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Fronteiras contemporâneas

comparadas
Relações internacionais e segurança regional
no Brasil e na União Europeia

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organização

Maria Raquel Freire


Danielle Jacon Ayres Pinto
Daniel Chaves

Fronteiras contemporâneas
comparadas
Relações internacionais e segurança regional
no Brasil e na União Europeia

Macapá/AP, 2016

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Copyright © 2016, Autores

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Fronteiras contemporâneas comparadas: relações internacionais e segurança regional no Brasil e na União Europeia
FREIRE, Maria Raquel (org.) e PINTO, Danielle Jacon Ayres (org.) | CHAVES, Daniel (org.)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F935f Fronteiras contemporâneas comparadas : relações internacionais e segurança


regional no Brasil e na União Europeia / Maria Raquel Freire, Danielle Jacon Ayres
Pinto, Daniel Chaves (orgs.) – Macapá : UNIFAP, 2016.
294 p.

ISBN: 978-85-62359-52-1

1. Relações Internacionais. 2. Segurança Regional. 3. Fronteiras. I. Maria


Raquel Freire. II. Danielle Jacon Ayres Pinto. III. Daniel Chaves. IV. Fundação
Universidade Federal do Amapá. V. Título.

CDD: 320
CDU: 327

Capa e editoração eletrônica: Guilherme Peres

Editora da Universidade Federal do Amapá


Site: www2.unifap.br/editora | E-mail: editora@unifap.br
Endereço: Rodovia Juscelino Kubitschek, Km 2, s/n, Universidade, Campus Marco Zero do
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Sumário

Apresentação: a comparação entre diferentes fronteiras e


dos limites no tempo e no mundo transatlânticos  7
— Maria Raquel Freire, Danielle Jacon Ayres Pinto e Daniel Chaves

Europa: As Fronteiras que (nunca) desapareceram  14


— Nelson Mateus

Aquém e além-fronteiras: refugiados na Europa e a


necessidade de humanização das fronteiras  42
— Carla de Marcelino Gomes

Fronteiras reais e simbólicas: a segurança europeia no


quadro das relações da Rússia com o ocidente  58
— Maria Raquel Freire

A fronteira na Europa entre idealismo e


realismo: para onde caminha a UE?  76
— Teresa Cierco Gomes

A governação das fronteiras da União Europeia:


tecnologia, externalização e accountability  102
— Helena Carrapiço

As Fronteiras de Segurança do Brasil:Do Prata à Amazônia Azul  134


— Cristina Soreanu Pecequilo

As dinâmicas da fronteira Austral do Prata e suas


repercussões para o Brasil no século XXI  159
— Danielle Jacon Ayres Pinto e Sabrina Evangelista Medeiros

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Forças armadas e sua importância para a região austral do Prata  178
— Graciela De Conti Pagliari

A importância das organizações internacionais latinoamericanas


– MERCOSUL e UNASUL – para a região da Bacia do Prata  200
— Elany Almeida de Souza e Ricardo Seitenfus

O Platô das Guianas no Contexto da Segurança e


Integração Regional Sul Americana.  214
— Paulo Gustavo Pellegrino Correa e Eliane Superti

Sobre Defesa e Desenvolvimento nas Fronteiras da Amazônia


Setentrional Brasileira – questões e problemas  241
— Tiago Luedy

A questão pesqueira em uma fronteira


amazônica: o caso de Oiapoque  255
— Gutemberg de Vilhena Silva e Camilo Pereira Carneiro Filho

Fronteiras, escalas e tópicos sobre o Desenvolvimento Regional


como agenda pós-colonial no linde amazônico-caribenho  274
— Daniel Chaves

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

Apresentação: a comparação entre


diferentes fronteiras e dos limites no
tempo e no mundo transatlânticos

É com muito prazer que apresentamos o livro intitulado “Fronteiras


contemporâneas comparadas: relações internacionais e segurança re-
gional no Brasil e na União Europeia” à comunidade acadêmica e socieda-
de em geral. Esta obra é o primeiro volume de uma coletânea pensada em
três edições, e que visa debater os temas emergentes na política internacio-
nal contemporânea com foco nas questões hodiernas da Fronteira. Assim,
este primeiro volume tem por intuito promover a reflexão sobre as dinâ-
micas contemporâneas das fronteiras em três cenários específicos: a Euro-
pa Continental, e as regiões Austral e Setentrional do Brasil.
Cabe destacar, deste ponto em diante, que os nossos entendimen-
tos, conceitos e abordagens sobre a Fronteira como objeto ou como te-
mática – dorsal ou transversal – constituem uma heterogênea e diversa
amálgama que viabilizaram este projeto. Partindo da premissa de que a
comparação é, ontologicamente, um processo que busca semelhanças e
diferenças por meio do (ou para o) objetivo fundamental da desprovin-
cialização do fenômeno o qual intelectualmente se analisa, sintetiza ou
critica, nosso olhar sobre esta triangulação possível visa acercar as ime-
diatas distinções para uma compreensão dedutiva e reconhecedora das
interfaces, focada na matização de um assunto que tem sido pauta cons-
tante na comunidade internacional. Por outro lado, não podemos des-
cartar, sem sombra de dúvidas, o potencial indutivo de tais debates do
ponto de vista regional – região, por sinal, é outro conceito estruturan-
te deste projeto, e tão polissêmico quanto, com variações interpretativas
que na sua diversidade.

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Este livro surgiu de uma proposta de aprimoramento das relações e do


debate na área de relações internacionais entre três instituições, são elas: a
Universidade de Coimbra - UC/Portugal, a Universidade Federal de Santa
Maria – UFSM/Brasil e a Universidade Federal do Amapá – UNIFAP/Bra-
sil. Neste sentido, as contribuições existentes neste primeiro volume (e nos
demais) visam abarcar autores que pertençam e/ou estudem as regiões em
questão, prezando por certo nível e grau de imersão. Estes e estas autores e
autoras podem, com sorte e competência, vislumbrar uma experiência de
pesquisa e de observação direta contributiva para o entendimento dos de-
safios e das perspectivas que tais espaços oferecem nos dias atuais. Outros-
sim, o quadro heterogêneo de formações na área das humanidades tam-
bém proporciona um espectro rico de interpretações que transcendem o
campo das Relações Internacionais per se, avançando na direção da hete-
rogeneidade por meio da interdisciplinaridade e seus encontros fortuitos.
Pensar as fronteiras no século XXI é, de certa feita, redefinir compreen-
sões clássicas que colocavam tais elementos como exclusivamente espaços
limítrofes dos agentes estatais. As dinâmicas globalizantes provindas da se-
gunda metade do século XX, e que se aprofundaram no século XXI, trou-
xeram novas formas de relacionamentos, novos atores, novos interesses e,
consequentemente, novos dilemas na ocupação, articulação e utilização do
espaço. Desta forma, os desafios e as perspectivas tiveram uma ampliação
significativa quando pensamos nas fronteiras e na sua importância atual.
Nas três áreas que abarcam esta publicação as fronteiras podem ser pen-
sadas em vários prismas. Suas realidades hoje são influenciadas por temas
econômicos, políticos, étnicos, de segurança, ambientais, entre outros e as
respostas dos Estados dadas a essas questões determinam como a política
internacional se encaminha atualmente.
Mas o que seriam as fronteiras hoje para além de um espaço limítrofe?
No passado essa acepção limítrofe das fronteiras determinava não só seu
espaço territorial, mas uma ideia de pertença a uma determinada socie-
dade, uma determinada cultura, ou seja, a uma determinada nação. Com
o advento da globalização e de suas consequências pretensamente unifi-

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cantes da sociedade, esta percepção de exclusividade vai se perder numa


ideia de unificação dos povos através de um processo econômico, renden-
do a todos e todas possibilidades iguais de desenvolvimento e consumo,
fazendo então que os espaços fossem encurtados e que não mais houves-
se qualquer tipo de limite para a satisfação tanto do Estado, como do pró-
prio indivíduo.
As fronteiras para além de não mais existirem, hipoteticamente, se-
riam substituídas por uma dinâmica econômica que tornaria o espaço
uma grande unidade. Era o fim da história, como afirmou Francis Fuku-
yama, e o surgimento de uma nova maneira de coexistir no sistema, ou
seja, a maneira de organização capitalista da sociedade que levaria todos
a um processo de ascensão e prosperidade. As fronteiras nessa nova reali-
dade passariam então a ser meras referências de um limite que não mais
importava, o limite do Estado e de suas posses soberanas. Mais importan-
te que a soberania do Estado, seria a sua capacidade econômica de inte-
ragir no sistema como um ator global e influente. Assim, as fronteiras na
sua conceituação tradicional, seriam um obstáculo a esta vontade expan-
sionista do capital.
Todavia, a interação da globalização na década 90 do século XX deixou
claro que a permeabilidade das fronteiras, tão deseja pela dinâmica econô-
mica, era na verdade uma falácia com sérias capacidades de promover ca-
tástrofes de grandes dimensões. Não menos importante, os últimos acon-
tecimentos no transcorrer da primeira metade para a segunda metade da
atual década, nos dois lados do Atlântico e não menos importante, em todo
o globo terreste, apontam para um recrudescimento do debate fronteiriço,
entre atores, unidades estatais e especialistas. As fronteiras são um proble-
ma, definitivamente, no amanhecer do Século XXI.
Numa dinâmica econômica os blocos regionais surgiram na tentativa
de unificar espaços, mas os entraves comerciais entre os diferentes atores fi-
zeram que sua proposta inicial fosse limitada e falha. Na percepção política
o sentido de unidade também não se materializou, as diferenças nos níveis
de desenvolvimento e de concepção da organização política continuaram

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a existir entre os Estados, assim, mais do que integrados, os Estados menos


favorecidos – tradicionais atores subdesenvolvidos e em desenvolvimento
– continuaram a sentir-se negligenciados dentro do sistema. Numa dinâ-
mica cultural/civilizacional a tentativa de criar uma ideia de unidade ba-
seada no indivíduo negligenciou particularidades formadoras dos povos,
como diria Boaventura de Sousa Santos, os topois culturais de cada socie-
dade não foram respeitados e a ocidentalização da cultura foi tida como a
verdadeira cultura a ser globalizada. Um espectro incerto de multicultura-
lismo, estruturalmente corrompido e sistemicamente incerto, apresenta vi-
síveis debilidades e dificuldades no seu pleno exercício, se não ignorarmos
a sua exequbilidade diante de uma globalização que liberaliza facultativa-
mente, de forma incauta, e autoriza o uso da força conforme a conveniên-
cia do contexto.
Todas essas dinâmicas trouxeram problemas sérios para as fronteiras
do Estado. Tais espaços caíram num certo limbo conceitual onde sua exis-
tência limitadora era questionada metaforicamente, mas ainda continua-
va pujante fisicamente, causando uma separação clara entre “nós” e “eles” –
e quando não o reforço dos sentimentos e sensibilidades de exclusão -, que
podem ser entendidos, respectivamente, como aqueles contemplados pe-
las benesses da globalização e aqueles que estão fora desta dinâmica. Nes-
te sentido, as fronteiras passaram a ser espaços de conflito e diferenciação.
Suas limitações físicas hoje determinam um suposto mundo a ser alcança-
do e um outro espaço onde a violência e a barbárie reinam. Esta dinâmi-
ca, todavia, acontece ao mesmo tempo que as novas tecnologias fazem com
que os indivíduos, principalmente os mais jovens, já não compreendam
mais os individualismos soberanos de outrora e entendam sua participação
neste espaço como ilimitada (o que na verdade o são, pensando na sua ca-
pacidade de ação além fronteira como membro de uma opinião pública in-
ternacional, mas mesmo esta é uma participação limitada).
Assim, diante destas realidades, pensar as fronteiras e suas dinâmicas
é uma necessidade premente. Esse espaço é detentor de recursos naturais
conjuntos, de dinâmicas econômicas próprias e de um limite cultural que

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define sociedades como tais, os problemas que aflige este espaço, são pro-
blemas que vão diretamente influenciar a dinâmica do sistema internacio-
nal e a concepção soberana dos Estados.
Desta forma, Europa, Brasil Austral e Brasil Setentrional possuem dinâ-
micas fronteiriças que devem ser estudadas e compreendidas para a cons-
trução de um mundo mais pacífico, seguro e igualitário. A Europa, que
atualmente, se vê às voltas com ameaças tradicionais como a anexação da
Criméia pela Rússia, ataques terroristas, ou mesmo, pelo enorme fluxo de
refugiados que chega ao continente diariamente precisa rever suas ações ex-
ternas, suas dependências e suas ideias de ação internacional para construir
novas dinâmicas fronteiriças que estejam de acordo com o projeto de uma
Europa integradora e pacífica. O Brasil, por sua vez, com dimensões conti-
nentais tem desafios sérios tanto nas suas fronteiras na região Norte (seten-
trional), como na sua região Sul (Austral). As constantes ameaças do cres-
cente tráfico de drogas nas fronteiras, do fluxo de imigrantes provindos das
regiões do Caribe e da América do Sul, das explorações de recursos natu-
rais tanto na Amazônia e nos bolsões de petróleo encontrados na camada
pré-sal do Atlântico Sul, como também as dinâmicas de segurança princi-
palmente na sua vertente marítima, são questões atuais que devem ser tra-
balhadas para entender o novo papel que o Brasil ocupa no mundo em
pleno século XXI - e como suas fronteiras são espaços essenciais para tal en-
tendimento.
Neste sentido, este livro se organiza em três partes:

1. Uma primeira voltada para a dinâmicas das fronteiras na Europa e


que irá debater temas como: refugiados, Rússia, direitos humanos,
projeto de integração, tecnologias e processos de accountability, en-
tre outros. Esta parte contará com contribuição do Doutor Nelson
Mateus, doutorado pela Universidade de Coimbra e jornalista pro-
fissional, da Professora Maria Raquel Freire e da Doutoranda Carla
Marcelino Gomes, da Universidade de Coimbra, da Professora Te-

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resa Cierco Gomes da Universidade do Porto, e da Professora Hele-


na Carrapiço da Universidade de Aston no Reino Unido;

2. A segunda parte versará sobre a região Austral do Brasil. Esta se-


ção debaterá temas como: segurança, Amazônia Azul, Bacia do Pra-
ta, forças armadas, integração regional, Mercosul e Unasul. Nesta
parte as contribuições serão da Professora Cristina Soreanu Pece-
quilo da Universidade Federal de São Paulo/UNIFESP, da Profes-
sora Danielle Jacon Ayres Pinto da Universidade Federal de Santa
Maria/UFSM, da Professora Sabrina Evangelista Medeiros da Esco-
la de Guerra Naval da Marinha do Brasil/EGN, da Professora Gra-
ciela de Conti Pagliari da Universidade Federal de Santa Catarina/
UFSC, do Professor Ricardo Seintenfus da ONU e da Universida-
de Federal de Santa Maria/UFSM e, da pesquisadora Elany Almei-
da de Sousa da Universidade Federal de Santa Maria/UFSM.

3. A terceira parte se debruçará sobre o Brasil Setentrional. Os temas


trabalhados nesta parte serão: segurança Amazônica, integração, re-
cursos naturais, alianças de países periféricos, entre outros. As con-
tribuições desta parte serão feitas pela Professora Eliane Superti,
pelo Professor Paulo Gustavo Correa, pelo Professor Gutemberg
Silva, pelo Professor Tiago Luedy e pelo Professor Daniel Chaves,
todos estes da Universidade Federal do Amapá/UNIFAP, e também
do Professor Camilo Carneiro Filho, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul/UFRGS.

Parece-nos profundamente relevante, neste sentido de compreensão


heurística do debate atualizado sobre Relações Internacionais e áreas cor-
relatas, o adensamento do debate lusófono acerca de tal campo de discus-
sões, ainda com francas potencialidades exploradas de forma periférica. É
potente, no espectro da multipolaridade e multilateralidade de interesses e
visões das relações entre nações e povos, mercados e comunidades, a pers-

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pectiva de uma interação cultural – no sentido mais amplo e polissêmico


do conceito, voltado para costumes, comportamentos e cosmovisões – ba-
seada no idioma e propulsora de uma compreensão na qual este pivô nos
ajuda a compreender o mundo moldado pelo compartilhamento de um
mesmo código de linguagens e entendimentos. Este lócus (ainda) propria-
mente atlântico, mas também globalizado e multicultural, com diferentes
semânticas e escalas, pode ser proveitoso em uma incrível resiliência da lu-
sofonia como uma amálgama expressiva e resiliente que sobrevive ao mun-
do pós-globalizado.
Por fim, esperamos que esta obra contribua para o debate contemporâ-
neo sobre as fronteira e suas dinâmicas no limiar do século XXI, trazendo
para o campo das relações internacionais problematizações que também
são abordadas por áreas complementares como a história, a geografia, a so-
ciologia, a ciência política e o direito. Agradecemos o apoio da editora da
Universidade Federal do Amapá nesta publicação e todos os envolvidos na
produção de tão ricos textos. Desejamos uma boa leitura a todos.

Maria Raquel Freire,


Danielle Jacon Ayres Pinto
& Daniel Chaves

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

Europa: As Fronteiras que


(nunca) desapareceram
Nelson Mateus

Introdução

N a segunda metade da segunda década do século XXI ainda se fala de


fronteiras? E fazem-no para debater questões atuais e não apenas para
recordar uma realidade antiga já perdida nas memórias da história? Seriam
perguntas legítimas para alguém que há 25 anos tivesse entrado numa má-
quina do tempo e viajado até aos nossos dias. O ritmo das mudanças que
marcaram a transição entre as duas últimas décadas do século passado le-
vou, de facto, a que as fronteiras tenham sido olhadas por tantos como uma
categoria do passado, sem espaço no novo tempo que começava a nascer. A
passagem dos anos, porém, revelou uma realidade diferente. Recordando a
famosa frase de Mark Twain, poderia dizer-se que foram manifestamente
exageradas as notícias sobre o fim das fronteiras.
Afinal, as fronteiras simplesmente mudaram, mas, até mais do que isso,
o que verdadeiramente mudou foi o que é exigido às fronteiras. Uma nova
realidade perante a qual as fronteiras não deixaram de revelar a sua capaci-
dade para responder aos desafios que lhe são colocados. Temos, pois, uma
fronteira que revela a sua adaptabilidade às circunstâncias com que se con-
fronta, funcionando ao mesmo tempo como ponto de passagem e elemen-
to de bloqueio. Esta fronteira é, no entanto, também exigente, já que o de-
vido aproveitamento das suas capacidades exige que seja gerida de forma
adequada.
Para refletir sobre estas dimensões da fronteira, a análise vai-se centrar
no espaço Schengen e, em particular, na evolução das fronteiras internas e
externas nesta área de livre circulação. Para tal, o enfoque irá ser colocado

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na dinâmica gerada pelos fluxos migratórios dos últimos anos, na gestão


das fronteiras durante essas situações e nas consequências que daí resulta-
ram. Tendo em conta a frequente ocorrência de crises migratórias no Me-
diterrâneo, iremos aqui centrar-nos apenas nas ocorridas nos anos de 2011 e
2015, por se tratarem de dois momentos particularmente marcantes.

Fronteira: muito numa palavra


Como se percebe facilmente ao folhear estas páginas, são múltiplas as for-
mas de olhar para a fronteira. Uma dessas formas, talvez a mais simples, é
olhar simplesmente para a palavra fronteira. Uma palavra que na língua
portuguesa tem uma particularidade importante. De facto, em português,
a palavra fronteira acumula um conjunto de significados que noutras lín-
guas está disperso por vários termos que não são apenas formas diferentes
de falar da mesma realidade (Anderson e O’Dowd, 1999: 603) mas têm sig-
nificados distintos. No caso da língua inglesa, por exemplo, palavras dife-
rentes representam dimensões diversas da fronteira, como acontece com os
termos frontier e boundary. Como já explicava Ladis Kristof (1959: 269-273)
há mais de meio século, as duas palavras referem-se a aspetos bem distintos,
sendo que frontier está associada “ao que sugere etimologicamente, ou seja,
aquilo que está ‘em frente’” (Kristof, 1959: 269), enquanto boundary “indica
determinados limites bem estabelecidos (the bounds) de uma certa unidade
política” (Kristof, 1959: 270).
Tal diversidade vocabular não existe na língua portuguesa, estando con-
centrados na palavra fronteira ambos os sentidos, tanto o de frontier como
o de boundary. Muito mais do que se tratar de um aspeto linguístico curio-
so ou de ser uma questão de semântica, o facto da palavra fronteira concen-
trar significados distintos representa um excelente ponto de partida para
a reflexão sobre o que é a fronteira, ou melhor dizendo, sobre os vários as-
petos do que é a fronteira, em particular sobre a dualidade que está per-
manentemente presente na fronteira. A fronteira, enquanto frontier “está
orientada para fora”, explica ainda Ladis Kristof (1959: 271), enquanto boun-
dary “pelo contrário, está orientada para dentro” (Kristof, 1959: 272).

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A constatação desta dualidade da fronteira emerge sob variadas for-


mas na análise sobre o fenómeno. A fronteira vai, pois, sendo caracterizada
como aberta ou fechada, ou até como estando num “movimento contínuo
de ‘aberta’ para ‘fechada’” (Newman, 2001: 142), sendo, como tal, fronteira
de “contacto” ou fronteira de “separação” (Newman, 2001: 142). Outras me-
táforas utilizadas são as que apresentam a fronteira como um filtro “com
graus de permeabilidade ou porosidade altamente variáveis” (Anderson
e O’Dowd, 1999: 596), ou como “fator integrador” ou “fator de separação”
(Kristof, 1959: 272), ou ainda, por um lado, como “campos de batalha” na
era da globalização, ou por outro, como “meios de resolução de conflitos e
em parte como novas fronteiras de adaptação de Estados, sociedades, e co-
munidades à globalização sem as quais esta não conseguiria avançar” (Al-
bert e Brock, 2001: 48).
Em muitas dimensões apenas citadas, seria fácil recorrer à polissemia
da língua inglesa para marcar uma distinção e estabelecer que nestas dua-
lidades se confrontam os conceitos de frontier e de boundary. Tal opção, no
entanto, seria potencialmente enganadora, já que nos poderia levar a pen-
sar que com palavras diferentes nos estamos a referir a realidades distintas,
quando, de facto, não é isso que acontece e, neste ponto, muito nos ajuda a
língua portuguesa. Usamos sempre a palavra fronteira, e ao fazê-lo torna-se
claro, até do ponto vista linguístico, que falamos sempre da mesma coisa,
independentemente dos diferentes papéis que a fronteira tem a capacidade
de desempenhar: aberta ou fechada, mais ou menos porosa, fator integra-
dor ou de separação, a fronteira é sempre a fronteira.

Mudar não é desaparecer


Ainda que esta dualidade seja um elemento crucial na caracterização da
fronteira, a tendência, ao longo do tempo, foi enfatizar apenas uma das suas
facetas. Como sublinha David Newman (2006: 150): “A função tradicional
das fronteiras tem sido criar barreiras ao movimento, em vez de pontes que
permitam o contacto. As fronteiras são normalmente vistas como mecanis-
mos institucionais usados para proteger o interior, excluindo tudo o que te-

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nha origem no exterior”. Associada a esta perspetiva está a ligação da fron-


teira ao território, como defende Rob Shields (2006: 225), “uma fronteira
constitui o espaço como território (…). Sem fronteiras, não há território”.
Apesar desta ligação ontológica, durante muito tempo os limites de reinos
e impérios, como o Romano ou o Bizantino, eram definidos por “fronteiras
relativamente fluídas e mal definidas” (Diener e Hagen, 2010: 5). O ponto
de viragem surge com o Tratado de Vestefália, com a ligação entre fronteira
e território a assumir-se como um elemento central na definição do que é
o Estado moderno tal como o conhecemos: “A fusão da autoridade política
soberana com espaço físico definido por fronteiras exatas é o princípio or-
ganizador fundamental do mundo moderno” (Caporaso, 2000: 21).
As fronteiras tornam-se um fator fundamental na afirmação do Esta-
do-Nação, uma vez que lhes cabe definir os limites territoriais e, desta for-
ma, o alcance do exercício de poder de cada Estado, ao mesmo tempo que
“servem para proteger fisicamente das ameaças exteriores, para potenciar
um leque de objetivos económicos, e para preservar a autonomia cultu-
ral” (Caporaso, 2000: 21). Em território europeu, esta conceção da frontei-
ra acabou por ter a sua expressão simbolicamente mais marcante já duran-
te a segunda metade do século XX. O Muro de Berlim, que durante quase
três décadas dividiu uma capital europeia, tornou-se o símbolo por excelên-
cia de uma fronteira que marca de forma inequívoca e intransponível o li-
mite do território de um Estado. Mais do que apenas um Estado, dividiu
um continente e tornou-se a marca de separação de dois modelos políti-
cos de sociedade. Além destes significados concretos, instalou-se igualmen-
te no imaginário coletivo como imagem representativa do que era uma
fronteira. Desta forma, ninguém se pode surpreender com o impacto que a
queda do Muro de Berlim teve no pensamento sobre a fronteira. Num pe-
ríodo em que também o fenómeno da globalização estava em fase de afir-
mação, ganhou força a ideia que tinha chegado o tempo do fim das frontei-
ras (Ohmae, s.d.).
Tal ideia – a do fim das fronteiras – foi, no entanto, sendo desconstruí-
da a partir de novos olhares sobre as fronteiras. Olhares que reconhecem

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as fronteiras como “construções sociais, políticas e discursivas, não ape-


nas como categorias naturalizadas estáticas localizadas entre Estados” (Ne-
wman e Paasi, 1998: 187). Além disso, constata-se igualmente que

A tese do “desaparecimento das fronteiras” é sobretudo um discurso da


Europa Ocidental e da América do Norte refletindo o facto de muitas
(ainda que de modo algum todas) fronteiras dessas regiões se tenham
tornado crescentemente permeáveis como resultado de mudanças tec-
nológicas e políticas que aconteceram nessas regiões nas últimas três dé-
cadas. (Newman, 2001: 143)

A nova realidade veio exigir um novo olhar sobre as fronteiras. Isto, pre-
cisamente, porque a ideia de que as fronteiras estavam a desaparecer resul-
ta do facto de estas continuarem a ser olhadas como eram anteriormente,
e que se constata ser uma abordagem claramente desadequada para cap-
tar o que efetivamente estava a acontecer. De facto, as fronteiras não es-
tavam a desaparecer, estavam antes a revelar a sua importância e vitalida-
de, demonstrando a sua capacidade de adaptação aos novos desafios a que
iam sendo submetidas, em particular pela aceleração dos ritmos de circu-
lação de pessoas, bens e serviços. A intensificação dos fluxos de capitais e
das trocas comerciais à escala global, os progressos nas novas tecnologias da
informação e as exigências de rápido avanço do processo de globalização,
estimulam, e por vezes até forçam, uma maior abertura das fronteiras (Ko-
lossov, 2005: 628). “A internacionalização da economia mundial… levou a
uma inevitável mudança das funções das fronteiras. A alteração mais óbvia
foi a mudança de fronteiras altamente protegidas e militarizadas para fron-
teiras mais porosas, permitindo a interação transfronteiriça social e econó-
mica” (apud Andreas, 1998: 591).
O que se constata é que as fronteiras não só não acabaram, como adqui-
riram uma nova vitalidade, já que são elas que estabelecem as pontes de li-
gação entre os vários atores no estabelecimento de uma rede a nível global.
Quando se pensa que as fronteiras desaparecem para permitir o livre flu-

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xo de bens ou capitais, o que acontece é que elas estão presentes, mas ago-
ra cumprindo, não a sua função de barreira, mas a sua função de ponto de
contacto.

Apesar das fronteiras desacelerarem as transações, de uma forma geral


não as param. Pelo contrário, a criação de um sistema moderno de Es-
tados territoriais avançou a par e passo com uma crescente divisão in-
ternacional do trabalho resultando na formação de um mercado mun-
dial. Hoje, existem algumas indicações de que a função das fronteiras
enquanto barreiras está a perder importância em comparação com a sua
função como pontes. (Albert e Brock, 2001: 36)

Esta crescente porosidade das fronteiras, ou até mesmo abertura, não de-
sestrutura os territórios, uma vez que as fronteiras continuam a assumir o
papel de delimitadoras do espaço, bem como de elementos de separação de
diferentes realidades culturais, de diferentes identidades. As fronteiras es-
tão, de facto, mais abertas, mas nem por isso perdem as suas características
constitutivas que lhes reservam um papel singular enquanto fator de esta-
bilização no sistema internacional (Rudolph, 2005: 14). Neste processo de
transformação, mudam também as formas de regulação das fronteiras que
deixam de ser um domínio exclusivo de cada Estado passando a obedecer
igualmente a normas internacionais (Jacobson, 2001: 164).
No fundo, o que se constata é que as fronteiras mudaram e muito, é cer-
to, mas continuam aí, sempre bem presentes, desempenhando novas fun-
ções e com renovada importância. Afinal, como constata David Newman
(2006: 172): “Acordámos para o nosso mundo sem fronteiras, apenas para
descobrir que cada um de nós, individualmente, ou em grupos, ou Estados,
com os quais temos afiliação, vivemos num mundo de fronteiras que confe-
re ordem às nossas vidas”. Um mundo a que as fronteiras continuam a ten-
tar dar resposta. As mudanças geradas pelo processo de globalização colo-
cam as fronteiras perante desafios constantes de adaptação que constituem
um contínuo teste à sua capacidade de reação. É neste ponto que se reve-

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la de forma clara a importância da dualidade que caracteriza a fronteira. É


a sua capacidade de, ao mesmo tempo, funcionar como elemento de liga-
ção e como elemento de bloqueio – ou se preferirmos, como ponte e como
muro – que a tornam no instrumento tão precioso que é, na gestão dos
múltiplos fluxos com que permanentemente se confronta.
A aceleração do processo de globalização que se verificou nas últimas
décadas criou uma dinâmica global de abertura e comunicação que se as-
sume como base de um paradigma de desenvolvimento à escala global que
não é compatível com bloqueios fronteiriços, ou restrições à circulação. O
que também se constata é que a globalização teve o poder de abrir canais
de circulação à escala mundial, mas exigindo uma tal ausência de atrito
que perdeu a capacidade de controlar o acesso a tais canais, permitindo um
aumento da intensidade e do alcance do risco à escala global (Mabee, 2007:
392). Assiste-se ao que se poderá designar como uma globalização das opor-
tunidades, em paralelo com uma globalização das ameaças. O desafio que
se coloca é o de potenciar a primeira, ao mesmo tempo que se procura cer-
cear a segunda, e, neste esforço, as atenções voltam a centrar-se no papel
que deve ser desempenhado pelas fronteiras.

As questões importantes giram em torno dos diferentes efeitos de ‘bar-


reira’ ou ‘filtro’ das fronteiras, e do que pode e não pode, deve e não deve,
atravessar as fronteiras, em que direção e sob que condições. As frontei-
ras são centrais, não só para desencontros e contradições entre diferentes
Estados, mas também para o contraditório sistema mundial enquanto
todo, onde bens, capitais e informação podem agora atravessar as fron-
teiras com relativa liberdade enquanto as pessoas não podem. (Ander-
son, 2002: 231)

Ultrapassada a ideia de que as fronteiras estariam a desaparecer, a ques-


tão torna-se perceber como é que funcionam, como são geridas e que cri-
térios levam a decidir o que pode, ou não, cruzar as fronteiras uma vez que
sendo um facto que “a essência da fronteira é separar o ‘eu’ do ‘outro’”, é

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igualmente verdade que “as fronteiras também lá estão para serem cruza-
das” (Newman, 2003: 14). O que se constata é que no domínio da gestão da
fronteira há uma tendência que se tem vindo a manter ao longo do tempo.
De facto, “existe um consenso crescente na comunidade dos Estados quan-
to a levantar os controlos fronteiriços para os fluxos de capitais, informa-
ção, e serviços e, de um modo geral, para mais globalização. Mas no que diz
respeito a imigrantes e refugiados, seja na América do Norte, Europa Oci-
dental, ou Japão, o Estado nacional reclama todo o seu antigo esplendor
afirmando o seu direito de controlar as suas fronteiras. (Sassen, s.d.)

Desafio às fronteiras europeias


A Europa, ao contrário do que se poderia pensar à partida, tem sido uma
das zonas do mundo em que nas últimas décadas se verificaram mais situa-
ções de redefinição de fronteiras. Sem recuar aos acertos fronteiriços resul-
tantes das duas guerras mundiais – esses com impacto em várias zonas do
mundo –, a queda do Muro de Berlim representa um momento simbólico
para o arranque de um tempo de sucessivas mudanças nas fronteiras por
toda a Europa. A primeira e direta consequência da queda do Muro surge
com a reunificação da Alemanha, a que se seguem os processos que condu-
ziram ao fim da União Soviética e da Jugoslávia, situações que reconfigu-
raram por completo o mapa europeu. A Europa da década de 1990 é, pois,
um continente com um mapa muito mais policromático do que aquele
com que se tinha despedido da Guerra Fria. A tendência desagregadora ob-
servada nos casos da União Soviética e da Jugoslávia é, no entanto, apenas
uma parte da história, sendo claro exemplo disso o avanço do processo de
alargamento da União Europeia que vai fazer com que o número de Esta-
dos-membros da UE passe de 12, em 1994, para 28, a partir de julho de 2013.
Igualmente reconfigurador do mapa Europeu é o desenvolvimento do es-
paço Schengen, que surge a partir de um acordo assinado em 1985 por ape-
nas cinco países (Conselho Europeu, 2000) mas que viria a ser integrado no
quadro da União Europeia em 1999, na sequência da entrada em vigor do
Tratado de Amesterdão.

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A “livre circulação de pessoas, serviços e capital” (European Commu-


nities, 1957: 4) é uma meta presente desde o início do projeto europeu,
como se pode verificar pelo texto do seu documento fundador, o Tratado
de Roma. O objetivo acaba por ser alcançado décadas depois, transforman-
do por completo a circulação em solo europeu. Neste processo, as fron-
teiras dos países que integram o espaço Schengen ficam totalmente aber-
tas, surgindo na Europa uma zona aberta e de livre circulação. Isto, porém,
acontece em simultâneo com um processo de fortalecimento das fronteiras
externas, um reforço sem o qual o projeto de livre circulação a nível inter-
no dificilmente poderia ter sucesso, já que “a visão europeia de uma Euro-
pa sem fronteiras está dependente duma eficaz gestão das fronteiras exter-
nas” (Hills, 2006: 67).
Nasce, pois, na Europa, um espaço de livre circulação que conquista a
sua legitimidade perante as populações ao assumir-se como uma “promessa
de paz, prosperidade e estabilidade” (Laitinen 2003: 20), um compromisso
que, porém, só pode ser alcançado se estiver garantida a segurança deste es-
paço em relação ao exterior. A par da imagem da Europa livre, ganha, pois,
igualmente consistência, a imagem da “Fortaleza Europa”, com uma cres-
cente impermeabilização das fronteiras externas concebidas para contro-
lar as ameaças provenientes do exterior (Rumford, 2007: 330). A “‘Fortale-
za Europa’ é uma metáfora que se desenvolveu; uma construção sem muros
internos mas, no entanto, com sólidas vedações contra o mundo exterior”
(Brochmann, 1991: 185).
A ideia de que a Europa estaria a fechar-se numa fortaleza surge com a
perspetiva da entrada em vigor do Mercado Único e associada à perceção
de que a UE poderia vir a tornar-se num grande bloco comercial protecio-
nista. Tal receio acabou por não se confirmar, mas a perceção de que a Eu-
ropa se estaria a fechar ao exterior não desapareceu, apenas mudou de en-
quadramento: “a metáfora da fortaleza passou para a questão da migração
e da livre circulação de pessoas. Este tem sido um tema mais controver-
so, e a acusação de que a ponte levadiça da Europa está a ser levantada tem
sido menos facilmente contrariada” (Christiansen et al., 2000: 390). O tema

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das migrações vai conquistando protagonismo, ainda para mais porque “as
questões da imigração interferem com tensões internas em diferentes Esta-
dos nação, um facto que se manifesta de forma clara nos movimentos neo-
-nacionalistas no continente” (Brochmann, 1991: 190), com destaque para o
relevo que então ia conquistando em França a Frente Nacional, mas com
expressão também noutros países.
O tema da imigração vai entrando de várias formas na agenda política
de vários países Europeus, quer através de agendas partidárias populistas,
quer por episódios de afluxo anormal de imigrantes, como aconteceu no
caso italiano. Em 1990 e 1991 muitos refugiados albaneses chegaram à cos-
ta italiana e se num primeiro momento foram acolhidos por uma onda de
solidariedade, com o tempo a perceção do fenómeno foi-se alterando, pas-
sando “a imigração a ser descrita cada vez mais como uma ‘ameaça’, ‘um
exército invasor e atacante’, ‘um problema que precisa de ser aliviado e uma
pressão que tem de parar’” (Bonifazi, 2000: 240–241). Na análise que faz da
situação então vivida em Itália, Corrado Bonifazi recorda que rapidamen-
te os sentimentos de solidariedade e de tolerância foram substituídos pelo
medo e pelo desejo de exclusão, explicando tal mudança como facto da po-
lítica de migração se ter tornado “uma das principais áreas em que as so-
ciedades desenvolvidas expressam as suas ansiedades e preocupações sobre
os efeitos negativos do processo de globalização na economia” (Bonifazi,
2000: 236).
A perceção negativa sobre a imigração vai alastrando num processo em
que os imigrantes vão sendo conotados com inúmeros aspetos negativos da
vida quotidiana das sociedades.

Nos países industrializados, as migrações sem controlo são cada vez mais
vistas como uma ameaça para a ordem pública. A opinião pública, os
media, alguns partidos políticos e agentes policiais associam muitas ve-
zes migrantes irregulares com várias atividades criminais, tais como tráfi-
co de droga, assaltos, agressões com armas ou até terrorismo contra tanto
os países de acolhimento, como os países de origem. Embora este senti-

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mento de insegurança possa basear-se em factos reais, o impacto global


da imigração nas taxas de crime e na segurança interna dos países de aco-
lhimento tende a ser sobrevalorizada. (Tsardanidis e Guerra, 2000: 331)

É importante recordar que toda esta dinâmica se gera ainda antes de


livre circulação se ter tornado uma realidade em território europeu. Daí
que seja fácil de compreender que quando, no Tratado de Maastricht, a UE
perspetiva o fim dos controlos fronteiriços internos em parte do seu terri-
tório sublinhe a necessidade de “facilitar a livre circulação de pessoas, sem
deixar de garantir a segurança dos seus povos” (Comunidades Europeias,
1992: 2). A livre circulação é um objetivo presente de forma permanente na
agenda política europeia, sendo que surge sempre acompanhado pela ne-
cessidade de garantir a segurança, ou seja, trata-se de um processo em que
se procuram compatibilizar dois princípios nem sempre facilmente articu-
láveis: abertura e segurança (Conselho Europeu, 1999).
Elemento igualmente importante nesta dinâmica é a tentativa de inte-
grar nas políticas europeias abordagem abrangente à problemática das mi-
grações. Os traços essenciais da orientação política da UE em relação a esta
problemática já estão presentes no Programa de Tampere (Conselho Euro-
peu, 1999), sendo depois aprofundados ao longo do tempo, ora com mais
ênfase nuns aspetos, ora com maior destaque para outros, mas contemplan-
do sempre dimensões como a gestão mais eficaz dos fluxos migratórios nos
seus vários âmbitos e etapas incluindo políticas de desenvolvimento e coo-
peração com os países de origem e de passagem, promoção da imigração le-
gal, prevenção e combate à imigração ilegal e ao tráfico de seres humanos,
uma política comum de vistos, integração dos imigrantes, e, claro, um efeti-
vo controlo das fronteiras externas da UE.
Ao longo dos anos, este mosaico de políticas vai conhecendo sucessivos
desenvolvimentos, em muitos casos fruto da necessidade de responder ao
aumento da preocupação da opinião pública em consequência de situações
que suscitavam apreensão e incredulidade – como os sucessivos incidentes
com migrantes na travessia do Mediterrâneo – ou geravam um forte sen-

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timento de insegurança e de medo – como aconteceu com vários ataques


terroristas em território europeu, para além, naturalmente, dos ataques aos
Estados Unidos a 11 de setembro de 2001. A situação que, no entanto, mais
abalou a livre circulação em território europeu foi a Primavera Árabe – e os
vários eventos a que acabou por dar origem – tendo em conta o movimen-
to de migrantes e refugiados que geraram e que puseram em causa a con-
fiança na segurança da fronteira externa do espaço Schengen e na forma de
gestão dessa mesma fronteira externa.

O fim das fronteiras internas?


