo acontece com Campinas além dos alunos que chegam
do trabalho, há também um campus que por ser bastante grande favorece a dispersão. Em Lorena os
salesianos jovens são três e um idoso.
454
- Americana 31%; Campinas 41%; Lorena 24%.
455
- Americana 39%; Campinas 41%; Lorena 24%.
456
- Ambiente de Família
Geral Americana Campinas Lorena
Sim 58% 61% 47% 59%
Não 12% 9% 12% 17%
Indiferente 21% 23% 22% 18%
Nulo 8% 7% 16% 6%
288

afirmem que há acolhimento457 e em nível profissional 88% reconhecem um


ambiente de responsabilidade458 e 86% de seriedade459. Percebe-se com isso que
alguns valores da salesianidade subsistem na prática cotidiana da instituição,
apesar do distanciamento dos salesianos pelos motivos já aduzidos. Os alunos
reconhecem que o ambiente possui influência nas suas vidas profissional, familiar e
social460.

A partir dos resultados obtidos nesta sondagem é possível apresentar algumas


considerações que, confrontadas com o Mito fundacional em sua trajetória histórica
da Itália até o Brasil permitem tirar algumas conclusões para avaliar a Identidade
Salesiana do Centro UNISAL.

A congregação salesiana nasceu em meio a desafios quando se fazia na península


itálica a transição do modo de produção feudal para o industrial com contestações
radicais à Igreja. Neste contexto ela conseguiu não só sobreviver, mas crescer e ter

457
Ambiente de acolhimento

Geral Americana Campinas Lorena


Sim 72% 61% 63% 79%
Não 5% 9% 12% 4%
Indiferente 16% 23% 12% 13%
Nulo 7% 7% 13% 4%

458
Ambiente de responsabilidade

Geral Americana Campinas Lorena


Sim 88% 87% 84% 91%
Não 0% 0% 0% 0%
Nulo 6% 6% 3% 7%
Indiferente 6% 7% 13% 2%

459
Ambiente de Seriedade

Geral Americana Campinas Lorena


Sim 86% 84% 78% 94%
Não 0% 0% 0% 0%
Nulo 8% 9% 9% 4%
Indiferente 6% 7% 13% 2%

460
- Acredita-se, porém que isso é um resultado natural para jovens que ingressam no ensino
superior, sendo difícil sem uma pesquisa mais acurada saber até que ponto a salesianidade interfere
nestes aspectos. Portanto acredita-se não ser possível avalizar sem uma pesquisa de campo
detalhada até que ponto essas mudanças nasceram naturalmente do ambiente universitário ou foram
resultado da pedagogia salesiana.
289

o apoio, mesmo de alguns opositores do papado, que reconheciam nela ações que
sanavam sérios problemas sociais gerados pela industrialização e também
apresentava resultados ao diminuir a violência com a educação das classes
populares marginalizadas e oferecia às indústrias mão de obra qualificada e
trabalhadores com formação ética e cidadã.

Seu transplante para o Brasil foi marcado pela rejeição de liberais do Rio de Janeiro
e Niterói que temiam “esses frades modernos” que, de braços dados com o
processo industrial, representavam, porém, o obscurantismo religioso e papista.
Apesar dos ataques pela imprensa e hostilidades sofridas em ambientes públicos, a
congregação não só se implantou em Niterói, mas logo a seguir migrou para São
Paulo, participando da industrialização desta capital ao preparar mão de obra
qualificada a partir da Escola de Artes e Ofícios no então aristocrático bairro de
Campos Elíseos. Em pouco mais de duas décadas suas escolas profissionais se
espalharam por várias regiões do Brasil. Esta expansão não foi só religiosa, mas
atendeu às demandas de modernização do país. Vale recordar, à guisa de exemplo,
que a escola salesiana são José de Campinas foi capaz de a cada década se
adequar às rápidas mudanças econômicas da “Princesa do Oeste” na sua rápida
passagem da produção agrícola para a industrial e, posteriormente, tecnológica.

Hoje o ensino superior se torna um novo desafio. Como salvaguardar os valores da


educação salesiana frente a um mundo em avanço tecnológico estonteante, com
mudança de costumes e de valores que abalam não só as bases do cristianismo,
como da própria família e da sociedade?

Esta sondagem revela hoje o descompasso entre o projeto salesiano construído


desde a fundação e transplantado para o Brasil e o ambiente do ensino superior
implantado junto dos espaços dos antigos colégios.

Os jovens que circulam pelos centenários pórticos de Lorena ou pelas modernas


construções de Americana ou Campinas são filhos de um novo tempo que não têm
mais no cristianismo e na família tradicional o seu referencial de vida. Se, em tempo
recente, a televisão e os meios de comunicação social tiveram influência sobre a
mentalidade das novas gerações, através de uma globalização passiva, hoje a força
das redes sociais é inquestionável enquanto permite interação entre seus usuários
290

com o confronto de opiniões e pontos de vistas colocados sob o crivo de novas


visões e outros pareceres.

Até a década de 1970 os salesianos tiveram nos pátios, nos pórticos, nos campos,
nas piscinas, no teatro e na música elementos de atração da juventude. Essas
“ferramentas” estão suplantadas pelos espaços públicos de recreações, pelos
clubes, pelos mega-shows internacionais, pelas atividades sedentárias diante das
telas de computador. Eram elementos atrativos que perderam seu encanto. Os
pátios envolvidos pelo amplexo dos pórticos possuem o rosto do passado. E, mesmo
jovens que buscam a experiência religiosa, sentem nas propostas dos salesianos
algo sem intensidade. Se a sensação exacerbada que parte dos jovens busca nos
canhões de luzes, no som elevado, nas experiências sensoriais, nos esportes
radicais, no álcool e nas drogas, a procura de sensações está nestes mesmos
jovens quando buscam o espiritual como experiência sensitiva e emocional, como
nos barulhentos encontros de oração de inspiração pentecostais, onde prevalece o
sensível, o epidérmico, o labial e o maravilhoso. Tanto no âmbito profano como
religioso, paradoxalmente, as sensações exacerbadas é que contam. Projetos de
espiritualidade reflexiva, conscientizadora e libertadora são “produtos” descartados
por significativos segmentos das novas gerações onde o sentir precede o
racionalizar, quando não o substitui.

Para as gerações atuais o verbo “experimentar” e o substantivo “experiência” fazem


parte mais do que do seu vocabulário, de sua mentalidade. Viver experiências na
educação, na família, com os colegas, na afetividade, na sexualidade, na religião,
nas drogas, na busca mística de um sentido da vida é um modo de ser. As
experiências se sobrepõem e se substituem. Trabalhar “princípios pétreos” na
educação é uma proposta “fora de tempo”. No plantel de opções apresentados pela
sociedade os “salesianos” não ocupam hoje mais aquele lugar de destaque que
possuíam no final do século XIX e início do XX, mas são apenas mais um entre os
tantos que se colocam como proposta educacional. É passado o tempo em que a
Igreja era o centro do povoado, a escola a educadora e a família o referencial de
valores. Esses antigos referenciais são apenas facetas do todo religioso,
educacional e familiar.
291

Há elementos da educação salesiana difíceis de serem apreendidos pelas novas


gerações porque não fazem parte do seu cotidiano e de sua formação. O modo de
ver o mundo e situar-se nele a partir da ótica salesiana fica difícil de ser incorporado
nos estudantes, como já foi afirmado, quando 85% deles adentram na faculdade
sem nunca terem tido contato com essa experiência educacional, 74% estão
preocupados com o curso que lhes dará o diploma, pouco se importando com matriz
ideológica institucional com seus princípios e valores.

O nó gótico da situação fica insolúvel quando há desconhecimento desses princípios


salesianos por docentes, com reflexos no corpo discente, desconhecendo-se os
princípios do fundador e o sistema preventivo, mesmo quando tenham sido
mencionados em palestras, apresentados em filmes e documentários que estão
longe de serem absorvidos como princípios na prática pedagógica. Para os alunos
tudo que se conhece são simples “pinceladas” no início de cursos se constituindo
em apenas mais uma informação numa semana poluída de notificações sobre tudo e
sobre todas as coisas e quando a mente dos neo-universitários está ansiosa por
desvendar esse novo mundo.

Mesmo a formação dos princípios religiosos pode se tornar um simulacro, quando


não assume o caráter de uma força propositiva, mas mera informação na medida em
que os projetos idealizados pelo fundador não conseguem ter uma força
desestabilizadora sobre a vida dos educadores e, por conseqüência, dos
educandos. Isto é bem explicito quando a congregação salesiana é vista pela
maioria dos educandos como “um negócio bem sucedido dos padres” que lhes
garante riqueza e poder. Tem-se aqui um problema.

