Você está na página 1de 147

© Editora UFPR

JÒR.N RÜS6N
EO ENSINO DE HISTÓRIA
Financiamento
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Brasil e
Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) de Portugal.

Coordenação editorial
Daniele Soares Carneiro

Tradução
Marcos Roberto Kusnick, Johnny R. Rosa, Ana Claudia Urban,
Marcelo Fronza, Edilson Chaves e Estevão de Rezende Martins

Revisão das traduções


Maria Auxiliadora Schrnidt e Estevão de Rezende Martins
Capa
Rachel Cristina Pavim
Projeto gráfico e editoração eletrônica
Reinaldo Cezar Lima

Série Pesquisa, n. 168

UNIVERSIDADE FEDERAL D O PARANÁ


SISTEMA DE BIBLIOTECAS.
BIBLIOTECA CENTRAL - COORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS
J82 • Jòrn Rüsen e o ensino de história / organizadores : Maria
Auxiliadora Schrnidt, Isabel Barca, Estevão de Rezende
Martins - Curitiba: Ed. UFPR, 2010.
150 p. : tabs.; 20 cm. - (Série pesquisa ; n. 168).

Inclui bibliografias.
ISBN 978-85-7335-250-4

1. História - Estudo e ensino. 2. Historiografia. 3. Rüsen,


Jòrn - Crítica e interpretação. I. Schrnidt, Maria Auxiliadora
M. S. (Maria Auxiliadora Moreira dos Santos), 1948-. II.
Barca, Isabel. III. Martins, Estevão de Rezende. IV. Título.
V. Série.
CDD: 981

Bibliotecário: Arthur Leitis Júnior - CRB 9/Í548

ISBN 978-85-7335-250-4
Ref. 580

Direitos desta resevados à


Editora UFPR
Rua João Negrão, 280, 2 o andar - Centro
Caixa Postal 17309
Tel.: (41) 3360-7489 / Fax: (41) 3360-7486
80010-200 - Curitiba - Paraná - Brasil
www.editora.ufpr.br
editora@ufpr.br
2010
SUMÁRIO

7 Apresentação: historicidade e consciência


histórica

/ / Introdução: significados do pensamento de Jõrn Rüsen


para investigações na área da educação histórica

23 Didática da história: passado, presente e


perspectivas a partir do caso alemão

4 / Aprendizado histórico

5 7 O desenvolvimento da competência narrativa


na aprendizagem histórica: uma hipótese
ontogenética relativa à consciência moral

J() Experiência, interpretação, orientação: as três dimensões


da aprendizagem histórica

5?3 Narrativa histórica: fundamentos, tipos, razão

109 O livro didático ideal

129 Narratividade e objetividade nas ciências históricas


/
APRESENTAÇÃO

Historicidade e
consciência histórica

Estevão de Resende Martins

Jõrn Rüsen é professor emérito da Universidade de Bielefeld


(1989-1997), no estado alemão da Renânia do Norte-Vestfalia, onde
sucedeu na cátedra a Reinhardt KoseUeck. Antes fora professor na
Universidade de Bochum (1974-1989), na de Berlim e na de Brauns-
chweig. Sua carreira foi coroada com a presidência, por dez anos (de
1997 a 2007), de um dos centros mais destacados de investigação em
ciências humanas da Alemanha, o Instituto de Ciências da Cultura
(Kulturwissenschaftliches Instituí) do mesmo estado, na cidade de Essen.
Estudou História, Filosofia, Pedagogia e Literatura na Universidade de
Colônia, onde obteve o grau de doutor em 1966.
Rüsen milita, há décadas, com sua reflexão sobre os funda-
mentos da consciência histórica, do pensamento histórico, da cultura
histórica e da ciência histórica, desde a perspectiva de um humanismo
intercultural, de uma comunicação intercultural. Sua bibliografia arti-
cula História, Filosofia, Antropologia e Historiografia de modo com-
parativo, debruçando-se sobre as grandes linhas culturais do mundo
contemporâneo - em seus contatos e em seus estranhamentos. Seu
pano de fundo é, por certo, o modelo ocidental, de feitura européia.

* Professor e pesquisador da Universidade de Brasília.

7
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

co da historiografia. Historicamente, a historiografia pode ser vista à


luz da tendência geral que conduz as narrativas tradicionais para as
exemplares e as exemplares para as genéticas; as narrativas críticas
são catalisadoras. Gostaria de chamar esta tendência, nas palavras do
Iluminismo, de uma "história teórica" ou "hipotética". Por isso, não
quero atribuir a esta tendência um significado metafísico, mas sim a
qualidade de uma ordem racional da experiência histórica. Portanto, as
tendências não se separam da mudança temporal da historiografia da
História geral e não constituem uma esfera autônoma de Geistesgeschichte
(História intelectual); sua concepção serve como um espelho, o qual
mostra como o desafio da transformação temporal é respondido por
uma mudança estrutural da narrativa histórica.
A concepção das tendências dinâmicas internas na relação en-
tre os quatro tipos pode ser utilizada para periodizar a história da his-
toriografia. Nesta periodização os três tipos marcam os três principais
passos na evolução da consciência histórica desde o início das culturas
pré-neolíticas até as culturas pré-industriais, chegando às sociedades
modernas.
Nesta evolução, a aceitação e o significado do próprio tempo
se transformam. N o primeiro período, o curso do tempo se tornou
preso na eternidade; no segundo período, que em nossa cultura pode
ser traçado a partir de Heródoto a Voltaire, essa eternidade adquiriu a
qualidade de princípios supratemporais válidos, e, no curso do tempo,
ampliou-se para uma multidão de experiências; e, no terceiro período,
que começou na segunda metade do século XVIII, o tempo é tem-
poralizado: a autocompreensão humana não é mais vista como uma
rejeição em relação à variedade e à mudança, mas, ao contrário, é de-
finida por esta mudança e por esta variedade. A esfera da experiência
histórica real se torna infinita11.

11
Peter Rcill iluminou a parte alemã deste começo: The German Enlightenment
andthe Kise of Historicism. Berkeley, 1975. Cf. BLANK, H. W; RÜSEN, J. (Ed.)". Von der
Aufklãrung %um Tfistor/smus. Zum Structurvandeldes historischen Denkens. Paderborn, 1984.
(Historisch-politische Diskurse, v. 1). [0 Iluminismo alemão e a ascensão do historiásmo.
Berkeley, 1975. Cf. BLANK, H. W; RÜSEN, J. (Org.). Do Iluminismo ao historiásmo.
Para uma mudança estrutural do pensamento histórico. Paderborn,! 984. (Discurso histórico
e político, v. 1)J.

105
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

Rüsen é amplamente conhecido por sua trilogia de Teoria da


História, cuja tradução brasileira foi publicada pela Editora da Univer-
sidade de Brasília: I: Ra^ão Histórica (2001), II: Reconstrução do Passado
(2007), e III: História Viva (2007).
Os textos reunidos no presente volume contribuem para ex-
pandir o acesso dos leitores de língua portuguesa ao apresentarem a
faceta do pensamento rüseniano que lida com o processo de formação,
por aprendizado, da consciência histórica. Essa consciência se expri-
me pelo discurso articulado em forma de narrativa. O aprendizado se
realiza ao longo de uma dupla experiência: uma é a do contato com o
legado da ação humana, acumulada no tempo, e que chamamos comu-
mente de 'história', não raro com inicial maiúscula. Esse contato se dá
de forma espontânea, no convívio social do quotidiano, nos múltiplos
âmbitos da experiência concreta vivida. Essas experiências emolduram
as tradições, as memórias, os valores, as crenças, as opiniões, os hábitos
que se acumulam e nos quais se formam, se forjam os agentes, desde
pequeninos - a começar pela linguagem e pelo convívio familiar. A
outra experiência é a escolar. Numa como noutra se pode dizer que
há um aprendizado de duas mãos: aprende-se com o que se encon-
tra ou com quem nos encontramos; inversamente, aprendem conosco
aqueles com quem convivemos e, a partir de nossas ações concretas,
produz-se no mundo vivido realidade transformada. Os processos de
mediação são constantes e intercambiáveis.
Rüsen está atento à experiência elementar, própria ao apren-
dizado espontâneo quanto induzido, que por tradição privilegia (o que
é normal) o familiar, o costumeiro. Sua proposta de reflexão quanto
aos critérios de orientação do agir humano no tempo, de modo que se
viabilize suprir as carências existenciais, que constata serem corriqueiras
entre nós, fá-lo propor linhas de análise quanto à expressão narrativa
nas suas três versões mais comuns: a da linguagem do quotidiano, a da
historiografia e a da linguagem do ensino. Considera que o recurso à es-
tética do estilo e à retórica da narração é necessário, e mesmo intrínseco,
ao processo discursivo em que o pensamento e a consciência histórica
se exprimem. E m tempos de racionalidade argumentativa, no entanto,
Rüsen exige que a competência teórica e metódica na produção do co-
nhecimento histórico confiável esteja à base da competência narrativa.

9
Jõrn Rüsen

Esforça-se, sistematicamente, todavia, para escapar à clássica armadi-


lha do etnocentrismo, ao estudar as civilizações e os valores com que
entramos em contato desde que a expansão européia se acelerou, a
contar do século 15. Dentre essas experiências diversas de consciência
histórica, Rüsen tem analisado em especial as culturas chinesa, sul-afri-
cana e islâmica. Três universos de experiência histórica que, em parti-
cular no final do século 20, tornaram-se importantes para a formação
da consciência histórica de todos os que são modelados na tradição
européia e nos mundos em que esta prevaleceu no ordenamento cultu-
ral, como nas Américas.
O humanismo fundante, que Rüsen adota e expõe, constitui-se
em uma espécie de mínimo denominador comum a todo e qualquer
agente racional humano, pouco importa onde, quando ou como. Para
além do laivo metafísico presente nessa visão, seu substrato é a con-
cepção geralmente aceita dos direitos do homem e do cidadão, em suas
diversas expressões desde a declaração da Virgínia, em 1776, até as que
vieram a ser concretamente debatidas e adotadas no espaço público
internacional a partir de 1948. A historicidade empírica da realidade
das sociedades e das culturas, que envolve a cada um de nós como in-
divíduo pensante e agente, é, por conseguinte, o ponto de partida para
encontrar, em sua diversidade, o que nos faz iguais, livres e solidários.
Ou o que nos deveria fazer iguais, livres e solidários.
Dentre as diferentes razões que Rüsen entende terem causado,
no passado, o afastamento e mesmo a contraposição entre os seres
humanos, sob formas às vezes radicais, surge uma que ele considera
de especial relevância: a de um aprendizado histórico capenga, unila-
teral, autocentrado, discriminante. Desde muito cedo, já que a cátedra
que ocupou em Bochum incluía em suas diretrizes programáticas a
preocupação com a didática da História, Rüsen refletiu e fomentou a
crítica dos processos de aprendizado, formadores da subjetividade em-
piricamente preenchida pela experiência do tempo, no tempo e sobre
o tempo. Rüsen considera a didática em duas dimensões: a tradicional,
voltada para o sistema escolar institucionalizado, e a genérica, social,
em que pensar o tempo vivido se faz no dia-a-dia, por um sem número
de meios. Modernamente, é de reconhecer que o ambiente escolar tem
um peso grande nesse processo de aprendizado. Mas não é único.

8
INTRODUÇÃO

Significados do pensamento de
Jõrn Rüsen para investigações na
área da educação histórica

Maria Auxiliadora Schmidf


Isabel Barca"'
Tânia Braga Garáa***

A investigação no domínio da educação histórica pressupõe


que a aprendizagem da história seja considerada pelos jovens como
significativa em termos pessoais, de modo a lhes proporcionar uma
compreensão mais profunda da vida humana. Uma das linhas mais fru-
tuosas desta pesquisa visa compreender as idéias de crianças e jovens
na perspectiva (confirmada por vários estudos essencialmente qualita-
tivos) de que é possível a construção de idéias históricas gradualmente
mais sofisticadas, no que respeita à natureza do conhecimento histó-
rico. Tal questão implica uma especial atenção às idéias "de segunda
ordem" que os alunos tacitamente constróem ao aprenderem a história
substantiva (LEE, 2005). Por idéias de segunda ordem, em história,
entendem-se os conceitos em torno da natureza da história (como ex-
plicação, objetividade, evidência, narrativa) subjacentes à interpretação

* Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Paraná.


" Professora e pesquisadora da Universidade do Minho-Portugal,
*" Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Paraná.

11
Jõrn Rüsen

de conceitos substantivos tais como ditadura, revolução, democracia,


Idade Média ou Renascimento.
A esta preocupação central juntou-se, recentemente, a de se
indagar, também, quais os "usos" que os alunos fazem da história em
termos da sua orientação temporal. A atenção ao conceito multifaceta-
do de consciência histórica emergiu pelos trabalhos do filósofo Rüsen
e numa feliz convergência com os contributos de Lee (2002), Wertsch
(2002) e Seixas (2004). O interesse atribuído a esta problemática tem a
ver, essencialmente, com a preocupação sobre "para que serve apren-
der história?", e nela incluem-se os estudos sobre concepções dos jo-
vens, nomeadamente os que exploram as idéias expressas em narrativas
por eles construídas e as mensagens nucleares sobre o passado a elas
subjacentes.
Como salienta Rüsen, a narrativa é a face material da consci-
ência histórica. Neste contexto, a narrativa é entendida como a forma
usual da produção historiográfica, que pode emanar de escolas diver-
sas. Pela análise de uma narrativa histórica ganha-se acesso ao m o d o
como o seu autor concebe o passado e utiliza as suas fontes, bem como
aqs tipos de significância e sentidos de mudança que atribui à história.
Ela espelha por isso, tácita ou explicitamente, um certo tipo de cons-
ciência histórica, isto é, as relações que o seu autor encontra entre o
passado, o presente e, eventualmente, o futuro, no plano social e indivi-
dual. N o que concerne à Educação Histórica formal, ela será um meio
imprescindível para as crianças e jovens exprimirem as suas compreen-
sões do passado histórico e consciencializarem progressivamente a*sua
orientação temporal de forma historicamente fundamentada.
Esta conceitualização tem inspirado trabalhos no Brasil e em
Portugal.
A presença das idéias de Jõrn Rüsen nas investigações reali-
zadas no Brasil, na Universidade Federal do Paraná, data do início do
século XXI, quando as contribuições desse autor, particularmente no
que se refere à sua tipologia sobre a consciência histórica, tornaram-se
referência para a análise da consciência histórica de crianças e jovens.
Nesse sentido, destacam-se os trabalhos que começam a ser realizados,
a partir de 1996, no âmbito do projeto Recriando Histórias, coorde-
nado pelas pesquisadoras Maria Auxiliadora Schmidt e Tânia Braga

12
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

Garcia. Esse projeto, já em sua quarta fase, desenvolve investigações


com professoras e crianças dos anos iniciais, no sentido da exploração,
em sala de aula, de documentos guardados em "estado de arquivo fa-
miliar", bem como da produção de narrativas que são sistematizadas
sob a forma de um manual sobre a história da localidade, produzido
pelas crianças e professoras, sob a supervisão das investigadoras da
Universidade Federal. Segundo Garcia (2008, p. 130),

adotar o conceito de consciência histórica, na concepção


de Rüsen, como categoria articuladora de análises sobre
resultados da aprendizagem de conhecimentos históricos
permitiu uma aproximação com idéias construídas pelo
educador brasileiro Paulo Freire, especialmente no que se
refere à passagem da consciência ingênua para a consciência
crítica, movimento este responsável por mudanças que
educadores e educandos explicitam em sua compreensão do
mundo.

Ainda nesse momento, como resultado de investigações reali-


zadas na esteira das pesquisas sobre os jovens e a consciência histórica
no âmbito europeu, Schmidt (2002) realiza investigação comparativa
entre consciência histórica de jovens portugueses e brasileiros. Os re-
sultados indicaram a existência de elementos comuns entre ambos,
analisados a partir de estudo qualitativo, na perspectiva da tipologia
apontada por Jõrn Rüsen.
A convivência do grupo brasileiro com a produção de investi-
gadores da área da Educação Histórica ampliou o debate e as possibili-
dades de referência à obra de Rüsen para as investigações relacionadas
ao ensino de história. É nesse momento, a partir de 2003, que foi cons-
tituído o Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica do Programa
de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná, com a conse-
qüente expansão das investigações e publicações referenciadas na obra
desse autor. O conjunto de produções permitiu que fosse realizado,
em maio de 2010, o encontro " J ° r n Rüsen e o ensino de história no
Brasil", como uma primeira tentativa de publicizar os resultados dos
trabalhos realizados e divulgar o pensamento desse autor entre aqueles
comprometidos com o ensino de história.

13
Jõrn Rüsen

A partir do referencial rüseniano, investigadores do Labora-


tório de Pesquisa em Educação Histórica da UFPR têm definido e
apreendido diferentes temáticas relacionadas à Educação Histórica
e seus produtos englobam desde dissertações de mestrado, teses de
doutorado, artigos e sistematizações, que vêm sendo apresentados em
congressos e encontros nacionais e internacionais, além de publicações
já realizadas ou em andamento.
Além da continuidade das investigações pertinentes à análise
da consciência histórica de crianças, jovens e professores, a presença
do pensamento rüseniano. tomou outras abrangências nas investiga-
ções. Há um conjunto de pesquisas cuja preocupação tem sido analisar
a natureza da Didática da História no Brasil, a partir, principalmente,
dos contributos de Rüsen sobre a forma de aprender e ensinar a histó-
ria. Nesse sentido, o autor permite que se focalize a Didática da Histó-
ria a partir do desenvolvimento da consciência histórica. A partir desse
referencial, os trabalhos de Urban (2009) e Rodrigues Júnior (2009),
com base na análise de documentação e questionários, indicaram um
processo de pedagogização e psicologização da Didática da História no
Brasil, similar ao caso alemão analisado por Jõrn Rüsen. Esse processo
também foi apontado no trabalho de Grendel (2009), nas investigações
que realizou sobre a maneira pela qual jovens alunos registram idéias
históricas em seus cadernos. E m termos conclusivos, além de outras
questões, esses trabalhos mostram a contribuição do pensamento rüse-
niano para um repensar da Didática da História referenciada na teoria
da história.
Na mesma direção, várias investigações vêm sendo realizadas
sobre manuais didáticos, tendo como referência as considerações de
Jõrn Rüsen sobre o livro de texto ideal para a formação da consciência
histórica, como o trabalho de Medeiros (2009). Analisando materiais
didáticos produzidos para uso de jovens estudantes, Medeiros (2009)
indica a predominância de propostas articuladas a concepções tradicio-
nais da consciência histórica.
Na perspectiva da investigação de narrativas históricas de alu-
nos e professores, trabalhos vêm sendo desenvoMdos, como os de
Gevaerd (2009) e Compagnoni (2009). E m sua tese de doutoramento,
Gevaerd (2009) analisa a relação entre narrativas de manuais, narrativas

14
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

produzidas por professores em aulas de história e narrativas de alunos,


indicando também a predominância de formas tradicionais de narra-
tivas históricas e, portanto, as dificuldades e as potencialidades em se
desenvolver, no âmbito da educação histórica escolar, outras possibili-
dades narrativísticas. O mesmo caminho foi percorrido por Compag-
noni (2009), analisando narrativas produzidas por jovens alunos após
visitas a museus. Já a investigação de Germinari (2010) permitiu obser-
var inter-relações existentes entre uma cultura política relacionada à ci-
dade de Curitiba como "cidade espetáculo", a formação da consciência
histórica e da identidade em jovens que vivem em Curitiba, indicando
a necessidade de renovações no campo das propostas curriculares. O
mesmo indicaram os trabalhos de Sobanski (2008) e Castex (2008),
preocupadas em investigar a presença de determinados conceitos his-
tóricos como Ditadura Militar e a idéia de África na educação histórica
de jovens estudantes.
Em síntese, pode-se afirmar que o pensamento rüseniano tem
contribuído fundamentalmente para o avanço das investigações na área
da Educação Histórica na Universidade Federal do Paraná, constituin-
do o substrato teórico do projeto "Aprender a ler, aprender a escrever
a História", financiado pelo CNPq, e que tem por finalidade principal
a sistematização de contributos fundantes de uma teoria da aprendiza-
gem histórica.
Em Portugal, os trabalhos desenvolvidos no âmbito dos Pro-
jetos HICON (Consciência Histórica — Teoria e Práticas) desde 2003, coor-
denados por Isabel Barca e financiados pela Fundação para a Ciência
e Tecnologia, propõem-se incidir na análise de concepções de alunos e
professores em Portugal, Brasil e Cabo Verde, com inspiração seminal
nos debates epistemológicos desenvolvidos por Rüsen. Uma das preo-
cupações nestes Projetos quanto ao uso da história para a orientação
temporal dos jovens consiste em contribuir para combater uma idéia
comumente aceita de confinar a noção de consciência histórica a uma
redutora identidade nacional, local ou outra, ou à construção de um
perfil único de cidadão, à volta do qual sabemos não existir consenso.
A matriz conceituai apresentada por Rüsen (1993), para discutir as re-
lações entre o saber histórico e a vida prática (kbenpraxis), tem forne-
cido um suporte teórico valioso para perceber a noção de consciência

15
Jõrn Rüsen

histórica: a história com as suas teorias, métodos e formas alimenta-se


dos interesses e funções da vida prática, sendo desejável que esta seja,
por sua vez, por ela alimentada de forma consistente e abrangente. E
fundamental acentuar que esta proposta de orientação temporal para a
vida prática contrasta com uma outra idéia, que é a de uma utilização
da história movida por interesses particulares, ao serviço de identidades
exclusivistas, sejam de caráter político, religioso, econômico, cultural.
Contudo, esta recusa em olhar a história como uma disciplina escolar
para uma cidadania com enfoques particulares não significa que ela seja
encarada como um saber inerte, para simples deleite subjetivo: espera-
-se que o aparato conceituai da história habilite os jovens a desenvolve-
rem de forma objetiva, fundamentada porque assente na análise crítica
da evidência, as suas interpretações do mundo humano e social, per-
mitindo-lhes, assim, melhor se situarem no seu tempo. A consciência
histórica será algo que ocorre quando a informação inerte, progressi-
vamente interiorizada, torna-se parte da ferramenta mental do sujeito e
é utilizada, com alguma consistência, como orientação no quotidiano.
Sob este enquadramento, os estudos de consciência histórica
têrp explorado idéias dos alunos portugueses sobre mudança (MA-
CHADO, 2006), significância (MONSANTO, 2004; CASTRO, 2006),
explicação (DIAS P., 2006), multiperspectiva (GAGO, 2007) e evidên-
cia histórica (SIMÃO, 2007), conceitos que, à luz desta proposta filo-
sófica, surgem com contornos complexos e variáveis, e com possibili-
dades de gerar conexões entre consciência histórica e visões de inter-
culturalidade (CASTRO, 2006; DIAS X., 2008), educação patrimonial
(PINTO, 2007) e cidadania (MORAIS, 2005). Existe evidência de que
alguns jovens manifestam já noções com alguma sofisticação destes
conceitos, muito embora a maior parte dos alunos participantes nos
estudos revele idéias que urge modificar, para que possam estabelecer
relações temporais significativas e frutuosas e, assim, darem sentido
humano ao mundo.
Ainda no âmbito desses Projetos, têm sido analisadas narra-
tivas construídas por jovens (do ensino secvadário e estagiários de
História) sobre o passado contemporâneo, mdagando-se quais a es-
trutura, marcos cronológicos, marcadores, significados de identidade
e sentidos de mudança subjacentes a essas narrativas (BARCA, 2006,

16
Jòrn Rüsen e o Ensino de História

2008; MAGALHÃES, 2006). No que respeita à estrutura da narrati-


va, as produções dos alunos apresentaram uma característica princi-
pal: enquanto as suas "narrativas nacionais" pareciam razoavelmente
substanciadas e sob forma narrativa, a maioria dos alunos descreveu
em escassas linhas a história do mundo. Os marcos comuns a quase
todas as narrativas nacionais centraram-se no período da ditadura e na
reconquista da liberdade do país em 1974. Um homogêneo "nós", que
vence os seus problemas, com aventuras e desventuras comuns, apare-
ce como o principal agente nesta narrativa em que não existem heróis
individuais, mas surge, quase sempre, um vilão: o ditador Salazar. Alu-
sões à luta pelos direitos da mulher, à independência das colônias afri-
canas ou à formação da União Européia são apenas mencionadas por
alguns poucos, neste "grande quadro" onde as identidades de sentido
múltiplo não são evidentes. Contudo, há que realçar, esta mensagem
nuclear saúda a liberdade reconquistada contra a opressão e por isso
difere, necessariamente, da que era veiculada pela escola nos tempos
da ditadura, e que exaltava um país que lutava sempre e corajosamente
contra inimigos externos... A mudança é concebida como progresso,
ou linear, ou equilibrado quando a ocorrência de aspectos negativos no
presente também é reconhecida.
Contrastando com o quadro geral das narrativas nacionais dos
alunos, a sua "história" do mundo contemporâneo tomou massiva-
mente a forma de breves narrativas fragmentadas, e os poucos marcos
cronológicos do passado reportam-se às duas guerras mundiais. Des-
de as listas de eventos até as narrativas emergentes acerca do mundo
contemporâneo (não aparecem narrativas "completas"), as produções
tendem a salientar características violentas do mundo, embora algumas
refiram ou discutam também o progresso científico e tecnológico. O
sentido de mudança apresenta uma direção negativa - linear nuns ca-
sos, contrabalançada noutros - no passado contemporâneo global. E
tal como nas "narrativas" do passado "nacional", estas revelam poucas
personagens individuais, que tendem a ser vistas como vilões ou víti-
mas. Se considerarmos o nível estrutural e substantivo das produções
como indicadores identitários dos participantes, parece que estes jo-
vens constróem uma identidade nacional mais forte e mais positiva do
que a identidade humana global.

17
Jõrn Rüsen

Além destes estudos com alunos portugueses, desenvolvem-se


ainda estudos qualitativos sobre as narrativas de jovens portugueses,
brasileiros e cabo-verdianos (SANCHES, 2008; BARCA e SCHMIDT,
2009; CASTRO e SANCHES, 2009). Os jovens cabo-verdianos asso-
ciam a sua identidade a valores culturais e políticos representados por
personagens sobretudo do seu país, embora pontualmente reconhe-
çam também o contributo, positivo ou negativo, de personagens de
outros países e continentes para a vida em Cabo Verde. Relativamente
à análise comparativa das narrativas de jovens portugueses e brasilei-
ros, participantes em tarefas idênticas, um dos resultados interessantes
que emergiram é que, se os dois grupos partilham uma idéia de pro-
gresso, os jovens portugueses veem-se como espectadores da história,
enquanto os jovens brasileiros se integram na história como agentes de
mudança, perspectivando o futuro.

Referências
ALVES, Olinda. Concepções de professores e alunos sobre significância histórica: um
estudo no 3.° ciclo do ensino básico. 2007. Dissertação (Mestrado) - Univer-
sidade do Minho, Braga, 2007.
BARCA, Isabel. Consciência histórica: teoria e práticas. As mensagens nucle-
ares das narrativas dos jovens portugueses. Revista de Estudos Curriculares, v. 4,
n. 2, p. 195-208,2006.
BARCA, Isabel. Identities and history: students' accounts in Portugal. Inter-
nationalJournal of HistoricalLearning, Teaching and Research, v. 8, p. 19-27, 2008.
BARCA Isabel; SCHMIDT, M. Auxiliadora. Consciência histórica: um diálogo
entre países. Comunicação apresentada em Simpósio, no Congresso Luso-
-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Universidade do Minho.
CASTEX, Lílian Costa. O conceito substantivo Ditadura Militar Brasileira
(1964-1984) na perspectiva de jovens brasileiros: um estudo de caso em esco-
las de Curitiba-PR. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2009.
CASTRO, Júlia. A interculturalidade e o pensamento histórico dosjovens. Tese (Dou-
toramento) - Universidade do Minho, Braga, 2006.
CASTRO, Júlia; SANCHES, Graça. Idéias de alunos cabo-verdianos e portugueses
sobre identidade e interculturalidade: estudos em significância histórica. Comuni-

18
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

cação apresentada em Simpósio, no Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciên-


cias Sociais, Universidade do Minho, 2009.
COM'?AGNONI, Alamir. Em cada museu que a gente for carrega um pedaço dele:
compreensão do pensamento histórico de crianças em ambiente de museu.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009.
DIAS, Paula. As explicações dos alunos sobre uma situação histórica: um estudo com
alunos do 3.° ciclo do ensino básico. Dissertação (Mestrado) - Universidade
do Minho, Braga, 2006.
DIAS, Xavier. A identidade local numa abordagem intercultural: um estudo com
alunos da Ilha da Madeira. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Minho,
Braga, 2008.
GAGO, Marília. Concepções de professores sobre narrativa e consciência histórica. Tese
(Doutoramento) - Universidade do Minho, Braga, 2007.
GARCIA, Tânia Braga. Estudos sobre consciência histórica na Universidade
Federal do Paraná. In: BARCA, Isabel (Org). Estudos de consciência histórica na
Europa, América, Ásia e África: actas das 7.as Jornadas Internacionais de Educa-
ção Histórica. Braga: Universidade do Minho. 2008. p.123-133.
G E R M I N A M , Geyso Dongley. A história da cidade, consciência histórica e identida-
des de jovens escolarizados. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2010.
GEVAERD, Rosi Terezinha Ferrarini. A narrativa histórica como uma maneira de
ensinar e aprender história: o caso da história do Paraná. Tese (Doutorado) - Uni-
versidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009.
G R E N D E L , Marlene. De como a didati^açao separa a aprendizagem do seu objeto:
estudo a partir da análise de cadernos escolares. Tese (Doutorado) - Universi-
dade Federal do Paraná, Curitiba, 2009.
LEE, Peter. Walking bachvards into tomorrow: Historical consciousness and un-
derstanding history. Centre for the Study of Historical Consciousness, Uni-
versity of British Columbia, Vancouver, 2002. p. 1-45. Disponível em: <\vww.
cshc.ubc.ca>. Acesso em: 25/07/2009.
LEE, Peter. Putting Principies into Practice: Understanding History. In:
DONOVAN, M. BRANSFORD, J. (Eds.). How Students Uarn: History,
Matematics, and Science in the Classroom. Washington, DC: The National
Academies Press, 2005. p. 31-78.
MACHADO, Elvira. Mudança em história: concepções de alunos do 7.° ano de
escolaridade. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Minho, Braga, 2006.

19
Jõrn Rüsen

MAGALHÃES, Olga. Identidade nacional e identidade internacional: um es-


tudo com alunos do 10.° ano de escolaridade. Revista de Estudos Curriculares, v.
4,n.2,p.209-216,2006.
MEDEIROS, Daniel Hortêncio de. A formação da consciência histórica como objeti-
vo do ensino de história no ensino médio: o lugar do material didático. Tese (Douto-
rado) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005.
MONSANTO, Márcia. Concepções de alunos sobre significância histórica no contexto
da história de Portugal: um estudo com alunos do 3.° ciclo do ensino básico e
secundário. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Minho, Braga, 2004.
MORAIS, M. Anjos. Formação para a cidadania e educação histórica: perspectivas de
professores em formação. Dissertação (Mestrado) - Universidade do Minho,
Braga, 2005.
PINTO, Helena. Evidências patrimoniais para a educação histórica: uma experiência
educativa no centro histórico de Guimarães. 2007. Disponível em: < h t t p : / /
www.curriculosemfronteiras.org/vol7isslarticles/pinto.pdf>. Acesso em:
25/04/2009.
PROJECTO HICON. Consciência histórica: teoria e práticas, P O C T I / C E D /
49106/2002). FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), 2003-2007.
^ROJECTO H I C O N II. Consciência histórica: teoria e práticas II, P T D C /
CED/72623/2006). FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), 2007-2010.
RODRIGUES JÚNIOR, Osvaldo. Os manuais de didática da história e a constitui-
ção de uma epistemologia da didática da história. Dissertação (Mestrado) - Universi-
dade Federal do Paraná, Curitiba, 2010.
SANCHES, Graça. Idéias dos alunos acerca da significância da história contemporânea:
um estudo com alunos do ensino secundário em Cabo Verde. Dissertação
(Mestrado) - Universidade do Minho, Braga, 2008.
SCHMIDT, M. A. M. S. Jovens brasileiros e europeus: identidade, cultura e
ensino de história (1998-2000). Perspectiva. Revista do Centro de Ciências da Educa-
ção, Florianópolis, v. 20, n. especial, p. 183-207, juL/dez. 2002.
SEIXAS, Peter (Ed.). Theori^ing HistoricalConsciousness. Vancouver: University
of Toronto Press, 2004.

SIMAO, A. Catarina. A construção da evidência histórica: concepções de alunos do


3.° ciclo do ensino básico e secundário. Tese (Doutoramento) - Universidade
do Minho, Braga, 2007.

20
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

SOBANSKI, Adriane de Quadros. Como os professores ejovens estudantes do Brasil


e de Portugal se relacionam com a idéia de África. Dissertação (Mestrado) - Univer-
sidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008.
URBAN, Ana Claudia. Didática da história: percursos de um código disciplinar
no Brasil e na Espanha. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2009.
WERTSCH, J. V. Specific narratives and schematic narrative templates. In:
SEIXAS, P. (Ed.). TheoriyngHistoricalConsciousness. Toronto: University of To-
ronto Press, 2004. p. 49-85.
/
DIDÁTICA DA HISTÓRIA:
PASSADO, PRESENTE E
PERSPECTIVAS A PARTIR DO
CASO ALEMÃO*

Jõrn Kiisen

A opinião padrão sobre o que a didática -ia história é, como


ela funciona e onde está situada no reino das humanidades é a seguin-
te: a didática da história é uma abordagem formalizada para ensinar
história em escolas primárias e secundárias, que representa uma parte
importante da transformação de historiadores profissionais em profes-
sores de história nestas escolas. É uma disciplina que faz a mediação
entre a história como disciplina acadêmica e o aprendizado histórico
c a educação escolar. Assim, ela não tem nada a ver com o trabalho
dos historiadores em sua própria disciplina. A didática da história, sob
essa visão, serve como uma ferramenta que transporta conhecimento
histórico dos recipientes cheios de pesquisa acadêmica para as cabeças
vazias dos alunos.
Esta opinião é extremamente enganosa. Ela falha em confron-
t a os problemas reais concernentes ao aprendizado e educação his-
tórica e à relação entre didática da história e pesquisa histórica. Além
disso, ela limita ideologicamente a perspectiva dos historiadores em

* Este texto foi originalmente publicado em 1987, na revista History and


Thtory e publicado em português na Revista Práxis Educativa, Ponta Grossa-PR, v. 1,
n. 1,15 juL/dez. 2006, em versão autorizada pelo autor. Tradução de Marcos Roberto
Kusnick. Revisão da tradução por Luís Fernando Cerri.

23
Jõrn Rüsen

sua prática e nos princípios de sua disciplina. Ainda que eu deseje me


concentrar na didática da história na Alemanha, não limitarei minhas
observações do desenvolvimento de uma subdivisão da história e pe-
dagogia a um único país da Europa Ocidental. E m vez disso, eu gosta-
ria de usar a Alemanha para ilustrar uma ampla discussão de como se
pensa a história, quais são as origens da história na natureza humana, e
quais são seus usos para a vida humana. Estas são as questões básicas
que uma didática da história válida deveria considerar, o que, quando
feito, poderia fazer dela uma parte integral e importante dos estudos
históricos1.
Para aqueles que estão atentos à história da disciplina de histó-
ria, especialmente acerca da sua transformação em uma atividade pro-
fissionalizada, acadêmica, não deveria ser surpreendente que a didática
possa desempenhar um papel importante na escrita e na compreensão
histórica. Antes que os historiadores viessem a olhar para seu trabalho
como uma simples questão de metodologia de pesquisa e antes que se
considerassem "cientistas", eles discutiram as regras e os princípios da
composição da história como problemas de ensino e aprendizagem.
pnsino e aprendizagem eram considerados no mais amplo sentido,
como o fenômeno e o processo fundamental na cultura humana, não
restrito simplesmente à escola. O conhecido ditado historia vitae magistra
(história mestra da vida), que define a tarefa da historiografia ocidental
da antigüidade até as últimas décadas do século dezoito, indica que a
escrita da história era orientada pela moral e pelos problemas práticos
da vida, e não pelos problemas teóricos ou empíricos da cognição me-
tódica. Mesmo durante o Iluminismo, quando as formas modernas de

1
Para informação geral, ver Handbuch der Geschichtsdidaktikf terceira ediçào, ed.
K. Bergmann, A. Kuhn. J. Rüsen, e G. Schneider (Düsseldorf, 1985); Qeschichtsdidaktik:
Theorie für die Praxis, ed. K. Bergmann and J. Rusen (Düsseldorf. 1978);
Geschichtsdidaktische Positionen: Bestandsaufnahme und Neuoiientierung, ed H. Süssmuth
(Paderborn, 1980); Geschikhtsdidaktik, Geschichtsmssenschaft, Geseihehaft, ed, G. Behre e
L.-A. Norborg (Stockholm, 1985); Geschichte: Nutzen und Nachteil für das Leben, ed.
U. A. J. Becher e K. Bergmann (Düsseldorf, 1986); E. Weymar, Geschichtswissenschaft
und Theorie: Ein Literaturbericht (Stuttgart, 1979); E. Vfcymar, "Dimensionen der
Geschichtswissenschaft: Geschichtsforschung - Theorie der Geschichtswissenschaft
- Didaktik der Geschichte" em Geschichte in Wissenschaft und Unterricht (Stuttgart, 1982),
p. 1-11.65-78,129-153.

