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Lembrar Huizinga:

1872-1945

João Antonio de Paula


Professor do Cedeplar
Universidade Federal de Minas Gerais

Para a minha saudosa amiga Resumo Abstract


e colega, Maria Regina Nabuco. Na passagem dos 60 anos da morte do gran- Sixty years after the death of Johan Huizinga,
de historiador holandês Johan Huizinga, este the great Dutch historian, this article discusses
artigo discute o sentido de sua obra e comen- the meaning of his work and comments on the
ta os equívocos que marcaram a recepção misconceptions that marked the response to his
destes trabalhos ao longo do último século. books in the past century.

Palavras-chave
Huizinga; historiografia.

Classificação JEL N01.

Key words
Huizinga, historiography.

JEL Classification N01.

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Em 1º de fevereiro de 1945, mor- insuspeito, porque norte-americano e li-


ria, na pequena cidade holandesa de beral, John Dewey. É dele a frase:
De Steeg, confinado pelo exército nazis-
Como se conta haver dito Huey Long, o
ta, o grande historiador holandês Johan fascismo chegará a esse país sob o nome de
Huizinga, nascido em 1872. Os sessen- proteção da democracia contra seus inimi-
ta anos de sua morte, como a sua morte gos (Dewey, 1970, p. 159).
mesma, não foram registrados com o
E talvez se deva dizer, alargando a tese de
cuidado devido. Em 19 de maio de 1946,
Huey Pierce Long (1893-1935), que hoje
Otto Maria Carpeaux dava notícia da
o governo norte-americano quer proteger
morte de Huizinga dizendo:
a democracia no mundo contra seus ini-
deram importância ao desaparecimento migos, exportando um fascismo high-tech
de outras personalidades cujo valor igno- tão brutal e vergonhoso como sempre.
ram, e deste modo o mundo mal tomou co- Em 1933, reitor da Universidade
nhecimento da morte do historiador Jan de Leiden, diz Carpeaux, Huizinga “quase
Huizinga, ocorrido em fevereiro de 1945
causara um conflito diplomático, expulsando es-
num campo de concentração da Holanda
tudantes nazistas do recinto da escola” (Car-
(Carpeaux, 1992, p. 96).
peaux, 1992, p. 97). Seu livro, de 1935,
Neste 2005, os sessenta anos da que em tradução francesa se chamou
morte de Huizinga não tiveram qualquer Incertitudes – Essai de diagnostic du mal dont
repercussão na imprensa brasileira, e, no souffre notre temps, é um ataque frontal ao
entanto, seja em 1945, seja hoje, a obra e nacional socialismo e a todos os totalita-
o exemplo de Huizinga são indispensá- rismos semelhantes, ataque ao amesqui-
veis. Naquele tempo, Huizinga denun- nhamento da cultura contemporânea, à
ciou, com rara coragem, a barbárie nazis- brutalidade, à opressão, ao racismo di-
ta; hoje, sua voz seria um antídoto contra zendo – “o racismo é sempre antiasiático, an-
a nova barbárie travestida de “globaliza- tiafricano, anti-semita, antiproletário” (Car-
ção globalitária”. peaux, 1992, p. 97).
Fala-se aqui de “globalização glo- Historiador da cultura, basicamen-
baritária”, como a definiu o nosso gran- te, Huizinga não se calou quando as som-
de Milton Santos, e lembre-se também o bras do nazismo ameaçaram as liberda-

