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Identidade social e paratopia em O Cortiço de Aluísio Azevedo

AURICCHIO, Rosana1

RESUMO
O trabalho desenvolvido neste artigo é parte integrante da disciplina de Análise do
Discurso de inspiração francesa, sobretudo, nos pressupostos teórico-metodológicos de
Dominique Maingueneau (1997;2015) sobre o discurso literário e a paratopia. Neste
artigo, objetiva-se investigar a paratopia por meio do estudo do comportamento do
personagem principal, dono do cortiço em relação aos moradores do lugar e ao desejo
de pertencer a aristocracia representada pelos moradores do vizinho casarão. Conceituar
discurso literário, paratopia e seus diversos tipos se faz necessário para compreender a
relação que se quer com os personagens que o escritor Aluísio Azevedo traz em sua
obra. Identificar a paratopia de identidade retratada em alguns personagens do cortiço. É
relevante para esse estudo relatar os aspectos político histórico e sociais de produção da
época, que retratam situações do cotidiano de um lugar chamado Cortiço. Mais ainda,
esses personagens e descrições se coadunam também à composição de estereótipos que,
em última instância, sustentam imagens discursivas que atribuem a si e a outros,
construindo, dialeticamente, então, um ethos discursivo.

Palavras-chave: paratopia, identidade, discurso literário, O Cortiço,

Considerações Iniciais 

O tema a ser abordado nesse estudo é a paratopia de identidade relacionada ao


personagem principal do discurso literário O Cortiço do escritor Aluísio Azevedo em
relação aos moradores do lugar e ao desejo de pertencer a aristocracia representada
pelos moradores do vizinho casarão. A questão que esse artigo se propõe a resolver é,
como o comportamento e o desejo de pertencer a outro nível social de João Romão
modifica seu modo de agir, para que possa ser aceito em um ambiente aristocrático,
representado pelo vizinho comerciante, mas que adquire título de nobreza.
O Cortiço de Aluísio Azevedo foi escolhido pela diversidade de personagens e
comportamentos inusitados e instigantes da sociedade daquele momento histórico,
político e social. Esse trabalho está fundamentado nos pressupostos teórico-
metodológicos da Análise do Discurso de inspiração francesa (AD), nas abordagens de
Dominique Maingueneau (1997;2015) sobre o discurso literário e a paratopia. O artigo
está organizado em três etapas: as condições sócio-históricas de produção de O Cortiço,

1
Doutoranda do Programa de Língua Portuguesa (PUC-SP), Mestre em Educação (UNICID),
Psicopedagoga (UNINTER), Pedagoga (PUC-SP).
a base teórico-metodológica da AD e a análise de aspectos de O Cortiço, a partir de seu
personagem João Romão.

As condições sócio-históricas de produção do discurso de Aluísio Azevedo

Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo nasce em catorze de abril de mil,


oitocentos e cinquenta e sete, em São Luiz do Maranhão, filho de Emília Amália Pinto
de Magalhães, mulher separada, que fugiu dos maus tratos do primeiro marido e
amasiou-se com o vice-cônsul do governo português, pai do referido autor. Tendo como
irmão mais velho Artur Azevedo, teatrólogo brasileiro. Em 1876, vem para o Rio de
Janeiro para estudar na Imperial Academia de Belas Artes, fez ilustração para os mais
famosos jornais da época como O Fígaro e o Mequetrefe.
Desenhava os personagens dos textos que escrevia e os movimentava dando vida
as suas histórias. O autor foi o introdutor “oficial” do naturalismo no Brasil, com o
mulato de 1881, tinha grande facilidade em desenhar trabalhando como caricaturista por
muito tempo. Opositor da escravatura e do domínio da religião, não era uma figura
muito querida na sociedade maranhense. Trafegou entre o romantismo e o movimento
naturalista.
O naturalismo foi um estilo de época de finais do século XIX. Seu surgimento
está associado à publicação, em 1859, do livro A origem das espécies, de Charles
Darwin (1809-1882), que revolucionou o pensamento científico na segunda metade
desse século. O estilo possuiu características como o determinismo e a zoomorfização.
Os escritores naturalistas usavam a ciência como base de composição de seus
personagens, nesse ponto diferenciavam-se dos realistas.
O naturalismo é considerado uma evolução do realismo e apresentava as
seguintes características:

A ciência era usada como instrumento de análise e compreensão


da sociedade; As personagens eram vítimas do determinismo:
condicionadas por sua raça, meio e momento histórico em que
viviam; A análise psicológica realista tornou-se menos
importante, com prevalência das motivações biológicas; Com
base na ideia de que o ser humano é um animal comandado por
instintos, as personagens eram construídas nessa perspectiva; O
instinto sexual sobressaiu-se a todos os outros, em oposição à
capacidade racional das personagens; As classes mais pobres
tornaram-se protagonistas, objeto de análise do escritor
naturalista; Em condições subumanas de vida e de trabalho, as
personagens perderam a humanidade e foram dominadas por
seus instintos animais; As obras apresentaram uma sexualidade
explícita, o que chocou o público romântico; A mulher foi
tratada como histérica; a pessoa negra, como inferior; e o
indivíduo homossexual, como doente; Zoomorfização:
características de animais foram associadas a seres humanos. (
https://mundoeducacao.uol.com.br/literatura/naturalismo.htm )

Algumas de suas obras foram: Uma lágrima de mulher, O cortiço, O homem, O


mulato e Casa de pensão. O escritor enfrentou diversas dificuldades financeiras. O
cortiço, publicado em 1890, consolida o prestígio do autor. Utilizando linguagem
médica, característica do movimento naturalista, vive a Abolição da Escravatura e a
Proclamação da República.
Em 1895, torna-se diplomata, representou o Brasil na Espanha, Japão,
Argentina, Inglaterra e Itália. Em 1897 é eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Em 1913, falece em vinte de janeiro em Buenos Aires. Quando residiu na Itália, teve
como companheira dona Pastora Luquez e os filhos dela, que adotou como seus.

Base Teórico-metodológica: Análise do Discurso de inspiração francesa

Pelo histórico, é possível perceber a instabilidade do campo da Análise do


Discurso desde sua emancipação como disciplina. O termo “discurso”, que dá nome à
teoria também não é uma noção estável conforme assevera Maingueneau (2015). O
termo discurso é concebido de maneiras amplas e difusas, podendo ser entendido como:
organização para além da frase, uma forma de ação, interativo, contextualizado,
ancorado por um sujeito, regido por normas, tomado em um interdiscurso, construtor
social de sentido.

Vê-se que o emprego de “discurso” tem um duplo alcance.


Permite, ao mesmo tempo, designar objetos de análise (“o
discurso da imprensa”, o discurso dos médicos”...) e mostrar que
se adota um determinado ponto de vista sobre eles. [...] Para dar
uma medida da plasticidade do termo “discurso”, convém evitar
duas atitudes que poderiam ser qualificadas, uma de “cética”,
outra de “terapêutica”. (MAINGUENEAU, 2015, p. 29-30)

A maneira cética contenta-se com o registro de seus usos, explicando-os pelos


interesses dos que usam e a atitude terapêutica acaba por desqualificar os empregos de
“discurso” que não seriam definidos rigorosamente.
Maingueneau (2015) afirma que quando se fala de “discurso” ativa-se um
conjunto aberto de ideias-força:
O discurso é uma organização além da frase, mas isso não quer
dizer que todo discurso se manifeste por sequências de palavras
de dimensões obrigatoriamente superiores à frase, mas que ele
mobiliza estruturas de outra ordem, diferentes das da frase. [...]
O discurso é uma forma de ação, isso quer dizer que falar é uma
forma de ação sobre o outro, e não apenas uma representação do
mundo. [...] O discurso é interativo, a atividade verbal é, na
realidade, uma interatividade que envolve dois ou mais
parceiros. [...] O discurso é contextualizado, o discurso intervém
em um contexto, como se o contexto não passasse de uma
moldura, de um cenário: fora de contexto, não se pode atribuir
um sentido a um enunciado. (MAINGUENEAU, 2015, p.25 –
26)

Maingueneau (2015) continua delimitando as características do discurso como


assumido por um sujeito e afirma que o discurso só é discurso se estiver relacionado a
um sujeito, a um EU , que se coloca ao mesmo tempo como fonte de referências
pessoais, temporais, espaciais e indica as atitudes necessárias em relação ao que diz e a
seu destinatário.
Além disso, Maingueneau (2015) afirma que o discurso é regido por normas
como qualquer comportamento social.