Mito, Rito e Símbolo. Três elementos delimitados e conceituados no início deste


trabalho como instrumentos para avaliar as instituições. Vale a pena transcrever a
definições iniciais deste trabalho.

O Mito é a narração da vida, dos ditos e feitos do fundador e de seus primeiros


discípulos. Não é, porém, uma narração feita uma única vez como numa
comunicação, mas é sempre narrada, porque aquele evento fundacional do passado
se torna sempre presente na comunidade que o assume. Os iniciados ouvem com
unção a história de como tudo começou. Esse resgate tem não só a função de
292

memorial, mas de entendimento do “agora” da Instituição. Perder esse referencial


histórico é perder a própria identidade, pois, os seguidores devem entender que são
continuadores do fundador. O mito é um fato do passado que se atualiza pelo
Rito461.

O Rito é a atualização do Mito que “indo” ao passado, atualiza a experiência


fundante tornando-a presente aqui e agora no hoje, sendo, portanto, não só
evocativo, mas também celebrativo. É a atualização do ontem no hoje, quando
tomamos consciência que “nós” somos a continuação da mesma história. O
cerimonial integra e dá unidade ao passado e ao presente quando temos
consciência que não somos meros observadores, mas protagonistas desta história.
Nas celebrações religiosas, à guisa de exemplo, a divindade sai de sua
transcendência e está “aqui” no rito interagindo com seus crentes ouvindo-os e
atendendo-os. Em Instituições não religiosas o cerimonial também diz a mesma
coisa: os sonhos dos fundadores não ficaram no passado: somos este sonho
tornado realidade, não havendo entre o fundador e seus discípulos o vácuo do
tempo. O ontem é o hoje em nós. Daí a necessidade de uso de roupas e insígnias
que indiquem que o membro da comunidade transcende a sua própria
individualidade462.

O Símbolo é o que nos faz remontar e lembrar a experiência do fundador por sinais.
O vestir-se e o envolver-se de símbolos representa conectar o hoje com o ontem. O
paramentar-se, não só no sentido religioso, significa dar identidade ao Rito indicando
a fonte de onde se vem. O Símbolo é um referencial ao Mito inicial. Mesmo as
construções são sinais de uma determinada Instituição que procura se impor pela
grandeza, esplendor e majestade para assinalar o que representam463.

Afirmou-se que uma instituição entra em crise quando o Mito não narra mais, o rito
não celebra mais e o símbolo não simboliza mais, sendo seus possíveis fins a morte,
a re-fundação ou a sua reconfiguração em nova instituição, em “outra coisa”.

461
- cf. p. 26
462
- cf. p. 27
463
- cf. p.27
293

João Bosco colocara na Bondade o primeiro e inequívoco passo na conquista afetiva


dos educandos, que não aconteceria num encontro casual, mas, na convivência, no
estar junto, no partilhar a vida num misto de amizade, companheirismo, fraternidade
e paternidade. Ele sintetizara essa “química de relacionamento” numa abordagem
revolucionária para o seu tempo: “o fazer-se amar”. A palavra “amor” representa
relacionamento constante, cotidiano e pessoal demandando tempo para que o jovem
decodifique que é objeto dele. Daí essa pedagogia ser definida como Pedagogia da
Presença.

Quando se constata nesta sondagem que 77% dos jovens de Americana, 72% de
Campinas e 26% dos de Lorena afirmam que nunca tiveram contato ou
conversaram com salesianos e que, mesmo em Lorena onde se possui um índice
favorável, posteriormente, 42% dos jovens afirmam que possuem algum contato
formal, isto representa um primeiro problema na materialização dessa pedagogia. O
termo “nunca” mostra um distanciamento irreparável porque não oferecerá sequer a
possibilidade de um relacionamento social, ainda que superficial. É uma distancia
infinita e insuperável para se começar uma construção afetiva que se torne
educadora.

O Mito é a narração afetiva da experiência fundacional, da vida e peripécias do


fundador. Quando se questionam os pesquisados se conhecem a vida de Dom
Bosco, apesar das palestras e dos filmes assistidos quando calouros, 36% em
Americana, 41 % em Campinas e 74% em Lorena afirmam que não tiveram nenhum
contato, apesar de terem antes respondido conhecer os princípios salesianos464.
Quando, porém são questionados se conhecem o sistema Preventivo, 59% em
Americana, 66% em Campinas afirmam desconhecê-lo enquanto que 25% em
Americana e Campinas ficam na ambígua posição de conhecer “alguma coisa”.
Sem o mito fundacional falta sustentação de toda elaboração educacional. Não se
trata de dizer que “O Mito não narra mais”, mas de dizer, o “Mito não narra”, porque
não é narrado, e, se não o é, não existe como referencial de vida e nem de
educação. Sem isso a obra já é, repete-se, “outra coisa”. É um desdobramento
natural que Cursos de Lorena como Pedagogia e Informática tenham um perfil
essencialmente tecnicista e o curso de Engenharia de Produção apresente menções

464
- Americana 68%; Campinas 41%; Lorena 83%.
294

na dimensão humanística e ética, mas nenhuma referência à cidadania,


salesianidade e cristianismo. Formar bons cristãos e honestos cidadãos é uma frase
que se perde em pios desejos nos discursos institucionais, mas que não possuem
significado na construção do homem egresso destes cursos.

O Rito é essencialmente celebrativo, é festa, alegria e atualização. Ele traz para o


hoje a experiência fundante. Se a pastoral tem uma finalidade de anuncio, ela é por
excelência um espaço celebrativo. Quando 90% em Americana, 66% em Campinas
e 67 % em Lorena afirmam que não ou raramente freqüentam a pastoral, e aqui
entendida apenas como um espaço físico, se pode dizer que o Rito não celebra
mais.

Finalmente a monumentalidade dos antigos e modernos prédios não falam para a


maioria das pessoas de algo feito para os jovens, mas simbolizam, no imaginário da
maioria das pessoas, poder econômico. O símbolo não simboliza mais.

Estes são desdobramentos lógicos dos princípios elaborados e posteriormente


constatados na práxis. A descrição cristalina de João Bosco nos seus escritos sobre
o Sistema Preventivo e na Carta de Roma não permitem interpretações ou exegeses
sobre seu pensamento. Qualquer aggionarmento do seu pensamento para o século
XXI está preso a essas concepções pétreas que não podem ser alteradas; podem
até ser substituídas construindo-se algo até melhor, mas serão “outra coisa”.

Deve-se destacar, porém, que a sondagem, capta a permanência de valores


salesianos no ambientes. 63% dos alunos afirmam que o UNISAL é melhor que as
outras faculdades465. 58% afirmam existir um ambiente de família466 , 72% um
ambiente de acolhimento 467, 86% de seriedade468 e 88% de responsabilidade469.

465
- Americana 60%; Campinas 53%; Lorena 72%.
466
- Americana 61%; Campinas 47%; Lorena 59%.
467
- Americana 61%; Campinas 63%; Lorena 79%.
468
- Americana 84%; Campinas 78%; Lorena 94%.
469
- Americana 87%; Campinas 84%; Lorena 91%.
295

Esses elementos supracitados mostram que, apesar do crescente distanciamento


dos salesianos do cotidiano da obra e na pouca formação de novos leigos como
educadores salesianos, muitos valores ainda permanecem. Especial destaque deve
ser dado para Lorena onde parte dos professores, funcionários dos setores
administrativos e de manutenção viveram sua infância, adolescência e juventude em
obras sociais dos salesianos, o que lhes permitiu que valores salesianos se
integrassem em suas vidas. Pessoas idosas, quando se recordam da educação que
tiveram, mais do que falar de espaços e eventos, falam uma lista de nomes de
velhos salesianos que fizeram parte de suas vidas. Os índices em Campinas são
menores porque, como cidade grande, parte de seu pessoal, ainda que tendo sido
“treinado” dentro dos padrões salesianos, não vivenciaram isso na educação de sua
juventude.

Os desafios do UNISAL têm sido objeto de preocupação da congregação. A


fundação das IUS foi o primeiro passo para reverter essa situação com princípios
que norteiem o ensino superior. Em São Paulo a reforma regimental da
universidade, se de um lado enfraqueceu a incidência dos salesianos com a
extinção do cargo de diretor de unidade, de outro pretendem que os salesianos
estivessem desimpedidos de outros encargos para atuarem na pastoral. Cresce a
preocupação da formação de novos salesianos especificamente para o Centro
Universitário onde seriam professores de carreira. Em São Paulo foram lançados os
primeiros números do Caderno de salesianidade470 com o objetivo de discussão em
nível acadêmico do pensamento salesiano, com publicações de autores nacionais e
internacionais. No campo leigo a Pastoral está sendo entregue a pós- graduandos
que estão se especializando em salesianidade com vários cursos internacionais. Há
a proposta do padre Natale Vitali responsável na congregação para a América Latina
– Cone sul471 - que se dê ao coordenador de pastoral o status igual de coordenador
de curso.