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des, a cultura humana, como a afirmação materiais da cultura na compreensão da


da tolerância e da solidariedade. realidade, quanto no sentido da reiteração
Sua obra completa, em nove volu- de uma mesma pergunta básica que Gom-
mes, foi publicada entre 1948 e 1953, brich traduz como sendo a investigação
em holandês. Seus primeiros trabalhos sobre a tensão entre aparência e essência,
foram no campo da filologia e da litera- entre ilusão e realidade, que marcaria a
tura comparada. Especialista em árabe história da cultura em suas várias etapas:
e sânscrito, Huizinga, a partir de 1905,
el choque entre el mundo real, duro, y las
vai dedicar-se aos estudos históricos. Sua
atracciones de un mundo fantástico? El
perspectiva teórica, marcada pela obra de mismo Huizinga carterizó el embrujo que
Burckhardt, é um das mais felizes e belas la historia siguió ejerciendo en él menos
manifestações das chamadas “ciências do con interés intelectual que como “una espe-
espírito”. No caso de Huizinga, isso sig- cie de hantise, una obsesión, un sueño,
nificou pensar os problemas da cultura como que desde los dias de mi infancia”
como indissoluvelmente ligados aos pro- (Gombrich, 1991, p. 142-143).

blemas da política, de que resultará – co- Entre os trabalhos mais conheci-


mo disse Carpeaux: dos de Huizinga, listem-se:
não admitir a separação entre política e _ de 1918, seu livro Homem e massa
cultura, separação cuja conseqüência seria na América;
a degeneração da política em “realismo po- _ de 1919, o clássico O outono da Ida-
lítico” brutalíssimo e da cultura em débil de Média;
idealismo acadêmico (Carpeaux, 1992, p. 96). _ de 1924, a biografia de Erasmo de
Só uma única vez, Huizinga dedi- Roterdã;
cou-se à histórica econômica. Foi em sua _ de 1929, A tarefa da história cultural;
monografia sobre a A origem da cidade de _ de 1935, Nas sombras do amanhã;
Haarlem, publicada em 1905. Sua obra, ini- _ de 1938, o também famoso Homo
ciada com uma tese de graduação sobre o Ludens;
teatro indiano antigo em 1897, apesar de _ de 1945, Um mundo em ruínas: consi-
seus variados temas, tem, disse Gombrich derações sobre as possibilidades de re-
– “impresionante unidad...” (Gombrich, 1991, construir nossa civilização.
p. 142). Unidade tanto no sentido meto- Muito pouco disso foi traduzido para o por-
dológico, a mobilização do conjunto dos tuguês e publicado no Brasil (Colie, 1975).

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Seus livros mais conhecidos, O ou- bilidade e a história), de Lucien Febvre,


tono da Idade Média e Homo Ludens, foram incluído no livro Combates pela História,
editados em português. O silêncio que como no recente verbete do volume No-
recobre, não só aqui, o restante da obra va História, de Jacques Le Goff, Huizinga
de Huizinga é desses episódios de injusti- é tratado com uma reserva, é criticado
ficável amnésia, que também marcam a com um ânimo, que alguém mais pro-
vida cultural, por vezes. De fato, no refe- penso a identificar motivações subalter-
rente à recepção da obra de Huizinga, nas terá razão em chamar de despeitadas,
tem havido certo mal-entendido, que tal- ou invejosas. Veja-se o trecho:
vez decorra de sua natureza, rigorosa-
Voltemos, pois, a ler Huizinga numa
mente inclassificável. Em 1905, Huizin-
perspectiva atual, lembrando-nos de que,
ga apresentou o trabalho – “O elemento
no passado, ele rasgou o véu de uma histó-
estético na apresentação da história” –, ria orgulhosamente impossível e de que,
que reivindica uma tal miscibilidade en- para nós, embora possa ser um mestre do
tre o discurso artístico e o historiográfi- erro com os seus “talvez”, o seu estitismo e
co, que tem desconcertado gerações de diletantismo, ele nos abre igualmente as
historiadores, mesmo entre os melhores. portas que conduzem à história que está
Huizinga escreve uma prosa de tal ainda por fazer (Le Goff, 1990, p. 287).
forma brilhante, mobiliza uma tal gama A pesada acusação contra Huizin-
de fontes artísticas – literatura, artes plás- ga, de ser “o mestre do erro”, de ser
ticas, música, teatro – que o resultado fi- aquele que abusaria do “talvez”, de que
nal acaba por produzir, em certos leito- seria estetizante e diletante, isto é, em tu-
res, ciosos do rigor historiográfico, uma do criticável por uma historiografia, que
reação de resistência, de suspeição contra se quer rigorosa, porque não necessitada
o que se apresenta tão desabusadamente de usar o talvez. Há nessa pretensão de
“vago”, “literário”, “artístico”, belo, en- Le Goff um traço positivista, que é ocio-
fim. Foi essa a reação, por exemplo, de so sublinhar. Contudo, o que de fato me
significativos historiadores da École des parece criticável no juízo de Le Goff so-
Annales, de Lucien Febvre a Jacques Le bre Huizinga é que ele omite que a mais
Goff. Tanto no artigo “Como reconsti- decisiva caracterização da melhor histo-
tuir a vida afetiva de outrora?” (A sensi- riografia contemporânea, o que realmen-