A 15 de fevereiro de 2011, a Itália apresentou um pedido formal de assis-
tência à Frontex (Agência para a Gestão da Cooperação Operacional nas
Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia) para poder
responder ao afluxo anormal de migrantes, sobretudo tunisinos, que chega-
vam à sua costa (Frontex, 2011). Depois do pedido de ajuda italiano, os mi-
nistros dos Assuntos Internos de seis países (Itália, Espanha, França, Chi-
pre, Malta e Grécia) reuniram-se em Roma tendo emitido uma declaração
conjunta, a ser apresentada ao Conselho, em que pediam medidas urgen-
tes para responder à crise humanitária e avisavam quanto às “sérias conse-
quências e potencias riscos para a segurança interna da UE”, o que os levou
a pedir que a UE “reconheça a necessidade e a urgência de estratégias inte-
gradas para a segurança, imigração e asilo” (Mediterranean Ministers, 2011),
e que atribua alta prioridade a estes temas.
No Conselho de Justiça e Assuntos Internos seguinte, no entanto, o
tema acabará por ser discutido apenas durante o almoço e sem nenhuma
novidade quanto a medidas a implementar (Council, 2011). As preocupa-
ções dos países mediterrânicos foram também desvalorizadas, por exemplo,
pelo ministro alemão do Interior, Thomas de Maiziere, ao defender que
não existia um afluxo de refugiados e que os Estados não deveriam “pro-
vocar um falando sobre isso” (BBC, 2011a). A situação, no entanto, acabou
por assumir dimensões preocupantes e a UE reagiu propondo uma “Parce-
ria para a Democracia e Prosperidade Partilhada com o Sul do Mediterrâ-

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neo” (Comissão Europeia, 2011b). O objetivo passava por apoiar as mudan-


ças em curso nos países do Norte de África e criar condições para um clima
de estabilidade, mas a resposta imediata centrava-se no grande número de
pessoas deslocadas. As medidas previstas incluíam ajuda humanitária mas
também procedimentos para responder à chegada de migrantes à Europa.
É neste contexto que é lançada a Operação Hermes 2011 para ajudar Itália a
controlar e detetar grupos de migrantes na travessia do Mediterrâneo.
A estratégia da UE passou pelo reforço da capacidade de resposta da
Frontex mas foi-se tornando cada vez mais evidente que o problema exi-
gia outro tipo de resposta, já que o que estava em causa não era apenas uma
crise migratória mas um problema de segurança na fronteira externa. Tudo
se tornou ainda mais complexo quando a Itália decidiu conceder vistos
temporários a mais de 20 mil imigrantes tunisinos permitindo-lhes, assim,
circular por todo o espaço Schengen. Esta decisão levou vários países, entre
os quais a França e a Alemanha, a ameaçarem reintroduzir os controlos nas
fronteiras internas (EUobserver.com, 2011b).
Num primeiro momento, um acordo acalmou o desagrado francês com
a decisão italiana (BBC, 2011c) mas duas semanas depois, as autoridades
francesas bloquearam comboios italianos com migrantes durante horas na
fronteira de Ventimiglia provocando o protesto italiano (BBC, 2011b). Este
episódio deixou bem claro o impacto nas fronteiras internas das pressões
migratórias que se faziam sentir nas fronteiras externas. Ultrapassada toda
a controvérsia, meses mais tarde, a Comissão entendeu que formalmente a
lei não tinha sido desrespeitada, mas a comissária Cecilia Malmström aca-
bou por lamentar que “o espírito das regras de Schengen não tenha sido to-
talmente respeitado” (Malmström, 2011b).
O entendimento entre Itália e França acabaria por chegar, ficando ex-
presso num documento conjunto em que se pedem novas medidas para
responder ao afluxo de migrantes ao território europeu. As propostas apre-
sentadas estão organizadas em três grupos: parcerias com países terceiros;
solidariedade entre os Estados-membros; e aumento da segurança dentro
do espaço Schengen. É neste terceiro ponto que fica expressamente propos-

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ta a possibilidade de “examinar a possibilidade de restabelecer temporaria-


mente os controlos nas fronteiras internas no caso de dificuldades excecio-
nais na gestão das fronteiras externas comuns” (Sarkozy e Berlusconi, 2011).
Uma proposta que surge em resposta à “necessidade óbvia” de fortalecer a
governação do espaço Schengen (Sarkozy e Berlusconi, 2011).
A resposta chegou pelo então presidente da Comissão, José Manuel Bar-
roso, defendendo medidas equilibradas que façam face ao problema, dando
confiança aos cidadãos no que diz respeito à sua segurança, sem que para
isso seja necessário colocar em perigo os valores base do projeto europeu.
Apesar desta aparente prudência, admite que a possibilidade de reintrodu-
zir os controlos nas fronteiras internas pode ser um “elemento que reforce
a governação do acordo de Schengen” (Barroso, 2011a). Tal possibilidade é,
no entanto, alvo de críticas do ministro do Interior espanhol, Alfredo Ru-
balcaba, que considera que alterar o acordo de Schengen para responder à
crise migratória em curso seria como “matar moscas com canhões” (Diario
de Sevilla, 2011).
Ainda mais clara foi a posição assumida por Cecilia Malmström, comis-
sária para os Assuntos Internos, ao sublinhar que a “Europa precisa de re-
forçar as regras que já existem, e não de as minar. (…) Precisamos de lide-
rança que possa fazer face às soluções populistas e simplistas. Precisamos
de clareza, responsabilidade e solidariedade. Precisamos de mais Europa,
não de menos” (Malmström, 2011a: 4). A comissária sublinha ainda que é
preciso reforçar os controlos fronteiriços mas que isso não significa cons-
truir uma fortaleza Europa. Já a Comissão, numa comunicação sobre mi-
gração, reconhece a vulnerabilidade das fronteiras externas, assumindo que
essa realidade coloca em causa a confiança entre os Estados-membros e que
“os cidadãos precisam de ser tranquilizados quanto ao adequado funciona-
mento dos controlos nas fronteiras externas” (Comissão Europeia, 2011a: 7).
Em relação à fronteira externa, a UE confronta-se com o dilema de sem-
pre na gestão: criar as melhores condições para a circulação legal e, ao mes-
mo tempo, bloquear os fluxos ilegais. “O duplo objetivo da União deve,
por conseguinte, consistir em manter um elevado nível de segurança, ao

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mesmo tempo que simplifica a passagem das fronteiras para os que devem
ser admitidos, no pleno respeito dos seus direitos fundamentais” (Comis-
são Europeia, 2011a: 6). Neste sentido, a Comissão tenta encontrar um pon-
to de equilíbrio entre quem se sente ameaçado pela chegada de migrantes,
e quem se sente ameaçado pela incapacidade de outros em gerir de forma
adequada o acesso de migrantes ao espaço Schengen. Recorda, por isso, que
“cada Estado gere as suas fronteiras externas não só para controlar o aces-
so ao seu próprio território, mas também para controlar o acesso ao espa-
ço Schengen no seu conjunto” (Comissão Europeia, 2011a: 7). Em termos
práticos, a Comissão avança com a proposta de que a UE possa intervir
quando um Estado-membro não esteja a controlar de forma adequada a
sua fronteira externa. Uma proposta justificada pelo objetivo de aumentar
a confiança entre os Estados-membros e de reduzir “o recurso a iniciativas
unilaterais por parte dos Estados-membros para reintroduzirem tempora-
riamente controlos nas fronteiras internas ou para intensificarem os con-
trolos policiais nas regiões fronteiriças internas que provocam inevitavel-
mente atrasos na passagem das fronteiras internas para a generalidade das
pessoas” (Comissão Europeia, 2011a: 7).
Respondendo às críticas de que a ideia da reintrodução de controlos
nas fronteiras externas seja uma possibilidade a considerar, o presidente
da Comissão esclarece, no Parlamento Europeu, que “a livre circulação é
para a Europa o que as fundações são para os edifícios. Se forem retiradas
toda a estrutura fica em risco” (Barroso, 2011c: 2). Sublinha ainda que a pos-
sibilidade de reintroduzir controlos nas fronteiras internas já está prevista
no acordo de Schengen, sendo que o objetivo não é “encontrar formas de
os Estados-membros reintroduzirem controlos nas fronteiras. Acredito fir-
memente que fazer isso iria debilitar não só o que a Europa construiu ao
longo dos últimos 61 anos, mas sabotar a viabilidade dos nossos esforços
para construir uma Europa próspera e integrada para o futuro” (Barroso,
2011c: 3).
A questão continuou, porém, a gerar controvérsia, em particular quanto
às condições em que deveria ser possível reintroduzir controlos nas frontei-

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ras internas, e por quanto tempo tal deveria ser permitido. Espanha deixou
bem claro a discordância com esse rumo, considerando-o “um exercício de
hipocrisia” já que “a Europa não pode aplaudir as reformas democráticas
em África durante a manhã e à tarde esquecer as consequências dessas re-
formas” (Agencia EFE, 2011). A Alemanha também levantou algumas obje-
ções mas assumindo uma posição algo dúbia. O ministro do Interior, Hans-
-Peter Friederich, assumiu que “em nenhuma circunstância iremos aceitar
qualquer medida que limite de qualquer forma a liberdade de movimento
alcançada com Schengen” (EUobserver.com, 2011a), mas reconheceu a ne-
cessidade de criar “certeza legal” (EUobserver.com, 2011a) quanto às condi-
ções para reintrodução de controlos fronteiriços.
Antes da discussão das novas regras de Schengen no Conselho Euro-
peu, o presidente da Comissão lembrou mais uma vez que “a livre circu-
lação é um princípio definidor da União Europeia e uma das conquistas
mais tangíveis e bem sucedidas do projeto europeu” (Barroso, 2011b: 2). As-
sim sendo, garante o empenho da Comissão em defender o espaço Schen-
gen, ainda que reconhecendo que em circunstância excecionais os Esta-
dos-membros devem poder reintroduzir controlos nas fronteiras internas.
Propõe, porém, que tal medida seja sempre sujeita a uma aprovação prévia
a nível europeu. É esta a linha que é seguida pelo Conselho Europeu que
defende que a reintrodução de controlos nas fronteiras internas só deve
ser possível como último recurso e numa situação verdadeiramente crítica
(Conselho Europeu, 2011).
A proposta, no entanto, não foi bem recebida pelo Parlamento Europeu
que recusou a reintrodução de controlos nas fronteiras internas, conside-
rando que essa opção não é uma forma de reforçar o sistema de Schengen.
Além disso, lamenta ainda “a tentativa de vários Estados-membros de rein-
troduzir controlos nas fronteiras internas, o que claramente coloca em cau-
sa o próprio espírito do acordo de Schengen” (European Parliament, 2011).
Vozes críticas surgem também da parte de vários Estados-membros, mas
neste caso por outras razões. Países como França, Alemanha e Espanha não
concordam com a necessidade de uma aprovação prévia de Bruxelas para

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a reintrodução de controlos nas fronteiras internas. Entendem que se tra-


ta de uma questão de soberania nacional em que as instituições europeias
não devem interferir (Interior Ministers, 2011). Para o ministro alemão do
Interior a situação é clara: “Não iremos permitir que Bruxelas decida quan-
do introduzimos controlos. Nós controlamos as fronteiras se as condições
de segurança o exigirem” (Euractiv, 2011).
O debate sobre o tema foi longo e um acordo acabou por ser alcançado
apenas em 2013. O regulamento aprovado pelo Conselho e pelo Parlamen-
to Europeu especifica as condições para a reintrodução de controlos nas
fronteiras internas esclarecendo, porém, que

A reintrodução do controlo nas fronteiras internas pode ser necessária,


a título excecional, no caso de uma ameaça grave à ordem pública ou à
segurança interna a nível do espaço ou a nível nacional, nomeadamente
na sequência de incidentes ou de ameaças terroristas, ou de ameaças rela-
cionadas com a criminalidade organizada.
A migração e a passagem das fronteiras externas por um grande nú-
mero de nacionais de países terceiros não deverá, por si só, ser consi-
derada uma ameaça para a ordem pública ou para a segurança interna.
(União Europeia 2013: 4)

Novo teste à fronteira externa


A cada ano, com a chegada da primavera, a Europa continuou a assistir à re-
petição da história no Mediterrâneo com pequenas embarcações apinhadas
de pessoas de todas as idades a fazer a travessia, em muitos casos com finais
trágicos. A resposta europeia foi passando por novas medidas ou reforço
das já tomadas para responder ao problema mas, apesar de tudo, as migra-
ções continuaram a ser um tema que só de forma sazonal surge no centro
da atenção política das instâncias europeias. Quando já decorria 2015, o ano
em que a Europa iria assistir à maior crise de refugiados desde a II Guer-
ra Mundial, o Conselho Europeu, em março, remete o tema para a última
página das conclusões da reunião, fazendo referência apenas a medidas já

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anunciadas nos meses anteriores e a novas propostas esperadas da Comis-


são nos meses seguintes (Conselho Europeu, 2015a: 6). Isto numa altura em
que, no primeiro trimestre, já tinham chegado a Itália, por mar, 10 mil mi-
grantes, estimando-se que 480 pessoas tivessem morrido durante a travessia
do Mediterrâneo (IOM, 2015c).
O que tinha acontecido até aí, no entanto, viria a não ter qualquer tipo
de comparação com o que se seguiria. Em abril, a Organização Interna-
cional para as Migrações fala da “pior tragédia de que há memória” (IOM,
2015b) no Mediterrâneo, depois de um barco que transportava 850 pessoas
se ter virado junto à Líbia provocando mais de 800 mortos. O incidente é
classificado pela Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR) como o
“incidente mais mortífero no Mediterrâneo de que há registo” (UNHCR,
2016). Na sequência destes acontecimentos, o Conselho Europeu reúne de
emergência para concertar uma resposta: “A situação no Mediterrâneo é
trágica. A União Europeia mobilizará todos os meios à sua disposição para
impedir que mais vidas se percam no mar e para combater as causas pro-
fundas da situação de emergência humanitária” (Conselho Europeu, 2015c:
1). Para além de vários aspetos relativos à estratégia operacional com que a
UE se propõe responder ao problema, o ponto final diz respeito a uma di-
mensão que iria começar a ser colocada à prova: “a solidariedade e a res-
ponsabilidade a nível interno” (Conselho Europeu, 2015c: 3).
O reforço da vigilância do Mediterrâneo, em particular na zona entre
Itália e a costa líbia, faz com que se comece a manifestar uma nova ten-
dência, com cada vez mais migrantes a procurarem entrar na Europa pela
Grécia, com o Mediterrâneo Oriental a substituir o Mediterrâneo Central
como rota de trânsito (IOM, 2015a). A análise da UE aponta no sentido da
necessidade de “uma abordagem equilibrada e geograficamente abrangen-
te em matéria de migração, assente na solidariedade e na responsabilidade”
(Conselho Europeu, 2015b). Com o afluxo de migrantes e refugiados a con-
tinuar a aumentar, os ministros dos Assuntos Internos chegam a acordo so-
bre várias medidas para responder a tal situação, passando pelo reforço das
fronteiras externas, apoio aos países mais afetados, negociações com paí-

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ses de passagem como a Turquia, recolocação de refugiados, entre outras.


No entanto, numa fase em que toda a Europa assistia atónita à chegada em
massa de refugiados e aos bloqueios criados por alguns países à passagem
de refugiados – de que foi expoente máximo a construção pela Hungria de
vedações de arame farpado na fronteira com a Sérvia – o Conselho não faz
qualquer referência ao tema, mencionando apenas, no último ponto das
suas conclusões, ter sido notificado por “um Estado-membro da reintrodu-
ção de controlos em fronteiras internas expostas a pressões migratórias ma-
ciças” (Conselho, 2015: 7). O Conselho não menciona que a medida foi to-
mada pela Alemanha, mas assegura que recebeu garantias de que se trata
de uma situação provisória.
Curiosamente, a Alemanha é o primeiro país a oficialmente reintrodu-
zir os controlos nas fronteiras internas depois de ter sido o que mostrou
maior abertura para acolher refugiados. Só que, precisamente, tal abertura
acabou por ultrapassar a capacidade de resposta do país. A estimativa apon-
tava para que nos primeiros nove meses do ano tivessem cruzado as frontei-
ras alemãs 450 mil refugiados, sendo que apenas em duas semanas, entre o
fim de agosto e o início de setembro, só à cidade de Munique chegaram 63
mil refugiados (Diário de Notícias, 2015). Tal afluxo surgiu depois da chan-
celer Angela Merkel ter anunciado, a 26 de agosto, que iria acolher todos os
sírios que chegassem ao país (Rádio Renascença, 2015).
A Comissão Europeia reage igualmente à decisão alemã sublinhando o
caráter temporário da medida e reconhecendo que a situação em causa se
enquadra no que está previsto nas regras do espaço Schengen. O comunica-
do faz, no entanto, questão de citar declarações anteriores do presidente da
Comissão sobre o tema: “A livre circulação de pessoas ao abrigo de Schen-
gen é um símbolo único da integração europeia. No entanto, o outro lado
da moeda é uma melhor gestão conjunta das nossas fronteiras externas e
mais solidariedade na resposta à crise de refugiados” (European Commis-
sion, 2015).
Depois de um conjunto de reuniões do Conselho e também do Conse-
lho Europeu, em que são intensificadas as respostas operacionais tidas por

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adequadas para fazer face ao afluxo de refugiados, é só em dezembro que o


tema da reintrodução dos controlos nas fronteiras internas volta a constar
nos documentos conclusivos das reuniões. É salientado um “amplo apoio
às sugestões apresentadas pela presidência em relação à integridade do es-
paço Schengen” (Council, 2015: 9) em que se defende, entre outras medi-
das, que a decisão de um Estado-membro de reintroduzir os controlos nas
fronteiras internas seja precedida de consultas entre os Estados-membros. É
também apresentada a ideia que caso persistam “sérias deficiências relacio-
nadas com os controlos das fronteiras externas, a Comissão deve conside-
rar apresentar a proposta para uma recomendação do Conselho de acordo
com o artigo 26 do Código de Fronteiras de Schengen para prolongar o pe-
ríodo de reintrodução de controlos nas fronteiras internas até um máximo
total de dois anos” (Council, 2015: 9).
O culminar de todo este processo chega com a posição do Conselho so-
bre a reintrodução de controlos nas fronteiras externas em situações exce-
cionais. O documento começa por reconhecer que a situação vivida desde
2015 revelou “a existência de deficiências estruturais mais vastas no modo
como a UE protege as suas fronteiras externas” (Conselho, 2016: 2). O Con-
selho defende que os movimentos secundários de migrantes pela Europa
neste período representam “uma ameaça grave para a ordem pública ou a
segurança interna de vários Estados-membros” (Conselho, 2016: 4), e, neste
contexto, entende como adequadas e de acordo com o Código das Frontei-
ras de Schengen as decisões de reintrodução de controlos internos que fo-
ram tomadas pela Áustria, Alemanha, Dinamarca, Suécia e Noruega. Ava-
liando a atual situação das fronteiras externas, o Conselho conclui que
“persistem algumas das deficiências graves identificadas no controlo das
fronteiras externas, que colocam em risco o funcionamento global do espa-
ço sem controlos nas fronteiras internas” (Conselho, 2016: 6), o que faz com
que recomende que se mantenham os controlos internos, “uma vez que es-
tes constituem uma resposta adequada à ameaça grave à ordem pública e
segurança interna decorrente dos movimentos secundários de migrantes ir-
regulares. As fronteiras internas atualmente afetadas pelas medidas de con-

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trolo correspondem às rotas migratórias e às ameaças identificadas” (Con-


selho, 2016: 7).

Conclusão
Não é fácil antecipar o futuro do espaço Schengen. É, no entanto, claro,
que hoje é uma realidade ameaçada. As crises migratórias, em particular
a de 2015, colocaram à prova a resistência deste projeto praticamente até
ao limite. O sonho de uma Europa aberta, livre, sem obstáculos à circula-
ção começa a ser um ponto de interrogação. O espaço Schengen cresceu,
chegou até a Estados fora da UE abrangendo mais de 400 milhões de pes-
soas mas manifesta claras dores de crescimento e dá sinais de começar a re-
cuar. E a razão de tal recuo, afinal, até nem era muito difícil de antecipar. A
necessidade de equilibrar a abertura das fronteiras internas com o reforço
das fronteiras externas está, desde sempre, identificada como uma premissa
para o sucesso da área de livre circulação.
Os factos acabaram por demonstrar que tal equilíbrio não terá sido de-
vidamente acautelado. Aliás, nem as sucessivas revisões de estratégia por
parte da UE, nem os reforços de meios nas fronteiras externas consegui-
ram ainda produzir os efeitos desejados, levando a que a solução encontra-
da seja o recuo de Schengen com a reintrodução dos controlos em algumas
fronteiras internas. Assistimos, pois, a uma interessante dinâmica de equilí-
brio entre fronteiras internas e externas. Isto porque a tentativa de abrir as
primeiras por completo, tornando-as totalmente permeáveis aos fluxos que
antes controlavam, levou a um reforço das características de elemento de
bloqueio das fronteiras externas. Consequentemente, quando estas não de-
sempenharam devidamente essa função, o efeito produzido foi o de regres-
so às fronteiras internas, tornando-as menos permeáveis e confiando-lhes
de novo a função de elemento regulador de fluxos.
A dualidade das fronteiras manifesta-se, assim, de forma clara: ora são
pontos de contacto, ora são elementos de bloqueio. Uma dualidade que
lhes é característica e que não deve ser confundida com prova de existência
ou de desaparecimento. Isto é, o facto da fronteira estar aberta, ser permeá-

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vel e não ser visível não significa que tenha desaparecido, é apenas sinal de
que desempenha algumas das funções que lhe são características, poden-
do, no entanto, a qualquer altura voltar ao papel que anteriormente prota-
gonizava. O mesmo podendo acontecer em sentido contrário, com a fron-
teira que funcione como elemento de bloqueio a poder deixar de ter uma
presença tão notória, passando a ser mais porosa e eventualmente menos
visível.
Estas variações têm sido bem visíveis ao longo das últimas décadas nas
fronteiras europeias, sendo que os factos aqui analisados também revela-
ram a importância de uma adequada gestão para que em cada situação a
fronteira desempenhe de forma adequada a função que se pretende. De fac-
to, não sendo fácil antecipar o futuro do espaço Schengen, é muito claro
que é imperioso encontrar mecanismo eficazes de gestão da fronteira, em
particular da fronteira externa, para que se possa continuar a circular livre-
mente por grande parte de uma Europa de onde as fronteiras nunca desa-
pareceram.

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Aquém e além-fronteiras: refugiados


na Europa e a necessidade de
humanização das fronteiras
Carla de Marcelino Gomes

Solo voy con mi pena / Sola va mi condena /


Correr es mi destino / Para burlar la ley
Perdido en el corazón / De la grande Babylon /
Me dicen el clandestino / Por no llevar papel
Pa una ciudad del norte /Yo me fui a trabajar /
Mi vida la dejé / Entre Ceuta y Gibraltar
Soy una raya en el mar / Fantasma en la ciudad /
Mi vida va prohibida / dice la autoridad
Solo voy con mi pena / Sola va mi condena / Correr
es mi destino / Por no llevar papel
Perdido en el corazon / De la grande Babylon /
Me dicen el clandestino / Yo soy el quiebra ley
Mano Negra clandestina / Peruano clandestino /
Africano clandestino / Marijuana ilegal
Argelino clandestino / Nijeriano clandestino /
Boliviano clandestino / Mano Negra ilegal
Clandestino, Manu Negra, 1998

Introdução

O presente artigo pretende averiguar da flexibilidade do conceito jurídi-


co de fronteira, face aos recentes fluxos de refugiados|as a que se assiste
na Europa e face às implicações em matéria de direitos humanos decorrentes
destes fluxos. Assim, no ponto 1, iniciaremos a reflexão por um enquadra-
mento conceptual e jurídico, no qual daremos conta dos conceitos que sub-

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jazem ao presente artigo, a saber, a definição de fronteira, de refugiado|a e de


criança. Neste âmbito, socorrer-nos-emos dos instrumentos jurídicos relevan-
tes no âmbito do Direito Internacional Público e do Direito Internacional
dos Direitos Humanos, com especial atenção à Convenção de Genebra sobre
o Estatuto do Refugiado e à Convenção sobre os Direitos da Criança.
No ponto 2, indagaremos sumariamente da maior ou menor elasticida-
de da(s) fronteira(s) europeia(s), à luz do direito, e face aos mais recentes
fluxos de refugiados|as, na Europa. Aqui, avançamos com a hipótese de sa-
ber se o direito se mostra suficientemente elástico quanto à noção de fron-
teira, quando o que está em causa são os direitos humanos daqueles que de-
safiam os conceitos clássicos de fronteira, ou seja, quando se assiste a fluxos
maciços de pessoas que atravessam fronteiras, como é a situação supra refe-
rida. Para tal, utilizaremos ferramentas do direito internacional público e
do direito internacional dos direitos humanos, comparando-as e aventando
se aquelas nos poderão fornecer pistas de análise.
No ponto 3, interessa-nos reforçar o argumento utilizado no ponto an-
terior, utilizando o caso particular das crianças refugiadas, com o intuito de
ensaiar um teste ao direito e que é o de saber se este caso poderá contribuir
para uma maior abertura e humanização do conceito de fronteira, tradicio-
nalmente estanque. Por fim, terminamos com as conclusões, tanto no que
respeita à utilização do direito internacional público e do direito interna-
cional dos direitos humanos enquanto ferramentas de análise do conceito
de fronteira, como no que respeita à questão principal que é a de saber se o
caso das crianças refugiadas poderá, pela sua natureza, contribuir para uma
ideia de “fronteira humanizada”, este que é o conceito que propomos para
estes casos-limite da própria Humanidade.
Como pano de fundo à nossa análise preside a composição Clandesti-
no, de Manu Chao, que datando de 1998, manifesta um conteúdo profun-
damente atual se atentarmos aos movimentos maciços de pessoas a que se
assiste na Europa e que, justamente, esbarram numa miríade de burocra-
cias intransponível para a maioria desses viajantes, sobretudo, os indocu-
mentados.

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Enquadramento conceptual e jurídico


Ao iniciarmos a presente reflexão, cumpre-nos informar o leitor acerca das
premissas teóricas que servem de pressuposto ao nosso raciocínio. Assim,
começamos com o conceito que, no fundo, é a lente de análise deste artigo,
ou seja, o conceito de fronteira. Sem prejuízo de um estudo histórico mais
aprofundado que não cabe no presente artigo, não é possível discorrer so-
bre o conceito de fronteira sem remeter para os Tratados de Vestefália (o de
Osnabruck e o de Munster) que, em outubro de 1648, não só encerraram a
Guerra dos Trinta Anos que tumultuou a Alemanha, mas, também “juri-
dicamente, (…) podem ser considerados como o ponto de partida de toda
a evolução do direito internacional contemporâneo” (Dinh et al., 2003).
Por outro lado, neles, “a soberania e a igualdade dos Estados são reconhe-
cidos como princípios fundamentais das relações internacionais” (Dinh et
al., 2003), conceitos esses recorrentemente presentes na doutrina do direito
internacional. Apesar do debate acerca da superação do modelo vestefalia-
no, o Estado continua muito presente enquanto sujeito de direito interna-
cional. E, portanto, é incontornável referir a clássica teoria do direito inter-
nacional segundo a qual o conceito de Estado assenta em três elementos,
leia-se, o povo, o território e um governo soberano (Machado, 2013: 190).
Interessa-nos atentar no conceito de soberania, pois está diretamente re-
lacionado com o conceito de fronteira. Assim, a soberania pode referir-se à
soberania interna assente, sobretudo, na ideia weberiana de monopólio do
controlo da força, mas, também, à soberania externa alicerçada, designada-
mente, no princípio da não interferência dos outros Estados, nos seus assun-
tos, a possibilidade de participar na formação do próprio direito internacio-
nal através do assento nas instituições internacionais com essa competência
e também na possibilidade de contribuir para os destinos da própria comu-
nidade internacional. Note-se que o princípio da não interferência dos ou-
tros Estados tem vindo a ser diluído por outros como o da responsabilidade
de proteger, a intervenção humanitária, e o princípio da jurisdição universal,
ínsito, por exemplo, no Estatuto de Roma que constituiu o Tribunal Penal
Internacional. Este princípio atua quando em causa está a violação de valo-

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res considerados fundacionais da humanidade, permitindo, por exemplo,


que um Estado possa invocar a jurisdição universal para atuar sobre estran-
geiros, ainda que em território estrangeiro. Esta ideia de um direito interna-
cional universal que tem vindo a ser desenvolvido é uma evolução interes-
sante e útil para este capítulo e a que voltaremos mais adiante.
De acordo com o Dictionnaire de la terminologie du droit international
(1960), fronteira é a “linha que determina onde começam e onde acabam os
territórios, dependendo respectivamente de dois Estados vizinhos” (Dinh
et al., 2003). Esta ideia de soberania territorial muito deve à sentença de
Max Huber, de 1928, que exarou uma sentença na qualidade de único ár-
bitro numa contenda que envolvia os Estados Unidos da América e os Paí-
ses Baixos a propósito da Ilha das Palmas, no Pacífico, e que teve lugar jun-
to do Tribunal Permanente de Arbitragem. Nesta sentença, destacam-se
duas ideias essenciais agregadas ao conceito de soberania territorial, a sa-
ber, “a plenitude do seu conteúdo e a exclusividade do seu exercício” (Dinh
et al., 2003).
Já do ponto de vista jurídico, a teoria do Estado assente no povo, terri-
tório e soberania surge em toda a sua evidência na Convenção de Monte-
videu sobre os Direitos e Deveres dos Estados, datada de 26.12.1933, cujo
artigo 1º refere o seguinte: “[o] Estado deverá, como pessoa internacional,
possuir os seguintes elementos: a) uma população permanente; b) um ter-
ritório definido; c) um governo; e d) capacidade para estabelecer relações
com outros Estados”. Esta Convenção, apesar de juridicamente ter apenas
um alcance regional, é comummente indicada pela doutrina como a fon-
te de Direito a considerar quando o que está em causa é a conceção jurídica
internacional de Estado (Machado, 2013).
Outro conceito da maior importância para o objeto da nossa análise
é o de refugiado|a. Segundo Alexander Betts, “refugiados são pessoas que
atravessam fronteiras internacionais em fuga de conflitos ou perseguição”1

1.  Tradução livre da autora a partir do original: “refugees are people who cross international borders to
flee conflict and persecution”.

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(Betts, 2009: 1). Após a Segunda Guerra Mundial2, assistiu-se a movimen-


tos significativos de refugiados na Europa “causados, principalmente, por
conflitos internacionais, pela desintegração dos impérios coloniais, pela
criação de Estados multiétnicos e pela propagação de regimes comunis-
tas” (Oliveira, 2009: 60). Porém, desta fase, não existe um relato claro e siste-
matizado do número de pessoas que se deslocaram para a Europa, na qua-
lidade de refugiados ou na de imigrantes económicos, pois que, havendo,
então, significativa falta de mão-de-obra no continente, muitos dos poten-
ciais candidatos ao estatuto de refugiados|as não necessitavam do proces-
so de requerimento de asilo, pois que, a obtenção de residência na qualida-
de de imigrante era um processo de fácil acesso. A partir da década de 70,
do século passado, assistiu-se a um abrandamento da economia na Europa,
pelo que, a fixação de pessoas estrangeiras no continente se tornou alvo de
alguma apreensão que, diga-se, tem vindo em crescendo até aos nossos dias.
É também após a Segunda Guerra Mundial que se desenvolve, de forma
mais consistente e sistematizada, a proteção jurídica ao|à refugiado|a3, época
esta em que se assiste ao florescimento do Direito Internacional dos Direitos
Humanos. Assim, é de destacar a Declaração Universal dos Direitos Humanos
cujo artigo 14 consagra o direito de asilo, ainda que dependendo do preenchi-
mento de certas condições, e, sobretudo, a Convenção de Genebra sobre o Es-
tatuto do Refugiado, de 1951, que nos elucida acerca do conceito jurídico de
refugiado, prescrito no artigo 1º, e segundo o qual, refugiado|a é uma pessoa
“que, em consequência de acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de
1951, e receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, na-
cionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se
encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtu-
de do dito receio, não queira pedir a protecção daquele país (…)”. Mais tarde,
o Protocolo de Nova Iorque, de 1967, adicional à Convenção de Genebra, veio

2.  Para informação mais detalhada sobre a evolução histórica e jurídica do conceito de refugiado, no
âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a partir de 1945, v. (Oliveira, 2009: 60ss).
3.  Para informação mais detalhada sobre os Direitos dos Refugiados (Hathaway 2005)

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afastar a limitação temporal enunciada na definição, mantendo-se, portanto,


os fatores que podem incorrer para a definição de refugiado|a, a saber, o receio
de perseguição em virtude da raça, religião, nacionalidade, pertença a deter-
minado grupo social ou das opiniões políticas4. Porém, ao direito de ser con-
siderado refugiado|a não corresponde um dever automático sobre os Estados
de concederem asilo. Apesar da proteção internacional concedida a estas pes-
soas, a obtenção do estatuto de refugiado e a concessão de asilo são um pro-
cesso em que a vontade do Estado requerido é soberana.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, define, no seu arti-
go 1º, o conceito de criança, definição esta que está longe de ser consensual,
apesar de estar inserida no instrumento jurídico internacional mais ratifi-
cado mundialmente. Assim, segundo aquele artigo, “[n]os termos da pre-
sente Convenção, criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se,
nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”. Esta
definição tem a vantagem de colocar como pedra axial do conceito num
critério objetivo, ou seja, a idade, neste caso, 18 anos. Contudo, se atentar-
mos na letra da lei, veremos que, em bom rigor, esta definição não é estan-
que, precisamente em virtude da segunda parte do artigo que concede aos
Estados liberdade para, eles mesmos, determinarem a idade que conside-
rem a adequada para obtenção da maioridade, no seio do seu ordenamen-
to jurídico. Quer isto dizer que a comunidade internacional, ao adotar esta
Convenção, pretendeu transmitir a mensagem de que, segundo o seu en-
tendimento, 18 anos deverá ser a idade para a obtenção da maioridade e ces-
sação da qualidade de criança. Contudo, ciente de que esta idade de 18 anos
era controversa e receando uma muito menor quantidade de ratificações
por esse motivo, a comunidade internacional optou por utilizar a técni-
ca legislativa do “salvo se…”, permitindo, portanto, que os Estados signatá-
rios possam adotar outra idade emancipatória5. Esta Convenção é singular,

4.  Para mais considerações acerca da definição de refugiado, v. (Nicholson and Twomey, 1999).

5.  Para mais informação sobre a proteção dos direitos da Criança, no âmbito da Organização das Na-
ções Unidas, v. Catarina Albuquerque, http://www.gddc.pt/direitos-humanos/onu-proteccao-dh/orgaos-
-onu-estudos-ca-dc.html.

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uma vez que encerra vários tipos e gerações de direitos humanos, designa-
damente, os económicos, sociais e culturais, bem como os direitos civis e
políticos, assumindo, portanto, uma perspetiva holística no que respeita à
proteção dos direitos da criança (Moreira e Gomes, 2013: 210).
Nesta parte introdutória, foi nossa preocupação situar o leitor no cam-
po teórico, leia-se, os conceitos de fronteira, de refugiado e o de criança.
que servirão de base às reflexões seguintes.

Breve reflexão sobre a elasticidade da(s) fronteira(s)


europeia(s) à luz do Direito e face aos mais recentes fluxos
migratórios na Europa
Na sequência de vários fatores sociais, históricos ambientais, políticos, etc. e,
desde logo, a instabilidade sentida no decurso de movimentos comummen-
te designados de primaveras árabes6, tem-se vindo a assistir a fluxos maciços de
pessoas que viajam de vários pontos em África e na Ásia, em direção à Euro-
pa, em busca de um futuro melhor. Por terra e por mar, neste caso concen-
trando-se no mediterrâneo, assiste-se a um movimento regular de pessoas
que pretendem alcançar o continente europeu para aí se fixarem. Os moti-
vos que as movem são vários e identificar esses motivos mostrar-se-á determi-
nante para uma posterior classificação e enquadramento dessas pessoas em
dois grupos distintos, os refugiados e os imigrantes, que se distinguem, des-
de logo, porque, no primeiro caso, existe um receio pela vida ou de persegui-
ção com base em algum dos fatores indicados no artigo 1º da Convenção de
Genebra supra mencionado, ao passo que os imigrantes económicos saem do
seu país em busca de melhores condições de vida. A tónica da distinção pren-
de-se com o grau de proteção que um e outro estatuto conferem, sendo que
o estatuto de refugiado e a consequente possibilidade de requerer asilo é dos
dois o que confere maior nível de proteção internacional. É claro que se po-
derá debater se no caso de alguém que sai do seu país em fuga da pobreza ex-

6.  Apesar de esta designação não ser consensual, não entraremos nesse debate, nesta sede, optando por
utilizar essa expressão por comodidade de entendimento.

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trema ou da fome, em virtude, por exemplo, da ausência de chuva, dizíamos,


poderemos, nestes casos, debater se estaremos simplesmente perante um imi-
grante económico, havendo já na doutrina quem sufrague o conceito de refu-
giado ambiental que, porém, ainda não tem assento legal.
O caso atual das travessias no Mediterrâneo tem-se mostrado particular-
mente agudo. Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Refugiados (ACNUR), entre 1 de janeiro de 2016 e 31 de maio de 2016,
203.981 pessoas já fizeram a travessia do Mediterrâneo, sendo que ¾ fizeram-
-na da Turquia para a Grécia e 46.714 do Norte de África para Itália. Neste
mesmo período, perderam a vida, na travessia do Mediterrâneo, 2510 pessoas7.
Estes movimentos de pessoas têm vindo a assumir relevância bastante sig-
nificativa, desde logo, nos países onde chegam de forma mais recorrente pre-
mente, como é o caso da Grécia e da Itália. Contudo, tem vindo a ser gene-
ralizada a ideia de que a responsabilidade em tal situação não deverá recair
apenas sobre os países onde desembarcam essas pessoas, mas, antes, deverá
ser diluída pela comunidade internacional, desde logo, a União Europeia.
Nestas movimentações, podemos encontrar alguns pontos interessan-
tes para o debate que iniciámos e que se prende com o conceito de fron-
teira. Por exemplo, de um modo geral, são conhecidas as fronteiras den-
tro da União Europeia e cada Estado sabe, em detalhe, as delimitações das
suas próprias fronteiras e, quanto a isso, temos um conceito estanque de
fronteira, porque geográfico.8 Mas, também é verdade que, através do Acor-
do de Schengen, os países da União Europeia concordaram em conceder
uma maior elasticidade ao conceito de fronteira, ao permitirem a livre cir-
culação de pessoas, dentro do espaço Schengen. Assim, mantiveram-se as
fronteiras políticas e geográficas, é certo, mas, assistiu-se também a uma fle-
xibilização do conceito, a uma descompressão das fronteiras, dentro daque-
le espaço.

7.  Apud http://www.cpr.pt/, acedido a 1 de Junho de 2016.

8.  Não entramos aqui em linha de conta com os movimentos independentistas existentes na Euro-
pa e que pretendem, justamente, essa alteração geográfica de fronteiras, porque irrelevante para o nos-
so argumento.

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Segundo Cunha Martins, “existem, genericamente falando, duas moda-


lidades possíveis de definir uma fronteira: ou uma demarcação ‘pelo exte-
rior’; ou uma demarcação ‘pelo interior’. A Europa vive, inevitavelmente, na
tensão entre ambas, embora não pareça muito ciente desse facto” (Martins,
2008: 179ss). Segundo o mesmo autor, “a demarcação pelo exterior correspon-
de ao modelo de definição mais clássico, (…) de acordo com este, uma en-
tidade política, cultural ou económica delimita-se, em primeira instância,
com base na definição das suas exterioridades…”. Por seu turno, a “demarca-
ção pelo interior assenta numa lógica diversa (…) agora a entidade a demar-
car se define, em primeira instância, em moldes designativos, auto-afirmati-
vos, a partir da afirmação daquilo que é, na convicção de que os seus limites
estarão, precisamente, lá onde essa entidade deixar de ser”. É nesta demar-
cação pelo interior que se poderá situar a problemática em apreço, ou seja,
sendo mais ou menos claras as fronteiras europeias9 no que respeita à de-
marcação pelo exterior, será na demarcação pelo interior que mais questões
se poderão levantar. Diz Cunha Martins que “…em boa medida, a história
da construção europeia é a história da harmonização destas duas modalida-
des. Trata-se, porém, de uma harmonização tensa.”
O processo de adesão da Turquia tem conduzido ao zurzir, por alguns,
do argumento defensivo de “uma identidade europeia que se crê demar-
cada com base num quadro de valores e de referências histórico-cultu-
rais rígidos, o suficiente, pelo menos, para a partir deles procurarem de-
finir umas quantas fronteiras de exclusão” (Martins, 2008: 180). Diríamos
que algo comparável se poderá estar a ocorrer como consequência dos flu-
xos de refugiados a que temos vindo a assistir, ou seja, parece-nos que estes
acontecimentos têm vindo a colocar a Europa em confronto consigo mes-
ma, tendo, por um lado, o dever de cuidado decorrente dos seus ideais hu-
manistas e, por outro lado, um questionar da sua própria demarcação pelo
interior.