470
- Indexado: ISSN 2178-0242.
471
- Brasil Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai.
296

É importante que a pastoral seja sempre considerada como uma das


prioridades neste trabalho; por isso é preciso contratar uma pessoa leiga
472
que assuma a pastoral, no nível de coordenação .

São projetos incipientes, mas que visam re-configurar a presença salesiana frente
aos desafios do ensino superior salvaguardando não as práticas do fundador no
século XIX e de seus seguidores do século XX, mas antes, de resgatar os critérios
educacionais que o seguiram ao longo de sua vida. Afinal, ao emergir da idade
média, João Bosco teve que se confrontar com desafios. E este é o caminho de toda
e qualquer escola educacional: ser capaz de dar respostas adequadas aos sempre
novos tempos.

472
- VITALI, Natale. Ata da visita Extra-ordinária. Roma: Arquivo Central da Congregação,
Via della Pisana 1111, 30 de março de 2011b.
297

CONCLUSÃO

A gloriosa Cidade de Deus que no presente decurso do tempo, vivendo da


fé, faz sua peregrinação no meio dos ímpios, que agora espera a
estabilidade da eterna morada com paciência até o dia em que será julgada
com justiça, e que graças à sua santidade, possuirá então, por uma
473
suprema vitória, a paz perfeita .

A Gloriosa Cidade de Deus... Agostinho no De Civitate Dei não somente dá sentido


à queda do Império Romano, mas elabora também uma chave explicativa para o
devir do cristianismo ao longo de sua história: polarizam-se duas cidades, a dos
homens, profana e a de Deus, sagrada.

No século XIII os racionais, a partir da universidade de Paris, desbancaram o


pensamento do hiponense como chave explicativa da realidade, dando primazia ao
racionalismo escolástico. Nos séculos seguintes o tomismo será posto
sucessivamente na berlinda pelo iluminismo, positivismo, materialismo, modernidade
e pós-modernidade. Tais correntes, porém não se substituem, mas coabitam, ora
interagindo, ora se rejeitando. Apesar das muitas opções filosóficas existentes no
“inconsciente filosófico” de muitos pensadores cristãos, travestidos de modernos,
ainda ecoa, qual sombra ou “neurose filosófica”, que se manifesta em atos falhos ao
pensar como os tradicionais, o martelar incomodo e estressante dessa expressão
perdida na penumbra dos séculos, mas que ainda assombra como fantasma os seus
inconscientes de cristãos desencanados do século XXI: a gloriosa cidade de Deus...
sob a fachada de um discurso liberal querem no fundo a implantação do
cristianismo. É um modo de pensar e ver o mundo que, mesmo os progressistas,
não conseguem se libertar, pois anseiam que a sociedade seja organizada a partir
de princípios e valores cristãos.

Intelectualmente Bosco transitou entre o pensamento platônico-agostiniano e o


aristotélico-tomista, assistindo ao desmoronamento econômico, político, social,
religioso e moral do seu tempo. Ao adentrar a cidade dos homens, o fez para
implantar a Cidade de Deus. Ao integra-se na corrente reformuladora da

473
SANTO AGOSTINHO, 1996, p. 97.
298

modernidade o fez para salvaguardar os valores do cristianismo. Sua vida foi um ato
de resistência cultural e religiosa, quando lideranças da sociedade se distanciavam
não apenas da cristandade, mas também do cristianismo, que, ao perder espaço e
controle ideológico da sociedade, não se rendia. Este também foi o espírito que
marcou seus discípulos dos primeiros tempos. Não desanimar frente aos desafios
dos novos tempos, mas enfrentá-los, mesmo se utilizando as armas da cidade dos
homens, para manter a cristandade: Christus vincit, Christus regnat, Christus
imperat!...

Os salesianos integraram na sua cultura organizacional o moderno. Ainda hoje em


países do terceiro mundo, marcados pela pobreza, alavancam a economia e a
promoção humana através de obras sociais e educacionais, determinantes para o
progresso de algumas dessas nações. Empresas multinacionais entregam-lhes
vultosas quantias para a promoção dessas sociedades, quando se negam a
contribuir com quaisquer valores a governos constituídos, por não serem
considerados idôneos. Essa presença, respeitada por empresas e por governos por
sua ação educacional e social, não pode ser vista, porém, como uma simples
organização de benemerência. Tais ações são conduzidas por religiosos atrelados
à igreja por votos e consagração religiosa e cujo sentido da própria existência é a
pregação do Evangelho e a conquista de novos membros para a grei católica.

Esta visão desnudada das instituições religiosas deve ser considerada mesmo
quando atuam na sociedade através de suas organizações filantrópicas e
educacionais que são, em última análise, o braço social e educacional da religião na
buscam de prosélitos, mesmo quando afirmem querer apenas o “diálogo” com a
cultura. Organizações nascidas de instituições confessionais nascem de uma matriz
que não abre mão de sua finalidade primeira que é atrair para seu seio mais novos
adeptos.

Os salesianos ao se expandirem pelo mundo o fizeram nessa ótica. Provavelmente


não terão tido consciência que estivessem engajados num bem arquitetado plano de
Pio IX de romanização do orbe católico. Independente disto, porém, foram um
importante pelotão de ocupação das terras americanas onde a fé, dita católica,
vivenciava um cristianismo patriarcal apoiado no padroado e beneplácito, passava
299

pelo catolicismo iluminista e liberal e terminava no catolicismo popular sincrético e


autônomo.

Essa identidade explicita de fidelidade incondicional ao papado e, portanto à Igreja


Católica Romana, deve ser apreendida sem pudor para que se possa entender o
que significaram as faculdades salesianas de Lorena, Campinas e Americana. O
Professor Francisco Sodero, membro do Instituto de Estudo Vale-paraibanos (IEV)
ao realizar o Estudo da Faculdade Salesiana de Lorena afirma, quando de sua
fundação em 1952:

Nascia mais uma instituição de nível superior de caráter privado e católica.


Ligada, portanto, ao projeto de Igreja, formulado no bojo dos processos de
romanização e de restauração, com total unidade com o Vaticano e
obediência ao papa e à Cúria Romana. Um projeto que pretendia, por
intermédio do ensino superior, formar uma elite capaz de conduzir as
massas dentro dos princípios católicos. (...) Os salesianos, em seu
movimento educacional, buscavam a disciplina moral, o rigor intelectual e a
474
total afinidade com os superiores da Ordem e com o Vaticano .

A Faculdade de Americana, apesar de fundada em 1972 após a publicação da lei


5.540/68 que foi uma intervenção do golpe militar no ensino superior impondo um
modelo tecnicista, manteve a tradição humanista salesiana na sua organização. O
mesmo já o fizera Lorena que, apesar de adequar-se às exigências governamentais,
não abriu mão de seu lastro humanista-cristão-salesiano. A faculdade de Campinas,
aprovada em 1980, mas só aberta em 1987, contando com uma significativa
presença de salesianos irmãos, com menor formação filosófica e teológica, esteve
mais aberta à adoção do modelo tecnicista que correspondia às suas práticas
docentes.

Em 1907 Pio X vira no modernismo um grande perigo para a igreja, quando este
pensamento ameaçava não só as fronteiras da religião, mas já as tinha ultrapassado
instalando-se no seio da igreja. Linhas conservadoras da Igreja utilizavam a imagem
do cavalo de Troia na cidade de Deus, querendo alertar que essa mentalidade havia
se infiltrado inclusive no meio do clero. Com razão o papa exigirá de todos os
bispos, sacerdotes, religiosos e seminaristas que professem o juramento anti
modernista. As novas idéias, porém, avançaram pelas décadas seguintes.

474
- TOLEDO, 2003, p. 63.
300

O pensamento e as obras de Teilhard de Chardin foram objeto de inúmeras


retaliações. Ele entendia que o catolicismo não deveria temer as mudanças do
mundo moderno. Como paleontólogo e membro da comunidade científica
internacional, realizou o esforço de aproximar Ciência e Teologia. Apesar da
atualidade a aceitação de suas obras por parte de intelectuais católicos da época,
viveu sob pressão da igreja que o retaliou tirando-lhe a cátedra de Paris e
mandando-o para o oriente.