24
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

pesquisa e discurso acadêmicos foram sendo forjadas, historiadores


profissionais ainda discutiam os princípios didáticos da escrita histórica
como sendo fundamentais para seu trabalho.
Mas, devido à crescente institucionalização e profissionaliza-
ção da história, a importância da didática da história foi esquecida ou
minimizada. Durante o século XIX, quando os historiadores definiram
sua disciplina, eles começaram a perder de vista um importante prin-
cípio, a saber, que a história é enraizada nas necessidades sociais para
orientar a vida dentro da estrutura tempo. O entendimento histórico
é guiado fundamentalmente pelos interesses humanos básicos: assim
sendo, é direcionado para uma audiência e tem um papel importante na
cultura política da sociedade dos historiadores. Como os historiadores
do século XIX se esforçaram para tornar a história uma ciência, este
público foi esquecido ou redefinido para incluir apenas um pequeno
grupo de profissionais especialistas treinados. A didática da história
não era mais o centro da reflexão dos historiadores sobre sua própria
profissão. Ela foi substituída pela metodologia da pesquisa histórica. A
"cientifização" da história acarretou um estreitamento consciente de
perspectiva, um limitador dos propósitos e das finalidades da história".
A esse respeito, a cientifização da história excluiu da competência da
reflexão histórica racional aquelas dimensões do pensamento históri-
co inseparavelmente combinadas com a vida prática. Desse ponto de
vista, pode ser dito que a história científica, apesar de seu clamor racio-
nalista, havia conduzido aquilo que eu gostaria de chamar "irracionali-
zação" da história.
Que este processo pode e deveria ser revertido é minha princi-
pal tese; e os desenvolvimentos contemporâneos em didática da histó-
ria na Alemanha apontam para essa direção. Aí, os desenvolvimentos
recentes em didática da história podem ser descritos como um pro-
cesso de retomada do âmbito perdido da autoconsciência histórica. A

" PANDEL, H.-J. Historker ais Didaktiker: Geschichtsdidaktisches Denken


in der deutschen Geschichtwissenschaft vom ausgehenden 18. bismzim Ende des 19.
Jahrhunderts. In: BERGMANN, K.; SCHNEIDER, G. (Ed.). Geselbchaft, Staat, Ges-
chichtsimterrichí: Beitrãge # / èiner Geschichte des Geschkhtsdidaktik und des Gescbichtsunferrichts
wn 1500 bis 1980. Düsseldorfd, 1982; BLANKE, H. W; RÜSEN, J. (Ed.) Von derAuf-
klãrung qtmHistommus: Zum Strukturwandel des historichen Denkens. Paderborn, 1984.

25
Jõrn Rüsen

didática da história, que tinha sido originalmente interpretada como


uma aplicação externa da escrita profissional da história, tem adquirido
um status dentro da disciplina acadêmica que lhe permite novamente
facilitar e melhorar o entendimento histórico, mas agora dentro das
suas formas acadêmicas novas e altamente racionalizadas.
Originalmente, a didática da história na Alemanha, como em
qualquer lugar, tinha sido guiada pelas necessidades práticas de treina-
mento de professores de história. Esse treinamento teve lugar em dois
níveis. Um deles era puramente pragmático e relacionava-se com os
métodos de ensino de história em sala de aula. O segundo era teórico:
ele se concentrava nas condições e nos propósitos básicos do ensinar e
aprender história. N o primeiro nível, a didática da história estava e está
relacionada primariamente à pedagogia: ela é ensinada e aprendida pelo
fazer. Nós chamamos isso de metodologia de instrução em história
(Methodik des Geschichtsunterrichts). N o segundo nível a didática da histó-
ria é discutida em relação àquelas disciplinas que têm relação com os
fenômenos de ensino e aprendizagem - por exemplo, com as ciências
sociais, que investigam as condições sociais de ensino e aprendizagem,
^ o m a pedagogia, que investiga os propósitos, as formas e os proces-
sos da educação, e, é claro, com os estudos históricos, que investigam
história como disciplina a ser ensinada. Nesse nível nós falamos da
didática da educação em história {Didaktik des Geschichtsimterrrichts). E m
minha opinião, o segundo nível deveria preceder o primeiro. A didática
da educação em história estabelece os objetivos e as formas da edu-
cação histórica dentro de um dado contexto político, social, cultural
e institucional. A metodologia de instrução em história estabelece os
meios práticos pelos quais estes objetivos são alcançados.
Até os anos 1960, a didática da história na Alemanha Ocidental
era considerada como uma geistesmssenschaftliche Pddagogik, u m termo
que não pode ser facilmente traduzido. Eu prefiro a versão inglesa,
hermenêutica pedagógica (pedagógica! hermeneutics), considerada como
uma disciplina independente. O mais reconhecido representante desse
conceito de didática é Erich Weniger*. De acordo com essa visão, a

1,1
Principais trabalhos: Elich Weniger. Die Grundiagen des Geschichtsun-
terrichts: Untersuchungen zur geisteswissenchaftlichen Didaktik (Leipzig, Berlin,
1926); Erich Weniger. Neue Wege im Geschichtesunterricht [1949] (Frankfurt, 1969).

26
Jòrn Rüsen e o Ensino de História

educação em história pode ser definida como u m processo histórico


que pode ser analisado com as ferramentas teóricas e metodológicas da
hermenêutica historicista. O professor tem que entender a educação
como o historiador tem que entender a história - isto é, hermeneuti-
camente, como um tipo de texto constituído por forças humanas in-
tencionais e contendo um sentido que pode ser decifrado, revelando as
próprias intenções do leitor e as possibilidades de interação entre texto
e leitor. A pressuposição dessa concepção hermenêutica, historicista
é que a história é constituída por forças mentais, que o historiador,
sendo um intérprete ativo, pode "repensar" ou apropriar, e que guiam
suas questões históricas e interpretações. Alcançar o conhecimento
empírico do passado poderia levar a um insight sobre o movimento das
forças do presente. Esse insight poderia permitir àqueles que adquirem
conhecimento histórico viver dentro da corrente principal do desen-
volvimento histórico e acomodar sua vida política a ela.
Tanto a didática da história quanto a ciência histórica compar-
tilharam esta posição historicista. Ambas postulam a mesma idéia de
"forças educativas" {Bildungskraftè) do desenvolvimento histórico. Mas
o relacionamento formal entre a história e a didática da história era ca-
racterizado por uma estrita divisão de trabalho. Os estudos históricos
estavam ainda limitados a um padrão puramente acadêmico ou "cien-
tífico" de autoentendimento. Questões referentes ao inter-relaciona-
mento entre a pesquisa histórica e o mundo experiencial (Jjebensweli)
do investigador, bem como todas as questões referentes à educação
histórica foram relegadas a uma disciplina separada, extra-histórica:
portanto, a história formal não se dirigia à essência do saber histórico
escolar, diretamente. Os historiadores consideravam que sua disciplina
estava legitimada pela sua mera existência. Alfred Heuss tornou isso
claro nos anos 1950 quando reivindicou: "História como uma discipli-
na acadêmica é uma criatura que legitima a si mesma simplesmente por
estar lá". Ele comparou os estudos históricos e o resultado de seus co-
nhecimentos a uma árvore produzindo folhas. "A árvore vive enquanto
tem folhas e é seu destino viver e ter folhas"*. Heuss explicitamente
recusa conferir à história algum uso prático ou função real naquelas

** HEUSS, A. Verlust der Gescbicbte. Gõttimgem, 1959, 44.

27
Jõrn Rüsen

áreas culturais onde ela pode servir como um meio para a identidade
coletiva e sua orientação através da vida. Pelo contrário, ele pensa que
a metodologia da pesquisa histórica destrói a função prática da história.
A didática da história durante esse período reforçou essa men-
talidade estreita. Ela via o conhecimento histórico como sendo gerado
unicamente através do discurso interno dos historiadores profissionais.
A tarefa da didática da história era transmitir esse conhecimento sem
participação na geração desse discurso. A didática da história compensa-
va esta modesta recusa em participar da pesquisa histórica pela tradução
de resultados dessa pesquisa em pressuposições filosóficas gerais. Ela
considerava estas categorias filosóficas como elementos essenciais que
davam forma às orientações para a vida. Assim, essas categorias eram
pensadas para desempenhar um papel central no processo de educação.
Entretanto, apesar desses componentes abstratos, o currículo primário
e secundário de história consistia em nada mais do que resumos sim-
plificados dos estudos padrão em história. Assim, na melhor das hipó-
teses, a didática da história provia os estatutos fundamentais da função
educacional do conhecimento histórico e dos objetivos corresponden-
t e s para o ensino de história nas escolas. Mas isso incluía também uma
didática-oculta, aquela da simples reprodução dos estudos históricos: ao
fazê-lo, baixava seu nível das montanhas da pesquisa para os vales das
salas de aula (isso é chamado cópia ou reprodução didática).
Nos anos 1960 e 1970 todo o cenário mudou v . A arrogância
do sábio que assumia que os estudos históricos eram legitimados pela
sua mera existência perdeu seu poder de persuasão. Uma nova geração
de estudiosos criticava radicalmente o conceito tradicional de estudos

v
Para informações gerais sobre o desenvolvimento dos estudos históricos
na Alemanha, ver WEHLER, H.-U Geschichtswissenschaft heute. In: HABERMAS,
J. (Ed.). Stichwort^e %ur geistigen Situation der Zeit. Frankfurt, 1979, 11, p. 709-753;
HEYDEMANN, G. Geschichtswissenschaft im geteilten Deutschland Entnncklungsgeschichte,
Organisationsstruktur, Funktion, Theorie- und Methodenprobíeme in der Bundesrepublik
Deutschland und der DDR. Frankfurt, 1980; IGGERS, G.G. New Directions in European
Historiography. Revised edition. Middletown, Ct., 1984, chap. 3; RÜSEN, J. Theory of
History in the Development of West German Historical Studies: A Reconstruction
and Outlook. German Studies Kemew, 7, p. 11-26, 1984; FLETCHER, R. Recent
Developments in West German Historiography: The Bielefeld School and Its Critics.
German Studies Remew, 7, p. 451-480, 1984.

28
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

históricos e propagava um novo conceito teórico que estavam aptos


para pôr em prática. Eles concebiam a história como uma ciência so-
cial com laços muito próximos de outras ciências sociais^. Ao fazê-lo,
levantaram importantes questões referentes à tarefa básica da cogniçao
histórica e da função política dos estudos históricos. Essa redefinição
foi apenas uma parte de uma grande reorientação cultural que teve
lugar na Alemanha durante aquela época. Assim, uma reorientação
igualmente importante através da história foi sentida nas escolas, o que
resultou em uma crise de legitimidade no ensino de história. A hipótese
de que a história tinha um papel integral na educação primária e se-
cundária foi crescentemente questionada, especialmente na medida em
que os ataques contra o historicismo cresciam em grau e intensidade.
Novas formas de educação política que correspondiam a estes novos
conteúdos foram introduzidas nas escolas.
A didática da história também passou por uma mudança que
refletia essa reorientação cultural geral e a mudança no sistema educa-
cional. Sua concepção hermenêutica foi radicalmente alterada e trans-
formada em uma nova forma de argumentação. Ela experimentou a
assim chamada virada para a teoria do currículovu. Agora a educação
histórica não se torna mais uma simples questão de tradução de formas
e valores de estudiosos profissionais para a sala de aula. A questão bási-
ca que está sendo colocada é se aquele conhecimento e a forma de pen-
samento que ele representa encontram um conjunto de critérios edu-
cacionais preexistentes e extradisciplinaresVUI. Os historiadores foram
confrontados com o desafio do papel legitimador da história na vida
cultural e na educaçãolx. Eles responderam a este desafio ampliando o

vi
WEHLER, H.-U. Historische So^ialmssenschaft 2 ed. Frankfurt, 1977;
WEHLER, H.-U. Historische Soyialmssenschaft und Geschichtsschreibung, Studien zu
Aufgaben und Traditionen deutscher Geschichtswissenschaf. Gõttingen, 1980;
KOCKA, J. Sô^ia/geschichte:Bcgú(í~Ent\\ickmng-Vtoblcmc. 2 ed. Gõttingen, 1986.
™ Cf. KUHN, A. "Geschichtsdidaktik und Curriculumentwicklung" in
Handbuch der Geschicbtsdidaktit, p. 339-348.
™ Um exemplo freqüentemente discutido é KÜHN, A. Einführung in die
Didaktik der Geschichte. 2 ed. Munich, 1977,
is
Cf. SYWOTTEK, A. Geschichtsmssenschaft in der Legtimationstrise:
Ein Überblick über Diskussion um Theorie und Didaktik der Geschichte der
Bundesrepublik Deutschland 1969-1973. Bonn, 1974.

29
Jõrn Rüsen

campo da autorreflexão e do autoentendimento histórico. O s historia-


dores começaram a respeitar aquelas dimensões dos estudos históricos
onde necessidades, interesses e propósitos apareciam como fatores de-
terminantes do pensamento histórico\ E m termos simples, o estudo
da história na Alemanha Ocidental passou por aquilo que poderíamos
descrever como uma mudança de paradigma^1.
Essa mudança coincidiu com a necessidade urgente de autor-
representação e legitimidade dos historiadores preocupados com o
campo da educação. Juntos, ambos os momentos contribuíram para a
formação de um novo movimento histórico comprometido com uma
reflexão mais profunda e ampla sobre os fundamentos dos estudos
históricos e sua inter-relação com a vida prática em geral e com a edu-
cação em particular. Isso aconteceu em um tempo em que o siste-
ma universitário passava por uma grande expansão, o que possibilitou
flexibilidade suficiente para encorajar a formação de novos conceitos
sobre a educação e para permitir sua implementação. Assim, posições
foram criadas para estudiosos e professores que desejavam seguir essa
tendência e realizá-la pela pesquisa, treinamento e ensino.
Sintomática desse novo movimento em estudos históricos e
didática da história foi a criação de dois periódicos, Geschicbte und Ge~
sellschaft e Geschichtsdidaktik, O primeiro foi fundado em 1975 e incor-
pora um novo conceito de estudos históricos. N o prefácio que deta-
lha seus objetivos, os editores vislumbravam uma abordagem em duas
perspectivas. Primeiro, o periódico deveria enfocar novas aproxima-
ções teóricas e metodológicas e procurar estabelecer uma conexão ínti-
ma com outras ciências sociais. Segundo, deveria enfatizar as conexões
entre o estudo acadêmico de história e a prática social. Os editores
pensavam que isso era necessário porque "os estudos históricos foram
influenciados essencialmente pelos interesses contemporâneos bem
como pela análise dos processos e decisões históricas. Direta ou indi-
retamente, os estudos históricos reagem à consciência e prática social

x
RÜSEN, J. Für eine erneuerte Historik: Studien zur Theorie der
Geschichtswissenschaft. Stuttgart, 1976.
xl
RÜSEN, J. Grundlagenreflexion und Paradigma-Wechsel in der
westdeutchen Geschichtswissenschaft. Geschichtsdidaktik, 11, p. 388-405,1986.

30
jõrn Rüsen e o Ensino de História

do momento"*". Geschichtsdidaktik, fundado um ano depois, represen-


tou uma nova forma de lidar com o papel da história na educação e
na vida prática. Em um artigo programático5 Klaus Bergmann, um dos
editores, definiu a didática da história como se segue: ela é "a disciplina
que examina a importância da história - todas as espécies de história
e todos os seus elementos constitutivos - para o sujeito receptivo e
reflexivo"™. Ele considerava emancipação e identidade pessoal como
as duas principais idéias dessa reflexão didática.
Através da estrutura dessa nova abordagem para o uso da his-
tória na vida prática, a didática da história se estabeleceu como uma
disciplina específica com suas próprias questões, concepções teóricas
e operações metodológicas. Durante os anos 1970 esse movimento
esteve ligado às necessidades de mudança curricular. Assim ela poderia
ser discutida sem resolver a questão sobre se a didática da história de-
veria ser agregada à história ou à pedagogia. Porquanto pareceu plau-
sível que os principais objetivos da educação histórica eram definidos
e explicados fora dos estudos históricos, a didática da história serviu
como auxiliar à didática geral; ela ainda era vista como uma disciplina
pedagógica. Isso foi exacerbado pela tradicional mentalidade estreita
de muitos historiadores profissionais que excluíam todas as questões
de função prática da história de uma autorreflexão histórica séria. O
resultado dessa atitude foi empurrar a didática da história para mais
perto da pedagogia e abrir uma lacuna entre ela e os estudos normais
de história. Isso teve conseqüências problemáticas. A fascinação com
as reformas curriculares tendeu a subestimar as características peculia-
res da história como campo de aprendizado. A história poderia ser ins-
trumentalizada para objetivos não-históricos de ensino e aprendizado.
O papel específico da história em toda a área das ciências sociais e na
educação política permaneceu secundário. A história poderia assim ser
facilmente substituída por outros ramos da educação política e social.
Aqueles que se opunham a essa tendência de instrumentalizar
a história pressionaram pela peculiaridade e originalidade do pensa-
mento e da explicação histórica e procuraram diferenciá-lo de outras

xii
Geschichte und Gese/fschaft, 1, p. 7,1976.
xili
Geschichtsdidaktik, 1, p. 8,1976.

31
Jòrn Rüsen

formas de pensamento nas outras ciências sociais. Esse movimento


trouxe a didática da história para bem perto do tipo de autorreflexão
histórica que eu poderia chamar histórica (Historia), um termo que
aponta para a similaridade dessas reflexões com o tipo de questão co-
locada por Gustav Droysen em seu famoso Lectures on Encyiclopedia and
Methodology of History (1857)xiv. Este tipo de teoria floresceu nos anos
1970xv. Ele acompanhou a transformação da história de uma discipli-
na hermenêutica e historicista para uma ciência social histórica™. A
didática da história valeu-se de argumentos dessa nova concepção de
história para explicar a natureza específica e peculiar do pensamento
e da explicação histórica. Uma vez formulada, essa idéia de história
tornou-se o meio e o objetivo do aprendizado e educação. Assim, a
originalidade básica do pensamento histórico guiou o problema prático
da formulação de um novo currículo de história. A didática da história
juntou os assuntos orientados pela prática sobre ensino e aprendiza-
gem em sala de aula com uma percepção teórica dos processos e fun-
ções da consciência histórica em geral.
Dadas estas orientações, as perspectivas da didática da história
foram grandemente expandidas, indo além de considerar apenas os
/
problemas de ensino e aprendizado na escola. A didática da história
analisa agora todas as formas e funções do raciocínio e conhecimento
histórico na vida cotidiana, prática. Isso inclui o papel da história na
opinião pública e as representações nos meios de comunicação de mas-
sa; ela considera as possibilidades e limites das representações históri-

xiv
DROYSEN, J. G. Historik Ed. P. Leyh. Stuttgart, 1977 (Tradução inglesa
de seu Grundriss derHistorik: Outline of the principies of History [1883] (Nova Iorque,
1967).
xv
Cf. a série Theorie der Geschichte: Beitráge zur Historik. v. I: Ohjektivitat
und Part/eiiichkeit in der Geschichte, ed. R. Koselleck, WJ. Mommsem, e J. Rüsen (Munich,
1979); v. 2: Histonsche Processe, ed. K.-O. Faber e C. Meier (Munich, 1978); v. 3: Theorie
und Er^ahlung in der Geshichte, ed. J. Kocka e T. Nipperdey (Munich, 1979); v. 4: Yormen
der Geschichtsschreihung, ed. R. Koselleck, H. Lutz, e J. Rüsen (Munich, 1982): e v. 5:
Historische Methode, ed. C. Meier e j . Rüsen (Munich, 1987).
w
Uma abordagem sistemática desses fatores básicos pode ser encontrada
em RÜSEN, J. Historische Vermmjt Gmnd^ige einer Historik I: Die Grundlagen der
Geschichtswissenschaft. Gòttingen, 1983; RÜSEN, J. Rfkonstruktion der Vergangenheit.
Grund^üge einer Historik II: Die Prinzipien der historichen Forschung. Gòttingen, 1986.

32
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

cas visuais em museus e explora diversos campos onde os historiadores


equipados com essa visão podem trabalhar.
A análise destas atividades não tradicionais para historiadores
apenas começou. Assim sendo, um desenho disciplinar para a didá-
tica da história não foi completado. Mas os contornos gerais desse
desenho já foram formulados, uma formulação que está respondendo
aos desafios do presente nos estudos históricos na Alemanha graças à
falta de vagas para professores de história no sistema escolar alemão.
Neste sentido, pode-se dizer que o estudo da história está mudando
sua ênfase do ensino e aprendizado num sentido mais restrito para u m
campo mais amplo com objetivos ainda pouco claramente definidos.
Ainda é uma questão aberta se a ênfase na vida pública na didática da
história terá um eco positivo. Mas deveria ficar claro que, desde que
o público não pode digerir a produção da uma disciplina profissional
altamente especializada da história profissional sem mediação, existe
uma necessidade definitiva de pessoal treinado e disposto a cumprir
esta mediação, O que deveria ser evidente é que as habilidades normais
adquiridas pelo historiador profissional não são suficientes para a exe-
cução dessa mediação.
Atualmente, na Alemanha Ocidental, quatro itens principais
dominam as discussões sobre a didática da história. Eles têm relação
com a metodologia de instrução, as funções e os usos da história na
vida pública, o estabelecimento de metas para a educação histórica
nas escolas e a verificação se estas têm sido atingidas, e a análise geral
da natureza, função e importância da consciência histórica. Deixe-me
ocupar brevemente de cada uma delas.
A metodologia de instrução na sala de aula ainda é u m pro-
blema importante. Aqui a concentração no currículo tem sido predo-
minante. Combinada com a hipótese de que existe uma teoria geral da
instrução escolar (Unterricbtslebre), o ensino de história em sala de aula
tem tendido a se tornar uma atividade mecânica. Ainda não se resol-
veu como a peculiaridade da consciência histórica - aquelas estruturas
mentais e processos que constituem uma forma específica de atividade
cultural humana - pode ser integrada nesse padrão de educação. Ainda
existe um distanciamento entre a percepção programática de u m b o m
professor de história e o treinamento formal que ele ou ela recebem

33
Jõrn Rüsen

na prática do ensino de história. A razão desse distanciamento é que as


discussões referentes à consciência histórica e aos fatores constitutivos
do pensamento histórico não têm sido integradas na pragmática do
ensino e aprendizado. Os insights conquistados na didática da histó-
ria sobre os processos, estruturas, conteúdos e funções da consciência
histórica não têm sido traduzidos na análise do ensino e aprendizagem
em sala de aulaxvu.
Um exemplo disso seria suficiente. N o nível abstrato de uma
teoria geral da consciência histórica, nós sabemos alguma coisa so-
bre os padrões de significação que governam a experiência do passado
humano e sua interpretação como história dotada de sentido*™. Mas
nós sabemos muito pouco sobre a maneira de como a história é per-
cebida e os efeitos da introdução da história na sala de aula. Algumas
pesquisas empíricas que temos feito em Bochum sugerem que os pa-
drões de educação exemplar — história como uma coleção de exemplos
conduzindo a regras gerais do comportamento humano — são a forma
pela qual a história é apropriada pelos alunos, sem que os professores
atentem para isso. Os professores tinham certeza de que eles estavam
implementando os modelos modernos de estudos históricos. Mas a
realidade da experiência de aprendizado mostrou um padrão muito di-
ferente. Assim, o processo de ensino e aprendizado na sala de aula é
governado por uma estrutura da consciência histórica não reconhecida
pelos próprios participantes.
O segundo item é a análise da função do conhecimento e da
explicação histórica na vida pública. Este é um novo campo para a di-
dática da história. Considerando que existem muito poucas abordagens
teóricas e metodológicas para este problema, não há muitos estudos

x
™ A melhor abordagem neste sentido é JEISMANN, K.-E. Didaktik
der Geschichte: Das spezifische Bedingungsfeld des Geschichtsunterrichts. In:
BEHRMANN, G. C; JEISMANN, K.-E.; SUSSMUTH, H. (Ed.). Geschichte undPolitik
Didaktische Grundlegung eines kooperativen Unterrichts. Paderborn, 1978.
s
™ RÜSEN, J. Die vier Typen des historischen Erzáhlens. In: KOSELLECK,
R.; LUTZ, H.; RÜSEN, J. (Ed.). Formen der Geschichtsschreibung, p. 514-606; RÜSEN,
J. Geschichtsdidakrische Konsequenzen aus einer erzâtltheoreüschen Historik. In:
QUANDT, S.; SUSSMUTH, H. (Ed.). Historisches Er^dhlen: Formen und Funktionen.
Gortingen, 1982, p. 129-170.

34
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

empíricos disponíveis sobre o assunto. O que temos feitos são os pri-


meiros passos na definição da disciplina, bem como discussões sobre
quais são os problemas e o que deveria e poderia ser feito*1*. A fim
de estabelecer uma estratégia de pesquisa adequada nessa área para a
didática da história, é necessário sintetizar suas perspectivas, questões
e métodos com aquelas disciplinas especializadas que analisam a vida
pública. Por exemplo, se alguém aplicar uma abordagem moderna da
didática da história aos usos e funções da história nos meios de comu-
nicação de massa, ele precisa chegar a um acordo com o jornalismo.
Isso significa que os insights específicos da didática da história — seu
conceito da especificidade do entendimento histórico e o reconheci-
mento da função da história em dar forma à identidade social e indivi-
dual — têm de ser transformados na linguagem do nosso entendimento
da comunicação de massa — que está, por exemplo, dentro da semânti-
ca do cinema e da poética da comunicação visual.
O terceiro item — estabelecer os objetivos da educação histó-
rica e descobrir como estes objetivos têm sido alcançados — tem sido
uma das discussões mais importantes na Alemanha Ocidentalxx. Por
mais de uma década, o mais desejado e discutido objetivo do ensino de
história era definido como "emancipação"**1. Era esperado que através
do saber histórico os alunos pudessem obter a habilidade de autodeter-
minação, que eles pudessem participar ativamente das decisões políti-
cas que influenciavam sua vida diária**". Este objetivo, no entanto, não
era uma simples discussão histórica; ele estava muito ligado a outras
ciências sociais e à educação política geral. Dessa maneira, o conteúdo
histórico para esse programa era difícil de ser definido precisamente.
Posto que esta discussão ainda esteja por ser resolvida, o desejo de

x,x
Veja, e.g., Geschichtsdidaktik, 11, n. 4,1986.
xx
Exemplos representativos são ROHLFES, L; JEISMANN, K.-E.
(Ed). Geschichtsunterricht: Inhalte und Ziele. Stuttgart, 1974; ROHLFES, J. (Ed.).
Geschichtsunterricht: Entwurf eines Curriculums für die Sekundarstufe I, Stuttgart, 1974
(Edição extra de Geschichte in Wissenschaft und Unterricht).
xxi
RÜSEN, J. Geschichte ais Alfklàrung? Oder Das Dilemma des Historischen
Denkens zwischen Herrschaft und Emanzipation. Geschichte und Gesellschaft, 7S p. 189-
218,1981.
xxii
KUHN, A. Einfllhrung in die Didaktik der Geschichte.

35
}õrn Rüsen

estabelecer um currículo com objetivos claramente definidos e a ne-


cessidade de determinar se estes objetivos foram encontrados levam a
uma investigação crítica dos conteúdos da educação histórica. História
como uma matéria a ser ensinada e aprendida tem de passar por um
exame didático referente à sua aplicabilidade de orientar para a vida*™.
O quarto problema - a análise da natureza, função e impor-
tância da consciência histórica - é, em minha opinião, a discussão mais
interessante para os pesquisadores dos estudos históricos. Consciên-
cia histórica é uma categoria geral que não apenas tem relação com
o aprendizado e o ensino de história, mas cobre todas as formas de
pensamento histórico; através dela se experiência o passado e se o in-
terpreta como história. Assim, sua análise cobre os estudos históricos,
bem como o uso e a função da história na vida pública e privada. A
discussão alemã sobre essa questão é rica e variada e é impossível para
mim resumi-la aquixxiv. Deixe-me, entretanto, mencionar três dos pon-
tos mais importantes.
Primeiro, a consciência histórica não pode ser meramente
equacionada como simples conhecimento do passado. A consciência
histórica dá estrutura ao conhecimento histórico como um meio de
entender o tempo presente e antecipar o futuro. Ela é uma combinação
complexa que contém a apreensão do passado regulada pela necessida-

*X1U Cf. o ensaio de síntese de R. Schõrken em "Die lange Weg zum


Geschichtscurriculum: Curriculum-werfahrem unter der Lupe", Gesckkhtsdidaktik, 2,
p. 254-269, 335-353,1977.
xxlv
Ver, sobretudo, JEISMANN, K.-E. Geschichte ais Hori^ont der Gegenwart Über
den Zusammenhang von Vergangenheitsdeutung, Gegenwartsverstãndnis und Zukunftsperspekive.
Paderborn, 1985; SCHÕRKEN, R. Geschichtsdidaktik und Geschichtsbewusstsein.
Geschichte in Wissenschaft und Unterricht, 23, p. 81-89,1972; e BECHER, U. A. J. Personale
und historische Identitát. In: BERGMANN, K.; RÜSEN, J. (Ed.). Geschichts didaktik:
Theorie fur die Praxi, p. 57-66. Cf. Historisches Ençah/en, ed. Quandt and Süssmuth;
BECHER, A. J. Didaktische Prinzipien der Geschichsdastellung. In: JEISMANN, K.-
E.; QUANDT, S. (Ed.). Geschichtsdarstellung: Determinanten und Prinzipien. Gõttingen,
1982, p. 22-38; e RÜSEN, J. Historische Vernunft. Ver, sobretudo, JEISMANN, K . - R
Geschichte ais Hori^ont der Gegemvart Über den Zusammenhang von Vergangenbeitsdeutung,
Gegemvartsverstãndnis und Zukunftsperspekive. Paderborn, 1985; S C H Õ R K E N , R.
Geschichtsdidaktik und Geschichtsbewusstsein. Geschichte in Wissenschaft und Unterricht,
23, p. 81-89, 1972; e BECHER, U A. J. Personale und historische Identitát. In!
BERGMANN, K ; RÜSEN, J. (Ed.). Geschichts didaktik: Theorie fur die Praxi, p. 57-66.

36
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

de de entender o presente e de presumir o futuro. Se os historiadores


vierem a perceber a conexão essencial entre as três dimensões do tem-
po na estrutura da consciência histórica, eles podem evitar o precon-
ceito acadêmico amplamente aceito de que a história lida unicamente
com o passado: não há nada a se fazer com os problemas do presente
e ainda menos com os do futuro.
Segundo, a consciência histórica pode ser analisada como um
conjunto coerente de operações mentais que definem a peculiaridade
do pensamento histórico e a função que ele exerce na cultura humana.
Aqui, a discussão sobre a estrutura narrativa da explicação histórica é
extremamente útilxxv. A narração histórica é mais do que uma simples
forma específica de historiografia. Intérpretes contemporâneos dessa
discussão (por exemplo, Hayden White e Paul Ricoeur) apresentam a
narração histórica como um procedimento mental básico que dá sen-
tido ao passado com a finalidade de orientar a vida prática através do
tempoxxv\ Para entender completamente essa operação, nós temos que
identificar primeiro os procedimentos da narração histórica, definir
seus diversos componentes, descrever sua coerência e inter-relações
e construir uma tipologia que inclua sua aparência sob diferentes cir-
cunstâncias e temposxxvu. Quando isso for feito nós poderemos obter
um entendimento de como o passado adquire sua modelagem histó-

m
Cf. QUANDT, S.; SÜSSMUTH (EA). HisioriscbesEr^ãbkfnVECHER, A.J.
Didaktische Prinzipien der Geschichsdastellung. In: JEISMANN, K.-E.; QUANDT, S.
(Ed.). Geschichtsdarstellung: Determinanten und Prinzipien. Gõttingen, 1982, p. 22-38; e
RÜSEN, J. Historische Vernunft. Ver, sobretudo, JEISMANN, K.-E. Geschichte ais Hori^ont
der Gegemvart Über den Zusammenhang von Vergangenheitsdeutung, Gegenwartsverstãndnis
und Zukunftsperspektive. Paderborn, 1985; SCHÕRKEN, R. Geschichtsdidaktik und
Geschichtsbewusstsein. Geschichte in Wissenscbaft und Unterricht, 23, p. 81-89, 1972; e
BECHER, U. A. J. Personale und historische Identitàt. In: BERGMANN, K.; RÜSEN,
J. (Ed.). Geschichts didaktik: Theorie fur die Praxi, p. 57-66.
xxvi
WHITE, H. Metahistory: the historical imagination in nineteenth-centurv
Europe. Baltimore, 1973; WHITE, H. Tropics of discourse: essays in cultural critdcism.
Baltimore, 1978; WHITE, H. The question of narrative in contemporary historical
theory. History and Theory, 22, p. 1-33, 1984; RICOEUR, P. Narrative Time. Criticai
Inquiry, 7, p. 169-190,1981; RICOEUR, P The Narrative Function. Semeia, 13, p. 177-
202,1978.
*xvH Cf. RÜSEN, J. "Die vierTypen des historischen Erzáhlens".

37
Jõrn Rüsen

rica específica e de como a história é constituída por atos discursivos


específicos, formas de comunicação e padrões de pensamento. Tudo
isso pode nos dar um insight dentro da função cultural da história da
mentalidade e da argumentação histórica na vida social.
Aqui a teoria da história (que analisa os fundamentos dos es-
tudos históricos) e a didática da história (que analisa os fundamen-
tos da educação histórica) coincidem em suas análises das operações
narrativas da consciência histórica com suas conseqüentes conexões
sistemáticasxxvüi. Fazendo isso elas superam a infeliz separação que tem
existido entre a reflexão acadêmica da natureza da história e a reflexão
didática do uso da história na vida prática. A didática da história está
recuperando a posição que tinha ocupado quando do início da história
como uma disciplina profissional, isto é, cumprindo um papel central
no processo de reflexão na atividade dos historiadores. A disciplina da
história não pode mais ser considerada uma atividade divorciada das
necessidades da vida prática.
Terceiro, através da análise das operações da consciência his-
tórica e das funções que ela cumpre, isto é, pela orientação da vida
através da estrutura do tempo, a didática da história pode trazer novos
insights para o papel do conhecimento histórico e seu crescimento na
vida prática. Nós podemos aprender que a consciência histórica pode
exercer um papel importante naquelas operações mentais que dão for-
ma à identidade humana, capacitando os seres humanos, por meio da
comunicação com os outros, a preservarem a si mesmos. Focando essa
questão de identidade histórica, a didática da história enfatiza um* ele-
mento crucial na estrutura interna do pensamento e da argumentação
histórica, bem como suas funções na vida humana. Se nós pudermos
considerar a educação histórica como um processo intencional e orga-
nizado de formação de identidade que rememora o passado para poder
entender o presente e antecipar o futuro, então a didática da história
não pode ser posta de lado como sendo alheia ao que diz respeito aos
historiadores profissionais. Agora eles têm de considerar e explicar sua
própria pesquisa histórica como parte desse processo crucial de forma-
ção de identidade. Os historiadores podem agora considerar sua pes-

xstvüi
Cf. RÜSEN, J. "Historisches Erzâlen ais geschichtsdidaktisches Prinzip".

38
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

quisa e escrita como meios específicos de realizar aquelas operações da


consciência histórica que proporcionam aos seres humanos segurança
e autopersistência em face da mudança. Adicionalmente, eles podem
apresentar os resultados de sua pesquisa como conclusões obtidas por
meio do uso da razão. Esta razão pode ser aplicada a todas as formas
e usos do pensamento histórico em que argumentos, e não poder e
dominação, poderiam resolver problemas.
Para concluir essa discussão, eu gostaria de levantar mais uma
questão. Com que forma de investigação histórica, com que estrutura
teórica e abordagem metodológica a didática da história poderia ser
tratada como uma parte homogênea dos estudos históricos? Como
todos estes pontos que eu mencionei — metodologia de instrução na
sala de aula, reforma do currículo, pesquisa na área da vida pública
e investigação dentro da estrutura, processo e função da consciência
histórica — se combinam? A didática da história deveria ter a estrutura
de uma disciplina própria. Nós deveríamos ser capazes de distingui-la
de outras disciplinas correlatas como epistemologia, sociologia do co-
nhecimento, pedagogia e psicologia. Dado esse imperativo, a definição
de que a didática da história é a disciplina que investiga a consciência
histórica é muito ampla.
Eu gostaria de propor uma definição mais modesta do objeto
de pesquisa da didática da história. Seu objetivo é investigar o apren-
dizado históricoxxl\ O aprendizado histórico é uma das dimensões e
manifestações da consciência histórica. E o processo fundamental de
socialização e individualização humana e forma o núcleo de todas es-
tas operações. A questão básica é como o passado é experienciado e
interpretado de modo a compreender o presente e antecipar o futu-
ro. Aprendizado é a estrutura em que diferentes campos de interes-
se didático estão unidos em uma estrutura coerente. Ele determina a
significância do assunto da história da didática bem como suas abor-
dagens teóricas e metodológicas específicas. Teoricamente, a didática
da história tem de conceituar consciência histórica como uma estru-

xxix
ROHLFES, J. Umrisse einer Didaktik der Geschichte [1971] (Góttingen,
1976); RÜSEN, J. Ansátze zu einer Theorie des historischen Lernens I: Formem und
Prozesse. Geschichtsdidaktik, 10, p. 249-265,1985; part II, ibüL, 12, p. 15-27,1987.