9.  Os vários alargamentos da União Europeia têm testado a flexibilidade daquela demarcação pelo
exterior.

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A questão que ora se levanta é a de indagar sobre qual se afigura ser a


reação europeia em virtude destes movimentos migratórios em grande es-
cala, junto das suas fronteiras. À luz do direito internacional público clás-
sico, a resposta é estanque, ou seja, o conceito de fronteira e os princípios
conexos estão claramente definidos na lei, como vimos, e é esta mesma lei
que também prescreve as reações do direito face a uma ameaça de frontei-
ra, desde logo, a permissão do uso da força em legítima defesa. Recorde-
-se que o protagonista do direito internacional clássico é o Estado que tem,
justamente, como uma das suas funções proteger a sua integridade territo-
rial. E perguntam-se alguns: oferecem tais movimentos maciços um funda-
do receio à integridade territorial dos Estados visados? E, porquanto, seria
legítimo que os Estados usassem da força para proteger as suas fronteiras
deste tipo de “compressões”?
Após a Segunda Guerra Mundial, assistiu-se a um movimento de huma-
nização do direito internacional público, iniciado com a adoção da Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, a que se seguiram várias
Convenções e Tratados que, em conjunto, se viriam a designar de tratados
internacionais de direitos humanos. Este movimento viria a dar origem a
um novo ramo do direito, o do Direito Internacional dos Direitos Huma-
nos (DIDH) que criou um sistema de proteção da pessoa, no âmbito da or-
dem jurídica internacional10. Tendo por base a dignidade humana, o DIDH
implica limitações à atuação dos Estados ratificantes que, assim, aceitaram,
em nome dessa dignidade humana e de outros princípios, ser sujeitos a
um sistema intergovernamental de controlo, como é o caso da Organiza-
ção das Nações Unidas (ONU), entidade onde o DIDH se desenvolveu uni-
versalmente. Com o aparecimento do DIDH, assistiu-se a um significativo
deslocamento do protagonismo do Estado enquanto figura central da or-
dem internacional, para a pessoa. Apesar desta mudança parcial de paradig-
ma que poderá ter conduzido a uma certa relativização do Estado, a verda-

10.  Para mais informações sobre a “autonomia do Direito Internacional dos Direitos Humanos em re-
lação ao Direito Internacional”, vide (Guerra Martins, 2006: 87).

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de é que os Estados continuam a ter o poder final de muitas das decisões


relevantes, designadamente, as que requerem exercício do direito de voto,
como é o caso das resoluções da Assembleia-Geral da ONU. A grande dife-
rença é que, agora, os Estados estão sujeitos a um mais significativo contro-
lo, tanto por parte da sociedade civil, como dos outros Estados. Urge, por-
tanto, perguntar em que medida é que o DIDH poderá contribuir para este
debate e, de facto, contribui. O DIDH, fazendo um apelo claro à dignida-
de humana oferece uma maior proteção às pessoas que deixam os seus paí-
ses em direção a outros, sobretudo, se enquadráveis no estatuto de refugia-
do, vindo trazer um maior equilíbrio entre Estado e pessoas, mormente, no
que para este caso conta, entre Estado e os não nacionais que se encontrem
sob sua jurisdição.
Para além da Convenção de Genebra sobre o Estatuto do Refugiado, já
mencionada, no caso europeu importa fazer também uso da Convenção
Europeia dos Direitos Humanos que, embora não contendo expressamente
o direito de asilo, consagra, porém, algumas limitações ao poder de expul-
são de estrangeiros, por parte dos Estados (Oliveira, 2009: 66). Vemos aqui
um exemplo claro de como o DIDH poderá contribuir de forma positiva
para a tensão a que se assiste quando, como neste caso, se assiste a uma mo-
vimentação de pessoas. Assim, por um lado, o Estado mantém algum po-
der discricionário no que respeita à concessão de asilo, mas, por outro lado,
vê o seu poder contraído pelo princípio do non refoulement, em nome da
proteção da dignidade humana da pessoa.
O DIDH, pese embora as suas imperfeições, parece-nos ser de significa-
tiva utilidade no estabelecimento de algum equilíbrio entre Estado e pes-
soas, neste caso, estrangeiras. Se o direito internacional público clássico é
mais estanque quanto à noção de fronteira, já o DIDH parece-nos mais
elástico e poderá residir nesta ferramenta a solução para uma maior huma-
nização das fronteiras.
Neste ponto, indagámos da elasticidade do conceito de fronteira, à luz
do Direito, sobretudo, no caso dos movimentos de refugiados que têm che-
gado à Europa, tendo concluído que o direito internacional público clássi-

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co é mais rígido no que respeita ao conceito de fronteira, ao passo que o di-


reito internacional dos direitos humanos se revela mais elástico, podendo
auxiliar na flexibilização e humanização do conceito de fronteira.

O caso das crianças refugiadas e a sua possível


contribuição para um conceito de fronteira humanizada
Vimos já que o conceito de fronteira sempre implica uma delimitação en-
tre uma realidade e outra. E é disso mesmo que se trata no caso dos refugia-
dos que atualmente se abeiram da Europa, ou seja, entre esses refugiados e o
continente existe uma demarcação, uma ou várias fronteiras que estabelecem
uma separação entre realidades diferentes, a de quem chega e a de quem está.
E é no encontro, frequentemente, desencontro entre estas duas tensões que
se tem de encontrar uma solução de compromisso entre realidades diferentes
atravessadas por conceitos que terão de adaptar-se aos novos desafios. Assim,
sem prejuízo de regras mais ou menos rígidas que gerem conceitos clássicos
como o de soberania política, territorial, etc., a humanidade sempre deverá
encontrar as ferramentas que permitam tratar o outro, neste caso, o refugia-
do, com a dignidade que deverá ser concedida a todo e qualquer ser humano.
Este compromisso é tanto mais válido quando, em apreço, está o trata-
mento a conceder às crianças refugiadas. E, aqui, o Direito Internacional
dos Direitos Humanos revela-se ainda mais elástico, ao conferir-lhes uma
proteção mais alargada e densificada. Assim, o artigo 22º da Convenção so-
bre os Direitos da Criança é claro quando, no seu nº1 afirma que:
Os Estados Partes tomam as medidas necessárias para que a criança que
requeira o estatuto de refugiado ou que seja considerada refugiado, de har-
monia com as normas e processos de direito internacional ou nacional
aplicáveis, quer se encontre só, quer acompanhada de seus pais ou de qual-
quer outra pessoa, beneficie de adequada protecção e assistência humani-
tária, de forma a permitir o gozo dos direitos reconhecidos pela presen-
te Convenção e outros instrumentos internacionais relativos aos direitos
do homem ou de carácter humanitário, de que os referidos Estados se-
jam Partes.

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O nº2 do mesmo artigo dá-nos algumas pistas, sobretudo, acerca da for-


ma como os Estados poderão atuar no caso das crianças não acompanhadas
ou separadas que serão, porventura, o mais vulnerável dos grupos vulnerá-
veis. Este nº2 exorta-os à cooperação com a ONU e outras organizações in-
tergovernamentais ou não governamentais pertinentes na área da proteção
e auxílio às crianças que se encontrem nessa situação. Estes intervenientes
deverão também pugnar pela reunificação familiar, desenvolvendo, portan-
to, esforços na procura de pais ou familiares da criança não acompanha-
da. A criança não acompanhada é aquela que viaja sozinha, sendo cada vez
mais frequentes esses os casos.
Vemos, portanto, que a criança, e em especial a criança não acompanha-
da, detém um estatuto preferencial à luz do direito internacional dos di-
reitos humanos. Portanto, do ponto de vista jurídico, no caso em apreço
reforçado pelas normas europeias de proteção à criança e em particular à
criança não acompanhada, poderá dizer-se que ao chegarem às fronteiras,
estas crianças deveriam encontrar uma fronteira humanizada. E se em al-
guns casos isso se vai verificando, noutros, muitas dificuldades operacionais
se vão manifestando. Por exemplo, a determinação da idade poderá repre-
sentar um problema se atentarmos no facto de que, frequentemente, estas
crianças viajam indocumentadas. Em caso de dúvida, isto é, se não se tem
a certeza se determinada pessoa é ou não criança, deverá ser tratada como
tal e, assim, usufruir de maior proteção. Por outro lado, as recomendações
vão no sentido de que as crianças que viajam sozinhas deverão permanecer
em lugares separados dos dos adultos. Mas, o que acontece frequentemen-
te, por exemplo, em Lesbos11, e no cumprimento estrito dessa norma, é que
as crianças acabam por ser separadas de companheiros de viagem, adultos,
que as protegeram durante a viagem, voltando a ficar sozinhas na sequên-
cia dessa separação. Assiste-se, por vezes, a que crianças e adultos invoquem
laços familiares que, na realidade não existem, para evitar essa separação.

11.  Segundo relatos transmitidos pessoalmente à autora por quem aí desempenhou funções huma-
nitárias.

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Por outro lado, outras vezes, assiste-se também ao aproveitamento, pelos


adultos, da proteção mais favorável concedida às crianças, obrigando-as a
admitirem um laço familiar que não existe, ficando, por isso, à sua mercê.
Enfrentam-se, portanto, grandes dificuldades de prova relativamente a vá-
rias questões, já para não falar nos desaparecimentos de crianças veiculados
pelas notícias. Outro problema encontrado é que, frequentemente, as crian-
ças refugiadas não têm acesso à educação, o que condiciona, desde logo, o
seu futuro.
Porém, e apesar das dificuldades, a verdade é que a comunidade inter-
nacional reuniu o consenso necessário para, neste caso, consagrar no direi-
to uma fronteira mais humanizada, ainda que essa fronteira seja, frequente-
mente, um limbo espacio-temporal. Assim, a questão que fica é a de saber
se a comunidade internacional e, em particular a europeia, estará política e
socialmente preparada para a construção institucional e física de fronteiras
mais humanizadas ou se, pelo contrário, optará por uma demarcação pelo
exterior e pelo interior tão rígidas que desumanizam totalmente a fronteira
entre quem vem e quem está.
Neste ponto, preocupámo-nos em testar o conceito de fronteira huma-
nizada, utilizando o caso das crianças refugiadas e concluindo que teorica-
mente é possível construir um modelo mais humanizado de fronteira. É
certo que este modelo depende de vontade política e de uma operacionali-
zação cuidada, mas, também é verdade que é possível.

Conclusão
Pretendemos com este texto indagar da flexibilidade do conceito jurídico
de fronteira, face aos recentes fluxos de refugiados a que se assiste na Euro-
pa e face às implicações em matéria de direitos humanos deles decorrentes.
Na primeira parte, introdutória, foi nossa preocupação situar o leitor no
campo teórico que serviu de base às reflexões seguintes. Referimo-nos aos
conceitos de fronteira, de refugiado e de criança. Na segunda parte, indagá-
mos da elasticidade do conceito de fronteira, à luz do Direito, sobretudo,
no caso dos movimentos de refugiados que têm chegado à Europa, tendo

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concluído que o direito internacional público clássico é mais rígido no que


respeita ao conceito de fronteira, ao passo que o direito internacional dos
direitos humanos se revela mais elástico, podendo auxiliar na flexibilização
e humanização do conceito de fronteira. Na terceira parte, ocorreu-nos tes-
tar o conceito de fronteira humanizada, utilizando o caso das crianças re-
fugiadas e concluindo que, teoricamente, é possível construir um modelo
mais humanizado de fronteira. É certo que este modelo depende de von-
tade política e de uma operacionalização cuidada, mas, também é verda-
de que é conceptualmente possível. Assim, e para concluir, poderemos afir-
mar que fronteiras humanizadas são aquelas em que o ser humano não seja
apenas considerado como clandestino e ilegal por non llevar papel, mas, sim
como pessoa.

Bibliografia
Betts, Alexander. Protection by Persuasion: International Cooperation in the Refu-
gee Regime. Ithaca, NY: Cornell University Press. 2009.
Dinh, Nguyen Quoc, DAILLIER, Patrick, PELLET, Alain e COELHO, Vitor Mar-
ques. Direito internacional público. 2a ed. Manuais universitários. Lisboa: Fun-
dação Calouste Gulbenkian. 2003.
Guerra Martins, Ana Maria. Direito Internacional Dos Direitos Humanos. Alme-
dina Editora. 2006.
Hathaway, James C. The Rights of Refugees under International Law. Cambridge:
Cambridge Univ. Press. 2005.
Machado, Jónatas. Direito Internacional: Do Paradigma Clássico Ao Pós-11 de Se-
tembro. 4.a edição. Coimbra Editora. 2013.
Martins, Rui Cunha. O método da fronteira: radiografía histórica de um dispositi-
vo contemporâneo (matrizes ibéricas e americanas). Coimbra: Almedina. 2008.
MOREIRA, VITAL et GOMES, Carla de Marcelino, Compreender os Direitos
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âmbito de Protecção de Um Direito Fundamental. Coimbra: Coimbra Edito-
ra. 2009.

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Convenção de Montevideu sobre os Direitos e Deveres dos Estados, 1933
Estatuto de Roma, Tribunal Penal Internacional, 1998, entrada em vigor em 2002

Sites referenciados
Gabinete de Documentação e Direito Comparado:
http://www.gddc.pt/
Conselho Português para os Refugiados:
http://www.cpr.pt/

Outros
Manu Chao, Clandestino, 1998.

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Fronteiras reais e simbólicas: a


segurança europeia no quadro das
relações da Rússia com o ocidente
Maria Raquel Freire 1

Introdução

A forma como o conceito de segurança é trabalhado e articulado no dis-


curso e na prática difere entre o ocidente e a Rússia, tal como o dis-
curso e a prática a este nível têm servido propósitos diferenciados. A fór-
mula relativa à identificação do ‘outro’ por relação ao ‘eu’ tem permitido
visões dicotómicas assentes em binómios como ‘parceiro’ ou ‘inimigo’, que
acabam por se traduzir em formulações simplificadas onde políticas de po-
der são legitimadas discursivamente, procurando ampliar o campo de ação
e reação política. Independentemente de a ameaça ser construída, real ou
percecionada, a construção discursiva que lhe está associada permite o de-
senho de respostas e a sua implementação, na articulação da política e da
prática. O mesmo se aplica ao conceito de fronteira, que nas suas dimen-
sões geopolítica ou ideacional/simbólica assume interpretações diferencia-
das, cuja construção narrativa legitima ou deslegitima a prática política.
Este capítulo adota uma perspetiva construtivista de segurança, onde a
difusão normativa, através de práticas de adaptação e /ou resistência ofere-
ce o quadro de análise para o desenvolvimento das relações da Rússia com

1.  A autora agradece financiamento para investigação no âmbito das Marie Skłodowska-Curie Innova-
tive Training Networks (ITN-ETN) do programa Horizonte 2020 – Programa-Quadro Comunitário de
Investigação & Inovação da União Europeia, grant agreement ‘CASPIAN - Around the Caspian: a Doc-
toral Training for Future Experts in Development and Cooperation with Focus on the Caspian Region’
(642709 — CASPIAN — H2020-MSCA-ITN-2014). Este capítulo tem por base trabalho desenvolvido
para um capítulo internacional a ser publicado num livro coordenado por Roger E. Kanet, com a Pal-
grave, e que se encontra em preparação no momento de conclusão deste texto.

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o ocidente. Associada à conceptualização de segurança, o entendimento


de fronteira surge nesta relação como central – ora constituindo-se como
uma questão técnica e administrativa, ora como uma questão de seguran-
ça, onde as dimensões política e social não podem ser descuradas. Assim,
este capítulo analisa a evolução da arquitetura de segurança europeia após
o final da Guerra Fria, com a reinvenção da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN), a restruturação da Organização para a Seguran-
ça e Cooperação na Europa (OSCE), a criação da Organização do Tratado
de Segurança Coletiva (Collective Security Treaty Organization, CSTO), bem
como das chamadas ‘parcerias estratégicas’ como pilares centrais ao rema-
peamento da segurança europeia. O capítulo argumenta que no processo
de consolidação da segurança europeia e ocidental forma criadas dinâmi-
cas de insegurança através de processos de inclusão/exclusão – que impli-
cam uma leitura elástica de fronteira, concretizada em arranjos coletivos
formais, em processos de alargamento de organizações internacionais, em
leituras de parcerias distintas – que se têm prolongado no tempo desde o fi-
nal da Guerra Fria até aos nossos dias.
A leitura de fronteira nestas diferentes dimensões mas implicando um
entendimento associado a dinâmicas de inclusão/exclusão tem potencia-
do maior ou menor cooperação na denominada Europa alargada, ou seja,
nas relações União Europeia (UE), Rússia e Turquia. Da perspetiva russa,
a atual arquitetura de segurança europeia não é equilibrada ou represen-
tativa, sendo por isso incapaz de responder aos desafios atuais. A propos-
ta avançada de desenho de um novo Tratado de Segurança para a Europa, a
criação da CSTO e a ideia da greater Europe, ou Europa alargada, são exem-
plos que o capítulo aborda e que ilustram estas críticas. Na perspetiva oci-
dental, a Rússia tem sido socializada em contextos diferenciados, tendo-se
tornado membro do Conselho da Europa, assinado o Acordo de Parceria
e Cooperação com a UE ou tendo-se tornado parte do Conselho OTAN-
-Rússia. Estas interações são entendidas como mecanismos informais de in-
tegração que visam a inclusão russa em instituições multilaterais ociden-
tais e, desse modo, visam também a eliminação de barreiras de perceção de

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ameaça permitindo uma Europa alargada ‘sem fronteiras’ construídas no


binómio ‘eu’/’outro’ e que, desse modo, permitam a construção de uma re-
lação de parceria e cooperação entre as partes. Contudo, os entendimen-
tos de segurança europeia quer no ocidente quer na Rússia são diferencia-
dos. E a tendência não tem sido para ‘desmontar fronteiras/muros/barreiras’,
mas ao invés para erigir novas linhas divisórias, reais, imaginárias e perce-
cionadas que têm contribuído para dinâmicas de insegurança nesta Euro-
pa alargada.
Assim, de que modo o processo de adaptação/resistência a normas se
traduz nas relações da Rússia com o ocidente? Qual o significado de ‘par-
cerias estratégicas’ e que implicações a questão da Ucrânia traz ao entendi-
mento destas e da própria segurança europeia? Significam as dificuldades
atuais nas relações da Rússia com o ocidente a construção de novas fron-
teiras políticas, sociais e de segurança nestas relações, através de diferentes
instrumentos, mas com uma mesma implicação de congelamento de dife-
renciais?

Difusão de normas: as dinâmicas políticas de aceitação/


resistência normativa
O papel das normas, da cultura e da identidade na mudança política tem
sido amplamente reconhecido na bibliografia de referência (Finnemore
and Sikkink, 1998; Katzenstein, 1996; Jepperson et al., 1996; Checkel, 1999,
2005). A combinação de fatores materiais e ideacionais no desenho e for-
mulação de políticas tem sido crescentemente tida como relevante face
a conceções estáticas de poder limitadas quando em face de motivações,
identidades e considerações normativas. Como Kowert (2010) afirma, esta
abordagem segue um enfoque construtivista relativo “à constituição so-
cial dos agentes (ou seja, identidade) e à regulação do seu comportamen-
to (ou seja, normas)”. A análise intersubjetiva da evolução política, através
deste olhar normativo, em articulação com leituras materiais de poder, ofe-
rece um entendimento das políticas desenvolvidas, simultaneamente mais
amplo e mais detalhado. Esta análise, nestes termos, encontra-se na inter-

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seção entre política doméstica e internacional, apesar de como argumen-


tado noutro contexto, esta inter-relação não necessitar necessariamente de
ser simétrica (Freire, 2012). O caso da Rússia é neste contexto muito rele-
vante, com as inter-relações interno/externo a serem claramente visíveis na
política externa: a consolidação de poder a nível doméstico permite a pro-
jeção das políticas externas, numa expressão de poder e influência da Rús-
sia num sistema internacional definido como policêntrico. Estas dinâmicas
serão melhor elaboradas aquando da análise da Ucrânia e das implicações
dos acontecimentos nesse contexto para a concetualização e operacionali-
zação da segurança europeia.
As normas tornaram-se parte fundamental da governação internacional,
fornecendo quadros referenciais para políticas e ação a nível internacio-
nal. De forma mais ou menos formal, as normas relativas a fronteiras, no
seu entendimento físico, administrativo e geográfico, mas também nas suas
dimensões política, de segurança, social ou mesmo cultural, por exemplo,
são centrais à definição e interpretação da segurança europeia nos seus di-
ferentes níveis (bilateral, multilateral, transnacional). As normas podem ser
definidas como “expetativas coletivas sobre comportamento adequado dos
atores com uma determinada identidade” (Jepperson et al., 1996: 54). As
normas evoluem, adaptando-se ao contexto e redesenhando o mesmo. Esta
natureza dinâmica das normas informa os processos de socialização e resis-
tência que produzem e nos quais são produzidas e reproduzidas. A difusão
normativa enquanto processo permite que as normas ‘viagem’, contudo não
assegura a sua implementação no ‘destino’, permitindo diferentes respostas,
incluindo aceitação/resistência, adaptação/contestação.
Isto significa que a difusão normativa pode permitir formatos de coo-
peração ou de competição, o que ajuda a melhor compreender dinâmicas
contraditórias que advém da prática política. Diferentes interpretações e
significado de conceitos como democracia ou intervenção são claros, uma
vez que as leituras dos mesmos nem sempre coincidem. Por exemplo, “o
entendimento coletivo de comportamento pacífico deve resultar em ulti-
ma instância em práticas pacíficas como a desmilitarização de fronteiras

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partilhadas ou a retirada de tanques de guerra como forma de gerar con-


fiança mútua”, o que significa que as normas são objeto de seleção política
e podem tornar-se parte de uma conduta normativa, ou quando em com-
petição serem eventualmente deslegitimadas (Koschut, 2014: 344). Esta re-
interpretação e relocalização das normas tem impacto nas relações e na
configuração da segurança europeia, como analisado em seguida.

A Rússia e o ocidente após o final da Guerra Fria: velhas e


novas fronteiras
O final da Guerra Fria implicou mudanças importantes no mapa europeu,
não só a nível político e administrativo, com novos países a surgirem e as
novas fronteiras no espaço pós-soviético a assumirem-se como o desenho
do novo mapa, mas também em termos sociais, económicos e de seguran-
ça. O novo mapa implicou uma leitura imediata de remoção de fronteiras
e barreiras também ideológicas e de maior aproximação entre dois gran-
des rivais por várias décadas – um ocidente neoliberal democrático e uma
União Soviética socialista e com um regime centralizado e de economia
planificada. A queda do Muro de Berlim foi, neste contexto, um momento
simbólico do derrube de fronteiras. Contudo, se o mapa europeu foi rede-
senhado administrativamente e em termos políticos, foi-o também noutras
dimensões. A dissolução do Pacto de Varsóvia e a reinvenção da OTAN são
um exemplo que se perpetua no tempo relativo à permanência de frontei-
ras não derrubadas.
A definição identitária na Europa, e da Europa, contribuiu também para
um novo desenhar de fronteiras em particular após o alargamento da UE
em 2004. Este significou essencialmente o aproximar das fronteiras ociden-
tais à Rússia. Mais do que os alargamentos da UE, foram os alargamentos
da Aliança Atlântica aqueles que mais impacto tiveram nas relações deste
bloco securitário com a Rússia. Ou seja, as fronteiras ocidentais assumem-
-se em diferentes níveis, com as fronteiras UE que diferem das fronteiras
OTAN, a serem dominantes na definição de segurança europeia, e a OSCE,
no seu quadro mais alargado, a não conseguir que a designação ‘de Van-

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couver a Vladivostock’ se materialize na elasticidade das fronteiras da se-


gurança europeia. A criação da CSTO, já denominada por alguns como a
‘OTAN do leste’ vem reforçar as fronteiras numa lógica securitária, e com
uma componente militar explícita. De facto, a questão das fronteiras assu-
me complexidade no quadro europeu, pela sua presença e pela sua ausên-
cia, mas acima de tudo e mais do que pela sua geografia, pelo seu significa-
do simbólico, identitário, cultural, económico e securitário.
A adesão da Rússia ao Conselho da Europa, a criação do Conselho
OTAN-Rússia, a renomeação da Conferência de Segurança e Cooperação
na Europa (CSCE) como OSCE, a assinatura do acordo de Parceria e Coo-
peração entre a Rússia e as Comunidades Europeias, o entendimento rela-
tivo a uma parceria Rússia-Estados Unidos da América, pareciam demons-
trar que a dimensão ocidental da difusão de formas havia ganho espaço. A
Rússia socializava nos princípios ocidentais e os princípios democráticos
tomaram forma na narrativa política. Contudo, esta atmosfera pró-ociden-
tal cedo deu lugar a uma postura diferenciada na construção das relações
entre o ocidente e a Rússia. Os processos de transição revelaram-se difíceis
e o apoio ocidental aos mesmos não correspondeu às expetativas. A contes-
tação à difusão normativa ocidental ganhou espaço, e estendeu-se até aos
nossos dias.
O reconhecimento da Comunidade de Estados Independentes (CEI)
como área vital para o interesse nacional russo, permeado pelo discurso de
ingerência ocidental neste espaço, como por exemplo no apoio às revolu-
ções coloridas, adicionou a esta alteração na postura russa. De facto, desde
o documento estratégico russo de política externa de 1993 é muito clara a
relevância dada ao espaço CEI nas políticas russas, bem como à necessidade
de procurar equilíbrios entre as dimensões ocidental e oriental das suas re-
lações. Esta política multivetorial tem sido reforçada no contexto pós-Ucrâ-
nia face às sanções em vigor, reforçando relações na América Latina e em
África. O tom mais duro no discurso russo relativamente ao ocidente tem
sido claro nos documentos de referência, com os mais recentes a sublinha-
rem o papel desestabilizador da OTAN, a interferência ocidental e o apoio

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às revoluções coloridas, bem como diferentes objetivos na Ucrânia, entre


outros (Russian Foreign Policy Concept, 2013; Russian Military Doctrine,
2014; Russia National Security Strategy for 2016, 2015).
O velho discurso do ‘inimigo’ e da ‘ameaça’ foi retomado e tem-se man-
tido parte da retórica oficial. A OTAN tem sido descrita como perpetuando
dinâmicas de exclusão, mantendo a Rússia aparte das decisões estratégicas
de segurança europeia. Documentos oficiais russos identificam o alarga-
mento da Aliança Atlântica como a principal ameaça externa à Rússia, e o
Conselho OTAN-Rússia não foi entendido em Moscovo como um meca-
nismo inclusivo, mas antes como uma adição da Rússia às discussões, mas
sem qualquer capacidade de verdadeiramente influenciar o sentido da de-
cisão. Além do mais, as normas de segurança promovidas na Europa, in-
cluindo através da OTAN têm sido contestadas. A movimentação de veícu-
los blindados e equipamento militar perto das fronteiras com a Rússia, ou
o projeto de defesa antimíssil dos EUA, são exemplos. A criação da CSTO
em 1992, liderada pela Rússia, foi chamada de ‘OTAN do leste’ como referi-
do, quando a decisão de criar uma força de reação rápida foi tomada. Nessa
altura, fevereiro de 2009, o então Presidente Dmitry Medvedev comentou
que estas forças “não seriam menos poderosas que as da OTAN” (Medve-
dev citado em RT, 2009). Mais recentemente, com os eventos na Ucrânia, as
tensões subiram de tom, incluindo a suspensão dos trabalhos no âmbito do
Conselho OTAN-Rússia (Statement by NATO Foreign Ministers, 2014), e a
realização de manobras militares quer por parte da OTAN quer da Rússia.
O “entendimento coletivo de comportamento pacífico adequado” que Kos-
chut (2014: 344) menciona não ganhou forma nas relações entre a Rússia e
a Aliança Atlântica.
A OSCE, saudada e contestada como promotora de normas, tem sido
acusada de replicar o discurso ocidental e de se render aos princípios oci-
dentais, excluindo outras perspetivas. No caso das negociações entre a Mol-
dova e a Transnistria, o não reconhecimento do princípio de ‘autodetermi-
nação’ tem sido objeto de críticas russas, apesar do princípio soberanista
que a Rússia tem avançado de não intervenção nos assuntos internos e do

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respeito pela integridade territorial dos estados. Normas de soberania –


onde uma conceção vestefaliana de território, fronteira e poder prevale-
ce – têm revelado interpretações divergentes de acordo com o contexto,
com a Ucrânia-Crimeia a representar um exemplo interessante (enquan-
to para o ocidente a Crimeia foi anexada, para a Rússia foi reintegrada; en-
quanto para o ocidente a integridade territorial ucraniana foi violada, para
a Rússia a Crimeia é legitima e historicamente parte da Federação Russa;
enquanto para o ocidente esta foi uma ação ilegal à luz das normas inter-
nacionais, para a Rússia as ações cumpriram com o princípio de proteção
de minorias). A interpretação díspar da violação de normas e de fronteiras,
quer geográficas e políticas quer de segurança, sociais e simbólicas, torna-
-se evidente.
A criação da CSCE em 1975 em Helsínquia, enquanto fórum de diálo-
go leste/oeste inclusivo, num contexto muito particular da Guerra Fria, foi
um passo fundamental na consolidação de confiança entre as partes e na
procura de uma Europa mais segura e mais estável. E deu frutos, permitin-
do diminuir diferenciais e oferecer um fórum de diálogo, apesar das mui-
tas dificuldades enfrentadas – as negociações relativas ao controlo de armas
convencionais (Tratado sobre Forças Convencionais na Europa – Tratado
CFE), por exemplo, foram tidas neste contexto. Foi deste modo, um fórum
reconhecido de promoção normativa de segurança europeia.
No contexto atual de tensão entre a Rússia e o ocidente, e já em 2008
aquando da guerra na Geórgia, têm sido avançadas propostas no sentido
do desenvolvimento de uma nova Helsínquia, retomando os princípios e o
espírito que em 1975 aproximaram as partes, no que já foi cunhado de ‘Hel-
sínquia II’. Em 2008 quando o então Presidente russo Medvedev avançou
com a proposta de um Tratado de Segurança Europeia a mensagem ineren-
te era clara – a segurança europeia nunca estará completa sem a Rússia. A
proposta nunca foi objeto de negociações objetivas e evoluiu em diferen-
tes iterações até ser ‘arquivada’, mas tornou-se simbólica no seu significado.
A Rússia procura um lugar e um papel nas questões de segurança europeia.
Tem, neste quadro, sublinhado o sentimento de exclusão das lógicas de se-

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gurança europeia, concentradas na OTAN, procurando assim também li-


mitar a influência dos EUA, e sinalizando a necessidade de desenvolvimen-
to de um sistema de segurança pan-europeu. Através de um novo arranjo
desta natureza, a Rússia asseguraria que nenhuma decisão de segurança se-
ria tomada sem ter em conta todos os interesses dos membros, detendo as-
sim direito de supervisão sobre a segurança europeia (Kanet e Freire, 2012).
A guerra na Geórgia em 2008 tornou-se expressão clara desta vontade russa
de ser ouvida e reconhecida como um ator relevante nas questões de segu-
rança europeia. As ações na Ucrânia, revestidas de um tom agressivo, reite-
raram isto mesmo. Deste modo, as questões de segurança e as linhas divi-
sórias (fronteiras simbólicas) tornaram-se extremamente divisivas entre as
partes, e assumiram também um novo lugar no discurso. A OSCE não con-
seguiu assumir-se, neste contexto de desentendimento, como o fórum pro-
motor de aproximação, quebrando barreiras e ultrapassando fronteiras.
Quanto à UE, o processo de alargamento no pós-Guerra Fria e a aproxi-
mação aos países da Europa Central e de Leste, bem como aos estados do
Báltico, permitiu o redesenho das fronteiras próximas à Rússia. O processo
não foi lido como hostil, embora a Rússia se tenha tornado crítica da ‘cober-
tura’ normativa que a UE tem usado em relação aos seus vizinhos na chama-
da ‘vizinhança partilhada’ – os países da Parceria Oriental (Arménia, Azer-
baijão, Bielorrússia, Geórgia, Moldova e Ucrânia). A política de vizinhança
desenvolvida pela União, que pretende promover relações de maior proxi-
midade da UE com estes estados, foi sendo interpretada na Rússia de forma
ambivalente, dado o entendimento de que os meios materiais à disposição
da mesma eram limitados, mas que os princípios normativos de base consti-
tuíam um fator de afastamento destes países em relação à Rússia.
O acordo legal que enquadra as relações UE-Rússia, o Acordo de Par-
ceria e Cooperação que entrou em vigor em 1997, e por um período de
10 anos, tem sido renovado automaticamente sem ter havido ainda capa-
cidade para renegociar um novo entendimento. Este arrastar das negocia-
ções é revelador da desconfiança e falta de partilha de princípio de base no
que foi denominado de uma “parceria estratégica”. O documento relativo

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aos ‘Quatro Espaços Comuns’ que foi assinado entre as partes em 2003 (e o
Roadmap em 2005) tem oferecido o guia de ação, embora as relações este-
jam bloqueadas me vários domínios devido aos acontecimentos na Ucrâ-
nia. Pelo caminho, a Rússia tem descrito a UE como um bloco hegemónico
que tem criado novas linhas divisórias na Europa – a abordagem da ‘wider
Europe’, que no entender de Moscovo tem evitado a promoção de uma Eu-
ropa multipolar, e a ‘greater Europe’ que a Rússia tem promovido, envolven-
do a UE, a Rússia e a Turquia como polos centrais na criação de normas. As
fronteiras simbólicas implicadas nestas duas leituras de Europa são muito
significativas no próprio desenho da relação.
Esta visão russa está em linha com a sua integração nas políticas de clu-
be dos BRICS2 que procura uma voz diferenciada para os países não-oci-
dentais. Contudo, a contestação à superioridade normativa ocidental não
significa que os BRICS pretendam o fim da ordem ocidental ou a substi-
tuição de instituições lideradas pelo ocidente, uma vez que os países BRI-
CS trabalham e querem continuar a trabalhar com o ocidente. Os BRI-
CS partilham o objetivo de contestação da postura hegemónica ocidental
que entendem como questionando o próprio princípio de soberania esta-
tal. Como Laïdi (2012: 614) argumenta, “enquanto eles não pretendem for-
mar uma coligação antiocidental com base numa contraproposta ou visão
radicalmente diferente do mundo, estão preocupados com a manutenção
da sua independência de julgamento e ação nacional num mundo que é
crescentemente interdependente em termos sociais e económicos”. Neste
sentido, os BRICS são um grupo conservador relativamente a partilha de
poder e autonomia, promovendo princípios de soberania e não interferên-
cia nos assuntos internos. Além do mais, são também eles parte da ordem
internacional liberal, que eles próprios pretendem desafiar, tornando o pró-
prio desafio limitado no seu alcance. A Rússia partilha esta perspetiva, com
a proposta do Tratado de Segurança Europeia ou de refundação da OSCE a
demonstrar a sua vontade de ser reconhecida como agente normativo.

2.  Os BRICS incluem o Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

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A permanência de desconfiança e leituras do ‘outro’ têm-se perpetuado


no tempo nas relações da Rússia com o ocidente. Estas permitem lógicas
de exclusão/inclusão, e a permanência de muros que deveriam ter sido re-
movidos há muito, e que têm impedido a construção de uma relação com
base numa verdadeira parceria e princípios normativos substanciais. A re-
invenção de organizações como a OTAN ou a OSCE após o final da Guerra
Fria adicionou mais um tijolo a estas paredes de desconfiança. Reconstruir
esta relação não é apenas urgente, como muito necessária para a segurança
europeia. O caso da Ucrânia é ilustrativo nesta matéria.

Ucrânia: que fronteiras?


A crise na Ucrânia recua às discussões sobre a possibilidade de integração
económica através da possibilidade de densificação de relações com a UE,
no quadro da assinatura de um Acordo de Associação e da área de comér-
cio livre associada a este, ou de assinatura de um acordo relativo ao estabe-
lecimento de uma união aduaneira com a Rússia. Um país que desde a sua
independência em 1991 prosseguiu uma política externa multivetorial, quer
negociando com a Rússia quer com a UE, viu-se confrontado com a neces-
sidade de fazer uma escolha. A política de ‘e/e’ deu lugar a uma não opção
– ‘ou/ou’. Os passos numa direção ou na outra, num processo que se reve-
lou complexo, apenas contribuíram para agudizar o diferencial. Os protes-
tos que começaram em Kiev e noutras cidades ucranianas, rapidamente es-
calaram para violência, materializando a divisão inscrita nesta abordagem
de escolha por integração num ou noutro modelo. As acusações mútuas so-
bre ‘quem’ iniciou a violência reforçaram o distanciamento, e a Rússia res-
guardada no que entende ser o seu droit de regard no espaço pós-soviético
demonstrou o seu apoio no leste do país, a grupos pró-russos, materializan-
do o seu descontentamento com o quadro geral das relações da Rússia com
o ocidente, e demonstrando a sua vontade de ser reconhecida como ator
normativo e com influência nas questões de segurança na Europa alargada.
A anexação da Crimeia na primavera de 2014 foi o culminar de um pro-
cesso onde os sentimentos russos de exclusão tiveram um destaque espe-

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cial. A Rússia procurou alcançar vários objetivos com uma ação: mostrar
vontade política e capacidade, reforçando apoios em casa e afirmando o seu
estatuto de grande potência em termos internacionais num contexto des-
favorável; clarificar os limites da política de vizinhança da UE; colocar a
OTAN numa posição difícil relativamente à resposta a dar face às ações rus-
sas; enviar um sinal de aviso aos estados pós-soviéticos sobre os limites das
opções políticas. A mensagem global toca a questão central da segurança
europeia, de como esta tem sido lida pela Rússia como exclusiva, e de como
Moscovo prossegue uma agenda de redefinição de configurações de segu-
rança de modo a tornar-se um ator reconhecido na ordem securitária euro-
peia. O referendo realizado no dia 16 de março de 2014, onde uma maioria
da população da Crimeia votou a favor da ‘secessão’ marcou o diferencial.
Acusada de violar normas fundamentais do direito internacional, a Rússia
respondeu com uma justificação baseada em princípios históricos e num
processo organizado que conduziu à livre expressão da autodeterminação.
Foi, nas palavras do presidente Putin, um processo “em total cumprimen-
to dos procedimentos democráticos e das normas internacionais” (Address
by Putin, 2014). Além do mais, as críticas que surgiram do ocidente foram
descritas como um espelho das próprias contradições ocidentais. Putin ci-
tou uma declaração norte-americana datada de 17 de abril de 2009, endere-
çada ao Tribunal Internacional relacionada com o Kosovo. Aí se podia ler
que “Declarações de independência podem, e muitas vezes fazem-no, violar
a legislação doméstica” (Address by Putin, 2014).
Os princípios da responsabilidade de proteger e autodeterminação têm
sido parte da retórica russa de intervenção, lidos como não interferindo
com o princípio soberanista que guia a política interna e externa russa.
Contudo, esta demonstração de força não deixa esconder a tensão no dis-
curso antiocidental de exclusão e imposição normativa, e de uma aborda-
gem reformista preocupada com os efeitos adversos que possam resultar
desta postura mais agressiva. Em agosto de 2014, Putin sublinhava que a
Rússia não se deve “afastar do mundo exterior”, reconhecendo a necessida-
de de manutenção de canais de diálogo e de ultrapassar as consequências

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da crise na Ucrânia, em particular, a questão das sanções, enquanto subli-


nhava também que “não os devemos deixar tratar-nos com desdém”, reco-
locando o discurso nos binómios inclusão/exclusão e exigindo um trata-
mento diferenciado pelos ‘parceiros’ ocidentais (RFE/RL, 2014). O discurso
que Putin fez após a anexação da Crimeia é muito expressivo do estado da
arte das relações Rússia-ocidente. Sumaria o confronto de perspetivas de
política externa onde a Rússia demonstra vontade e capacidade de proje-
ção de objetivos políticos, lidos no ocidente como combinação de políti-
cas de poder, influência e projeção de imagem de força. Esta leitura apon-
ta para um entendimento da Rússia como simultaneamente soberanista e
expansionista, como ilustrado no caso da Crimeia, e dessa forma, não sen-
do um ‘parceiro’ em matéria de segurança europeia. O alinhamento sobe-
ranista, combinado com uma política agressiva-defensiva no espaço pós-so-
viético, parece agregar os dilemas que a Rússia enfrenta. Como uma área
crescentemente heterogénea, o espaço pós-soviético é um espaço onde a
Rússia não tem influência ilimitada e o objetivo de uma ordem se seguran-
ça pan-europeia está longe de ser cumprido. Evitar a perda de influência
nesta área a favor do ocidente tornou-se central nas políticas russas, como
evidenciado nos casos da Geórgia e da Ucrânia. O posicionamento da Rús-
sia face a desenvolvimentos desfavoráveis, particularmente nesta área geo-
gráfica, levanta questões sérias sobre a gestão da segurança europeia além
UE. Demonstrando força a Rússia pode criar um impacto imediato, mas
não necessariamente ganhar influência. As leituras conflituantes da postu-
ra agressiva-defensiva jogam de forma favorável, mas também desfavorável
à Rússia.
A necessidade de encontrar uma via diplomática para reiniciar o diá-
logo político, e a cooperação nas diferentes áreas de atuação que a relação
bilateral prevê, parece ser reconhecida quer na Rússia quer no ocidente.
Mas os termos para tal não são claros. De novo, a narrativa do ‘eu’ e do ‘ou-
tro’ (Neumann, 1995; 2006), o discurso da inclusão/exclusão como prosse-
guido na Rússia e no ocidente, constitui obstáculo ao avanço de possibili-
dades criativas. Os acontecimentos na Síria reforçaram o entendimento de

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que a Rússia é um ator relevante, sentando-se à mesa negocial com as po-


tências ocidentais. O ganho imediato dos ataques aéreos militares russos
parece ter sido traduzido a nível diplomático. Contudo, não é claro se este
corresponde ao estatuto, e reconhecimento deste, que a Rússia procura. No
longo prazo, a desconfiança ainda prevalece nas relações. E isto pode signi-
ficar que o ganho russo na Síria, em termos do seu papel ao nível da cons-
trução de estabilidade, possa não ser estendido muito para além desse con-
texto. Em termos genéricos, isto significaria que as relações entre a Rússia e
o ocidente têm ainda um longo curso a percorrer antes de podermos defi-
nir linhas convergentes no domínio da segurança europeia. Isto pode tam-
bém significar que o efeito desestabilizador do estatuto das relações Rús-
sia-ocidente pode ser estendido no tempo, com consequências negativas
para ambos.
A definição relacional da Rússia com o ‘outro ocidental’ tem implica-
do uma leitura dual de políticas de cooperação e confrontação. Lendo o
‘eu’ como excluído de quadros de segurança, como a OTAN, a Rússia en-
frenta numa posição sui generis a dinâmica inclusão/exclusão, dado que se
encontra numa posição em que não está totalmente integrada, nem total-
mente excluída. Esta dinâmica aplica-se a outras instituições multilaterais e
replica-se na União Eurasiática, por exemplo, numa lógica inversa. A ques-
tão do diferencial Rússia-ocidente e a dimensão normativa não são novas.
O que é novo é a ambivalência destes processos de resistência e socialização
e o modo como eles têm informado as leituras destes binómios e da segu-
rança europeia. As políticas de resistência na Rússia tornaram esta dimen-
são mais clara, com a Geórgia e a Ucrânia a marcarem as mesmas, e a defi-
nirem novas fronteiras, físicas (anexação da Crimeia) e simbólicas (Acordo
de Associação UE-Ucrânia, sanções, entre outros) na relação da Rússia com
o ocidente.

