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Monique Pyrrho 1
Mauro Machado do Prado 1
Jorge Cordón 1
Volnei Garrafa 1
Abstract The Brazilian Dentistry Code of Ethics Resumo O Código de Ética Odontológica (CEO)
(DCE), Resolution CFO-71 from May 2006, is an brasileiro, Resolução CFO-71 de maio/2006, é um
instrument created to guide dentists’ behavior in instrumento elaborado para orientar a conduta dos
relation to the ethical aspects of professional prac- cirurgiões-dentistas sobre os aspectos éticos da práti-
tice. The purpose of the study is to analyze the above ca profissional. O objetivo do estudo é analisar o CEO
mentioned code comparing the deontological and comparando os enfoques deontológico e bioético. Para
bioethical focuses. In order to do so, an interpreta- tal, realizou-se a análise interpretativa do CEO e de
tive analysis of the code and of twelve selected texts doze textos selecionados, seis sobre bioética e seis so-
was made. Six of the texts were about bioethics and bre deontologia, por meio da classificação metodoló-
six on deontology, and the analysis was made through gica das unidades de contexto, parágrafos textuais e
the methodological classification of the context units, itens do código, nas seguintes categorias: os referen-
textual paragraphs and items from the code in the ciais do principialismo bioético – autonomia, bene-
following categories: the referentials of bioethical ficência, não-maleficência e justiça –, aspectos téc-
principlism – autonomy, beneficence, nonmalefi- nicos e virtudes morais relacionados à profissão. Os
cence and justice –, technical aspects and moral vir- quatro princípios somados representaram 22,9%,
tues related to the profession. Together the four prin- 39,8% e 54,2% do conteúdo do CEO, dos textos deon-
ciples represented 22.9%, 39.8% and 54.2% of the tológicos e dos bioéticos, respectivamente. No CEO,
content of the DCE, of the deontological texts and of 42% dos itens referiam-se às virtudes, 40,2%, a as-
the bioethical texts respectively. In the DCE, 42% of pectos técnicos e apenas 22,9%, aos princípios. As
the items referred to virtues, 40.2% were associated virtudes relacionadas aos profissionais e os aspectos
to technical aspects and just 22.9% referred to prin- técnicos juntos representam 70,1% do código. O CEO,
ciples. The virtues related to the professionals and em vez de centrar-se no paciente como sujeito do
the technical aspects together amounted to 70.1% of processo de atenção à saúde bucal, focaliza o profissio-
the code. Instead of focusing on the patient as the nal, sendo predominantemente voltado para aspec-
subject of the process of oral health care, the DCE tos legalistas e corporativistas.
focuses on the professional, and it is predominantly Palavras-chave Código de Ética Odontológica
1
Cátedra Unesco de turned to legalistic and corporate aspects. (CEO), Deontologia, Bioética principialista, Aspec-
Bioética, Universidade de Key words Dentistry code of ethics (DCE), Deon- tos técnicos,Virtudes morais
Brasília. Caixa Postal
tology, Bioethical principlism, Technical aspects,
04451. 70904-970.
Brasília, DF. Moral virtues
bioetica@unb.br
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Pyrrho M et al.
50%
40,5%
40%
29,9%
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30% 12345678
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20% 12345678
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12345
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12,1%
6,5% 12345678
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10%
5,4% 5,8 12345678
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3,6%
1,8%
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0%
Autonomia CD Autonomia P
Beneficência Justiça
1234 Não-maleficência 123 Técnica
1234
1234
1234 Virtude CD 123 Virtude P
A autonomia, como princípio, não é um con- pios, é muito cultuada nos Estados Unidos e rece-
ceito universal e dentro de um mesmo idioma pode be severas críticas por levar a uma abordagem
sofrer alteração de significado de acordo com o muito individualista e por vezes egoísta dos dile-
contexto. No entanto, duas condições essenciais são mas éticos21.