No nível elementar, cada ato de linguagem implica normas


particulares; um ato aparentemente tão simples como uma
pergunta, por exemplo, implica que o locutor ignore a resposta,
que essa resposta o interesse, que ele acredite que o indivíduo a
quem a pergunta é feita possa respondê-la etc. existem, além
disso, normas (“máximas convencionais”, “leis do discurso”,
“postulados convencionais”...) que regem todas as trocas
verbais: ser compreensível, não se repetir, dar informações
apropriadas à situação etc. (MAINGUENEAU, 2015, p.27)

De acordo com Maingueneau (2018) os discursos constituintes são discursos


que conferem sentido aos atos da coletividade. Os discursos constituintes têm a seu
cargo o que se denomina archeion de uma coletividade, ou seja, o princípio, a fonte.
Segundo Maingueneau (2015) o discurso literário não é isolado, e complementa:

...ainda que tenha sua especificidade: ele participa de um plano


determinado da produção verbal, o dos discursos constituintes,
categoria que permite melhor apreender as relações entre
literatura e filosofia, literatura e religião, literatura e mito,
literatura e ciência. A expressão “discurso constituinte” designa
fundamentalmente os discursos que se propõem como discursos
de Origem, validados por uma cena de enunciação que autoriza
a si mesmo. (MAINGUENEAU, 2015, p.60)
Aquele que se enuncia em um discurso constituinte, precisa dotar obra nem no
exterior e nem no interior, mas no seu próprio pertencimento nessa sociedade. Ele não
pertence a um verdadeiro “lugar”.

Localidade paradoxal, paratopia, que não é ausência de lugar,


mas uma difícil negociação entre o lugar e o não lugar, uma
localização parasitária, que retira vida da própria
impossibilidade de estabilizar-se. Sem localização, não há
instituições que permitam legitimar e gerir a produção e o
consumo de obras, mas sem deslocalização, não há verdadeira
“constituência”. (MAINGUENEAU, 2015, p.68)

O pertencimento paradoxal que é a “paratopia” é ao mesmo tempo a condição e


o motor da criação e da enunciação. É pertencer e não pertencer ao mesmo tempo, lugar
constituído na criação literária.
A “paratopia” não é nem uma origem, uma causa , nem tampouco um estatuto,
mas o de um marginal: para criar, não é necessário nem suficiente ser um marginal. O
criador da obra literária pertence e não pertence: é paratópico. O “paratopia” está ligada
ao ato criador.
O termo “análise do discurso” é atribuído ao estruturalista Z. S. Harris (1952),
sendo que surgiu como disciplina nos anos de 1960, embora não se apresentasse como
um projeto único, pois seguia caminhos diversificados nos Estados Unidos e na França
e agrupava ao longo do caminho categorias de disciplinas diferentes.
Com o estruturalismo, a literatura se encontrava nas fronteiras do Texto, devido
ao fato de não haver mais centro. Falar em “discurso literário” é investir nas próprias
condições de enunciação: o estatuto do escritor associado ao seu modo de
posicionamento no campo literário, os papéis ligados aos gêneros, a relação com o
destinatário construída através da obra.
O “discurso literário” dá uma legibilidade à maior parte dos corpora literários e
não somente proceder a uma novidade epistemológica. Com isso, a própria noção de
“discurso literário” torna-se problemática. Ela parece pressupor que existiria uma
categoria correspondente a um subconjunto bem definido da produção discursiva de
uma sociedade: o discurso literário. Essa categoria é pertinente ao regime aberto pela
estética romântica que impôs a noção de Literatura.
Segundo o crítico literário Afrânio Coutinho:

A Literatura é, assim, a vida, parte da vida, não se admitindo


possa haver conflito entre uma e outra. Através das obras
literárias, tomamos contato com a vida, nas suas verdades
eternas, comuns a todos os homens e lugares, porque são as
verdades da mesma condição humana. (COUTINHO, 2008,
p.24)