39
Jõrn Rüsen

tura e processo de aprendizado. Aqui é necessário reformular idéias


sobre consciência histórica como sendo um fator básico na formação
da idenüdade humana relacionando estes conceitos com o processo
educacional, que também é básico para o desenvolvimento humano.
Metodologicamente, a didática da história pode usar métodos estabele-
cidos da psicologia e sociologia e reestruturá-los de acordo com a pe-
culiaridade da consciência histórica***. Com respeito às reflexões sobre
o processo específico sobre ensino e aprendizagem em sala de aula,
a didática da história pode escolher os elementos da pedagogia perti-
nentes à peculiaridade da, consciência histórica. O que deve ser relem-
brado aqui é que o ensino de história afeta o aprendizado de história
e este configura a habilidade de se orientar na vida e de formar uma
identidade histórica coerente e estável. Assim também, no campo da
vida pública, o foco sobre a experiência de aprendizado deve conduzir
a um programa coerente de pesquisa e explanação. Finalmente, com
respeito ao processo real de instrução histórica nas escolas, a ênfase
sobre o aprendizado de história pode reanimar o ensino e o aprendi-
zado de história ressaltando o fato de que a história é uma matéria de
experiência e interpretação. Assim concebida, a didática da história ou
ciência do aprendizado histórico pode demonstrar ao historiador pro-
fissional as conexões internas entre história, vida prática e aprendizado.
Isto, mais do que qualquer coisa, pode dar um novo significado à frase
historia vitae magistra.

xxx
Cf. REULECKE, W Lernpsychoiogie Ammerkungen zum "historichen
Lernen". Geséichtsdidaktik, 10, p. 267-271, 1985.
APRENDIZADO HISTÓRICO*

Jõrn Rüsen

A didática da história experimentou, desde o final dos anos


1960 e começo dos anos 1970, um importante impulso da teoria do
aprendizado (SCHÕRKEN, 1970). Geralmente mediados por uma
didática geral adotada de caráter currículo-teórico, os processos de
aprendizado do ensino da história foram aceitos de modo mais rigo-
roso como processos dirigíveis e controláveis. Com isso, não somente
a organização didática do ensino da história experienciou uma espe-
cificação técnica, mas, simultaneamente, a atenção dos conteúdos de
aprendizado orientou-se para as condições, formas e funções de sua
recepção. Estas inovações teóricas do aprendizado da didática da his-
tória implicaram uma profunda crítica de antigas determinações psi-
cológicas do desenvolvimento do aprendizado histórico na escola: o
desenvolvimento foi desnaturalizado como processo de aprendizado e,
com isso, compreendido no domínio de competência do ensino.
Apesar de todas as férteis referências da didática da história
a uma teoria do aprendizado, que se apresentou em diferentes con-
cepções (pedagógicas e psicológicas), ainda não foi desenvolvida ne-
nhuma teoria sistemática do aprendizado histórico. É por isto que as
respectivas teorias psicológicas do aprendizado serão formuladas em

* RÜSEN,Jõrn. Historisches Lernen. In: BERGMANN, Klaus; FRÒHLICH,


Klaus; KUHN, Annette; RÜSEN, Jõrn; SCHNEIDER, Gerhard (Eds.). Handhuch der
Ceschichtsdidaktik 5. ed. Seelze/Velber: Kallmeyer, 1997. p. 261-265. Tradução para
o português de Johnny R. Rosa, mestrando na Universidade de Brasília. Revisão da
tradução por Estevão de Rezende Martins.

41
Jõrn Rüsen

um nível de abstração e serão empiricamente testadas em situações


experimentais, as quais não correspondem à especialidade do apren-
dizado histórico e a sua referência histórica. O mesmo vale para as
versões pedagógicas das modernas teorias do aprendizado: elas tra-
zem o ensino da história à baila sem terem levado suficientemente em
conta, em suas análises e interpretações, a especificidade desse ensino.
Ainda falta uma síntese coerente das dimensões próprias às teorias do
aprendizado na análise didática do aprendizado histórico. Se ela pode
ser produzida no âmbito de uma interpretação sociológica abrangente
do aprendizado histórico (JUNG; V. STAEHR, 1983) é uma pergunta
em aberto, pois a teoria social a que se recorre ainda não chegou a usar
sua função de crítica da ideologia para se conjugar criticamente com
outras abordagens da didática da história e elaborar uma explicação
teoricamente consistente e empiricamente controlável do aprendizado
histórico, em que este aparece como processo mental específico (para
além de uma funcionalidade social abstrata).

Consciência histórica e aprendizado histórico

Concepções teóricas do aprendizado podem ser fecundamente


aplicadas à especificidade do histórico, quando isto ocorre no curso de
uma didática da história que tenha a consciência histórica como seu
objeto mais importante. Com a consciência histórica, a referência à his-
tória, no aprendizado histórico, é levada a seu nível fundamental e, ao
mesmo tempo, genérico, ainda antes da explicação científica de "His-
tória", mediada didaticamente, como conteúdo de aprendizado. Com
isso, a didática da história se volta para aqueles processos mentais ou
atividades da consciência sobre os quais afinal se funda a referência do
aprendizado histórico à história. Trata-se de "processos de pensamen-
to e de formação estruturadores de consciência", "que geralmente en-
contram-se £ por trás' dos conteúdos e que habitualmente ficam velados
ao aprendiz", de "atos mentais determinantes do comportamento, que
subjazem à lida com a História" ( S C H Õ R K E N , 1972, p.84). Nesses
processos e atos ocorre o aprendizado histórico. Eles ainda não foram
bastante explicitados sistematicamente e investigados empiricamente,
porém as operações centrais da consciência da história puderam ser

42
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

apresentadas em seus pormenores e seu significado para o aprendizado


da história pôde aqui ser questionado. Schõrken acentuou, sobretudo,
a "produção de identidade, lealdade, simpatia" (SCHÕRKEN, 1972),
por conseguinte, uma função de subjetivação e individualização da
consciência da história como componente essencial do aprendizado
histórico, e de que derivam estratégias de perspectivação do ensino
de história (SCHÕRKEN, 1975). Jeismann, por outro lado, acentuou
o lado cognitivo do desenvolvimento da consciência histórica através
do aprendizado, diferenciou as operações de análise, de julgamento de
mérito e de valorização, e sobre elas delineou as estratégias do ensino
de história (JEISMANN, 1980). Estas operações podem se generalizar
'* e se tornar elementares para a experiência, interpretação e orientação
[ (RÜSEN, 1994). Para nos aproximarmos de uma teoria das operações
j. da consciência que constituem o aprendizado histórico, a pergunta a
j ser esclarecida inicialmente é se as diferentes funções da consciência da
í história não se reduziriam a uma operação básica, que se constitui em
I sua particularidade e diversidade de outros processos mentais e a partir
|. da qual o aprendizado histórico pode ser tematizado como processo
| uniforme. A narrativa histórica pode ser vista e descrita como essa
operação mental constitutiva. Com ela, particularidade e processuali-
i dade da consciência da história podem ser explicitadas didaticamente
;' e constituídas como uma determinada construção de sentido sobre
j- a experiência do tempo. O aprendizado histórico pode, portanto, ser
* compreendido como um processo mental de construção de sentido
!
sobre a experiência do tempo através da narrativa histórica, na qual as
! ' competências para tal narrativa surgem e se desenvolvem (RÜSEN,
1994).
j A narrativa histórica pode então, em princípio, ser vista como
I • aprendizado quando, com ela, as competências forem adquiridas atra-
vés de uma função produtiva do sujeito, com as quais a história será
apontada como fator de orientação cultural na vida prática humana.
I' Trata-se de uma significativa orientação da vida prática humana rela-
cionada a três dimensões temporais por meio da visualização do passa-
do, resumidamente formulado em um termo: "competência narrativa"
(RÜSEN, 1994, p. 45s). A unidade do aprendizado histórico em suas
complexas referências a desafios do presente, experiências do passado
y /

43
Jõrn Rüsen

e expectativas de futuro encontra-se resolvida na estrutura narrativa


deste trabalho de interpretação.
O caráter processual do aprendizado histórico nas narrativas
da(s) história(s) pode ser descrito como segue: o estímulo e a força
pulsional do aprendizado histórico encontram-se nas necessidades de
orientação de indivíduos agentes e pacientes, necessidades que surgem
para tais indivíduos quando de desconcertantes experiências tempo-
rais. O aprendizado histórico pode ser posto em andamento, portanto,
somente a partir de experiências de ações relevantes do presente. Es-
sas carências de orientação são transformadas então em perspectivas
(questionadoras) com respeito ao passado, que apreendem o poten-
cial experiência! da memória histórica. Pode-se ainda lembrar o fascí-
nio que o passado, com seus testemunhos e resquícios, exerce sobre
os sujeitos. Somente quando a história deixar de ser aprendida como
a mera absorção de um bloco de conhecimentos positivos, e surgir
diretamente da elaboração de respostas a perguntas que se façam ao
acervo de conhecimentos acumulados, é que poderá ela ser apropriada
produtivamente pelo aprendizado e se tornar fator de determinação
cultural da vida prática humana. O potencial experiencial da memória
histórica vem então a ser correlacionado com o passado de acordo
com as perspectivas questionadoras prévias: no horizonte das questões
históricas suscitadas no presente, a experiência do passado transforma-
-se em experiência histórica específica, único contexto em que tal ex-
periência é efetivamente apropriada, tornando-se conteúdo próprio do
ordenamento mental do sujeito. Como tal apropriação se dá por intera-
ções, o conhecimento histórico, hipoteticamente pré-delineado e empi-
ricamente adquirido, deve ser ainda formatado, tornado questionável e
negociável intersubjetivamente, para finalmente se transformar, nessa
forma, em elemento de um discurso, no qual se constrói a identidade
histórica dos sujeitos que interagem entre si.
O aprendizado histórico seria, no entanto, parcial, quando
considerado somente como processo cognitivo. Ele é também deter-
minado através de pontos de vista emocionais, estéticos, normativos
e de interesses. A seus resultados pertence, consequentemente, não
somente uma competência para a interpretação do passado h u m a n o
como história, mas também se distinguem a competência estética, a

44
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

qualidade e a particularidade do passado em sua singularidade e diversi-


dade de circunstâncias presentes, e a competência prática de empregar
conhecimento histórico na análise, no julgamento e no tratamento dos
problemas do presente.

Formas de aprendizado
A determinação teórica da narrativa, da unidade e da processu-
alidade da consciência da história, aqui esboçada, é abstrata. Com ela,
processos concretos de aprendizado dificilmente podem ser decifrados
empiricamente, determinados normativamente e organizados pragma-
ticamente. Contudo, pode-se recorrer a diferenciações tipológicas do
aprendizado histórico no âmbito da didática, e, com isso, elaborar uma
tipologia das formas do aprendizado histórico, que pode ser utilizada
como um instrumento ideal-típico para a análise e a interpretação de
processos concretos de aprendizado. De acordo com as quatro formas
típicas de construção narrativa de sentido sobre a experiência tem-
poral, diferenciam-se quatro formas de aprendizado histórico: tradi-
cional, exemplar, crítico e genético. Todas as quatro formas existem
tendencialmente em cada processo de aprendizado histórico, de forma
que este, com auxílio da distinção artificial-analítica das quatro formas
de aprendizado, pode ser decomposto em seus elementos essenciais,
cuja relação de interação pode ser identificada. Dessarte, a estrutura
complexa do processo global de aprendizado pode ser tornada trans-
parente.
a) Na forma de aprendizado da construção tradicional do sen-
tido da experiência temporal, as experiências temporais se-
rão processadas em tradições possibilitadoras e condutoras
de ações. As tradições se tornam visíveis e serão aceitas e
reconstruídas como orientações estabilizadoras da própria
vida prática.
b) Na forma de aprendizado da construção exemplar do senti-
do da experiência temporal, para além do horizonte de tra-
dições, serão processadas experiências temporais em regras
gerais condutoras de ações. Nesta forma de aprendizado se
constrói a competência de regra em relação à experiência

45
Jõrn Rüsen

histórica; os conteúdos da experiência serão interpretados


como casos de regras gerais, e formam-se, na interação en-
tre generalização de regras e isolação de casos, como condi-
ção necessária para um emprego prático na vida da adquiri-
da competência de regras de juízo.
c) Na forma de aprendizado da construção crítica do sentido
da experiência temporal, as experiências temporais serão
empregadas de modo que o afirmado modelo de interpreta-
ção da vida prática será anulado e será feito valer as necessi-
dades e interesses subjetivos. O aprendizado histórico serve
aqui à obtenção da capacidade de negar a identidade pessoal
e social do modelo histórico afirmado.
d) Na forma de aprendizado de construção genética do sen-
tido da experiência temporal serão empregadas experiên-
cias temporais em temporalizações da própria orientação
das ações. Os sujeitos aprendem, na produtiva aquisição da
experiência histórica, a considerar sua própria autorrelação
como dinâmica e temporal. Eles compreendem sua iden-
tidade como "desenvolvimento" ou como "formação", e
. ao mesmo tempo, com isso, aprendem a orientar tempo-
ralmente sua própria vida prática de tal forma que possam
empregar produtivamente a assimetria característica entre
experiência do passado e expectativa de futuro para o mun-
do moderno nas determinações direcionais da própria vida
prática.

Níveis do aprendizado histórico

As formas de aprendizado diferenciadas por tipos de narrati-


vas deixam-se interpretar (ainda muito hipoteticamente) como níveis
no processo de aprendizado, quando este for projetado sobre o desen-
volvimento ontogenético como processo de individualização e sociali-
zação. O aprendizado histórico se deixa então conceber como um pro-
cesso que resulta de diferentes níveis de aprendizado, ou seja, em que
cada nível de aprendizado descreve um pressuposto necessário para o
outro. As quatro formas de aprendizado deixam-se interpretar como

46
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

tal nível de aprendizado e se ordenar na seqüência de tradicional, exem-


plar, crítica e genética lógica do desenvolvimento (RÜSEN, 1993). Elas
podem servir, desta forma, para distinguir e interpretar fases e mveis
de desenvolvimento da consciência da história como período de época
de um processo de aprendizado circundante. A disposição das formas
de aprendizado em sua ordem lógica de desenvolvimento deixa-se en-
tender como conseqüência estrutural de um aumento de experiência
qualitativo e duradouro, um aumento qualitativo correspondente de
subjetividade (individuação) no trabalho de interpretação da lembrança
histórica, e um aumento qualitativo circundante a ambos, garantidor de
consenso de intersubjetividade histórica da orientação de existência.

Objetivos do aprendizado histórico


Uma interpretação teórica narrativa do aprendizado histórico
pode determinar seus objetivos como conhecimento técnico e ao mes-
mo tempo como vida prática, na medida em que a narrativa histórica
os tematiza ao mesmo tempo como operação constitutiva da consci-
ência histórica: enquanto função da vida prática do pensamento his-
tórico e enquanto referência histórica particular a ele. Ainda antes de
qualquer determinação material do aprendizado histórico, isto é, sua
vinculação a tal ou qual acervo preciso de conteúdos, pode-se elaborar
uma projeção mais fundamental, mais abrangente e mais especifica-
dora do caráter histórico do aprendizado histórico. O suprassumo da
capacidade que se tem de adquirir, mediante o aprendizado histórico,
para a orientação temporal da própria vida prática, pode ser designa-
do de competência narrativa. E ela que constitui a qualificação à qual
todo aprendizado histórico está, ao fim e ao cabo, relacionado. O ob-
jetivo do aprendizado histórico pode ser definido, desde a perspectiva
de uma didática da história, como o trabalho, viável praticamente, de
concretizar e de diferenciar a competência narrativa.
Essa concretização e diferenciação pode ocorrer em quatro
sentidos:
a) Através do aprendizado histórico, deve ser aqui aberta a
orientação temporal da própria vida prática sobre a expe-
riência histórica e ser mantida aberta para um incremento da

47
Jõrn Rüsen

experiência histórica. Competência de experiência é, parcial-


mente, objetivo essencial do aprendizado histórico e pos-
sui uma forte dimensão estética. O aprendizado histórico é
sempre (também) um processo, no qual se abrem os olhos
para a história, para a presença perceptível do passado.
b) A referência do aprendizado histórico à experiência não te-
ria sentido didático se não fosse relacionada à subjetividade
do aprendiz. O aprendizado histórico deve, assim, ser rela-
cionado à subjetividade dos receptores, à situação atual do
problema e à carência de orientação, de que parte o recurso
rememorativo ao passado. Sem esta referência ao sujeito, o
conhecimento histórico petrifica-se em um mero lastro de
reminiscências.
c) A referência subjetiva do aprendizado histórico se dá, pri-
meiramente, quando for relacionada ao movimento entre
sujeitos diferentes, portanto à in ter subjetividade, na qual se
constrói, a cada vez, a identidade histórica. O aprendizado
histórico deve, desse modo, efetuar-se no meio de uma in-
/ tersubjetividade discursiva, em uma relação aberta de comu-
nicação racional-argumentativa.
d) Por fim, o aprendizado histórico deve ser organizado de
modo que suas diferentes formas sejam abordadas, prati-
cadas e articuladas em uma relação consistente de desen-
volvimento dinâmico. Nesse processo, têm importância não
apenas os fatores cognitivos, mas nele também devem ser
sistematicamente considerados os componentes estéticos e
políticos da consciência da história e da cultura histórica en-
quanto pré-requisitos, condições e determinações essenciais
dos objetivos do aprendizado histórico.

48
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

Referências
DOWNEY, M. T.; LEVSTIK, L. S. Teaching and learning history. Social Edu-
cation, set. 1988, p. 336-342.
DOWNEY, M. T.; LEVSTIK, L. S. Teaching and learning history. In: SHA-
VER, J. (Ed.). Handbook of research on social studies teaching and learning. Nova
York, 1991. p. 400-410.
HALLDEN, O. Learning History. Oxford Review of Education, v. 12, p. 33-66,
1986.
JEISMANN, K. E. "GeschichtsbewuBtsein". Uberlegungen zur zentralen
Kategorie eines neuen Ansatzes der Geschichtsdidaktik. In: SÜSSMUTH, H.
(Ed.). Geschichtsdidaktische Positionen. Bestandsaufnahme und Neuorientierung.
Paderbom, 1980. p. 179-222.
JUNG, H. W.; STAEHR, G. von. Historisches Lernen. Colônia, 1983.
LEINHARDT, G; BECK, I. L.; STAINTON, C. (Eds.). Teaching and Learning
in History. Hilldale, NJ: Lawrence Erlbaum, 1994.
RÜSEN, J. The development of narrative competence in historical learning:
an ontogenetical hypothesis concerning moral consciousness. In: .
Studies in Metahistory. Pretória, 1993.
RÜSEN, J. Historisches Lernen: Grundlagen und Paradigmen. Colônia, 1994.
SCHÕRKEN, R. Lerntheoretische Fragen an die Didaktik des Geschichtsun-
terrichts, GWU, v. 21, p. 406-420,1970.
SCHÕRKEN, R. Geschichtsdidaktik und GeschichtsbewuBtsein.: GWU, v.
23, p. 81-89,1974.
SCHÕRKEN, R. Kriterien für einen lernzielorientierten Geschichtsunter-
richt. In: JÀCKEL, E.; WEYMAR, E. (Eds.). Die Funktion der Geschichte in
unserer Zeit. Stuttgart, 1975. p. 280-293.
WATTS, D. G. The Learning of History. Londres, 1972.
ZACCARIA, M. A. The development of historical thinking: implications for
the teaching of history. The History Teacher, v. 11, p. 323-340, 1977/78.

49
/
O DESENVOLVIMENTO DA
COMPETÊNCIA NARRATIVA NA
APRENDIZAGEM HISTÓRICA:
UMA HIPÓTESE ONTOGENÉTICA
RELATIVA À CONSCIÊNCIA MORAL*

Jõrn Rüsen

A aprendizagem histórica pode se explicar como um processo de mudança


estrutural na consciência histórica. A. aprendizagem histórica implica mais que um
simples adquirir de conhecimento do passado e da expansão do mesmo. Visto como
um processo pelo qual as competências são adquiridas progressivamente, emerge
como um processo de mudança de formas estruturais pelas quais tratamos e uti-
lizamos a experiência e conhecimento da realidade passada, passando de formas
tradicionais de pensamento aos modos genéticos.
Tradução: Silvia Finocchio

1. U m a narração e m quatro versões

O antigo Castelo de Col se encontra nas terras altas da Es-


cócia. E a antiga residência dos chefes do clã Maclean e está ainda
em posse de um membro da família, que vive no castelo. E m cima da
muralha existe uma pedra gravada com a seguinte inscrição: "Se algum

* RÜSEN, Jõrn. El desarrollo de Ia competência narrativa en ei aprendizaje


histórico. Una hipótesis ontogenética relativa a Ia conciencia moral. Revista Propuesta
Educativa, Buenos Aires, Ano 4, n. 7, p. 27-36. oct. 1992. Tradução para o espanhol de
Silvia Finocchio. Tradução para o português por Ana Claudia Urban e Flávia Vanessa
Starcke. Revisão da tradução: Maria Auxiliadora Schmidt.

51
Jõrn Rüsen

homem do clã Maclonish aparecer perante este castelo, mesmo que ve-
nha à meia-noite, com a cabeça de um homem em sua mão, encontrará
aqui segurança e proteção contra tudo".
O texto é de um antigo tratado celebrado em Highlands em
uma ocasião memorável. E m um passado distante, um dos antepas-
sados Maclean obteve do rei da Escócia uma concessão de terras que
pertenciam a outro clã mas que as perdeu por haver ofendido ao rei.
Maclean, acompanhado por sua esposa, avançou com uma força arma-
da de homem para tomar posse de suas novas terras. N o confronto e
batalha com o outro clã, .Maclean foi derrotado e perdeu sua vida; no
entanto, sua esposa, grávida, caiu nas mãos dos vencedores. O chefe
do clã vitorioso transferiu para a família Maclonish a guarda da grávida,
Lady Maclean, com uma condição específica: se a criança nascida fosse
um varão, deveria morrer imediatamente, se fosse uma menina, lhe
seria permitido viver. A esposa Maclonish, que também estava grávida,
deu à luz uma menina quase ao mesmo tempo em que Lady Maclean
deu à luz um menino. Elas então trocaram as crianças.
O jovem Maclean, havendo sobrevivido a esta armadilha da
sentença de morte que sobre ele pesava antes de nascer, recuperou
com o tempo seu patrimônio original. E m agradecimento ao clã Ma-
clonish, determinou então seu castelo como um lugar de refúgio para
qualquer membro daquela família que se encontrasse em perigo.
Esta narração de encontra no livro Jaurneu do the Western Islands
of Scotlandy de Samuel Johnson, publicado pela primeira vez em 1775'.
Minha intenção, com o presente trabalho, é utilizar esta história-para
demonstrar a natureza da competência narrativa e suas diversas for-
mas, e a importância da competência para a consciência moral. Para
aproximarmos de uma maneira mais concreta, permita-se imaginar
esta narração dentro de uma situação real onde se desafiam os valores
morais, e onde seu uso e legitimação requerem argumentos embasados
historicamente. Imagine que você é um membro do clã Maclean e vive
atualmente no castelo de um ancestral. Uma noite escura, ura m e m b r o

!
JOHNSON, Samuel A. Journey to the Western Isknds of Scotland (New Haven
and London, 1971), 133 ff. Trata-se de uma versão simplificada do conto.

52
Jòrn Rüsen e o Ensino de História

do clã Maclonish - permita-nos chamá-lo de lan - bate à sua porta


pedindo ajuda, Conta que a polícia o está seguindo em razão de um
crime de cuja autoria o acusam. Como raciocinaria você? Ajudá-lo-ia a
esconder-se da polícia ou decidiria por alguma outra ação?
Imagine que logo seja necessário explicar a um amigo o que
está acontecendo; e este amigo, que você encontra por acaso, não co-
nhece a narração do clã. Não importa que atitude tome a respeito de
lan Maclonish, você será obrigado a contar-lhe o relato dos bebês tro-
cados, para fazer-se convincente (e assim interpretada) a situação em
que você se encontra e a decisão que deve tomar.
Sua narração da lenda do clã provavelmente será diferente, de-
pendendo da natureza de sua decisão. Além do mais, sua decisão ori-
ginal depende de sua própria interpretação da antiga lenda do clã em
relação às crianças trocadas.
Assinalo, portanto, a existência de quatro possibilidades para
tal interpretação.
1. Pode esconder lan Maclonish porque sente que é obri-
gação de sua parte honrar o antigo acordo de Highlan-
ds. Neste caso, dirá a seu amigo que você — como um
Maclean — se sente obrigado a ajudar a lan porque con-
sidera vigente a antiga narração e então existem ain-
da laços entre os clãs. Você passa a relatar a lenda dos
bebês trocados com a intenção de esconder da polícia
lan Maclonish, para manter o antigo tratado do clã, re-
novando e continuando, dessa forma, a importância da
relação entre os grupos.
2. Pode esconder lan Maclonish, motivado por múltiplas
razões. Assim, pode dizer que ajudou a lan porque no
passado um Maclonish uma vez ajudou a um membro
do clã Maclean, e agora você se sente obrigado a retri-
buir, com base no princípio da reciprocidade de favores.
Ou pode dizer que o ajuda para cumprir a obrigação de
um tratado entre os clãs: porque os acordos devem ser
mantidos como tais, ou seja, estão unidos pelo tratado.
Logo conta a lenda concluindo com a observação de
que a ajuda mútua ou a manutenção de um tratado en-

53
Jòrn Rüsen

tre os clãs é, para você, um guia e um princípio moral,


como já foi provado quando o bebê foi salvo.
3. Pode negar-se a esconder Ian Maclonish. Então, pri-
meiramente tem que explicar o pedido de auxílio para
aquele, narrando o conto dos bebês e a pedra com a
inscrição. Mas comenta a história afirmando que não
acredita, que é meramente um "mito" ou uma "lenda"
desprovida de qualquer evidência e validez comprome-
tedora, o que não o obriga moralmente de nenhuma
maneira. Também pode argumentar que, desde a intro-
dução do direito inglês moderno, aqueles antigos tra-
tados teriam perdido a validade que uma vez tiveram e
agora são letra morta. Neste caso, você apresenta uma
série de argumentos histórico-críticos para se desculpar
da obrigação de manter o antigo pacto. Portanto, ar-
gumenta historicamente para romper qualquer laço de
união entre você e o clã Maclonish, o qual pode ter sido
válido e obrigatório no passado.
4. Pode se decidir a convencer Ian Maclonish de que é inútil
se esconder da polícia e que seria melhor se entregar às
autoridades. Você, por sua vez, se compromete a fazer
de tudo para ajudá-lo, por exemplo, contratando o me-
lhor advogado disponível. Neste caso, você narra o con-
to às crianças, mas o circunscreve agregando o seguinte
argumento: o sistema legal se transformou muito desde
o direito do clã da era pré-moderna até a época moder-
na. Você ainda se sente obrigado a ajudar alguém do clã
Maclonish, mas deseja fazê-lo baseado em considerações
modernas e não como prescrevia o antigo pacto.

Essa antiga narração que nos fala, em quatro versões, dos Ma-
clean, dos Maclonish e da troca dos bebês, nos proporciona o pon-
to de partida para mais argumentos. O conto indica a necessidade da
consciência histórica para tratar os valores morais e o raciocínio moral.
Espero demonstrar que as quatro variantes representam quatro ver-
sões essenciais da consciência histórica, mostrando quatro etapas de
desenvolvimento por meio da aprendizagem.

54
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

2. A relação entre a consciência histórica, os valores


morais e o raciocínio
Na situação representada em nossa narração, devíamos decidir
por um curso de ação. Tal decisão dependia de valores. Esses valores
são geralmente princípios, guias de comportamento, idéias ou pers-
pectivas-chaves que sugerem o que deveria ser feito em uma situação
determinada, em que existem várias opções. Tais valores funcionam
como fonte de arbitragem nos conflitos e como objetivos que nos
guiam ao atuar.
Que significado tem assinalar tais valores como "morais"?
Nossas perspectivas se enquadram nesta ação sistematicamente, re-
conhecem a relação social dentro da qual vivemos e devem decidir
um curso de ação a tomar. Elas expressam esta relação social como
uma obrigação para nós, dirigindo-nos, assim, até a essência de nossa
subjetividade, recorrendo a nosso sentido de responsabilidade e nossa
consciência.
Como entra a história nesta relação moral entre nossa ação,
nossa personalidade e nossas orientações valorativas? A narração es-
quematizada no princípio deste ensaio pode nos servir para propor-
cionar uma resposta: quando se supõe que os valores morais guiem as
ações que tomamos em uma dada situação, devemos relacionar os va-
lores a essa situação, interpretar os mesmos e seu conteúdo moral com
referência à realidade em que os aplicamos, e avaliar a situação nos ter-
mos de nosso código de valores morais aplicáveis. Para essa mediação
entre valores e realidade orientada pela ação, a consciência histórica é
um pré-requisito necessário. Sem tal consciência, não seríamos capazes
de entender por que Ian Maclonish nos pediu para o escondermos da
polícia. Sem tal consciência como pré-requisito para a ação, seríamos
incapazes de analisar a situação e chegar a uma decisão plausível para
todas as partes envolvidas - Ian, meu amigo que me visita, e eu como
um Maclean.
Mas, por que tem que ser a consciência histórica um pré-re-
quisito necessário para, a orientação em uma situação presente que de-
manda uma ação? Depois de tudo, tal consciência por definição aponta
para fatos do passado. A resposta simples é que a consciência histórica

55
Jõrn Rüsen

funciona como um modo específico de orientação em situações reais


da vida presente: tem como função ajudar-nos a compreender a reali-
dade passada para compreender a realidade presente. Sem haver narra-
do previamente a antiga história dos bebês trocados, seria impossível
explicar a meu amigo visitante a "situação atual" e justificar-lhe, que
quer dizer legitimar, minha decisão. Além disso, o poder explicativo
da narração serve para ensinar os elementos básicos da situação não
somente para quem está fora, como também para mim mesmo, um
homem do clã Maclean, e para alguma outra parte implicada.
Então, o que é especificamente histórico nesta explicação, nes-
ta interpretação da situação e em sua legitimação? O histórico como
orientação temporal une o passado ao presente de tal forma que confe-
re uma perspectiva futura à realidade atual. Isto implica que a referên-
cia ao tempo futuro está contida na interpretação histórica do presente,
já que essa interpretação deve permitir-nos atuar, ou seja, deve facilitar
a direção de nossas intenções dentro de uma matriz temporal. Q u a n d o
dizemos que nos sentimos forçados ou obrigados pelo antigo tratado,
definimos uma perspectiva futura em nossa relação com o clã Maclo-
pxsh, O mesmo é verdade em relação a todas as outras explicações e
justificativas históricas associadas a nossa decisão.
Desejo extrair desse exemplo narrativo uma característica geral
da consciência histórica e sua função na vida prática11. A consciência
histórica serve como um elemento de orientação chave, dando à vida
prática um marco e uma matriz temporais, uma concepção do "curso
do tempo" que flui através dos assuntos mundanos da vida diária; Essa
concepção funciona como um elemento nas intenções que guiam a ati-
vidade humana, "nosso curso de ação". A consciência histórica evoca o
passado como um espelho da experiência na qual se reflete a vida pre-
sente, e suas características temporais são, do mesmo modo, reveladas.
Afirmado sucintamente, a história é o espelho da realidade

" Uma descrição sintética pode ser encontrada em JEISMANN, Karl-


Ernest. "Geschichtsbewusstsein", em BERGMANN, K.; KUHN, A.; RÜSEN, J.;
SCHNEÍDER G. (Eds). Handbuch der Geschicbtsdidaktik. Düsseldorf, 1985, p. 40-44; cf.
idem Geschichte ais Hori^ont der Genenmi. Uber den T.usammenbang von Vergagenheitsdeutung.
Gegemvartsversiündnis und' Zukunftsperspektive (Paderborn, 1985, p. 53.

56
m
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

passada na qual o presente aponta para aprender algo sobre seu futu-
r a A consciência histórica deve ser conceituada como uma operação
do intelecto humano para aprender algo neste sentido. A consciência
histórica trata do passado como experiência, nos revela o tecido da
mudança temporal dentro do qual estão presas as nossas vidas, e as
perspectivas futuras para as quais se dirige a mudança. Nas palavras de
Shakespeare: "como o destino zomba, e as mudanças chegam ao topo
j da transformação, com diversos licores"111.
A história é um nexo significativo entre o passado, o presente
e o futuro — não meramente uma perspectiva do que foi, me es eighntlich
gewesen. É uma tradução do passado ao presente, uma interpretação da
: * realidade passada via uma concepção de mudança temporal que abar-
ca o passado, o presente e a perspectiva dos acontecimentos futuros.
Esta concepção molda os valores morais a um "corpo temporal" (por
J exemplo, o corpo da validade contínua de um antigo tratado), a história
se reveste dos valores da experiência temporal, A consciência históri-
I ca transforma os valores morais em totalidades temporais: tradições,
conceitos de desenvolvimento ou outras formas de compreensão do
tempo. Os valores e as experiências estão mediados e sintetizados em
tais concepções de mudança temporal.
É assim que a consciência histórica de um membro contem-
' porâneo do clã Maclean pode traduzir a idéia de moral pela qual os
tratados são obrigatórios e devem ser cumpridos na forma concre-
ta de um acordo presente, válido para além do tempo. A consciência
histórica mistura "ser" e "dever" em uma narração significativa que
refere acontecimentos passados com o objetivo de fazer inteligível o
presente, e conferir uma perspectiva futura a essa atividade atual. Desta
forma, a consciência histórica traz uma contribuição essencial à consci-
•; ência ética moral. Os procedimentos criativos da consciência histórica
são necessários para os valores morais e razão moral, como se a piau-
sibilidade lógica dos valores morais (em relação à sua coerência, por
:' exemplo), se não mais, até a plausibilidade no sentido de que os valores
devem ter relação aceitável com a realidade.

iji
Henry IV, 2.a parte, ato III, cena I, II, p. 51-53.

57
Jõrn Rüsen

A consciência histórica tem uma função prática": confere à re-


alidade uma direção temporal, uma orientação que pode guiar a ação
intencionalmente, através da mediação da memória histórica. Pode-se
chamar a esta função "orientação temporal". Essa orientação tem lugar
em duas esferas da vida respectivamente a a) a vida prática e b) a sub-
jetividade interna dos atores. A orientação temporal da vida tem dois
aspectos, um interno e outro externo. O aspecto externo da orientação
por via da história revela a dimensão temporal da vida prática, descobrin-
do a temporalidade das circunstâncias incluídas na atividade humana.
O aspecto interno da orientação por via da história revela a dimensão
temporal da subjetividade humana, outorgando autocompreensão e conhe-
cimento das características temporais dentro das quais aqueles tomam
a forma de identidade histórica, ou seja, uma consistência constitutiva
das dimensões temporais da personalidade humana.
Por meio da identidade histórica a personalidade humana ex-
pande sua extensão temporal, mais além dos limites do nascimento e
da morte, mais além da mera mortalidade. Via esta consciência históri-
ca, uma pessoa se faz parte de um todo temporal mais extenso que em
sua vida temporal.
Assim, então, o papel de um membro atual do clã Maclean
pressupõe uma identidade familiar histórica que se pode rastrear em
um antigo período de batalhas entre clãs pela concessão real de um ter-
ritório. Dando atualmente assistência a Ian Maclonish afirmamos esta
identidade, que significa ser um Maclean com respeito ao futuro. U m
exemplo mais familiar de tal "imortalidade temporal" (assim pode ser
caracterizada a identidade histórica) é a identidade nacional. As nações
freqüentemente localizam suas fontes em um passado remoto e antigo,
e projetam uma perspectiva de futuro ilimitado que engloba a própria
afirmação e desenvolvimento nacional.

,v
Esta questão está discutida principalmente a partir de uma perspectiva
estreita da função dos estudos históricos na vida social, por exemplo, por Jürgen
Kocka, Sodalgescbichte. Begriff-Enttvicklung-Probleme, 2. ed. p. 112-113; cf. Jõrn Rüsen,
Lebendige Geschichte, Grund^üge einer Historik III: Formen und Funktionen des Historischen
ir«yíj(Gõtringcn, 1989).

58
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

3. A competência narrativa da consciência histórica


A forma lingüística dentro da qual a consciência histórica rea-
liza sua função de orientação é a da narração. A partir desta visão,
as operações pelas quais a mente humana realiza a síntese histórica
das dimensões de tempo simultaneamente com as do valor e da expe-
riência se encontram na narração: o relato de uma históriav. Uma vez
explicadas a forma narrativa dos procedimentos da consciência histó-
rica e sua função como meio de orientação temporal, é possível carac-
terizar a competência específica e essencial da consciência histórica e
sua função como meio de orientação temporal, é possível caracterizar
a competência específica e essencial da consciência histórica como
"competência narrativa"Y1. Essa competência pode se definir como a
habilidade da consciência humana para levar a cabo procedimentos
que dão sentido ao passado, fazendo efetiva uma orientação temporal
na vida prática presente por meio da recordação da realidade passada.
Esta competência geral relativa a "dar sentido ao passado" pode ser
definida em termos dos três elementos que constituem juntos uma
narração histórica: forma, conteúdo e função. Em relação ao conteúdo,
pode-se falar de "competência para a experiência histórica"; em relação
à forma, de "competência para a interpretação histórica"; e em relação
à função, de "competência para a orientação histórica".
a) A consciência histórica se caracteriza pela "competên-
cia de experiência". Esta competência supõe uma ha-
bilidade para ter experiências temporais. Implica a ca-
pacidade de aprender a olhar o passado e resgatar sua
qualidade temporal, diferenciando-o do presente. Uma
forma mais elaborada de tal competência é a "sensibi-

v
Cf. WHITE, H. Metahistory: the historical imagination in nineteenth centurv
Europe. Baltímore, 1973; RÜSEN, J. Historische Vernunft Grund^iige einer Historik I: Die
Grundlagen der Gerschichtiinssenchaft (Gõttingen. 1983); RICOEUR, Paul. Temps et Récit.
Paris, 1983, 1984, 1985. 3 v.; CARR, David. Time, nanative and histoiy. Bloomington,
1986.
" Esbocei um plano geral acerca de uma teoria da competência narrativa
relacionada aos principais objetivos da aprendizagem histórica em "Anzàte zu einer
Theoríe des historichen Lernens". Geschiétsdidaktik, 10, p. 249-265,1985; 12, p. 15-27,
1987.