Conclusão
As relações entre a Rússia e o ocidente atravessam um dos períodos mais
difíceis desde o final da Guerra Fria. O fim da fronteira leste/oeste parece

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algo distante no tempo, mas simultaneamente muito presente, face aos de-
senvolvimentos mais recentes de afastamento entre a Rússia e o ocidente.
Os acontecimentos na Ucrânia, incluindo a anexação da Crimeia, desafia-
ram os principais eixos estruturantes desta relação: as parcerias perderam
conteúdo, os acordos de cooperação foram esvaziados de conteúdo, as nor-
mas que pareciam guiar a segurança europeia revelaram-se inexpressivas.
Três ideias principais devem, deste modo, ser sublinhadas: primeiro, as
ações russas na Crimeia constituem uma violação séria do regime de fron-
teiras na Europa, e a instabilidade que permanece no leste do país não vai
reforçar a segurança europeia. Pelo contrário, estas ações trouxeram mais
insegurança para a Europa, e podem vir a gerar efeitos adversos nas rela-
ções com a Rússia, implicando um maior isolamento desta e a perpetuação
de fronteiras de distanciamento entre vizinhos europeus. Segundo, as críti-
cas sobre o ‘outro ocidental’ e os sentimentos duais de inclusão e exclusão
face à segurança europeia ficaram evidentes nas ações russas, demonstran-
do a vontade e capacidade russas para usar a força em defesa do que enten-
de como interesse vital. A resposta ocidental foi lenta, podemos mesmo di-
zer quase inexistente no tema Crimeia, permitindo espaço de manobra à
Rússia. Contudo, um ator não-cumpridor, que não apenas resiste à sociali-
zação de normas de segurança europeia, mas que viola regimes de seguran-
ça, poderá ser visto mais como ‘inimigo’ do que como ‘parceiro’. Esta linha,
ao invés de promover o fim de barreiras, contribui para reforçar os mu-
ros já existentes, solidificando as fronteiras materiais e simbólicas que fo-
ram sendo reconstruídas nesta relação. Terceiro, a necessidade de repensar
novos caminhos na restruturação das relações da Rússia e do ocidente tor-
na-se cada vez mais premente. Repensar a arquitetura de segurança euro-
peia num modelo mais inclusivo é um desafio que permanece, sendo que
as propostas de renovação da OSCE – o projeto Helsínquia II – parece não
acolher consenso. Redesenhar um novo entendimento entre a Rússia e es-
truturas multilaterais como a OTAN e a UE através de acordos de parceria
devidamente fundamentados em princípios partilhados, podem ser o ca-
minho para esta nova visão estratégica que ultrapasse a dicotomia ‘nós/eles’

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e consiga preencher os vários vazios que foram surgindo nas relações entre
a Rússia e o ocidente. Contudo, o caminho não se avizinha fácil.

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A fronteira na Europa entre idealismo


e realismo: para onde caminha a UE?
Teresa Cierco Gomes

Introdução

D esde o início do processo de integração na Europa que os signatários


do Tratado de Roma perceberam a importante ligação entre o esfor-
ço de integração e as fronteiras, estabelecendo, desde logo, no preâmbulo
do Tratado (1958), a determinação em “estabelecer os fundamentos de uma
união cada vez mais estreita entre os povos europeus” e “assegurar, median-
te uma ação comum, o progresso económico e social dos seus países elimi-
nando as barreiras que dividem a Europa”. Isto significava que, se estes Esta-
dos desejassem alcançar uma “união cada vez mais estreita”, tal exigiria uma
mudança sobre o entendimento de cada um em relação ao seu território e,
particularmente, da perceção sobre as fronteiras e respectivas funções. As
divisões físicas existentes entre os Estados membros foram sendo substituí-
das por um espaço comum, onde se promove a abertura das fronteiras, per-
mitindo desta forma atingir os objectivos da integração europeia. No âmbi-
to das teorias de integração, temos, por um lado, o neo-funcionalismo que
vê o processo de integração como transpondo fronteiras políticas, sociais e
económicas, diminuindo a importância das fronteiras internas da União.
Dentro do ideal da ‘Europa sem fronteiras’, a livre circulação é uma caracte-
rística essencial do processo de integração, promovendo um sentido de co-
munidade e uma identidade europeia. Por outro lado, temos a perspectiva
intergovernamental, onde a noção de segurança é colocada acima da liber-
dade de movimento. Os estados têm o direito de controlar as suas frontei-
ras e os fluxos migratórios, sendo este controlo uma expressão essencial da
soberania nacional.

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A opção de permitir ou evitar a migração difere entre os estados mem-


bros da UE devido à diversidade de culturas políticas e de tradição relativa-
mente à migração levando, em alguns casos, ao encerramento das frontei-
ras e à construção de muros. Estas barreiras físicas refletem o renascimento
de uma visão realista da fronteira e constitui um desafio para a Europa em
relação à sua unidade e solidariedade. Poderá ser este o princípio do fim do
Acordo de Schengen? O que vai acontecer com o projecto europeu, se cada
estado unilateralmente adotar uma estratégia para lidar com a imigração
ilegal e os refugiados que chegam à Europa? Pode a imigração levar a um
retrocesso do significado idealista de fronteira existente no espaço da UE?
Estas são algumas das questões a que iremos tentar responder.
O capítulo está dividido em três partes. A primeira parte permite uma
visão geral do quadro teórico que usamos para estudar as duas percepções
de fronteira que estão hoje em confronto na Europa. A percepção idealis-
ta, que segue uma visão neo-funcionalista, segundo a qual, as fronteiras são
apenas figurativas num espaço que se partilha e é comum, e uma percep-
ção realista, onde as fronteiras são entendidas ainda como elementos de so-
berania do Estado, e onde estes, individualmente, são os principais fornece-
dores de segurança.
A segunda parte do capítulo reflete sobre os fluxos migratórios com que
hoje a Europa se confronta e os desafios que estes representam para os Es-
tados europeus, argumentando que, a forma como estes têm vindo a res-
ponder a este desafio, coloca em perigo os princípios e valores que sempre
foram defendidos no âmbito da União Europeia, sobretudo no que diz res-
peito à defesa aos direitos humanos.
A terceira parte analisa criticamente duas reações diferentes à imigração
ilegal e aos refugiados: a da União Europeia enquanto organização inter-
nacional e a dos Estados membros da UE. Concluímos que a visão realista
da fronteira tem vindo a ganhar terreno e que isso pode significar o fim da
percepção idealista da fronteira na Europa.

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Duas visões diferentes de fronteira


A fronteira é entendida como um elemento essencial do estado soberano,
identificando e distinguindo o que está dentro (‘nosso’) e o que está fora
(‘outros’). Anderson e O’Dowd (1999: 595) descrevem as fronteiras da se-
guinte forma:

Elas são ao mesmo tempo ‘gateways’ e barreiras para o ‘mundo exterior’,


proteções e prisões, áreas de oportunidade e/ou insegurança, zonas de
contato e/ou de conflito, de cooperação e/ou competição, de identidades
ambivalentes e/ou afirmação agressiva da diferença.

De acordo com a perspectiva realista, todas as fronteiras agem da mes-


ma forma, tal como a territorialidade do Estado é indivisível e o estado tem
um controlo completo sobre o seu território delimitado. Para os realistas,
os estados são baseados em território. O princípio da integridade territorial
do estado soberano, dentro de fronteiras internacionalmente reconhecidas,
é um dos princípios mais importantes das relações internacionais. Como
O’Dowd (2002: 14) argumentou, as “fronteiras são uma parte integrante do
comportamento humano – elas são um produto da necessidade de ordem,
controlo e proteção na vida humana e refletem o nosso desejo de competir
pela semelhança e diferença, e de marcar uma separação entre ‘nós e eles’”.
No entanto, as fronteiras nem sempre são tão evidentes ou incontestadas.
Num mundo caracterizado pela globalização e regionalização, ainda exis-
tem muitos conflitos com base nos limites ou demarcações territoriais dos
estados. As fronteiras ainda são contestadas em vários lugares do mundo,
mesmo na Europa. Portanto, pode argumentar-se que as fronteiras não de-
sapareceram ou se tornaram irrelevantes, pelo contrário, elas continuam a
ser extremamente importantes para os estados, sobretudo para aqueles que
são marcadamente nacionalistas. Nestes, as fronteiras são percepcionadas
como uma forma de salvaguardar a segurança e soberania. Alguns autores
argumentam mesmo que a globalização aumentou a importância das fron-
teiras (Rudolph, 2005: 14). Elas são hoje mais complexas do que no passado

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e continuam a desempenhar um papel importante na política global e, so-


bretudo, na construção do ‘eu’ versus ‘outras’ identidades.
As fronteiras estão diretamente relacionadas com o estado e práticas
ideológicas como o nacionalismo, constituindo a base material de tais prá-
ticas e que se manifestam na territorialidade. A territorialidade é uma prá-
tica ideológica e de discurso que transforma os espaços nacionais e históri-
cos, culturais, e os sucessos económicos e recursos em espaços delimitados
(Sack, 1986; Paasi, 1996). A principal forma territorial da ideologia é o na-
cionalismo (Sack, 1986; Anderson, 1988), cujos proponentes muitas vezes
ganham algum do seu poder ideológico em discursos e conceção de polí-
ticas que fazem contraste entre ‘nós’ e ‘eles’. Este facto foi reconhecido por
teóricos que incidem os seus estudos nas fronteiras em vários contextos e
tem vindo a manifestar-se nos “discursos de política externa, nas práticas
educacionais e na cultura popular” (Paasi, 2011: 8). Apesar da globalização e
da aparente abertura das fronteiras, os estados ainda têm interesse em man-
ter o seu poder relativo na gestão da economia e na salvaguarda do bem-es-
tar dos cidadãos num determinado espaço, promovendo desta forma a or-
dem e a coesão social.
Nos últimos anos, duas tendências opostas e simultâneas foram sendo
reconhecidas na literatura a este propósito. Por um lado, a perda do signifi-
cado de fronteira no território europeu, resultante da propagação de inter-
dependências funcionais e de relações institucionais (Perkmann, 2003). Por
outro lado, numa tendência aparentemente contraditória, o reafirmar das
fronteiras, decorrente da reemergência dos processos de construção do es-
tado-nação (Scott, Van Houtum, 2009). Considerando que o primeiro fenó-
meno tem sido complementado por uma intensificação das relações trans-
fronteiriças e das parcerias, o segundo resultou numa maior securitização
da fronteira, através do controlo da imigração e das fronteiras físicas (Van
Houtum, Boedeltje, 2009).
Neste capítulo, argumentamos que a atual política externa dos estados
membros da UE tem vindo a refletir aspetos do realismo clássico. Em mui-
tos casos, tem sido praticamente ilustrando o conceito do papel central do

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estado nas relações internacionais, tendo como objectivo a salvaguarda do


seu poder e segurança, dando prioridade aos seus interesses nacionais, bem
como, à natureza de auto-ajuda da política externa e à importância das po-
líticas de poder nos assuntos internacionais. A forma como as relações in-
ternacionais em geral e alguns acontecimentos em particular, como os flu-
xos migratórios, são percecionados por parte dos estados membros da UE
reflecte a tese realista clássica do estado como o ator mais importante na
cena internacional. As relações internacionais continuam a ser as relações
entre os estados soberanos, sendo o papel de outros atores, como as organi-
zações internacionais meramente secundárias.
O fim da guerra fria criou uma estrutura dominada pela insegurança e o
principal objetivo dos estados consiste em preservar a sua segurança inter-
na, independentemente de quaisquer critérios morais. Neste contexto, os
estados deixam de estar recetivos à cooperação, e passam a ter como obje-
tivo a criação de fronteiras viáveis e defensáveis para salvaguardar a sua ‘se-
gurança interna’. Tendo como objetivo, a proteção das suas fronteiras, o es-
tado enfrenta desafios sobre o seu território e torna-se mais consciente da
importância do controlo das fronteiras. Esta visão colide com a percepção
idealista de fronteira por parte da UE que implica o respeito pela liberda-
de e igualdade das pessoas e requer um regime de fronteira aberta a todos,
salvaguardando deste forma os direitos básicos de livre circulação (Capor-
so, 2000: 1-5). O ideal de uma ‘Europa sem fronteiras’, que significa a dilui-
ção das fronteiras está no cerne do projecto europeu desde o início. Em
conformidade com os ideais da União Europeia, as linhas que delimitam
o território do estado ainda pode reter algum significado político, mas tal
vai diminuindo à medida que a integração se vai aprofundando com o sur-
gimento de “novas tendências políticas, económicas e de informação” (Ne-
wman, 2003: 133).
Do ponto de vista idealista, o poder do estado surge enfraquecido por
um conjunto de características, tais como, a especulação e o fluxo de capi-
tais, os elevados fluxos migratórios, a transferência de competências para
organizações como a UE e, até mesmo, por fenómenos transnacionais,

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como o terrorismo ou o crime organizado. É neste contexto que a coopera-


ção entre os estados passa a ser considerada essencial para prevenir e salva-
guardar a liberdade, justiça e segurança num espaço cujos valores e princí-
pios são a solidariedade e a ‘unidade na diversidade’. Contudo, as fronteiras
não estão a desaparecer na Europa. Para Kramsch, Mamadouh e Van Der
Velde (2004: 535), “as fronteiras europeias estão em vias de ser re-escritas
como pontos principais e pontos de ‘gateway’ dentro de uma Europa alar-
gada de regiões transfronteiriças”. Assim, elas estão a ser transformadas in-
ternamente e reforçadas externamente. Em resultado, “...para alguns obser-
vadores, a UE evoca uma política pós-vestefaliana e pós-moderna, que se
está a afastar de uma forte ênfase na delimitação do território. Em vez dis-
so, ela é caracterizada por múltiplos espaços, pela fluidez entre as regiões,
mercados e cidades conectadas por redes de comunicação e transporte e
atravessadas por fluxos de bens, pessoas, informações e capital” (Walters,
2004: 676).
Essa multiplicidade de espaços comporta uma grande variedade de
fronteiras, e leva a mudanças qualitativas sobre a forma como as frontei-
ras operam, em resultado da regionalização e da governação a vários níveis.
Sobre esta questão, Kratochwil (1986: 27) afirma que “as mudanças na fun-
ção das fronteiras através da história ajuda a destacar as diferenças na natu-
reza e nos padrões de interação de diferentes sistemas nacionais e interna-
cionais”. E, de acordo com Delanty e Rumford (2005: 120), esta “exige novas
formas de pensar sobre a espacialidade da política” e sobre a natureza e fun-
ções da fronteira no espaço da UE.
As fronteiras podem ser classificadas como territoriais, organizacionais
(funcional) e conceituais (Geddes, 2005: 789-790). As fronteiras territoriais
são os locais (mar, terra, ar) de entrada, onde o poder soberano do estado
é exercido. As organizacionais são os locais onde são especificadas as con-
dições para a participação no mercado de trabalho, o nível de bem-estar e
os direitos e deveres da cidadania nacional. As fronteiras conceituais abran-
gem um conjunto de preocupações centradas nas noções de pertença e de
identidade de várias comunidades (transnacionais, nacionais ou subnacio-

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nais), e nas linhas divisórias entre grupos étnicos e linguísticos, culturas ou


classes (Idem). Estes diferentes tipos de fronteiras são importantes para en-
tender o que está em jogo hoje na Europa.
Em jeito de balanço, podemos afirmar que nas fronteiras contemporâ-
neas da UE podemos encontrar, simultaneamente, uma dinâmica de inclu-
são, consistente com o advento de uma ordem pós-moderna que diminuiu
a importância das fronteiras, e uma dinâmica de exclusão, herdeira da or-
dem de Westphalia tradicional e da consequente construção de fronteiras.
Nesta última, o elemento essencial é o estado-nação. De acordo com o pon-
to de vista intergovernamental, o estado-nação continua a ser a autorida-
de final porque, mesmo quando as decisões adotadas obrigam a uma maior
cedência de soberania, ele tem de concordar explicitamente com essa ce-
dência. De acordo com esta perspectiva, os estados devem proteger e dar
prioridade aos seus interesses individuais. Assim, em teoria, nada para além
do governo legítimo é capaz de impor ao estado decisões juridicamente
vinculativas. Por sua vez, de acordo com a perspectiva neo-funcionalista, a
UE, enquanto instituição supranacional, tem poderes e competências que
permitem a adopção de medidas que são juridicamente vinculativas para
todos os estados membros, agindo de acordo com o interesse colectivo da
União. Tal resulta numa forte integração entre os estados, trazendo benefí-
cios para todos.
Neste contexto, Diez (2006: 239) argumenta que o paradoxo fundamen-
tal da integração europeia reside na importância decrescente das frontei-
ras no interior da UE se basear no reconhecimento das fronteiras nacio-
nais dos estados membros. Segundo Diez, só foi possível avançar com a
integração europeia porque se reconheceu implicitamente as fronteiras dos
estados membros, garantindo, portanto, a sua manutenção e significado
(Idem). A este propósito, também Grabbe (2000: 527) afirma que “a ideia
por detrás do desaparecimento das fronteiras na zona Schengen reside no
facto das fronteiras internas se terem tornado frágeis, face à externa que foi
reforçada, criando efetivamente uma zona maior de livre circulação, mas
com limites mais nítidos” sendo a entrada neste espaço estritamente con-

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trolada. Desta forma, podemos argumentar que os efeitos do aumento do


controlo na fronteira externa da UE resultam da necessidade de salvaguar-
dar a segurança do espaço comum de ameaças como o crime organizado,
o terrorismo ou a imigração ilegal. A securitização destes problemas aca-
ba por se reflectir na construção de fronteiras de identidade e no desenvol-
vimento de uma percepção negativa sobre o ‘outro’. E, este ‘outro’, que está
fora do espaço comum da UE, é alguém desconhecido sendo, por isso, mais
difícil criar uma relação de confiança ou de cooperação.1

Os fluxos migratórios
O pós-guerra fria colocou sérios desafios em determinados territórios, não
só, pelas divisões e criação de novos estados, por exemplo, como também,
pela grande mobilidade de pessoas que promoveu. A migração é muitas ve-
zes percecionada como um desafio e uma ameaça à estabilidade e seguran-
ça do Estado, levando a que este sinta necessidade de se proteger (Castles,
Miller, 2003).
Recentemente, a questão do terrorismo tem promovido ainda mais esta
abordagem securitária sobre a migração e tem colocado as fronteiras sob a
atenção dos governos europeus. A imigração ilegal é concebida como um
acontecimento que reflete a maleabilidade das fronteiras, necessitando por
isso de supervisão adicional. O controlo das fronteiras tornou-se uma preo-
cupação significativa na agenda política de muitos países europeus que se
confrontam com grandes fluxos migratórios nas suas fronteiras. As frontei-
ras passaram a estar monitorizadas, supervisionadas com ferramentas tec-
nológicas e medidas adicionais, para melhor controlar quem entra nos paí-
ses. Quando alguns Estados da Europa Central e de Leste fecharam as suas
fronteiras (ex: Áustria, Croácia, Hungria, entre outros) e usaram coerção
para restringir a liberdade de circulação, passaram a violar direitos huma-
nos. Podemos por isso afirmar que as fronteiras na Europa foram transfor-
madas em áreas de confronto moral: a necessidade de defesa da estabilida-

1.  A este propósito ver Neumann 1999.

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de e da segurança versus o respeito pelos direitos humanos. Como Jelena


von Helldorff (2015: 5) afirma a este propósito: “A política da UE está hoje
dividida entre duas agendas conflituantes. De um lado, a narrativa central
do projeto de integração da UE, que gravita à volta do conceito de constru-
ção de uma sociedade baseada na democracia, estado de direito e respeito
pelos direitos humanos. De outro lado, a segurança e a protecção das fron-
teiras, condições consideradas importantes para permitir a livre circulação
e garantir a segurança aos cidadãos europeus”.
Os atuais fluxos migratórios têm sido percecionados como uma amea-
ça à protecção do espaço europeu, especialmente tendo em conta a sua
dimensão. Tal motivou o Estado a ter que reconciliar a característica de
economia da fronteira aberta, com a sua natureza fechada em termos de se-
gurança. Para os nacionalistas, a imigração é uma clara ameaça à seguran-
ça da Europa (Collett, 2013). De acordo com o anterior Alto Comissário
das Nações Unidas para os Refugiados, António Guterres (2015), mais de
320.000 pessoas atravessaram o Mediterrâneo, um número que correspon-
de a duas vezes mais do que em 2014 e oito vezes mais do que em 2013. Estas
pessoas têm como países de origem, a Síria, o Iraque e o Afeganistão e, até
ao encerramento das fronteiras por parte dos países dos Balcãs, entravam
na Hungria ou na Croácia, e continuavam até chegar aos destinos mais po-
pulares: a Alemanha ou países da Escandinávia (Zalan, 2015: 1).
Perante estes fluxos migratórios de grande dimensão, os Estados mem-
bros têm vindo a securitizar a migração em geral, sem considerar a nature-
za de ‘fluxos mistos’ (imigrantes ilegais versus refugiados)2. A percepção dos
migrantes como constituindo uma ameaça à segurança do Estado tem sido
associada, não só, ao peso económico que implica atribuir o estatuto de asi-
lo a alguém e promover a sua integração, como também, o peso cultural e

2.  Um migrante económico é uma pessoa cuja principal motivação para sair o seu país de origem é me-
lhorar o seu nível de vida. Um refugiado é alguém que foge do seu país de origem porque está em cau-
sa a sua liberdade ou sobrevivência. Um requerente de asilo é alguém que pede o estatuto de refugiado.
O termo ‘migrante’ é visto como um termo genérico para todos os três grupos. Assim, todos os refugia-
dos são migrantes, mas nem todos os migrantes são refugiados.

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socioeconómico percebido no âmbito da segurança interna, do bem-estar,


dos postos de trabalho e das identidades coletivas (Boswell, 2003). Sobre
este assunto, Timothy Hammond (2015: 5) argumentou que: “A opção de
fechar as fronteiras na Europa (e perceber a imigração como uma ameaça)
irá provavelmente agitar dois pilares importantes por detrás da ideologia
da União Europeia: a liberdade de circulação (representada pelos Estados
membros do espaço Schengen), e o respeito pelos princípios humanitários
internacionais. A opção de abrir as fronteiras para aceitar requerentes de
asilo (e perceber a imigração como uma crise humanitária) provavelmen-
te irá intensificar preocupações europeias sobre a estabilidade económica e
segurança no trabalho, e aumentar as preocupações com as mudanças de-
mográficas de longo prazo”.
Muitas organizações não-governamentais acusam a Europa de violar os
direitos humanos dos migrantes.3 Os centros de detenção de migrantes e
refugiados em todo o continente europeu, foram acusados de abuso e de
negligência dos direitos humanos tal como aquele que está expresso no ar-
tigo III da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que proíbe o tra-
tamento desumano ou degradante. Em alguns Estados membros, como na
Itália e na Grécia, os migrantes e requerentes de asilo enfrentam multas e
deportação. Noutros países, como na Hungria, uma nova série de leis fo-
ram adoptadas em Setembro de 2015, permitindo à polícia entrar nos cen-
tros de detenção e atuar de forma sancionatória face àqueles que estão ile-
gais (Park, 2015: 5).
A atitude geral em relação à mobilidade humana na Europa é contradi-
tória. Por um lado, temos a imigração por parte de alguns dos países mais
pobres do mundo para a Europa, descrita em termos de imprevisibilidade,
e que é percecionada como uma ameaça para as sociedades de acolhimen-
to ao nível da identidade e da segurança pessoal. Por outro lado, no que res-
peita à migração interna de trabalho, a mobilidade dos cidadãos da UE foi

3.  Entrevista feita a um representante de uma organização não governamental em Skopje, Macedónia
em Abril de 2015.

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percebida como sendo uma ação sensível e organizada no início do pro-


cesso de integração europeia. Os diferentes alargamentos da UE, no entan-
to, mudaram essa perceção. Atualmente, dois terços dos europeus pensam
que há já muitos imigrantes na Europa (Vittorino, 2004). As atitudes em
relação aos imigrantes são geopoliticamente tendenciosas: especialmente,
no que se refere à imigração nos países desenvolvidos do Leste e do Sul da
Europa, onde esta é percebida como uma ameaça. A Espanha, por exem-
plo, tem 3,3 milhões de imigrantes, provenientes a maior parte da Europa e
América Latina. Os imigrantes nestes países são frequentemente associados
com o contrabando, o trabalho ilegal, drogas, problemas sociais, crime or-
ganizado, fundamentalismo e terrorismo.
Na visão dos nacionalistas, o multiculturalismo impulsionado pela mi-
gração simboliza um desrespeito e violação das fronteiras tradicionais do
Estado. Em muitos países europeus, partidos populistas têm reivindicado o
direito de proteger os seus lugares de origem da ‘contaminação’, restringin-
do o número de migrantes. A necessidade de proteger particularidades cul-
turais é expressa mais explicitamente em algumas comunidades, que defen-
dem que o direito da imigração é justamente limitado pelo direito de uma
comunidade política em preservar a integridade do seu modo de vida (Ha-
bermas, 1996: 513).
Os discursos onde a migração é representada como constituindo uma
ameaça à segurança da sociedade ou do indivíduo, tornaram-se uma parte
natural da política ocidental e da cobertura dos media. Mesmo instituições
internacionais como a NATO, UE ou a OSCE colocaram a migração nas
suas agendas de segurança (Bigo, 2000: 123). Estes discursos que interligam
as questões da migração com as da segurança converteram-se desta forma
em verdades incontestadas que não podem ser contestadas (Foucault, 1994).
Neste processo, a noção de segurança é colocada acima da liberdade de mo-
vimento. As “fronteiras representam a essência da condição de Estado [...] e
uma das suas realizações mais visíveis” (Zaiotti, 2011: 2), portanto, o direito
dos Estados em controlar as suas fronteiras e a circulação de estrangeiros en-
tre eles, é uma expressão essencial da soberania nacional. Mas, a percepção

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em como permitir ou evitar a migração difere entre os Estados membros da


UE devido a diferentes culturas políticas e tradições relativamente à migra-
ção. Isso faz da política de migração uma questão interna sensível, em que a
soberania nacional é, tal como Bache e Geddes (2011: 13) apontam, “zelosa-
mente guardada”. No entanto, a migração tem também uma dimensão euro-
peia. Sem cooperação, a negação de asilo por parte de um Estado membro
leva a que, automaticamente, a responsabilidade passe para outros estados,
provavelmente, pertencentes também à União. Assim, com o fechar das po-
sições geográficas e das fortes interdependências entre os Estados membros
da União, especialmente através de Schengen, a sua política de migração afe-
ta mutuamente a ação de uns e dos outros no controle da migração.
Na próxima parte analisamos como a UE tem reagido à imigração ile-
gal, oferecendo uma solução neo-funcional, a agência da Frontex. E, argu-
mentamos que, quando isso não resolveu o problema, os Estados mem-
bros da UE, apelaram à sua soberania em salvaguardar os seus territórios
e cidadãos, respondendo de uma forma muito realista, fechando as fron-
teiras e erguer cercas e muros. Como vamos ver, as disputas sobre o Espaço
Schengen ilustra as dificuldades dos estados membros da UE em encontrar
uma solução comum para o problema securitizado da migração. As solu-
ções apresentadas têm sido dominadas pela inconsistência e por uma tenta-
tiva um pouco desesperada por parte das instituições europeias em manter
a gestão da migração ao nível da UE.

A resposta da UE
O Acordo de Schengen, que estabelece uma zona de livre circulação sem
fronteiras, foi assinado em 14 de Junho de 1985 e consistiu, nos seus primei-
ros anos, de um acordo intergovernamental entre os Estados do Benelux, a
República Federal da Alemanha e da França (Collett, 2013; Comissão Euro-
peia, 2014). Em 1997, com a assinatura do Tratado de Amesterdão, o Acor-
do de Schengen tornou-se parte integrante da UE (Collett, 2013). De acordo
com a Comissão Europeia de Assuntos Internos, o Espaço Schengen ba-
seia-se no seguinte:

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A livre circulação de pessoas é um direito fundamental garantido pela


UE aos seus cidadãos. [...] A cooperação no espaço Schengen aumen-
ta essa liberdade, permitindo aos cidadãos atravessar as fronteiras inter-
nas sem serem submetidos a controlo nas fronteiras. O Espaço Schengen
sem fronteiras garante a livre circulação de mais de 400 milhões de cida-
dãos da UE, bem como, de muitos cidadãos não comunitários, empresá-
rios, turistas ou outras pessoas legalmente presentes no território da EU.
(Comissão Europeia 2014)

A livre circulação foi acompanhada pelo controlo, esperando que os Es-


tados que mostraram vontade em aderir “assumam a responsabilidade pelo
controlo das fronteiras externas em nome dos outros Estados de Schengen”
e cooperem “com as agências de aplicação da lei noutros Estados Schengen,
a fim de manter um alto nível de segurança quando o controlo nas frontei-
ras entre os países Schengen forem abolidos” (Idem).
Assim, o Acordo tem dois lados diferentes: procura assegurar a livre cir-
culação de viajantes, migrantes e trabalhadores internamente e também
tem o objetivo de controlo rígido nas fronteiras externas, reduzindo a imi-
gração ilegal para a área. Cada país concordou em ter em conta o interes-
se de todos os estados membros na recusa de entrada aos “estrangeiros que
representam uma ameaça para a ordem pública, a segurança nacional ou
as relações internacionais de qualquer membro de Schengen” (Carr, 2012).
De acordo com a legislação comunitária, as fronteiras externas da UE
são as “fronteiras terrestres dos Estados membros, incluindo fronteiras flu-
viais e lacustres, as fronteiras marítimas, os aeroportos, portos fluviais, por-
tos marítimos e portos lacustres, desde que não sejam fronteiras internas”
(Comissão Europeia, 2006). Nos últimos anos, as fronteiras externas do es-
paço Schengen tornaram-se elementos de infra-estruturas de controlo e de
vigilância num mundo dinâmico caracterizado por constantes fluxos de
pessoas, ideias, ideologias e bens, e por um receio crescente do terrorismo.
Mas, apesar das actuais ameaças à segurança das fronteiras da UE não se-
rem tradicionais, as respostas a estas são tradicionais devido à predominân-

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cia de medidas baseadas no reforço do princípio da territorialidade (Wal-


ters, 2006: 141-159).
Em dezembro de 2001, o Conselho Europeu anunciou que uma “me-
lhor gestão das fronteiras externas da União contribuirá para a luta contra
o terrorismo, as redes de imigração clandestina e o tráfico de seres huma-
nos” (Hobbing, 2006: 168). Isto deu origem a conjunto de várias sugestões
que focavam a unificação e a melhoria dos mecanismos de controlo (Idem).
Em 2002, sob a égide da Instancia Comum de Profissionais das Fronteiras
Externas, seis centros nacionais de controlo das fronteiras foram estabele-
cidos com o objetivo de promover uma maior cooperação no domínio da
migração, asilo e segurança. E, finalmente, em 2004, foi criada a Agência
Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras dos Estados
membros da União Europeia (Frontex) como parte do Programa de Haia.4
A Frontex constitui uma tentativa neo-funcional por parte da UE em unir
os Estados membros, mudando o foco de migração interna para imigração
de países terceiros, ilustrando a ameaça como vindo de fora, e não de den-
tro. A criação da Frontex tornou possível intensificar a cooperação de con-
trolo das fronteiras já iniciada entre os membros de Schengen. Os objetivos
da Agência consistem em fortalecer a gestão integrada das fronteiras, a vigi-
lância dos postos fronteiriços e a coordenação da exclusão dos cidadãos ex-
tracomunitários (Heijer, 2012). A agência “promove, coordena e desenvolve
a gestão das fronteiras europeias em conformidade com a Carta dos direi-
tos fundamentais da União Europeia, aplicando o conceito de Gestão Inte-
grada de Fronteiras” (Frontex 2014), constituindo-se assim como uma enti-
dade que coordena e harmoniza o controlo da fronteira externa europeia.

4.  O Programa de Haia plurianual foi aprovado no Conselho Europeu de 4 e 5 de novembro de 2004,
e estabelece 10 prioridades para a União, com vista a reforçar o espaço de liberdade, segurança e justiça
em cinco anos. O Programa de Haia visa especificamente melhorar a capacidade da UE e dos seus esta-
dos membros no seguinte: garantir os direitos fundamentais, a salvaguarda do acesso à justiça, comba-
ter o crime organizado, reprimir a ameaça do terrorismo, oferecer proteção aos refugiados, regular flu-
xos migratórios e controlar as fronteiras externas da União. Para mais informação sobre este programa,
visite o seguinte site: http://eur-lex.europa.eu/legal-content/BG/TXT/?uri=uriserv:l16002.

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Por fim, é necessário referir que a Comissão sublinha a soberania nacional


de cada um dos Estados membros. É por isso que cada estado ainda é res-
ponsável pelas suas próprias fronteiras, independentemente da coordena-
ção e da assistência da agência.
A Frontex foi complementada por três mecanismos de controlo de pré-
-entrada – o destacamento de agentes de imigração para países terceiros,
sanções aos transportadores e a obrigação de visto para entrar na UE – que,
pela primeira vez, trouxe o controlo da migração para fora do território da
União Europeia (Heijer, 2012). Os agentes são destacados por forma a facili-
tar o intercâmbio de informação e a fazer análise de risco das tendências de
imigração (Lemberg-Pedersen, 2012).
A Agência, para além de acordos bilaterais, tem conduzido operações
nos territórios de Estados não membros com o objetivo de prevenir os mi-
grantes cheguem à fronteira da UE (Idem). Um exemplo de tais ações são
as operações HERA realizadas entre 2006 e 2007 (Idem)5.
Depois de 2011, a Primavera Árabe trouxe um pequeno fluxo imigração
para a UE. Consequentemente, a Comissão Europeia providenciou um finan-
ciamento adicional para a Frontex, a fim de estabilizar a situação que era perce-
cionada como uma ameaça para a UE (Comissão Europeia, 2011). A Comissão
apelou à solidariedade entre os estados membros, oferecendo assistência àque-
les que eram mais afectados por este fluxo (Idem). No entanto, a solidarieda-
de e partilha de encargos foram muito contestados no âmbito da cooperação
da UE em matéria de imigração. Enquanto os estados membros com frontei-
ras externas apelavam à solidariedade e redistribuição dos imigrantes, os esta-
dos membros sem fronteiras externas culpavam os primeiros de não cumprir o
compromisso de proteger a fronteira externa da União (Hobbing, 2006).
Em 2013, o Conselho da União Europeia e o Parlamento Europeu acor-
daram sobre a reforma do pacote legislativo de Schengen. As disposições

5.  Espanha, Itália, Portugal e Finlândia forneceram aviões, helicópteros e navios para as operações que
decorreram, em parte, nas águas territoriais do Senegal, Cabo Verde e Mauritânia e, em parte, no espa-
ço aéreo do Saahara.

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existentes foram alteradas e foi ativada “a reintrodução temporária dos con-


trolos nas fronteiras internas em circunstâncias excepcionais” (Conselho da
União Europeia, 2013: 1). Uma das pedras angulares da União Europeia, a li-
vre circulação, foi assim restringida, passando as fronteiras internas a pode-
rem ser restabelecidas quando surgem “ameaças graves [previsíveis ou ur-
gentes] para a ordem pública ou a segurança interna” (Idem: 3). Os Estados
passaram a ter o direito de restabelecer o controlo de fronteira nas frontei-
ras internas se outro membro de Schengen negligenciar as suas obrigações
a este nível (idem: 4).
Em conformidade com o Regulamento de Dublin, revisto em 2013, os
requerentes de asilo devem permanecer no primeiro país europeu onde en-
tram, sendo este o único responsável pela análise dos pedidos de asilo dos
migrantes. Os migrantes que viajam para outros países da UE podem ser
deportados de volta para o país da UE por onde entraram. Assim, “o peso
da responsabilidade recai desproporcionalmente sobre os estados de en-
trada com fronteiras expostas” (Parque, 2015: 4). Mas, Dublin não tem fun-
cionado na prática, porque os países entrada (Itália e Grécia) pararam de
cumprir o que diz a Convenção e, em consequência, os países do norte da
Europa (Alemanha e Suécia) têm recebido a maioria dos pedidos de asilo
feitos no espaço da UE (Idem).
Em meados de 2015, a Alemanha suspendeu a aplicação da Convenção
de Dublin para os requerentes de asilo sírios, o que efetivamente parou
as deportações destes de volta ao país europeu por onde tinham entrado.
Contudo, repôs o controlo ao longo da sua fronteira com a Áustria. Esta
medida foi seguida pelos Países Baixos, Áustria e Eslováquia. Nesta altu-
ra, “a chanceler alemã, Angela Merkel advertiu que o futuro de Schengen
estava em risco, a menos que todos os estados membros da UE fizessem
a sua parte para encontrar uma distribuição mais equitativa dos imigran-
tes” (Idem). Na sequência desta declaração, em setembro de 2015, os minis-
tros da UE concordaram em proceder à reinstalação de 120.000 migrantes
da Grécia e da Itália entre vinte e três Estados membros, com o objetivo de
aliviar o peso sobre estes dois países. Este sistema de quotas voluntário foi

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aprovado com as objecções da República Checa, Hungria, Roménia e Eslo-


váquia. Contudo, os críticos desta abordagem argumentam que a livre cir-
culação dentro do espaço Schengen anula efetivamente as quotas nacionais
de reinstalação (Parque, 2015: 7).