Para o filósofo francês Louis-Gabriel-Ambroise, Visconde de Bonald (1830): A


literatura é a expressão da sociedade, como a palavra é a expressão do homem. A
literatura designa hoje um tipo de discurso; por um lado permite agrupar um conjunto
considerável de fenômenos pertencentes a épocas e as sociedades diversas.
Intertexto é o conjunto de textos com os quais um texto particular entra em
relação e o Interdiscurso é o conjunto dos gêneros e dos tipos de discursos que
interagem em uma dada conjuntura.
Borges (1999) defende a concepção “bibliotecária” da literatura no qual a
totalidade dos livros estariam dispostos em prateleiras de uma única biblioteca e o
sonho que a biblioteca estaria contida em um único livro. Mello (2005) afirma que uma
análise do discurso literário deve contemplar diversas formas de criação:

... a literatura se nutre de toda energia criadora, daquela que leva


o escritor a viver através de seu próprio refúgio do mundo,
assim como daquela que o coloca no centro dos movimentos da
sociedade. Quando consideramos as condições de emergência
das obras, o essencial não é afirmar a primazia de
intertextualidade sobre cada texto, mas a maneira cujo cada
posicionamento criador gera esta intertextualidade. (MELLO,
2005, p. 20)

Ao falar em intertexto de uma obra literária, pensa-se em outros textos literários.


Se as obras se alimentam de outras obras, elas se alimentam das relações entre textos
que advém da literatura e de outros que não advém dela.
O discurso literário não tem território próprio: toda obra é a priori dividida entre
o fechamento sobre o corpus, reconhecido como plenamente literário, e a abertura a
multiplicidade das práticas linguageiras que excedem esse corpus.
Para qualquer posicionamento, ao lado do investimento desse ou daquele gênero
do interdiscurso, há o investimento da interlíngua, pelo qual uma obra se inscreve no
espaço das práticas verbais e dos idiomas: entrada em um espaço que se pretende ocupar
e atribuição de um valor.
Ainda hoje acredita-se que o código linguageiro é supostamente individual: cada
escritor elabora o seu de acordo com sua visão de mundo. Mas o autor sugere que os
códigos linguageiros se impõem de forma de códigos coletivos associado ao
investimento de gênero de discurso determinados.
A relação do autor na interlíngua aparece de forma diferente: entre a enunciação
literária e a submissão a um ritual linguageiro pré-estabelecido, ou seja, a distância entre
o escritor e sua língua fixada nas rotinas.
Entre “intertexto” e “interlíngua”, não há descontinuidade. Um código
linguageiro pode investir uma língua, porque ela coincide com um corpus literário e não
porque seria um idioma falado. A presença do mesmo sufixo nas palavras “interlíngua”
e “intertexto” não é acidental. Promover o “-inter” é interpretar de forma diferente o
fato literário, isto é, abrir espaços e mobilizar formas de subjetividade que não se
deixam apanhar na alternativa entre mim profundo criador e uma figura de enunciador
que seria somente um correlato do texto.
Maingueneau (2006) enfatiza que o discurso literário não busca seu próprio
fundamento, pois não tem intenção de refletir sobre suas bases fundadoras, entretanto, a
narrativa do discurso literário é considerado um elemento pelo qual se estabelece a
legitimação da cena de enunciação, ou seja, a literatura estabelece seu significado na
forma de seu conteúdo como forma de constituição.

O texto literário é responsável pelas condições que levarão a sua


legitimidade através da gama universal de sentidos emanados
por ele, pois “designa fundamentalmente os discursos que se
propõem como discursos de origem, validados por uma cena de
enunciação que autoriza a si mesma”. (MAINGUENEAU, 2006,
p. 60)

A relação entre paratopia e discurso literário foi contemplada por


Maingueneau (2018). O pertencimento ao campo literário não é a ausência de todo
lugar, mas a negociação entre o lugar e o não lugar.
As modalidades dessa paratopia variam de acordo com as
épocas e as sociedades: os menestréis nômades da Antiguidade,
os parasitas protegidos pelos grandes na época clássica, os
boêmios em oposição aos “burgueses” etc. Numa produção
literária fundada na conformidade aos cânones estéticos, são
paratópicas principalmente as comunidades de “artistas” mais ou
menos marginais (os menestréis ou trovadores...). Quando a
produção é mais questão profundamente individual, a paratopia
elabora-se na singularidade de um afastamento biográfico.
(MAINGUENEAU, 2018, p.92-93)

Na realidade, o autor cria as condições de sua própria criação. Existem obras


cuja autolegitimação passa pelo afastamento de seu criador e outras que exigem a
participação do autor em empreendimentos coletivos.