59
Jõrn Rüsen

lidade histórica". N o fim de nossa narração, é a com-


petência para entender a pedra na muralha d o castelo
Maclean e a necessidade de prestar atenção na inscrição,
quer dizer, que contém informação importante para os
membros da família Maclean.
b) A consciência histórica se caracteriza posteriormente
pela "competência de interpretação". Esta competên-
cia é a habilidade para reduzir as diferenças de tempo
entre o passado, o presente e o futuro através de uma
concepçãp de um todo temporal significativo que abar-
ca todas as dimensões de tempo. A temporalidade da
vida humana funciona como um instrumento principal
desta interpretação, desta tradução de experiências da
realidade passada a uma compreensão do presente e a
expectativas em relação ao futuro. Essa concepção se
encontra na essência da atividade significativo-criativa
da consciência histórica. E a fundamental "filosofia da
história" ativa dentro das atividades significativo-criati-
vas da consciência histórica, que marca todo pensamen-
to histórico.
N o término de nossa narração, implica a competência
para integrar o acontecimento da troca dos bebês em
um conceito de tempo que une aquele antigo período
com o presente, dando a este complexo uma significa-
ção de peso histórico para os Maclean em sua relação
com os Maclonish. Essa concepção pode ser materiali-
zada na noção de validade indestrutível do tratado, ou
na evolução do direito de uma forma pré-moderna a
sua manifestação moderna.
c) A consciência histórica, finalmente, se caracteriza pela
"competência de orientação". Esta competência supõe
ser capaz de utilizar o todo temporal, com seu conteú-
do de experiência, para os propósitos de orientação da
vida. Implica guiar a ação por meio das noções de mu-
dança temporal, articulando a identidade humana com
o conhecimento histórico, mesclando a identidade n o

60
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

enredo e na própria trama concreta do conhecimento


histórico. O fim da narração de Highlands supõe a ha-
bilidade de utilizar a interpretação do tratado para ana-
lisar a situação presente e determinar um curso de ação,
ou seja, dizer se vai ou não esconder Ian, ou ajudá-lo
de qualquer outra forma, e legitimar esta decisão — em
cada instância usando uma "razão histórica boa" — rela-
tiva à identidade de um membro do clã Maclean.

4. Quatro tipos de consciência histórica


No texto anterior, tentou-se explicar as operações básicas da cons-
ciência histórica, sua relação com a consciência moral e suas principais
competências. A seção final desse texto trata da questão do desenvol-
vimento.
As diferentes teorias de desenvolvimento da consciência mo-
ral, elaboradas e empiricamente confirmadas por pensadores como
Piaget, Kohlberg e outros, são habituais na literatura sobre o desenvol-
vimento cognitivo™. Minha intenção aqui é propor uma teoria análoga
de desenvolvimento concernente à realidade ou à moral e à atividade
através de um ato narrativo: o relato de uma história de fatos passados.
Para encontrar as etapas de desenvolvimento estrutural na
consciência histórica, é necessário, antes de tudo, distinguir as estrutu-
ras básicas dentro dos processos concernentes à construção do sentido
histórico do passado. Proponho explicar estas estruturas básicas na
forma de uma tipologia geral do pensamento histórico. Esta tipologia
abarca conceitualmente o campo completo de suas manifestações em-
píricas, e, portanto, pode ser utilizada para o trabalho comparativo na
historiografia incluindo comparações interculturaisvm.

™ PIAGET, Jean. Das moralische Bewusstsein beimKinde. Frankfurt/Mein, 1973;


KOHLPERG, Lawrence. Zur Kognitiven Entmcklung des Kindes. Frankfurt/Main, 1974;
cf. HALLAN, RN. Piaget and thinking in History. In: BALLARD, Marin (Ed.). New
movements in the study andteaching history. London, 1970. p. 162-178.
vúi
Para urna explicação mais detalhada desta tipologia, ver RÜSEN, Jõrn.
Dier vier Typen des historischen Erzâhlens. In: KOSELLECK, Reinhart; LUTZ,
Hainrich; RÜSEN, Jõrn (Eds). Formen der Geschitsschereibung. Betràge sytr Historik,

61
j õ r n Rüsen

A tipologia já está implícita nos quatro modos diferentes de ar-


gumentação histórica apresentados brevemente em relação ao pedido
de ían Maclonish para se esconder da polícia. Qual é então o significa-
do tipológico desses quatro modos?
Meu ponto de partida é a função da narração histórica. C o m o
já foi mencionado, essa narração tem a função geral de servir para
orientar a vida prática no tempo. Mobiliza a memória da experiência
temporal, desenvolvendo a noção de um todo temporal abrangente, e
confere uma perspectiva temporal interna e externa à vida prática.
A consciência histórica realiza esta função geral em quatro for-
mas diferentes, baseadas em quatro princípios distintos para a orienta-
ção temporal da vida: a) a afirmação das orientações dadas, b) a regu-
laridade dos modelos culturais e dos modelos de vida ÇLebensformen), c)
a negação e d) a transformação dos modelos de orientação temática.
Todos estes são trazidos via a mediação da memória histórica.
Existem seis elementos e fatores de consciência histórica atra-
vés dos quais se pode descobrir estes tipos: 1) seu conteúdo, ou seja,
a experiência dominante do tempo, trazida desde o passado; 2) as for-
mas de significação histórica, ou as formas de totalidades temporais,
3) o modo de orientação externa, especialmente em relação às for-
mas comunicativas da vida social; 4) o modo de orientação interna,
particularmente em relação à identidade histórica como a essência da
historicidade no conhecimento da personalidade humana e a autocom-
preensão; 5) a relação de orientação histórica com os valores morais; e
6) sua relação com a razão moral (ver quadro 1).

Esquema da tipologia

a) O tipo tradicional
As tradições são elementos indispensáveis de orientação den-
tro da vida prática, e sua negação total conduz a um sentimento de
desorientação massiva. A consciência histórica funciona em parte para
manter vivas essas tradições.

Munich, 4, p. 514-605, 1982; RÜSEN, J. Lebendige Geschichte, Grundzüge einer Historik


III, part I; idem, Historical narration: foundation, types, reason, History and Theory,
Beihelf 26. In: The representatiom of historical events (1987, p. 87-97).

62
QUADRO 1 - OS QUATRO TIPOS DE CONSCIÊNCIA DA HISTÓRIA
TRADICIONAL EXEMPLAR C
Variedade de casos
Origem e repetição de um Desvios pr
Experiência do representativos de regras
modelo cultural e de vida dos modelo
tempo gerais de conduta ou
obrigatória vida atuais
sistemas de valores
Formas de Permanência dos modelos Rupturas d
Regras atemporais de vida
significação culturais e de vida na temporais
social. Valores atemporais
histórica mudança temporal sua validad
Afirmação das ordens
Relação de situações
preestabelecidas por acordo Delimitaçã
Orientação da vida particulares com
ao redor de um modelo de de vista pr
exterior regularidades que se atem ao
vida comum e válido para obrigaçõe
passado e ao futuro
todos
Relação de conceitos
Sistematização dos modelos próprios a regras e princípios Autoconfi
Orientação da vida gerais.
culturais e de vida por de obriga
interior role-playing
imitação - role-playing Legitimação do papel por
generalização
A moralidade é um conceito
preestabelecido de ordens A moralidade é a
Ruptura d
Relação com os obrigatórias; a validade generalidade da obrigação
valores p
valores morais moral é inquestionável dos valores e dos sistemas
validade
de valores
Estabilidade por tradição
À razão subjacente aos
Argumentação por Crítica d
Relação com o valores é um suposto efetivo
generalização, referência a ideologia
raciocínio moral que permite o consenso
regularidades e princípios discurso
sobre questões morais
Jõrn Rüsen

Quando a consciência histórica nos prove de tradições, nos faz


recordar as origens e a repetição de obrigações, fazendo-o em forma
de acontecimentos passados de concretização fática que demonstram
o atributo de validade e obrigatoriedade dos valores e dos sistemas de
valores. Tal é verdade o caso que, quando, por exemplo, em nosso rol
de membros do clã Maclean, sentimos um laço de obrigação quando
com um antigo tratado.
E m tal aproximação, tanto nossa interpretação do que ocorreu
no passado, como nossa justificativa para esconder a Ian Maclonish,
são "tradicionais". Alguns outros exemplos dessa "tradição" são os
discursos comemorativos públicos, os monumentos públicos, ou in-
clusive as histórias privadas narradas entre as pessoas com o propósito
de consentir sua relação pessoal. Assim, tanto você como sua esposa
estarão "apaixonados" da narração que descreve como chegaram a se
apaixonar — se, é claro, vocês ainda se amam.
As orientações tradicionais apresentam a totalidade temporal
que faz significativo o passado e relevante a realidade presente e a sua
extensão futura como uma continuidade dos modelos de vida e os
modelos culturais pré-escritos além do tempo.
/ As orientações tradicionais guiam externamente a vida huma-
na por meio de uma afirmação das obrigações que requerem consenti-
mento. Essas orientações tradicionais definem a "unidade" dos grupos
sociais ou das sociedades em seu conjunto, entretanto mantêm o senti-
mento de uma origem comum.
E m relação à orientação interna, essas tradições definem a
identidade histórica, a afirmação dos modelos culturais predetermina-
dos de autoconfiança e autocompreensão. Enquadram a formação da
identidade como um processo no qual se assumem e se atuam as rela-
ções. A orientação histórica tradicional define a moral como tradição.
As tradições expressam a moral como uma estabilidade inquestionada
de Lebensformen, de modelos de vida e modelos culturais além do tempo
e de suas vicissitudes.
E m relação ao raciocínio moral, as tradições são razões que
sustentam e asseguram a obrigação moral dos valores. Se a vida prática
se orienta predominantemente em termos de tradições, a razão que
molda os valores se encontra na permanência de sua realidade na vida
social, uma permanência que a história ajuda a trazer a nossa memória.

64
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

b) O tipo exemplar
Não são as tradições que utilizamos aqui como argumento,
mas as regras. A história das lutas entre os clãs e a troca dos bebês
exemplificam aqui uma regra geral atemporal: nos ensina que curso de
ação tomar e o que devemos evitar fazer.
Aqui a consciência histórica se refere à experiência do passado
na forma de casos que representam e personificam regras gerais de
mudança temporal e a conduta humana. O horizonte da experiência
temporal se expande de forma significativa neste modo de pensamento
histórico. A tradição se move dentro de um marco de referência empí-
rica bastante estreito, mas a memória histórica estruturada em termos
de exemplos está aberta para processos em número infinito de acon-
tecimentos passados, desde o momento em que estes não possuem
relação com uma idéia abstrata de mudança temporal e de conduta
humana, válido para todo o tempo, ou ao menos cuja validade não está
limitada a um acontecimento específico.
O modelo de significação que corresponde aqui tem a forma
de regras atemporais. Nesta concepção a história é vista como uma
recordação do passado, como uma mensagem ou lição para o presente,
como algo didático: historiae vitae maestrae é uma máxima tradicional na
tradição historiográfica ocidentallx. Ela nos ensina as normas, sua deri-
vação de casos específicos e sua aplicação.
O modo de orientação realizado pela consciência histórica nes-
te tipo de exemplo está focado na regra: implica a aplicação de regras
comprovadas e derivadas historicamente de situações atuais. Muitos
exemplos clássicos da historiografia na variedade de culturas diversas
refletem este tipo de significação histórica. Na antiga tradição chinesa,
o melhor exemplo é o clássico de Suma-Kuang, T^uchih fung-chien (Um
espelho para o governo). Seu próprio título indica como concebe o
passado como exemplo: a moral política se ensina na forma de casos
de governo que tiveram êxito ou sucumbiram,

ix
Cf. KOSSELLECK, R. Historia Magistra vitae. Uber die auflüsung des Topos
Im Horizont neuzeitlich bewegter Geschichte In: KOSSELLECK, R. Vergangene
Zukunft. Zur Semantikgeschichtlicher T.eiten. Frankfurt/Main, 1979, p.38-66.

65
J õ r n Rüsen

E m relação à orientação interna da vida, o pensamento históri-


co exemplar relaciona as atividades da vida às regras e princípios, e tem
como função legitimar tais atividades através do raciocínio abstrato. A
identidade histórica é o marco dado de sensatez (prudência). Sua maté-
ria é a competência dada a resultar regras gerais de casos específicos e
aplicá-los a outros casos. Procedendo deste modo, tal forma de cons-
ciência histórica faz uma contribuição significativa ao raciocínio moral.
O pensamento histórico exemplar revela a moralidade de um valor ou
de um sistema de valores, culturalmente materializados na vida social e
pessoal, através da demonstração de sua generalidade: ou seja, que tem
uma validade que se estende a uma gama de situações. Conceitua-se a
moral como possuindo validade atemporal.
A contribuição deste modo de interpretação histórica ao racio-
cínio moral é clara: a história ensina o argumento moral por meio da
aplicação de princípios a situações concretas e específicas, tais como
um golpe na porta por um membro do clã Maclonish ao cair da noite.

c) O tipo crítico
O argumento decisivo na versão crítica de nossa narração é
que, como um membro do clã Maclean, nós não sentimos obrigação
nenhuma frente ao suposto atributo de "obrigatório". Para nós, é um
velho conto que perdeu toda a relevância para a ação presente e a reali-
dade. N o entanto, isto não é automaticamente assim: como um Macle-
an, somos de certo modo parte desta história, a antiga pedra contém
certamente sua inscrição na muralha. Assim, devemos apresentar uma
nova interpretação que - por meio do raciocínio histórico - negue a
validade do tratado.
A maneira mais fácil é declarar que o conto é falso. Para ser
convincente, devemos reunir a evidência e isto requer que nos volte-
mos à argumentação histórica crítica estabelecendo que é plausível a
contenção entretanto não existem razões históricas que pudessem nos
motivar a oferecer ajuda a Ian Maclonish.
Podemos desenvolver uma crítica ideológica, afirmando que
houve uma armadilha no meio de tudo: uma armação dos Maclonish
para manter os Maclean em uma espécie de dependência moral sobre
eles. Podemos argumentar também que naquele antigo período estava

66
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

proibido assassinar bebês, que é o motivo pivô sobre o qual gira a


história. Tal argumentação se baseia em oferecer elementos de uma
"contranarração" àquela gravada na pedra. Por meio dessa "contranar-
raçao" podemos desmascarar uma história determinada como um en-
gano, desprestigiá-la como uma informação falsa. Podemos argumen-
tar também de outra forma, afirmando que o tratado gravado na pedra
perdeu sua validade atual, desde o momento em que novas formas de
direito emergiram desde então. Logo, podemos narrar uma "contra-
-história" breve, por exemplo, a história de como as leis mudaram com
o passar do tempo.
Quais são as características gerais de tal modo de interpretação
histórica? Aqui a consciência histórica busca e mobiliza uma classe es-
pecífica de experiência do passado: a evidência prevista pelas "contra-
narrações", desvios que tornam problemáticos os sistemas de valores
presentes e os Lebensformen.
O conceito de uma totalidade temporal abrangente que inclui
o passado, o presente e o faturo envolve, deste modo, algo negativo:
a noção de uma ruptura na continuidade ainda operativa da consciên-
cia. A história funciona como a ferramenta com a qual se rompe, "se
destrói", se decifra tal continuidade — para que perca seu poder como
fonte de orientação no presente.
As narrações deste tipo formulam pontos de vista históricos,
demarcando-os, distinguindo-os das orientações históricas sustentadas
por outros. Por meio dessas histórias críticas dizemos 'não' às orienta-
ções temporais predeterminadas de nossa vida.
Em relação a nós e a nossa própria identidade histórica, tais
histórias críticas expressam uma negatividade; o que não queremos ser.
Proporcionam-nos uma oportunidade para nos definirmos como não
reféns de papéis e formas prescritas, predefinidas de autocompreensão.
O pensamento histórico-crítico aclara o caminho para a constituição
da identidade pela força da negação.
Sua contribuição aos valores morais se encontra em sua crítica
dos valores. Desafia à moral apresentando o seu contrário. As narra-
ções críticas confrontam os valores morais com a evidência histórica
de suas origens ou conseqüências imorais. Por exemplo, as feministas
modernas criticam o princípio da universalidade moral. Alegam que

67
j õ r n Rüsen

isso nos leva a considerar a natureza do "outro" nas relações sociais a


favor de uma universalização abstrata dos valores como condição su-
ficiente de sua moralidade. Afirmam que tal "universalização" é com-
pletamente parcial e ideológica, servindo para estabelecer a regra do
homem como uma norma humana geral, e que faz caso omisso da sin-
gularidade através do gênero do h o m e m e da mulher como condição
necessária da humanidade*.
O pensamento histórico-crítico injeta elementos de argumen-
tação crítica ao raciocínio moral. Põe em questão a moral apontando a
relatividade cultural nos valores, que contrasta com uma universalidade
suposta e aparente, descobrindo os fatores da condição temporal que
contrasta com uma validade atemporal falsa. Confronta às solicitações
de validade com a evidência baseada na mudança temporal: o relativo
poder das condições e conseqüências históricas. E m sua variante mais
elaborada, apresenta um raciocínio moral como uma crítica ideológica
da moral. Dois exemplos clássicos de tal empresa são a crítica de Marx
aos valores burgueses' 0 e a Genealogia da Moral de Nietzsche xu .

d) O tipo genético
N o centro dos procedimentos para dar sentido ao passado en-
contra-se em si mesmo a mudança. Nesta estrutura, nosso argumento
é que "os tempos mudam": nos opomos assim à opção de esconder
a Ian devido a razões tradicionais ou exemplares e à opção de negar
criticamente a obrigação que impõe esta velha história como uma ra-
zão para não escondê-lo. Pelo contrário, aceitamos a história mas a
localizamos em uma estrutura de interpretação dentro da qual o tipo de
obrigação em relação a acontecimentos passados mudou, de uma for-
ma pré-moderna para uma forma moderna de moral. Aqui a mudança
é a essência e o que dá à história seu sentido. Assim, o velho tratado
perdeu sua validade principal e tomou uma nova; em conseqüência,

x
Cf. BENHABIB, Seyla. The generalized and the Concrete Other: Visions
of the autonomous Self. Praxis International, v. 5, 4, p. 402-424, 1986.
XI
Sobre Direitos Humanos e Civis ver seu ensaio "Zur judenfrage", in
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Werke, 1 (Berlin-GDR-1964).
xii
NIETZCHE, Friedrich. Zur Genealogie der Moral (1887), in SCHLECHTA,
K. (Ed.). Werke in drei Banden. Munich, 1955, p. 761-900.

68
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

nosso comportamento necessariamente difere agora do que teria sido


no passado distante: se constrói dentro de um processo de desenvol-
vimento dinâmico.
Portanto, escolhemos ajudar a lan Maclonish, mas de maneira
diferente à prefigurada no tratado preservado na pedra da muralha de
nosso castelo. Permitimos que a história faça parte do passado; no
entanto, ao mesmo tempo, lhe concedemos outro futuro. A mudança
propriamente dita é que dá sentido à história. A mudança temporal se
despojou de seu aspecto ameaçador e se transformou no caminho no
qual estão abertas as opções para que a atividade humana crie um novo
mundo. O futuro supera, excede efetivamente o passado em seu direito
sobre o presente, um presente conceituado como uma intersecção, um
nó intensamente temporal, uma transição dinâmica. Esta é a forma
refinada de uma espécie de pensamento histórico moderno marcado
pela categoria de progresso, ainda que tenha sido arrojado por uma dú-
vida radical pelas intimações da pós-modernidade, pensadas por certo
segmento da elite intelectual contemporânea.
Neste modelo a memória histórica prefere representar a expe-
riência da realidade passada como acontecimentos mutáveis, nos quais
as formas de vida e de cultura distantes evoluem em configurações
"modernas" mais positivas.
Aqui a forma dominante de significação histórica é a do de-
senvolvimento, em que as formas mudam em ordem, paradoxalmente,
para manter seu próprio desenvolvimento. Assim, a permanência toma
uma temporalidade interna, tornando-se dinâmica. Ao contrário, a per-
manência através da tradição, por regras atemporais exemplares, pela
negação crítica — isto é, a ruptura da continuidade —, são todas essen-
cialmente de natureza estática.
Esta forma de pensamento histórico vê a vida social em toda a
abundante complexidade de sua temporalidade absoluta.
Diferentes pontos de vista podem ser aceitos porque se inte-
gram em uma perspectiva abrangente de mudança temporal. Voltando
a nossa narração, nós, como o moderno Maclean, ansioso por persua-
dir ao moderno Maclonish de que seria mais sábio para ele entregar-se
à polícia, e então aceitar nossa ajuda. Suas expectativas e nossa reação
devem se cruzar. E cremos que essa intersecção é parte da interpreta-

69
Jõrn Rüsen

ção histórica dentro da qual tratamos a situação atual. Este reconheci-


mento mútuo é parte da perspectiva futura que herdamos do passado
através de nossa decisão no presente, não para oferecer a ele refugio,
mas para ajudá-lo de uma maneira que acreditamos ser mais coerente
com o teor de nossa época: "Conheço um bom advogado".
E m relação a nossa autocompreensão e autoconfiança, este
tipo de consciência histórica permeia a identidade histórica com uma
temporalização essencial. Nos definimos estando em uma encruzilha-
da, uma superfície de contato de tempo e de fatos, permanentemente
em transição. Para continuar sendo o que somos, para não evoluir e
mudar, nos parece como um modo de autoperda, uma ameaça a nossa
identidade xlü . Nossa identidade está em nossa incessante mudança.
Dentro do horizonte desta classe de consciência histórica, os
valores morais se temporizam, a moral se despoja de sua natureza es-
tática. O desenvolvimento e a mudança pertencem à moral dos valores
conceituada em termos de uma pluralidade de pontos de vista, e a
aceitação da concreta característica de "outro", do não semelhante, e
a mútua aceitação daquele "outro", como a noção dominante de valor
jnoral.
De acordo com esta temporalização como um princípio, o ra-
ciocínio moral depende aqui essencialmente do argumento da mudan-
ça temporal como necessária ou decisiva para estabelecer a validade
dos valores morais. Portanto, um indivíduo pode se movimentar desde
a etapa final no esquema kolbergiano do desenvolvimento da consci-
ência moral até o estágio mais avançado: os princípios morais incluem
sua transformação dentro de um processo de comunicação. É aqui
onde eles se realizam concretamente e individualmente, engendrando
diferenças; estas, por sua vez, ativam procedimentos de reconhecimen-
to mútuo, mudando a forma moral original. Uma fascinante ilustração
deste estado da argumentação moral, que não se pode elaborar no con-
texto deste ensaio, é o exemplo das relações entre os sexos. A idéia dos

xm
Uma das obras de Bertold Brecht, "Stories of Mr. Keuner" ilustra isto
maravilhosamente: "a man who hadn't seen Mr., Keuner for a long time greeted him
with the remark: You don't look any different at ali. Oh!, said Mr. Keuner, and turned
pale" (BRECHT, B. Gesammelte Werke, 12. Frankfurt/Main, 1967, p. 383).'

70
m
I Jõrn Rüsen e o Ensino de História
!;*
Direitos Humanos Universais é outro exemplo claro que demonstra a
plausibilidade desta forma genética de argumentação em relação aos
•;!,; valores morais***
Esta Tipologia se entende como uma ferramenta metodoló-
gica e investigativa para a investigação comparativa. Na medida em
que a moral está conectada com a consciência histórica, podemos usar
esta matriz tipológica para ajudar a categorizar e caracterizar as pecu-
liaridades culturais e as características únicas dos valores morais e os
modos de raciocínio moral em diferentes épocas e cenários. Desde o
momento em que os elementos dos quatro tipos estão operativamente
mesclados no processo que dá à vida prática uma orientação histórica
;
*; - no tempo, podemos reconstruir as complexas relações entre estes ele-
| mentos para determinar com precisão e definir a especialidade estrutu-
j ral das manifestações empíricas da consciência histórica e sua relação
| com os valores moraisxv.
•;j

I 5. O desenvolvimento das competências narrativas


| Não é minha intenção aqui focalizar o método comparativo
em historiografia. Pelo contrário, desejo fazer uso da tipologia para
construir uma teoria do desenvolvimento ontogenético da consciência
*' histórica. Tal teoria é familiar desde os estudos psicológicos sobre o
• desenvolvimento cognitivo™, mas segundo o que sei não houve até
;
•+ agora nenhuma tentativa séria para acrescentar esta perspectiva psico-
lógica investigando a consciência histórica e suas competências cog-
*' nitivas. Desde o momento em que a consciência histórica pode ser

1: xiv
: ; Cf. KÜHNHARDT, Ludger. Die Universalítãt der Menschnrechte. Studie tçir
ideengeschichtlichen Schulüsselbergriffs, Munich, 1987; RÜSEN, J. Menchen-und Bürgerrechte
ais historische Orienterung. In: FRÓHLICH, Klaus; RÜSEN, Jõrn (Eds). Revolutionen
und Menschenrechte. Historische Interpretationen, didaktishe Komçepte, Unterrichtsmaterialien.
' Plaffenwiler, 1989.
xv
Uma interessante contribuição a essa comparação com respeito à
historiografia na China é Hu Chang-tze Deutsche Ideologie undpolitische Ktdtur Chinas. Bine
Studie ^um sondenvergsgedankender chinessischen Bildungselite 1920-1940 (Bochum, 1983).
** Cf. nota 7. Para complementar, ver FURTH, Hans G. Piaget and knowkdge:
theorethical foudantions. Englewood Cliffs, Newjersey, 1969.

71
Jõrn Rüsen

conceituada como uma síntese entre a consciência temporal e moral,


poder-se-ia supor que desenvolver uma teoria genética da consciência
histórica fosse um assunto relativamente simples. Infelizmente, no en-
tanto, encontramos que Piaget e seus seguidores perseguiram a catego-
ria de tempo apenas dentro do marco teórico das ciências naturais xvlí ,
permanecendo de tal modo seu trabalho basicamente mudo com rela-
ção a questões da consciência histórica.
Para embarcar em uma investigação sobre a consciência his-
tórica e sua relação essencial com a consciência moral, é necessário
primeiramente esclarecei; as bases, isto é, um marco teórico que deva
ser construído e que defina o campo de ação e explique em termos
conceituais quais são as questões básicas a analisar. Sou da opinião
de que a tipologia acima esquematizada pode servir efetivamente para
tal propósito. Isto é assim porque revela e define fundamentalmente
os procedimentos da consciência histórica, inclusive dando algumas
noções básicas do que poderia implicar o desenvolvimento da cons-
ciência histórica.
Que conceitos de desenvolvimento podem de fato ser oriun-
dos da tipologia? Podemos nos aproximar de uma resposta ordenan-
do logicamente os tipos em uma seqüência definida pelo princípio da
precondição?
O tipo tradicional "a" é primário e não pressupõe outras for-
mas de consciência histórica. N o entanto, constitui a condição para os
outros tipos. É a fonte, o começo da consciência histórica. Na seqüên-
cia lógica de tipos, entretanto, cada um é a precondição para o próxi-
mo: tradicional, exemplar, crítico, genético. Ainda que esta seqüência
esteja baseada em critérios lógicos, pode ter aplicações empíricas, e
existe razão para supor que é também uma seqüência estrutural no
desenvolvimento da consciência histórica.
1. Primeiramente, a seqüência implica uma crescente com-
plexidade. As etapas na evolução humana também po-
dem ser descritas em termos de uma crescente capaci-
dade para ordenar a complexidade.

svil
PIAGET, Jean. Die Mdung des Zeitbewusstseins beim Kinde. Frankfurt-Main,
1974.

72
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

2. O crescimento em complexidade pode ser especificado


e diferenciado seguindo a ordem lógica das precondi-
ções. Assim, a extensão da experiência e o conhecimen-
to da realidade passada se expandem enormemente
quando o indivíduo se move do modo tradicional ao
exemplar. O tipo crítico requer uma nova qualificação
da experiência temporal baseada nas distinções entre
"meu próprio tempo" e "o tempo dos outros". Final-
mente, o tipo genético vai além desta qualidade pela
temporalização do tempo em si mesmo, isto é, "meu
próprio tempo" é dinâmico, mutável, instável, assim
como "o dos outros".
3. Há também um crescimento em complexidade com
respeito às formas de significação histórica. Não exis-
te uma diferença relevante entre fato e significado na
forma da consciência histórica tradicional. Divergem
na consciência histórica exemplar. Na forma crítica, o
significado em si mesmo muda, intensificando-se mais
ainda numa complexa diferenciação dentro do tipo ge-
nético.
4. Isto é igualmente certo quando vai ao grau de abstração
e complexidade das operações lógicas.
5. Existe também uma crescente complexidade da orien-
tação interna e externa. Na orientação externa, pode-se
demonstrar pela maneira como a consciência histórica
caracteriza a vida social; as tradições são exclusivistas,
apresentam seus próprios modos de vida e de cultura
como os Lebensformen unicamente aceitáveis. O pensa-
mento exemplar amplia isto através da generalização,
enquanto o pensamento crítico elabora pontos de vista
e delimitações baseados na crítica. O pensamento ge-
nético aclara a base temporal para um pluralismo de
visões.
6. Transitando através das séries tipológicas, há uma com-
plexidade crescente em relação à identidade histórica.
Começa com a inquestionada forma da autocomprcen-

73
Jõrn Rüsen

são histórica impressa pela tradição e que se estende até


o frágil balanço gerado pelas formas genéticas multidi-
mensionadas e multilaterais.
Meus argumentos foram aqui principalmente teóricos,
mas me parece que há certa quantidade de evidência
empírica para sustentar a hipótese de que a consciência
histórica segue a ordem tipológica esquematizada aqui
em sua evolução.
7. As observações diárias demonstram que os modos tra-
dicionais "e exemplares de consciência histórica estão
bastante estendidos e se podem encontrar com fre-
qüência; os modos críticos e genéticos, pelo contrário,
são mais raros. Este fato se correlaciona com o grau de
educação e conhecimentos e com o progresso do inte-
lecto humano até competências mais complexas.
8. A experiência de ensinar história em escolas indica que
as formas tradicionais de pensamento são mais fáceis
de aprender, a forma exemplar domina a maior parte
/ dos currículos de história, as competências críticas e
genéticas requerem um grande esforço por parte dos
docentes e do aluno.

6. Observações empíricas acerca da aprendizagem


histórica e a investigação empírica

Como resumo, eu gostaria de voltar à questão da aprendizagem


histórica. A aprendizagem pode ser conceituada como um processo de
digestão de experiências, absorvendo-o sob a forma de competências.
A aprendizagem da história é um processo de digestão de experiências
do tempo em formas de competências narrativas"'"1. A "competência
narrativa" se entende aqui como a habilidade para narrar una história
pela qual a vida prática recebe una orientação no tempo. Esta compe-
tência consiste em três habilidades: 1) a habilidade da experiência, re-

Cf. Rüsen, "Anyite %u einer Tbeorie des historischen I^emes".

74
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

lactonada com a realidade passada; 2) a habilidade de interpretar, rela-


cionada com o todo temporal que combina a) a experiência do passado
com b) a compreensão do presente e c) as expectativas concernentes
ao futuro; e 3) a habilidade de orientação relacionada com a necessida-
de prática de encontrar um caminho através dos estreitos e remansos
da mudança temporal.
Em termos teóricos, não é difícil explicar o desenvolvimen-
to da consciência histórica como um processo de aprendizagem. A
aprendizagem é conceituada em seu marco de referência como uma
qualidade específica dos procedimentos mentais da consciência his-
tórica. Tais procedimentos são chamados "aprendizagem" quando as
competências são adquiridas para a) experimentar o tempo passado,
b) interpretá-lo na forma de história e c) utilizá-lo para um propósito
prático na vida diária.
Utilizando a tipologia, a aprendizagem histórica pode explicar-
-se como um processo de mudança estrutural na consciência histórica.
A aprendizagem histórica implica muito mais que o simples adquirir
de conhecimento do passado e a expansão do mesmo. Visto como
um processo pelo qual as competências se adquirem progressivamente,
emerge como um processo de mudança de formas estruturais pelas
quais tratamos e utilizamos as experiências e conhecimento da rea-
lidade passada, passando de formas tradicionais de pensamento aos
modos genéticos.
Assim, a tipologia oferece uma base para uma teoria útil e di-
ferente de aprendizagem histórica. Tal teoria combina três elementos
centrais da competência narrativa (experiência, interpretação, orienta-
ção) e quatro etapas de seu desenvolvimento. Esta teoria pode ser de
certa significação para a teoria do desenvolvimento da consciência mo-
ral e a aprendizagem moral.
Infelizmente a teoria, somente, não basta para analisar as es-
pinhosas questões da consciência histórica e moral. A prova da teoria
está em amontoar muita evidência empírica que sustente suas teses, e
aqui se necessita muito trabalho de investigação. Houve só alguns tra-
balhos isolados de investigação empírica até agora sobre a aprendiza-

75
Jõrn Rüsen

gem da história e a consciência histórica*1*, e é familiar uma focalização


especial sobre a relação entre a aprendizagem e a consciência histórica
e moral5"1.
Uma investigação desta natureza enfrenta formidáveis obstá-
culos, em especial a intrincada complexidade da consciência histórica
e suas quatro competências. Os quatro tipos aqui presentes não são
escritas alternativas, permitindo qualquer reconto simples de sua dis-
tribuição nas manifestações da consciência histórica; normalmente os
tipos aparecem em mesclas complexas, e é necessário descobrir sua
ordem hierárquica e interpelação em qualquer manifestação dada da
consciência histórica. Não obstante, a tipologia pode dirigir nossa aten-
ção, e funciona de maneira investigativa, definindo questões e prepa-
rando estratégias para a utilização em estudos empíricos.
Tal tipologia imprime a idéia aos investigadores de que o que é
importante descobrir em relação à consciência histórica não é a exten-
são do conhecimento implícito, mas também o marco de referência e
os princípios operativos que dão sentido ao passado.
Como estes podem se encontrar na evidência empírica? Há
uma aproximação básica e extrativamente orientada? Permita às pesso-
as relatar narrações que são relevantes para a orientação temporal de
suas próprias vidas, e logo analise as estruturas narrativas de tais his-
tórias. Tal investigação busca estabelecer respostas a perguntas como:

X1X
Publicações recentes realizadas na Alemanha, são: BORRIES, Bodo
von. Alltàgliches Geschichtsbewusstsein. Erkindüng durch Intensivinterviiws und
Versuch von Fallinterpretationen. Geschichtsdidaktik, 5, p. 243-262, 1980; BORRIES,
Bodo von. Zum Geschitsbewusstsein von Normalbürgern Hinweisse aus offenen
Interwies. In: BERGMANN, Klaus; SCHÕRKEN, Rolf (Eds). Geschichte im alltag-
alltag in der Geschichte. Düsseldorf, 1982. p. 182-209; T E P P E , Karl; WASNA, Maria.
Die Teilung Deutschíands ais Prob/ems des Geschichtsbewusstseisns. Eine empirische Untersuchung
uber Wirkungen von Geschichtsunterricht auf historiscbe Vorstellungen und politische Urteik.
Paderborn, 1987; OEHLER, Katherina. Geschichte in der politischen Rhetorik.
Historische Argumentationsmuster im Parlament der Bundesrepublik Deutschland.
Beitrãge %ur Geschichtsku/tur, Hagen, 2, 1989; BORRIES, Bodo von. Geschichtslemen und
Geschichtsbewusstsein, Empirische Erkundungen %u Enverd und Gebrauch von Historie. Stuttgart,
1988.
x
* ROTHE, Valentine. Werteersiehung und Geschichtsdidaktik Deitrag %u einer
Kritischen Werteersiehung im Geschichtsunterricht. Düsseldorf, 1987, não contém referências
a nenhuma investigação empírica.

76
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

que tipo (na tipologia) parece seguir esta narração? Há alguma relação
entre o tipo dominante e a idade do narrador? Que há de seu nível de
educação?
Os experimentos empíricos foram recentemente analisados
usando esta aproximação em relação à história de Highlandsxxl. Os alu-
nos e estudantes souberam o conto do clã Maclean e do clã Macio-
nish numa versão altamente "neutra". Enfrentaram a situação atual
de Maclean e lhes foi perguntado o que fariam em relação ao pedido
de assistência de Maclonish, escrevendo uma curta justificativa de sua
decisão que contivesse uma referência específica ao motivo dos meni-
nos trocados. Estes textos foram analisados em relação às formas de
interpretação histórica que eles utilizaram. Empiricamente, os quatro
tipos foram desde logo distinguíveis, e se provou inclusive diferenciar
mais agudamente esses tipos básicos da tipologia. Estabeleceu-se que
havia uma significativa correlação entre as formas narrativas usadas, a
idade dos alunos e seu nível de educação e aprendizagem alcançada.
Isto constitui apenas um exemplo limitado de investigação
empírica, e as perguntas não foram analisadas em relação ao compo-
nente moral da consciência histórica. Não obstante, sustentaria que
qualquer discussão sobre os valores morais e o raciocínio moral deverá
tentar relacionar-se às dimensões associadas da consciência histórica e
à aprendizagem da história.

xxi
SCHMIDT, Hans Günter. Eine Geschichte zum Nachdenken.
Erzáhltypologie, narrative Kompetenz und Geschichtsbewusstsein: Bericht uber eine
Versuch der empirischen Erfõrschung des Geschichtsbewusstseins von Schulern der
Sckundarstufe I (Unter und Mittelslufe). Geschichtsdidaktik, 12, p. 28-35, 1987.