Quando enfim o Vaticano II inicia o processo de abertura para o mundo moderno


forças conservadoras reagem. Neste sentido destacou-se a obra de Dietrich von
Hildebrand475, denominado por Pio XII como doutor da Igreja do século XX, no seu
livro Trojan Horse in the City of God476 onde apresenta o que entende como sendo
uma ameaça para a Igreja:

Para muitos católicos que se dizem progressistas, as atividades puramente


humanitárias e as instituições sociais são mais atraentes do que a
santidade. Tornaram-se cegos para a luz de Cristo. O ideal que escolheram
está longe do desafio que cada santo encarna. A luta pela justiça social,
ainda que boa, não presopõe morrer para nós mesmos, quebrar com o
espírito do mundo, renunciar a Satanás e às pompas deste mundo,
enquanto que os santos pela sua santidade resplandecente, sacodem
nossas consciências e nos chamam a renunciar ao mundo e às suas
pompas. Os santos são um desafio desconfortável para aqueles que não
têm sede de santidade. Estes católicos progressistas não querem ter sua
conssciencia perturbada,não querem sair do gueto da "cidade secular", e
por isso querem eliminar os santos. Os santos geram desconforto ao trazer
o sobrenatural para nossa realidade e perturbam àqueles que interpretam a
477
vida cristã de forma subjetiva .

475
- Florence 1889 – New Rochelle 1977.

 476 - HILDEBRAND, Dietrich von. Trojan Horse in the City of God. Manchester, New
Hampshire: Sophia Institute Press, 1993.
477
- For many Catholics who call themselves progressives, purely humanitarian activities and
social institutions are more attractive than holiness. They have become blind to the light of Christ.
Further, the ideal they have chosen is far removed from the challenge that every saint embodies.
Striving for social justice - good and honorable as it is - does not presuppose that we die to
ourselves, that we break the spirit of the world, that we renounce Satan and the pomp of this
world. But every saint, by the resplendent fact of his holiness, shakes our consciences and calls us to
renounce the world and its pomp.The saints are an uncomfortable challenge to those who do not thirst
for holiness. Because this progressive Catholics do not want their complacency disturbed,
because they do not wish to be drawn out the ghetto of the “secular city”, they want to
eliminate the saints. The saints bring the supernatural uncomfortably near. They confront us with
the ethos of holiness and disturb those who interpret the Christian life according to their own
fashion. Ibdem. pp. 258-259
301

Este dois autores são apenas dois pólos visíveis das tensões internas em que vive a
igreja. São, respectivamente lidos, amados, odiados, contestados e respeitados. Em
1970 Hildebrand e Teilhard de Chardin são lidos e defendidos por docentes das
Faculdades Salesianas de Lorena. É um confronto entre as mentalidades da idade
média e da modernidade que se batem no mesmo espaço: criacionismo versus
evolucionismo; o mal visto como obra de satanás de um lado e das injustiças
sociais, por outro. No seio dessa faculdade interiorana polarizam-se essas duas
mentalidades, algo não muito diferente na idade média de Francisco de Assis na
coorte papal. Em pleno século XX nos Estados Unidos, com todo paradoxo que isso
possa representar, Hildebrand e Chardin defendem um, uma visão medieval,
enquanto outro uma visão cientificista e evolucionista. Os conflitos dessas visões de
mundo e de cristianismo são candentes porque irão determinar que tipo de
educação se pretenda ministrar no ensino superior. Lorena os vive com intensidade.

Deve-se assinalar que esses conflitos acontecem num tempo em que a autoridade
na Igreja ainda é acatada, mas não deixam de ser o prenúncio das grandes
contestações, que como grandes vagas, se infiltrarão nas próximas décadas na
igreja, atingindo mesmo os protegidos claustros dos contemplativos.

Os jovens que ingressam na formação religiosa salesiana são filhos desses anos de
contestações e conflitos possuindo cada vez menos referenciais do passado. Os
mestres que representam o passado nem sempre conseguem passar os valores da
congregação com sua mística medieval e incontestável obediência ao papado. O
aggiornamento conciliar escapava ao controle da própria igreja numa cultura cada
vez mais laica, materialista e hedonista. O abandono da vida religiosa após o
Vaticano II foi manifestação explicita da insuficiência do catolicismo em dar
significado à vida de muitos homens e mulheres. Estes elementos contribuem, a
partir da década de 90, para se consolidar numa crescente perda da identidade
salesiana tradicional para as novas gerações Para um olhar menos penetrante nada
havia mudado. O Mito fundacional continuava sendo narrado; o Rito continuava a
ser celebrado e os Símbolos mostrados. Ainda que as celebrações e as narrações
continuassem as mesmas, a leitura que era feita delas possuía um novo significado.
302

E esta manutenção da dimensão exterior poderia esconder que o que se vê não


existe mais ou pode ter um significado diferente do que aparentemente parece
afirmar478.

Numa universidade confessional algo semelhante pode acontecer. Os mantenedores


promovem com elevo festividades em torno do mito fundacional. Falam do fundador
e de seus ideais. Realizam celebrações. Percebem a instituição a partir do lugar dos
mantenedores, nem sempre captando que não há adesão efetiva e afetiva àquilo
que acreditam. Um funcionário não porá em risco seu emprego contestando o
ideário e as crenças dos seus empregadores. Como na psicologia, o que determina
a verdade nem sempre é o narrado, mas os atos falhos que são perceptíveis apenas
para um observador mais atento, assim também, se os mantenedores não tiverem
um olhar acurado, poderão se iludir com as aparências que lhes são mostradas
parecendo existir aceitação do ideário da instituição pela aceitação dos seus
funcionários.

No caso do UNISAL, apesar dos discursos institucionais e das falas dos


coordenadores, há elementos que falam por si sem necessidade de grandes
reflexões e demonstrações: quando um contingente não desprezível de alunos não
conhece os salesianos; quando nas ementas dos cursos e das disciplinas se
desconhece com significativa sistematicidade a formação humanista e cristã da
faculdade; quando a pastoral sequer é capaz de dinamizar uma página da internet
com informações e idéias; quando a vida do fundador é desconhecida e quando o
curso de Pedagogia sequer faz referências a valores humanos, e muito menos
cristãos e salesianos; quando cursos que deveriam ser irradiadores dos valores
salesianos, ignoram a salesianidade e mesmo a formação humana e cristã, essas

478
- Um exemplo pode ilustrar isso. No Brasil colonial os negros eram obrigados a abraçar a fé
católica. Como “cristãos” participavam dos cerimoniais católicos e das festas dos santos com suas
procissões. Para os portugueses seus escravos tão devotos e havia se integrado na religião. As
festas terminavam à noite com cantos e danças. O que acontecia é que os negros por baixo das
aparências das imagens católicas viam seus orixás, como Iansã mãe de todos os orixás ou Iemanjá,
a rainha do mar. À noite ao festejarem ao redor das fogueiras apenas mantinham as tradições e os
ritos ancestrais que eram guardados na tradição exatamente através desses aparentes folguedos.
Fazendeiros e capelães acreditavam numa adesão que não existia, sendo todas essas celebrações
simulacro que sob a aparência e o rosto de práticas católicas se mantinham as crenças ancestrais.
Cf. PASSOS JÚNIOR, Dilson. A formaçao do sincretismo religioso no Brasil. Revista de Cultura
Vozes, Petrópolis, 82, n. 1, p. 57-78, jan. 1988.
303

situações, por si só já são um diagnóstico. A “adesão” ao pensamento cristão e


salesiano é feita por conveniência, pelo simples fato de se desconhecer o fundador
e seu sistema educativo. E aqui se fala em mero conhecimento que serviria, ao
menos, como referencial de erudição, sem supor ainda, necessariamente, uma
adesão. Este contexto nos induz a uma situação de simulacro onde o parecer
substitui o ser.

Uma escola de ensino superior não é uma sucursal de uma paróquia. Uma
universidade confessional deve, porém, estabelecer um diálogo adulto com a
cultura fazendo com que os educandos tenham acesso ao pensamento
antropológico e social dessa instituição. No caso salesiano isto ainda tem maior
consistência porque a congregação possui uma ação educadora que está embasada
numa visão de mundo que se reflete na sua prática pedagógica. Não é possível que
essa prática seja assumida com consistência sem uma sólida elaboração teórica que
dê sustentabilidade à sua ação. Nos Estados Unidos, por exemplo, as universidades
católicas fazem os alunos ter acesso aos documentos eclesiais que tratam de
questões da Doutrina Social da Igreja. Eles são posteriormente confrontados com
outros documentos sobre o mesmo tema, permitindo que se estabeleça um
confronto entre fontes primárias que levem a uma tomada de posição embasada em
estudo sério. Estabelece-se o diálogo com o pensamento cristão a partir das fontes
e não de intermediários e intérpretes. Para o egresso dessas escolas superiores,
independente de suas opções pessoais em nível religioso ou moral, existiu a
oportunidade de um diálogo Tetê- á-tetê com o pensamento cristão. Elas entendem
que somente possuindo uma inequívoca identidade católica terão condições de um
verdadeiro e frutuoso diálogo com a cultura479.