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te definiria a especificidade do fazer his- suas modalidades” (Febvre, 1977, p. 182).


toriográfico, a necessária interdição do Trata-se aqui, com O outono da Idade Mé-
anacronismo, aquilo que Lucien Febvre cha- dia, não só do pioneirismo da pergunta,
mou de questão central da historiografia, mas do uso inovador das fontes, de uma
foi, com efeito, inaugurada, no essencial abertura para a interdisciplinaridade, pa-
de seu sentido, por Huizinga num texto ra a pluralidade que só faz reforçar a
de 1929, muito antes da publicação do grandeza da obra de Huizinga. Eis a ex-
Rabelais, de Lucien Febvre, que é de 1942. plicitação de Huizinga sobre a bela moti-
Huizinga vai dizer: vação de sua pesquisa:
La Historia se distingue de estas otras A presente obra trata da história dos sé-
formas do espiritu en que se proyeta sobre culos XIV e XV encarados como período
el pasado y solamente sobre el pasado. de termo, de fecho da Idade Média. Tal vi-
Pretende comprender el mundo en el pasa- são destes séculos apresentou-se ao autor
do y a través de él (Huizinga, 1980, p. 92).
deste volume quando procurava chegar a
As implicações da tese de Huizin- uma compreensão genuína da arte dos ir-
ga são claras. A história distingue-se das mãos Van Eyck e de seus contemporâ-
outras atividades do espírito – filosofia, neos, quer dizer, apreender o seu significa-
literatura, direito, ciências sociais – que do considerando-a uma relação como um
todo de vida da época (Huizinga, [s. d.], p. 7).
se projetam sobre o passado, por fazê-lo,
tomando como fonte apenas aquilo que Homem atento às linhas de força
esse mesmo passado produziu. Eis aí o de seu tempo, Huizinga detectou algumas
essencial do programa da historiografia das contradições contemporâneas fun-
contemporânea. damentais. É o que se vê em sua interpre-
De outro lado, foi o mesmo Hui- tação das relações entre ciência e tecno-
zinga, em 1919, com O outono da Idade Mé- logia. Vejam-se os trechos de Huizinga
dia, que inaugurou o que se chama hoje citados por Carpeaux:
história das mentalidades. Foi ele quem
A esperança de que qualquer invenção
iniciou, com o livro de 1919, a linha de promete o estabelecimento de valores mais
pesquisa que Lucien Febvre reclamava – altos ou de felicidade maior para todos é de
“Eu peço que se abra um vasto inquérito coletivo ingenuidade extrema... [...] não é parado-
sobre os sentimentos fundamentais dos homens e xo: uma civilização é capaz de acabar com