77
/
EXPERIÊNCIA, INTERPRETAÇÃO,
ORIENTAÇÃO: AS TRÊS DIMENSÕES
DA APRENDIZAGEM HISTÓRICA*

Jõrn RJisen

0 que é a aprendizagem histórica? É a consciência humana


relativa ao tempo, experimentando o tempo para ser significativa, ad-
quirindo e desenvolvendo a competência para atribuir significado ao
tempo.
Esta definição é ampla demais. Abrange toda a área em que a
consciência histórica é influente e ativa. Todas as três dimensões do
tempo são temas da consciência histórica: através da memória o passa-
do se torna presente de modo que o presente é entendido e perspecti-
vas sobre o futuro podem ser formadas. A perspectiva sobre o passado
domina, é claro, uma vez que a consciência histórica funciona através
da memória. Essa consciência está, porém, completamente determi-
nada pelo fato de que a memória encontra-se intimamente ligada às
expectativas futuras. O próprio presente é visto, interpretado e repre-
sentado como um processo em curso na estreita relação da memória
com a expectativa de futuro1.

* RÜSEN, Jõrn. Experience, interpretation, orientation: three dimensions of


historical learning. Studies in Metahistory. Pretória: Human Sciences Research Council,
1993, p.85-93. Tradução para o português por Marcelo Fronza. Também existe uma
tradução feita por Márcio E. Gonçalves. Quando necessário, as duas traduções foram
cotejadas.
1
JEISMANN, Karl-Ernest. Didaktik der Geschichte: Das spezifische
Bedingungsfeld des Geschichtsunterrichts. In: BEHRMANN, Günter C.;JEISMANN;
Karl-Ernest; SÜSSMUTH, Hans. Geschichte und Politik. Didaktische Gmndiegung eines
kooperativen Unterrichts, 1978, p. 50-108. Paderborn. Idem: Geschichte ais Hori^pnt der
Gegemvart. Über den Zusammenhang von Vergangenheitsdeutungy Gegenwartswrstandnis und

79
Jõrn Rüsen

Pode-se, em suma, definir este ato de rememoraçâo como o


ato de dar sentido à experiência do tempo 2 . A consciência histórica
funciona por meio da memória; ela aproxima as três dimensões d o
tempo; cumpre a função prática de orientar um sujeito em direção ao
tempo.
A consciência histórica vem à tona ao contar narrativas, isto é,
histórias, que são uma forma coerente de comunicação, pois se referem
à identidade histórica de ambos: comunicador e receptor. As narrati-
vas, ou seja, histórias contadas aqui, são produtos da mente humana;
com sua ajuda as pessoas envolvidas localizam-se no tempo de u m
modo aceitável para si mesmas.
A memória da consciência histórica é, portanto, determinada
pelas exigências e desejos dos sujeitos — isto é, os historiadores e sua
audiência. O significado presente do passado deve, além disso, ser acei-
tável para aqueles que estavam direta ou indiretamente envolvidos nos
acontecimentos narrados 3 . As narrativas históricas não poderiam ser
apresentadas para preencher uma função orientadora se a verdade não
existisse nelas mesmas — isto é, um elemento de consenso entre as par-
les envolvidas. Esta verdade transcende o autointeresse em fazer exi-
gências e impor a própria vontade: a verdade faz o interesse relevante
se tornar comunicável em relação a outros interesses; a verdade força
os interesses relevantes a provarem a si mesmos, orientando-os, assim,

Zukunftsperspektive, 1985. 43 £ Paderborn. [JEISMANN, Karl-Ernest. A didática de


história: as condições específicas do campo do ensino de História. In: B E H R M A N N ,
Günter C ; JEISMANN, Kari-Ernest; SUSSMUTH, Hans. História e política. Bases
didáticas do ensino colahorativo, 1978, p. 50-108. Paderborn. Idem; História como o horizonte do
presente. Sobre a relação entre a interpretação do passado, a compreensão do presente e as perspectivas
do futuro, 1985. 43 f. Paderborn.]
2
RUSEN, Jõrn. 1990. Die vier Typen des historischen Erzàhlens. In:
. Zeit und Sinn. Strategien historischen Denhens, Frankfurt/M., 1990. p. 153-230.
[RÜSEN, Jõrn. Os quatro tipos da narrativa histórica. In: . Tempo e significado: As
estratégias da argumentação histórica, Frankfurt/M., 1990, p. 153-230.]
3
RÕTTGERS, Kurt. Geschichtserzáhlung ais kommunikativer Text. In:
QUANDT, Siegfried; SUSSMUTH, Hans (Ed.). Historisches Er^hlen. Formen und
Funktionen, Góttingen, 1982. p. 29-48. [RÕTTGERS, Kurt. A narrativa histórica como
um texto comunicativo. In: QUANDT, Siegfried; SUSSMUTH, Hans (Ed.). A narrativa
histórica. Formas efunções, Góttingen, 1982. p. 29-48.]

80
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

a dar significado ao passado, o qual, é de consenso geral, compreende


as relações presentes e toma decisões ou, pelo menos, sugestões para
as decisões baseadas em perspectivas futuras.
O que se ganha em insight quando se considera o que está acon-
tecendo na consciência histórica humana como um processo de aprendiza-
gem} O que se ganha em insight quando se considera o processo de dar
sentido à experiência do tempo através da memória como um processo
de aprendizagem? Este processo deve enfrentar uma qualidade espe-
cial de consciência, voltada para as histórias, uma vez que nem toda a
memória histórica e nem todo o uso da experiência ou da interpretação
ou da orientação do passado humano podem servir como aprendizado
histórico.
Para esclarecer no que esta distinção é exata, eu escolhi um
(talvez demasiado) simples exemplo: "Aprender a nadar" e "nadar" em
si devem ser distinguidos um do outro como dois processos diferen-
tes, embora, ao aprender a nadar, a natação deva ser feita; e ao nadar,
mesmo quando isto não é realizado com a intenção de aprender, algo
possa ser aprendido.
Com a história a questão é muito mais complicada. Não é tão
simples nomear exatamente as habilidades que são aprendidas quando
se aprende a história (que tipo de conduta é característica de alguém
que tem uma consciência histórica desenvolvida?). É o sentimento do
"agora eu sou capaz de fazer isto" possível em relação à consciência
histórica da mesma forma que alguém que possui esta convicção após
passar muito tempo nadando?
Quais encontros do passado não são, de fato, parte do pro-
cesso de aprendizagem? A aprendizagem pode ser a aquisição de no-
vos conhecimentos sem um real desenvolvimento na aprendizagem.
Pode-se adquirir novos conhecimentos na maneira como alguém vê
televisão passivamente, adquirindo algumas informações históricas e
uma nova informação pertencente à história. Isto pode ser identificado
como aprendizagem, mas na verdade é apenas a repetição daquilo que
já se sabe e, portanto, não abrange o desenvolvimento real da apren-
dizagem.
Pode-se distinguir, avaliar e classificar as diferentes operações
da consciência histórica, e das ciências envolvidas na história, de açor-

81
*< i
Jõrn Rüsen

do com níveis de intensidade da aprendizagem. Quais são os critérios


para distinguir, avaliar e classificar a qualidade da aprendizagem?
Esta é uma questão chave na didática histórica (a resposta para
esta pergunta também determina o que se espera de um livro didático,
que deve ser compreensível e útil para a aprendizagem). O que, no
processo mental da consciência histórica, é específico à aprendizagem,
e de acordo com quais perspectivas históricas a qualidade da apren-
dizagem pode ser avaliada? Gostaria de responder a esta questão por
meio da distinção entre duas perspectivas em três níveis ou dimensões
da aprendizagem histórica.
Aprender é um processo dinâmico em que a pessoa que apren-
de é transformada. Algo é ganho, algo é adquirido — conhecimento,
habilidade ou uma mistura de ambos. Na aprendizagem histórica,
"história" é adquirida: os fatos objetivos, coisas que aconteceram no
tempo, tornam-se um assunto do conhecimento consciente — tornam-
-se subjetivos. Eles começam a desempenhar um papel na construção
mental de um sujeito. A aprendizagem histórica é um processo de fatos
colocados conscientemente entre dois pólos, ou seja, por um lado, um
pretexto objetivo das mudanças que as pessoas e seu mundo sofreram
em tempos passados e, por outro, o ser subjetivo e a compreensão
de si mesmo assim como a sua orientação no tempo. Este processo
pode ser caracterizado por um duplo movimento: em primeiro lugar,
é a aquisição de experiência enquanto o tempo prossegue (formulado
de maneira abstrata: é a subjetivação do objeto); em segundo lugar, é
a escravização do sujeito em relação à experiência (a objetivação do
sujeito). Mas isso nao significa que a aprendizagem histórica é empi-
ricamente apresentada de um modo castrado e seco e simplesmente
reproduzida conscientemente - isto é, simplesmente objetivada. Tam-
bém não significa que a pessoa que está aprendendo é simplesmente
entregue ao que a história está ensinando a ele ou ela. E m tal visão
sobre os processos de aprendizagem, o papel produtivo do sujeito, a
pessoa que aprende, é subexposto, e a "história", enquanto conteúdo
do processo de aprendizagem, é concretizada de m o d o errado.
A história pretende ser "objetiva" de duas maneiras: em pri-
meiro lugar, é entendida como o sedimento do desenvolvimento tem-
poral da vida no presente (cada pessoa nasce na história e, ao se tornar

82
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

parte do passado, torna-se parte do presente); em segundo lugar, a


história, é evidente, pretende ser objetiva nos documentos, os quais
fornecem informações sobre quando, como, por que e por quem algo
aconteceu. A pressão da experiência no caso do primeiro pretexto da
"História" é qualitativamente mais forte do que no caso do segundo
pretexto, Para enfrentar o próprio presente, é claro, tem que se levar
em consideração a experiência. Este é sempre o caso nas relações da
vida real: a história age prescritivamente em direção a todos os esforços
conscientes da aprendizagem. A história não só prescreve às presentes
relações da vida para se tornar como elas se tornaram (a existência des-
sas relações não precisa, no entanto, de um fundamento histórico); as
narrativas — que são as histórias (precisamente, a memória consciente
e o passado interpretado) — são elas próprias parte das relações da vida
(a cultura política ou uma constelação complexa da identidade histó-
rica é, por exemplo, composta por elementos de identidade nacional
ou sexual). Histórias, as quais têm a sua própria realidade ("objetivi-
dade") no mundo real da vida humana, constróem uma ponte entre a
experiência de seus próprios relacionamentos na vida e a versão do-
cumental da experiência histórica. Elas constróem uma ponte entre a
história que trabalha dentro da memória do provisório, a vida prática,
para a história que vem conscientemente pela aprendizagem.
Chegar à "objetividade" da história por meio da aprendiza-
gem histórica é, entretanto, também unir (narrativamente) as condi-
ções provisórias das relações da vida real A "objetividade" da história
se une com as narrativas, com as histórias a que pertencem enquanto
parte cultural da realidade social. O sujeito não tende em direção à
história objetiva e, portanto, não deve necessariamente ser orientado.
Seria muito melhor que o sujeito devesse ser orientado por si mesmo e
que pudesse construir sua própria subjetividade, mais ou menos cons-
cientemente, para formar a sua própria identidade histórica.
A história objetiva não pode, no entanto, ordenar os pressu-
postos históricos da sua própria existência em razão de seus próprios
desejos, esperanças, anseios e medos. Estes elementos estão, obvia-
mente, em ação, mas não são suficientemente eficazes para chegarem
realmente a uma história objetiva e orientarem a sua função na auto-
compreensão histórica. Seria muito melhor que os interesses, expec-

83
Jõrn Rüsen

tativas e reivindicações históricas da história devessem ser feitos com


base na experiência, e que a história objetiva em si devesse trabalhar
sobre tais pressupostos, modificá-los e concretizá-los empiricamente
para se tornar relevante.
Este duplo processo de aprendizagem na aquisição d o conhe-
cimento histórico por meio da experiência e autorrealização se dá basi-
camente através de três operações - isto é, a experiência, a interpretação e
a orientação. As três operações podem ser analisadas e distinguidas uma
da outra em diferentes níveis ou dimensões da aprendizagem histórica.
A ocupação da consciência histórica enquanto aprendizagem histórica
pode ser abordada quando traz à tona um aumento na experiência do
passado humano, tanto como um aumento da competência histórica
que dá significado a esta experiência, e na capacidade de aplicar estes
significados históricos aos quadros de orientação da vida prática 4 . Dis-
tinguir entre os três níveis ou dimensões tem a vantagem de tornar
evidentes as áreas de atuação da consciência histórica, as quais têm
sido freqüentemente esquecidas. O que é de especial importância na
aprendizagem histórica é claro — isto é, não só uma competência, mas
uma multiplicidade de competências e a harmoniosa, equilibrada rela-
ção entre elas. Uma perspectiva analítica e diferenciada sobre a apren-
dizagem histórica se mantém no caminho da discussão didática quanto
às deficiências estruturais. Muito freqüentemente, a competência para
interpretar e orientar é negligenciada em favor dos componentes do
conhecimento empírico. Demasiadas vezes se desenvolve em desequi-
líbrios na relação entre estes três componentes. Qual é a utilidade de
um vasto conhecimento histórico, quando ele é ensinado apenas como
algo a ser decorado e sem nenhum impacto orientativo? Por outro
lado: de que serve a habilidade para refletir historicamente e criticar as
práticas quando a experiência é pobre?

4
Esta diferenciação corresponde à classificação da consciência histórica
apresentada por K.-E. Jeismann (ver nota 1): análise, julgamento, avaliação. Creio,
no entanto, que a classificação "a experiência, o significado e a orientação" é mais
abrangente e fundamental, e não contempla apenas as mais estritas áreas cognitivas da
consciência histórica.

84
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

Gostaria agora de expor em linhas gerais os acima mencio-


nados componentes da aprendizagem histórica um por um e, depois,
: apontar algumas das coisas essenciais que os mantêm unidos.
a) A aprendizagem histórica é o crescimento da experiência
ganha a partir do passado humano. As operações (nar-
rativas) da consciência histórica se tornam processos de
aprendizagem quando se concentram em aumentar o
j conhecimento sobre o que aconteceu no passado. Para
j ser capaz de fazer isso, é necessário que a consciência se
i abra para novas experiências. A aprendizagem histórica
:
j depende da boa vontade para selecionar experiências
que têm um caráter especificamente histórico. Quais
são as experiências e que encorajamento é necessário
para fazer tal escolha? Não basta simplesmente obser-
'i var que isso tenha acontecido em algum momento do
passado. Nada é histórico simplesmente porque tem
S um passado. O caráter histórico de algo existente está
em uma qualidade específica do tempo: a experiência,
assim, é a diferença qualitativa entre o passado e o pre-
sente. A aprendizagem histórica está preocupada com
v o fato de que o passado é um tempo qualitativamente
\'. diferente do presente e se tornou o tempo presente.
A experiência histórica é, portanto, principalmente a
í* experiência da diferença no tempo. A experiência da
diferença no tempo (uma antiga igreja ao lado do edi-
fício de um banco moderno, uma oficina ao lado de
um casebre) tem o seu encanto, um fascínio que é um
j' dos mais importantes estímulos para a aprendizagem
H histórica. No entanto, uma mudança consciente e ativa
em direção a essa experiência raramente se desenvolve
. apenas da fascinação com o objeto da experiência. Um
i * outro estímulo é necessário, o qual acompanha os pro-
blemas de orientação do presente. E, por exemplo, a
discrepância entre a expectativa do futuro e a experiên-
cia do presente que atrai a atenção para o passado; com
isto em mente, uma apresentação realista da experiência
r

85
J õ r n Rüsen

do passado deve ser desenvolvida a fim de superar esta


discrepância. A experiência da antigüidade do passado
abre o potencial futuro do presente. Isso tem significa-
do para o presente e deve ser incorporado nos quadros
de orientação da vida prática.
b) A aprendizagem histórica aumenta a competência para
encontrar significado. Nesta dimensão da aprendiza-
gem histórica o aumento da experiência e do conhe-
cimento é transformado numa mudança produtiva no
modelo pu padrão de interpretação. Tais modelos ou
padrões de interpretação integram diferentes tipos de
conhecimento e de experiência do passado humano em
um todo abrangente - ou seja, uma "imagem da histó-
ria". Eles dão aos fatos "significado" histórico. Eles es-
tabelecem significado e fazem possíveis diferenciações
de acordo com pontos de vista sobre o que é importan-
te. Concedem um lugar na apresentação histórica que é
considerado empírico. Eles são considerados enquanto
perspectivas e possuem um status teórico na consciência
histórica. Isso não significa que necessariamente assu-
mem a forma de teorias ou uma forma diferente vinda
dos elementos empíricos do conhecimento histórico.
Eles trabalham, principalmente, no subconsciente, no
nível da observação e das ordens implícitas — isto é,
produzindo conhecimento a partir da experiência (sen-
do assim, a partir da coerência complexa das experiên-
cias). Por último, estes modelos de interpretação deci-
dem quais são os elementos da experiência histórica
e do conhecimento histórico que são especificamente
"históricos", os quais estabeleceram o seu status espe-
cífico no tempo e que fazem parte dos conteúdos da
história.
O crescimento na competência da interpretação n o
aprendizado histórico significa o seguinte: os modelos
de interpretação, os quais estão em ação na interpreta-
ção das experiências e na ordenação do conhecimento,

86
Jòrn Rüsen e o Ensino de História

são colocados em movimento; esses modelos se tor-


nam flexíveis; tornam-se mais abrangentes e se diferen-
ciam e, finalmente, podem ser usados para a reflexão e
a argumentação. Os modelos tradicionais de interpre-
tação se tornam exemplares, os exemplares, críticos, e
os críticos, genéticos5. É, no entanto, possível discernir,
também, na história, nestas formas básicas de interpre-
tação, um crescimento qualitativo nas possibilidades
de significação. H.-G. Schmidt tem distinguido, como
exemplos, entre três estágios do uso da história6. São,
principalmente, as dissonâncias cognitivas e afetivas
entre a experiência do tempo e os modelos de interpre-
tação da história que levam a um crescimento na apren-
dizagem como uma competência de interpretação pos-
sível. São essas dissonâncias que conduzem às novas
formas e aos conteúdos do conhecimento histórico. O
processo de aprendizagem pode ser descrito como um
passo à frente em relação ao dogmatismo quase natural
nas atitudes históricas (a minha história — ou, talvez, a
história do professor — é a única possível e verdadeira),
indo em direção a uma perspectiva em que o conhe-
cimento histórico pode ser transformado por meio da
argumentação.
c) A aprendizagem histórica é um aumento na competên-
cia da orientação. Esta competência se preocupa com

5
Para a diferenciação entre esses tipos, consulte os artigos nestas obras de
Jòrn Rüsen: "Narrativa histórica: fundação, tipos, razão" e "O desenvolvimento da
competência narrativa na aprendizagem histórica. Uma hipótese ontogenética relativa
à consciência moral".
6
SCHMIDT, Hans-Günter. Eine Geschichte zum Nachdenken.
Erzáhltypologie, narrative Kompetenz und Geschichtsbewusstsein: Bericht über einen
Versuch der empirischen Erforschung des Geschichtsbewusstseins von Schülern
der Sekundarstufe I (Unter- und Mittelstufe). Geschichtsdidaktik, 12, p. 28-35, 1987.
[SCHMIDT, Hans-Günter. Uma história do pensamento. Informe tipológico, as
competências narrativas e a consciência histórica: Relatório sobre um estudo de
pesquisa empírica para a consciência histórica de alunos no ensino secundário I (básico
e intermediário). Didática da História, 12, p. 28-35,1987].

87
Jõrn Rüsen

a função prática da experiência histórica significativa


- isto é, com o uso do conhecimento histórico, que é
organizado num modelo abrangente de sentido voltado
para a organização significativa da vida prática nos pro-
cessos do tempo, os quais transformam as pessoas e seu
mundo. A autocompreensão das pessoas e o significa-
do que dão para o mundo sempre possuem elementos
históricos específicos. Estes elementos se referem aos
lados diacrônicos internos e externos da vida prática.
Pelo lado-externo subentende-se o significado abran-
gente do passado, presente e futuro dado às mudanças
temporais nas circunstâncias e nas relações das vidas
humanas: a este lado pertencem os componentes es-
senciais da ação. intencional — ou seja, as perspectivas
de futuro sustentadas pela experiência. Pelo lado inter-
no compreende-se a autoconceituação temporal dos
sujeitos pela qual se compreendem e se expressam a
respeito das mudanças temporais em suas vidas. Por
t esse conceito eles permanecem os mesmos, apesar das
transformações em seu mundo. A "identidade históri-
ca" é o termo comum para a consistência diacrônica
dos sujeitos no curso do tempo. Essa identidade é espe-
cificamente histórica quando suas dimensões temporais
ultrapassam as fronteiras de sua própria vida e a fini-
tude dos indivíduos é superada por meio da memória.
A natureza e a arte da orientação interna e externa de
acordo com o seu próprio ser no tempo devem ser
aprendidas. Isso já deve ser levado em conta na aqui-
sição de um modelo para a interpretação, uma vez que
este modelo deve conter as categorias ensináveis para a
interpretação do curso do tempo - isto é, para o pas-
sado, o presente e o futuro. A competência da orien-
tação de si, historicamente, é a habilidade em aplicar
este modelo, o qual é preenchido pelo conhecimento e
pela experiência, para situações da vida e para formular,
assim como refletir, sobre o seu próprio p o n t o de vista

88
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

na vida presente. O ponto de vista "objetivo" (tanto


quanto sexo, idade, status social etc. estão em causa), que
naturalmente sempre estará conosco, obtém, através
disso, um sentido subjetivo, temporal. Não apenas se
torna direcionado ao tempo, também se torna mutável
devido à sua qualidade subjetiva: torna-se (ao menos
parcialmente) parte da competência daqueles que estão
envolvidos no agir. Determinantes quase naturais, a si-
tuação de vida e a própria identidade são preenchidas
com o poder de estabelecer empiricamente significados
históricos. Pontos de vista são formulados, os quais
ganham importância e podem ser transformados por
meio da argumentação histórica.
Os quadros de orientação autoritários em relação à vida
prática são modificados pela aprendizagem histórica:
são historiados e, assim, enriquecidos com o "senti-
mento de realidade" (Wilhelm von Humboldt). Este
"sentimento" pode ser mais bem descrito como a ha-
bilidade de reconhecer a historicidade de si mesmo e
do próprio mundo como uma oportunidade para agir.
Essas mudanças também têm uma característica quali-
tativa: levam os sujeitos a abandonar a restrição advinda
dos pontos de vista autoritários, e possibilitam aos mes-
mos conhecer as perspectivas sobre a vida voltadas para
a liberdade de pensamento sobre os pontos de vista.
Com isso, permitem escolher uma perspectiva histori-
camente fundamentada.
d) As três operações da consciência histórica e as dimen-
sões da aprendizagem histórica delineadas acima são
naturalmente, intimamente relacionadas. Não exis-
te uma coisa tal como uma experiência histórica sem
significado, ou uma orientação histórica sem experiên-
cia; também, todos os modelos de interpretação estão
ao mesmo tempo interessados pela experiência e pela
orientação. Esta coerência representa a complexidade
da aprendizagem histórica, a qual possui dois pólos, o

89
Jõrn Rüsen

da aquisição da experiência, por um lado, e o da desco-


berta de si mesmo nos movimentos mentais da cons-
ciência histórica, por outro.
Seria um erro diferenciar o aprendizado histórico do
seu objeto - isto é, a história que deve ser aprendida
como uma experiência cultural e que coloca metas
orientadoras à disposição do estudante. Tal diferencia-
ção conduziria a uma didática histórica que organizaria
seus temas de acordo com um cânone dado de objetos
históricos. A dinâmica da subjetividade leva a uma es-
tagnação quando a história é ensinada como algo dado.
O conhecimento histórico que é aprendido simples-
mente pela recepção, impede, ao invés de promover,
á habilidade de dar significado à história e orientar a
si mesmo de acordo com a experiência histórica. Um
significado que é simplesmente "dado" não pode ser
observado como tal e a preocupação com sua função
fundamental de organizar o conhecimento é negligen-
ciada. Além disso, a subjetividade, enquanto uma fonte
para novas questões e uma vontade direcionada a novas
experiências, não pode ser explorada. Sendo assim, o
conhecimento histórico adquirido não pode ser produ-
tivamente empregado para a orientação dos problemas
da vida prática. Quando o conhecimento histórico se
torna objetivo demais, perde a sua função de orientação
cultural; em última análise, o conhecimento histórico é
produzido exatamente para preencher essa função cul-
tural.
Por outro lado, também seria um erro construir a apren-
dizagem histórica inteiramente em torno dos interesses
subjetivos dos estudantes. Nesse caso, a experiência e
os conhecimentos adquiridos pela consciência históri-
ca seriam simplesmente o filme no qual eles gravariam
sua subjetividade. A experiência histórica e o conhe-
cimento histórico, repletos de experiência, perderiam
sua resistência aos poderes da projeção de seus desejos,

90
J ò m Rüsen e o Ensino de História

esperanças e medos - e, assim, a chance de testar sua


subjetividade e reforçar sua experiência de acordo com
os "fatos" seria retirada do aprendiz. Poderia acontecer
que as necessidades subjetivas de orientação ou os seus
pontos de vista estivessem didaticamente organizados
de tal forma que a consciência histórica se tornasse
uma resistência contra as experiências e os conheci-
mentos confusos. Nesse processo de aprendizagem,
os interesses subjetivos simplesmente levariam à fixa-
ção ideológica das orientações com formas dogmáticas
correspondentes da identidade histórica; os estudantes
seriam enganados no que diz respeito a um "sentido
da realidade", segundo o qual eles se preocupariam em
desenvolver o significado da experiência histórica. Seus
significados e suas orientações se tornariam pobres em
experiência,
Ambas as formas mantêm, na aprendizagem histórica, o ensi-
no aos alunos da habilidade em desenvolver um equilíbrio
argumentativo entre a experiência e o sujeito. E m u m am-
biente de argumentação a experiência histórica não pode
levar os estudantes facilmente a orientações fixas ou dog-
máticas: o ambiente de argumentação, como é suposto, na
verdade, mantém os modelos de interpretação e os quadros
de orientação abertos e flexíveis em relação à experiência.
As operações da consciência histórica devem ser considera-
das, organizadas e influenciadas, principalmente, do ponto
de vista da aprendizagem histórica, com o objetivo de con-
ciliar as três dimensões dentro de um modelo — isto é, expe-
riência ou conhecimento, significado e orientação como um
todo integrado. Dever-se-ia ter como objetivo trazer estas
duas entidades ao equilíbrio: a história como u m dado ob-
jetivo nas relações da vida presente e a história como uma
construção subjetiva de orientação de si em direção aos seus
interesses e aos da vida prática.

91
/
NARRATIVA HISTÓRICA:
FUNDAMENTOS, TIPOS, RAZÃO*

Jõrn Riisen

Rainha: ... em dança, jovem, não falemos - outro qualquer


desporto.
Primeira Dama: Então, senhora, contaremos histórias.
Rainha: As histórias serão tristes ou alegres?
Primeira Dama: A vontade, senhora.
Rainha: Então, nem alegres, nem tristes, rapariga1.

0 que é a narrativa histórica? A maioria dos historiadores se


sentirá entediada quando ouvir esta pergunta. Eles provavelmente pen-
sarão: "deixe esta questão para o povo dos departamentos de Litera-
tura e de Filosofia". Mas, na verdade, esta questão tem um impacto
sobre os fundamentos do seu próprio trabalho e coloca a Filosofia e
a Lingüística numa posição muito mais próxima do que a habitual em
relação aos estudos históricos.

* RÜSEN, Jõrn. Historical narration: foundation, types, reason. In: Studies


in metahistory. Pretória: Human Sciences Research Council, 1993. p. 3-14. Tradução
para o português por Marcelo Fronza. Há também uma tradução feita por Márcio E.
Gonçalves. Assim, quando necessário, as traduções foram cotejadas. Os conceitos de
narration e de narration historicalforam traduzidos por "narrativa" e "narrativa histórica"
para manter o padrão de tradução para o português das obras, de Jõrn Rüsen, tais
como em "A constituição narrativa do sentido histórico". In: RÜSEN, J. Rj^ão histórica:
Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Trad.: Estevão Rezende
Martins. Brasília: UnB, 2001, p.149-174.
1
SHAKESPEARE, William. RicbardII, Act 3, Scene 4, V. 9sqq. Utilizou-se,
neste fragmento da peça Ricardo II, de William Shakespeare, a tradução de Carlos A.
Nunes. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.Org/eLibris/ricardo2.html#16>.
Acesso em: 30/06/2010.

93
Jõrn Rüsen

Hayden White, com elaborada sagacidade, esforçou-se para


convencer os historiadores desse fato quando tratou "o trabalho his-
tórico como ele manifestamente é", isto é, "uma estrutura verbal na
forma de um discurso narrativo em prosa". Mas desde o m o m e n t o em
que ele explicitou o discurso dos historiadores como "em geral poético
e, especificamente, lingüístico em sua natureza" 2 , chocou a maioria dos
historiadores. Sentiam-se relegados à desconfortável e ambígua vizi-
nhança com a poesia e privados de sua duramente conquistada dig-
nidade como acadêmicos de uma disciplina altamente racionalizada e
metodologicamente comprovada. N o entanto, vale a pena entrar nesta
esfera poética. O didático termo "poética" deve ser entendido no sen-
tido original da poiesis, que significa simplesmente fazer ou produzir
algo. Na verdade, nenhum historiador pode negar o fato de que existe
uma atividade criadora da mente humana funcionando no processo do
pensamento e do reconhecimento históricos. A narrativa é a manei-
ra como esta atividade é produzida e "História" — mais precisamente,
uma história — é o produto dela.
Não entrarei na discussão epistemológica sobre a complexi-
dade da estrutura narrativa do conhecimento histórico 3 . E m vez disso,
c^uero chamar a atenção para os fundamentos narrativos da consciência
histórica, citando um quase imperceptível argumento. Apesar do pre-
conceito vigente contra situar a poesia nos fundamentos dos estudos
históricos, gostaria de citar um breve diálogo entre o rei Henrique IV e
seu nobre conselheiro Warwick:

2
WHITE, H. Metahistory: the historical imagination in nineteenth century
Europe. Baltimore, 1973. No Brasil, esta obra foi publicada como WHITE, H.
Metahistória: a imaginação histórica do século XIX. Trad.: José Laurêncio de Mello. São
Paulo: Edusp, 1992, p. 11.
3
DANTO, A. Analytical Philosophy of History, 1965. BAUMGARTNER, H.
M. Kontinuitãt und' Geschichte. ZurKritik und Metakritik der historischen Vemunft. Frankfurt,
1972. ANKERSMIT, F. Narratire Logic. A Semantic Analysis of the Historians Language,
The Hague, 1983. ANKERSMIT, F. (Ed.). Knowing and telling history: The Anglo-
Saxon debate. Histoty and Theory, 25, Wesleyan University, 1986. [DANTO, A. A
Filosofia Analítica da História, 1965. BAUMGARTNER, H. M. Continuidade e História.
Para uma crítica e uma metacrítica da ra^ào histórica. Frankfurt, 1972. ANKERSMIT F.
IJgica narrativa: uma análise semântica da linguagem dos historiadores. Haia, 1983.
ANKERSMIT, F. (Org.). Conhecendo e contando História: O debate anglo-saxão.
History and Theory, 25, Wesleyan University, 1986.]

94
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

Rei Henrique: Se pudéssemos, Ó Deus, ler o livro do destino,


E ver a revolução dos tempos...
...e a fortuna se ri,
E as mudanças enchem a taça da transformação
Com licores diversos! O, se isso fosse visto,
O mais feliz dos jovens, vendo o seu progresso através de
Quais perigos passados, quais cruzes carregadas,
Fecharia o livro, descansaria e morreria...
Warwick: Há uma história na vida de todos os homens,
Revelando a natureza dos tempos decorridos;
Rei Henrique: São essas coisas, então, necessidades?
Então, vamos enfrentá-las como necessidades...4

A partir deste pequeno, porém, profundo diálogo, podemos


aprender o que é a narrativa histórica: é um sistema de operações men-
tais que define o campo da consciência histórica. Aqui o tempo é visto
como uma ameaça à normalidade das relações humanas, lançando-as
para o abismo das incertezas. A experiência mais radical do tempo é
a morte. A história é uma resposta a este desafio: é uma interpretação
da experiência ameaçadora do tempo. Ela supera a incerteza ao com-
preender um padrão significativo no curso do tempo, um padrão que
responde às esperanças e às intenções humanas. Este padrão dá um
sentido à história. A narrativa é, portanto, o processo de constituição
de sentido da experiência do tempo.
Entendo a afirmação de Hayden White sobre a narrativa desta
forma: como um ato poético que constitui o conhecimento histórico 5 .
A narrativa é um processo de poiesis, de fazer ou produzir uma trama
da experiência temporal tecida de acordo com a necessidade da orien-
tação de si no curso do tempo. O produto deste processo narrativo, a

4
SHAKESPEARE, William. King Henry IV, Act 2, Scene 1, v. 45-56. Aqui
Rüsen comete um pequeno equívoco na referência, a qual, na tradução adaptada por
Marcelo Fronza a partir da crítica de teatro de Barbara Heliodora, se refere na verdade
à Peça II, Ato 3, Cena 1. William Shakespeare. Henrique IV: Peça II, Ato 3, Cena 1.
Trad.: Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Lacerda, 2000, p.91-93.
5
Cf. também,WHITE, Hayden. The content of the form: narrative discourse
and historical representation. Baltimore, 1987. [WHITE, Hayden. O conteúdo e a forma;
discurso narrativo e representação histórica. Baltimore, 1987].

95
Jõrn Rüsen

trama capaz de tal orientação, é "uma história". N o que diz respeito


à ameaça da morte, a narrativa transcende os limites da mortalidade
num horizonte mais amplo de ocorrências temporais significativas.
Esta é uma das verdades essenciais dos contos de As Mi/e Uma Noites.
Scheherazade sabe que narrar é superar a morte, a narrativa é um ato
de "desmortalização" da vida humana 6 .
Mas a resposta shakespeariana à pergunta "o que é uma nar-
rativa histórica?" é tão ambígua quanto a própria poesia. Conta-nos o
suficiente sobre a narrativa para a entendermos como uma operação
fundamental das profundezas da consciência histórica. Mas uma vez
que nem toda a narrativa é histórica, ela diz muito pouco sobre essa
diferença. E isso é, muito freqüentemente, o caso na atual discussão da
Filosofia da História, quando se dá ênfase aos procedimentos narrati-
vos da historiografia.
Por isso, precisamos da ajuda de mais argumentos teóricos
para complementar Shakespeare. O argumento tradicional seria a dife-
renciação entre as narrativas factuais e fiecionais. A narrativa histórica é
geralmente definida por tratar apenas dos fatos e não das ficções. Essa
diferenciação é muito problemática e, em última instância, é pouco
Convincente porque o mais importante sentido da história está para
além da distinção entre ficção e fato. Na verdade, é absolutamente en-
ganoso — e isso surge por meio de um bom acordo com o oculto e
suprimido positivismo — chamar de ficção tudo o que na historiografia
não for um fato no sentido dos dados concretos.
Penso que a peculiaridade de uma narrativa histórica se situa
nas três qualidades seguintes e em sua relação sistemática 7 :

6
Isto é enfatizado por KLOTZ, V. 1972. Erzàhlen ais Enttòten. Notizen
zu zyklischem, instrumentalen und praktischen Erzàhlen. In: LÀMMERT, E. (Ed.).
Er^àhlforsAung. Ein Sjmposion, Stuttgart, 1988. p. 319-334. [KLOTZ., V. Narre como
Enttòten. Notas sobre a narrativa cíclica e a prática instrumental. 1972. In: LÂMMERT,
E. (Ed.). A pesquisa narrativa. Um simpósio. Stuttgart, 1988. p. 319-3341.
7
Para obter uma argumentação mais detalhada, ver RÜSEN, J. Die vier Typen
des historisches Erzahlens. In: RÜSEN, J. Zeit und Sinn. Strategien historiseben Denkens.
Frankfurt/M., 1990. p. 153-230. [RÜSEN, J. Os quatro tipos de narrativa histórica. In:
RÜSEN, J. Tempo e significado. Estratégias da argumentação histórica. Frankfurt/M., 1990,
p. 153-230].

96
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

1) Uma narrativa histórica está ligada ao ambiente da memória.


Ela mobiliza a experiência do tempo passado, a qual está
gravada nos arquivos da memória, de modo que a experiên-
cia do tempo presente se torna compreensível e a expectati-
va do tempo futuro, possível.
2) Uma narrativa histórica organiza a unidade interna destas
três dimensões do tempo por meio de um conceito de con-
tinuidade. Esse conceito ajusta a experiência real do tempo
às intenções e às expectativas humanas. Ao fazer isso, faz a
experiência do passado se tornar relevante para a vida pre-
sente e influenciar a configuração do futuro.
3) Uma narrativa histórica serve para estabelecer a identidade
de seus autores e ouvintes. Essa função determina se um
conceito de continuidade é plausível ou não. Este conceito
de continuidade deve ser capaz de convencer os ouvintes de
suas próprias permanência e estabilidade na mudança tem-
poral de seu mundo e de si mesmos.
Por estas três qualidades, a narrativa histórica possibilita a
orientação da vida prática no tempo — uma orientação sem a qual tor-
na-se impossível para os seres humanos encontrar o seu caminho.
Até agora forneci apenas um esboço aproximado do amplo e
múltiplo campo da narrativa histórica. Primeiro, é necessário estabele-
cer um modelo teórico geral da estrutura, processo e função de uma
narrativa histórica antes de considerar as variedades da historiografia.
Somente com esse modelo podemos distinguir adequadamente a histo-
riografia de outras formas de compreensão de nossa própria e de todas
as outras culturas.
Mas a prova do pudim está em comê-lo e, por isso, a prova
da descrição abstrata está na compreensão dos fenômenos concretos.
Portanto, uma pergunta é inevitável: como podemos desenvolver a
compreensão dos fundamentos narrativos do conhecimento históri-
co na cognição das múltiplas manifestações da historiografia? Parafra-
seando Karl Marx: como podemos ascender do abstrato para o concre-
to? Podemos fazer isso através da tipologia.
E assim chegamos ao segundo momento deste capítulo, no qual
eu gostaria de fornecer um esboço de uma tipologia geral da narrativa

97
Jõrn Rüsen

histórica, que deve revelar o amplo e múltiplo campo da historiografia.