A cultura cristã não é mais o modelo predominante das elaborações do viver social e
moral. Como agência de ensino superior as universidades católicas pretendem mais
do que simplesmente ensinar, mas criar uma mentalidade, uma cultura e um
pensamento que tenham incidência na organização social, pois nenhuma instituição
de ensino superior, confessional ou não, pode abrir mão desse objetivo de formar
egressos com referenciais significativos de princípios e valores, e isto só será

479
Cf. BOSTON COLLEGE. The Catholic Intellectual Tradition: A Conversation at Boston
College. Boston: Fund. Collegium Bostoiense, 2010, p. 5-9.
304

possível se essas instituições de ensino superior, independentemente de sua matriz


religiosa ou ideológica, repetimos, mantiverem e cultivarem uma identidade clara e
inequívoca e essa identidade só será clara e inequívoca se for sinônimo de
fidelidade aos seus princípios.

Seria errôneo pretender retornar ou recriar o passado como sinal de fidelidade aos
ideais do fundador. Deve-se levar em conta que num mundo pluralista e globalizado
coabitam matrizes materialistas, agnósticas, hedonistas e tantas outras mais. As
religiões rigidamente institucionalizadas perdem a cada ano espaço, enquanto
gastam a maior parte de suas energias em preservar tradições obsoletas e que nada
dizem para o homem concreto, além de se recordar sua dimensão histórica e
estética. Em algumas situações as igrejas cristãs tradicionais em geral, e o
catolicismo em particular, se desgastam ao manter um crescente zelo por rituais
medievais, para o deleite de meia dúzia de saudosistas, em detrimento da educação
do homem comum, sendo incapazes, enquanto instituições, de estabelecer um
diálogo que efetivamente corresponda à demanda dos anseios do homem moderno.
Sua organização hierárquica apoiada num poder absolutista concebido como
advindo de Deus vai na contra mão de uma sociedade democrática, participativa e
crítica que tende a não mais transigir com caprichos e manhas de chefes
constituídos sem aprovação das bases.

Seria exigir demais que um filho espiritual da idade média tivesse esses
pensamentos. Bosco foi um fidelíssimo súdito da igreja, não deixando, porém de
contestá-la quando sua prática educacional-pedagógica fez frente aos seus dois
ciumentos bispos e quando desprezou o modelo de rígida disciplina que era aplicada
nas suas casas. Imprimiu aos seus internatos um clima doméstico e pouco
institucional que tanto escandalizou aos educadores da época pela aparente
desorganização, pois para ele prevalecia o clima de família onde a ordem era
conseguida pela autoridade moral do educador que se fizera amar e, portanto
respeitar. Na organização de governo de sua congregação, imbuído paradoxalmente
da mentalidade liberal de seu tempo, colocou ombro a ombro os salesianos-leigos
com os salesianos-sacerdotes e instituiu uma forma de governo onde a autoridade
estava mais ligada a um conselho que à figura do diretor que deveria ser visto como
pai, amigo e irmão. Colocou seus sacerdotes realizando trabalhos braçais e servis
305

contestando, pela ação, aquele modelo de igreja que procurava colocar os


sacerdotes num status superior ao povo.

A força moral deste filho do século XIX foi contestar, através de suas ações e
empreendimentos, a incapacidade da igreja de se voltar para a nova realidade do
mundo industrial que, a partir do critério do lucro, oprimia e desumanizava a pessoa.
Assim como Francisco de Assis diante de Lotário se impusera com autoridade moral
por sua inquestionável pobreza evangélica, Bosco se impôs ao papa e à sociedade
anticlerical do seu tempo pelo trabalho e pela doação irrestrita aos jovens urbanos,
marginalizados pelo sistema industrial de um lado, e pela sociedade tradicional de
outro. Ele esteve na contramão da história do seu tempo. Os salesianos como uma
congregação urbana nascida no contexto industrial viveram com a sociedade do seu
tempo os desafios advindos pelo progresso.

A sociedade industrial e pós-industrial estão atreladas a formas de produção em


permanente evolução e mudança. A congregação captou que deveria se adequar
sistematicamente aos novos meios de geração de riquezas. Não se pode fugir da
idéia que a infra-estrutura econômica com seu modo de produção altera a
superestrutura social nas suas instituições e organizações. A rápida adequação às
mudanças é condição fundamental de sobrevivência em todos os campos, inclusive
na educação. Isto traz lições concretas.

O grande desafio do UNISAL, como agência de ensino, é atender às demandas do


mercado e da sociedade, permanecendo fiel aos critérios do fundador para que a
grife “salesianos” represente de fato uma marca que garanta fidelidade aos seus
ideais fundacionais. Os salesianos são herdeiros de um educador que estabeleceu
princípios pétreos de educação sem os quais sua obra perde sua identidade. São
eles: Presença, Razão, Religião e Bondade. A exclusão de quaisquer um desses
itens desconfigura, ipso facto, de forma irreparável o projeto desse fundador. Como,
porém, trazer esses critérios para o século XXI sem que pareçam peças de museu
que atraem mais por sua singularidade ou exoticidade do que pela sua real
utilidade? Manter essa pedagogia consiste em captar o que ela possui de perene e
atemporal, ou, numa linguagem mais atual, apreender os critérios de João Bosco
que se pretende, sejam perenes.
306

O primeiro passo é definir com clareza a identidade da instituição: ela é uma


fundação cristã, católica e salesiana. Enquanto cristã se sustenta por um
humanismo embasado no pensamento do Novo Testamento; enquanto instituição
católica recebe do magistério os referenciais de sua ação. Enquanto salesiana se
difere de outras instituições católicas e cristãs ao adotar os princípios educativos e
pedagógicos elaborados por João Bosco.

Ele estabeleceu como já nos referimos acima, quatro elementos indissociáveis:


Presença, Razão, Religião e Bondade. É necessário resignificar esses elementos
com o cuidado de não reproduzir ações dos séculos passados e ao mesmo tempo
manter a identidade e a prática educacional do fundador respeitando a pluralidade
do mundo moderno.

A identidade católica e cristã, em relação ao mundo moderno, está resolvida pelos


documentos480 conciliares: Lumem Gentium, Unitatis Redintegratio e Nostra Aetate.

É no âmbito da dimensão salesiana que os quatro elementos, definidos como


pétreos, merecem considerações.

A Presença física do educador salesiano nas ultimas décadas foi relativizada num
processo de terceirização, apoiada em argumentos como tamanho e complexidade
das obras. Concretamente os salesianos se fizeram ausentes não sendo mais a
alma do recreio.

O recreio não existe no ensino superior e os alunos, em boa parte trabalhadores,


mal possuem tempo para um descanso e um eventual lanche no intervalo. Uma
figura de educador perambulando pelos pátios não cria nem conhecimento e nem
laços com jovens que transitam ao acaso. Não é esse o lugar físico para encontros
de relacionamentos qualitativos, mas apenas ocasionais. João Bosco vira no recreio,
com suas corridas, cordas e mágicas um pretexto para o encontro. No UNISAL hoje
o “pátio moderno” onde se podem encontrar os alunos, conversar com eles, partilhar
suas angustias e alegrias e passar-lhes valores é a sala de aula que se constitui no

480
- No Lumem Gentium primeiro trata-se do relacionamento da igreja com o mundo
contemporâneo; no Unitatis Redintegratio o relacionamento com as religiões cristãs e no Nosta
Aetate com as religiões não cristãs, sempre numa dimensão ecumênica.
307

novo pátio. Será o salesiano-professor que conviverá, coabitará, ganhará a afeição e


poderá dizer com autoridade moral que lhe confere a presença diuturna uma
“parolina all’ orecchio”. O aluno universitário só será atingido pela presença
salesiana com qualidade na sala de aula sendo a partir dela que outros espaços de
convivência se criarão.