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seus próprios progressos [...] Hoje em dia, ele insistia em chamar de desenvolvimen-
o homem médio está diariamente e notur- to da cultura, implicava o equilíbrio entre
namente informado de todas as coisas e as dimensões materiais, morais e intelec-
mais algumas outras coisas [...]. tuais da vida social. Ainda para ele, esse
E, então, adenda Carpeaux: equilíbrio tinha sido rompido na socieda-
de contemporânea, o que fez com que o
Quase sempre pode dispensar e dispensa as progresso técnico não fosse incompatí-
experiências próprias e a meditação, e rece-
vel com a decadência intelectual e moral.
be, em latas, os conhecimentos, as opiniões e
Huizinga viveu uma época de gran-
as conclusões. Valores discutíveis são tidos
como absolutos porque não é preciso ne- des catástrofes: duas guerras mundiais, a
nhum esforço intelectual para aceitá-los. A barbárie nazi-fascista, a tragédia stalinis-
capacidade crítica desaparece [...]. ta. A epígrafe de seu livro de 1935, Nas
sombras do amanhã, é uma frase de São
A conclusão de Huizinga:
Bernardo – “Habet mundus iste noctes suas et
ciência é poder, este lema jubiloso da época non paucas” (“Este mundo tem as suas noi-
burguesa ressoa hoje como uma marcha fú- tes, e não são poucas”). Numa dessas noi-
nebre [...] e quem se oporia hoje a estas tes, em 1944, outro grande historiador,
palavras, escritas em 1935? (Huizinga apud Marc Bloch, foi assassinado pelos nazis-
Carpeaux, 1992; Carpeaux, 1992, p. 98 e 99) .
tas. Em 1942, Huizinga foi preso pela
E assim, quem, com mais razão mesma máquina assassina e confinado,
ainda, poderá se opor a essas palavras até que, debilitado, morreu em 1945, an-
hoje, em 2005? tes que seu país fosse libertado. Mas to-
Não se trata aqui, como também dos sabem que, ainda longas, frias e tris-
não era o caso no tempo de Huizinga, de tes, as noites se vão. O que alguns sabem,
se fazer condenação espúria e inaceitável e Huizinga foi um deles, é que as noites
do desenvolvimento da ciência e da tec- não se vão por decreto natural, é que es-
nologia como se incompatíveis fossem sas noites, essas noites de chumbo, só se
com a plena emancipação humana, isto é, vão movidas pela irrupção do brilho que
a que implica bem-estar material, liberda- vem dos que sabem, como Marc Bloch,
de e solidariedade. Para Huizinga, o ple- “que nós somos os vencidos provisórios
no desenvolvimento da civilização, que de um destino injusto”.

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P. S. do por Bergson, fará do tempo e da me-


Em tempo, lembre-se e homenageie-se mória categorias importantes da reflexão
outro esquecido autor, Maurice Halb- sociológica. Demógrafo, estatístico, mate-
wachs, também morto em 1945, em mar- mático, economista, filósofo, sociólogo,
ço, executado pelos nazistas no campo de Maurice Halbwachs é desses autores que
Buchenwald. Nascido em 1877, em Reims, mostram a riqueza e as possibilidades
Maurice Halbwachs foi um desses raros heurísticas de uma perspectiva teórica
pensadores contemporâneos que cultiva- aberta e pluralista. Estudioso de Leibniz e
ram com talento e acuidade tanto as ciên- de Quetelet, de Bergson e de Durkheim,
cias do espírito quanto as ciências naturais. das condições de vida da classe operária e
É como sociólogo que ele ficará mais co- da memória coletiva, Halbwachs é um
nhecido, como discípulo de Durkheim, praticante exemplar da tão reclamada hoje
de quem ele vai retomar e ampliar a pes- interdisciplinaridade. Retornar sua obra,
quisa sobre o suicídio, publicando, em lembrar sua trajetória intelectual e moral
1930, Les causes du suicide. Mas Halbwachs ajudam a abreviar estes tempos obscuros,
trabalhou em outros campos. Influencia- estas noites que insistem em acontecer.

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Referências bibliográficas

CARPEAUX, Otto Maria. E-mail de contato do autor:

O testamento de Huizinga. jpaula@cedeplar.ufmg.br

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