Nesta tipologia tento enfatizar a especificidade histórica da constituição
de sentido da experiência do tempo por meio da narrativa. Com esta
intenção, que é semelhante à de Johann Gustav Droysen e Friedrich
Nietzsche, a tipologia que se segue difere substancialmente daquela
proposta por Hayden White, a qual interpreta a historiografia enquanto
Literatura e não reconhece, de forma alguma, a sua especificidade.
Assim, o ponto do qual eu inicio é a função da narrativa his-
tórica. Como já mencionei, a narrativa histórica tem a função geral de
orientar a vida prática no tempo, mobilizando a memória da experiência
temporal, por meio do desenvolvimento de um conceito de continui-
dade e pela estabilização da identidade. Esta função geral pode ser rea-
lizada de quatro modos diferentes, de acordo com as quatro condições
necessárias que devem ser preenchidas para que a vida humana possa
continuar em seu curso no tempo: afirmação, negação, regularidade,
transformação. Por isso posso ver quatro diferentes tipos funcionais de
narrativa histórica com suas correspondentes formas de historiografia.

TIPOLOGIA DA NARRATIVA HISTÓRICA


continuidade sentido do
memória de identidade pela
como tempo
origens permanência afirmação
ganho de tempo
Narrativa constituindo os dos modos de de determinados
no sentido da
tradicional presentes modos vida originalmente padrões culturais de
eternidade
de vida constituídos autocompreensào
validade das generalização
casos
regras de experiências ganho de tempo
demonstrando
Narrativa abrangendo do tempo no sentido da
aplicações de
exemplar temporalmente transformando-as extensão
regras gerais de
diferentes sistemas em regras de espacial
conduta
de vida conduta
desvios negação ganho de tempo
alteração
Narrativa problematizando de determinados no sentido de ser
das idéias de
crítica os presentes padrões de um objeto de
continuidade dadas
modos de vida identidade julgamento
desenvolvimento
transformações mediação
em que os modos
de modos de da permanência e ganho de tempo
Narrativa de vida mudam a
vida alheios para da mudança para no sentido da
genética fim de estabelecer
modos mais um processo de temporalidade
a sua permanência
apropriados autodeíinição
dinamicamente

98
Jôrn Rüsen e o Ensino de História

Gostaria de ilustrar os tipos de exemplos extraídos do campo


da história das mulheres. U m assunto que hoje concentra a discussão
sobre os fundamentos dos estudos históricos 8 .
(1) Toda forma de vida humana é, necessariamente, organizada
por tradições. Elas não podem ser negadas totalmente, caso contrário
as pessoas perderiam o chão sob seus pés. O primeiro tipo de narrativa
leva isso em conta. A narrativa tradicional articula as tradições como
condições necessárias para os seres humanos encontrarem seu cami-
nho. As narrativas tradicionais no campo da história das mulheres são
muito raras, mas os monumentos são uma forma tradicional de cons-
tituição de sentido histórico da experiência do tempo. Encontrei um
b o m exemplo em Grahamstown (África do Sul), na rua principal, indo
da Universidade de Rhodes até a catedral. Aqui há um monumento
que é dedicado "às mulheres pioneiras" e possui uma inscrição, como
se segue, que representa o significado histórico tal como fazem as nar-
rativas tradicionais:

Mantenha sua memória verde e doce


Elas alisaram os espinhos com os pés sangrando.

Para colocar da maneira generalizante da teoria: as narrativas


tradicionais lembram as origens constituintes dos sistemas de vida do
presente. Elas constróem a continuidade como uma permanência da
constituição originária dos sistemas de vida e formam a identidade pela
afirmação dos dados — ou mais precisamente, pré-dados — padrões cul-
turais de autocompreensao. Outros exemplos são: histórias que con-
tam sobre a origem e a genealogia das regras a fim de legitimar a sua
dominação; no seio das comunidades religiosas, as histórias de sua fun-
dação; histórias que são contadas por ocasião dos centenários e outros
jubileus (em Boston, você pode até mesmo andar em uma narrativa
tradicional seguindo o Freedom Trail- Caminho da Liberdade - pintado
como uma linha vermelha na calçada). E m todas essas histórias o tem-
p o ganha o sentido da eternidade.

8
Cf. e.g. BECHER, U A. J.; RÜSEN, J. (Ed.). Weiblichkeit in geschichtlicber
Perspektive. Frankfiirt/M., 1988. [BECHER, J.; RÜSEN, J. {Otg).A condição feminina em
perspectiva histórica. Frankfurt/M., 1988].

99
J õ r n Rüsen

(2) Tradições por si sós não.são suficientes como forma de


orientação porque são muito limitadas em seu conteúdo empírico.
Além disso, elas são múltiplas e heterogêneas e exigem uma integra-
ção por meio de regras ou princípios. Estas regras e princípios são
abstratos porque são gerais e abrangem uma vasta gama de diversas
experiências do tempo. Elas requerem, portanto, uma relação com esta
diversidade. Trata-se das narrativas exemplares que carregam esta rela-
ção. Elas concretizam as regras e os princípios abstratos, contando his-
tórias que demonstram a validade destas regras e princípios em casos
específicos. Utilizando os nossos exemplos sobre a história das mulhe-
res: pode-se olhar para trás em um breve período dos estudos sobre as
mulheres. Para demonstrar o princípio abstrato da igualdade das mu-
lheres, as historiadoras preferiram histórias que contavam muito sobre
as realizações, as capacidades, a importância e a eficiência das mulheres
do passado. Esta abordagem teve o efeito de fazer com que muitas
mulheres importantes e suas obras de arte, artesanato, ciência, religião,
aprendizagem, a economia e a política fossem salvas do esquecimento.
Para colocar do modo generalizante da teoria novamente: as
narrativas exemplares lembram os casos que demonstram a aplicação
de regras gerais de conduta; elas impõem a continuidade como a va-
lidade supratemporal das normas que abrangem os sistemas de vida
temporalmente diferentes; e formam uma identidade ao generalizar as
experiências do tempo para as regras de conduta. Outros exemplos
deste tipo de narrativa histórica são as histórias que apresentam m o -
delos de virtudes ou vícios. Nos jornais sempre podemos encontrar
alusões a acontecimentos históricos. E essas alusões seguem a lógica
da narrativa exemplar. Um exemplo é o seguinte fragmento de artigo
no Cape Times de 17 de fevereiro de 1987:

Diremos: "Nós não sabíamos?"


O recente discurso no Parlamento feito pelo ministro das
Finanças... onde admitiu que ele mesmo... não sabia o que
estava acontecendo nos guetos (distritos) negros é motivo
para preocupação.
Nós todos sabemos que o povo alemão não foi informado
sobre as terríveis condições nos guetos e campos de
prisioneiros de guerra ou do horror dos campos de

100
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

extermínio... e no final, a resposta para tudo isso foi: "nós


não sabíamos". Alguns terríveis paralelos podem ser feitos,
os quais poderiam ser aplicados no contexto sul-africano;
e iremos nós, no final do dia, dizer também "nós nío
sabíamos"?

O núcleo da lógica da narrativa exemplar é elaborado pela ve-


lha frase: historia magistra vitae (a história é a mestra da vida). Histórias
d o tipo exemplar abrem o campo da experiência temporal para além
dos limites da tradição: ganho de tempo no sentido da extensão espa-
cial.
(3) O terceiro tipo é a narrativa crítica. Baseia-se na capacidade
das pessoas de dizer "não" às tradições, regras e princípios que foram
herdados por elas. Este "não" está diante de cada alteração pretendida
em relação aos padrões culturais de compreensão histórica. Ele abre
espaço para novos padrões.
Na história das mulheres este tipo de narrativa é abundante.
Bem sei que são as histórias relacionadas ao sofrimento das mulheres
na longa história de dominação patriarcal. Por meio dessas histórias, as
historiadoras feministas chacoalham a validade dos padrões tradicio-
nais de feminilidade, e assim, consequentemente, abrem a mente para
outras alternativas.
E m termos teóricos: as narrativas críticas nos lembram dos
desvios que tornam problemáticas as presentes condições de vida; elas
esquematizam a continuidade apenas indiretamente, ou seja, pela dis-
solução ou destruição de idéias culturalmente eficazes de continuidade.
N o que diz respeito à continuidade, estas histórias vivem naquilo que
elas destroem. Constituem uma identidade negando determinados pa-
drões de autocompreensão: é a identidade da obstinação.
Outros exemplos deste tipo são as obras históricas que seguem
o lema de Voltaire: "Quando se ler História, a única obrigação de uma
mente saudável é refutá-la"9. As narrativas críticas são anti-histórias. Estas
histórias convocam a experiência temporal perante o tribunal da mente
humana: o ganho de tempo no sentido de ser um objeto de julgamento.

9
Qeuvres completes de Voltaire, v.ll, p. 427. Ed. Moland. [Obras completas de
Voltaire, v. 11, p. 427. Ed. Moland].

101
Jõrn Rüsen

(4) Mas a narrativa crítica não é a última palavra da consciência


histórica. Sua dinâmica de negação não é suficiente, pois só substitui
um modelo pelo outro. O padrão que encontra uma transformação
significativa e importante em si mesma ainda está faltando. Este padrão
define o quarto tipo: o da narrativa genética.
Histórias deste tipo fornecem uma direção para a mudança
temporal do homem e do mundo, para a qual os ouvintes devem, con-
sequentemente, ajustar suas vidas a fim de lidar com as desafiadoras
alterações do tempo.
Na história das mulheres, as histórias deste tipo de narrativa
superam a alternativa entre afirmação ou negação, entre aceitação ou
recusa das tradições dadas e dos princípios da feminilidade. Elas subs-
tituem a antítese abstrata enfatizando um elemento de mudança estru-
tural e dinâmico usando o "gênero" como uma categoria histórica. É
este elemento de desenvolvimento estrutural que media a antecipação
das alternativas em relação às experiências, conquistadas até agora, das
transformações da condição feminina e das relações de gênero.
Na forma de conceitos teóricos: as narrativas genéticas lem-
bram as transformações que levam dos modos de vida alheios para
modos mais apropriados. Elas apresentam a continuidade de desenvol-
vimento na qual a alteração dos modos de vida é necessária para a sua
permanência. E formam a identidade pela mediação entre permanência
e mudança em direção a um processo de autodefinição (em alemão isto
é chamado de Bildung— "formação"). Histórias desse tipo representam
as forças da mudança como fatores de estabilidade, as quais evitam a
ameaça de se perder no movimento temporal da subjetividade humana,
interpretando-o como uma chance de conquistar a si mesmo. Estas
histórias organizam a autocompreensão humana como u m processo
da dinâmica temporal: ganho de tempo no sentido da temporalidade.
Agora se pode perguntar o que é ganho ao discernir esses qua-
tro tipos de exigências. E impossível responder a esta pergunta antes
que nos debrucemos sobre as complexas relações entre eles. Cada tipo
corresponde a uma condição necessária, a qual deve ser satisfeita se a
vida humana encontrar o seu caminho no curso do tempo. Portanto, os
quatro tipos não se excluem um ao outro, mas estão intimamente liga-
dos, embora cada um deles seja claramente distinto dos outros. A com-

102
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

plexidade dessa conexão é muito grande para explicá-la aqui na íntegra.


Então me permitam resumir em dois pontos principais: (1) Todos os
quatro elementos são encontrados em todos os textos históricos, um
implica necessariamente o outro. (2) Há uma progressão natural do
tradicional ao exemplar e do exemplar à narrativa genética. A narrativa
crítica serve como o catalisador necessário dessa transformação.
Para compreender o conjunto das relações entre estes tipos
temos de combinar a qualidade do envolvimento com a transformação.
O resultado não será uma confusão ou bagunça qualquer, mas uma
textura sistematicamente ordenada. A lógica do que pode ser chamado
de dialética. Através desta estrutura, a tipologia nos permite analisar
obras concretas da historiografia em um quadro conceituai mais cla-
ro. Como Max Weber demonstrou, é a forma sistemática, abstrata e
rigorosamente conceituai da teoria que faz as tipologias se tornarem
úteis para a pesquisa empírica. E é sobre essa utilidade ou função da
tipologia da narrativa histórica que desejo fazer algumas observações.
O primeiro e mais simples uso da tipologia é a classificação de
obras históricas. Assim, podemos caracterizar a Greek Culture (Cultura
grega) de Jacob Burckhardt ou History of the United States (A história
dos Estados Unidos) de George Banckroft como uma narrativa tradi-
cional, a History of Florence (História de Florença) de Maquiavel como
exemplar, os Essais sur les Moeurs et ITüsprit des Nations (Ensaio sobre
os costumes e o Espírito das nações) de Voltaire como crítica, e a
Roman History (História romana) de Theodor Mommsen como gené-
tica. Mas tal classificação não nos leva muito longe. Somente quando
levamos em conta a relação interna entre os tipos é que eles podem
revelar muito mais sobre os trabalhos históricos. Em cada obra histó-
rica é a composição desses quatro elementos narrativos que constituiu
a sua peculiaridade. A tipologia permite esclarecer esta peculiaridade:
ela fornece os meios conceituais para discernir os diferentes elementos
da narrativa histórica e reconstruir sua composição como um todo.
Assim, podemos identificar exatamente uma narrativa histórica em re-
lação àquelas qualidades que cumprem uma função especificamente
histórica. Para dar um pequeno exemplo: na historiografia do histori-
cismo o tipo genético prevalece. Retornando para a primeira obra de
Ranke, uma das suas mais representativas, nas Geschichten der romanisch-

103
Jõrn Rüsen

-germanischen Võlker von 1494 bis 15/4 (Histórias dos povos r o m a n o -


-germânicos de 1494 até 1514) (1824), o olho tipologicamente sofis-
ticado, a despeito disso, encontra claramente formas exemplares que
não estão suficientemente integradas no sentido predominantemente
genético do livro. Isto é ainda mais surpreendente, pois, como bem
sabemos, no seu prefácio, Ranke escreveu a famosa recusa à história
exemplar: disse que não queria julgar o passado; sua história só queria
mostrar como ele realmente aconteceu ("er mil blofi ^eigen, me es eigentlich
gewesen'). Ao detectar essa qualidade do primeiro livro de Ranke, a ti-
pologia abre um novo modo de compreendê-lo.
Assim como podemos caracterizar a peculiaridade de uma úni-
ca obra histórica utilizando conceitos da narrativa histórica em geral,
então também podemos aplicar a tipologia para a análise comparativa.
Ela nos oferece os critérios de comparação, tendo em vista a profunda
estrutura da narrativa histórica, e também nos oferece um processo de
diferenciação quanto à qualidade especificamente histórica dos traba-
lhos comparados. Além disso, podemos empregar a tipologia para abrir
novas perspectivas históricas em relação à historiografia.
As perspectivas históricas são extraídas das principais idéias
de mudança temporal: à luz de tais idéias as mudanças temporais ga-
nham a qualidade do desenvolvimento histórico 10 . N o que diz respeito
à historiografia, as principais idéias de seu desenvolvimento podem ser
extraídas das tendências internas dos tipos de narrativa histórica. Os
tipos podem ser organizados segundo uma determinada ordem lógica.
Cada narrativa genética tem formas e funções exemplares e tradicio-
nais da narrativa histórica como precondições; igualmente cada narra-
tiva exemplar possui narrativas tradicionais. A narrativa tradicional é,
em si, original. A narrativa crítica é definida como a negação dos outros
três tipos.
Se, agora, déssemos um sentido temporal a essa ordem lógica,
alcançaríamos um marco conceituai para o desenvolvimento históri-

30
A lógica desta perspectiva teórica é descrita em RÜSEN, J. Rekonstruktion
der Vergangenheit Gmnd^üge einer Historik II: Die Prin^ipien der historiscben Forscbung.
Gõttingen, 1986. No Brasil esta obra foi publicada em RÜSEN, J. Reconstrução do
passado: Teoria da História II: os princípios da pesquisa histórica. Trad.: Asta-Rose
Alcaide. Brasília: UnB, 2007.

104
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

co da historiografia. Historicamente, a historiografia pode ser vista à


luz da tendência geral que conduz as narrativas tradicionais para as
exemplares e as exemplares para as genéticas; as narrativas críticas
são catalisadoras. Gostaria de chamar esta tendência, nas palavras do
Iluminismo, de uma "história teórica" ou "hipotética". Por isso, não
quero atribuir a esta tendência um significado metafísico, mas sim a
qualidade de uma ordem racional da experiência histórica. Portanto, as
tendências não se separam da mudança temporal da historiografia da
História geral e não constituem uma esfera autônoma de Geistesgeschichte
(História intelectual); sua concepção serve como um espelho, o qual
mostra como o desafio da transformação temporal é respondido por
uma mudança estrutural da narrativa histórica.
A concepção das tendências dinâmicas internas na relação en-
tre os quatro tipos pode ser utilizada para periodizar a história da his-
toriografia. Nesta periodização os três tipos marcam os três principais
passos na evolução da consciência histórica desde o início das culturas
pré-neolíticas até as culturas pré-industriais, chegando às sociedades
modernas.
Nesta evolução, a aceitação e o significado do próprio tempo
se transformam. No primeiro período, o curso do tempo se tornou
preso na eternidade; no segundo período, que em nossa cultura pode
ser traçado a partir de Heródoto a Voltaire, essa eternidade adquiriu a
qualidade de princípios supratemporais válidos, e, no curso do tempo,
ampliou-se para uma multidão de experiências; e, no terceiro período,
que começou na segunda metade do século XVIII, o tempo é tem-
poralizado: a autocompreensão humana não é mais vista como uma
rejeição em relação à variedade e à mudança, mas, ao contrário, é de-
finida por esta mudança e por esta variedade. A esfera da experiência
histórica real se torna infinita11.

11
Peter Reill iluminou a parte alemã deste começo: The German Enlightenment
andthe Rise of Historicism. Berkeley, 1975. Cf. BLANK, H. W; RÜSEN, J. (Ed.). Von der
Aufklàrung %um Historismus. Zum Stmcturwandel des historischen Denkens. Paderbom, 1984.
(Historisch-politische Diskurse, v. 1). [0 Iluminismo alemão e a ascensão do histondsmo.
Berkeley, 1975. Cf. BLANK, H. W; RÜSEN, J. (Org.). Do Iluminismo ao historicismo.
Para uma mudança estrutural do pensamento histórico. Paderborn,1984. (Discurso histórico
e político, v. 1)].

105
j õ r n Rüsen

Mas a tipologia nos fornece não só uma periodização geral da


história do pensamento histórico; ela também fornece periodizações
especiais dentro de épocas particulares. Como eu já disse, os quatro
tipos estão sempre presentes em textos históricos; um é dominante, os
outros secundários. A forma dominante estabelece uma época geral; a
relação entre as secundárias, e entre elas e as dominantes, pode definir
os subperíodos.
Essas considerações teóricas podem levar às estruturas concei-
tuais de pesquisa empírica e interpretação. A época do Ilumimsmo tar-
dio, por exemplo, pode ser.tipologicamente descrita como uma mudança
da estrutura exemplar para a narrativa genética como forma dominante
na estrutura profunda da narrativa histórica. Reinhart Koselleck descre-
veu essa mudança como uma dissolução do topos historia magistra vitae
no início do movimento em direção à história moderna 12 . Seria válido
procurar uma mudança análoga da narrativa tradicional para a exemplar
como uma forma fundadora do pensamento histórico. Suponho que
essa mudança ocorreu durante o despertar das civilizações antigas.
Existe um outro uso da tipologia que quero apenas apontar
sem enfrentá-lo detalhadamente. E ainda muito hipotético. Pouco sa-
bemos sobre o desenvolvimento estrutural da consciência histórica
no processo de individualização e de socialização. Mas a interpretação
temporal da ordem lógica dos quatro tipos conduziria a uma hipótese
sobre o desenvolvimento. Parece-me válido, para futuras diferencia-
ções e investigações empíricas, conceituar o desenvolvimento onto-
genético da consciência histórica como um processo estrutural -que
possibilita a competência narrativa, numa seqüência de quatro tipos,
juntamente com os estágios de desenvolvimento em outras áreas das

12
KOSELLECK, R. Historia magistra mtae. Über die Auflõsung des Topos
im Horizont neuzeitlich bewegter Geschichte. In: . Vergangene Zukunft. Zur
Semantik geschicbtlicher Zeiten. Frankfurt, 1979. No Brasil este artigo foi publicado em
KOSELLECK, R. Historia Magistra Vitae. Sobre a dissolução do topos na história
moderna em movimento. In: . Futuro passado: contribuição à semântica dos
tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC, 2006, p. 41-60. Cf. RÜSEN,
J. Konfigurationen des Historismus. Studien %ur deutschen Wissenschaftskultur, Frankfurt/M.,
1993. p. 29-94 [RÜSEN, J. As configurações do historiásmo. Estudos da cultura áentifica alemã,
Frankfurt/M, 1993. p. 29-94.].

106
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

quais temos mais conhecimento - como por exemplo, os estágios do


desenvolvimento moral segundo Piaget e Kohlberg.
Após este rápido passeio pela história do pensamento históri-
co, e após o vislumbre ainda mais rápido pela psicologia da aprendi-
zagem histórica, eu gostaria de concluir minhas considerações sobre
a narrativa histórica com um olhar para suas formas mais elaboradas:
que são os modernos estudos históricos e a historiografia moderna.
Levantarei apenas uma questão: de que maneira os estudos históricos
modernos, assim como a historiografia moderna, seriam enquadrados
na tipologia das quatro funções da narrativa histórica?
Os estudos históricos modernos e a historiografia moderna
se distinguem de outras formas de narrativa histórica por causa das
realizações da pesquisa empírica teórica e metodologicamente organi-
zada, Um único dos quatro tipos pode ser aplicado a esta pesquisa? Ou
temos de buscar um novo, um quinto tipo? Ambas as perguntas são
inadequadas, pois a peculiaridade dos estudos históricos modernos, no
que diz respeito à estrutura e à função da narrativa histórica, situa-se
entre os quatro tipos. Esta peculiaridade é baseada no modo especial
de perceber a estrutura da narrativa histórica tecida por elementos de
todos os tipos. Ela é o modo de racionalizar e argumentar teórica e me-
todologicamente o processo de constituição do sentido da experiência
do tempo. Em cada narrativa histórica podemos encontrar elementos
de racionalização e argumentação que tornam a história crível Os es-
tudos históricos nada mais são do que uma elaboração e instituciona-
lização desta racionalização e argumentação13, que a maioria dos histo-
riadores identificam na sua disciplina como a racionalidade metódica
da pesquisa empírica.
Mas essa autocompreensão dos historiadores como acadêmi-
cos esvazia a percepção da função prática fundamental da narrativa his-
tórica. Como já foi demonstrado na primeira parte deste capítulo, esta
é a função da formulação da identidade humana pela mobilização das

13
RÜSEN, J. Historische Vernunft. Grundçüge einer Historik I: Die Grundhgen der
Geschichtsunssemchaft, 85 sqq. Gõttingen, 1983. N o Brasil, esta obra foi publicada como
RÜSEN, J. Ração histórica: Teoria da História I: os fundamentos da ciência histórica.
Trad.: Estevão Rezende Martins. Brasília: UnB, 2001, p. 99.

107
Jõrn Rüsen

forças da memória histórica; ou, para dizer brevemente, da orientação


da vida humana no curso do tempo. Se os historiadores profissionais
reconhecessem essa função como uma função de seu próprio trabalho,
talvez o seu ele fornecesse um pouco mais de racionalidade para a vida
prática.
Enfatizar este aspecto da historiografia é um dos objetivos
principais da teoria da história em geral e da tipologia da narrativa his-
tórica em particular 14 . Mas não é tarefa do teórico prescrever a histo-
riografia. Ele ou ela só podem tentar elucidar a estrutura da narrativa
histórica e discutir os seus aspectos de racionalização e de argumenta-
ção. Então, por fim, gostaria de levantar uma questão sobre a repre-
sentação historiográfica da continuidade. Como já foi dito, a continui-
dade é a idéia principal da ligação histórica da experiência do passado
com a expectativa do futuro, realizando, assim, a unidade do tempo.
Os historiadores têm apresentado esta idéia de modos diferentes. N o s
bons e velhos tempos da então chamada historiografia narrativa, eles
apresentaram-na como o fluxo de eventos visto por um quase-divino
autor onisciente. Nos tempos modernos da história estrutural e social,
os historiadores freqüentemente apresentaram sua idéia de continui-
dade na forma de uma teoria (teoria da modernização, por exemplo).
Isto significa um progresso na racionalização, pois em tais formas os
conceitos de continuidade são questões para debate; todavia, o leitor
está exposto a um processo já completo de constituição do sentido da
experiência temporal.
Posso imaginar um novo avanço na racionalização. Isso pode
acontecer se os historiadores apresentarem a história para os leitores
de tal forma que, ao lê-la, estes teriam que criar uma idéia do sentido
das decisões ligada à continuidade de si, usando sua própria razão. E n -
tão, a historiografia ganharia uma forma que se situaria nas vizinhanças
da literatura moderna.

14
Cf. RÜSEN, J. History didactics in West-Germany. Towards a New
self-awareness of Historical Studies. History and Theory> 26, 1987. Ver, neste livro, o
artigo de J. Rüsen: "Didática da História: passado presente e perspectivas a partir do
caso alemão". Trad.: Marcos Roberto Kusnick. No Brasil, este texto foi traduzido
originalmente em Práxis Educativa, v. 1, n. 2, p. 7-16, 2006, Ponta Grossa: Editora
UEPG, 2006.

108
O LIVRO DIDÁTICO IDEAL

Jõrn Rüsen

1. Déficit n a análise dos livros didáticos 1

Todos os especialistas estão de acordo em que o livro didático


é a ferramenta mais importante no ensino de história. Por isso, este
recebe uma ampla atenção inclusive por parte daqueles que se interes-
sam pelo ensino de história na escola e pelo seu significado para a cul-
tura política, Para que o Ministério da Cultura conceda sua aprovação
a livros didáticos, têm-se colocado em curso diferentes processos de
inspeção e autorização em que se discutem vivamente quais qualidades
esses devem ter. Também os historiadores estão interessados nos livros
didáticos. Eles têm vários motivos. Antigamente, o livro didático de

* RÜSEN, Jõrn. El libro de texto ideal. Publicado na 'Revista Iber — Didactica


de Ias Ciências Sociaks. Geografia e Historia. Monografia: Nuevas fronteras de Ia historia,
n. 12, Ano IV, p. 79-93, abr. 1997. Tradução para o português de Edilson Chaves e
Rita de Cássia Gonçalves Pacheco dos Santos. Revisão da tradução: Maria Auxiliadora
Schmidt. Artigo publicado no número 14 da revista Internationale Schulbuchforschung
(1992). A tradução do original inglês foi realizada por Lourdes Bigorra. As reflexões
feitas aqui resultaram de uma colaboração de vários anos levada a cabo pela
Comissão do Livro Didático do Land de Nordrhein-Westfalen. Nela se trabalhou
um conjunto de critérios para análises do livro didático em que se baseiam minhas
reflexões. D. Scholle descreveu estes critérios que a Comissão aplica sistematicamente:
"Shulbuchanalyse und Schulbuchkritik", em H. SÜSSMUTH (Ed.): Geschichtsunterricht
im vereintein Deutschanld. Auf derSuche nach Neuorientierung. Teil II. Baden-Baden. 1991, p.
275-283. Apresento essencialmente os mesmos pontos de vista, mas proponho outra
classificação sistemática com a qual se poderia conseguir uma argumentação didática
unívoca da análise dos livros didáticos.
1
"Libro de texto", "manuales escolares", "manuales", "libros escolares", "libro de
ensenan^a" foram traduzidos por livro didático, visando uniformizar a tradução e facilitar
a compreensão do texto.

109
j õ r n Rüsen

história era um dos canais mais importantes para levar os resultados


da investigação histórica até a cultura histórica de sua sociedade. O s
profissionais devem sempre tomar cuidado, prestar atenção e insistir
em que, na medida do possível, o estado de investigação de sua matéria
chegue sem grande demora aos livros didáticos. Outro motivo de seu
interesse reside em seu modo de entender o alcance prático do saber
produzido pela sua investigação. N a medida em que são conscientes de
que o saber histórico tem, e até que ponto uma função de orientação
cultural na vida de sua sociedade e que o cumprimento dessa função é
em si mesmo um exercício do trabalho histórico científico profissio-
nal (facilitado por meio da heurística da investigação), esta não pode
deixá-los indiferentes sobre qual aplicação se faz dos conhecimentos
históricos nos livros didáticos de história. Finalmente, como contem-
porâneos interessados na política e, freqüentemente, como pessoas
comprometidas com ela, interessam-se pelo livro didático porque estão
sempre envolvidas nele, também, mensagens políticas, pois o ensino de
história é uma das instâncias mais importantes para a formação políti-
ca. Naturalmente, os que estão mais interessados nos livros didáticos e
os que mais intensamente se ocupam deles são os próprios professores
e professoras, e posto que a eles tenha correspondido até o m o m e n t o
uma participação mínima, seria muito útil sua colaboração em um de-
bate especializado e aberto sobre os livros didáticos de história.
Tendo em conta este grande interesse, é surpreendente que só
existam alguns esboços de um padrão profissional bastante discutido
sobre tamanho, formas, conteúdos e funções do livro de história 2 . É
sintomático que no âmbito alemão - à exceção de alguns exemplos
dignos de atenção 3 - não haja nenhuma grande obra em que se de-

2
Scholle compilou a literatura especializada mais importante. Comparar
a bibliografia sobre o tema em "Internationale Schulbuchforschung. Zeitschrift dês
Georg-eckert-Instituts". Para uma comparação mais ampla, veja K. FRÒHLICH.
Das Schulbuch. In: PANDEL, H. J.; SCHNEIDER, G. (Eds.). Uandbuch Medien im
Geschichtsunterricht. Düsseldorf, 1985, p. 91-114; BERGHAHN, V. R.; SCHLESSLER,
H. (Eds.). Perceptiom of History. International Textbook Research on Britain, Germany
and the United States. Oxford, 1987.
3
BORRIES, B. von. Problemorientierter Geschichtsunterricht, Schulbuchkritik und
Schulbuchrevisiony dargestellt am Beispiel der romischen'Republic.Stuttgart, 1980.

no
Jòrn Rüsen e o Ensino de História

senvolvam sistematicamente os critérios para a análise do livro didá-


tico, se demonstrem suas utilidades práticas, sejam trazidos exemplos
práticos de análise dos mesmos ou se tirem conclusões dos resultados
das análises para a prática de sua elaboração. Naturalmente, em toda a
República Federal Alemã são feitas investigações sobre os livros didá-
ticos. Neste campo, o Instituto para a Investigação Internacional sobre
os Livros Didáticos Georg Eckert conseguiu uma grande reputação
tanto em seu próprio país como fora dele, uma vez que, mediante uma
análise comparada dos livros didáticos, contribuiu grandemente para
eliminar prejuízos históricos e políticos entre os distintos países e na-
ções. Contudo, o fecundo trabalho de investigação que aqui expomos
limita-se a uma crítica científica da representação e interpretação histó-
ricas que se encontram nos livros didáticos.
No campo dos textos dedicados a temas históricos os livros
didáticos constituem uma categoria bem delimitada, cujas característi-
cas são definidas pelo seu uso nas aulas de história na escola, que per-
maneceu em grande parte excluída da maioria das análises. O aspecto
didático específico da análise do livro didático ainda requer, pois, um
estudo aprofundado e concreto em dois níveis: o teórico, em que se
darão uma explicação e uma argumentação dos pontos e dos critérios
de análise adequados à especificidade do livro de história e, natural-
mente, o empírico, em que se tratará dos conhecimentos, ordenados
sistematicamente, que deverão ser aprofundados e da configuração que
lhes será dada.
Mas a investigação ainda possui outro déficit muito mais grave,
que reside em outro âmbito: quase não existe investigação empírica
sobre o uso e o papel que os livros didáticos desempenham verdadei-
ramente no processo de aprendizagem em sala de aula. Este déficit
é ainda mais sério se considerarmos que sem ela não é possível uma
análise completa dos livros didáticos.
Até agora não se investigou, de maneira mais sistemática e
contínua, os conhecimentos que os professores e professoras vêm
acumulando em suas aulas sobre as possibilidades e limitações da apli-
cação dos livros didáticos, pelo menos no que se refere à análise das
disciplinas envolvidas nos livros didáticos de história: a historiografia e
a didática da história.

111
J õ r n Rüsen

As reflexões seguintes estão marcadas por esta lacuna. Frente


à satisfação empírica, verdadeiramente indispensável, do conceito de
como deve ser um b o m livro didático de história, estas reflexões se
manterão em um plano puramente heurístico, isto é, terão uma atitude
de suposição interrogativa. Ao mesmo tempo, irão propor abertamen-
te a reivindicação de uma argumentação estabelecida sistematicamente
que emane da verdadeira finalidade de um livro de história: tornar pos-
sível, impulsionar e favorecer a aprendizagem da história.

2. Os três objetivos da aprendizagem da história

O livro de história é o guia mais importante da aula de his-


tória. Por este motivo, deve-se partir da pergunta do que se pretende
conseguir através da aula de história. Neste sentido, é impossível uma
análise do livro didático sem alguns critérios normativos da aprendiza-
gem da história. Como se deve desenvolver estes critérios sem cair em
perigosas divergências políticas ou em polêmicas? Para responder com
êxito a esta pergunta, demonstrou-se que a avaliação da consciência
histórica dos alunos resulta em uma peça chave. A consciência históri-
ca é ao mesmo tempo o campo de ação e o objetivo da aprendizagem
histórica. Pode-se descrever suas operações mentais mais importantes
e, também, pode-se levar em consideração suas funções na vida prática
antes de todas as divergências políticas que se podem argumentar so-
bre o alcance e a direção de sua realização. Neste sentido, também se
pode discorrer com argumentos válidos e um amplo consenso sobre o
que deveriam saber os alunos para se considerar que foi alcançada uma
aprendizagem histórica satisfatória.
E m resumo, a consciência histórica pode ser descrita como a
atividade mental da memória histórica, que tem sua representação em
uma interpretação da experiência do passado encaminhada de maneira
a compreender as atuais condições de vida e a desenvolver perspectivas
de futuro na vida prática conforme a experiência. O m o d o mental des-
te potencial de recordação é o relato da história (relatar não n o sentido
de entender uma mera descrição, mas no sentido de uma forma de sa-
ber e de entendimento antropologicamente universais e fundamentais).
Esta forma narrativa que oferece uma interpretação da história d o pas-

112
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

sado representado cumpre uma função de orientação para a vida atual.


Esta função se realiza como um ato de comunicação entre produtores
e receptores de histórias. Por isto, o aspecto comunicativo da memória
histórica é tão importante, porque é através da narrativa4 (e da percep-
ção) das histórias que os sujeitos articulam sua própria identidade em
uma dimensão temporal em relação com outras (e ao articulá-las se
formam) e, ao mesmo tempo, adquirem identificadores de direção (por
exemplo, perspectivas de futuro) sobre critérios de fixação de opinião
para seu próprio uso5.
A aprendizagem da história é um processo de desenvolvimen-
to da consciência histórica no qual se deve adquirir competências da
memória histórica6. As competências que permitem efetuar uma idéia
de organização cronológica que, com uma coerência interna entre pas-
sado, presente e futuro, permitirá organizar a própria experiência de
vida, são as mesmas competências de que se necessitam para poder
receber e também para poder produzir histórias. Entre elas, a capaci-
dade de refletir sobre os conhecimentos históricos que proporcionam
à própria existência clareza de quadros cronológicos7 e, também, a ca-
pacidade de construir a própria identidade com os pontos de vista que
propiciam uma prolongação temporal que, superando os limites do
tempo de vida próprio, volte ao passado e alcance o futuro.
As capacidades para conseguir este tipo de orientação da ex-
periência de vida através da memória histórica podem ser sintetizadas
pelo conceito de competência narrativa. Consistem na faculdade de
representar o passado de maneira tão clara e descritiva que a atualida-
de se converte em algo compreensível e a própria experiência de vida
adquire perspectivas de futuro sólidas. Esta competência fundamental

4
A palavra narración foi traduzida como "narrativa" para preservar a idéia
do autor.
5
Comparar com ROTTGERS, K. Geschichtserzáhlung ais kommunikativer
Text. In: QUANDT, S.; H. SUSSMUTH (Eds.). Historisches Er^ahlen. Tormen und
Funktionen. Gõttingen, 1982, p. 29-49.
6
Para ampliar este tema, veja RÜSEN, J. Ansàtze zu einer Theorie des
historischen Lernens. Gtschichtsdidaktik, 10, p. 249-265,1985,12, p. 1547,1987.
7
A expressão radiogoniometrias cronológicas foi traduzida por "quadros
cronológicos", respeitando-se as idéias do autor.