Análise do discurso dos personagens principais da obra O Cortiço

Esta pesquisa possui caráter qualitativo e interpretativo. Na realização desse


artigo lançou-se mão de uma pesquisa bibliográfica e interpretativa que se apoia,
principalmente, nas contribuições de Maingueneau, Mello e Azevedo para endossar a
análise dos elementos paratópicos de identidade da obra O Cortiço de Aluísio Azevedo.
Após a apreensão de fatos da biografia do autor, se concretizou a análise dos
dados coletados na leitura da obra. Foram selecionados trechos que indicavam a
convergência com a teoria pesquisada buscando caracterizar as relações existentes no
discurso literário da obra e os elementos paratópicos de identidade (familiar, sexual ou
social)presentes no discurso literário.
Só há paratopia elaborada por meio de uma atividade de criação e enunciação. A
paratopia envolve o processo criador que a envolve também. Não há situação
“paratópica” exterior a um processo de criação. Toda paratopia dita o pertencimento e o
não pertencimento, a impossível inclusão em uma “utopia”. A paratopia se distancia de
um grupo (paratopia de identidade) ou de um momento (paratopia temporal) de
pertencimento. A paratopia de identidade – familiar, sexual ou social – oferece todas as
imagens da dissidência e da marginalidade, literal ou metafórica: meu grupo não é meu
grupo. A paratopia espacial é a de todos os exílios: meu lugar não é meu lugar, em
qualquer lugar que eu esteja, jamais estarei em meu lugar. Quanto a paratopia temporal,
ela repousa no anacronismo: meu tempo não é meu tempo.
Deve-se não separar a enunciação (discurso do lugar onde foi produzido) e a
instituição literária, distanciar-se de uma literatura que estaria retraída no fundo do eu,
colocar de antemão o trabalho de construção de uma identidade que deve fundar o
próprio espaço de sua própria enunciação. Palavra e direito se ligam. A obra é
paratópica como seu criador. O criador fala para quem? Em que momento? Nenhuma
enunciação pode escapar a essas questões.
De acordo com Maingueneau (2003) a paratopia de identidade abrange a
familiar, a sexual ou a social.

Paratopia familiar dos que desviam da árvore genealógica:


crianças abandonadas, encontradas, dissimuladas, bastardas,
órfãs,... Paratopia sexual dos travestis, homossexuais,
transsexuais... Paratopia social dos boêmios e dos excluídos de
uma comunidade qualquer: cidade, clã, equipe, classe social,
igreja, região, nação,...(MAINGUENEAU, 2003, p.27)

O cortiço, por si só, constituía-se em um universo particular, onde cada morador,


nem sempre era o que parecia, o papel de cada um era estabelecido na sociedade real, na
corte do Rio de Janeiro e dentro dos limites da propriedade de João Romão, o dono do
local. João Romão, português, dono do cortiço, trabalhador, não tinha feriados ou dias
santos. Trabalhava de sol a sol, ganancioso, egoísta, desonesto, pois roubava no peso
das mercadorias. Explorava os moradores com aumento dos aluguéis e os trabalhadores
da pedreira. Visava somente ao lucro, era invejoso da condição social do vizinho, de
quem cobiça a posição na sociedade, a casa, as vestimentas e os modos. Era amante de
Bertoleza.
Bertoleza era escrava foragida e amante de João Romão. Acreditava que era
liberta, pois possuía carta de alforria. O que não sabia era que a tal carta era falsa.
Trabalhava na cozinha da venda do amante que também servia refeições.
Bertoleza está associada à inferioridade e aos instintos animais:

Ele [João Romão] propôs-lhe morarem juntos, e ela concordou


de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português,
porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a
negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior
à sua. (AZEVEDO, 2011, p. 18)
Era feliz com sua vida, até que João Romão começa a se interessar por Zulmira,
a filha do vizinho, delicada, branca, virgem, de bons modos, bem-educada. Diante de
tantas comparações, a negra perdeu o encanto e mesmo seus dotes culinários deixam de
ser suficientes para encantar o companheiro, que lentamente se afasta. No final, João
Romão denuncia Bertoleza ao antigo dono, reaverá a escrava fugitiva.
A personagem que “inspira” e que é o alvo das ambições de João Romão é
Miranda, rico comerciante de tecidos, casado e com uma filha, que passa a morar no
sobrado ao lado do cortiço e que a princípio se atraca com João Romão por uma faixa
de terra entre as propriedades. É nítida a diferença socioeconômica entre os dois, ao
mesmo tempo em que ambos são ricos.
Miranda ascende a nobreza. Aumenta o ódio e a inveja que João Romão senti do
vizinho, pois o vendeiro não mais se contenta em administrar a venda, o cortiço e a
pedreira. João Romão se vê no teatro, na confeitaria em companhia de Zulmira e no
Paço Imperial, vivendo e compartilhando o ambiente que Miranda habita.
João Romão cresceu mais que o cortiço e seus moradores, não cabe mais nesta
comunidade.

E lá em cima, numa das janelas do Miranda, João Romão,


vestido de casimira clara, uma gravata à moda, já familiarizado
com a roupa e com a gente fina, conversava com Zulmira que,
ao lado dele, sorrindo de olhos baixos, atirava migalhas de pão
para as galinhas do cortiço; ao passo que o vendeiro lançava
para baixo olhares de desprezo sobre aquela gentalha sensual,
que o enriquecera, e que continuava a mourejar estupidamente,
de sol a sol, sem outro ideal senão comer, dormir e procriar.
(AZEVEDO, 2011, p.154)

A paratopia social é demonstrada ao longo da história através da passagem de


tamancos e mangas de camisa para os sapatos, casimira clara e gravata. O não
pertencimento ao local e ao modo de vida do cortiço. O estranhamento que causam as
pessoas, os cheiros e as cores de uma existência na qual não mais se encaixa a
personagem.
Pode-se exemplificar a paratopia de identidade na história de Jerônimo e
Piedade. Jerônimo, português, trabalhador da pedreira, incansável, modelo para os
outros. Devido a estes motivos, torna-se o “capataz” e seus vencimentos são maiores
que dos demais trabalhadores. É casado com Piedade, portuguesa humilde, dona de casa
devotada ao marido e a filha que estuda em um colégio interno.
Piedade convive bem com os moradores do cortiço. Mantém-se em sua casa,
onde ouve o marido tocar a viola portuguesa. Uma noite, volta para o cortiço a mulata
Rita Baiana, faceira, que dança o samba, lavadeira como as outras, mas que encanta
todo o cortiço com sua beleza, inclusive Jerônimo, marido de Piedade.
Rita Baiana, é amante de Firmo, mestre de capoeira e músico que passa os
domingos na casa de Rita. A princípio, Jerônimo não se aproxima. Com o tempo,
apaixona-se por Rita e então tudo muda.
Aluísio Azevedo descreve o abrasileiramento de Jerônimo que torna-se
indolente, não mais cumprindo com suas responsabilidades profissionais. Com a sua
viola que passa a deixar de lado, com a dança da mulata, que o desnorteia, a mulher que
passa a o enojar, a comida não tem mais gosto. Experimenta o café de Rita, ponto
emblemático que o torna brasileiro.

E [Jerônimo] viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por


uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar. A lua
destoldara-se nesse momento, envolvendo-a na sua cama de
prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se
acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva,
feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e
muito de mulher. Ela saltou em meio da roda, com os braços na
cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para
a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo
carnal num requebrado luxurioso que a punha ofegante; [...].
(AZEVEDO, 2011, p.76)

Jerônimo passa a frequentar as rodas de samba, falta ao trabalho até que se


envolve com Rita Baiana verdadeiramente, abandona a mulher e a filha, a identidade de
trabalhador responsável, bom marido e pai não lhe cabe mais. Pertence, agora, ao
universo dos amantes, vagabundos e não se preocupa com a família, apesar desse
compromisso ainda existir.
Dentre os moradores do cortiço, outra história que se destaca é a de Pombinha.
Era uma das poucas que sabia ler e escrever, a mãe Dona Isabel muito religiosa, vinha
de uma família de boa condição e após ficar viúva, perde tudo e torna-se lavadeira no
cortiço. Depende do casamento da filha para voltar a uma condição social melhor.
Aquela pobre flor do cortiço, escapando à estupidez do meio em
que desabotoou, tinha de ser fatalmente vítima da própria
inteligência. À míngua de educação, seu espírito trabalhou à
revelia, e atraiçoou-a, obrigando-a a tirar a substância
caprichosa da sua fantasia de moça ignorante e viva a explicação
de tudo que lhe não ensinaram a ver e sentir. (AZEVEDO, 2011,
p. 137)