A construção de muros nas fronteiras


A política de imigração já não é exclusiva do Estado-nação. Após o Tratado
de Amesterdão, (considerado o ponto de partida), passou a ser juridicamen-
te vinculativa a legislação da UE neste domínio. Aqui, a palavra “europeiza-
ção” é central. Basicamente, significa, alargar o domínio da unidade compe-
tente pela formulação de políticas da área nacional para a europeia. Além
disso, o termo refere-se ao processo de delegação crescente de competên-
cias nacionais para a UE mas, a literatura sobre ‘europeização’ também o usa
para descrever a repercussão deste desenvolvimento a nível nacional (Faist,
Ette, 2007). Ambos os significados são relevantes aqui, uma vez que, a trans-
missão de competências ao nível das políticas migração e de fronteiras para
a UE, assim como, o facto de passar de a legislação neste domínio passar a
ser juridicamente vinculativa, limita a soberania nacional dos Estados mem-
bros em determinar a sua própria política de migração. A questão consiste
em saber se os Estados membros da UE estão a colocar o seu interesse nacio-
nal acima da cooperação da UE, arriscando desta forma uma violação da le-
gislação europeia, sobretudo no que se refere aos direitos humanos.
Até agora, alguns Estados membros têm repelido a imigração irregular
no seu território e contestado a europeização estabelecida que lhes retirou
competências nesta matéria. Desta forma, podemos argumentar que a cri-
se atual do sistema de Schengen mostra a dificuldade da UE em gerir os re-
centes fluxos migratórios ilegais com que a Europa se defronta. A europei-
zação desta área política é uma medida de compensação pela abolição das
fronteiras internas e deve fazer da fronteira externa uma barreira eficaz, que
separa aqueles que estão dentro e aqueles que estão fora. Embora as polí-
ticas da UE em matéria de fronteiras e migração tem rotulado os imigran-
tes ilegais como “indesejados” no território nacional e comunitário (Zaiot-

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ti, 2011: 72), o recente encerramento das fronteiras e a construção de cercas


e muros, mostra que a UE não tem sido capaz de oferecer aos estados mem-
bros o grau de recusa que eles consideram necessário. A UE não conseguiu
impedir os sírios de alcançar ilegalmente as fronteiras da UE. Desta for-
ma, os Estados membros têm procurado recorrer a medidas de implemen-
tação do seu próprio interesse, movidos por uma perspectiva muito realis-
ta da fronteira. Do seu ponto de vista, a cooperação europeia e as regras de
Schengen são obstáculos à recusa de imigrantes irregulares. Consequente-
mente, têm tentado evitar esses obstáculos, reforçando a sua soberania na-
cional e melhorando a capacidade de proteção do seu território e dos respe-
tivos cidadãos contra ameaças externas. Os estados membros da UE foram
desta forma mais rápidos a agir por conta própria, falhando o compromis-
so com valores comuns de partilha equitativa de responsabilidades. De fac-
to, algumas das medidas adoptadas pelos Estados membros pode ser des-
crita por falta de solidariedade e ausência de visão de longo prazo para um
problema que é cada vez mais importante (Oultremony, 2015: 2).
A Hungria, por exemplo, ergueu uma barreira de arame farpado ao lon-
go da sua fronteira sul com a Sérvia. Esta teve como objetivo conter o fluxo
de migrantes e refugiados que viajavam através da Hungria naquela que era
designada a ‘rota Oeste dos Balcãs’. A Hungria faz parte da zona Schengen
(viajar sem passaporte dentro da UE), tal significa que, a partir do momen-
to em que os imigrantes entrarem no país, eles podem viajar livremente
por todo o espaço Schengen, sem qualquer controlo nas fronteiras. Du-
rante o ano de 2015, a Hungria, serviu como ponto de entrada na UE para
aqueles que entraram a partir da Grécia e dos Balcãs (Taylor 2015). Mais de
60.000 pessoas entraram ilegalmente na Hungria durante os primeiros seis
meses de 2015, um aumento de quase 900% em relação ao mesmo período
de 2014 (Kern, 2015). Cerca de 95% dos migrantes que entraram na Hungria
– a maioria proveniente do Afeganistão, Iraque, Síria, Somália e Kosovo –
tinham atravessado a Sérvia que, ao contrário da Hungria, não é membro
da UE. De acordo com uma pesquisa de opinião pública, 46 por cento dos
húngaros entrevistados acreditavam que nenhum requerente de asilo de-

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veria ser autorizado a entrar na Hungria (Parque, 2015: 4). E, com uma per-
cepção muito realista de sua fronteira, o chanceler húngaro Peter Szijjarto
justificou as medidas como necessárias para defender o seu país, afirmando
que: “O governo húngaro está empenhada em defender a Hungria e defen-
der o povo húngaro da pressão migratória” (Deadern, 2015).
Num contexto semelhante, também a Grécia encerrou a sua fronteira ter-
restre com a Turquia através da construção de um muro de 6,5 km em 2012
e colocou cerca de 1.800 guardas armados ao longo de 110 km de fronteira.
Mas, com a adopção destas medidas, o fluxo de refugiados não só não parou,
como aumentou (FitzGerald, Rona-Tas, 2015). Os imigrantes alteraram a rota
passando a entrar na Grécia por via marítima, através do arquipélago Egeu
que, em vários pontos, se encontra apenas a alguns quilómetros da Turquia.
Também a Bulgária construiu uma barreira de 33 km, de três metros de al-
tura de arame farpado ao longo de sua fronteira com a Turquia, num esfor-
ço para limitar o fluxo de migrantes. O Ministério da Administração Interna
também colocou mais de mil policiais para patrulhar a fronteira com a Tur-
quia (Kern, 2015). Em Calais, o governo britânico gastou cerca de US$ 10 mi-
lhões para construir uma das melhores barreiras à volta do túnel da Canal
da Mancha, que permite a ligação ferroviária entre a França e a Grã-Breta-
nha, que recentemente atraiu um número relativamente grande de imigran-
tes (Taylor, 2015). Além disso, as barreiras em torno dos enclaves espanhóis de
Ceuta e Melilla em Marrocos, aumentaram significativamente em 2005, mas
pouco fizeram para conter o fluxo de migrantes para a Europa. A polícia re-
gistrou mais de 19.000 tentativas de passar a barreira em Melilla em 2014, um
aumento de 350% face a 2013. Quase 7.500 migrantes entraram com sucesso
em Ceuta e Melilha, em 2014, incluindo 3.305 da Síria (Kern, 2015). A Áustria
parou de processar as solicitações de asilo de 13 de junho de 2015, num esfor-
ço para tornar o país “menos atraente” para os imigrantes em relação a outros
países da UE.6 A 1 de julho de 2015, a Dinamarca anunciou que “iria cortar os

6.  Como é referido por Kern (2015), “De acordo com o Ministro da Administração Interna austríaco
Johanna Mikl-Leitner, Viena “travou o ‘expresso’ do asilo austríaco”, onde os pedidos eram processados

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benefícios para os requerentes de asilo com vista a diminuir o número de re-


fugiados que chegam ao país. De acordo com as estatísticas, três em cada qua-
tro refugiados que vieram para a Dinamarca, no início dos anos 2000, estão
desempregados dez anos depois” (Idem).
No entanto, construir muros/barreiras cada vez mais altos ou fechar
fronteiras resolve poucos problemas para além de incorrer em custos hu-
manos e financeiros graves. O controlo das fronteiras é um assunto com-
plexo. Os governos tentam controlar a entrada de imigrantes, a ameaça pro-
veniente do terrorismo, epidemias, tráfico ilegal de bens, evitando direitos
alfandegários. Mas, as barreiras físicas não conseguem travar nenhum des-
tes fluxos (FitzGerald, Rona-Tas, 2015).
A crise migratória na Europa revela as profundas divisões existentes no
seio da UE perante um fluxo sem precedentes de imigrantes ilegais (mais
de 150.000 migrantes atravessam o Mediterrâneo para a Europa durante os
primeiros seis meses de 2015). Os Estados membros da UE mudaram deci-
sivamente a sua forma de agir, colocando os seus próprios interesses nacio-
nais acima da noção de solidariedade da UE, pondo em perigo os princípios
e valores como a democracia, estado de direito e direitos humanos, e o sis-
tema sem fronteiras de Schengen, um dos princípios fundamentais da UE.
Os países da UE como a Hungria ou a Grécia nunca serão capazes de
tratar eficazmente a crise dos refugiados por si próprios. Logo, a UE deve
ser capaz de provar aos seus Estados membros que é capaz de defender o
seu território de ameaças externas encontrando uma resposta coletiva para
este problema.7

Conclusão
A reação coletiva da UE para o fluxo de imigrantes ilegais tem sido consi-
derada de uma forma ad hoc e tem-se centrado mais na segurança das fron-

num período médio de quatro meses, mais rápido do que em qualquer outro país da UE. Os pedidos de
asilo para a Áustria subiram quase 180% nos primeiros cinco meses de 2015, para 20.620, e estão a cami-
nho de atingir 70.000 até o final do ano”.
7.  Algumas destas soluções colectivas podem ser analisadas em Oultremont, 2015.

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teiras do espaço europeu do que na proteção dos direitos dos imigrantes e


refugiados. A forma como os estados membros da UE têm reagido, coloca
em perigo os valores que a UE promove e defende, sobretudo, ao nível dos
direitos humanos. Não devemos esquecer que a UE é uma referência para
outros países, influenciando de forma positiva ou negativa a forma como
estes se comportam em situações semelhantes. A UE tem assim, responsabi-
lidades nesta matéria. É necessário encontrar uma resposta coletiva para o
problema da imigração ilegal. Como Park (2015: 8) afirma a este propósito,
“os planos de quotas e as operações navais podem ajudar os estados mem-
bros da UE a gerir melhor esta crise, mas os especialistas alertam que estas
propostas por si só, não vão conter o grande fluxo de imigrantes. Para isso,
os líderes europeus devem enfrentar as causas profundas da migração, aju-
dando a intermediar um fim à guerra civil na Síria, restaurar a estabilidade
na Líbia, e aumentar a ajuda à África subsaariana”.
O facto dos partidos nacionalistas estarem a ascender em muitos dos es-
tados membros da UE, assim como as preocupações com o terrorismo is-
lâmico, levou os estados membros a adoptarem um conjunto de medidas
individuais para se protegerem. Esta reação reflete uma perceção negativa
face à capacidade da Europa em resolver estes novos desafios. Esta perce-
ção fragiliza e vulnerabiliza a União face às ameaças externas. Neste contex-
to, a segurança nacional tem-se tornado prioritária, e uma percepção realis-
ta de fronteira tem ganho espaço face a uma percepção mais idealista que
comporta uma maior solidariedade e onde os direitos humanos são pre-
servados.
Até agora, a vulnerabilidade da UE a este nível é evidente. Alguns Esta-
dos-Membros não são capazes de respeitar as suas obrigações em termos de
assegurar um controlo eficaz das suas fronteiras, e a Frontex não foi capaz
de resolver de forma eficaz ou encontrar uma solução para o problema. En-
tre janeiro e novembro de 2015, quase 1,5 milhões de imigrantes entraram
por pontos de passagem ilegal de fronteira no espaço da União Europeia
(EU, 2015: 2). Ao passar as fronteiras externas da UE de forma ilegal, não
foram sido identificados, registados ou sujeitos a verificações de seguran-

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ça (Idem). Como a Comissão Europeia (2015: 2) argumenta, “tal coloca em


causa a coerência do espaço Schengen”, com alguns Estados membros a re-
introduzir controlos temporários, a fechar as fronteiras e a construir barrei-
ras e muros nas suas fronteiras.
As fronteiras externas da UE, fronteiras nacionais em teoria, tornaram-
-se gradualmente uma preocupação da UE. Embora exista uma perspeti-
va neo-funcional que apela à repartição dos encargos e de uma maior soli-
dariedade face ao problema, o processo tem sido objecto de acusações e de
transferência de responsabilidade, o que nos leva a perguntar onde é que
está a UE quando é necessária? Porque é que a UE não é capaz de chegar a
uma resposta comum para a crise de imigração?
A securitização da migração no discurso da UE levou à implementa-
ção de práticas e de tecnologias numa base individual, onde os estados ten-
tam proteger-se a si próprios como se a UE não existisse, lembrando-nos os
princípios clássicos do realismo. Assim, nesta fase, é importante que a UE
seja capaz de encontrar uma resposta colectiva tendo em conta os seus va-
lores e princípios que estão inscritos no Tratado de Roma desde sua fun-
dação. E, o único caminho possível para alcançar este objectivo consiste
em equilibrar a necessidade de proteção com a necessidade de fronteiras
seguras.

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A governação das fronteiras


da União Europeia: tecnologia,
externalização e accountability
Helena Carrapiço 1

Introdução

A Europa enfrenta desde 2015 a mais grave crise de refugiados que co-
nheceu desde a Segunda Guerra Mundial (Amnistia Internacional,
2015). Os jornais, as redes sociais, e o espaço público têm gradualmente vin-
do a ser dominados por imagens e narrativas de tragédias humanas, de as-
sistência humanitária, de compaixão, mas também de discórdia política, de
descontentamento social, e de reações populistas e xenófobas. O debate po-
lítico e académico que se tem vindo a formar em torno dos vários desafios
colocados pela crise de refugiados requer sem dúvida a nossa atenção, da-
das as profundas alterações políticas despoletadas pela crise, assim como o
carácter prolongado desta última. Se até recentemente a crise Europeia era
uma crise económica, com a entrada de milhares de refugiados através da
fronteira externa da União Europeia, a crise tornou-se política e identitá-
ria. Tal como a Chanceler Angela Merkel declarou recentemente, a crise de
refugiados “preocupa a Europa muito, muito mais do que [...] a estabilida-
de do Euro” (Bundesregierung, 2015). De certa forma, a crise tem-se revela-
do um dos testes mais importantes à capacidade da União Europeia (UE)
em agir como um ator unitário a nível internacional num momento cru-

1.  Professora Assistente na Universidade de Aston, Reino Unido e Investigadora no Centro de Estudo
Sociais, Universidade de Coimbra, Portugal. Contacto: h.farrand-carrapico@aston.ac.uk. O presente ca-
pítulo é uma adaptação de uma publicação prévia da autora: Bossong, R. e Carrapiço, H. (2016) “The
Multidimensional Nature and Dynamic Transformation of European Borders and Internal Security” in
R. Bossong e H. Carrapico (Eds.) Shifting borders of European Union internal security: Technology, externa-
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cial para a definição do seu futuro político. Se por um lado existe a ideia
de que as crises são positivas porque permitem a evolução do projeto Eu-
ropeu, por outro, a crescente tragédia humanitária poderá vir a resultar no
aparecimento de uma nova trajetória para a cooperação Europeia em maté-
ria de fronteiras e segurança interna. Uma trajetória que poderá vir a ser ca-
racterizada nomeadamente por uma revisão do Acordo de Dublin e do sis-
tema Schengen.
Embora haja uma discordância legítima quanto à forma como se deve
considerar a relação entre a análise académica e os atuais debates políti-
cos (Lowenthal e Bertucci, 2014), a possibilidade de nos afastarmos de tais
questões sociais e éticas não deve ser uma opção. No entanto, também é
importante referir que este capítulo não defende uma abordagem norma-
tiva específica, como é o caso dos Estudos Críticos de Segurança. O seu ob-
jetivo principal é o de aprofundar a nossa compreensão em relação à diver-
sidade, complexidade e carácter muitas vezes contraditório das práticas de
controlo de fronteira da UE e das políticas de segurança interna. Da mesma
forma que é importante reconhecer a gravidade da atual situação, é igual-
mente necessário analisar as questões que recaem fora do espectro de aten-
ção dos meios de comunicação, e oferecer uma reflexão sobre a narrativa de
crise e de resposta adequada.
Por forma a atingir estes objetivos, este capítulo adota as seguintes três
estratégias analíticas: em primeiro lugar, as reflexões apresentadas neste
texto tentam olhar para além das intenções ou interesses de decisores po-
líticos específicos, sejam eles governos nacionais ou instituições da UE e,
trazer à luz as consequências não intencionais e os mecanismos de con-
trolo deficiente dos sistemas tecnológicos, institucionais e legais que têm
gradualmente sido implementados. Esta estratégia irá levar-nos a abordar
um grande número de questões que não podem ser reduzidas a uma sim-
ples ausência de vontade política. Em segundo lugar, a ênfase analítica so-
bre as fronteiras é, não só uma forma de analisar as dimensões mais vi-
síveis da atual crise de refugiados, mas também uma estratégia que nos
permite compreender as dinâmicas de mudança e resistência nesta área.

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

Tal como iremos ver ao longo deste capítulo, é cada vez mais difícil iden-
tificar as dinâmicas essenciais da política de segurança interna da UE, ou
do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça (ELSJ). Este capítulo propõe,
no entanto, tornar estas dinâmicas mais visíveis através da análise de pro-
cessos de transgressão ou de transformação das fronteiras no contexto do
Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, o que, em seguida, nos permite
refletir sobre as tendências gerais da cooperação europeia. Com base nos
Estudos Críticos de Fronteira (Côté-Boucher et al., 2014; Rumford, 2012),
o capítulo propõe adotar um entendimento de fronteira que vai além da
compreensão tradicional deste conceito como sendo uma linha claramen-
te demarcada que separa duas entidades territoriais coerentes. Por oposi-
ção, o entendimento de fronteira adotado neste capítulo provém da pro-
liferação e dialética das práticas de fronteira. Esta estratégia implica um
maior interesse pelos desenvolvimentos empíricos nesta área, mais do que
pelos argumentos abstratos sobre a natureza das fronteiras contemporâ-
neas. Por fim, a terceira estratégia pretende ligar a perspetiva analítica so-
bre as fronteiras e as práticas políticas descentralizadas ao crescente leque
de temas que se enquadra na ELSJ. Para este efeito, o capítulo identifica
um número específico de tendências: 1) o crescente papel da tecnologia; 2)
a externalização dos problemas de segurança interna e da governação das
fronteiras; e 3) os problemas associados à questão da responsabilização –
accountability.
Com base nestas três estratégias, o presente capítulo começa por desen-
volver uma visão global dos desafios políticos e operacionais que a UE en-
frenta a nível da segurança interna, focando-se em especial na identificação
de problemas a nível das práticas de fronteira. Segue-se a análise das três
tendências a nível da governação de fronteira (Tecnologia, Governação Ex-
terna e Accountability) que pretende apresentar a forma como a literatura
académica tem vindo a refletir sobre estes temas.

As fronteiras externas e a segurança interna da


União Europeia

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Ao olharmos para a forma como a governação das fronteiras tem sido le-
vada a cabo nos últimos anos, podemos realçar de imediato três tendên-
cias: a acentuada rapidez com a qual as alterações políticas e técnicas têm
ocorrido, o número de desenvolvimentos normativos contraditórios que
têm surgido, e a continuação de padrões de perceção de ameaça e de toma-
da de decisão que se têm vindo a repetir regularmente, tornando-se domi-
nantes desde a criação da Área de Liberdade, Segurança e Justiça em 1999.
Em janeiro de 2015, o ataque terrorista ao escritório da revista Charlie Heb-
do permitiu reabrir uma janela de oportunidade para acelerar um núme-
ro de propostas controversas na área de governação de fronteiras (Bigo et
al., 2015). As reações políticas que tiveram lugar no seguimento deste even-
to são um claro exemplo destas três tendências. O Parlamento Europeu vo-
tou em abril de 2016 a favor da introdução do Registo de Identificação de
Passageiros, permitindo às transportadoras aéreas recolher 19 categorias de
informação sobre os passageiros aquando da reserva de bilhetes, por forma
a facilitar a identificação de terroristas. Esta decisão do Parlamento Euro-
peu encontra-se, no entanto, em clara oposição à sua visão tradicional que
dava prioridade à proteção de dados e ao direito à privacidade (Ripoll Ser-
vent, 2015). Os ataques ao escritório da Revista Charlie Hebdo, reforçados
pelos ataques terroristas mais recentes em Paris (novembro 2015) e em Bru-
xelas (março 2016), permitiram igualmente aos Estados Membros expandir
a utilização do Sistema de Informação Schengen para a captura de indiví-
duos suspeitos de atividades terroristas. Embora a intersecção entre os sis-
temas de controlo de fronteiras e a luta anti- terrorismo não seja uma nova
tendência, as recentes iniciativas têm reavivado um debate importante so-
bre a sua legitimidade.
Para termos uma ideia mais completa do panorama da segurança interna
Europeia, podemos começar por analisar a ‘Agenda Europeia de Segurança’
(Comissão Europeia, 2015a), documento central nesta área, que surgiu no se-
guimento da Estratégia Interna de Segurança da União Europeia e dos seus re-
latórios anuais de implementação (Eur-Lex, 2014). Este conjunto de documen-
tos demonstra o crescimento contínuo dos objetivos de segurança da União,

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assim como uma ambição permanente de os interligar, quer através da criação


de áreas temáticas, tais como a luta contra o terrorismo, a criminalidade orga-
nizada e o controlo de fronteiras, quer através de uma divisão entre segurança
“interna” e “externa” que tradicionalmente tem caracterizado o set-up dos siste-
mas de segurança nacionais (Cremona et al., 2011). A Agenda Europeia para a
Segurança comprova igualmente o aumento constante de preocupações e res-
postas ligadas às novas tecnologias, incluindo áreas como a cibersegurança, e à
utilização de bases de dados e de sistemas de informação. Estas tendências ne-
cessitam ser analisadas no contexto de uma discussão mais ampla sobre os va-
lores atualmente vigentes no Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça da UE
(ELSJ). Embora seja possível identificar um discurso oficial relativo à necessi-
dade de encontrar um equilíbrio entre segurança e outros valores centrais do
ELSJ, o qual inclui as alterações levadas a cabo desde o Tratado de Lisboa, no-
meadamente uma maior participação do Parlamento Europeu (Occhipinti,
2014), muitos académicos continuam a observar um domínio dos profissio-
nais de segurança e de racionais tecnocráticos (Eriksen, 2011; Bigo, 2014).
Alguns académicos argumentam igualmente que a UE procura cada vez
mais criar uma clara distinção entre o espaço interno e o espaço externo,
focando-se na ideia de que as ameaças são essencialmente externas (Waever,
1993). Por outras palavras, a lógica tradicional de segurança no contexto do
processo de integração Europeia (ou seja, a garantia de paz na Europa) pa-
rece ter vindo a ser cada vez mais substituída por uma visão alternativa da
segurança interna e da ordem pública. No entanto, seria prematuro falar
de uma ordem verdadeiramente comum de segurança interna da UE (Kau-
nert, 2005). O Tratado de Lisboa assinala explicitamente que a dimensão
operacional da segurança interna continua a ser prerrogativa dos Estados-
-Membros2, que frequentemente hesitam em convergir a nível dos seus sis-
temas jurídicos e institucionais.
No entanto, não podemos continuar seguros de que os argumentos tra-
dicionais sobre as forças motrizes e os limites do empenhamento da UE

2.  Art 4 (2) Treaty of the European Union (TEU).

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nesta área continuem a ser válidos (Monar, 2012). A atual crise de refugia-
dos levou a uma politização sem precedentes do choque entre segurança e
outros valores de base, nomeadamente os direitos fundamentais e a liber-
dade de circulação. Em 2014, a agência de refugiados das Nações Unidas es-
timou que havia 59,5 milhões de pessoas deslocadas em todo o mundo, um
número que duplicou ao longo dos últimos quinze anos (ACNUR, 2015).
Embora a maioria destas pessoas esteja atualmente concentrada na Tur-
quia, no Paquistão e no Líbano, a passagem de fronteiras passou a ser en-
tendida como um dos maiores desafios atualmente enfrentados por muitos
países em todo o mundo: “Estamos a assistir a uma mudança de paradigma,
o início de uma era em que a escala global de deslocamentos forçados, bem
como a resposta necessária a este problema, superam já claramente toda e
qualquer situação anterior” (ACNUR, 2015: 3).
Nos últimos dois anos, a UE e os Estados Membros têm expresso parti-
cular preocupação relativamente ao número de requerentes de asilo e ou-
tros migrantes que atravessam, ou tentam atravessar, a fronteira externa
da UE. Embora a maioria dos imigrantes ilegais que residem atualmente
na UE tenham chegado através de meios regulares de transporte, com vis-
tos de turista ou com documentos falsos, a atenção da classe política e dos
meios de comunicação têm-se essencialmente focado nas entradas irregu-
lares (De Bruycker et al., 2013). Este nível de interesse político e social é em
parte explicado pelo aumento exponencial deste tipo de entradas. De acor-
do com a Agência Europeia de Fronteiras, Frontex, o número de entradas
irregulares detetadas praticamente triplicou entre 2009 e 2014, passando de
104.599 para 283.532 (Frontex, 2015a). Esta tendência foi ainda mais acentua-
da em 2015 com uma entrada record de 1.822.337 indivíduos entre janeiro e
dezembro (Frontex, 2016). Predominantemente originários da Síria, do Afe-
ganistão, e da Eritreia, a grande maioria dos requerentes de asilo tenta che-
gar a território Europeu através de três rotas distintas: o Mediterrâneo cen-
tral (a partir da Tunísia e da Líbia até à Itália e Malta, e de Marrocos até
Espanha), o Mediterrâneo Oriental (da Turquia até à Grécia), e a rota dos
Balcãs Ocidentais (da Turquia até à Hungria através da Grécia, Macedónia

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e Sérvia). A decisão de deixar os seus países de origem tem sido essencial-


mente provocada por conflitos, em particular a guerra na Síria, bem como
a pobreza e o abuso de direitos humanos. Tais motivações parecem indicar
que a grande maioria destes indivíduos devem ser considerados como re-
querentes de asilo e não como imigrantes económicos em busca de traba-
lho ou de melhores condições de vida, dado serem elegíveis para obter o es-
tatuto de refugiado (Day, 2015; Convenção de Genebra, 1951).
Este rótulo continua, no entanto, a ser contestado, como o demonstram
os numerosos atores que continuam a produzir diferentes estratégias por
forma a evitar/ resistir ao direito dessas populações em pedir asilo. O caso
mais visível é, provavelmente, a decisão do governo Húngaro de construir
uma cerca de quatro metros de altura, a qual foi acompanhada pela pro-
mulgação da nova legislação que pretende criminalizar as entradas irre-
gulares. Embora a Hungria tenha prometido cumprir as suas obrigações
relativamente ao Direito Internacional, a compatibilidade entre a nova le-
gislação Húngara e os direitos humanos é questionável, uma vez que não
prevê, por exemplo, o acesso a tradutores por parte dos refugiados, nem
procedimentos especiais para crianças (Lancashire, 2015). Outros Estados-
-Membros da UE, como o Reino Unido, adotaram estratégias mais subtis,
embora o resultado não difira consideravelmente. Desde 2011, o Reino Uni-
do tem participado ativamente no programa de reinstalação dos refugia-
dos sírios, organizado pelas Nações Unidas, o qual já concedeu asilo a mais
de 5.000 indivíduos (Governo do Reino Unido, 2015). Confrontado com
um influxo considerável de refugiados diretamente junto às suas fronteiras
(Calais), o Governo do Reino Unido declarou não ter qualquer intenção de
oferecer asilo aos indivíduos que já se encontram na Europa. Em vez disso,
irá continuar a selecionar e transportar refugiados diretamente a partir dos
campos de refugiados na Síria (Smith, Gower e Politowski, 2015), embora
em números que dificilmente correspondem à escala do desafio. De acor-
do com a House of Commons, o Governo Britânico prometeu receber 20.000
refugiados até 2020, mas até março de 2016 só tinha acolhido 1.602 (2016).

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Do ponto de vista humanitário – e em claro contraste com a visão se-


curitária mencionada previamente – a Europa encontra-se atualmente con-
frontada com dois problemas principais: o elevado número de mortes de
requerentes de asilo ocorridas no Mediterrâneo, e a dificuldade em rece-
ber e providenciar condições de base para grandes quantidades populacio-
nais em áreas específicas da UE. Com o aumento exponencial do núme-
ro de travessias do Mediterrâneo, o número de vidas perdidas no mar veio
igualmente a crescer rapidamente. Dependendo do ponto de partida e dos
obstáculos encontrados, a viagem de um requerente de asilo pode demo-
rar semanas, incluindo alguns dias passados no Mar Mediterrâneo, cuja tra-
vessia é muitas vezes efetuada em embarcações mal preparadas para este gé-
nero de viagem, com quantidades limitadas de comida, água e condições
higiénicas. Os requerentes de asilo têm não apenas que sobreviver condi-
ções marítimas difíceis, mas também suportar diferentes formas de abuso
por parte de grupos de criminalidade organizada (que são geralmente res-
ponsáveis pela organização da travessia), o que torna a suas viagens consi-
deravelmente árduas e perigosas. A Frontex estima que, entre janeiro e ju-
lho de 2015, 3.500 pessoas tenham perdido a vida no Mediterrâneo (Frontex,
2015b). Este número parece reforçar a perceção geral de que o número de
mortes ocorridas no mar chegou a um nível sem precedente. A Organiza-
ção Internacional para as Migrações considera que cerca de 40.000 pessoas
tenham desaparecido no mar desde 2000, o que torna o Mediterrâneo a
fronteira mais mortífera no mundo (IOM, 2014).
Tal como mencionado previamente, a capacidade de receber um grande
número de requerentes de asilo e de oferecer condições de base constitui
o segundo grande desafio que se coloca atualmente à União Europeia. Tra-
ta-se, no entanto, de um desafio para o qual os estados com fronteira exter-
na da UE não estão suficientemente preparados. Entre as 283.532 passagens
ilegais da fronteira externa que foram detetadas em 2014, a grande maioria
teve lugar na rota do Mediterrâneo Central (170.664 indivíduos), seguida
da rota do Mediterrâneo oriental (50.834 indivíduos) e da rota dos Balcãs
Ocidentais (43.357 indivíduos) (Frontex, 2014a). O fluxo particularmente in-

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tenso destas três rotas levou a grandes concentrações populacionais em paí-


ses como a Grécia, Itália, Malta, Espanha e Hungria. No entanto, as condi-
ções locais oferecidas aos recém-chegados variam consideravelmente, com
partes dessas populações instaladas em campos de refugiados, centros de
acolhimento, centros de detenção, ou até acampadas em parques e ruas das
cidades. De acordo com a organização Médicos Sem Fronteiras, “na Gré-
cia, em particular, a situação chegou a um estado crítico, com milhares de
pessoas espalhadas por várias ilhas do Mar Egeu, sem condições adequa-
das para as receber” (MSF, 2015). A situação financeira em que países como
a Grécia ou a Espanha se encontram atualmente tem igualmente contribuí-
do para limitar a melhoria das infraestruturas de receção de requerentes de
asilo (incluindo a possibilidade de providenciar acolhimento, alimentação,
assistência médica, serviços administrativos e assistência a pessoas oriundas
de conflitos violentos) (Park, 2015).
O problema do desenvolvimento de infraestruturas com as condições
necessárias para receber grandes números de requerentes de asilo também
já atingiu novas áreas da UE, dado que os migrantes tendem a deixar os paí-
ses periféricos para chegar a países tradicionalmente associados a melhores
condições de asilo como a Alemanha, a França, a Suécia e o Reino Unido. A
chamada ‘Selva’ em Calais constitui um dos exemplos mais representativos
de tais acampamentos temporários, que se têm vindo a multiplicar em di-
ferentes locais em toda a UE. A ‘Selva’ não corresponde a um acampamen-
to ou alojamento específico, mas designa um conjunto de diferentes cam-
pos improvisados ​​que são habitados por uma mistura de requerentes de
asilo e migrantes económicos. O maior campo reúne cerca de 3.000 pessoas
que vivem em condições precárias, as quais “são absolutamente inéditas na
Europa, e nem sequer respeitam as normas estabelecidas pelas Nações Uni-
das” (Médicos Sem Fronteiras citado em Mulholland, 2015). Esta população
permanece na ‘Selva’, na esperança de ter a oportunidade de atravessar o Ca-
nal da Mancha. Este movimento populacional intraeuropeu não está ape-
nas relacionado com uma tentativa por parte dos migrantes de melhorar as
suas vidas (movendo-se para áreas onde o emprego poderá ser mais abun-

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dante e onde os benefícios sociais poderão ser mais generosos), mas tam-
bém com as regras da política comum de asilo da UE. Embora o Regula-
mento de Dublin II tenha estabelecido que um pedido de asilo deve ser da
responsabilidade do Estado-Membro que permitiu ao migrante entrar pela
primeira vez na União Europeia, apenas um número limitado de pedidos
de asilo tem lugar na Grécia, na Itália, na Espanha e em Malta (UNHRC,
2015; Fargues e Bonfanti, 2014).
Tanto o grau de perigo envolvido nas travessias do Mediterrâneo, como
a questão do acolhimento e integração dos requerentes de asilo, têm susci-
tado um debate político intenso entre os Estados membros. No que diz res-
peito à primeira questão, a UE tem sido confrontada com a crescente ine-
ficácia das missões de busca e salvamento no Mediterrâneo. A substituição
da operação Mare Nostrum pela operação Triton é particularmente ilustrati-
va deste ponto. A Itália foi responsável pela operação Mare Nostrum de ou-
tubro de 2013 a outubro de 2014, uma missão humanitária e de vigilância
destinada a reduzir o número de vítimas de naufrágios, mas que ficou ca-
racterizada por um número de recursos limitados e por um uma taxa de su-
cesso moderada (Fargues e Bonfanti, 2014). A popularidade da missão veio
também a ser gradualmente contestada devido ao facto dos encargos finan-
ceiros serem da inteira responsabilidade da Itália (Katsiaficas, 2014). O rá-
pido aumento do número de migrantes levou à conclusão que a operação
Mare Nostrum era insuficiente para oferecer uma vigilância sistemática do
Mediterrâneo. Como alternativa, a UE propôs, em outubro de 2014, estabe-
lecer a Operação conjunta Triton, uma missão liderada pela Frontex que vi-
ria a ter lugar nas águas territoriais italianas, com um maior número de ati-
vos multinacionais e com custos financeiros partilhados (Gower e Smith,
2015; Brady, 2014). Até ao momento, a Triton tem gerado reações mistas re-
lativamente aos seus objetivos e grau de eficácia. Nomeadamente, a missão
tem sido criticada por vários atores políticos, incluindo o anterior Minis-
tro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, Phillip Hammond, por ter
o efeito potencialmente perverso de incentivar os migrantes a atravessar o
Mediterrâneo (House of Lords, 2014). Triton foi também acusada de alterar

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o carácter das operações, anteriormente centradas em busca e salvamento,


a favor de uma abordagem de vigilância e controlo de fronteira (Carrera e
Den Hertog, 2015). Esta operação é, no entanto, indicativa de uma tendên-
cia mais abrangente. Uma operação semelhante em termos de carácter de
vigilância, a Mar Poseidon, foi igualmente criada pela Frontex, que opera
perto da costa grega (Frontex, 2015c). Ambas as operações estão sob a alçada
da Estratégia Marítima de Segurança da UE, que foi adotada em junho de
2014 para ajudar a proteger as fronteiras marítimas externas, numa tentati-
va de integrar diferentes setores de fronteira (Carrera e Den Hertog, 2015).
No que se refere ao acolhimento de migrantes, esta é certamente a
área onde a maioria das divergências políticas teve lugar até ao momen-
to. Como mencionado anteriormente, dado o seu papel como porta de en-
trada para a UE, países como a Grécia, Itália, Espanha, Malta e Hungria ti-
veram uma maior participação na assistência oferecida aos migrantes do
que os outros estados membros. O resultado deste desequilíbrio é visível
no descontentamento expresso por estes países, o qual faz frequentemen-
te alusão à falta de solidariedade das chamadas políticas comuns de asilo e
de imigração da UE (Avramopoulos, 2015). Os estados membros que tradi-
cionalmente recebem um maior número de refugiados, como a Alemanha
e a Suécia, também manifestaram a sua preocupação relativamente ao ca-
rácter problemático da atual partilha de responsabilidades (Merkel citada
pela Fox News, 2015). As consequências desta tendência têm tido um custo
elevado, não apenas em termos financeiros, mas também em termos huma-
nos. Martin Schulz, Presidente do Parlamento Europeu, disse a este respei-
to que “a ausência de uma verdadeira política europeia de asilo e de imigra-
ção está a transformar o Mediterrâneo num cemitério” (Schultz citado pelo
Parlamento Europeu, 2015). Gradualmente, têm surgido apelos a um maior
equilíbrio para lidar com “a situação de emergência atualmente vivida na
Europa, a qual exige que todos os estados membros da UE apoiem as auto-
ridades nacionais que estão a receber grandes números de migrantes atra-
vés das suas fronteiras” (Diretor Executivo Fabrice Leggeri citado por Fron-
tex, 2015b).

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Em maio de 2015, a UE propôs a Agenda Europeia da Migração com vis-


ta a responder à crise dos refugiados com soluções mais duradoiras, de mé-
dio e longo prazo (Comissão Europeia, 2015b). O documento visa gerir os
fluxos migratórios com uma responsabilidade partilhada de todos os Es-
tados membros, através do desenvolvimento de uma nova operação mili-
tar contra o contrabando de refugiados, a EUNAVFOR MED, e de um me-
canismo de realocação de emergência por forma a aliviar a pressão sentida
pelos Estados-Membros do Sul da Europa. Este mecanismo envolve a cria-
ção de um esquema de reinstalação de refugiados, cujo objetivo é trazer
para a UE 20.000 pessoas que se encontrem atualmente fora do espaço Eu-
ropeu, assim como oferecer novos países de receção a 40.000 refugiados
que já se encontrem na UE. As reações dos Estado-Membros têm até ao
momento sido mistas ou relativamente negativas, em especial em relação à
natureza obrigatória do regime de reinstalação de refugiados e da existên-
cia de quotas nacionais. Países como o Reino Unido, por exemplo, recusa-
ram participar na iniciativa, argumentando que esta dificulta os esforços de
cada país em desenvolver políticas de asilo eficientes (Gower e Smith, 2015).
Outros países, como a Polónia e a Eslováquia, têm procurado limitar o nú-
mero de potenciais requerentes de asilo, propondo aceitar apenas os candi-
datos cristãos, cujos valores sociais e culturais estariam alegadamente mais
alinhados com as suas próprias sociedades (Wasik e Foy, 2015). Apesar do es-
quema de reinstalação ter sido votado no Conselho de Ministros, permitin-
do assim o início de uma repartição mais equitativa das responsabilidades,
a sua implementação parece avançar de forma hesitante (Comissão Euro-
peia, 2015c). Em geral, as discussões dos líderes políticos têm tido tendên-
cia para se focalizar na ideia de que é importante evitar um maior núme-
ro de entradas ilegais na UE, em vez de propor novas formas de gerir a sua
distribuição e receção de forma mais equilibrada e humana (Traynor, 2015).
O exemplo mais emblemático desta prioritização surge no recente acordo
entre a UE e a Turquia, assinado em março de 2016, que permite à UE reen-
viar para a Turquia todos os requerentes de asilo que cheguem à Grécia.
Em contrapartida, a UE assume a responsabilidade de aumentar o apoio fi-

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nanceiro aos campos de refugiados na Turquia, e de intensificar a reinstala-


ção de refugiados diretamente dos campos turcos. Desde março, tem-se tor-
nado claro que a tentativa de reduzir o número de entradas na UE não foi
bem-sucedida, tendo apenas resultado no redirecionar das entradas ilegais
para a rota do Mediterrâneo Central.
Aquando da escrita deste capítulo (julho 2016), parece finalmente haver
uma luz ao fim do túnel. Surge agora uma nova proposta por parte da Co-
missão Europeia que pretende ser um passo importante na direção de uma
política Europeia comum em matéria de reinstalação para pessoas com ne-
cessidade de proteção internacional (Comissão Europeia, 2016). O novo
quadro de parceria inscreve-se no âmbito da reforma do sistema Europeu
Comum de Asilo, seguindo desta forma os objetivos da Agenda Europeia
da Migração, acima mencionada. A proposta prevê, especificamente, um
procedimento unificado de reinstalação em toda a UE, o qual vai além do
esquema de reinstalação proposto em 2015, com zonas geográficas prioritá-
rias, financiado por contribuições dos Estados Membros. De acordo com
o Comissário Dimitris Avramopoulos, “através da criação de um quadro
permanente com práticas harmonizadas, podemos garantir procedi-
mentos mais céleres, permitindo-nos intensificar gradualmente os nos-
sos compromissos conjuntos de reinstalação. A União Europeia abre
assim uma verdadeira porta jurídica no âmbito dos nossos esforços
para bloquear as vias irregulares” (Comissário citado em Comissão Eu-
ropeia, 2016). No entanto, subsistem ainda algumas dúvidas quanto à im-
plementação da nova proposta, dado que o número de refugiados que cada
país deverá receber é decidido a nível nacional. Para além disso, a proposta
tem igualmente sido alvo de críticas semelhantes às do acordo entre a UE e
a Turquia. Segundo John Dalhuisen, Diretor da secção Europeia da Amnis-
tia Internacional, “a proposta que a Comissão Europeia publicou hoje não
tem como objetivo melhorar a proteção global dos refugiados, mas sim re-
duzir o número de entradas irregulares na Europa. A Comissão escolheu
um bom instrumento, como a reinstalação, mas utilizou-o com uma finali-
dade negativa” (Dalhuisen citado em Kingsley, 2016).

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Com base nesta análise situacional da governação das fronteiras exter-


nas e na identificação de práticas problemáticas, as secções seguintes deste
capítulo propõem explorar três tendências dominantes: a crescente utiliza-
ção de tecnologias para governar as fronteiras, a externalização das práticas
de governação, e os obstáculos que se colocam à criação de maior accounta-
bility nesta área.