113
J õ r n Rüsen

da consciência histórica, que é a que se pretende que seja alcançada


mediante a aprendizagem histórica, pode ser dividida em três com-
petências que fazem referência, respectivamente, ao aspecto empírico,
teórico e prático da consciência histórica: em uma competência per-
ceptiva ou embasada na experiência, em uma competência interpre-
tativa e, finalmente, em uma competência de orientação. A competência
perceptiva ou embasada na experiência consiste em saber perceber o passado
como tal, isto é, em seu distanciamento e diferenciação do presente
(alteridade histórica), em vê-lo a partir do horizonte de experiências do
presente como um conjunto de ruínas e tradição. A competência interpre-
tativa consiste em saber interpretar o que temos percebido como pas-
sado em relação e conexão de significado e de sentido com a realidade
(a "História" é a encarnação suprema desta conexão). Finalmente, a
competência de orientação consiste em admitir e integrar a "História" como
construção de sentido com o conteúdo de experiências do passado, n o
marco de orientação cultural da própria experiência de vida.
Naturalmente, na atividade mental da consciência histórica a
diferenciação entre percepção, interpretação e orientação 8 é fictícia, as
três operações se apresentam em uma correlação estreita, inclusive se
sobrepõem continuamente; mas graças a elas podemos dimensionar de
tal m o d o o procedimento de aprendizagem que é possível identificar
os resultados mais importantes que deve produzir um livro didático no
processo de aprendizagem na sala de aula.
É particularmente importante a diferenciação entre percepção
e interpretação. Ou seja, esta permite que algo como o saber histó-
rico apareça como produto das operações de construção de sentido
da consciência histórica e, ao mesmo tempo, proporciona uma falsa
qualidade didática, a de ser uma espécie de pequena unidade dentro
do processo de aprendizagem. Considerada como síntese da percep-
ção, experiência e interpretação, a aquisição de conhecimentos adquire,
como processo de aprendizagem, uma dinâmica e uma complexidade
especiais, e somente à luz desta dinâmica e desta complexidade pode-
rão ser identificadas e analisadas as qualidades necessárias que deve

8
Em muitos sentidos, corresponde à diferenciação que Jeismann estabelece
entre análise, opinião e valoração.

114
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

ter um livro didático para que possa cumprir sua função de guia do
processo de aprendizagem histórica em sala de aula (para dizer mais
exatamente: para que possa desempenhar sua tarefa com mais ou me-
nos êxito).
Na continuação, gostaria de expor uma lista das qualidades do
livro de história, ordenada sistematicamente segundo as três dimensões
mais importantes da aprendizagem da consciência histórica. Com isto,
gostaria de propor as finalidades didáticas do livro de história, assim
como uma estratégia específica para a análise histórica e didática do
livro didático.

3. Aspectos da utilidade para o ensino prático


A parte da diferenciação proposta entre as três dimensões da
aprendizagem, existem todos os aspectos que interessam ao caráter do
livro didático como guia para a aula em si, quer dizer, independente-
mente dos que vão ser destinados especificamente à aprendizagem da
história. Neste campo de ação, as características que distinguem um
bom livro didático são essencialmente quatro:
— um formato claro e estruturado;
— uma estrutura didática clara;
— uma relação produtiva com o aluno;
— uma relação com a prática da aula.

Formato claro

A forma exterior já é decisiva para a recepção do conteúdo


apresentado no livro (textos de autores, fontes de texto e imagens, ma-
pas, diagramas etc). Serão convenientes um modelo claro e simples,
uma distribuição e uma estruturação claras de todos os materiais, aju-
da para a orientação na forma de títulos e indicações e, -também, um
anexo que inclua um índice, um glossário com explicações dos termos
e nomes mais importantes e uma bibliografia com livros apropriados
para ampliar os temas.

115
J ò r n Rüsen

Estrutura didática

O formato do livro e a estruturação de seus materiais devem


estar configurados de tal maneira que inclusive os alunos possam ser
capazes de reconhecer suas intenções didáticas, o plano de estrutura-
ção que forma sua base, os pontos mais importantes de seu conteúdo
e os conceitos metodológicos de ensino.

Relação com o aluno

E m toda a sua estrutura, o livro didático tem que levar em con-


ta as condições de aprendizagem dos alunos e alunas. Tem que estar
de acordo com sua capacidade de compreensão, e isto vale, acima de
tudo, no que se refere ao nível de linguagem utilizado. Na Alemanha,
as pretensões exageradas quanto ao nível de linguagem aplicado nos
livros de história se converteram em um grave problema. As elevadas
pretensões científicas na didática da história e seu enfoque bastante
exclusivo da vertente cognitiva da consciência histórica e da aprendiza-
gem conduziram a uma sobrecarga cognitiva nos textos de ensino que
dificulta em grande forma sua recepção. Além disso, a competência
entre os diferentes meios de comunicação reduz a capacidade e a von-
tade de ler dos alunos e alunas. A relação com os alunos, contudo, não
se reduz a levar em conta as possibilidades de compreensão. Todavia, a
matéria apresentada tem que guardar uma relação com as experiências
e expectativas dos alunos e alunas, sobretudo com seu apego geral, es-
pecífico de cada geração, de suas próprias oportunidades na vida, bem
como com as experiências cotidianas, como é a situação da infância e
juventude, do colégio e também do conflito de gerações. Contudo, as
experiências históricas, interpretações e orientações do horizonte de
experiências e expectativas do aluno naturalmente têm que ser relativi-
zadas. Existem necessidades de orientação no conjunto da sociedade
que entram neste horizonte somente de forma fracionada ou parcial,
mas cuja consideração, apesar de tudo, é necessária para a aquisição da
competência de uma consciência histórica adequada à situação objetiva
das circunstâncias da vida. Por outro lado, os alunos têm uma sensibi-
lidade extrema frente aos problemas do presente, que os adultos, de-

116
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

masiado envolvidos nos mesmos, não podem nem querem se permitir


ter. De todas as maneiras, se existe uma relação entre as interpretações
históricas apresentadas no livro e os problemas de orientação do pre-
sente, esta contribuirá consideravelmente para o potencial de ensino
do livro. A questão sobre se certos conteúdos históricos são adequados
ou não para um livro didático depende do grau em que estes contri-
buam para a compreensão do presente e as oportunidades vitais das
crianças e jovens.
Ao se dirigir aos alunos, não se deveria esquecer que a expe-
riência histórica tem um potencial próprio de encantamento que se
pode aproveitar como oportunidade de aprendizagem. O espanto e a
diferença do passado podem ser apresentados de uma maneira que se
acredita ser interessante e curiosa. Precisamente as crianças e jovens
— sobretudo nos primeiros anos de ensino histórico — são fáceis de
fascinar mediante as experiências do diferente na história.
Um meio provado para estabelecer uma boa relação com o
aluno é dirigir-se a ele explicitamente. Deste modo, pode-se justificar
a seleção do tema, pode-se explicar a perspectiva escolhida para a in-
terpretação e, se se faz o mesmo quando se trata o conteúdo, então os
alunos o levam a sério quando devem fazê-lo e a referência do aluno
perde a odiosa conotação de uma mera tática didática que, em lugar de
reconhecer nos alunos uma necessidade de orientação histórica real-
mente própria e inclusive "muito individual", somente os obriga a acu-
mular conhecimentos politicamente e cientificamente autorizados.

Relação com a aula

Um livro didático somente é útil se realmente se pode trabalhar


com ele em sala de aula. Por isso, sua característica como livro de traba-
lho é irrenunciável. Um livro didático — independentemente do grupo
ao qual se dirija — que contenha somente uma exposição da história
será completamente inadequado para estimular as competências ante-
riormente mencionadas. Instigará como processo de aprendizagem a
mera recepção de conhecimentos e se descuida inadmissivelmente do
lado ativo e produtivo da consciência histórica. A capacidade de julgar
e argumentar é um objetivo irrenunciável (além de altamente aceito) do

117
Jõrn Rüsen

ensino de história e esta não pode ser alcançada mediante uma mera
exposição que não cede espaço aos alunos e alunas para desenvolve-
rem sua capacidade de argumentar, criticar e julgar.
Existem diferentes possibilidades de desenhar um livro de his-
tória como um livro de trabalho. Sua relação com a sala de aula pode
ser conseguida baseando-se sua estrutura nas unidades de ensino. A
apresentação de documentos e o estímulo à interpretação podem pre-
valecer sobre o elemento dos textos de autores, de modo que os alu-
nos e alunas (com a ajuda do professor) devem elaborar sua própria
exposição com o material disponível. Também é possível descrever o
diferente na exposição de tal forma que apresente uma interpretação
historicamente inteligível que se submeta à consideração dos alunos
e alunas. Com tudo isso, o livro levará em conta as expectativas pro-
fundamente arraigadas dos alunos (e de seus pais, para não falar dos
professores), e, dado que esta expectativa também é uma oportunidade
de aprendizagem, é perfeitamente aceitável. Todavia, a exposição tem
que ser acompanhada de materiais que não sejam meras ilustrações e
confirmações da exposição. Como regra geral, o livro didático deve
oferecer a possibilidade de verificar as interpretações dadas e de elabo-
rar interpretações próprias, ou melhor, mediante a própria interpreta-
ção, estabelecer contextos históricos com base na documentação dada
(junto à exposição de autores concretos ou complementares a ela).
Um meio que se demonstrou muito eficaz para encorajar a
aprendizagem autônoma são os trabalhos em que se pede aos alunos
a continuação das exposições e documentações, o que permite que a
relação com a aula seja palpável de forma imediata. Para isso também
devem cumprir uma série de condições relacionadas com a utilidade
para a prática na sala de aula dos materiais usados: têm que ser claros
e precisos, coerentes, têm que aproveitar todo o material, devem ter
uma função didática e metodológica reconhecível, levar em conta as
diferentes exigências e objetivos de aprendizagem nos diferentes ní-
veis, praticar as capacidades metodológicas e pragmáticas, assim como
estimular o entendimento das relações e categorias de ordem histórica.
Devem, ademais, evitar perguntas sugestivas e de decisão, porque elas
limitariam um elemento decisivo da aprendizagem: a autonomia, a ca-
pacidade de pensar por si mesmo e de argumentar.

118
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

4. Utilidade para a percepção histórica


A utilidade de um livro didático para a percepção histórica de-
pende essencialmente de três características:
— da maneira em que se apresentam os materiais;
— da pluridimensionalidade em que se apresentam os conteú-
dos históricos;
— da pluriperspectividade da apresentação histórica.

Apresentação dos materiais históricos

Se se considerar a aprendizagem histórica somente como um


processo de aquisição de conhecimentos, não se aproveita um impor-
tante potencial de aprendizagem: a percepção ou experiência da histó-
ria. Esta tem um poder próprio de fascinação, sobretudo ao nível da
contemplação sensível. Particularmente entre as crianças e jovens, a
história tem que se dirigir aos sentidos — uma necessidade pouco levada
em conta na aula tradicional de história. Também os livros didáticos
partem com demasiada freqüência do preconceito de que a estética9
é algo alheio à exposição de raciocínios históricos e não um fator de
raciocínio mesmo. Mediante o modo como apresentam o passado, me-
diante diferentes materiais, os livros didáticos devem incitar as percep-
ções e experiências históricas. Têm que abrir os olhos das crianças e
jovens às diferenças históricas e às diferentes qualidades da vida huma-
na através dos tempos. Portanto, não devem apresentar unicamente as
experiências históricas já interpretadas e as percepções já assimiladas
de forma cognitiva.

Imagens

As imagens têm aqui uma função muito importante. Durante


muito tempo foram usadas somente para fins de ilustração, porém na
produção mais recente de livros didáticos alcançaram uma importância
crescente e uma autonomia em relação ao texto. Consequentemente,

9
No texto em espanhol a palavra grafada é "estática" em vez de "estético",
usada nesta tradução.

119
J õ r n Rüsen

não devem ter a mera função de ilustração, mas constituir a fonte de


uma experiência histórica genuína: devem admitir e estimular inter-
pretações, possibilitar comparações, mas sobretudo fazer compreen-
der aos alunos e alunas a singularidade da estranheza e o diferente d o
passado em comparação com a experiência do presente, e apresentar o
desafio de uma compreensão interpretativa. Naturalmente, que se lhes
imponha como obrigação que fascinem esteticamente os alunos não
deve implicar que as imagens não guardem nenhuma relação reconhe-
cível com os textos e com os box ou caixas de texto que as acompa-
nham. Mas, sua fascinação deve incitar que o âmbito de experiências se
estenda a outros materiais e a interpretar a pesquisa em cada caso por
meio dos elementos da apresentação.

Mapas e esboços

Os mapas e esboços são muito parecidos às imagens, mas ao


mesmo tempo mais abstratos e limitados. Ilustram a dimensão espa-
cial dos processos históricos, e isto cria o difícil problema de como a
apresentação estática de um mapa pode fazer chegar aos sentidos dos
alunos a extensão e a mudança no tempo. Basicamente, isto é possível
mediante símbolos do movimento e sombreados em cor, porém com
demasiada freqüência o processo histórico na apresentação mediante
mapas se converte em um valor estático.
Este domínio do tempo também vale para as estatísticas e os
gráficos. Se estes ilustram fenômenos sincrônicos, devem conter, na
medida do possível, indicações diacrônicas, a saber, devem se referir
ao passado e ao futuro para que os alunos e alunas tenham em mente
o contexto cronológico no qual se localizam os fatos históricos apre-
sentados.

Textos

N o que se refere aos textos, em primeiro lugar é importante


que fique muito claro seu valor de experiência, isto é, que se delimitem
claramente da parte da apresentação. Se houver textos historiográficos,
estes têm que ser claramente diferenciados da própria documentação.
Devido à circunstância de que os textos devem transmitir experiências

120
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

e apresentar o passado em sua singularidade e sua diferença temporal


com o presente (e que, no mais, com eles se devem praticar os proces-
sos metodológicos da forma de pensar historicamente), de nenhuma
maneira devem servir exclusivamente para ilustrar a apresentação. No
que diz respeito a sua extensão, tampouco devem ser tão curtos de
modo a não transmitir uma idéia real das circunstâncias da vida passa-
da. Finalmente, têm que cobrir os âmbitos de experiência mais impor-
tantes. Para eles é válido o mesmo que para as imagens: devem possuir
aspecto atrativo e estimulante, devem induzir a perguntas e devem ser
interpretáveis em relação ao problema. Sua função como elemento de
referência para as interpretações históricas deve-se fazer clara median-
te trabalhos que não somente descubram seu conteúdo de informação,
mas também o valor que as diferentes informações tenham no contex-
to histórico global.

Pluralidade da experiência histórica

Um livro didático deve apresentar as dimensões mais impor-


tantes da experiência histórica. Estas dimensões se referem à estrutura
sincrônica e diacrônica do espaço da experiência histórica: partindo do
ponto de vista sincrônico, trata-se dos âmbitos de experiência: Econo-
mia, Sociedade, Política e Cultura. O cotidiano e as experiências dos
afetados por cada acontecimento concreto não representam um âmbi-
to próprio da experiência histórica, mas pertencem a um entendimento
mais amplo da cultura. Não é assim no caso da problemática envol-
vida. Atravessa as diferenças mencionadas e deveria se definir como
um campo de ação próprio da experiência histórica. Na apresentação
destas dimensões de experiência, suas diferenças e sua reciprocidade,
suas correlações internas e seu potencial de transmissão têm que apa-
recer na matéria histórica apresentada. Partindo do ponto de vista dia-
crônico, trata-se do nível temporal de mudanças em longo prazo no
nível das estruturas de ação, por um lado, e mudanças de curto prazo
no nível dos acontecimentos, por outro. Compreende-se que ambos os
níveis estão inter-relacionados e que estas relações internas têm que se
fazer palpáveis.

121
JõrnRüsen

Pluriperspectividade (ao nível dos afetados)

A princípio, a experiência histórica deve apresentar-se a partir


de várias perspectivas. Por meio dos materiais adequados (porém, tam-
bém com a exposição), tem que se demonstrar aos alunos e alunas que
o mesmo fato pode ser percebido pelos afetados de forma diferente
e inclusive contrária. Portanto, para apresentar a experiência histórica
partindo de várias perspectivas, os conflitos serão particularmente ade-
quados. Graças a este tipo de exposição, a experiência histórica perde
a falsa aparência de objetividade; o passado ganha em vitalidade e esti-
mula, inclusive antes da percepção empírica, uma atividade interpreta-
tiva da consciência histórica dos alunos e alunas. Não lhes resta outra
alternativa senão opinar de forma argumentativa.

5. Utilidade para a interpretação histórica


Somente por meio do trabalho interpretativo da consciência
histórica os fenômenos percebidos do passado se convertem em his-
tória cheia de sentido e de significado. Esta interpretação afeta central-
mente o caráter histórico dos fatos do passado a interpretar: os fatos
do passado percebidos em cada caso devem ser interpretados como
história no contexto temporal junto a outros fatos. O livro didático
deve proporcionar a possibilidade de realizar estas interpretações de
uma maneira concreta:
- as interpretações devem se corresponder com as normas da
ciência histórica;
- nelas devem se exercer as capacidades metodológicas;
- têm que ilustrar o caráter de processo e de perspectividade da
história e, finalmente,
- na exposição histórica do próprio livro devem ficar claras as
condições lingüísticas decisivas para sua força de convicção.

Normas àentificas

O fato de que um livro didático deve se corresponder com as


normas científicas da ciência histórica não deve significar que tenha

122
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

que refletir o que a Ciência considera como o estado dos conheci-


mentos no momento concreto em que se escreve. Dispensando, no
momento, a questão sobre se este estado fixo de conhecimentos existe
ou não, o livro didático somente pode abranger a investigação histórica
como meio para conseguir seus fins didáticos e específicos. Contudo,
o livro didático está subordinado ao estado da pesquisa como uma
"instância de veto": não deve conter falhas, e isto significa também
que não deve apresentar interpretações históricas que contradigam o
estado de conhecimentos científicos. Também em sua maneira de citar,
em suas notas, indicações de fontes e de literatura deve corresponder
basicamente aos costumes da ciência especializada, e isto afeta também
a apresentação das fontes, a identificação das abreviações, omissões e
mudanças.

Capacidades metodológicas

A correlação real do livro didático com a ciência especializada


se situa em um nível muito diferente ao do estado de pesquisa apresen-
tado: o livro didático deve sugerir um tratamento interpretativo da ex-
periência histórica que corresponda aos princípios metodológicos mais
importantes do pensamento histórico produzidos pela história como
ciência especializada. Tem que apresentar os procedimentos mais signi-
ficativos do pensamento histórico, e de tal modo que possa se exercer
na prática: o desenvolvimento de problemas, o estabelecimento e a
verificação de hipóteses, a investigação e a análise do material históri-
co, a aplicação crítica de categorias e padrões de interpretação globais.
Deve oferecer explicações inteligíveis e verificáveis, sem se limitar, en-
tretanto, a meras afirmações de fatos, bem como evitar por princípio
argumentações monocausais e insistir no fato de que a interpretação
histórica está aberta por princípio às argumentações multicausais. As-
sim, deve apresentar o conhecimento histórico de forma argumentati-
va, e evitar qualquer aparência de uma certeza dogmática e definitiva.
Finalmente, os alunos precisam ser capazes de aprender também quais
são as possibilidades e limitações do conhecimento histórico: devem
ser convidados a refletir sobre problemas metodológicos e teóricos,
embora de uma forma simples e conforme os mandamentos didáticos,

123
jõrn Rüsen

Caráter de processo da história e pluriperspectividade ao


nível do observador

Em sua oferta de interpretações para os alunos e alunas, o livro


didático tem que caracterizar a história como processo, evitando ima-
gens estáticas da história. Isto não é válido somente para cada unidade
do livro, nas quais freqüentemente se descuida do aspecto da transi-
toriedade obedecendo ao mandamento de brevidade, mas sobretudo
para o contexto global dos diferentes capítulos, e inclusive das diferen-
tes parte? de uma obra de ensino. Esta relação tem que se apresentar
e mencionar como problema de interpretação, e não deve resultar so-
mente da estrutura e da mera seqüência de temas. Se não se quer que
na apresentação dos temas e épocas se conceba (sem querer) a falsa
idéia "da" história como fato fixo, então se deve mencionar como tais
as perspectivas globais da interpretação histórica. Os alunos e alunas
devem ser capazes de aprender que estas relações sequer se podem
estabelecer sem sua referência a seu presente, que as interpretações
históricas têm caráter perspectivo e que existem diferentes perspectivas
relacionáveis de forma argumentativa que podem e devem ser compa-
radas de forma crítica.
Também aqui se pode falar de uma pluriperspectividade, po-
rém, com uma diferença entre a mesma na apresentação de experiên-
cias históricas, sendo que aqui se trata de pluriperspectividade ao nível
das interpretações históricas. Também neste nível o livro didático deve
proceder de forma pluriperspectivada, se pretende evitar atitudes^ dog-
máticas na interpretação histórica.

Força de convicção da exposição

Os textos de autores devem empregar-se de tal forma que com


eles se possam perceber e praticar os aspectos antes mencionados da
interpretação histórica. Têm que ser inteligíveis e suficientemente su-
gestivos para transmitir a percepção e a experiência histórica e, ao mes-
mo tempo, devem evitar uma sobrecarga emocional devida a tópicos e
a imagens de linguagem sugestiva. Sua argumentação deve ser coerente
e devem ficar claras, sobretudo, as diferenças e relações entre juízo dos
fatos, hipótese e juízo de valores.

124
Jòrn Rüsen e o Ensino de História

6. Utilidade para a orientação histórica


A pergunta "Por que é necessário aprender a história?" se ma-
nifesta como um desafio constante na aula de história. A resposta a
esta pergunta não deveria ser reservada a situações raras e excepcionais
da aula, mas deveria fazer parte da rotina da aprendizagem histórica.
Isto não significa que se deva refletir continuamente sobre perguntas
de relevância prática, mas somente que na realização de interpretações
históricas deve-se mencionar sua função na orientação da vida pre-
sente, na explicação histórica do presente e nas perspectivas do futuro
relacionadas. Um bom livro didático também estimula:
— estabelecendo uma relação entre sua própria perspectiva glo-
bal e o ponto de vista presente dos alunos e alunas e mencio-
nando os problemas relacionados com o próprio conceito da
história e a integração com o próprio presente;
— introduzindo os alunos no processo de formação de uma
opinião histórica, e
— trabalhando com referências ao presente.

Perspectivas globais

Aos livros didáticos quase sempre corresponde a função de


orientação prática da exposição histórica de forma negativa, isto é, em
que se pretende evitar os enfoques eurocêntricos ou, inclusive, os que
partem de uma perspectiva nacional. Esta exigência afeta a identidade
histórica dos alunos e alunas. Contudo, não somente se deveria adotar
a estratégia de evitar o que foi mencionado anteriormente, isto é, evitar
ou dificultar o estabelecimento de perspectivas etnocêntricas, mas se
deveria adotar sistematicamente como tema a estrutura e dimensão da
identidade histórica, a saber, a construção10 dele mesmo e do outro na
percepção histórica e sua interpretação. Deve ser possível refletir sobre
o papel desempenhado pela interpretação histórica na compreensão
que o aluno tem de si mesmo e do presente. O livro didático texto

10
Optou-se por traduzir a palavra constelación por "construção", em atenção
às idéias do autor.

125
Jõrn Rüsen

não somente deveria orientar sua perspectiva em direção aos temas


históricos, mas deveria relacioná-la sistematicamente com a constru-
ção da identidade dos alunos, ativando, desta forma, o potencial de
aprendizagem.

Formação de umjm\o histórico

Muitos livros didáticos evitam os juízos históricos explícitos


e se esforçam em manter a aparência de uma imparcialidade estrita.
Com isso, privam os alunos de uma boa oportunidade de aprendiza-
gem. Didaticamente falando, seria mais razoável problematizar juízos
históricos com suas referências de valor e usar de modo argumentativo
as experiências e interpretações, para que as alunas e os alunos possam
aprender a emiti-los alegando suas razões. O importante é que estes
juízos de valor não apareçam independentes dos fatos históricos e que
os processos de sua interpretação metodológica não figurem como um
assunto meramente subjetivo, dos alunos e alunas, mas ao contrário:
que ao emiti-los se recorra sistematicamente ao conceito que tinham
de si mesmos os afetados pelos acontecimentos do passado.

Referêndas ao presente

As perspectivas orientadoras e os juízos históricos não são pos-


síveis sem referências ao presente na exposição e na interpretação do
passado. U m livro didático que respeite a idéia de que a aprendizagem
histórica deve ter como resultado a competência de orientação traba-
lhará sempre com referências ao presente. Assim evita o risco de u m
falso objetivismo histórico; contudo, pode incorrer no seu contrário,
em um presentismo histórico, se não utiliza a referência ao presente
como instrumento para ilustrar a singularidade do passado, quer dizer,
utilizar a ilustração do presente através do espelho do passado para
medir a diferença temporal entre o passado e o presente. Somente isto
fará possível que a orientação, que conduz à experiência histórica e sua
interpretação para o presente, seja histórica. As referências ao presente
não fazem desaparecer as diferenças entre o passado e o presente, mas
as sondam de tal forma que na distância temporal entre o passado e o

126
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

presente se vislumbre uma parte da perspectiva futura para o presente.


Com tudo isso, um livro didático deveria levar em conta que as crian-
ças e jovens aos quais se dirige possuem um futuro cuja configuração
também depende da consciência histórica que lhes foi dada.

127
/
NARRATIVIDADE E OBJETIVIDADE NAS CIÊNCIAS
HISTÓRICAS*

Jõrn Rüsen

... A verdade científica é justamente o que é


válido para todos os que buscam a
verdade.

Max Weber1

1. O problema
"Narratividade" e "objetividade" parecem ser caracterizações
contraditórias dos estudos históricos. A categoria da narratividade apro-
xima os estudos históricos da literatura; ela proclama o caráter literário
da historiografia e os procedimentos e princípios lingüísticos que consti-
tuem a "história" como uma representação do passado, plena de sentido
e de significado, nas práticas culturais da memória histórica. Objetivi-
dade, de outro lado, é a categoria que proclama um determinado tipo
de conhecimento histórico, obtido mediante procedimentos de pesquisa
regulados metodicamente e que, ao apresentá-la revestida de sólida vali-
dade, situa a objetividade acima do campo da opinião arbitrária.
0 discurso meta-histórico acerca de princípios do pensamento
histórico e da historiografia, como objetividade e narratividade, pode
ser organizado, historicamente, de acordo com as seguintes justapo-
sições: na tradição pré-moderna da retórica, o trabalho dos historiadores

* Tradução para o português de Estevão de Rezende Martins. Publicado na


revista Textos de História, v. 4, n. 1, p. 75-102,1996.
1
WEBER, Max. Sociological Writings. New York: Wolf Heydebrand, 1994. p.
259 (Continuum).

129
J õ r n Rüsen

era discutido como uma prática literária da narração, orientada por


pretensões de verdade. N o processo da racionalização modemi-^adora, que
fez da história uma disciplina acadêmica, essas pretensões de verdade
foram elaboradas sob a forma de regras que fazem da investigação his-
tórica uma garantia de objetividade. "Objetividade" significava, pois,
a validade geral do conhecimento histórico, baseada na relação com
a experiência do passado e na racionalidade do tratamento cognitivo
dessa experiência. O discursopós-modemo criticou esta atitude c o m o uma
falsa consciência, escamoteadora dos procedimentos lingüísticos da
narração que constituem a natureza distintiva da história como um
construto mental de representação do passado para finalidades cultu-
rais da vida atual
O discursopré-moderno enfatizava a relação entre os historiadores
e seu público. Concentrava-se nos princípios morais que faziam do
passado algo importante para o presente e amoldava sua representação
em uma mensagem moral apta a habilitar seus destinatários a entender
e a operar as regras da vida humana.
O discurso moderno sobre a história criticou sua atitude moralista
e enfatizou a relação entre os historiadores e a experiência do passado,
âada no material das fontes. A meta-história explicou, pela raciona-
lidade do método, a competência dos historiadores profissionais em
proclamar a experiência histórica. Palavras famosas de Ranke revelam
essa alteração da ênfase na autocompreensão dos estudos históricos:
"A história foi atribuída a função de julgar o passado, de instruir os
homens a tirar o melhor proveito dos anos por vir. A tentativa -atual
não tem tamanha pretensão. Ela aspira meramente a mostrar como as
coisas efetivamente aconteceram" 2 .
Com a consagração da pesquisa histórica como uma disciplina
acadêmica e com sua pretensão de estabelecer padrões de cientificida-
de para o conhecimento histórico, a meta-história ganhou uma dupla

2
RANKE, Leopold von. The theory andpractice of history. Indianápolis, 1971,
p. 137. "Man hat der Historie das Amt, die Vergangenheit zu richten, die Mitwelt zum
Nutzen zukünftiger Jahre zu belehren, beigemessen: so hoher Àmter unterwindet sich
gegenwãrdger Versuch nicht: er will bloss zeigen, wie es eigentlich gewesen" (Geschichten
der romanischen und gemianischen Võlker von 1494 bis 1514)^ 2. ed., em Sámtliche Werke
33/34, Leipzig, 1874, p. VIL

130
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

função: ela tem de legitimar o caráter acadêmico da profissão de histo-


riador tanto pela ênfase na natureza "científica" do conhecimento his-
tórico produzido pela pesquisa como pelo destaque da especificidade
dessa disciplina, que a distingue das demais, sobretudo das ciências na-
turais. Malgrado inúmeras tentativas de remodelar a pesquisa histórica
seguindo o paradigma das ciências naturais, a maior parte dos histo-
riadores continua cultivando sua autocompreensão como acadêmicos
e a identidade de sua disciplina com fundamento na especificidade do
pensamento histórico. O princípio da narratividade teve conjuntura fa-
vorável na meta-história, enquanto critério para delimitar tal especifici-
dade e peculiaridade. Com o princípio da narratividade pode-se pôr às
claras que o pensamento histórico obedece a uma estratégia explicativa
diferente dos modos de pensar cuja lógica esteja centrada na conformi-
dade a leis (Geset^mássigkeif).
A conseqüência dessa nova reflexão sobre o pensamento his-
tórico, tomando como referência sua forma narrativa, acarretou uma
mudança radical na atitude objetivista moderna, tradicional na pesquisa
histórica. É esta a razão por que os historiadores profissionais têm se
sentido pouco à vontade com respeito à reflexão meta-histórica sobre
a narratividade de suas representações cognitivas. Embora eles não te-
nham sido capazes de substituir esse princípio distintivo por outro que
poderia legitimar, simultaneamente, a abordagem científica da história
e a especificidade metódica do pensamento e da cognição históricos,
tampouco se deixaram convencer de que os avanços cognitivos de seu
trabalho acadêmico sejam suficientemente valorizados pelo tratamento
meta-histórico da narrativa histórica.
Assim, a situação presente dos estudos históricos caracteriza-se por
uma relação pouco clara: de um lado, há a limitação meta-histórica da
narratividade como princípio do pensamento histórico que dificulta,
logicamente, qualquer objetividade científica na representação do pas-
sado como história; de outro lado, existem as atitudes e os procedi-
mentos acadêmicos bem estabelecidos dos historiadores profissionais,
que os habilitam a realizar o trabalho de pesquisa e historiográfico em
obediência imediata à racionalidade metódica. E esta racionalidade do
método que dota, com a pretensão de objetividade, o conhecimento
que se obteve pela pesquisa e que se apresenta como historiografia.

131
Jòrn Rüsen

Minha contribuição consiste em tentar conciliar essas duas ati-


tudes. Ao fazê-lo, seguirei primeiramente a argumentação que enfatiza
a estrutura narrativa do conhecimento e a utiliza para criticar concep-
ções inadequadas da objetividade histórica. Em um segundo momen-
to, porém, buscarei demonstrar que a objetividade histórica pode ser
resgatada, explicada e legitimada no contexto de uma teoria narrativista
da pesquisa histórica.

2. O que é objetividade?

A objetividade fixa um limite à interpretação histórica3. Ela é


um critério de validade que torna o pensamento histórico e a histo-
riografia plausíveis, isto é, uma certa forma de pretensão de verdade,
intimamente relacionada com a racionalização do pensamento históri-
co e com seu caráter acadêmico, para não dizer científico. A verdade
sempre foi o compromisso da historiografia. Na tradição retórica pré-
-moderna da meta-história, a verdade era concebida e prescrita aos
historiadores como uma atitude moral de historiógrafos e como um
princípio retórico de sua historiografia. Ela estava direcionada contra
os preconceitos e as deformações das perspectivas históricas devidas
à parcialidade unilateral em benefício de uma facção ou de um ator no
passado apresentado, além de estar igualmente voltada contra o uso
de elementos ficcionais na apresentação do passado, Contar a verdade
acerca do passado era visto principalmente como uma mera decisão
dos historiógrafos de o fazer. Os limites da interpretação eram postos
pelas regras morais, como diretrizes tanto para o trabalho historiográ-
fico como para o entendimento do passado, aplicando o conhecimento
assim obtido às situações quotidianas atuais da vida humana e a suas
perspectivas de futuro. Em seu livro Como escrever história^ Luciano de
Samosata afirma que a história possui uma única missão e um único
fim, qual seja, o de ser útil, e que o historiador somente pode alcançar

3
Cf RÜSEN, Jòrn. Historische Vemunft Gmnd^iige einer Historik I: Dte
Grundlagen der Geschichtsmssenschaft. Gòttingen, 1983, p. 85 et seq.\ RÜSEN, Jòrn. Studies
in Metabistory. Pretória (Human Science Research Councii), 1993, p. 49 etseq. MEGILL,
Allan (Ed.): Kethinking Objectivity 1, II (Annals of Scholarship), v. 8, n. 3-4, v. 9, n. 1-2).

132
jõrn Rüsen e o Ensino de História

esse objetivo se escrever a verdade4. Essa utilidade da história, decor-


rente de seu compromisso com a verdade, é moral: historia vitae magistra.
A história dita as regras da vida humana mediante a acumulação de
experiência para além do horizonte de uma única vida. A representação
histórica tem de produzir prudência (<|)poveaiG, ao)(()poauvs), isto é, a
competência para organizar a vida prática de acordo com regras gerais
derivadas da experiência acumulada (em duas palavras: competência
normativa). A história possui a aptidão — e tem a obrigação de o fazer
— para produzir essa competência pragmática e moral, ao organizar a
experiência do passado em forma de uma narrativa que contenha a
mensagem formuladora das regras gerais e dos princípios da atividade
humana. A pretensão de verdade é necessária com vistas à realização
dessa relação com a experiência.
O paradigma desta relação é a sabedoria dos anciãos: na medi-
da em que sejam depositários, em suas mentes, da experiência acumu-
lada devida à duração de suas vidas, estão eles qualificados para dirigir
e orientar o quotidiano atual de seu respectivo grupo social. Orientar
significa: entender problemas práticos e lidar com eles com conheci-
mento dos problemas humanos acumulado na experiência de toda uma
vida. A história é vista como um vetor de orientação da vida humana,
e o historiador é o especialista na experiência acumulada nos arquivos
da memória coletiva. Assim, a história poderia ser definida (Viperano
no discurso humanístico) como rerum gestarum ad docendum usum rerum
syncera illustrisque narratio (narrativa autêntica e esclarecida das atividades
humanas com o fito de ensinar como lidar com elas)5.
Objetividade é, contudo, algo completamente diferente. Ela
significa uma determinada relação da representação histórica com a ex-
periência do passado. A citação de Ranke demonstra claramente que

4
Luciano: Wie man Geschichte schreiben soll Munique, H. Homeyer, 1965, § 9, p. 107.
5
KESSLER, Eckhard. Theoretiker humamstischer Geschichtsschreibung. Munique,
1971, p. 19, nota 57; Viperano I, 7a; p. 13, 10 et seq. Cf. A excelente introdução de
Kessler: Geschichte, menschliche Praxis oder kritische Wissenschaffí Zur Theorie htmamstischer
Gescbichtsschreibung, em: KESSLER, op. cit, p. 7-47; KESSLER, E. Das rhetorischc
Modell der Historiographie. In: KOSELLECK, Reinhardt; LUTZ, Heinnch; RÜSEN,
Jõrn (Eds.). Yormen der Geschichtsschreihung. Munique, 1982, p.37-85. (Beitráge zur
Historik, v. 4).

133
Jõrn Rüsen

essa relação não está organizada, era primeiro lugar, pelo princípio m o -
ral da prudência (competência normativa), mas pelo princípio metódico
da pesquisa como um procedimento cognitivo. Essa mudança funda-
mental na concepção da pretensão básica de verdade, por parte da his-
toriografia, faz parte de uma evolução estrutural do pensamento histó-
rico que ocorreu na segunda metade do século XVIII 6 . Começou nesse
momento sua modernização, causada pela aplicação de dois princípios:
(a) uma nova categoria de história, entendida agora como uma mudan-
ça temporal abrangente do mundo humano, incluindo virtualmente o
presente e o futuro e (b) a racionalidade do método como estratégia
cognitiva ao lidar com a experiência do passado. A nova categoria "a
história" define o conteúdo principal do pensamento histórico e da his-
toriografia como o domínio específico do mundo real: a história é o
mundo humano real na perspectiva do tempo. Trata-se, pois, de mais do
que uma mera narrativa - é a pré-figuração do mundo que permite aos
historiadores apresentar o passado sob a forma de uma narrativa. O b -
jetividade significa, por assim dizer, que a prudência ditada, em tempos
pré-modernos, pela "história verdadeira" dos historiadores, tornou-se
agora uma realidade previamente dada do próprio mundo humano.
. O aforisma de Ranke, que exprime essa pretensão de objetivi-
dade, pressupõe uma determinada filosofia da história: história é a rea-
lidade temporal do mundo humano, é a conexão interna das mudanças
temporais, previamente dadas no modo de experiência dos historiado-
res. O historiador, em sua historiografia, tem de representar essa estru-
tura histórica do mundo humano, previamente dada. Ele conta "-como
tudo efetivamente aconteceu". Essa realidade é mais do que a seqüên-
cia de acontecimentos e mudanças no passado tal como relatados nas
fontes; ela é, em si mesma, uma corporificação de sentido. Essa história

6
Cf. RÜSEN, Jõrn. Konfigurationen des Historismus. Studien %ur deutschen
Wissenschajtskultur. Frankfurt, 1993, p. 45 et seq.\ KOSELLECK, Reinhardt. Historia
Magistra Vitae. Über die Auflõsung des Topos im Horizont neuzeitlicher bewegter
Geschichte. In: KOSELLECK, R. Vergangene Zukunft, Zur Semantik geschkhtlicher
Zeiten. Frankfurt, 1979, p.38; BLANKE, Horst Walter. Historiographiegeschichte
ais Historik. Stuttgart-Bad Canstatt, 1991 {Fundamenta Histórica, v. 3); KÜTTLER,
Wolfgang; RÜSEN, Jõrn; SCHULIN, Ernst (Eds.). Geschichtsdiskurs, v. 2: Anfànge
modernen bistorischen Denkens. Franfkurt/Main, 1994.