Pombinha ainda não se tornara realmente mulher (não menstruava), a mãe não
permite seu noivado. A situação é tão relevante que todos no cortiço sabem desta
condição. É protegida de Léonie, uma prostituta rica, interessada sexualmente na
menina, porém Dona Isabel não percebe.
Quando finalmente a menarca ocorre (primeira menstruação), o cortiço entra em
festa. O casamento e a mudança são marcados e depois de um tempo, Pombinha
abandona o marido. Torna-se cortezã como Léonie com quem passa a viver e a mãe
morre abandonada.
A homossexualidade também é tratada como vício, quando a prostituta
Léonie corrompe Pombinha, uma jovem pura, que também não escapa à influência
do meio:

Dona Isabel quase morre de desgosto. Para onde teria ido a


filha?... “Onde está? onde não está? Procura daqui! procura
daí!” Só a descobriu semanas depois; estava morando num hotel
com Léonie. A serpente vencia afinal. Pombinha foi, pelo seu
próprio pé, atraída, meter-se-lhe na boca. A pobre mãe chorou a
filha como morta, mas, visto que os desgostos não lhe tiraram a
vida por uma vez e, como a desgraçada não tinha com que matar
a fome, nem forças para trabalhar, aceitou de cabeça baixa o
primeiro dinheiro que Pombinha lhe mandou. E, desde então,
aceitou sempre, constituindo-se a rapariga no seu único amparo
da velhice e sustentando-a com os ganhos da prostituição.
(AZEVEDO, 2011,p. 211)

Marca dessa forma, outra paratopia de identidade. A menina meiga e virginal,


criada como intocável dentro daquela comunidade marginal, não pertencia mais aquele
lugar. Passa a pertencer, de forma pontual e definitiva aliciando Senhorinha, filha de
Jerônimo e Piedade para o seu agora, mundo de luxo e prostituição.
Alguns personagens da obra O Cortiço do escritor Aluísio Azevedo são
exemplos de paratopia de identidade devido sua condição de vida no ambiente retratado.
Considerações Finais

Para Maingueneau (2006) o discurso literário não busca seu próprio fundamento,
pois não tem intenção de refletir sobre suas bases fundadoras, entretanto, a narrativa do
discurso literário é considerada um elemento pelo qual se estabelece a legitimação da
cena de enunciação, ou seja, a literatura estabelece seu significado na forma de seu
conteúdo como forma de constituição.
A correspondência entre paratopia e discurso literário foi contemplada por
meio do pertencimento ao campo literário que não é a ausência de todo lugar, mas a
negociação entre o lugar e o não lugar. A paratopia de identidade está dividida em:
familiar, sexual e social e foi referenciada na relação com os personagens que o escritor
Aluísio Azevedo trouxe em sua obra.
A paratopia de identidade foi demonstrada na obra, à medida que João Romão,
dono do cortiço, deseja ser como Miranda, seu vizinho, que mora em um sobrado, se
veste bem e consegue título de nobreza mesmo não pertencendo a aristocracia.
João Romão aprende a vestir-se bem, a calçar-se e passa a frequentar o casarão,
morada de Miranda, lugar com o qual não se identifica, porém apresenta um
comportamento forçado tentando se encaixar naquele não lugar.
Por outro lado, despreza sua vida anterior, a companheira Bertoleza, que vê
como inferior, do mesmo modo que os moradores do cortiço, que só deseja explorar,
visando lucro, riqueza e posição social. Frequenta lugares que a alta sociedade da corte
ocupa e que, no início da obra, não faziam parte de seu universo.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, A. O cortiço. São Paulo: Ática, 2011.


BORGES, Jorge Luis. O livro. In: Borges, oral. Porto Alegre: Globo, 1999.
BAKHTIN, M. La Poétique de Dostoievski. Paris: Seuil, 1970.
CHOMSKY, N. Reflexions sur le language. Paris: Flammarion, 1977.
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