A natureza política da Tecnologia de Controlo de


Fronteiras
Desde as revelações de Edward Snowden, os problemas e os riscos da vigi-
lância tecnológica têm atraído um debate público considerável. No entan-
to, no contexto do controlo de fronteiras Europeu, este debate permanece
consideravelmente limitado, em especial no que toca à ausência de politi-
zação do papel da tecnologia (Leese, 2014; Verburgt, 2012). Os cidadãos eu-
ropeus expressam ocasionalmente um certo desconforto relativamente à
propagação de algumas tecnologias, como os scanners de corpo inteiro em
aeroportos, mas permanecem em grande parte indiferentes a medidas mais
abstratas, como a introdução do Registo Europeu de Identificação de Pas-
sageiros. Da mesma forma, no contexto da atual crise de refugiados, têm
surgido numerosas expressões de preocupação em relação à construção de
novas cercas de arame farpado na Europa Central e nos Balcãs Ocidentais.
No entanto, sistemas tecnologicamente mais avançados, mas menos visí-
veis, tais como a base de dados EURODAC (que contém as impressões di-
gitais dos requerentes de asilo), escapam geralmente à atenção do público,
mesmo que sejam tão ou mais eficazes em obstruir as rotas dos refugiados.
A ausência de contestação pública contribui para explicar a razão pela
qual a UE tem vindo a expandir gradualmente, mas de forma constante, o
seu apoio financeiro e programático ao desenvolvimento e implementa-
ção de tecnologias de fronteira e de segurança interna. Esta expansão tem-
-se refletido de forma clara, quer nas prioridades do Fundo Europeu de
Segurança Interna, quer no sector da segurança do Programa-Quadro de
Investigação (Horizon 2020). Em contraste com os debates políticos aci-

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ma mencionados sobre a repartição de encargos relativos aos refugiados,


os projetos de pesquisa tecnológicos, e a sua implementação através de sis-
temas de estandardização e integração de sistemas, surgem como uma área
onde a gestão burocrática é natural e incontestada. A ausência de politiza-
ção das tecnologias utlizadas em controlo de fronteiras permitiu, desta for-
ma, a expansão exponencial do uso de bases de dados que atualmente ser-
vem de base à governação da segurança interna. Esta expansão levou, por
seu lado, à criação de uma agência da UE, a UE-LISA, unicamente dedica-
da à fiscalização do funcionamento das bases de dados na área da Justiça e
Assuntos Internos.
Neste contexto, vários académicos argumentam que a tecnologia não
é neutra e que deve ser entendida como mais do que um sistema técnico,
independentemente do seu nível de complexidade. Esta ideia tem surgi-
do em especial no contexto de áreas como os Estudos Críticos de Ciência
e Tecnologia, uma subdisciplina das Relações Internacionais, que conside-
ra que os artefactos tecnológicos estão intimamente relacionados com, e in-
fluenciam ou agem diretamente sobre, as relações políticas, sociais e eco-
nómicas dominantes. Autores como Bellanova e Duez argumentam, por
exemplo, que a EUROSUR, o Sistema Europeu de Vigilância das Frontei-
ras, representa uma profunda ambição de integrar uma grande variedade
de atores, instrumentos e componentes tecnológicos, a fim de “fazer senti-
do” da “realidade” confusa e indescritível das fronteiras europeias. Por ou-
tras palavras, a EUROSUR incorpora um dispositivo de controlo que visa
transformar as contingências dos movimentos migratórios individuais, as-
sim como os recursos, agentes e instituições dos Estados-Membros euro-
peus em dados “racionais”, em números passíveis de serem geridos ​​e em
indicadores fidedignos que permitam o desenvolvimento de programas e
operações (Bellanova e Duez, 2016).
De forma semelhante, Kuster e Tsianos sublinham que mesmo os sis-
temas tecnológicos há muito estabelecidos e comparativamente simples,
como a EURODAC, a base de dados que acumula as impressões digitais de
todos os requerentes de asilo que passam a fronteira externa da UE, conti-

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nuam a ser entendidos como uma ‘caixa negra’ que raramente é descons-
truída. Por oposição, estes autores traçam o profundo impacto que este tipo
de tecnologia tem nas práticas dos seus usuários, assim como os seus obje-
tivos, que foram elaborados muito antes da atual crise de refugiados e que
têm desafiado a própria razão de ser da EURODAC (Kuster e Tsianos, 2016).
Tal como Bellanova e Duez, estes autores partem da perspetiva dos Estu-
dos Críticos de Ciência e Tecnologia e assumem que as tecnologias de se-
gurança constroem e fixam significados, através da transformação de dados.
A EURODAC desassocia a crise de refugiados da sua realidade física, trans-
formando os indivíduos em conjuntos de dados e em artefactos estatísti-
cos que circulam através das fronteiras. Deste ponto de vista, a tecnologia
vai muito além do papel passivo de recolha de dados que tradicionalmen-
te lhe é atribuído. Kuster e Tsianos contrastam esta visão técnica com ob-
servações etnográficas onde as visões simplificadas da EURODAC e da EU-
ROSUR chocam contra a complexidade do campo, representada por uma
matriz composta, por um lado, de diversas políticas e práticas nacionais de
asilo e de controlo de fronteira, e por outro, de múltiplas estratégias de so-
brevivência dos refugiados e de táticas de resistência das organizações não-
-governamentais.
Ainda relativamente à EUROSUR, Lopez-Sala e Godenau (2016) desen-
volveram um caso de estudo sobre a evolução da governação das fronteiras
em Espanha, que demonstra claramente o desejo de modernização tecno-
lógica por parte não apenas das autoridades Europeias, mas também nacio-
nais. Por um lado, estes autores mostram a forma como as inovações tecno-
lógicas propostas a nível da UE para o desenvolvimento da EUROSUR têm
sido testadas no contexto espanhol. Por outro lado, Lopez-Sala e Godenau
mostram como esta circulação de práticas tecnológicas entre o nível Euro-
peu e o nível nacional não é um processo autoexplicativo, mas que precisa
de ser entendido num contexto mais lato de tendências políticas no senti-
do de uma harmonização europeia da gestão das fronteiras. Este estudo de
caso visa essencialmente demonstrar que a evolução tecnológica da gestão
de fronteiras na UE não é de todo uma imposição do nível Europeu e dos

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atores situados em Bruxelas, mas sim uma complexa negociação a vários ní-
veis, em que os Estados-Membros têm um papel central.
Para concluir esta secção sobre a importância da tecnologia, gostaria
ainda de mencionar uma linha de investigação extremamente interessan-
te atualmente a ser desenvolvida sobre o espaço como a nova fronteira.
Słomczyńska e Frankowski referem que a integração dos recursos espaciais
representa uma nova dimensão da tecnologia de segurança interna e de
fronteiras da UE. Estes autores apontam, no entanto, que é ainda cedo para
imaginarmos visões de vigilância das fronteiras em tempo real a partir do
espaço (Słomczyńska e Frankowski, 2016). Apesar das ambições políticas de
longa data neste domínio, aspetos técnicos, tais como a resolução de ima-
gem disponível, o tipo de tecnologia de imagem e a órbita escolhida limi-
tam significativamente o potencial uso da atual geração de satélites da UE
para fins de segurança. Esta é, contudo, uma área que promete evoluir ra-
pidamente e que vale a pena acompanhar, dado o potencial para o contro-
lo de fronteiras.

A Externalização da Governação de Fronteiras


Dada a sobreposição entre segurança interna e segurança externa e as suas
consequências para a conceptualização das fronteiras, a UE tem vindo a de-
senvolver as suas políticas numa ótica pós-territorial desde o final dos anos
1990 (Lutterbeck, 2005). O discurso relativo ao desaparecimento da separa-
ção conceptual entre segurança interna e segurança externa tornou-se tão
dominante, que é possível identificá-lo como racional de base em várias po-
líticas de segurança da UE. É o caso, por exemplo, da Política Externa e de
Segurança Europeia cujo objetivo principal é de adotar uma abordagem
abrangente e completa relativamente à gestão de crises (Kaunert and Zwol-
ski, 2013). No entanto, a literatura académica é bastante crítica em relação a
esta ambição, em particular no que respeita à projeção das normas de Jus-
tiça e Assuntos Internos em direção à vizinhança da UE (Balzaq, 2009). As
críticas dividem-se essencialmente em dois argumentos principais: em pri-
meiro lugar, esta ambição representa a erosão do poder normativo Euro-

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peu, no sentido em que surge como uma subversão da intenção de disse-


minar a democracia e os direitos humanos, a qual é substituída por um
domínio externo da vizinhança (Merlingen, 2007) e por interesses ligados à
segurança e à estabilidade (Eder, 2011; Börzel e van Hüllen, 2014). Mais espe-
cificamente, a UE tem exercido um poder estrutural sobre os países da vi-
zinhança por forma a assegurar o desenvolvimento de políticas favoráveis
à União, incluindo por exemplo acordos de readmissão de migrantes, em
troca de assistência financeira e da possibilidade de facilitar a obtenção de
vistos (Wolff, 2014). Em segundo lugar, a externalização das normas de se-
gurança interna é entendida como afetando seriamente o défice já existen-
te de legitimidade e transparência democráticas tanto na própria União,
como nos países da vizinhança. A circulação de medidas de segurança con-
troversas tem-se efetuado não apenas de baixo para cima, do nível nacional
para o nível Europeu, mas também do centro para a periferia, da UE para o
exterior (Lavenex, 2006). Dado que nos países da vizinhança – muitos dos
quais são autocracias ou democracias problemáticas – os mecanismos para
a proteção dos direitos humanos são ainda limitados, esta projeção torna-
-se particularmente problemática. Este processo mantém-se, no entanto, in-
visível para a maioria dos cidadãos Europeus que raramente são confron-
tados com os efeitos nefastos desta externalização, como por exemplo o
‘policiamento à distância’ (Bigo and Guild, 2005). Estas críticas permane-
cem extremamente pertinentes à luz da atual crise de refugiados, dado que
a cooperação com os estados vizinhos em matéria de segurança de frontei-
ras constitui prática diária e deverá continuar a ser ampliada no futuro.
No entanto, como demonstrado por autores como Merheim-Eyre
(2016), a externalização da gestão das fronteiras não pode ser apenas expli-
cada pela retórica de securitização de estrangeiros e imigrantes que tentam
entrar na UE. Os próprios cidadãos Europeus tornaram-se parte do siste-
ma de securitização (como objetos de referência de securitização), quando
a cooperação Europeia em assuntos consulares deixou de se cingir à assis-
tência administrativa regular e passou a incluir a gestão de desastres natu-
rais além-fronteiras. Desta forma, a proteção civil e os assuntos consulares,

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os quais são muitas vezes negligenciados no que diz respeito à cooperação


de segurança interna, tornaram-se uma componente significativa do inves-
timento externo da UE. Merheim-Eyre sublinha ainda que o processamen-
to de vistos Schengen, que tem vindo cada vez mais a ser coordenado pelo
nível Europeu, tem também gradualmente vindo a envolver um maior nú-
mero de atores privados, os quais perpetuam um entendimento securitiza-
do dos refugiados, muitas vezes além do território da UE.
O caso de estudo apresentado por Schmid e Yakouchyk sobre a Bielor-
rússia constitui outra contribuição importante para a literatura sobre a ex-
ternalização do controlo de fronteiras, nomeadamente em termos das ne-
gociações que são levadas a cabo com países terceiros. À primeira vista, este
caso parece exemplificar a crítica acima referida sobre a desistência de com-
promissos normativos em prol de garantias de segurança. No entanto, os
autores mostram que a UE mantém um envolvimento externo com a Bie-
lorrússia que é na verdade de natureza dupla: por um lado, oferece uma as-
sistência financeira substancial para reformar e profissionalizar a gestão das
fronteiras da Bielorrússia, mas, por outro, não reduz as sanções destinadas
a pressionar o regime autocrático. Embora este tipo de cooperação deva ser
considerado como limitado e parece até ao momento ter tido pouco im-
pacto sobre a Bielorrússia, é importante termos em consideração que a ex-
ternalização da segurança interna nem sempre segue uma lógica unitária.
A ausência de uma abordagem unitária nesta área é sobretudo reflexo
da falta de um modelo Europeu de segurança coerente e passível de ser
projetado além-fronteiras. Esta ausência torna-se particularmente visível
quando se olha além da legislação, dos planos de ação formal e dos pro-
gramas de apoio financeiro, e se analisam as práticas diárias de segurança e
de cooperação policial. Por exemplo, os Centros de Cooperação Policial e
Aduaneira (CCPA) mostram claramente as oportunidades e limitações da
cooperação transfronteiriça quando esta é gerida de ‘baixo para cima’, ou
seja, quando a lógica de gestão não é imposta por elites políticas mas sim
fruto da experiência dos agentes que se encontram no campo. Estes centros
são não apenas considerados como um modelo de cooperação entre auto-

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ridades nacionais no seio da UE, como também têm sido vistos como pon-
tos estratégicos importantes em termos da cooperação policial com países
terceiros (Conselho da União Europeia, 2008). Tal como demonstrado por
Gruszczak (2016), estes centros têm crescido e proliferado na UE, e têm vin-
do a constituir nódulos centrais na implementação de várias dimensões
do acervo Schengen. Os CCPAs também representam a tendência Euro-
peia para a criação de ‘centros de fusão’, onde os limites entre intelligen-
ce e dados policiais se esbatem. É no entanto importante salientar que os
Centros existentes ainda não convergiram para um modelo organizacional
comum, permanecendo divididos a nível dos parâmetros tecnológicos de
partilha de dados. Finalmente, tais inovações a nível das práticas de coope-
ração, mesmo que ainda incompletas, levantam desde já questões críticas
relativamente aos mecanismos de controlo e fiscalização dessa cooperação,
tema este que nos leva à última secção deste capítulo.

Accountability, responsabilidade democrática e


transparência
Tal como mencionado na secção sobre externalização do controlo de fron-
teiras, a cooperação transfronteiriça em matéria de segurança interna e a
construção do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, têm sido sempre
acompanhadas por importantes debates normativos sobre questões de accou-
ntability, legitimidade, responsabilidade democrática e transparência (Balza-
cq e Carrera, 2006). De um ponto de vista crítico, o papel da União Europeia
na área da segurança interna tem sido caracterizado por competências jurí-
dicas limitadas e por mecanismos de supervisão fracos, que têm favorecido
uma forma de integração negativa através de princípios como o reconheci-
mento mútuo (Calderoni, 2010; Lavenex e Wagner, 2007) e que têm gera-
do oportunidades para a capacitação das estruturas burocráticas e executivas.
De um ponto de vista mais otimista, os processos de integração Euro-
peia em matéria de segurança interna não são apenas um spillover, ou uma
compensação necessária, do desaparecimento das fronteiras nacionais na
área Schengen (Monar, 2001). Eles constituem também uma adaptação fun-

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cional à dimensão transnacional do crime organizado e do terrorismo, a


qual se encontra em perpétuo crescimento (Carrapiço, 2014). Além disso,
é possível discernir um longo, mas eventualmente significativo, processo
no sentido de expandir os direitos civis, a participação política e os meca-
nismos de controlo judiciais que contribuem para solidificar a natureza
constitucional e a legitimidade democrática da União Europeia (Occhipin-
ti, 2014).
O conceito de accountability pode ser entendido, não apenas como uma
‘palavra-chave’ no mundo contemporâneo, mas também como uma noção
muito ampla (Dubnick, 2014) cujo significado varia consoante as áreas e or-
ganizações que a utilizam. Mais especificamente, a accountability pode ser
entendida como um controlo sobre, ou como uma exigência de justifica-
ção relativamente a atores que exercem poderes políticos ou públicos em
geral (Gailmard, 2014) – os quais se encontram cada vez mais incorporados
em redes de governação transnacional (König-Archibugi, 2010; Papadopou-
los, 2011; Héritier e Lehmkuhl, 2011). Esta visão de accountability é particu-
larmente importante na área da segurança (Bono 2006), onde a incerteza
sobre ameaças e as medidas de resposta adequadas muitas vezes se refletem
em mandatos institucionais extremamente amplos e vagos, propícios a cul-
turas de sigilo (Rozell, 1994; Curtin, 2014). Estas são considerações que já se
encontram claramente expressas na crescente literatura sobre a accountabi-
lity das agências da UE (Buess, 2015; Scholten, 2014), em particular na área
de segurança interna (Carrera et al, 2013), como é o caso da Europol (Bu-
suioc e Gronleer, 2013) e da Frontex (Pollack e Slominiski, 2009).
Apesar da crescente literatura nesta área, continuam a existir processos
que requerem a nossa atenção, dado o impacto que têm sobre a accountabi-
lity da segurança interna. É o caso, por exemplo, do papel que o Parlamen-
to Europeu – cujos poderes formais continuam a originar na legitimidade
popular (embora limitada) e em credenciais democráticas – e que os Par-
lamentos nacionais têm no controlo do Espaço de Liberdade, Segurança e
Justiça. O Tratado de Lisboa veio reforçar a posição dos Parlamentos nacio-
nais em geral, nomeadamente através do aumento de poderes ligados ao es-

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crutínio da segurança interna (de acordo com o art. 69º do TFEU), o que
reflete a sensibilidade normativa e simbólica desta área política. Deste pon-
to de vista, seria portanto de esperar o aparecimento de novos esforços para
aumentar o nível de accountability do processo decisório (Wouters e Raube
de 2012; Huff, 2015).
No entanto, de acordo com recentes estudos sobre os Parlamentos na-
cionais, esta tendência esperada nem sempre se tem materializado. O tra-
balho desenvolvido por Tacea, por exemplo, que analisa o papel dos Par-
lamentos francês e italiano relativamente à última reforma de Schengen,
aborda esta questão de forma clara (2016). De forma semelhante ao Parla-
mento Europeu, cuja evolução de “campeão” dos direitos civis (pré-Lisboa)
para uma postura mais pragmática (pós-Lisboa) foi detalhada por Ripoll
Servent (2015), Tacea demonstra que os procedimentos nacionais de escru-
tínio na área de segurança interna se baseiam muito mais em constelações
políticas do que em considerações normativas. Em particular, de acordo
com esta autora, as comissões parlamentares representam uma faca de dois
gumes. Se por um lado, os relatores das comissões têm em geral mais ex-
periência e conhecimento sobre as áreas em questão, por outro os procedi-
mentos das comissões tendem a levar a uma tomada de decisão consensual
ou até mesmo a uma relativa supressão das vozes dissidentes.
Por fim, é igualmente importante não esquecer a accountability dos ato-
res burocráticos e das suas operações de rotina que constituem uma práti-
ca diária do controlo de fronteira da UE e da segurança interna. Para além
das crises ou das grandes reformas políticas a nível da fronteira externa, os
requerentes de asilo estão normalmente preocupados com a forma como
são tratados assim que entram em território Europeu, nomeadamente com
as medidas de controlo regulares que são exercida sobre eles por diferen-
tes Estados-Membros. As consequências destes controlos regulares podem
ser extremamente sérias dado que os requerentes de asilo podem ser inti-
mados a regressar ao seu país de origem ou a um país terceiro pelo qual te-
nham passado recentemente. Autores como Koch analisam a forma como
os atores burocráticos a nível nacional, em estreita articulação com os ato-

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res internacionais e com a UE, têm vindo a acelerar e a expandir o núme-


ro de operações de regresso forçado, embora continuando formalmente a
respeitar o direito internacional e os direitos humanos (2016). Neste caso,
as tradicionais críticas à governação da fronteira externa e à política de se-
gurança interna, que giram em torno do pressuposto do aumento do po-
der executivo e da negligência dos direitos dos requerentes de asilo, não
são aplicáveis dado que este processo se tem desenvolvido de forma legal.
O caso de estudo apresentado por Koch também contraria os argumentos
otimistas segundo os quais as instituições de direito internacional têm ser-
vido cada vez mais como elementos restritivos às políticas de imigração
populistas e repressivas. Se considerarmos que a Comissão Europeia tem
tentado promover um sistema de asilo mais solidário, baseado na distribui-
ção dos requerentes de asilo, os argumentos otimistas até podem parecer
plausíveis. Contudo, pelo menos no caso dos regressos forçados, embora as
organizações internacionais apoiem formalmente o aumento dos critérios
normativos, ao mesmo tempo defendem também a “eficácia” deste tipo de
operações para justificar a sua existência junto dos Estados-Membros. Esta
aparente contradição leva-nos a reconsiderar o tipo de critérios que as au-
toridades responsáveis ​​pela segurança das fronteiras deveriam seguir, para
além do respeito formal do direito internacional e europeu. A resposta a
este problema não pode consistir apenas na exigência de novos direitos
abstratos para os requerentes de asilo e outros migrantes.

Conclusão
A UE veio alterar de forma profunda e duradoira o conceito de frontei-
ra. Se por um lado as fronteiras internas passaram apenas a ser meramente
simbólicas desde a implementação de Schengen, por outro as fronteiras ex-
ternas foram reforçadas e exportadas para territórios não Europeus. Atual-
mente, do ponto de vista Europeu, uma fronteira assume muitas formas:
um porto na Grécia, um aeroporto no Reino Unido, uma missão da Fron-
tex, um consulado na Albânia, um sistema de vigilância de fronteiras, uma
praia na Turquia. Longe de significar uma linha divisória entre dois territó-

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rios soberanos, o conceito de fronteira tem ganho contornos cada vez mais
elásticos, moldados por narrativas de crise. Esta elasticidade tem no entan-
to consequências sérias quer para os requerentes de asilo e outros migran-
tes que tentam circundar esta corrida de obstáculos, quer para os cidadãos
e residentes cujo conhecimento e capacidade democrática resultam dimi-
nuídas, dada uma maior invisibilidade das práticas de controlo de fronteira
na UE. Dada a grave crise de refugiados atualmente enfrentada pela União
Europeia, assim como a sua delicada situação política, este capítulo procu-
rou chamar a atenção para algumas destas práticas e das suas consequên-
cias. Tal como foi referido acima, tudo aponta para um futuro aprofun-
damento e expansão destas práticas, devido a um recente crescimento dos
sentimentos populistas e a uma falta de crítica destas práticas nacionais e
Europeias por parte da sociedade civil. O capítulo identifica três tendências
importantes, nomeadamente o aumento do uso de tecnologia no controlo
de fronteiras, a crescente exportação da governação das fronteiras e os pro-
blemas de accountability ligados à invisibilidade das práticas em questão,
por forma a servirem de base a futuras reflexões sobre o conceito de fron-
teira no contexto Europeu.

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As Fronteiras de Segurança do
Brasil:Do Prata à Amazônia Azul1
Cristina Soreanu Pecequilo 2

Introdução

H istoricamente, o Brasil procura desempenhar o que define como um


papel pacífico e construtivo nas relações internacionais em nível re-
gional e global, defendendo a não-intervenção, não-ingerência e o legalis-
mo. Se por um lado isso traz dividendos diante de outras nações como cre-
dibilidade e legitimidade, agregando à diplomacia um perfil negociador,
por outro lado colocou em xeque a capacidade de projeção de poder e de
dissuasão no campo da segurança. O objetivo deste texto é analisar de que
forma o debate sobre as fronteiras de segurança evoluiu, identificando seus
principais temas. Para isso, encontra-se dividido em duas partes: “Paz, Segu-
rança e Poder: Construção e Fragmentação” e “Integração, Projeção e Re-
cuo: Os Desafios do Século XXI”.

Paz, Segurança e Poder: Construção e Fragmentação


Pensar a construção da paz, da segurança e do poder brasileiro no sécu-
lo XX, e as fragmentações associadas a este processo indica uma trajetória
não linear. Com isso, podem ser identificados três períodos de definição e
redefinição das fronteiras de segurança no país: 1902 a 1960, 1960 a 1985 e
1986 a 1999.

1.  Este texto é baseado nas pesquisas desenvolvidas no âmbito do Edital Universal 14/2013 e da Produti-
vidade em Pesquisa da autora, ambas com apoio do CNPq.
2.  Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Pesqui-
sadora NERINT/UFRGS e UNIFESP/UFABC. Doutora em Ciência Política FFLCH/USP. crispece@
gmail.com

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

O período de 1902 a 1960, que engloba as ações de definição das frontei-


ras geopolíticas nacionais é caracterizado pela predominância da visão “ame-
ricana” de segurança. Tal visão foca-se na estabilidade das fronteiras e na sua
consolidação por meios não bélicos, processo que foi consolidado na gestão
do Barão do Rio Branco à frente do Ministério das Relações Exteriores. Além
disso, definia como prioridade das relações internacionais a projeção no he-
misfério americano, tendo como principais referenciais os eixos Sul e Norte
do continente. Esta percepção era sustentada em três pilares realistas e prag-
máticos: primeiro, a avaliação de que o Brasil não detinha mecanismos de
poder que permitiriam uma ação global e, segundo, que estes mecanismos
somente seriam obtidos a partir da consolidação do poder nacional e, ter-
ceiro, que esta consolidação passava por uma agenda não confrontacionista
com os vizinhos mais relevantes, a Argentina e os Estados Unidos.
No que se refere ao Sul, as interações com os vizinhos Argentina, Para-
guai e Uruguai ganhavam precedência, e eram percebidas em uma vertente
de cooperação-conflito. Como indicam Cervo e Rapoport (1998), estas os-
cilações caracterizavam-se eram tradicionais na região do Prata e do Cone
Sul, e demandavam uma atenção e presença brasileira regionais neste espa-
ço geográfico. O Brasil procurava se definir como mediador e “equilibra-
dor” regional (holder of the balance no original em inglês), sem pretensões
expansionistas. Parte desta auto-definição derivava do outro referencial des-
ta visão “americana”: o eixo norte.
No eixo norte, a segurança brasileira focava nas relações com os Esta-
dos Unidos e na definição deste país como o principal parceiro nacional,
devido a sua ascensão como hegemonia global. Desde 1823 quando emiti-
ram a Doutrina Monroe (1823) da “América para os Americanos”, os Estados
Unidos agiam para a estabilidade regional, a elevação de seu poder e a con-
tenção de ameaças intra e extrarregionais a seu interesse em sua zona pre-
ferencial de influência (mesmo que isso englobasse questões relativas à in-
tervenção e ingerência).
Essa percepção colocava em segundo plano as fronteiras nacionais ao
“Norte”, como, por exemplo, as amazônicas. Ainda que houvesse preocupa-

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

ção relativa com a região (inclusive reconhecendo-se o risco da ingerência


de potências como os Estados Unidos), políticas mais sistemáticas de ocu-
pação somente seriam elaboradas nos anos 1970.
Na política externa isso ficou conhecido como o paradigma do “alinha-
mento”. Outros aspectos desta aproximação eram revelados em termos como
“aliança especial”, líder da “subrregião” (ou do “subimperialismo”), que pre-
tendiam um papel de cooperação com os norte-americanos na estabilida-
de regional. Se por um lado, isso traria benefícios na relação Brasil-Estados
Unidos, por outro, prejudicava a outra dimensão regional, a interação com
os vizinhos, que temiam a hegemonia dos Estados Unidos e a do Brasil.
Para o Brasil a predominância desta corrente bilateral-hemisférica for-
neceu um caráter estrutural ao intercâmbio Brasil-Estados Unidos. Este ca-
ráter prevalece até hoje na definição das políticas externa e de segurança
nacionais. Muitas vezes pode-se falar de uma definição “negativa” do inte-
resse nacional, que foca na avaliação de como os Estados Unidos reagem a
uma determinada política brasileira e não na relevância desta política para
o país. Este peso revela-se em oposições como americanismo e anti-ame-
ricanismo.
Um elemento fundamental do processo é a correlação entre desenvol-
vimento econômico-autonomia-poder nacional, que se desenvolve com
maior intensidade a partir dos anos 1930. No primeiro governo de Getú-
lio Vargas (1930/1945) esta correlação reflete-se no processo de industriali-
zação brasileiro por substituição de importações (ISI). A barganha estabe-
lecida por Vargas entre Estados Unidos e Alemanha na Segunda Guerra
Mundial (1939/1945) que rendeu ao Brasil benefícios fornecidos pelos nor-
te-americanos como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e o incre-
mento do poder bélico fazem parte desta agenda. Nos anos 1950/1960, tanto
com a segunda gestão Vargas (1951/1954) quanto com Juscelino Kubistchek
(1955/1960) este processo de industrialização teve continuidade, apesar do
interregno Dutra (1946/1951).
Neste período, também foi estabelecido, pelos Estados Unidos, o siste-
ma interamericano, com o Tratado Interamericano de Assistência Recípro-

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

ca (TIAR, 1947) Organização dos Estados Americanos (OEA, 1948). Ambos


os pilares eram construídos a partir de um discurso multilateral, mas ten-
diam a uma agenda de pressões e unilateralismo dos norte-americanos na
região, contra os riscos de avanço do comunismo, no quadro da Guerra
Fria. Episódios de intervenção e ingerência encontram-se associados a es-
tes organismos, assim como pressões em países como Cuba devido à Revo-
lução de 1959.
O predomínio do americanismo como concepção de segurança e de re-
lações internacionais somente foi quebrado na segunda fase, 1961 a 1985. A
partir de 1961, a emergência da Política Externa Independente (1961/1964)
nos governos de Jânio Quadros e João Goulart insere na agenda interna-
cional uma visão globalista e multilateral de política externa. Baseada nas
transformações do mundo e do país (em trajetória de industrialização,
modernização e urbanização), a PEI abria buscava um papel abrangente.
Este papel contemplaria as relações tradicionais com os Estados Unidos e
a América Latina, mas também novas parcerias com a Europa Ocidental,
o Japão e as nações do Leste Europeu, mesmo no contexto da Guerra Fria
(1947/1989).
A Guerra Fria (1947/1989) dividia o mundo em dois campos, o Leste e o
Oeste, liderados respectivamente pela ex-União Soviética e os Estados Uni-
dos. Nos anos 1960 esta bipolaridade era acompanhada por mudanças polí-
tico-econômicas, que indicavam a ascensão de atores nos dois campos e de
forma mais ampla nas relações internacionais devido ao processo de desco-
lonização. Este processo dava forma ao nascente Terceiro Mundo e ao Mo-
vimento Não-Alinhado, criando outra divisão de campos: o Norte e o Sul.
Desta forma, a PEI visava responder a esta nova realidade, prevendo uma
política externa que contemplasse todos estes eixos: o Sul-Sul, Norte-Sul e
Sul-Leste (VISENTINI, 2013).
A mundialização das relações internacionais do Brasil ampliava as fron-
teiras de ação e segurança do Brasil, acrescentando espaços e temas geopo-
líticos às dimensões “americanas”. Em nenhum momento, o Brasil deixa de
ter esta concepção “americana”, uma vez que isso corresponde a sua realida-

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

de geográfica, é a sua zona de influencia imediata. Entretanto, é uma con-


cepção que a partir de 1961 varia em foco e intensidade, em particular com
os vizinhos do Cone Sul. No que se refere ao Cone Sul, e à América Lati-
na, pode-se observar uma mudança tática, em busca de mais liderança re-
gional, e menor subordinação aos Estados Unidos. Esta alteração inicia-se
antes mesmo da PEI com a proposta da Operação Panamericana (OPA) de
1958 de Juscelino Kubistchek e é complementada pelo lançamento do pro-
jeto da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC) de 1960.
Ambos os projetos visavam o estabelecimento da cooperação multila-
teral, com foco em problemas políticos e econômicos, com prioridade ao
desenvolvimento e à estabilidade. Autonomia e maior atenção às vulnera-
bilidades dos países latino-americanos ajudam a explicar estas agendas, as
quais se contrapõem a pouco efetiva proposta dos Estados Unidos de uma
“Aliança para o Progresso”. O objetivo da integração como meio de redu-
zir a insegurança brasileira em seu espaço geopolítico e reforçar seu poder
regional e global tem, portanto, seu embrião lançado neste contexto dos
anos 1960.
Além desta mudança existe, como indicado, a abertura de novos espaços
e temas que correspondem tanto à dinâmica estatal quanto à multilateral.
No que se refere à estatal, o objetivo é buscar alternativas ao espaço ameri-
cano. A aproximação com a África e a Ásia tem como base o apoio aos pro-
cessos de descolonização. No caso da África, tratam-se de interações com
componentes sociais, políticos, estratégicos e culturais, e uma área geográ-
fica estratégica, o Atlântico Sul3. Na Ásia buscam-se parcerias econômicas e
políticas, fenômeno que se estende às Europa Ocidental e Oriental.
Em termos multilaterais, observa-se uma maior assertividade na proje-
ção como líder e articulador do Terceiro Mundo nas questões econômi-
cas e sociais e, especificamente, no campo da segurança, a defesa da demo-

3.  As ações brasileiras não se limitam ao Atlântico Sul, porém, mas estendem-se a todo continente.
Chama-se a atenção para esta região pois ela será objeto de atenção crescente como fronteira de segu-
rança brasileiro-africana a partir dos anos 1960 e em especial no século XXI, renomeada como “Amazô-
nia Azul” como será analisado no próximo item.

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

cratização da modernização e das tecnologias sensíveis. O país questiona o


“Congelamento do Poder Mundial”, representado pelo controle da tecno-
logia nuclear por um clube restrito de potências e pela tentativa destas po-
tências de limitar o acesso a este conhecimento. O Tratado de Não-Prolife-
ração Nuclear (TNP) é simbólico deste processo, e o Brasil somente viria a
assinar o mesmo após o fim da Guerra Fria. Desde 1967, quando o TNP en-
trou em vigor o país manteve sua decisão de não assiná-lo, assim como a
outros regimes que considerava desiguais no campo tecnológico, e desen-
volveu uma agenda de segurança que incluía o domínio desta tecnologia.
Apesar da interrupção da PEI com o golpe militar de 1964, e o recuo
ambíguo destas posições na gestão Castello Branco (1964/1967), estas po-
sições não foram abandonadas. Muito pelo contrário, o país buscou incre-
mentar seus investimentos estratégicos para a construção de uma potên-
cia média com projeção regional e global. Neste sentido, o Regime Militar
(1964/1985) representa o adensamento das ações nos setores relacionados ao
poder duro e o repensar das fronteiras de segurança do Brasil.
Entretanto, este período não foi homogêneo e existe um refluxo da pro-
jeção global na agenda de Castello Branco. Duas questões revelam ambi-
guidade entre autonomia e alinhamento: a abertura das negociações com
o Paraguai e a criação da Comissão Mista Brasil-Paraguai para o aproveita-
mento dos recursos do Rio da Prata, com a assinatura da Ata das Cataratas
em 1966 e, segundo, a manutenção da postura contrária ao TNP. Por outro
lado, a ambiguidade se revela no estabelecimento de conceitos como os de
“Interdependência” e “Fronteiras Ideológicas” para apoiar os norte-ameri-
canos no combate ao comunismo na América Latina. Tais conceitos desta-
cam a identidade brasileira como nação ocidental e a premissa de que a in-
serção internacional do país relaciona-se a seu intercâmbio com os Estados
Unidos. Outros elementos foram a criação da Força Interamericana de Paz
(FIP) para este combate ao comunismo e o estabelecimento da solidarieda-
de nas Américas.
Os governos seguintes abandonam esta ambiguidade e perseguem de
forma sólida um novo status de poder para o Brasil, com uma agenda de se-

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

gurança e recursos agregados ao país para alcançar este status com investi-
mentos direcionados à defesa. O auge desta trajetória encontra-se na admi-
nistração de Ernesto Geisel (1974/1979), mas seus elementos são desenhados
nas presidências Costa e Silva (1967/1969) e Médici (1969/1973).
As fronteiras de segurança detêm dimensões internas e externas, ten-
do em vista que o desenvolvimento do poder nacional foi percebido como
função da autonomia econômica. Desta forma, havia forte interdependên-
cia entre o desenvolvimento interno e a projeção de poder externa. Dois pi-
lares podem ser destacados neste processo: a ampliação das fronteiras de
ação globais e regionais da política externa e a nacionalização da segurança.
No que se refere ao primeiro pilar, como destacado, esta ampliação de
fronteiras data da PEI, e foi aprofundada a partir de 1967, reforçando a coo-
peração multilateral e interestatal em escala global e regional. Com isso, fo-
ram aprofundados os esforços na construção de uma política de interação
Sul-Sul, Sul-Leste, Norte-Sul, com parceiros além dos Estados Unidos. O
Brasil se consolidava como global trader e player (jogador e comerciante glo-
bal), líder do Terceiro Mundo e fortalecia as parcerias na África, na Ásia e
na Europa Ocidental, com ampliação ao Oriente Médio.
Em 1974, um dos marcos do período foi o reatamento das relações com
a China, assim como a extensão do Mar Territorial. O governo Médici, ini-
cia a demanda pela extensão do Mar Territorial para 200 milhas da Plata-
forma Continental (PC), para o reforço da soberania nacional, com peso
para a projeção no Atlântico Sul e a exploração de petróleo nesta região.
A partir de 1982, com o estabelecimento da Convenção das Nações Unidas
sobre o Direito do Mar (CNDUM) estes limites se tornariam base para to-
das as nações signatárias, definindo-se a PC para 200 milhas (prevendo-se
a possibilidade de ampliação pendente avaliação das Nações Unidas da de-
manda). Igualmente, estabeleceu-se o conceito de Zona Econômica Exclu-
siva (ZEE), referentes aos Direitos de Exploração Econômica do Mar.
Um dos traços da política do regime, em particular do “Pragmatismo
Responsável e Ecumênico”, já presente na PEI, era o da atuação isenta de
compromissos ideológicos. Isso expressava certa contradição, uma vez que

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nas relações internacionais o país não se furtava a negociar com países do


bloco comunista, enquanto reprimia a expansão de partidos políticos e
movimentos sociais do mesmo teor. A maior autonomia resultou em um
quadro de conflitos políticos, estratégicos e econômicos com os Estados
Unidos, uma vez que a agenda brasileira potencialmente mudava o quadro
do equilíbrio regional e global. Duas questões merece destaque: a sul-ame-
ricanização da política externa e a nacionalização da segurança.
Em termos de ações regionais, observou-se um processo de sul-america-
nização da política externa baseado em dois eixos ao Sul e o Norte da Amé-
rica do Sul. No Sul existe uma continuidade de ações para reforçar a pre-
sença brasileira e a estabilidade do Cone Sul, iniciando a reaproximação
com a Argentina que em 1979 culmina com a assinatura do Tratado Corpu-
s-Itaipu, e o equilíbrio na gestão dos recursos do Rio da Prata. Estas ações
foram essenciais para lançar o processo de integração regional do Cone Sul
do qual resultou o MERCOSUL, e a percepção da integração como instru-
mento de redução de riscos na região da fronteira Sul do Brasil. O Sul é a
base da projeção para o Atlântico Sul, e dos esforços para exploração da An-
tártica, importante agenda de pesquisa científica brasileira.
Ao Norte, fronteira tradicionalmente mais vulnerável e desprotegida,
houve aumentos de investimentos para a ocupação local com obras de in-
fraestrutura e criação de projetos como a Zona Franca de Manaus e o Calha
Norte. Além disso, em 1978 foi criado o Tratado de Cooperação Amazônica
(TCA)4, iniciativa inédita de ação multilateral entre os países amazônicos,
visando reafirmar soberania neste espaço geopolítico. O contexto era de
crescentes discussões ambientais, que traziam o risco de ingerência externa
e opunham os conceitos de desenvolvimento sustentável, apoiado pelo Bra-
sil e vizinhos, e o de conservacionismo (o marco do lançamento das nego-
ciações ambientais foi a Conferência de Estocolmo, 1972).
A Nacionalização da Segurança (CERVO e BUENO, 2008, p. 364-366),
visava dar sustentabilidade a estas ações e associar a capacitação no setor

4.  Em 1994, tornou-se OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica).

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de poder duro ao desenvolvimento econômico-tecnológico. Esta capacita-


ção diminuiria a vulnerabilidade, tornaria o país mais autônomo na defesa
de seus interesses e poderia colocá-lo como um ator relevante no setor. De
acordo com Cervo e Bueno (2008), o programa de Nacionalização da Segu-
rança detinha cinco prioridades: a consolidação da indústria bélica nacio-
nal, com a ENGESA (Engenheiros Especializados S/A) e a AVIBRAS (In-
dústria Aeroespacial); a denúncia e rompimento do Acordo Militar com
os Estados Unidos em 1977; o Acordo Nuclear com a Alemanha Ocidental
(1975) para a construção de usinas nucleares5; o programa nuclear paralelo
para a construção do submarino nuclear e do ciclo completo de enriqueci-
mento de combustível; e a Política de Informática (1976).
Entretanto, a quase totalidade destes projetos foi afetada pela crise eco-
nômica e a instabilidade política associada à redemocratização. Após o go-
verno Geisel, a gestão Figueiredo pouco pode avançar e o agravamento
do fechamento dos espaços externos contribuiu para uma menor proje-
ção global. Este fechamento de espaços encontra-se diretamente associado
à emergência da Segunda Guerra Fria iniciada pelo Presidente dos Estados
Unidos Ronald Reagan (1981/1988), composta de uma ofensiva militar, po-
lítica e econômica contra a então União Soviética e o Terceiro Mundo. A
crise da dívida, a elevação dos juros e do preço do petróleo somente iriam
pressionar estas nações e, no caso do Terceiro Mundo, enfraquecer suas eco-
nomias, sociedades e coalizões.
Para o Brasil, isso significou uma política de contenção direta dos norte-
-americanos sobre seus esforços de autonomia, que leva a uma quebra nas
agendas interna e externa do país. Esta quebra marca o terceiro período,
1986 a 1999, que coincide com o agravamento da crise econômica nacional
e o processo de redemocratização. Observa-se a ascensão do governo civil
de Tancredo Neves e José Sarney à presidência e a eleição direta de Fernan-

5.  Deste acordo, resultaram as Usinas de Angra I e Angra II, já em funcionamento. A construção de An-
gra III foi paralisada na era Collor, assim como outros projetos no setor nuclear e retomada somente no
governo Lula (2003/2010). Os projetos do submarino nuclear e o domínio do ciclo de combustível, tam-
bém foram recuperados neste período, como será discutido no próximo item.

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do Collor de Mello em 1989 que levam ao recuo no campo da segurança e


da diplomacia. Tal recuo é marcado pela ambiguidade: por um lado a redu-
ção do risco de segurança no Prata e no Cone Sul e, por outro, pela dilapi-
dação do patrimônio nacional e o desmonte do setor de defesa justificado
pelos eventos no Cone Sul e o final da Guerra Fria em 1989.
O primeiro governo, o de José Sarney, teve uma ação compensatória.
A política externa e de segurança da “Nova República” alternou momen-
tos de continuidade, com quebra, tentando minimizar a crise brasileira e
o fechamento de espaços. A palavra chave é ambiguidade: ao mesmo tem-
po em que tentou se aproximar dos Estados Unidos, a gestão Sarney fo-
cou em políticas de autonomia, algumas contradizendo o interesse norte-
-americano.
A primeira dimensão revelou-se em ações que iam desde a abertura de
mercado até um posicionamento político menos intenso diante das gran-
des questões internacionais, substituído por uma perspectiva de adesão a
regimes internacionais. A segunda dimensão corresponde à preservação do
interesse brasileiro no Cone Sul de forma autônoma, com o adensamento
da aproximação bilateral com a Argentina, visando a integração regional. A
integração surgia como forma de compensar os espaços externos perdidos,
mas principalmente como tática de estabilização regional, eliminando esta
fronteira de insegurança, e consolidando os processos de transição no Bra-
sil e na Argentina (com Alfonsin à frente do governo).
Outra iniciativa relevante de autonomia foi o estabelecimento da Zona
de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS6) em 1986, que contraria-
va diretamente os Estados Unidos ao propor a desmilitarização do Atlân-
tico Sul. Em contraposição, os norte-americanos estavam tentando criar a
OTAS (Organização do Tratado do Atlântico Sul) visando o controle des-
ta região, que já começa a ser percebida como relevante zona de passagem
marítima e como reserva de recursos estratégicos no setor energético, como

6.  Outra iniciativa que merece ser mencionada foi a criação da CPLP, Comunidades dos Países de Lín-
gua Portuguesa em 1996.