A Razão era entendida por Bosco como o ato do educador mostrar ao educando a
lógica e o sentido do que lhe era pedido, fazendo com que este compreendesse o
sentido e o porquê algo deveria ser assumido e realizado. Em 1968 esse critério
sofreu modificação na sua leitura no Brasil assumindo o sentido de protagonismo
juvenil481 no qual se crê que o jovem é capaz, a partir de sua realidade e da
proposição dos seus educadores de, ele mesmo elaborar os princípios que devem
reger sua vida. Pode-se afirmar uma necessária evolução do conceito da razão na
ótica salesiana. Até a década de 1960 ela foi entendida como uma Razão Simples
na qual o educador mostrava ao destinatário a lógica da verdade acreditando que
sua clareza seria tal que haveria adesão a ela. A partir da década de 1970 há uma
evolução do conceito, apenas em nível de Brasil, a partir da crise da Faculdade
Salesiana no ano de 1960, quando foi deflagrada a “greve dos cem dias”. Neste
evento alunos da UNE propuseram a tomada da direção da faculdade por uma
gestão conjunta de docentes e discentes. Neste período discutia-se a realidade
brasileira com um alto nível de politização dos alunos que embasavam muito de
suas proposições em Karl Marx. Era uma abordagem crítica da realidade. Os ideais
dessa geração foram castrados em 1968, inicialmente pela prisão de boa parte das
lideranças estudantis no Congresso da UNE em Ibiúna e posteriormente pelo Ato
Institucional numero 5 que tolheu de forma radical a liberdade de pensamento e
expressão, mostrando o braço truculento do golpe militar de 64. Apesar das
retaliações, mesmo dentro da congregação e sem a tutela dos formadores, na
consciência dos clérigos universitários se configurou o conceito de uma
racionalidade participativa e crítica que será uma das características da formação
dos salesianos no Brasil e parte da América.

A Racionalidade do mundo acadêmico deve dar um passo além dessas duas


“racionalidades” históricas. O Educador salesiano deve incorporar um novo tipo de

481
PASSOS JÚNIOR, 2004, p. 161-176.
308

razão: acadêmica, culta e erudita. O dialogo na Academia deve ser feito a partir do
profundo conhecimento da Ciência e do Homem. A Verdade, sinalizada pelos
educadores salesianos, deve ser capaz de diálogo científico com as mais avançadas
produções culturais.

O respeito que o educador salesiano terá dos alunos será pela sua capacidade
intelectual de produzir e reproduzir o saber. Fala-se aqui em princípio do bom e
eficiente professor e, dando um passo adiante, do pesquisador imerso no cotidiano
da Academia e do Campus. Esta é a Racionalidade acadêmica, que não se reduz,
no ensino superior, à atitude de um conselheiro a indicar caminhos segundo a reta
razão.

A Religião é o terceiro elemento da Pedagogia salesiana e, até o início da década


de 60, era entendida e praticada como uma catequese, procurando levar os
educandos à freqüência da missa e à prática dos sacramentos da confissão e da
comunhão, dando-se destaque ao pecado e a perdição eterna. O livro O Jovem
Instruído de Bosco é expressão dessa mentalidade. Nos internatos482, além da rotina
de estudo e recreação, a vida religiosa tinha uma primazia indiscutível. Os alunos
participavam de orações e missa diária483 quando deviam manter uma postura firme
nos bancos de mãos postas sob o olhar atento dos assistentes salesianos prontos a
intervir ante qualquer deslize.

Com o Concilio Vaticano II e os documentos sobre o ecumenismo, integrados aos


outros documentos que sinalizam uma maior abertura para o mundo, a postura com
a religião tornou-se dialógica, crescendo o respeito por outras orientações religiosas,
a partir de uma visão ecumênica e também como reflexo da crescente secularização
da sociedade. Esta década marca também o início do fechamento dos grandes
internatos fazendo que diminuísse a incidência e influência dos educadores sobre os
educandos. Velhos salesianos nos oratórios e obras sociais continuavam ainda
vivenciando a prática da catequese tradicional, mas iam perdendo aos poucos
espaço frente à maior autodeterminação dos jovens e à não adesão do novos

482
- Manoel Isaú produziu um livro significativo onde trabalha “Os Internatos no Brasil”,
realizando na segunda parte do seu livro uma descrição da vida desses internatos com os
salesianos.Cf. SANTOS, 2000.
483
- No domingo eram duas missas.
309

salesianos a esse modelo tradicional. De outro lado as leis da educação nacional


entendiam que o Ensino Religioso nas escolas, mesmo confessionais, não possuía
uma finalidade catequética, mas sim da abordagem de princípios gerais na busca do
espiritual.

Neste século é pacífico que a catequese, enquanto doutrinação religiosa, fique


reservada para o ambiente das igrejas. No espaço educacional serão trabalhados
aspectos genéricos de formação humana, ainda que sob a luz de princípios
religiosos. No ambiente universitário a Antropologia Religiosa aborda o dado
religioso nos seus aspectos histórico, antropológico e social, em suma, como um
fenômeno.

Ao educador salesiano que professa a fé cristã e católica, cabe-lhe apresentá-la pelo


seu testemunho como cristão, como pessoa e profissional. Sua vida, seu
comportamento, sua bondade e sua disponibilidade revelarão para os discentes os
valores que sustentam sua existência podendo servir como atração para que os
alunos, livremente, procurem desvendar o que dá sentido à vida de seus
educadores. Interpelados pelo testemunho dos seus mestres busquem, então,
ainda livremente, aprofundar os mananciais da fé desses educadores e as
motivações para seu modo de vida e as motivações do seu modo de ser. Só então
se abrirá espaço para se entabular um diálogo pessoal ou em pequenos grupos à
luz da fé confessional.

João Bosco trabalhando nos difíceis tempos do século XIX acentuou a importância
do testemunho pela parábola conhecida como Sonho dos Dez Diamantes no qual
descreve como o salesiano deve ser484. Nesta parábola-sonho apresenta a

484
- (...) Parecia-me passear com os Diretores das nossas casas, quando apareceu entre nós
um homem tão majestoso que não podíamos pousar o olhar nele. Dando-nos um olhar, sem falar,
pôs-se a caminhar à distância de alguns passos de nós.

Ele estava assim vestido: Estava todo coberto por um rico manto à moda de capa. A parte
mais próxima ao pescoço era como uma faixa que se fechava na frente, e uma fitinha lhe pendia
sobre o peito.

Na faixa estava escrito com caracteres luminosos: “A Pia Sociedade Salesiana”, e na borda
da faixa estavam escritas estas palavras: “Como deve ser”.

Dez diamantes de grandeza e esplendor extraordinários impediam-nos de fixar o olhar, a não


ser com grande dificuldade, sobre aquele augusto Personagem.
310

descrição de um jovem salesiano com um rico manto preso por 10 pedras de


diamante. Esta parábola foi elaborada quando a congregação vivia um momento de
expansão485 significativa e os salesianos chamavam atenção da sociedade. A
descrição contextualizada por Bosco acontece num retiro espiritual dos líderes da
congregação. Descreve também o contra-testemunho486 de como o salesiano não

Três dos diamantes estavam sobre o peito, e estava escrito “Fé” sobre um, sobre o outro
“Esperança”, e “Caridade” naquele que estavam sobre o coração.

O quarto diamante estava sobre o ombro direito e trazia escrito “Trabalho”; sobre o quinto, no
ombro esquerdo, lia-se “Temperança”.

Os outros cinco diamantes ornavam a parte posterior do manto e estavam assim dispostos:

o maior e mais fulgurante estava no meio, como o centro de um quadrilátero, e trazia escrito
“Obediência”.

No primeiro à direita lia-se “Voto de Pobreza”.

No segundo, mais abaixo, “Prêmio”.

À esquerda, no mais elevado, estava escrito “Voto de Castidade”. O seu esplendor emitia
uma luz toda especial, e mirando-o atraía e aferrava o olhar como o ímã atrai o ferro.

No segundo à esquerda, mais abaixo, estava escrito “Jejum”.

Os quatro curvavam seus raios luminosos para o diamante do centro.


485
- 10 de dezembro de 1881.
486
-(...) Em meio àquele clarão apareceu novamente o Personagem de antes, mas com aspecto
melancólico semelhante a quem começa a chorar. O manto tinha-se tornado descolorido,
carunchado e rasgado.

No lugar onde tinham estado fixos os diamantes, havia um profundo rasgão ocasionado pelo
caruncho e por outros pequenos insetos.

“Olhai – Ele nos disse – e compreendei”.

Vi que os dez diamantes tornaram-se outros tantos carunchos que corroíam raivosamente o
manto.

Portanto, ao diamante da Fé sucederam: “Sono e acídia”.

À Esperança sucedera: “Risadas e banalidades indecorosas”.

À Caridade: “Negligência no entregar-se às coisas de Deus. Amam e buscam os próprios


gostos, não os ideais de Jesus Cristo”.

À Temperança: “Gula; o seu deus é o ventre”.

Ao Trabalho: “Sono, furto e ociosidade”.