unânimes para os teóricos deste tema: a liberdade e A beneficência, por sua vez, é um princípio que
a capacidade de ação intencional. Assim, é autôno- se refere a uma ação destinada a causar benefício a
mo aquele que age livremente de acordo com suas outros7, sendo considerada como o fim das ações
próprias escolhas, tendo sua autonomia diminuí- de cuidados em saúde. Por vezes, é usada como
da quando é controlado por outros ou impedido justificativa para se desconsiderar a autonomia do
de agir segundo seus próprios desejos7. A autono- paciente, o que é chamado de paternalismo. Este
mia possui fundamental importância para o esta- deriva da passagem, frequentemente despercebida,
belecimento de critérios nas relações de poder, como do saber ao poder, anulando o paciente como ser
a relação profissional-paciente, por exemplo20. autônomo22. As relações em que um (o paciente) se
Ainda que pouco citada, a autonomia (9%) foi coloca sob o cuidado de outro (profissional de saú-
o princípio que mais esteve presente no CEO. A de) são muito mais suscetíveis a este tipo de condu-
autonomia do paciente (autonomia P) não rece- ta, pois os profissionais passam a crer que a entre-
beu a importância devida na elaboração do código ga do corpo do paciente aos seus cuidados lhes
(5,4%), não havendo nenhum capítulo ou artigo outorga autoridade na escolha do tratamento.
direcionado a esta categoria, ainda que seja mais O caráter paternalista consagrado na relação
presente do que a categoria autonomia CD (3,6%). profissional-paciente, embora inicialmente espera-
Este último fato não reflete uma maior valoriza- do, apesar de verificar-se com frequência na prática
ção da autonomia do paciente em detrimento da dos consultórios odontológicos, não emergiu da
autonomia do cirurgião-dentista. Reflete sim o leitura do código. Não houve uma preponderância
caráter prescritivo do código que possui nove itens numérica da beneficência (1,8%) sobre a autono-
sobre os direitos do profissional e os 215 restantes mia do paciente (5,4%) na análise do CEO. Estes
sobre seus deveres e normas de condutas a seguir. dados evidenciam a transferência do foco de aten-
A palavra autonomia não está presente no có- ção do paciente para um caráter prescritivo, que
digo, tampouco o significado que a teoria bioética tende à valorização do aspecto da proteção da cate-
lhe atribui. Na leitura dos itens que foram classifi- goria profissional odontológica em detrimento da
cados nesta categoria, é possível perceber que os proteção ao vulnerável desta relação, o paciente.
profissionais desta área possuem uma visão seg- A beneficência foi a categoria menos citada no
mentada deste conceito, como algo a ser conferido CEO (1,8%) e foi a segunda menos citada nos tex-
e não reconhecido. O caráter prescritivo do código tos deontológicos (8,6%) e nos textos bioéticos
não é usado na elaboração de um item que obri- (9,1%). Embora este princípio seja talvez o que
gue o profissional a informar o paciente sobre to- melhor elucide o papel do profissional de saúde
das as opções terapêuticas (e não apenas as que o diante de seu paciente23, esta categoria recebeu uma
cirurgião-dentista realiza) disponíveis, para o caso, baixa valorização. Este fato pode ter duas inter-
delegando ao paciente a livre escolha do tratamen- pretações: quando uma incipiente abordagem da
to ao qual será submetido. beneficência se alia ao pouco respeito à autono-
Apesar de ser o princípio mais referenciado no mia, conforme o ocorrido no CEO e nos textos
CEO e nos dois grupos de textos, a importância deontológicos, o sujeito da relação passa a ser o
dada à autonomia diverge muito nos textos estu- profissional; no entanto, quando a beneficência é
dados. O CEO e os textos deontológicos asseme- diminuída, mas a autonomia do paciente é respei-
lham-se muito quanto à presença desta categoria, tada, o que acontece na abordagem bioética, o pa-
com 9% e 11,8%, respectivamente. Já os textos bi- ciente torna-se o centro das decisões e pleno de
oéticos ressaltam bastante este princípio em seus seus direitos.
conteúdos, sendo que 26,1% dos parágrafos deste O princípio da não-maleficência relaciona-se
grupo de textos o contemplam. Estes dados refor- com a obrigação moral de não infligir dano intencio-
çam não somente uma maior valorização dos prin- nal a alguém. Está intimamente ligada à máxima
cípios bioéticos, mas também uma preocupação hipocrática primum non nocere e compreende obri-
em legitimar a importância da autonomia como gações como não causar, impedir e eliminar os da-
algo fundamental para a abordagem ética das mais nos, fundamentais nas relações estabelecidas no cam-
diversas questões. po da saúde7. Na análise do CEO, esta categoria
A supervalorização da autonomia, por outro emergiu do discurso, porém de forma muito tími-
lado, utilizada em detrimento dos demais princí- da. Esta pouca frequência pode estar relacionada ao
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