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

o gás. Portanto, o Brasil ainda preservava certa medida de resistência, aban-


donada a partir de 1989.
Foi no governo de Fernando Collor de Mello (1990/1992), cuja ascen-
são política coincide com o final da bipolaridade no biênio 1989/1990, que
o Brasil abre mão de suas concepções de defesa e projetos de segurança na-
cional. O fim da Guerra Fria trazia à tona fenômenos que tornavam irrele-
vante o setor de defesa: a globalização e a unipolaridade.
Ambos eram associados à tese do fim da história de Francis Fukuya-
ma (1989). De acordo com esta tese, o encerramento da Guerra Fria re-
presentaria o de todos os conflitos no mundo, uma vez que não haveria
mais oposição ideológica entre o capitalismo e o socialismo. Dois pres-
supostos encontram-se presentes: a de que o conflito deve ser entendido
como “conflito ideológico” e que não haveriam mais alternativas ao capi-
talismo, que provara sua superioridade diante de outras concepções. As-
sim, a universalização do modelo liberal na política e na economia (nes-
te campo na forma do neoliberalismo do Consenso de Washington), por
uma adesão pacífica dos povos, traria um mundo de paz e cooperação.
Para o Brasil, a opção era somente uma: aderir a estes fluxos e abandonar
sua política globalista na África, Ásia, Europa, Oriente Médio, e focar-se
nos Estados Unidos.
A interdependência prevaleceria entre as nações e a segurança comparti-
lhada, com foco em temas como meio ambiente, direitos humanos, tráfico
de drogas, imigração ilegal, combate à corrupção, dentre outros. Portanto,
mecanismos clássicos de segurança (forças tradicionais e nucleares) pode-
riam ser descartados, pois não seriam mais necessários nas relações interna-
cionais. Países como Brasil aderiram a esta visão com intensidade.
Para Batista (1993), estas avaliações representavam um recorte ideológi-
co do mundo pós-1989, e que se revelavam equivocadas pela crise dos Esta-
dos Unidos, a eclosão da Guerra do Iraque (1990) e as desigualdades econô-
micas. Os “novos riscos” detinham caráter de ameaça real às nações. Neste
contexto, os investimentos no setor de defesa brasileira foram reduzidos ex-
ponencialmente, programas de desenvolvimento tecnológicos abandona-

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

dos e estabelecidos compromissos e regimes para reforçar a credibilidade


nacional.
Collor promoveu o desmonte do aparato de segurança nacional desen-
volvido nos anos 1970 e imprimiu uma nova visão das relações internacio-
nais. A integração regional no Cone Sul fazia parte desta agenda e que atin-
giria dois objetivos: a adesão política à governança, com o estabelecimento
da cooperação multilateral em zona de tensão conhecida da agenda nacio-
nal, e o alinhamento econômico à agenda do livre comércio.
A criação do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) em 1990, aceleran-
do os processos iniciados por Sarney e Alfonsin, representou o auge deste
processo. Com Collor no Brasil e Carlos Menem (1989/1999) na Argentina,
as negociações bilaterais passavam a ser parte desta tentativa de reinserção
alinhada aos Estados Unidos que, por sua vez, traziam suas propostas de in-
tegração regional (e se omitiam de propostas de reforma sobre o sistema
interamericano): a Iniciativa para as Américas de 1990, que propunha o es-
tabelecimento de uma Zona Hemisférica de Livre Comércio (ZHLC), e o
Acordo de Livre Comércio da América do Norte Estados Unidos, México
e Canadá (NAFTA) que entrou em vigor em 1994. Neste momento, anun-
ciou-se pela primeira vez o fim da Doutrina Monroe e a sua substituição
por uma agenda cooperativa (o segundo fim foi em 2014).
A criação do MERCOSUL visava complementar estas agendas e integrar
o Cone Sul a estes processos. No campo da segurança, a criação da ABACC
em 1990, Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Mate-
riais Nucleares foi um marco. Ainda que o bloco nascesse no viés neoliberal,
o mesmo nunca deixou de deter um caráter de autonomia, e de identidade
sul-americana, que se provou essencial para os desenvolvimentos do século
XXI. Apesar das limitações da Era Collor, o MERCOSUL consolida uma rela-
tivização do risco de segurança para o Brasil do Cone Sul, reforça as perspec-
tivas da integração sul-americana, lançando-a de forma autóctone e abre pers-
pectivas de projeção internacional diferenciadas para o país e a região.
Afinal, no governo Itamar Franco (1992/1994) que assume após o impea-
chment de Collor, estas dimensões voltam a predominar. Já em 1993, o em-

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

brião de uma integração mais ampla, a Área de Livre Comércio Sul-Ameri-


cana (ALCSA), com componentes político-estratégicos faz-se presente. Em
contraposição, em 1994, os Estados Unidos lançam as negociações da Área
de Livre Comércio das Américas (ALCA), retomando o projeto da ZHLC
que não havia sido alcançado no início dos anos 1990.
O período de Itamar foi de redução de riscos de segurança por um lado
devido à consolidação da integração e a normalização das relações com os
Estados Unidos, e, por outro, de elevação destes mesmos riscos pela imobi-
lidade. Não há uma política sistemática de recuperação do setor de segu-
rança. Esta dimensão apenas acentua a vulnerabilidade nacional, elevando
riscos externos. O que se percebia como maior risco à estabilidade nacio-
nal não era o setor externo, mas sim o interno, afetado pela continuida-
de da crise econômica, trajetória somente quebrada em 1994 com a im-
plementação do Plano Real. O plano de ajuste econômico foi responsável
por controlar a inflação e estabilizar o país, levando à eleição (e reeleição)
de Fernando Henrique Cardoso como presidente entre 1995 e 2002. Até
1999 quando é criado o Ministério da Defesa, com a junção das três armas,
Exército, Marinha e Aeronáutica, o debate de segurança prevaleceu subor-
dinado a uma visão de projeção de poder de baixo perfil e a uma política
externa com ênfase na busca de credibilidade, com base na cooperação e
interdependência: a “autonomia pela integração”.
Permanecia a lógica da adesão aos princípios propagados pelo núcleo
de poder liderado pelos Estados Unidos, tanto no campo econômico quan-
to no político, e a valorização dos mecanismos de governança multilateral
como forma de inserção global. Tais mecanismos sustentavam-se tanto no
papel das organizações internacionais governamentais como mediadoras e
fóruns de negociação, como no apoio a regimes. Simbólica deste período
foi a conclusão da adesão do país ao TNP em 1998.
Finalizava-se o processo de “limpeza de agenda” iniciado por Sarney
e que deveria, na avaliação de alguns setores no Brasil, levar a benefícios
que seriam fornecidos, principalmente, pelos Estados Unidos: a entrada no
Conselho de Segurança das Nações Unidas como membro permanente, a

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maior igualdade e equidade nas negociações comerciais e um papel mais


destacado nas organizações multilaterais em geral. Ou seja, o Brasil seria re-
conhecido como um ator de relevância não pelo uso do seu poder duro,
mas sim pela sua capacidade de instrumentalização do poder brando.
Na América Latina, os esforços de condução da integração regional so-
mente reforçariam esta capacidade de atuação mediadora, preservando a
estabilidade e os progressos econômicos, com foco no MERCOSUL. Nes-
te campo, porém, prevalecia uma ação ambígua na postura do Brasil dian-
te dos Estados Unidos, que colocava em xeque a adesão: as negociações da
ALCA iniciadas em 1994 com previsão de encerramento em 2005. Apesar
de seu alinhamento aos Estados Unidos em diversos campos, o governo
FHC revelava uma postura ambígua com relação a este acordo, não dese-
jando abrir mão do MERCOSUL ou de demandas de reciprocidade comer-
cial para o encaminhamento das negociações.
Pode-se dizer que a ALCA era percebida como um risco de segurança
para o Brasil, uma vez que sua eventual conclusão e a criação da ZHLC per-
mitiria a expansão econômica norte-americana de forma sistemática no he-
misfério. O país manteve uma postura de resistência nas negociações. En-
tretanto, mais uma vez este é um debate que procura evitar as questões
mais específicas de segurança, e os temas de defesa somente foram recu-
perados, ainda que de forma lenta e gradual, a partir de 1999 com a citada
criação do Ministério da Defesa. O pós-1999 foi o de retomada das percep-
ções de risco sobre o país em sua região, em particular no século XXI, e de
renovação das preocupações estratégicas nacionais sobre suas fronteiras de
segurança.

Integração, Projeção e Recuo: Os Desafios do Século XXI


No século XXI, a criação do Ministério da Defesa e a elaboração de novos
documentos estratégicos para o setor, como o Livro Branco de Defesa Na-
cional (LBDN) de 2012, representaram a retomada do debate sobre os te-
mas securitários. Este debate envolve não só a sistematização do LBDN,
mas a sua correlação com discussões relativas ao Plano Nacional de Defe-

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sa e a Estratégia Nacional de Defesa, compondo uma tríade do novo pen-


samento estratégico brasileiro para o século XXI e a realização de maiores
investimentos no setor. Na política externa, também puderam ser observa-
das alterações, como a introdução do conceito de “não-indiferença” (AMO-
RIM, 2015).
Tal conceito representa uma quebra relativa nas premissas de não-inge-
rência e não-intervenção. Ele indica que o Brasil manterá sua postura pací-
fica nas Relações Internacionais, só que a atrelará a uma dimensão pró-ati-
va, envolvendo-se em questões que demandem intervenção da comunidade
internacional a fim de evitar e/ou ajudar a estabilizar tragédias humanitá-
rias. A liderança brasileira do MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para
a Estabilização do Haiti) insere-se neste quadro, tendo sido iniciada em
2004. Ainda que muitos indiquem que esta mudança seria relativa ao inte-
resse brasileiro de se tornar membro permanente do CSONU, este protago-
nismo revela uma pauta mais ampla de política externa.
Esta pauta pressupõe um envolvimento mais ativo nos grandes temas
globais, desde a preservação da paz, até negociações em setores estratégi-
cos como o nuclear e o Oriente Médio. No caso, em 2010, o Brasil foi parte
ativa da conclusão do Acordo Tripartite Irã-Turquia-Brasil, sobre o progra-
ma nuclear iraniano. Apesar do Acordo não ter entrado em vigor devido à
pressão dos Estados Unidos. Posteriormente, os próprios Estados Unidos re-
tomariam o processo, como líderes, nas negociações entre o Irã e o 5+1 (os
cinco membros permanentes do CSONU e a Alemanha), que resultou em
novo tratado em processo de implementação.
Além disso, esta pauta se refere à recuperação da liderança no Tercei-
ro Mundo, à ênfase em projetos sociais no âmbito da Cooperação Sul-Sul
e a maior intensidade na formação e desenvolvimento de alianças de geo-
metria variável como o IBAS (Fórum Índia, Brasil e África do Sul), o G20
comercial e o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Ou-
tros novos elementos, com aderência em ambos os campos, defesa e po-
lítica externa, foram o risco do terrorismo transnacional e a apresentação
do Atlântico Sul com outra linguagem estratégica, a da Amazônia Azul.

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Duas fases podem ser identificadas na agenda contemporânea: 1999 a 2012


e 2013 a 2016.
Complexo e diversificado, o período de 1999 a 2012 inicia-se a partir da
criação do Ministério da Defesa e se fecha a partir do lançamento do LBDN
e do I Plano de Articulação e Equipamento de Defesa (PAED). Além dis-
so, engloba a ampliação dos projetos de integração sul-americana liderados
pelo Brasil e a criação de estruturas de segurança regionais, e uma nova per-
cepção sobre o Atlântico Sul e a segurança global.
O primeiro movimento ocorre em 2000 com o lançamento da propos-
ta de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) no go-
verno de FHC na Cúpula de Brasília, que congregou todos os Chefes de
Estado da América do Sul. O contexto era de crise econômica regional e
de perda de espaços internacionais. Para solucionar estes problemas, a II-
RSA propunha o desenvolvimento e modernização da infraestrutura físi-
ca sul-americana em setores como energia, transporte e telecomunicações,
percebendo este processo como componente de sua segurança estratégica.
De acordo com Padula (2011), a integração regional não pode ser descola-
da da premissa do desenvolvimento e do foco social, como forma de empo-
deramento.
Esta visão é compartilhada por Costa (2003), que destaca o potencial
inexplorado dos recursos de poder sul-americanos e a necessidade de que
projetos sejam estabelecidos para o usufruto de tais recursos. A IIRSA era
composta de dez eixos geográficos, a partir dos quais estes projetos seriam
implementados, tendo como base as necessidades específicas de cada um e
os seus potenciais. Especificamente, os eixos eram: Andino, Andino do Sul,
Capricórnio, Hidrovia Paraguai-Paraná, Amazonas, Guianês, Interoceânico
Central, MERCOSUL-Chile e Peru-Brasil-Bolívia7.
A gestão de Luis Inácio Lula da Silva (2003/2010) somente aprofundou
estes esforços de integração, assim como o debate sobre defesa. O governo
Lula parte de um ponto sólido: o salto qualitativo da IIRSA, com foco na

7.  Para maiores informações e detalhamento dos projetos ver www.iirsa.org.

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

infraestrutura e projetos concretos (e investimentos). A interdependência


entre integração, segurança e desenvolvimento encontra-se sistematizada
de forma clara neste projeto. A construção de rodovias, pontes, gasodutos,
são apenas alguns dos resultados associados à IIRSA, que elevou a qualida-
de do planejamento estratégico regional. A partir de 2011, os projetos da II-
RSA foram incorporados ao Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e
Planejamento (COSIPLAN) da União das Nações Sul-Americanas (UNA-
SUL), responsável pelo Plano de Ação Estratégico (2012-2022).
Antes de entrar-se na discussão da UNASUL é preciso destacar que o
biênio 2000/2001 é especialmente sensível na região não só pela crise eco-
nômica, mas também pelas novas ações que os Estados Unidos apresenta-
ram. Em 2000, paralelamente ao lançamento da IIRSA (e ao esvaziamento
das negociações da ALCA), os Estados Unidos, em parceria com a Colôm-
bia, deram início à Iniciativa Andina Contra as Drogas (Plano Colômbia8)
visando combater a produção e o tráfico de drogas na região andina. A mi-
litarização do conflito contra as drogas incluía a fumigação de plantações
(a despeito de suas consequências ambientais e efeito nos países vizinhos,
não diretamente envolvidos na operação) e a presença de soldados norte-a-
mericanos em solo e bases colombianas (autorização que somente foi revo-
gada em 2009, mesmo com a continuidade do Plano).
A realização de pressões sobre o emergente Socialismo do Século XXI de
Hugo Chavez e a renovada autonomia brasileira também são fatores associa-
dos a esta ação. Outro fenômeno desta agenda em 2001, no pós-11/09, é o do nar-
coterrorismo, alegando-se que guerrilhas colombianas como as FARC (Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia) estariam financiando atividades terro-
ristas transnacionais com o tráfico de drogas. No campo do terrorismo transna-
cional, adicionalmente, os norte-americanos incluem na lista de zonas ameaças
a Tríplice Fronteira Brasil, Argentina, Paraguai, que seria, segundo suas avalia-
ções, reduto de grupos como o Hamas, o Hezbollah e a Al-Qaeda.

8.  Desde 2008, os Estados Unidos iniciaram na fronteira contra o México outra guerra contra as dro-
gas, a “Iniciativa Mérida”.

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

A reação brasileira e da América do Sul foi negar estas acusações por um


lado e, por outro, buscar reforçar suas iniciativas autônomas de integração,
em contraposição a estas tentativas de ingerência. Neste sentido é que se in-
serem iniciativas como a CASA/UNASUL e a continuidade da IIRSA. No
caso, a UNASUL foi outro exemplo da relevância da integração regional
para as fronteiras de segurança brasileiras e o adensamento das redes coo-
perativas locais como forma de estabilizar, desenvolver e projetar a Améri-
ca do Sul em escala global.
Criada em 2007, e constituída em 2008, a UNASUL origina-se a partir
do projeto da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), estabeleci-
da em 2004. A CASA tinha como objetivo complementar o MERCOSUL
e a IIRSA e fortalecer a plataforma sul-americana9. O período foi marcado
pelas negociações interregionais nas Cúpulas América do Sul-Países Árabes
(ASPA) e América do Sul-África (ASA)
Em 2008, merece destaque o estabelecimento do Conselho de Defesa
Sul-Americano (CDS) da UNASUL. O CDS, do qual deriva a criação da Es-
cola de Defesa Sul-Americana, representa um movimento inédito na re-
gião: a preocupação soberana dos Estados sul-americanos com a estrutu-
ração de um sistema próprio de segurança. Assim o CDS é uma iniciativa
verdadeiramente autônoma regional, que se contrapõe ao tradicional siste-
ma interamericano, para

a) Consolidar a América do Sul como uma zona de paz, base para a es-
tabilidade democrática e o desenvolvimento integral de nossos povos e
como contribuição para a paz mundial; b) Construir uma identidade
sul-americana em matéria de defesa, que leve em conta as características
subrregionais e nacionais e que contribua para o fortalecimento da uni-
dade da América Latina e do Caribe; c) Gerar consenso para o fortaleci-
mento da cooperação regional em matéria de defesa. (DOCUMENTOS,

9.  Na região, são projetos paralelos o da ALBA (Alternativa Boliviariana para os Povos da Nossa Améri-
ca) proposta pela Venezuela, a luz do recuo estadunidense pós-ALCA.

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

CONSELHO DE DEFESA SUL-AMERICANO, s/a, s/p) (...) Avançar gra-


dualmente na análise e na discussão dos elementos comuns que compõe
uma visão conjunta em matéria de defesa; b) Promover o intercâmbio
de informações e análises sobre a situação regional e internacional com
o objetivo de identificar os fatores de risco e ameaça que podem afetar
a paz regional e mundial; c) Contribuir para a articulação de posições
conjuntas da região em fóruns multilaterais sobre a defesa (...) d) Avan-
çar na construção de uma visão compartilhada sobre as tarefas de defesa
e para promover o diálogo e a cooperação preferencial com outros paí-
ses da América Latina e do Caribe; e) Fortalecer a adoção de medidas de
construção de confiança e difusão das experiências compartilhadas; f)
Promover o intercâmbio e a cooperação em matéria da indústria de de-
fesa; g) Fomentar o intercâmbio em matéria de formação e capacitação
militar; h) Compartilhar experiências e apoiar ações humanitárias (...) i)
Compartilhar experiências em operações de manutenção de paz das Na-
ções Unidas; j) Trocar experiências sobre os processos de modernização
dos Ministérios da Defesa e das Forças Armadas; k) Promover a incorpo-
ração da perspectiva de gênero no setor de Defesa10.

A crescente importância da fronteira marítima do Atlântico Sul mere-


ce destaque neste período, pela sua renovada importância para a projeção
estratégica do Brasil. Como já abordado, nos anos 1970 o país já se manifes-
tara a favor da extensão de sua PC para 200 milhas territoriais, limites re-
conhecidos pela CNDUM. Adicionalmente, o país defendia o direito à ex-
ploração da fronteira antártica ao Sul e em 1986 o país liderara a criação
da ZOPACAS, visando a preservação do Atlântico Sul como zona desmili-
tarizada. Nos anos 1990, a questão ficou em compasso de espera devido às
transformações no vetor do pensamento de segurança como analisado, po-
rém retornou com força no século XXI.

10.  Disponível em http://www.unasursg.org/inicio/organizacion/consejos/cds. Acesso em 10 de Ju-


nho de 2014

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A “redescoberta” do Atlântico Sul, renomeado de “Amazônia Azul”11 en-


contra-se associada a questões geopolíticas e geoeconômicas que envolvem
o Brasil, o continente africano, a China, a Índia e os Estados Unidos princi-
palmente. Segundo o LBDN (2012),

A região do Atlântico Sul sobre a qual o Brasil tem direitos territoriais e


outras prerrogativas de exploração e controle corresponde às águas juris-
dicionais. Recebeu recentemente a denominação Amazônia Azul, cuja
área é equivalente a da Amazônia Verde brasileira. Sob essa região es-
tão abrigadas as reservas de petróleo em águas profundas e ultraprofun-
das, tão importantes para o desenvolvimento do País. (LBDN, 2012, p. 17)

Desde 2003, o país voltou a ter uma atuação neste espaço, por meio de
alianças políticas e econômicas com a África. Paralelamente, China e Ín-
dia, em particular a China, também iniciou um processo de expansão mais
sistemática na África a partir de 1999 e a criação do FOCAC (Fórum de
Cooperação China-África). A partir de 2008 esta parceria teria como foco
a América Latina, sustentada, em ambos os casos em ajuda econômica, au-
mento dos fluxos comerciais com foco em commodities (agrícola e energia)
e investimentos em infraestrutura.
Por sua vez, este avanço chinês também é uma ameaça aos interesses
brasileiros na região, pois ocupa espaços político-econômicos preferenciais
do Brasil (e afeta as economias locais e a brasileira com processos de desin-
dustrialização e reprimarização dentre outros12). O Atlântico Sul volta ao
jogo de poder global pelas ações dos emergentes, que atraem, a partir de
2008, reações norte-americanas a sua crescente influência e poder.
Tais ações são representadas pela elevação da projeção estratégico-mi-
litar dos Estados Unidos na região por meio da reativação da Quarta Fro-

11.  Ver a edição da Revista Austral sobre o tema em Austral v.2, n.3: http://seer.ufrgs.br;index.php/aus-
tral/issue/view/1891.
12.  Ver FUNG e GARCIA-HERRERO, 2012 e GALLAGHER and PORCEZANSKI, 2010

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ta do Atlântico Sul, o aumento dos investimentos no Comando Militar do


Sul (USSOUTHCOM) para patrulhar o Atlântico Sul e promover ações ter-
restres no hemisfério americano e a criação de um novo Comando Militar,
o Comando Militar da África (USAFRICOM). Oficialmente, o aumento da
presença é justificada pelos já citados riscos do tráfico de drogas e do terro-
rismo transnacional, mas refere-se também a estas dinâmicas de competi-
ção por esta região. Em 2014, os Estados Unidos anunciaram sua retomada
de relações diplomáticas com Cuba, como parte de sua ofensiva de tentar
recuperar espaços.
Em síntese, geopolítica e geoeconomicamente, o Atlântico Sul é uma re-
gião de ligação entre as principais rotas marítimas globais, rica em recursos
energéticos, com reservas de gás e petróleo conhecidas, já exploradas por
países como Brasil e Angola desde os anos 1970/1980. A estas reservas agre-
gou-se a partir do biênio 2006/2007 a descoberta do pré-sal brasileiro, re-
cursos petrolíferos e de gás, explorados em altas profundidades oceânicas.
Quando de seu surgimento, o pré-sal foi anunciado como a “nova fronteira
energética” global, que colocaria o Brasil em situação de vantagem econô-
mica interna e externa, e como parte fundamental do mercado de energia,
majoritariamente focado no Oriente Médio.
Até Março de 2016, a exploração do pré-sal encontra-se em sistema de
partilha entre empresas nacionais e estrangeiras (com a demanda de con-
trole das empresas nacionais), mas o debate sobre esta legislação encontra-
-se em aberto. Deve-se destacar que em 2014, como resultado destas ques-
tões, o Brasil entrou com um pedido nas Nações Unidas para a revisão de
sua PC para 350 milhas, que permanece em julgamento.
Entretanto, muito se questiona se o pré-sal ainda teria importância, ou
o mercado do petróleo em si em seu formato tradicional, devido à queda
de preços deste produto que estaria sendo gerada pela tecnologia aplicada
ao xisto (que forneceria gás e petróleo). Assim, o pré-sal estaria sendo subs-
tituído, a partir dos Estados Unidos e sua liderança no setor, pelo xisto, que
representaria esta “revolução energética”. Esta discussão é ampla, e não tería-
mos espaço para aprofundá-la, mas sobre o tema é possível trazer algumas

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indagações: o xisto terá realmente fôlego para substituir a exploração de pe-


tróleo para abastecer os principais mercados globais do mundo desenvolvi-
do e em desenvolvimento? Quais as consequências e limites do xisto?
Sem resposta, estas perguntas indicam, porém, que as demandas ener-
géticas das potências permanecem elevadas, e que o Brasil poderia e deve-
ria desempenhar um papel mais sistemático neste setor. E, no caso, não so-
mente por meio do pré-sal, mas também por sua tecnologia na produção
de biocombustíveis como o etanol (projeto originalmente desenvolvido no
regime militar como “Proalcool”). Ainda, no campo da energia, o Brasil re-
tomou suas agendas, mesmo que lentamente para a obtenção de um sub-
marino nucelar (por meio do projeto PROSUB), e finalizou o ciclo de enri-
quecimento de urânio, produzido nas Indústrias Nucleares do Brasil (INB)
em Resende desde 2005.
Segundo Silva (2016), neste período, estes projetos, além de outros como
os da Construção do Núcleo de Poder Naval, do Sistema de Gerenciamen-
to da Amazônia Azul (suspenso), Complexo Naval da Segunda Esquadra,
do FX-2/Gripen, do Sistema Integrado de Proteção de Estruturas Terrestres,
o dos blindados Guarani, ganharam especial atenção. Havia uma expecta-
tiva de que efetivamente este processo de reaparelhamento das Forças Ar-
madas, associada às doutrinas estratégicas em debate levariam a um salto
qualitativo. O lançamento do LBDN e do PAED em 2012 somente traziam
mais força a esta sinalização.
O período mais recente, 2013 a 2016, portanto, emergia sob o signo do
otimismo de que haveria a continuidade dos esforços de adensamento da
agenda de segurança brasileira e de uma projeção de poder sistemática em
suas fronteiras terrestres e marítimas. Todavia, o que se tem observado, de-
vido ao agravamento da crise político-econômica brasileiro, é a quebra des-
tes processos em termos práticos, a despeito de sua continuidade retórica.
Desta forma, no discurso, permanecem como prioridades os esforços de in-
tegração, negociações interregionais, estabilidade terrestre e marítima com
proteção aos interesses e à soberania brasileiras e de seus parceiros e o rea-
parelhamento das Forças Armadas.

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Por outro lado, não há correspondência prática entre o que se definiu


como agenda prioritária retoricamente, e a implementação da mesma. Ain-
da que projetos como a UNASUL (e do CDS e do COSIPLAN dentro dela)
e o MERCOSUL permaneçam em andamento, seu formato, estrutura e
continuidade tem sido questionados cada vez mais. Não são poucos os que
defendem uma integração menos política e mais comercialista similar, por
exemplo, à Aliança do Pacífico e à Parceria Transpacífica (e à futura Parce-
ria Transatlântica). Adicionalmente, os cortes orçamentários colocam em
dúvida a implementação dos projetos em andamento, de novas propostas e
a base da defesa brasileira.
Como indica Silva (2016), muitos projetos previstos no PAED I não fo-
ram desenvolvidos, alguns se encontram suspensos, e a discussão sobre o
segundo PAED a ser implementado a partir deste ano, permanecem con-
dicionadas a esta situação nacional. Ao mesmo tempo, os gastos militares
de nações de porte similar ao Brasil como os BRICS (Rússia, Índia, China
e África do Sul) permanecem em patamares altos, assim como os de Fran-
ça, Grã-Bretanha, Alemanha, Japão e, particularmente, dos Estados Unidos.
Em termos comparativos, o Brasil perde gradualmente capacidade de pro-
jeção e, principalmente, de defesa e dissuasão diante de ameaças regionais
e globais. Trata-se de um período sensível para as fronteiras de segurança
do Brasil.

Considerações Finais
Ao longo texto, analisaram-se os desafios das fronteiras de segurança do
Brasil, fazendo um paralelo entre os debates de defesa e os de política exter-
na, associados às agendas e práticas concretas do país nestes setores. Do sé-
culo XX ao XXI este foi, e permanece sendo, um processo, caracterizado por
oscilações entre uma ação mais assertiva e autônoma nestes campos, e uma
preferência por padrões de baixo perfil. Apesar dos avanços da última déca-
da, a segunda metade do século XXI traz um recuo sensível sobre a agenda
nacional de projeção regional e global gerada tanto por fatores internos e
externos, como discutido.

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A redução de investimentos políticos-econômicos-estratégicos do Brasil


em suas relações internacionais e defesa colocam em xeque sua posição na
América do Sul e global. Como indicado, isso reflete as próprias fragmen-
tações da sociedade brasileira e suas percepções sobre o que é, o que deve-
ria ser, e o que poderia ser um projeto nacional e internacional. É fato que
a realidade se interpõe as reticências brasileiras e pressiona o país em suas
fronteiras de segurança, o Prata/Cone Sul, o Norte e a Amazônia Verde, a
América do Sul e o Atlântico Sul/Amazônia Azul. A inação brasileira nes-
tes espaços que são sua circunstância geopolítica e geoeconômica somente
traz custos para o próprio país, levando à diminuição de oportunidades em
sua zona de influência e à elevação de sua vulnerabilidade.

Referências Bibliográficas
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Março de 2016.

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As dinâmicas da fronteira Austral


do Prata e suas repercussões
para o Brasil no século XXI
Danielle Jacon Ayres Pinto e Sabrina Evangelista Medeiros

Introdução

O Brasil é um país continental que possui uma gama diversificada de


dinâmicas em suas fronteiras; todavia, uma região em especial, a do
estuário do “Rio da Prata”1, traz uma série de repercussões que influenciam
a política externa deste país em relação ao espaço da América do Sul desde
a sua independência. A região austral do Prata engloba o relacionamento
de cinco Estados, sendo eles: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia -
este último detentor de importantes afluentes do rio Paraná, apesar de não
estar geograficamente perto do estuário.
As relações entre estes atores trespassam desde área econômica chegan-
do até as dinâmicas de segurança. Desta forma, este capítulo tem como ob-
jetivo entender quais as práticas correntes neste espaço no século XXI e
quais as repercussões que estas têm para o Estado brasileiro.
Neste sentido três áreas em especial serão tratadas para que se analise a di-
nâmica contemporânea da região: a econômica, a política e a de segurança.
Tais áreas necessitam ser destacadas devido às realidades que permeiam a re-
gião como o MERCOSUL, a UNASUL, a utilização dos afluentes do Rio da
Prata para escoamento de mercadorias, dos recursos naturais existentes, das di-
ferenças e semelhanças políticas destes atores nos últimos anos e, por fim, do
complexo de segurança que envolve a região e tem repercussões continentais.

1.  O Rio da Prata é o encontro de dois Rios, o Paraná e o Uruguai, que formam um estuário entre as
regiões da Argentina e Uruguai e que informalmente passou a ser chamado de Rio da Prata, mas tam-
bém é reconhecido como estuário do Prata. Para saber mais sobre este tema consultar: Adaberto Scorte-
gagna, Atlas Geografia Mundial – com o Brasil em Destaque, 2009.

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Fronteiras e suas características contemporâneas


Falar de fronteiras é de certa maneira tratar de um tema tradicional e basi-
lar da formação do Estado Moderno. Suas características dão ênfase a uma
percepção geopolítica que pode ser entendida de duas perspectivas: uma
de limitação e outra como espaço de relação (COSTA, 2008).
Nas compreensões tradicionais fronteiras tinham ligação a demarcação
de um espaço (limite) que seria reconhecidamente ligado a seu povo e por
ele seria defendido (MATTOS, 2011), ou seja, a fronteira era parte integran-
te de um reconhecimento nacional de uma sociedade enquanto tal e deter-
minante para dizer o que pertencia a ela e o que estava fora. Em comple-
mento, a fronteira também determinava o espaço físico do ente estatal e,
por conseguinte, quais os recursos que este possuiria. Assim, as fronteiras
marítimas e terrestres foram sendo trabalhadas em teorias geopolíticas que
demonstravam as características de sua geografia como fontes de defesa do
território e atributo de poder no sistema (MELLO, 1999).
Neste sentido, a noção de limite e relacionamento da fronteira esta-
va associada a uma ideia de soberanias bem determinadas e ameaças de
segurança tradicionais, ou seja, defesa do espaço soberano do Estado seja
em momentos de guerra ou em momentos de paz, evitando que ‘intrusos’
adentrassem neste espaço sem a devida autorização.
Todavia, este padrão de compreensão das fronteiras passa a mudar no
pós – 2ª guerra mundial e ganha força com o fim da guerra-fria nos finais
dos anos 80. As fronteiras, que tradicionalmente eram entendidas como li-
mitações físicas na segunda metade do século XX, vão sofre de novas dinâ-
micas que irão mudar suas características originais. Os processos de integra-
ção econômica, como o da atual União Europeia, passam a produzir outros
tipos de interações nas fronteiras que levam o seu papel de limitador para
um espaço reduzido de determinação geográfica formal do Estado (FOU-
CHET, 1988). Assim, fluxos econômicos e processos de integração passam
a determinar novas dinâmicas no espaço transfronteiriço. Desta forma, o
que anteriormente era entendido como ameaça à soberania passa a ser uma
nova forma de compreensão das mesmas fronteiras.

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A circulação livre de bens e pessoas passa a ser um mote a se alcançar


na nova percepção das fronteiras, e questões de ameaças de segurança tra-
dicionais perdem força na compreensão deste espaço. A globalização vai re-
forçar esta dimensão principalmente com o fim da guerra-fria e a proposta
de unificação do mundo em um modelo predominante econômico, políti-
co e ideológico. Todavia, a ideia de um mundo global e interligado provin-
da da globalização, não vingou como realidade factual e as fronteiras ainda
hoje, no século XXI, demandam especial atenção do Estado, porém através
de novos olhares e interações. Como afirma Aiger (2016, p. 1)

Passada a época das projeções teóricas e políticas que envolveram a que-


da do muro de Berlim, os desejos de um mundo sem fronteiras ou as
teorias de uma cidade-global, sabemos agora que a globalização, na qual
entramos de forma bem consciente, não suprimiu as fronteiras: ela as
transforma, as desloca, as multiplica e as alarga, ao mesmo tempo que as
torna mais frágeis e incertas.

Assim, falar de fronteiras do século XXI é extrapolar suas dimensões


geográficas e entender toda a realidade econômica, política, social e de se-
gurança que afeta este espaço. No caso da fronteira Austral do Prata esta
questão se coloca de maneira pertinente devido a sua extensão fronteiriça
ser muito mais que o espaço físico que ela abarca, mas sim, representa uma
demanda por recursos e projeção de poder de uma gama de Estados na re-
gião do Cone Sul do continente americano.

Região do Prata e seu histórico fronteiriço


A região da bacia do Rio do Prata, como já foi visto acima, se localiza na
parte sul do continente americano, e sua maior característica é ser um es-
paço que interliga as vias pluviais dos rios Paraná e Uruguai a um estuário
com saída para o Oceano Atlântico, o que lhe dá características muito pe-
culiares para o escoamento de mercadorias, como também para a promo-
ção do comércio intracontinental.

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Reconhecidamente, a história da região foi marcada pela disputa das


potências coloniais, Portugal e Espanha, respectivas metrópoles de Brasil
e Argentina, pela dominação deste espaço de maneira que seu poder fos-
se constantemente fortalecido. Todavia, com a independência dos países da
região sulamericana, a contenda do Prata, depois de uma tentativa frustra-
da da Argentina em tomar posse do território, acabou se contornando com
a criação de uma fronteira entre dois Estados, Argentina e Uruguai, sen-
do que cada um passou a ter a soberania por uma das margens do estuário.
(CERVO; BUENO, 2008)
Todavia, a bacia do Prata é uma região maior que seu estuário, sendo
que os afluentes do rio da Prata passam pelos seguintes países: Brasil, Ar-
gentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia. Neste sentido, a dinâmica relacional
entre estes atores é determinante para entender os desafios e as perspectivas
desta bacia para o Brasil o no século XXI.
Assim, mais do que um espaço para o comércio a bacia do prata passa
a ser uma região estratégica para os países que nela estão inseridos, de ma-
neira que qualquer tipo de utilização deste espaço por parte de um ator,
repercute na possibilidade de utilização dos demais (FAUSTO, 2001). Um
exemplo desta dinâmica é a criação da Usina Hidroelétrica de Itaipu e as
repercussões institucionais com Argentina, Paraguai e Uruguai que surgi-
ram deste ato.
Todavia, no século XXI as questões que mais demandam atenção na re-
gião da bacia do Prata são de cunho econômico, político e de segurança.
No nível econômico, a criação do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL)
na década de 90 do século XX trouxe para as fronteiras da região uma nova
percepção dinâmica da circulação de bens e pessoas; no nível político, a as-
censão de governos de centro-esquerda na região no início do século XXI
modificou a maneira de relacionamento entre estes atores e sua percepção
de ação conjunta dentro do espaço internacional o que, em parte, culmi-
nou com a criação de outra inciativa institucional que foi a União das Na-
ções Sulamericanas (UNASUL); e, por fim, na área de segurança, a desco-
berta de novos recursos do pré-sal brasileiro e da reserva de água potável do

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aquífero guarani e a proximidade da região com o entorno do continente


antártico, demandaram novas ações em prol de uma política de segurança
para a região.
Desta forma, a partir de agora passamos a ver de maneira mais específica
estas dinâmicas circunscritas à bacia do Prata, procurando identificar quais
suas influências para o Brasil no século XXI.

Bacia do Prata e a dinâmica econômica


A perspectiva econômica é uma das mais sensíveis áreas a influenciar a Ba-
cia do Prata. O seu papel de caminho disseminador de recursos do espaço
interno do continente para o mar faz deste estuário uma zona econômica
estratégica na região. Todavia, o evento econômico mais significativo para a
este espaço hoje em dia é a existência do MERCOSUL e de suas dinâmicas.
O Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) foi uma iniciativa erigida no
início dos anos 90 do século XX e que tinha por objetivo aumentar a rela-
ção econômica e política entre seus membros, que eram, àquela altura: Bra-
sil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Porém, quando da sua institucionaliza-
ção em 1991, por meio do Tratado de Assunção, a ênfase maior dada pelo
bloco foi a comercial, culminando, em 1995, com a criação da tarifa exter-
na comum entre os atores estatais e na promoção do segundo maior bloco
comercial mundial (CERVO; BUENO, 2008). Segundo alguns teóricos (MI-
LANI et. al., 2014, p. 86)

Os primeiros anos do Mercosul revelaram-se um grande sucesso em ter-


mos econômicos e institucionais. Além de um importante crescimen-
to comercial entre os Estados membros, tudo indicava que os países ti-
nham superado suas desavenças históricas e buscavam, em cooperação,
o desenvolvimento.