134
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

"real" tem de ser proclamada em u m procedimento cognitivo que só


pode ser efetuado por historiadores profissionais: pesquisa como tra-
tamento metódico de fontes.
A seqüência temporal de acontecimentos e mudanças no pas-
sado é uma manifestação da estrutura histórica profunda do mundo
humano. Essa estrutura, chamada "a história", é produzida pelas assim
chamadas "forças ativas da mudança temporal do mundo humano" ;
são essas forças ativas que constituem, ontologicamente, a realidade da
história. E essa realidade, previamente dada na experiência histórica,
pode ser desvelada, nos vestígios do passado, pela pesquisa metódica.
A categoria de história e a racionalidade da pesquisa histórica estão, por
conseguinte, intimamente relacionadas. A primeira é precondição on-
tológica do procedimento cognitivo da segunda. A prestigiosa preten-
são de objetividade com que os historiadores exercem sua profissão,
como "sacerdotes da nação" 8 , fundava-se numa confiança quase-reli-
giosa e metafísica de que, com determinados procedimentos racionais,
a inteligência humana seria capaz de descobrir a história como a estru-
tura real do mundo humano, no curso temporal de acontecimentos e
mudanças no passado 9 .
Um documento renomado, relativo a essa pretensão de objeti-
vidade, é o ensaio de Wilhelm von Humboldt intitulado "Sobre a tarefa
do historiador" (1810)10. Nesse texto, Humboldt defende a pretensão
de objetividade em sua concepção historicista, enquanto "fusão" entre

7
Cf. HUMBOLDT, Wilhelm. Betrachtungen über die bewegenden Ursachen
der Weltgeschichte. In: HUMBOLDT, W. Schriften %ur Anthropologie und Geschichte
(Werke in fünf Bãnden, ed. Andreas Flitner, Klaus Giel. Darmstadt, 1960, p. 578-584
(Akademie-Ausgabe II, p. 360-366).
8
WEBER, Wolfgang. Priester der Clio. Historisch-so^ialmssenschaftliche Studien %ur
Herkunft undKarriere deutscherHistoriher 1800-1970. 2. ed. Frankfurt, 1987.
9
Cf. RÜSEN, Jõrn. Historische Methode und religiõser Sinn -
Vorüberlegungen zu einer Dialektik der Rationalisierung des historischen Denkens
in der Moderne.
10
HUMBOLDT, Wilhelm von. Über die Aufgabe des Geschichtsschreibers.
In: HUMBOLDT, W Von. Werke. Andreas Flitner e Klaus Giel, v. 1: Schriften %tr
Anthropologie und Geschichte. Darmstadt, 1960, p. 585-606 (Gesammelte Schriften [Akademie-
Ausgabe] IV, p.35-56}. Tradução em inglês em History andTheory 6 (1967), p.57-71. Ver
ainda RANKE, Leopold von. The theory and practice if History. Ed. Georg G. Iggers,
Konrad Moltke. Indianápolis, 1973, p. 5-23.

135
j õ r n Rüsen

o intelecto investigador e o objeto investigado 11 . "Fusão" significa que


a história, como o único objeto do pensamento histórico - a realida-
de temporal do mundo humano - , é constituída pelas forças mentais
("idéias") que agem mediante a intencionalidade ("Sinnbestimmheit" -
orientação pelo sentido) das ações humanas. Ora, é a mesma "força
mental" que, por outro lado, com seus interesses cognitivos, move a
inteligência humana em sua abordagem cognitiva do passado. A inte-
ligência da cognição, relacionada com a experiência, é, pois, parte da
inteligência da realidade previamente dada na experiência. O s interes-
ses da cognição são parte das forças mentais que constituem a história
como tema da cognição. Pode-se até dizer que a própria história fala
através do historiador, que a historiografia representa a realidade ínti-
ma da história como uma forma abrangente, previamente dada, da vida
humana. Isso é o que objetividade quer dizer. Seu fundamento episte-
mológico - nas palavras de Humboldt — "é uma congruência original
prévia entre o sujeito e o objeto" 12 . Pesquisa, como procedimento cog-
nitivo, é baseada nessa congruência. Ela guia os historiadores no trato
com a experiência do passado, presente em seus vestígios, n o material
das fontes, nos quais a "realidade da história" é proclamada.
. Podemos ver aqui as implicações filosóficas desse tipo de obje-
tividade histórica. Ele põe limites claros à interpretação do material das
fontes, tanto em obediência às regras da pesquisa metódica quanto pela
aplicação do conceito de história como de um movimento temporal do
mundo humano, constituído pelas forças mentais da atividade humana.
O conhecimento histórico, dotado de sua pretensão de objetividade, po-
deria funcionar como orientação cultural para a vida prática — sobretudo
política: ele produz uma perspectiva da futuro em função da mudança
temporal do passado 13 e a identidade coletiva do grupo a que se dirige,
enquanto baseada nas forças ativas constitutivas da história humana.

11
iggers, p. 8.
12
Iggers, p. 15 ("eine vorhergàngige, ursprüngliche Übereinstimmung
zwischen dem Subjket und Objekt", p. 596s.).
13
Uma fonte importante para essa função prática da objetividade histórica
(poder-se-ia mesmo falar de seu caráter ideológico) é a aula inaugural de Ranke: "Über
die Verwandschaft und den Unterschied der Historie und der Politik", Sàmtliche Werke,
v. 24, Leipzig, 1877, p. 280-293.

136
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

3. Nar ratividade como objeção à objetividade


Mesmo no contexto da concepção objetivista da cogniçao
histórica, sempre se esteve consciente dos elementos constitutivos da
subjetividade, em oposição ao caráter meramente reificado da história.
Muitos historiadores estavam conscientes do envolvimento de seu tra-
balho acadêmico com a política, e chegavam mesmo a participar direta-
mente dela. Reconheciam esse envolvimento não como um acréscimo
externo a suas tarefas acadêmicas, mas como um fator constitutivo de
sua própria historiografia, como elemento conformador de sua estru-
tura cognitiva interna, como inseparável da racionalidade metódica de
sua disciplina. O termo utilizado para exprimir essa objeção de uma
"objetividade pobre" foi: parcialidade. Droysen polemizou contra o que
chamava de "objetividade de eunucos"14 nos estudos históricos, que in-
tentavam neutralizar-se com respeito ao conflito político em torno da
questão da identidade coletiva (sobretudo a nacional), na qual o argu-
mento historiográfico desempenhava um papel importante. O mesmo
valia para Sybel, Gervinus e outros15. Eles não consideravam o envol-
vimento e a parcialidade dos historiadores na luta política pela con-
formação da identidade coletiva, mediante a rememoração histórica,
como opostos à objetividade, mas pelo contrário, viam-nos como uma
condição necessária à objetividade histórica. E esta a posição do histo-
riador dentro do embate político de seu tempo respectivo, o que abre
a perspectiva com a qual as poderosas forças mentais, que constituem
a história como uma forma específica da realidade humana, tornam-
-se acessíveis e visíveis, podendo assim ser enunciadas mediante uma
abordagem cognitiva.

14
DROYSEN, Johann Gustav. Historik, historisch-kritische Ausgabe, Ed.
Peter Leyh, v. 1, Stuttgar-Bad Canstatt.
15
Sybel: Über den Stand der neueren deutschen Geschichtsschreihung (1856), em:
Kkine historische Schriften (1863), 3. ed., Stuttgart, 1880, p. 355s.; GERVINUS, Georg
Gottfried. Grund^üge derHistorik (1837), em: Schriften %ur JJteratur, ed. G. Erler, Berlim,
1962, p. 49-103. Cf. RÜSEN, Jõrn. Der Historiker ais 'Varteimann des Schicksals ~ Georg
Gottfried Gervinus", em: RÜSEN, Jõrn: Konfiguraüonen des Historismus, Studieti %ur deutschen
Wissenschaftskultur. Frankfurt, 1993, p.157-225.

137
Jõrn Rüsen

A idéia de que a objetividade é constituída pela parcialidade


obedece a uma filosofia idealista da história, que identifica as forças
mentais em ação no interesse histórico dos historiadores com as for-
ças mentais da atividade humana, que constituem a história enquanto
realidade temporal da vida humana. A concepção marxista-leninista
de objetividade pela parcialidade segue uma filosofia da história e uma
epistemologia análogas. A parcialidade na luta de classes é condição
necessária do conhecimento objetivo da sociedade humana em geral e
de sua evolução histórica em particular. E m ambas concepções de ob-
jetividade a questão está, contudo, em que nem toda parcialidade leva à
objetividade, mas apenas aquela que for refletida, na qual o historiador
emprega a aptidão cognitiva da inteligência humana de forma especí-
fica: ele generaliza seu ponto de vista de tal modo que pode integrar,
em um interesse abrangente, os interesses conflitantes no contexto po-
lítico. Dessa maneira, as diversas perspectivas, derivadas dos diferentes
pontos de vista, são integradas numa perspectiva abrangente. Nesta
perspectiva, a mudança do mundo humano no passado indica uma di-
reção para o futuro. É a apreensão dessa perspectiva abrangente e o di-
recionamento da evolução que habilitam os historiadores a transcender
a'luta pelo poder e a assumir uma orientação comum. Para a concepção
historicista clássica da pesquisa histórica, o ponto de vista abrangente
e a perspectiva compreensiva realizaram-se no nacionalismo, mais ou
menos mitigado por uma idéia de humanidade como o princípio de
comunicação inter-nacional.
A cognição histórica poderia ser vista, então, como u m proce-
dimento mental com dois pólos: de um lado, um objetivo, relativo à ex-
periência do passado previamente dado em seus vestígios, isto é, o ma-
terial das fontes, e, de outro lado, um subjetivo, referente a problemas de
orientação da vida prática. A garantia do objetivismo é a crítica das fon-
tes, e a do subjetivismo é o engajamento do historiador na luta política
pela identidade coletiva, no campo da rememoração histórica. Ambas
são mediadas na operação cognitiva da interpretação histórica. É pela
interpretação que a sólida informação das evidências empíricas do pas-
sado recebem seu feitio histórico específico e se integram na estrutura
mental da narração histórica, dentro da qual pode funcionar como fator
de orientação cultural. Enquanto procedimento metódico, a interpre-

138
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

tação contribui para a objetividade. Ao realizar a perspectiva histórica


na qual a evidência do passado é referida a problemas de orientação no
presente, contudo, a interpretação põe a subjetividade, como operação
constitutiva da cognição, na formação da narrativa. Ambas, porém, ob-
jetividade e subjetividade, são lados da mesma moeda.
Por causa dessa função, a interpretação histórica, malgrado ser
um procedimento cognitivo decisivo na investigação histórica, conti-
nuou ambígua. No desenvolvimento dos estudos históricos sempre
ocorreram duas atitudes diferentes para superar essa ambigüidade:
a) uma atitude objetivista tenta estruturar a interpretação históri-
ca usando um tipo de conhecimento no qual a subjetividade
do historiador (i.é, seu interesse pelo passado) é ultrapas-
sada por uma certa concepção de história. Essa concepção
exprime categorialmente a mudança temporal e a evolução
do mundo humano no passado como uma entidade previa-
mente dada a ser revelada por uma cognição que é verdade
apesar de todo interesse, ponto de vista ou parcialidade prá-
tica. Com freqüência os historiadores tomaram emprestadas
das ciências sociais as estruturas cognitivas desta história
"objetiva", além de partilhar com elas tanto a pretensão de
seguir a lógica das ciências naturais quanto o prestígio cultu-
ral. Ao agir assim, os historiadores acreditavam numa base
epistemologicamente segura para o caráter científico dos
estudos históricos. Exemplos dessa estratégia foram a ten-
tativa de Karl Lamprecht de transmutar o historicismo em
uma nova concepção de história como ciência social, assim
como as tentativas correlatas da primeira fase da escola dos
Annales, para não falar do marxismo e das diversas tentati-
vas positivistas de promover a história ao status de ciência
(Erhebung der Geschichte in den Rang einer Wissenschafi)x<ò\
b) a outra estratégia é uma reconstrução epistefnológica dos
padrões da interpretação histórica que admite ter seu fun-

16
Essa é uma- fórmula famosa de Johann Gustav Droysen, posta por ele
como título de sua recensão da "History of Civilization in England", de Thomas
Buckle {Historik [Fn 14], p. 451 ss.).

139
Jõrn Rüsen

damento no interesse e no envolvimento prático, de que de-


corre um elemento de subjetividade inevitável. A o mesmo
tempo, porém, ela enfatiza as regras metódicas e os recursos
teóricos de que lança mão como garantia da validade in-
tersubjetiva do conhecimento histórico. O melhor exemplo
conhecido dessa estratégia é a interpretação da objetividade
por Max Weber e sua metodologia dos tipos ideais 17 .
A abordagem objetivista perdeu sua credibilidade. Seu impac-
to ideológico não poderia ser negligenciado: o interesse subjetivo e a
luta política pelo poder facilmente poderiam ser encontrados nas diver-
sas idéias da histórica reificada. O último recuo da objetividade como
idéia constitutiva dos estudos históricos enquanto disciplina acadêmi-
ca ficou evidente com a emergência meta-histórica da narrativa como
forma constitutiva do conhecimento histórico e como procedimento
mental de fazer história. Narratividade é um conceito que explica a
relação constitutiva do pensamento histórico para com as práticas cul-
turais da memória e identidade coletivas. Ele mostra que a cognição
histórica opera sua constituição específica na vida prática mediante sua
forma narrativa. A interpretação histórica está diretamente vinculada a
essa forma; ela traz a informação do passado, empiricamente evidente,
para a narrativa. Somente nesta forma a informação quanto ao passado
é especificamente "histórica" e somente nesta forma o conhecimento
histórico pode desempenhar suas funções culturais.
O conhecimento histórico gerado pelo procedimento cogniti-
vo da pesquisa metódica deve à narratividade qualificações que são co-
mumente entendidas como negações da objetividade, especificamente:
retrospectividade, perspectividade, seletividade e particularidade 18 . N a

17
WEBER, Max. Die "Objektivitãt" sozialwissenschaftlicher und
soziaipolitischer Erkenntnis. In: WEBER, M. Gesammelte Aufsàt^e %ur Wissenschaftslehre.
3 ed. Ed. Johannes Winckelmann. Tübingen, 1968, p. 146-214. Trad. IngL: WEBER,
M.: TheMetbôdolqgy of Social Sáences^ trad. e ed. Edward A. Shils e Henry A. Finch. Nova
Iorque: Free Press, 1949; parcialmente em WEBER, M. Objectivity in Social Science.
In: WEBER, M. SoáologicalWritings (n. 1), p. 248-259.
18
Cf. FUSSMANN, Klaus. Historische Formungen. Dimensionen der
Geschichtsdarstellung. In: FUSSMANN, K.; GRÜTTER, H. T ; RÜSEN, J. (Eds.).
Historische Fas^ination. Geschichtskultur heute. Kõln, 1994, p. 27-44, esp. p. 32-35.

140
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

retrospectividade, a abordagem da evidência empírica do passado está sob


influência das projeções para o futuro que tendem a ultrapassar o hori-
zonte da experiência do passado. A retrospectividade do conhecimen-
to histórico pode ser considerada como abertura pela qual elementos
nao-empíricos - interesses subjetivos, normas e valores, aspirações e
ameaças - ingressam na relação histórica entre o passado e o presen-
te e chegam mesmo a ter certo impacto sobre a estrutura cognitiva
guiada pela racionalidade metódica. Perspectividade diz respeito à relação
constitutiva entre o passado e o presente, insere a perspectiva históri-
ca nos problemas práticos de orientação da época do historiador. Ela
concretiza a dependência do sentido e do significado históricos para
com o ponto de vista dos historiadores na vida social de seu tempo.
Seletividade indica as conseqüências da retrospectividade e da perspecti-
vidade para o conteúdo empírico do conhecimento histórico. Somente
um certo tipo de informação extraída do material das fontes torna-se
relevante para a pesquisa, ou seja, aquele que vai ao encontro da ope-
ração subjetiva de produção de sentido, significado e significação do
passado para os problemas de orientação do presente. Os critérios de
seleção são normas e valores que amoldam o passado com o sentido,
o significado e a significação históricos. Somente nas resultantes desse
sentido, significado e significação é que o passado pode ser reconhe-
cido como história. Particularidade reflete as limitações da abordagem,
pela interpretação histórica, das evidências empíricas do passado. Fun-
damentalmente, ela relaciona o conhecimento histórico à finalidade
de construção da identidade mediante a memória histórica. Sendo a
identidade logicamente particular — ela sempre é uma diferença para
com os outros —, o conhecimento histórico, como espelho criativo da
formação da identidade, sempre é particular. Exige, por conseguinte,
uma pluralidade de abordagens do passado. Dessa forma, corresponde
ele, pois, à pluralidade de identidades e às dimensões da identidade, das
diferenciações e dos interesses conexos na vida prática.
Com sua retrospectividade, perspectividade, seletividade e par-
ticularidade, o conhecimento histórico faz parte do discurso cultural
pelo qual a diferença e a distinção são produzidas como resultantes
essenciais da orientação cultural no mundo humano. Isso é verdade
especialmente para as relações sociais e para a dominação política.

141
Jõrn Rüsen

Pode-se mesmo falar de um princípio de comunicabilidade, que faria


do conhecimento histórico um elemento constitutivo desse discurso
cultural. Ele transforma o discurso acadêmico em parte da luta cultural
pelo poder, Ele lida com o poder ao tornar efetivos seus princípios
na percepção e na interpretação do mundo humano no espelho da
memória histórica. No contexto desta comunicação, a história, como
passado representado, ganha em vividez e poder, ao tornar-se parte da
vida quotidiana. Confrontada com essa integração inevitável da histó-
ria à vida, a objetividade histórica aparece como seu contrário, como
um recurso cultural na luta política pelo poder, ao simbolizar as forças
da cultura. Toda história da historiografia é uma prova empírica desse
papel dos estudos históricos19.
Há um termo, no discurso recente da meta-história, que in-
dica o recuo da objetividade no campo dos estudos históricos (pelo
menos na perspectiva da reflexão meta-histórica sobre seus princípios
constitutivos):ficáonalidade.Ficcionalidade é um contraconceito de ob-
jetividade no contexto semântico de uma epistemologia positivista.
Objetividade significa o atributo epistemológico de solidez empírica
da informação obtida a partir do material das fontes mediante o proce-
dimento metódico de sua crítica. Essa informação consiste nos assim
chamados "fatos": eles asseveram que, num determinado tempo e em
um determinado local algo ocorreu de determinada forma por cau-
sa de determinadas razões. Um fato é uma resposta à questão sobre
"quando-onde-o quê-como-por quê?". Um tal fato não possui sentido,
significado ou significância especificamente históricos em si próprio.
Ele se reveste desse sentido "histórico" apenas numa determinada
relação temporal e semântica para com outros fatos. Essa relação é
produzida pela interpretação histórica. De modo a tornar efetiva essa
"historização", a interpretação histórica recorre a princípios de senti-
do, significado ou significância cujo estatuto ontológico é diferente do
estatuto dos próprios fatos. Levando-se em conta a mera facticidade
da informação das fontes, há ainda algo mais do que apenas factual na
relação narrativa temporal que qualifica os fatos como especificamente

19
NOVICK, Peter. That Noble Dream. The "Objectivity-Questiôti" and the
American Historical Profession. New York: Cambridge, 1988.

142
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

"históricos". De modo a determinar essa diferença usa-se o termo "fic-


cionalidade". Na medida em que a interpretação dá uma forma narra-
tiva à relação "histórica" entre fatos, o procedimento da interpretação
está intimamente relacionado à maneira de contar uma história {tell
a story). O termo "ficcionalidade" exprime também essa situação. O
processo instituidor de sentido da interpretação histórica aparece, sob
o influxo desta categoria, como "um ato essencialmente poético", do
mesmo tipo de geração de sentido que se encontra na literatura e nas
artes20.
"Ficcionalidade" assinala ainda o estatuto ontológico e episte-
mológico daqueles elementos do conhecimento histórico e da histo-
riografia que não proveem diretamente da facticidade pura da infor-
mação das fontes. Esse termo só faz sentido com o pressuposto, não
questionado, de uma epistemologia positivista. Ele confirma, ademais,
um conceito amplo de método histórico, em que este fica restrito aos
mecanismos e à tecnologia de crítica das fontes. A operação mental
que transforma a informação das fontes numa seqüência narrativa com
sentido e significado, numa narrativa histórica, pois, é, por sua vez, ex-
plicada como narrativa. A meta-história, que investiga os princípios da
narrativa, vai além tanto da metodologia tradicional que se concentra
na objetividade, quanto da poética e da retórica da historiografia, que
se restringem à subjetividade. Agora sim, os princípios constitutivos da
constituição histórica de sentido são de natureza estética e lingüística.
Esta poetização da cognição histórica correspondia à falta de
metodologia de interpretação histórica. A meta-história velou o fato de
que os estudos históricos ainda utilizam uma rede de conceitos mais
ou menos explicados teoricamente, ao inserir os fatos numa relação
historicamente significativa21. O ato poético inclui, no mínimo, proce-
dimentos cognitivos decorrentes das regras metódicas da pesquisa his-
tórica. A nova consciência das estratégias lingüísticas para a produção
de sentido em história atraiu a atenção dos historiadores novamente
para o ato de escrever história. A historiografia nunca foi completa-

20
WHITE, Hayden. Metahistory. The Histomal Imagination in Nineteenth Ctntury
Europe. Baltimore, 1973, p. X.
21
Cf. RÜSEN, Jõrn. Rekonstruktion der Vergangenheit Grund^üge einer Historik
Il:T)'\t Prinzipien der historischen Forschung. Gõttingen, 1986.

143
Jõrn Rüsen

mente esquecida na reflexão meta-histórica sobre os estudos históricos


que destacavam sua pretensão de objetividade e sua autodefinição e
prestígio como "ciência". No entanto, ela sempre esteve conexa com
a racionalidade metódica da pesquisa científica, tornou-se dependente
dela e foi desprovida de seu papel constitutivo no processo de produ-
ção de sentido ao lidar com a experiência do passado. Tem-se agora
o percurso inverso: os recursos racionais da pesquisa, quando tema-
tizados, parecem depender de procedimentos lingüísticos básicos de
produção de sentido ao modelar a informação da fonte numa narrativa
significante. Como escapar dessa ambivalência?

4. U m a aproximação de u m novo
conceito de objetividade

De modo a tornar possível a volta das pretensões de verdade


do pensamento histórico tem-se, antes de mais nada, de esclarecer o
significado de objetividade. Esse significado pode ser visto de duas
formas: primeiramente, objetividade significa uma relação constitutiva
do pensamento histórico para com a experiência; existe algo na cons-
trução narrativa chamada "história" que não pode ser inventado, pois
é previamente dado e tem de ser reconhecido como tal pelos historia-
dores. Os procedimentos racionais da pesquisa histórica estão basea-
dos nesta relação entre o pensamento histórico e o "estar previamente
dado" da experiência, que se assemelha a um "objeto" da interpretação
histórica. A experiência é um dos limites da experiência, i.é: a interpre-
tação histórica não pode ir além dos contornos da experiência quando
tenha por intenção enunciar o que ocorreu no passado - quando, onde,
como e por quê alguma coisa aconteceu ou foi o caso. Essa relação
com a experiência não impede, de forma alguma, acréscimos subjeti-
vos constituidores de sentido por parte dos historiadores ao Kdarem
empiricamente com o passado.
Em seu segundo significado, "objetividade" inclui até mesmo
o lado "subjetivo" da interpretação histórica: ela significa um modo da
própria subjetividade, ou seja, a validade intersubjetiva de uma inter-
pretação histórica. Em poucas palavras, essa objetividade como inter-
subjetividade significa que a interpretação histórica não é arbitrária ou

144
Jòrn Rüsen e o Ensino de História

descabida ao tratar os elementos subjetivos do sentido histórico que


moldam a informação do material das fontes em uma narrativa com
sentido e significado e constituem, assim, "história" como uma relação
de sentido entre o passado e o presente (a qual é tendencialmente refe-
rente ao futuro). Este significado de "objetividade" refere-se à relação
da interpretação histórica com o discurso cultural e com a vida social,
nos quais se constitui toda narrativa histórica, aos quais toda narrativa
histórica se dirige e nos quais toda narrativa histórica desempenha o
papel de orientadora da vida prática. "Objetividade" significa, pois, que
a experiência histórica pode ser interpretada com relação a essas três
perspectivas de tal forma que se dêem boas razões para aceitar uma
narrativa histórica e para recusar uma outra. O termo "razão" indica a
solução: existem princípios de interpretação que todo historiador deve
observar, na medida em que queira produzir uma narrativa histórica
cuja validade esteja além de uma subjetividade pobre no sentido de
arbitrária ou totalmente descabida.
A pretensão de objetividade no sentido de uma relação consti-
tutiva com a experiência histórica pode ser facilmente legitimada pela
referência aos procedimentos de pesquisa consagrados para os estu-
dos históricos. E de se convir que o método histórico sofre influência
da abordagem heurística da experiência histórica, chegando mesmo a
depender dela, que inclui, na relação especificamente histórica entre o
passado e o presente, elementos constitutivos de subjetividade, como
sentido, significado e significância. Não obstante, a racionalidade me-
tódica da pesquisa alcançou uma validade que não pode ser posta de tal
forma em dúvida que a informação das fontes perca seu valor cogniti-
vo como limite da interpretação22.
No caso da subjetividade, as coisas são diferentes. É aberta a
questão de se saber se existe uma racionalidade metódica estrita, com-

22
APPLEBY, Joyce; HUNT, Lynn; JACOB, Margaret: Telling the trutb about
history, New York (Norton), 1994. GOSSMAN, Lionel. Between History and Uterature.
Cambridge, Mass., 1990; KOCKA, Jürgen. So^ialgeschichte, Begriff - Enhvicklung -
Probleme. 2. ed. Gõttingen, 1986, p. 40-47: Objektivitátskriterien in derGeschichtswissetischaft
KOSELLECK, Reinhatdt; MOMMSEN, Wolfgang J.; RÜSEN J ò r n (Eds.). Objektivitat
und Parteilichkeit (Beitràge zur Historik, v. 1), München, 1977; RÜSEN, jòrn (Ed.).
Historische Objektivitat. Aufsàt^e ytir Geschichtstheorie. Gõttingen, 1975.

145
J õ r n Rüsen

parável à da objetividade, para os procedimentos pelos quais a infor-


mação do material das fontes é moldada em um narrativa histórica
significativa. N ã o se deve negligenciar, todavia, que existem ao menos
alguns critérios raáonais inegáveis de iníersubjetiindade que garantem a consistên-
cia de uma narrativa histórica. Essa consistência deve ser investigada, com
respeito aos princípios da intersubjetividade, como uma condição ne-
cessária para a plausibilidade ou a "verdade" de uma narrativa histórica.
Convém distinguir duas dimensões desta consistência: a co-
erência teórica e a coerência prática. A coerência teórica diz respeito aos
conceitos e sua relação com a informação do material das fontes. O
discurso pós-moderno da meta-história tratou sobretudo das metáfo-
ras como elementos básicos da produção histórica de sentido no ato de
transformar a experiência do passado em uma história com significa-
do para o presente 23 . A racionalidade metódica dos estudos históricos
já teve por resultado a transformação (ou mesmo a superação) das
metáforas em conceitos. Com essa conceitualização, a interpretação
histórica se qualifica para contribuir para sua validade intersubjetiva:
uma qualidade que se pode chamar de reconstrutibilidade. Considero essa
qjaestão no sentido de a interpretação histórica ser dotada de transpa-
rência e clareza que possibilitam, principalmente, construir e corro-
borar ou refutar a argumentação que apresenta. É este o sentido da
famosa passagem de Max Weber: "... é e continua verdade que uma
demonstração científica metodicamente correta, no campo das ciên-
cias sociais, se quiser alcançar seu objetivo, tem de ser reconhecida
como correta também por um chinês..." 24 . Essa transparência pode ser
expressa por uma regra metódica da interpretação histórica: esta última
tem de ocorrer dentro de uma rede conceituai explícita. Com os recur-
sos conceituais explícitos em forma mais ou menos teórica, a interpre-
tação histórica se reveste de um determinado grau de reflexibilidade,
que reforça o elemento de explanação racional que opera n o "contar
uma história do passado" embora lhe atribua sentido pela via argu-
mentativa, dirigida às faculdades racionais daqueles aos quais a história

23
Cf. ANKERSMIT, Frank R. History and Tropology. The Rise and Fali of
Metaphor. Berkcley, 1994.
24
Cf. Weber: Objektivitãt [nota 17], p. 155.

146
Jõrn Rüsen e o Ensino de História

é contada. Os processos mentais criativos da narratividade histórica


adquirem a qualidade de estrutura narrativa e submetem a espontanei-
dade racional ao controle da evidência empírica, da coerência lógica e
do vigor explanatório, no jogo da produção histórica de sentido.
A coerência prática é a qualidade da narrativa histórica que lhe
confere plausibilidade quanto à função prática que ela tem na orien-
tação cultural da vida concreta. Será possível constatar e identificar
coerência e intersubjetividade — isto é, um indício de razão — mesmo
nos abismos da vida em que interesses, conflitos, vontade de poder
e a avassaladora ambição de assegurar autoestima e reconhecimento
social desempenham um papel decisivo na modelagem das imagens do
passado para as finalidades do presente e na perspectiva do futuro? A
resposta é simples e límpida: sem os elementos discursivos da intersub-
jetividade, a vida humana prática seria impossível. Penso aqui em todos
os elementos culturais que habilitam os seres humanos a superar seus
conflitos de forma pacífica, de se ajustar à experiência, de convencer-
-se uns aos outros mediante argumentos e não pela força, de elaborar
e aceitar razões para a orientação da vida prática no tecido cultural da
ação.
Esses elementos podem ser especificados com relação à mais
sensível e prática das funções do pensamento histórico: seu papel na
formação da identidade pessoal e social. Correspondentemente à ra-
cionalidade metódica, que produz a coerência teórica da narrativa his-
tórica, existem uma razão e uma racionalidade práticas universais na
conciliação das diferenças e das tensões no processo de formação da
identidade. Isso fica patente no embate político pelo poder e nas estra-
tégias conflitantes na busca do equilíbrio existencial entre autoestima e
reconhecimento social com respeito à identidade histórica. É ainda um
recurso cultural poderoso para os indivíduos e os grupos assumirem
sua posição social no relacionamento com os demais. Penso ser a catego-
ria de igualdade e o conceito de humanidade, a ela referente^ que serve de regra
cultural para lidar com as diferenças.
Essa categoria é a contrapartida prática das forças teóricas da
geração de sentido, que dota as narrativas históricas da transparência
argumentativa anteriormente mencionada. Com a categoria de igualda-
de pode-se alcançar uma tal transparência também no campo prático

147
J õ r n Rüsen

da formação da identidade. Todo o sistema jurídico m o d e r n o está ba-


seado nela. Isso parece ser extremamente teórico, se comparado com
os problemas práticos reais, mas podemos mostrar, facilmente, quão
relevante é, para a vida prática, essa argumentação abstrata. E m que
consiste a falta de intersubjetividade no processo de formação da iden-
tidade histórica? N o déficit de reconhecimento, na marginalização, na
relação moral assimétrica entre similitude e alteridade. Igualdade é uma
idéia regulativa para superar essa falta de intersubjetividade.
Para a finalidade de construção da identidade pela memória
histórica, porém, essa categoria da intersubjetividade é totalmente in-
suficiente. Ela define uma universalidade abstrata que fica aquém da
diversidade de diferenças na qual a cultura constrói a identidade hu-
mana. Tem-se necessidade de um princípio muito mais abrangente
e profundo que leve em conta tal diversidade. N o plano teórico das
idéias regulativas, pode-se transformar facilmente a universalidade abs-
trata da igualdade numa universalidade concreta que corresponda aos
desafios da diferenciação enquanto procedimento cultural necessário
à construção da identidade: na medida em que cada identidade é par-
ticular, a intersubjetividade, relativamente à diferença entre as particu-
laridades,, é uma questão de como correlacionar essas particularidades.
Deve-se atribuir à regra metódica que todos os que se encontram nesse
processo aceitem suas próprias diferenças e a respectiva alteridade. A
idéia regulativa da intersubjetividade torna-se, assim, conhecimento e reco-
nhecimento mútuo2S.
Essa idéia regulativa pode ser utilizada na interpretação histó-
rica: ela se refere à perspectividade de qualquer narrativa histórica. Ela
relaciona a interpretação histórica a uma perspectiva que ou inclui a
diferença dos pontos de vista relativamente às diversas identidades ou
reforça outras perspectivas, como complementares a pontos de vista
diversos. A pluralidade de pontos de vista e de perspectivas não deve

25
Cf. TAYLOR, Charles. MultikulturaUsmus uni dk Polifik der Anerkennung
Frankfurt/Main, 1993; RÜSEN, Jõrn. Vom Umgang mit den Anderen - Zum Stand der
Menschenrechte heute. Internationale Schulbuchforschung, 15, p. 167-178,1993; RÜSEN,].
Human Rights from the Perspective of an Universal History. In: SCHMALE, W (Ed.).
Human rights andcultural' diversity. Europe - Arabic-hlamic World-África - China. Frankfurt/
Main, 1993, p. 28-46.

148
jórn Rüsen e o Ensino de História

ser considerada como um entrave à objetividade, mas como sua reali-


zação no que diz respeito às necessidades da coerência pratica. Mas a
pluralidade pode ocorrer de dois modos; um, com fundamento lógico
na negação estrita da objetividade, desacreditando-a como um sonho
nobre", mas sem qualquer princípio regulador diante dos confl.tos e
embates entre as diversas perspectivas, resultando simplesmente um
beltum ommum mntra omms ou um choque de áM^ões combatido com as
armas da narrativa. A outra modalidade consiste em um conceito de
pluralismo limitado por uma regra abrangente de complementaridade,
pela crítica recíproca sob a forma de uma argumentação transparente
e razoável, bem assim pelo conhecimento e reconhecimento mutuo.
Penso não existir qualquer dúvida sobre que tipo de pluralismo deve
ser preferido.
Uma tal idéia regulativa da coerência prática tem conseqüências
para a abordagem heurística da experiência histórica. Essa abordagem
é sempre levada adiante pelas normas e valores que constituem o sen-
tido histórico. A intersubjetividade prática é um desses valores, e tem
seus efeitos, repercute na experiência do próprio passado, na medida
em que a história pode ser concebida como um processo de busca de
observar esse princípio nas formas da vida humana, nas constituições,
nos sistemas jurídicos, no comportamento social etc.
Esta repercussão da experiência histórica reveste a intersubje-
tividade, enquanto coerência prática e teórica das narrativas históricas,
da qualidade adicional de objetividade, no sentido de garantir uma re-
lação verossímil com a experiência. História como experiência nao se
situa fora de nós mesmos. A experiência histórica não é dada apenas
previamente nos vestígios do passado com que os historiadores lidam,
sob a forma de fontes. A história é dada previamente também em nos,
e mesmo mais, na medida em que nós próprios somos resultado de
desenvolvimentos temporais de longa duração. Antes de pensarmos
em história, e antes de a rememorarmos, já somos história. Antes de
pensarmos no passado enquanto passado - e esta é uma condição ne-
cessária do construto cultural "história" como elemento de orientação
cultural - o passado é presente. Nessa presença do passado, intersub-
jetividade e objetividade, no sentido da experiência, são a mesma coi-
sa. Na condição de previamente dado, o passado ainda não se tornou

149
j õ r n Rüsen

história, nem mesmo é, propriamente, passado; como história e c o m o


passado, poder-se-ia dizer, é invisível. Para torná-lo visível temos de
distinguir as três diferentes dimensões temporais e colocar em ação
os mecanismos mentais da consciência histórica. A resultante dessa
interação é a representação histórica do passado. Ela somente p o d e de-
sempenhar seu papel de orientação se não perder de vista essa "história
invisível" que nós mesmos somos. Somente a representação histórica
do passado, que nos traz à mente essa história, é que possui a qualidade
da objetividade em que estão sintetizados o aspecto da experiência e
o da in ter subjetividade, assim como as dimensões teórica e prática da
produção de sentido histórico na relação entre passado e presente.
A pretensão de objetividade efetivada no procedimento aca-
dêmico da cognição histórica é pensada, amiúde, como exalando u m
certo odor de mofo. Muitos historiadores profissionais consideram
que seu serviço à verdade só pode ser prestado se isolarem sua repre-
sentação do passado com relação aos embates de suas épocas. Essa
neutralidade é uma esperança vã. Nenhuma narrativa histórica é pos-
sível sem uma perspectiva e os critérios de sentido histórico com ela
relacionados. Esses critérios são derivados da orientação cultural da
vida prática. Eles têm de estar expressos numa forma conceituai tal
que mantenham sua relevância para a vida atual, mesmo se versam
sobre coisas passadas. Assim, a objetividade histórica não exorciza, da
representação histórica, a variegada multiplicidade da vida prática, pelo
contrário: ela é um princípio que organiza essa variedade. Emoção,
imaginação, poder e vontade são elementos necessários da produção
histórica de sentido. A pretensão de objetividade não lhes subtrai o
vigor da vida. Objetividade pode ser reconhecida como uma forma de
sua vivacidade, na qual as narrativas históricas reforçam a experiência e
a in ter subjetividade na orientação cultural. E assim fazendo, tornam o
peso da vida - quem sabe? - um pouco mais suportável.

150

Você também pode gostar