311

deveria ser. A descrição fala por si. O que chama atenção é a posição dos
diamantes sobre o peito e os ombros. Eles são a parte visível dos seguidores de
João Bosco. Todos deveriam ver neles homens de Fé, repletos de Esperança,
voltados para o próximo pela Caridade, temperantes e trabalhadores. É uma
imagem religiosa e humana que cativa. Esta é, no pensamento de Bosco, o “cartão
de visita” que deve encantar a todos os que se encontram com os educadores
salesianos. No entanto, essa postura que deveria encantar, deveria também ser
sustentada por crenças interiores não visíveis e que estariam nas costas do jovem
também sustentando o manto e que são: A obediência entendia como respeito não
só às constituições da congregação, mas acima de tudo aos ensinamentos bíblicos:
a pobreza, a crença numa recompensa, a castidade e o jejum como disciplinadores
da vontade.

Em contato com as classes populares, da qual também fazia parte, João percebera
o grande mal que faziam à igreja os maus sacerdotes com seus contra-testemunhos.
Entende que suas idéias educacionais seriam apenas divagações caso não viessem
acompanhadas de um modo de vida que correspondesse ao que ensinavam. Ao
Educador salesiano cabe ser uma presença significativa junto dos estudantes a
ponto de entusiasmá-los com seu testemunho de vida e fé. Está é a forma
moderna de se anunciar a fé religiosa na sociedade atual.

Finalmente a Bondade fecha o círculo dos princípios salesianos e é a parte mais


visível que costura, dá sentido, significado e força ao projeto educacional salesiano.
O jovem universitário deve se sentir amado, acolhido e respeitado pelo educador. A
presença será técnica, a razão fria, a religião formal se não estiverem imersas num

No lugar da Obediência nada havia além de um grande e profundo rasgão, sem qualquer
escrito.

À Castidade: “Concupiscência dos olhos e soberba da vida”.

À Pobreza sucedera: “Cama, roupa, bebidas e dinheiro”.

Ao Prêmio: “Nossa herança serão os bens da terra”.

Ao Jejum: um rasgão, sem nada escrito.


312

relacionamento de absoluta valorização do outro que se sente o centro das atenções


e o sentido da vida do educador. Para que isso aconteça o educador salesiano
deverá ser o primeiro a chegar e o último a sair dos ambientes da universidade,
sendo não apenas professor, mas amigo, presença que ajuda na biblioteca,
conversa nos pátios, atende nos escritórios, acolhe, valoriza,consola, participa dos
esportes, senta-se nos barzinhos e cantinas nos descontraídos papos nos intervalos
e ocasiões diversas.

É, em suma, uma presença competente no âmbito da racionalidade, digna na sua


coerência de homem religioso, que dá o primeiro passo que, em suma, ama e se faz
amar. O pensamento educacional salesiano elaborado por João Bosco literalmente
se encarna na pessoa do educador. É uma presença física e espiritual que não é
captada em livros com princípios e propostas, mas se encarna e se transmite num
modo de ser e num estilo de vida. Dois conceitos sinalizam se ela é praticada:
amor e clima de família.

As instituições nascem, crescem, amadurecem, envelhecem e morrem. Afirmávamos


nas primeiras linhas deste trabalho. E continuávamos: E, em se tratando de uma
analogia, podem ao invés de envelhecer e definhar, explodir em vida produzindo
sementes e lançando rebentos487. O Centro Universitário Salesiano de São Paulo é
um dos braços do projeto educacional, vivido e teorizado por João Bosco apesar de
não ter sido pensado por ele. A partir da idéia, com Dom Bosco e com os tempos, se
busca construir sua identidade afinada com os princípios do fundador através de
intérpretes que procuram equacionalizar os princípios fundacionais com os desafios
dos tempos atuais e com o perfil do jovem universitário deste século.

As IUS definem que é fundamental se ter uma identidade clara e inequívoca como
instituição católica e salesiana. O Estudo histórico da vida do fundador e da origem
de sua congregação, a análise de seu transplante para o Brasil e o lugar que aqui
ocupou na educação da juventude faz compreender que lugar deve ocupar o ensino
superior salesiano na nossa sociedade. A sondagem feita junto dos alunos, longe de
pretender ser uma peça de pesquisa em sentido estrito, permitiu algumas
sinalizações já percebidas empiricamente pelos que labutam na Instituição.

487
- Cf. p. 6.
313

Há descompasso entre o que João Bosco pensou para suas obras e o que é
vivenciado hoje pelo UNISAL. Alguns elementos podem ser sinalizados:

1. A ausência física, intelectual e espiritual dos salesianos no cotidiano da


instituição.

2. O desconhecimento orgânico e sistemático de Dom Bosco por docentes e


discentes, dos princípios educacionais salesianos, da congregação e do sistema
preventivo.

3. Faltam princípios e conceitos de salesianidade nas ementas dos cursos e das


disciplinas, assim como nas práticas pedagógicas.

4. Pouco e confuso significado da pastoral.

5. Uma formação humanística e religiosa sem um referencial teórico claro.

6. Pouca incidência dos valores salesianos na vida dos educandos.

7. Pouca significatividade do “mundo salesiano” para os que escolhem o ensino


superior.

8. Existência de um clima onde ainda se respira valores salesianos captados “no


ar” pelos destinatários, a saber: ambientes de família, acolhimento,
responsabilidade e profissionalismo. Estes elementos, porém,não estavam
assosicados aos salesianos.

Uma identidade frágil ou pouco definida faz com que se procure firmá-la através de
ações superficiais e periféricas que acabam se organizando como simulacro daquilo
que de fato não existe. Este ponto tem sido diagnosticado tanto pela IUS, como pela
direção do UNISAL de São Paulo. As tentativas de solução, porém, têm sido tópicas
e de certo modo irrelevantes porque não são fruto de profunda reflexão e, na
verdade, só terão impacto real quando forem fruto de reflexão intramuros do mundo
acadêmico. Soluções elaboradas externamente e sem terem sido gestadas pela
racionalidade acadêmica (sem vírgula) serão meros apliques que mais fomentarão
o simulacro.
314

João Bosco, sua vida, sua obra, seu tempo e sua pedagogia devem ser objeto de
estudo denso e sistemático que permitam reconstituir os desafios superados e os
critérios atemporais assumidos na educação. Só assim estará se superando a
presente fragmentação onde o discurso “institucional dos padres” não corresponde à
práxis da docência e se teatraliza numa adesão a princípios de que fato não se
conhecem e aos quais muito menos se adere.

“Pitadas” de salesianidade esporádicas só fortalecem uma falsa identidade, a um


simulacro que reforça a dimensão cenográfica de uma pretensa educação salesiana.
Na academia formam-se líderes da sociedade que com facilidade diagnosticarão a
falta de embasamento de proposições inconsistentes. Só a academia pode gerar a
academia. Salesianidade não se propõe com fervorinhos afetivos. Constrói-se com
produção do saber ao qual se adere por sua base racional.

Mito, Rito e Símbolo. Três realidades para se avaliar uma instituição. Somente uma
delas é controlável pela gestão universitária: o Mito fundacional. Ele deve ser
narrado, estudado, aprofundado, passado pelo crivo do pensamento acadêmico. Ele
estará inicialmente nas mentes e deverá ser acolhido por ela como algo lógico,
verdadeiro e bom. Somente quando este conhecimento se tornar crença, em que a
mente “baixar armas” para colocá-lo afetivamente “no coração”, só então brotará o
Rito repleto de significado porque nascido da vida. Então as marcas salesianas,
seus monumentos, seus adereços, simbolizarão algo que se “metaboliza” no homem
integrando Razão e Coração. Razão porque lógico. Coração porque assentimento
da vontade em algo que se reconhece como bom e verdadeiro. Então a frase do
fundador ganhará um sentido afetivo também para um taciturno intelectual:
educação é obra do coração.

É um longo caminho a ser encetado pelo UNISAL na construção de seu perfil


universitário. Não existem fórmulas, mas árduo trabalho acadêmico, que, se bem
sucedido trará seus frutos na formação de pessoas que, ocupando espaços na
sociedade e influindo na sua construção e nos seus caminhos, poderão ser mais que
simples profissionais. Esta é uma opção clara a ser feita para que este centro de
estudo possa construir sua identidade. Sua identidade salesiana.
315

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325

GLOSSÁRIO

Amorevolezza Bondade, carinho, ternura.


Casa Comunidade religiosa
Congregação Diz respeito a uma ordem religiosa
Refere-se a uma das instâncias de governo, mundial,
Conselho
regional ou local. Deve ser entendido no seu contexto.

Conselho da Casa Ministério que assessora e governa uma casa ou


comunidade religiosa e as obras a ela anexas.
Conselho da
O mesmo que conselho da casa.
comunidade
Conselho
Ministério que assessora e governa uma Inspetoria.
Inspetorial
Ministério que assessora e governa a congregação em
Conselho mundial
nível mundial.
Possuir os valores e as praticas educacionais do
Coração oratoriano
sistema preventivo de Dom Bosco.
Diretor Superior de uma comunidade ou casa religiosa.
Dom Padre, italiano
(FS) diz respeito a diversas fundações que se
inspiraram na espiritualidade e pedagogia salesiana e
Família Salesiana
que são reconhecidas pelo Reitor-mor e seu conselho.
Não estão subordinados à congregação salesiana.
Inspetor Provincial, responsável pelo governo de uma região.
Inspetoria Região governada por um inspetor.
Instituições Universitrárias Salesiana. Organismo
intrnacional ligado ao Reitor-mor e seu conselho e que
IUS
coordena as atividades do ensino superior salesiano
em nível mundial.
Leigo Pessoas que não possuem votos religiosos.
Obra Frente de ação sob a coordenação de uma casa
Jovem, adolescente ou criança que frenquenta o
Oratoriano
oratório.
326

Oratório Forma simplificada de oratório festivo.


Espaço recreativo e catequético da trabalho dos
Oratório Festivo salesianos. Caracteriza-se pela sua informalidade e
onde se valoriza atividades lúdicas e recreativas.
Ato de ingressar numa ordem religiosa assumindo
Profissão seus compromissos e os votos de pobreza, obediência
e castidade.
Profissão Forma simplificada de se referir à profissão religiosa.
Consagração da vida numa congregação religiosa
assumindo seu estilo de vida, seus compromissos
Profissão religiosa
pastorais e emitindo os votos de pobreza, obediência e
castidade.
Reitor-Mor Superior mundial da Congregação salesiana
Salesiana (FMA) Ramo feminino da congregação salesiana.
O conhecimento e/ou a prática dos princípios
Salesianidade
salesianos de educação.
(SDB) sentido estrito: pessoa comprometida na
congregação salesiana por Profissão. Sentido amplo:
Salesiano
todos os que seguem os princípios educacionais e
pedagógicos de Dom Bosco
Salesiano coadjutor Vide salesiano irmão.
(CCSS) Leigo que assume os compromissos da
Salesiano
educação e pedagogia salesiana mas sem votos
cooperador
religiosos equivalente às ordens terceiras.
Salesiano -irmão Religioso leigo comprometido pela profissão religiosa.

Salesiano padre Religioso sacerdote comprometido pela profissão


religiosa.
Religioso que realizou a profissão definitiva em sua
Salesiano Perpétuo
vida.
É a síntese do sistema educativo de Dom Bosco
Sistema Preventivo apoiado na presença do educador e no tripé: Razão,
Religião e Bondade (Amorevoleza)
327

Oposto ao sistema preventivo baseia-se no castigo, no


Sistema repressivo
medo e na afirmação da autoridade dos superiores.
Sociedade São
Congregação salesiana
Francisco de Sales
Referente aos salesianos consagrados. Equivalente ao
Sócios
termo confrade nas ordens religiosas.
Vigário do reitor
Vice reitor mor.
mor
Compromisso de pobreza, obediência e castidade. É
Votos
uma das partes da Profissão Religiosa.
328

LINHA DO TEMPO

Data História salesiana História Geral


1789 Revolução Francesa
1804 Napoleão coroado Imperador da
França
1815 Nascimento de Dom Bosco Congresso de Viena
1817 Rússia- Revolução comunista
1841 Bosco ordenado sacerdote. Surge
o primeiro oratório
1847 Primeiro internato e casa do
oratório em Turim
1848 Publicação do Manifesto
Comunista.
1848 Revolução Européia.
Revoluções burguesas.
– Primavera dos povos.
1849 Pio IX foge de Roma sob a
ameaça do movimento de
unificação da Península.
1850 Com apoio militar da Áustria,
França e Espanha Pio IX retorna a
Roma.
Itália - Lei Sccardi abole as
imunidades eclesiásticas.
1853 Itália – Primeira escola Profissional
salesiana.
1855 Itália: Lei dos conventos: são
apropriados pelo Estado.
1859 Fundação da Sociedade São
Francisco de Sales488 – salesianos

488
- Entre 1859 a 1900 foram fundadas 247 casas na Itália, França, Espanha, Suíça, Áustria,
Bélgica,Portugal, Argentina, Uruguai, México, Colômbia, Chile, Equador, Paraguai, Venezuela,
Antilhas, Argélia, Tunísia.Cf. Narciso FERREIRA, (Apêndice) In, Morand WIRTH, De Dom Bosco aos
329

1860 Itália: Parte dos Estrados


Pontifícios é anexada ao Estado
Sardo.
1861 Itália: Proclamado o Reino da Itália
e dissolução dos Estados
Pontifícios.
1866 Itália: Suspensas as corporações
religiosas.
1867 Confisco dos bens eclesiásticos.
1869 Vaticano aprova os salesianos
1875 Chegada dos salesianos na
Argentina e França
1870 Tomada de Roma. Pio IX se auto-
declara prisioneiro do Vaticano.
1888 Morte de Dom Bosco
1877 Cegada dos salesianos ao Uruguai
1883 Chega dos salesianos a Niterói
1886 Chegada a São Paulo – Fundação
do Liceu de Artes e Ofícios
1988 Brasil – Lei áurea.
Proclamação da Republica
1890 Chegada a Lorena
1891 Leão XIII – Rerum Novarum
1892 Chegada a Guaratinguetá
1894 Chegada a Cuiabá e Pernambuco
1895 Fundações em: Ouro Preto e
Ponte Nova
Lorena – Fundação do Instituto de
Pedagogia e Filosofia.
1896 Fundação em Cachoeira do
Campo e Ipiranga

Nossos Dias entre a História e os Novos Desafios, Roma, LAS – Livraria do Ateneo
Salesiano,2000. pp.363-368 (No prelo – trad. Narciso Ferreira).
330

1897 Chegada a Campinas e Coxipó da


Ponte
Fundação da obra salesiana de
Campinas.
1899 Fundação Corumbá e Salvador
1900 Fundação em Jaboatão
1913 Transferência do Instituto de
Filosofia para Lavrinhas – SP
1914 Primeira Guerra Mundial
1929 Quebra da Bolsa de Nova York
Assinatura do tratado de Latrão.
1930 Golpe de estado. Getúlio Vargas.
Criação do Ministério da Educação
e Saúde.
1931 Criação primeiro curso superior
salesiano de Administração e
Finanças no Liceu Coração de
Jesus em São Paulo
1932 Manifesto dos pioneiros da
Educação.
Revolução constitucionalista.
1939 Segunda Guerra Mundial
1943 Retorno do Instituto de Filosofia
para Lorena.
1945 Extinção do curso de
Administração e Finanças,
substituído pelo curso de Ciências
Econômicas.
1948 Curso de Ciências Econômicas
reconhecido definitivamente e
transferido para a PUC-SP
1952 Fundação das Faculdades
Salesianas de Lorena.
331

Campinas: Fundação da Escola


Agrícola São José, que dará
origem posteriormente à ETEC e
FASTEC
1961 Primeira nave espacial tripulada
1962 Abertura do Concílio Vaticano II
1964 Golpe Militar
Acordo MEC-USAID
1967 Documento de Buga.
1968 Lorena – Greve dos 100 dias. Documento de Medellín
Movimento Estudantil de Paris.
Encontro da UNE em Ibiúna.
Festival Woodstock
Primavera de Praga
Ato Institucional no. 5
1969 Lorena: assume nova direção com
o fim de por ordem na casa de
formação.
1970 Lorena: termina a divisão de
classes por sexo.
1071 Aprovação da faculdade salesiana
de Americana.
1972 Fundação da FASTEC

1980 Campinas – Aprovação da


faculdade salesiana de tecnologia
– FASTEC

1979 Documento de Puebla


1991 Publicado: História do Colégio São
Joaquim (salesianos em Lorena).
1983 Fusão das faculdades salesianas
de Americana, Campinas e Lorena
332

fundando-se o Centro UNISAL.


1984 Redemocratização do Brasil
1989 Alemanha – Queda do Muro de
Berlim.
China – Massacre dos Estudantes
na Praça da Paz Celestial.
1993 Brasília – Fundação das IUS
1997 Reitor-mor assume o Ensino
Superior salesiano como
expressão moderna do carisma
salesiano.
Credenciamento definitivo do
UNISAL pelo MEC
1998 Roma – Segundo encontro das
IUS.
2001 Publicado: Salesianos em Americana
– 50 anos tecendo educaçã0
2003 Roma - Aprovação dos estatutos
das IUS
Publicado: Igreja, Estado, Sociedade
e Ensino Superior a faculdade
salesiana de Lorena.
Publicado o livro: Com Dom Bosco
e com os tempos História da
unidade de Campinas.
2009 UNISAL – Reforma dos Estatutos
extinguindo a figura do Diretor
salesiano, sendo a direção das
unidades confiadas a leigos.
333

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