Todavia as crises econômicas dos finais da década de 90 fizeram com


que houvesse um abalo em suas estruturas de maneira que os Estados, ao
invés de permitirem ao Mercosul aprofundar suas dinâmicas comerciais e

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institucionais, passaram a tomar medidas econômicas unilaterais - o que re-


sultou num claro enfraquecimento desta iniciativa de integração e coope-
ração. Mas, no início do século XXI, a região passaria por uma mudança.
Haveria uma reorganização política provocada por governos de centro-es-
querda que ascendiam em países-chave como Brasil, Equador, Bolívia, Pa-
raguai e Venezuela o que refletirá num novo olhar para a região, e conse-
quentemente, para suas iniciativas. (REYES, 2007)
Assim, se no início, o processo de integração era visto de um prisma
organizacional proposto pelo hegemon continental - os EUA - neste mo-
mento de ascensão das esquerdas latino-americanas, a proposta que passa a
ser pensada é a de um aprofundamento destas iniciativas em vários níveis,
num compromisso político mais alargado que desse à região uma nova ca-
pacidade de inserção no espaço internacional. (LIMA, 2013)
Deste modo, as dinâmicas do MERCOSUL passam a ser aprimoradas,
especialmente em uma conjuntura de adesão de um novo membro no gru-
po, a Venezuela, e outro, a Bolívia, que ainda aguarda a aprovação de seu
pedido para virar sócio pleno do bloco. Progressivamente, Iniciativas com
maior ou menor grau de institucionalização foram sendo tomadas, desde
a a criação do Parlamento do Mercosul, aos Conselhos e Secretarias espe-
cializadas.
Hoje em dia os números mostram que, com essa mudança de atitude
no início do século XXI, o bloco se tornou um expoente comercial pujan-
te para os países da região. Os países do bloco tiveram na primeira década
do século XXI um aumento do seu saldo comercial intra-bloco, superan-
do em muitas vezes o seu saldo com o mercado externo (MILANI et. al.,
2014). Para o Brasil o cenário foi ainda melhor. Segundo dados do Ministé-
rio da Indústria, Comércio Exterior e Serviços o montante comercializado
do país com os membros do bloco é cinco vezes maior em 2011 do que era
em 2002, perfazendo um total de U$ 47.228 bilhões de dólares (BRASIL/
MDIC, 2016).
Para além da complexidade econômica do Mercosul, a região da bacia
do Prata e seu estuário possui riquezas como os recursos pesqueiros na cos-

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

ta da Argentina - que se estende do Rio da Prata até a Estreito de Magalhães


e é rica em recursos minerais no solo marítimo. Além disso, possui jazidas
de petróleo no mar desta região, estando a bacia do Prata localizada sobre
um dos maiores aquíferos do planeta, o Guarani, uma reserva de água doce
de extrema importância. (REYES, 2007)
Neste sentido, iniciativas como o Mercosul são essenciais para a manu-
tenção da cooperação entre os atores da região de maneira que tais recur-
sos, tanto comerciais como naturais, possam ser potencializados em prol
do seu desenvolvimento e de seu papel atuante no espaço internacional.
Assim, a perspectiva que parece ser dominante nesta região é de que ela
seja cada vez mais cobiçada por potencias como EUA e CHINA, na tentati-
va de usufruir o máximo possível das benesses que possui.
Para o Brasil, neste cenário o desafio será de dois tamanhos: um econô-
mico-competitivo e outro político-institucional. O econômico ficará calca-
do na tentativa do Brasil em alicerçar sua influência na região de maneira
a manter o crescimento de seu comércio intra-bloco e evitar que potências
que não sul-americanas adentrem o espaço e ganhem preponderância, des-
construindo a alternativa econômica da região para os Estados-membros.
No âmbito político o desafio será o de reconstruir alianças com a reno-
vação das lideranças políticas na região. A Argentina, em 2015, elegeu um
governo de centro-direita que vê no MERCOSUL muito menos valor do
que via o seu predecessor; no Brasil, a instabilidade política causada por
um processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff - que por mui-
tos é considerado ilegal - gera um alto grau de desconfiança no mercado
e abre brechas significativas para que novos países, externos à região, pas-
sem a exercer influência comercial sobre o grupo. Isso sem contar também
que, de acordo com as diretrizes iniciais do governo substituto ao de Dilma
Rousseff - entendido como de centro-direita - o MERCOSUL deixa de ter o
peso que eventualmente tinha antes.
No cômpito geral, a perspectiva da região é de renovação do seu status
político, diante da presença de novas lideranças políticas nacionais, como
na Argentina (2015) e no Brasil (2016), que contribuem com uma transição

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do papel e do olhar dos países componentes e externos ao projeto em rela-


ção ao MERCOSUL. Os desafios para o Brasil serão voltados à tentativa de
entender esta nova dinâmica, tanto interna como externa, e reorientar seu
objetivo estratégico para região. Todavia, como apresenta o embaixador Sa-
muel Pinheiro Guimarães (2006), tanto Brasil e Argentina devem insistir
em fortalecer o MERCOSUL de maneira que evitem tornar-se somente um
espaço para a execução de projetos exteriores ao bloco provenientes dos
centros hegemônicos, principalmente dos EUA, que tem um especial inte-
resse em manter sua preponderância no continente.

Bacia do Prata e a dinâmica política


Para além da dinâmica econômica/comercial clara que tem a região da Ba-
cia do prata e do seu estuário, as questões políticas são também relevantes
para entender as perspectivas da região. Formada por sub-bacias do Para-
ná, do Paraguai e do Uruguai, a Bacia do Prata inclui dinâmicas distintas
de acordo com o perfil geográfico da sua sub-bacia e as relações exteriores
que estas subáreas permitem. O fator de maior relevância política que in-
terferiu nesta bacia na última década foi a ascensão de governos de centro-
-esquerda em países-chave na região. Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e
Bolívia – principais atores do Prata – assim como também o Chile, a Vene-
zuela e o Equador levaram ao poder governos que ideologicamente busca-
riam uma nova proposta para região.
Como afirma Pecequilo (2015) com a ascensão destes governos de es-
querda vai reaparecer a ideia de reforma do espaço latino-americano numa
direção mais progressista, que desafiará a lógica da agenda neoliberal im-
posta à região nos finais da década de 90. Os grandes expoentes daquele
momento seriam Luis Inácio Lula da Silva e Hugo Chaves que, apesar de
possuírem modelos de gestão diferentes, tinham a mesma estratégia no que
diz respeito ao empoderamento da América Latina, de maneira aumentar
sua influência no espaço internacional, promovendo então mais benefícios
sociais às populações e aumentando o nível de interdependência dos paí-
ses da região.

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Neste sentido, segundo Ayerbe (2008, p. 265) estes governos “objetivam


recuperar capacidades de gestão nos âmbitos interno, principalmente com
a promoção da equidade social, e externo, com a busca por afirmação regio-
nal [...] e maior autonomia nas relações com os EUA”.
O objetivo, a partir de então, será aprofundar laços de diálogo Sul-Sul,
criando alternativas para as atividades dos países desta parte do globo de
maneira que não sofressem com uma relação desigual partindo na lógica
Norte-Sul. Institucionalmente duas iniciativas são importantes na cons-
trução de laços políticos regionais que teriam consequências alargadas,
são eles: a Iniciativa de Integração Regional Sulamericana – IIRSA e a,
posterior criação da União das Nações Sulamericanas – UNASUL.
A IIRSA, proposta ainda no ano 2000 no governo Fernando Henrique
Cardoso, tem por intuito aprimorar uma integração estrutural da região,
dando ênfase a áreas como transporte, comunicações e energia. A propos-
ta é dar suporte físico estrutural para tornar a região mais forte, mais ca-
pacitada e com mais desenvolvimento de suas estruturas físicas de manei-
ra a construir uma participação diferenciada no sistema internacional e
evitar a influência dos centros hegemônicos na região. (BUENO, OLIVEI-
RA, 2015)
Em 2009 a IIRSA foi substituída pelo Conselho Sulamericano de In-
fraestrutura e Planejamento – COSIPLAN. Este órgão é parte da UNASUL
e sua interação que antes era ao nível técnico-executivo, como IIRSA, pas-
sa agora a ter nível ministerial e ver a sua influência alargada como COSI-
PLAN. (LIMA, 2013)
A outra iniciativa identificada como a que mais reverbera no apoio a
uma aproximação política na região latino americana é a criação da União
das Nações Sulamericanas, a UNASUL2. Como afirma Visentini (2013, p.
115) a UNASUL “ [...] representa um fórum para desenvolver a consciência

2.  A UNASUL começa sendo uma inciativa denominada Comunidade Sulamericana de Nações
(CASA) em 2004 e que posteriormente será, em 2007, elevada ao acordo institucional que deu origem
a UNASUL. Para saber mais sobre a história desta organização consultar o seu site: www.unasursg.org

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política da integração [...]. A Unasul constitui um locus no qual ocorre um


diálogo de alto nível entre os Estados-membros e se resolvem muitas dife-
rença e divergências.”.
Todavia, convém esclarecer que o projeto da UNASUL se difere do pro-
jeto do MERCOSUL no que diz respeito ao modelo de integração, isto por-
que o primeiro não é voltado para a criação de um mercado comum, mas
sim, tem seu foco em determinados eixos como o da segurança e defesa. Do
contrário, no MERCOSUL, o modelo partiu das relações comerciais e de-
rivou deste aprofundamento um modelo de defesa e segurança mais coo-
perativo do que antes, já na UNASUL, a proposta é a construção de um
modelo político para a região que privilegia relações políticas estáveis e a
união cada vez mais fortalecidas dos países membros.
No embate por um modelo ideológico/político para a integração sula-
mericana, Hugo Chavez, vai propor a Alternativa Bolivariana para as Amé-
ricas – ALBA, todavia, esta iniciativa vai servir mais para os interesses ve-
nezuelanos e sua influência no Caribe, do que para a integração política
sulamericana (PECEQUILO, 2015). A forte vertente contrária ao liberalis-
mo e os Estados centrais do sistema proposto pela ALBA, vai dar a UNA-
SUL, e em espacial ao Brasil, um papel moderador entre tais iniciativas e
vai aprimorar sua influência política na região.
Assim, na perspectiva de uma aproximação política regional e sua in-
fluência para a Bacia do Prata, a IIRSA, a posterior COSIPLAN e a UNA-
SUL, são iniciativas importantíssima para o crescimento da região. Um
reflexo disto é que um dos eixos de integração e desenvolvimento da COSI-
PLAN é o aprimoramento da hidrovia Paraná – Paraguai que se localiza na
totalidade da Bacia do Prata e nas suas sub-bacias, dando a este espaço um
especial incentivo para seu desenvolvimento.3
Neste sentido, os desafios e perspectivas políticas para o Brasil na Bacia do
Prata são imensos. Se, como vimos, os projetos de integração estrutural e po-

3.  Para saber mais sobre este eixo da COSIPLAN consultar o site oficial: http://www.iirsa.org/info-
graphic#hpp

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lítica andaram a passos largos nos ditos governos de esquerda, com a mudan-
ça político-ideológica que a região vem sofrendo é preciso perceber quais as
consequências que o projeto UNASUL e COSIPLAN sofrerá, como também,
como a própria percepção da importância da região se construirá a partir de
agora. Certo é, que o potencial deste espaço é significativo para empoderar
de maneira estrutural os países da região na política internacional, e o desa-
fio continuará sendo o de como construir parcerias políticas entre entes que
possuem, ainda mais agora, visões político-ideológicas distintas.

Bacia do Prata e a dinâmica da segurança


Embora o MERCOSUL não tenha como prioridade a questão da segurança
os esforços centrais de cooperação extra-MERCOSUL tocam indiretamente
iniciativas que promovem defesa e segurança, como no caso da integração
produtiva, da promoção de ciência, tecnologia e inovação (C&T&I), com-
partilhamento de bancos de dados e meio-ambiente.
A questão a respeito do quanto as localidades têm a interferência de di-
nâmicas de integração e internacionalização é um tema que toca a expe-
riência de integração da Bacia da Prata com grande proporção. Marcos Cos-
ta Lima apontou (1999) que São Paulo era a principal beneficiária durante
os anos de MERCOSUL até a publicação de seu estudo, das relações comer-
ciais vigentes com os países da região. Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e
Mato Grosso do Sul, em sequência, representavam os demais beneficiários
do sistema ainda em aprofundamento.
De certo modo isso pode demonstrar o quanto alguns estados manifes-
tam de maneira positiva esta ligação com parceiros do sul e o quanto ou-
tros estados brasileiros ainda tem a gerar a respeito destas mesmas relações.
De outra maneira, também destacam-se as possibilidades em relações às
fronteiras a partir das fronteiras terrestres mas não limitadas à estas porque
que se desdobram em afluentes dos rios que formam a Bacia do Prata, com
destaque para o Rio Paraná, o maior deles.
As relações entre parceiros do sul por meio dos rios desdobra-se por te-
mas como a navegabilidade da Bacia (variada) e do aproveitamento ener-

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gético – com cerca de 60% da produção hidrelétrica do Brasil concentrada


nesta Bacia hidrográfica. A navegabilidade é um ponto central deste entor-
no permeado por relações de segurança e defesa, porque se o fluxo de mer-
cadores é transportado majoritariamente via mar ou via terrestre, o uso de
hidrovias fluviais começou a ser discutido pelo PARLASUL (o Parlamento
do Mercosul) em 2009, como proposta proveniente do Mato Grosso do Sul,
apontando para um estreitamento em águas fluviais não antes visto em um
plano conjunto.
Quanto à navegabilidade do Bacia do Prata, a possibilidade de que seja
explorado economicamente com novas rotas hidroviárias aponta também
para os esforços em torno de capacidades de segurança e defesa na região.
Um aspecto que pode ser relevante é o que está relacionado a uma Mari-
nha de Águas Marrons que, na definição de Vidigal (2010), está relaciona-
da historicamente às aguas fluviais (marrons, norte-americanas, durante a
Guerra Civil) mas que, hoje, toca ao preparo de uma Marinha de Guerra
voltada para meios menores e mais associados à segurança das águas costei-
ras (até a Zona Econômica Exclusiva) e das águas fluviais (com meios me-
nores, do tipo patrulha). Esta discussão, que perpassa a capacidade dos Esta-
dos de vigilância dos seus canais de comunicação e fluxos comerciais mais
relevantes, reverbera na acentuação de protocolos e sistemas capazes de re-
produzirem decisões de nível estratégico para o país.
Neste sentido, destaca-se o Plano de Comunicações para a Segurança da
Navegação na Hidrovia Paraguai-Paraná (Porto de Cáceres-Porto de Nova
Palmira)4, que foi aprovado a partir da XIª Reunião do CIH (e XV) e é
coordenado pela Diretoria de Portos e Costas da Marinha do Brasil. O efei-
to principal da iniciativa é o alinhamento de nomenclaturas e tarefas en-
tre atores diversos, dentre eles: Prefeitura Naval Argentina, Prefeitura Geral
Naval do Paraguai, Diretoria Nacional de Hidrografia do Uruguai, Direto-
ria de Hidrografia e Navegação do Brasil, Diretoria de Hidrografia e Nave-

4.  Para mais informações sobre o Plano: https://www.dpc.mar.mil.br/sites/default/files/ssta/legislacao/


hidrovia/plancom.pdf

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gação do Paraguai. E Capitania dos Portos da Bolívia. O principal benefício


é garantir que procedimentos comuns e divididos sejam adotados em ga-
rantia da segurança tal como safety (segurança das embarcações e das pes-
soas), com claras consequências para a segurança como security.
É importante também ressaltar que os avanços obtidos nos últimos
anos por meio da Coordenação da Área Marítima para o Atlântico Sul
(CAMAS), um regime de cooperação que inclui representantes das Mari-
nhas da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, aconteceram dominante-
mente quanto aos sistemas de controle de navios no mar. Iniciativas em
torno da segurança dos rios podem derivar deste regime, que já conta com
relações de décadas de confiança e sitemas recentes de controle adaptados
aos padrões internacionais de troca de informação entre mercantes, agen-
tes e governos.
Um dado relevante neste processo é que a configuração diplomática
não é aquela composta pelo Ministério das Relações Exteriores somente,
mas aquela da ordem da paradiplomacia (DIAS, 2010; VASQUEZ, 2011), em
que pese ministérios como o da Defesa e da Integração proporcionarem
uma série de investimentos que aceleram estas relações e as regulam, além
dos estados das federações responsáveis por estas fronteiras terem um pa-
pel propositivo em políticas regionais (MERCOSUL, UNASUL e Comuni-
dade Andina) e bilaterais. Isso demonstra o papel da cooperação descentra-
lizada na área de fronteiras, em especial da fronteira sul e fluvial, marcada
também por ações locais internacionalizadas por meio de fundos de diver-
sas matérias como a alimentar, ambiental e segurança. (VIGEVANI, 2011)
O papel regulatório do Mercosul em matéria de integração comercial
no tocante à Bacia do Prata repercute, finalmente, na harmonização tribu-
tária entre entes da federação, tipos de produtos e serviços (e demais ele-
mentos de controle como o fitossanitário) e entre parceiros nacionais. Tal
fronteira platina tem, portanto, uma característica particular, qual seja, a de
expandir o conceito de fronteira para uma representação maior do que os
Estados da borda, porque o acesso pela Bacia garante relações bilaterais en-
tre entidades federativas e nacionais em dinâmicas bilaterais distintas do

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que os mecanismos terrestres permitem. Exemplo disso foi a criação, em


2004, do Fórum Consultivo de Municípios, Estados Federados, Províncias
e Departamentos do Mercosul (FCCR) – que em 2007 foi dinamizado pela
criação do Grupo de Trabalho sobre Integração Fronteiriça (GTIF). (DESI-
DERÁ NETO, PENHA, 2016, p.35)

Ameaças regionais de segurança


A configuração contemporânea de riscos à segurança e defesa é dotada das
chamadas ameaças, onde se incluem os crimes transnacionais e o terroris-
mo, mesmo sabendo que esta definição deva ser “contextualizada e politica-
mente informada” (SUAREZ, 2012). A tríplice fronteira entre Paraguai, Ar-
gentina e Brasil tem sido especial foco de ações policiais e de inteligência
em matéria de crimes transnacionais e incentivos às organizações inseridas
no terrorismo internacional.
Tais incentivos da ordem da (in)segurança e defesa também provoca-
ram comissões especializadas e o avanço da capacitação interagência como
novo marco nas operações de fronteira. O modelo do MERCOSUL de coo-
peração em matéria de defesa e segurança também visou atender a estes
propósitos, com base no pressuposto que não era possível uma política efi-
ciente de combate aos crimes transnacionais sem instituições transnacio-
nais eficazes.
Se as medidas voltadas para ações de segurança foram implementadas a
passos lentos no que diz respeito à cooperação regional, as ações de defesa
desenvolveram-se em escala com base em medidas de confiança mútua que
fizeram transferir a zona de tensões do sul para o norte do continente em
termos de estratégia dos países membros. Contudo, enquanto a questão da
delimitação e de políticas e protocolos comuns avançou, ainda há arestas
em termos das vulnerabilidades institucionais das Forcas Armadas e insti-
tuições de segurança nacional, que variam substancialmente entre as com-
ponentes do MERCOSUL em meios, treinamento e grau de transparência
e corrupção. Muito embora os desafios persistam, avanços devem ser lem-
brados como da formação do Registro Sulamericano de Gastos em Defe-

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sa, feito à luz do desenvolvido por meio de ação bilateral Argentina-Chi-


le e que também pode ser observado na relação Brasil-Paraguai (2007), por
exemplo5.
Ainda assim, o intercambio de informações foi um grande avanço, por
meio do RESINF, e em confluência com os preceitos da UNASUL, cuja ori-
gem é o projeto de alinhamento futuro da Comunidade Andina e do Mer-
cosul. Por outro lado, é possível notar-se que uma eventual paralisia de in-
teresses ou divergência de propostas entre membros do MERCOSUL pode
fazer avançar os projetos comerciais que diversificaram-se em subprojetos
de outras matérias. Neste caso, há algum espaço para projetos de ordem lo-
cal e subregional cujo imperativo seja alinhavar práticas que estimulem re-
sultados comerciais e de desenvolvimento, cujos signos são comuns e pou-
co conflitivos.

Considerações Finais
Este capítulo teve por intuito entender a dinâmica política, econômica e de
segurança da Bacia do Prata para o Brasil e suas ambições internacionais.
O que podemos considerar ao final deste estudo é que a região é vital para
um processo de empoderarmento da América do Sul no espaço internacio-
nal. Suas características geográficas e seus recursos naturais, fazem desta ba-
cia um manancial incrível para sustentar o crescimento sulamericano.
Para o Brasil esta região deve ser considerada sua área de influência di-
reta, sendo que qualquer projeto de expansão do poder e da influência que
este país almeja não pode ser construída sem considerar as dinâmicas da re-
gião austral do continente americano. Todavia, alguns desafios se colocam
a essa região:

• Economicamente fortalecer os projetos de integração econômica


como o MERCOSUL de maneira a evitar que grandes potências

5.  Para mais informações, consulte: http://www.mercosurabc.com.ar/nota.asp?IdNota=3471&Id-


Seccion=3

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entrem na região e monopolizem o comércio é essencial. Sem isso,


o fortalecimento de estruturas produtivas pode falhar e tornar os
principais países do continente – e que fazem parte desta bacia –
somente produtores de commodites e atores marginais do sistema.
Os desafios para o Brasil neste sentido são utilizar de sua influência
e peso econômico na região para promover um empoderarmen-
to coletivo e um desenvolvimento econômico que alcance a todos,
privilegiando um MERCOSUL unido ao invés de ações econômi-
cas/comerciais individuais;

• Politicamente a perspectiva da região será o de compreender seu


peso e organização diante das mudanças nas lideranças políticas
dos Estados que compõem este espaço. Se por um lado a ascensão
de governos de centro-esquerda privilegiou arranjos institucionais
mais profundos como a UNASUL e IIRSA/COSIPLAN, a sua subs-
tituição por novos governos de centro-direita em países centrais
como Argentina e Brasil trará uma nova dinâmica para a região.
Para o Brasil o desafio será, diante de uma crise política e econômi-
ca que toma o país, continuar a promover a integração política e es-
trutural da região como alternativa para aumentar sua influência
internacional, ao mesmo tempo, que dá aos demais atores benesses
para sua evolução. Neste sentido, o desafio é na construção de es-
tratégias políticas para este novo governo de modo a incluir dentro
delas uma real motivação de privilegiar a região Austral do conti-
nente como área de relacionamento;

• Do ponto de vista da segurança e defesa a perspectiva na primei-


ra década do século XXI é de um aprimoramento sensível desta
questão ao nível regional sulamericano. Iniciativas tanto do MER-
COSUL, como da UNASUL, demonstram que pensar segurança e
defesa regional de forma conjunta é vital para a proteção dos paí-
ses membros destas iniciativas. Por outro lado, as ameaças tradicio-

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nais como tráfico de drogas, terrorismo e outros crimes internacio-


nais tem obtido destaque na ação conjunta dos atores na região.
Assim, os desafios para o Brasil nesta área seriam o de continuar a
entendê-la como vital para a segurança do próprio Estado e para o
aprimoramento da segurança no Cone Sul. Se uma modificação
político-ideológica dos novos governos em ascensão na região ne-
gligenciarem tal área, relegando-a somente a um combate pontual
de criminalidades e não a um processo de defesa conjunta da re-
gião, o custo de se ver dependente dos grandes centros hegemôni-
cos nesta matéria pode ser alto e impedir um posicionamento au-
tônomo da região no futuro.

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

Forças armadas e sua importância


para a região austral do Prata
Graciela De Conti Pagliari

Introdução

A redistribuição de poder no sistema internacional não foi a única ca-


racterística marcante das relações internacionais do final do século
XX. Processos de integração regional, globalização e fragmentações – como
aquelas das ex-repúblicas soviéticas –conformaram os desafios iniciais do
pós-Guerra Fria.
Também a defesa e a segurança vão ser rediscutidas, tanto no que diz
respeito à sua conceituação quanto aos seus temas e atores. A ampliação da
agenda1- seja dos tomadores de decisão ou dos estudiosos do assunto - ao
incluir temas não tradicionalmente afeitos ao campo da segurança, desa-
fia os Estados e seus tomadores de decisão a abarcar agentes, atores e amea-
ças que não a compunha anteriormente.Do ponto de vista da segurança
essa alteração torna-se clara quando se observa que durante a bipolaridade
o continente americano tinha um inimigo a combater:o comunismo. Essa
unicidade modificou-se com o final da Guerra Fria quanto a demanda sis-
têmica decorrente das dinâmicas Leste-Oeste transpunha as percepções de
cada Estado individualmente2. Naquele período, as forças armadas da Amé-
rica Latina estavam encarregadas da segurança interna; com a mudança sis-

1.  Há uma ampla literatura que discute a redefinição da segurança no pós-Guerra Fria e a construção
do que se passou a chamar de ampliação dos estudos: Waever (1995); Shultz Jr, Godson e Quester (1997);
Buzan; Waever e Wilde (1998); Buzan (1997); Miller (2001).
2.  Para Castro Santos (2004, p. 118) durante a Guerra Fria “o conceito de “segurança da aliança” foi sobre-
posto ao da segurança de cada Estado e, assim, os países desenvolvidos do Ocidente criaram laços que os
ligavam à segurança dos dois principais blocos de aliança”.

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têmica passou-se a dar ênfase3 às chamadas novas ameaças decorrentes da


ampliação das transnacionalidades dos fenômenos–por exemplo, tráfico de
drogas e armas, proliferação de armas de destruição em massa, terrorismo e
ilícitos transnacionais correlatos.
A defesa, que convencionalmente os estudos estratégicos colocavam
como sustentáculo das fronteiras do Estado, passou a ter de considerar que
a anterior rigidez das linhas demarcatórias deparou-se com fronteiras mais
fluidas e com a difícil diferenciação ou limite entre o interno e o exter-
no dada a transnacionalidade dos fenômenos. As fronteiras de alguns Es-
tados do continente americanotornam-se mais porosas justamente porque
em parte desses territórios impera uma falta ou completa ausência da auto-
ridade estatal. Essa lacunaestatalda presença do Estado, bem como querelas
de fronteira mal resolvidas, representavam parte do quadro que teria como
elementos a serem acrescidos as novas inseguranças geradas pela mudança
nas percepções de ameaças.
O presente trabalho, portanto, propõe-se a analisar as forças armadas e
sua importância para a região austral do Prata considerando-se o período
pós-Guerra Fria e a mudança nos temas de segurança e defesa. Para tanto,-
considera-se as dinâmicas das forças armadas da região e como as mudan-
ças e desafios desse período impactaram na configuração e poder político
das mesmas.

Configuração dos desafios das forças no pós-Guerra Fria


Em relação às instituições militares pode-se considerar, segundo Hunting-
ton (1996, p. 20), que duas forças agem para moldá-las: um imperativo socie-
tário e um imperativo funcional “que se origina das ameaças à segurança da

3.  Não cabe aqui discutir as pressões que influenciaram tanto o processo de tratar o comunismo como
a ameaça para a região, como o da alteração para a preocupação com temas “novos”, entretanto, é impor-
tante destacar que a América Latina foi fortemente impactada por essas agendas. A sua frágil estrutu-
ra institucional, de modo geral, foi desafiada pelas consequências internas que tais focos de inseguran-
ça desencadearam. Por exemplo, a guerra contra as drogas tem gerado altos índices de mortes violentas
e deslocamento da população.

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sociedade”.Às forças armadas cabe manter a segurança dos Estados e, portan-


to, somente devem ser acionadas por decisão do poder político. Decorren-
te do quadro acima apresentado referente ao período final do século XX e
início do XXI, começou-se a questionar o tradicional papel das forças arma-
das, entendido aqui como a sua principal orientação (HUNTER, 2005)4, cuja
existência é central para a garantia da soberania dos Estados nacionais.
Considerando-se a evolução do profissionalismo militar nos séculos
XVIII e XIX,Huntington (1996, p. 50) ponderando acerca desse papel, des-
taca queo militar torna-se um perito na “administração da defesa externa”,
não mais preocupado em “entender de política e de negócios de Estado ou
saber empregar a força para a manutenção da ordem interna”.Talvez essa
análise de Huntington não sirva exatamente para os países da América La-
tina pois durante os períodos ditatoriais, especialmente, as forças armadas
estiveram vinculadas à manutenção da ordem interna combatendo os gru-
pos subversivos, não desatrelandoos militares do uso da força como garan-
tia da manutenção da ordem interna.
No pós-Guerra Fria, da mesma sorte, os militares também incorpora-
ram junto com a missão de defesa externa um papel interno mas, neste ín-
terim,relacionado à contenção do que se convencionou chamar de novas
ameaças. Portanto, a construção da ordem interna estava agora vinculada a
outro elemento que não mais atrelado à subversão mas aos ilícitos transna-
cionais. Esse papel de polícia (CASTRO SANTOS, 2004) não foi bem acei-
to pelos militares em boa parte dos países da região pois essa atribuição –
além de ser relativa às forças policiais públicas internas – atenta contra suas
tradicionais funções. A sua missão – que conforme destaca Hunter (2005)
relaciona-se às tarefas específicas designadas às forças armadas -, estaria li-
gada a assegurar, garantir e defender a ordem pública e constitucional, con-
soante definições nas constituições nacionais dos países da região(DONA-
DIO, 2011).

4.  Para o autor, a ideia de papel das forças inclui uma dimensão política, ou seja, abarca a relação dos
militares com o Estado (HUNTER, 2005).

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As forças armadas tiveram importante papel político ao longo dos pro-


cessos de formação dos Estados nacionais latino-americanos e, de certa ma-
neira, pode-se dizer que não perderam seu papel de ator nacional relevante,
mesmo após as consolidações das independências nacionais5. Castro San-
tos (2004, p. 116) assevera que “a despeito de considerações normativas, os
militares na América Latina têm sido tradicionalmente um ator-chave nos
momentos históricos mais importantes de cada país, quando exercem o
que se tem chamado de “papel tutelar””.
A América Latina de modo geral, e a América do Sul de modo particu-
lar, retorna aos regimes democráticos6no período coincidente com os anos
finais da Guerra Friao que influencia sobremaneira as relações entre as for-
ças armadas e os sistemas políticos. Assim, ao passo que a área sul-america-
na foi afetada pelas alterações sistêmicas, também mudanças internas à re-
gião e aos Estados se processaram impactando de modo significativo tanto
na expectativa do modo de atuação das forças armadas quanto nas preocu-
pações de segurança e defesa da região. Convém salientar o que destaca Do-
nadio (2003, p. 2, tradução nossa) no sentido de que se o militar “serve aos
cidadãos de um Estado, em um regime democrático isso significa que o go-
verno legitimamente eleito representa a sociedade, e que a relação entre a
classe política e os militares é uma das expressões das relações entre a socie-
dade e as forças armadas”.
Se, por um lado,passou-se a questionara adequação da função e do pa-
pel desempenhados tradicionalmente pelas forças armadas, por outro, não

5.  Nesse sentido, Rizzo de Oliveira (2005, p. 38), ponderando acerca da adaptação dos militares brasilei-
ros à democracia destaca que “Não é inadequado pensar que os militares experimentaram uma crise de
identidade decorrente do vazio conceitual que o final da Guerra Fria e a redemocratização produziram.
Até porque a identidade dos militares quanto aos seus papeis depende em boa medida dos atores polí-
ticos, pouco atentos à temática militar”.
6.  Soares (2006, p. 58) destaca que no Brasil “os contornos da transição foram estabelecidos pelas lide-
ranças militares, que mantiveram, pelo menos durante o governo Geisel, prerrogativas e força políti-
ca para alterar prazos, redefinir instituições que participariam mais ativamente das articulações, agin-
do quer pelo veto explícito, quer, com maior frequência, pelas alterações mais ou menos significativas
nas regras do jogo político”.

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se olvidaas suas missões tradicionais, sobretudo considerando-se que em


algumas díades ou tríadesda região foram mantidas hipóteses clássicas de
conflitos. Essas questões, especialmente querelas de fronteiras mal resolvi-
das7, não impediram processos de aproximação e mesmo integração, en-
tretanto, permaneceram latentes sob esse véu da cooperação aparente e da
busca por formar mecanismos8 representativos das demandas e problemas
regionais.
A consolidação dos processos de democratização vai cristalizando as re-
lações político-militares. E passa a produzir questionamentos tanto em re-
lação aos investimentos militares quanto à necessidade de os Estados pos-
suírem grandes aparatos dessa natureza.De acordo com a tendência ao
militar pós-moderno depois da Guerra Fria, as forças armadas dos países e
os tomadores de decisão vão se deparar com essa alteração que se processa
em várias partes do mundo no sentido de atribuir aos militares tarefas que
não tradicionalmente suas, assim também colocá-los em missões interna-
cionais sob os auspícios de organismos como ONUou mesmo de atuações
em organizações combinadas - como Eurocorps (GARCIA, 2002)9.
Assim,os Estados do continente reúnem-se sob os auspícios da OEA a
fim de discutirem a adequação dos mecanismos regionais de segurança aos
novos desafios e, por outro lado, ponderar acerca das respostas que esses
desafios demandam das forças armadas de cada um dos países.Contudo, o
que fica claro é que aquela aparente unicidade em termos de percepção de
segurança e defesa que existia no período da bipolaridade agora definitiva-
mente não consegue mais ser sustentada. Se, de modo geral, os países pas-
saram a apontar as mesmas preocupações, a resposta conjunta a elas – por
outro lado - não se mostrará simples de construir. Percebe-se diferenças en-
tre duas regiões sul-americanas, a andina/amazônica e o cone sul. Se o de-

7.  Especialmente destaca-se as demandas fronteiriças entre Colômbia e Venezuela; e Chile, Peru e
Bolívia.
8.  Como exemplos mais significativos destacam-se a UNASUL e o CDS.

9.  Para uma abordagem mais ampla e completa ver MOSKOS, C., WILLIAMS, J.; SEGAL, D. 1999. The
PostmodernMilitary. Armed Forces after the Cold War. New York: Oxford University Press.

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safio para os países andinos estará centrado especialmente em lidar com


as questões decorrentes das novas ameaças que vão se somar aos proble-
mas de fronteira não resolvidos, para os países do Cone Sul uma etapa de
aproximação mais profícua se desenha (PAGLIARI, 2009). A construção de
um espaço com características de comunidade de segurança10, decorrente
do aprofundamentodas medidas de fortalecimento da confiança, permite
processos de aproximação que avançam, inclusive, para os temas de segu-
rança e defesa.
O que se desenha nesse período é a constituição de uma atmosfera de
descrença ou quase impossibilidade de um conflito entre Estados nacio-
nais. As forças armadas haviam perdido a função interna que desempenha-
ram na bipolaridade e também depararam-se com a ausência de um inimi-
go externo.Assim, tornava-se difícil justificar aparatos militares robustos.
Mesmo a região tendo sido, tradicionalmente, uma das zonas mundiais
que menos investe em termos militares, os questionamentosà destinação
de recursos para as forças estiveram presentes, pautados em motivadores
como mudanças políticas internas, ressentimentos e problemas econômi-
cos (AGUILAR, 2008).
O período ditatorial anterior e, com isso, a percepção da sociedade acer-
cadas forças armadas, influenciaram grandemente tais questionamentosque
também se assentavam na baixa ou escassa transparência dos processos de
aquisições militares11. Os investimentos militares, então, vão mostrar uma
redução percentual em termos de PIB nos anos imediatamente subsequen-
tes ao término da Guerra Fria, conforme mostram os percentuais12 abaixo.

10.  Para comunidade de segurança ver Deutsch, 1957; e para comunidade de segurança na América do
Sul, ver Hurrell (1998), e Flames (2005).
11.  A elaboração de Livros Brancos visa modificar esse cenário, mas veja-se que o Brasil apenas institui
o seu Livro em 2012. Mesmo que anteriormente tenham sido criadas as Políticas Nacionais de Defesa e
a Estratégia Nacional de Defesa, é o Livro Branco que representa o caráter de transparência nos assun-
tos de defesa e o avanço no processo de consolidação do poder civil sobre o militar.
12.  A base de dados do SIPRI tanto usa os percentuais do PIB, quanto os valores em dólares atuais e
constantes. Optou-se por utilizar a tabela embasada no PIB pois esses dados demonstram uma propor-

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1988 1989 1990 1991 1992 1993


Argentina  2,0% 1,8% 1,4% 1,4% 1,3% 1,3%
Brasil  2,1% 2,7% 2,4% 2,0% 1,5% 1,9%
Chile  4,3% 3,5% 3,4% 2,8% 2,6% 2,7%
Paraguai   .. 1,9% 1,7% 2,1% 2,0% 1,5%
Uruguai  3,2% 3,5% 3,5% 2,4% 2,8% 2,8%

Fonte: elaborado pela autora com base nos dados de SIPRI MilitaryExpenditureDatabase, 2015.

% do PIB em gastos militares

Fonte: elaborado pela autora com base nos dados de SIPRI MilitaryExpenditureDatabase, 2015.

Com essa redução permite-semodificar a situação de desconfiança que


se mantinha entre os países da região, bem como criam-se as condições
para que as forças militares passem a participar de encontros conjuntos que
são a base para os exercícios militares conjuntos de fortalecimento de con-
fiança entre os países do Cone Sul (PAGLIARI, 2004). A redução por si só
que pode ser considerada significativa tomando-se os países isoladamen-

ção em relação ao montante do gastos do Estado, que nem sempre os valores em dólares permitem
constatar pois aparecem isolados do todo.

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te, é ainda mais importante se considerarmos que a região vinha encaran-


do com muitas ressalvas quaisquer aumentos de gastos militares, tendendo
a vê-los como uma corrida armamentista – mesmo que se esteja tratando
de valores relativamente menos significativos do que em outras partes do
mundo. Como entre os países vizinhospairava uma atmosfera de descon-
fiança e de temor de conflitos territoriais, os investimentos militares eram
vistos como ameaçadores e indícios de corrida armamentista. Em vista dis-
so, a redução produzida mostrou-se relevante para distensionar relações, es-
tabelecer regimes de segurança, desmistificar eventuais corridas armamen-
tistas e dilemas de segurança, muito fomentados durante a Guerra Fria.
De outra maneira, em que pese a pressão para a atuação nas chamadas
novas ameaças, as forças armadas não incorporaram tal missão. Donadio
(2003, p. 8, tradução nossa) afirma que “...as forças armadas da região man-
tiveram-se em geral (com a óbvia exceção da Colômbia) apartadas de pres-
sões para introduzirem-se em tarefas como a luta contra o narcotráfico”. Se
essa ação interna foi bastante combatida pelas próprias forças latino e sul-
-americanas, a proposta de emprego das mesmas em situações internacio-
nais como capacetes azuis da ONU, não encontrou a mesma resistência. Ao
contrário, os países passaram a destinar contingentes para essa preparação e
atuação, que passou a ser bastante constante a partir de então13.
Diamint (2006) destacade modo bastante positivo essas ações pois con-
sidera que as missões de paz aprofundam a condução civil da defesa, há
um reforço ao Estado de direito, assim como reforça a lógica institucio-
nal das democracias, e fortalece os processos internos de negociação entre
agências. Além disso, a capacitação profissional é melhorada na medida em
que esse membros são treinados em teatros de operações, não ficam obsole-
tos e demonstram para a população do seu Estado, uma imagem mais hu-
manista14.

13.  Dentre as missões a MINUSTAH, comandada militarmente pelo Brasil desde 2004, merece
destaque.
14.  Soares de Lima (2010) refere o aumento da participação brasileira nas operações de paz e apresen-
ta que “no biênio 2004-2005, durante o mandato do Brasil como membro não permanente do Conse-

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A mesma autoradestaca que a democratização desenhou-se com a tarefa


central de retomar o controle das estruturas militares, mas, se esse propósi-
to foi de certa maneira alcançado, o mesmo não se pode dizer em relação à
organização racional e planejada da defesa. Apresenta a autora que

As falências na produção das políticas de segurança (considerando-se o


termo em sua concepção ampliada), contradiz os esforços de fortaleci-
mento do sistema democrático. Este déficit de condução e gestão se re-
força pelo exponencial crescimento da insegurança pública, que produz
uma eventual sobreposição entre as funções da defesa com as funções
policiais, contrariando a necessária separação republicana entre defesa
externa e ordem pública interna (DIAMINT, 2006, p. 59, tradução nossa).

Considerando a situação e os desafios expostos às forças armadas da re-


gião observa-se que houve uma mudança significativa em termos de atua-
ção dos militares. Assim, a seção a seguir visatratar como foi desenvolvido o
poder político das forças armadas no pós-Guerra Fria na região austral do
Prata, a partir da situação de desfazimento das rivalidades, retorno às de-
mocracias e formação de mecanismos regionais de cooperação e integração
sub-regional e sul-americanas.

Forças armadas e seu poder político no pós-Guerra Fria


O processo de retorno às democracias no continente não ocorreu de modo
linear, não sendo, portanto, possível afirmar que se processou da mesma
maneira entre os países. Mas é certo que permitiu um “novo pacto de con-
trole civil”, que embora incompleto, permite que as elites políticas se de-
sempenhem na alternância de poder, sem necessitar que estejam apoiadas
pelas forças armadas (DIAMINT, 2002).Contudo, mesmo que o exercício
do poder de modo direto não esteja presente como possibilidade ou in-

lho de Segurança, o país defendeu, no processo de criação da Comissão de Paz, a necessidade de inclu-
são das questões de desenvolvimento nos mandatos das operações de paz”.

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tenção por parte das forças armadas, o certo é que os militares não foram
retirados completamente da cena política. Ou seja, “permaneceram como
atores políticos relevantes, readaptando-se aos tempos de democracia para
cumprir sua missão de defesa e para fazer valer seus interesses corporativos”
(D’ARAUJO, 2013, tradução nossa).
Nas jovens democracias da região é interessante observar como na
maior parte delas (sendo a maior excepcionalidade a Argentina) as forças
armadas são apontadas como a instituição vinculada ao Estado que mais
gera confiança: um índice médio de 47%, no período 1995-201515.Contudo,
em que pese a convergência regional sobre a intensificação da subordina-
ção militar ao poder civil, nem os temas de segurança e defesa foram ade-
quadamente definidos nem a questão de o que, de fato, permeia o interesse
nacional dos países. Soares de Lima (2010, p. 409) destaca que “se o contro-
le civil é uma das condições necessárias, não é suficiente, pois falta a defini-
ção política do Estado que estabeleça objetivos de sua autonomia no plano
internacional”.
O que passou a vigorar para a maior parte dos Estados apresentou-se
como um entendimento amplo e abrangente, como o conceito de seguran-
ça multidimensional estabelecido em 200216 no âmbito da OEA e que dei-
xa, por um lado, um espaço aberto acerca do que se entende por segurança
e, da mesma maneira, por defesa; mas, por outro, dada tal amplitude dos te-
mas, resulta em restrições ante a possibilidade de coordenação de políticas.
Assim, as forças armadas podem ser empregadas para atividades sociais,
como distribuição de alimentos e remédios, ou mesmo como médicos e

15.  Os dados são apresentados pelo Latinobarômetro, disponível em: <http://www.latinobarometro.


org>. Latinobarômetro é uma ONG chilena que desenvolve estudo de opinião pública acerca do de-
senvolvimento da democracia, economia e sociedade em seu conjunto. Para uma análise dos dados, ver
Schwether (2016).
16.  “...reconhecem que as ameaças, preocupações e outros desafios à segurança no contexto hemisfériao
de naturezas diversas e alcance multidimensional, e que o conceito e a abordagem tradicionais devem
apliar-se para englobar ameaças novas e não-tradicionais, que abrangem aspectos políticos, econômicos,
sociais, de saúde e ambientais”, conforme Declaração de Bridgetown: Abordagem Multidimensional
à SegurançaHemisférica. Disponívelem: <http://www.oas.org/juridico/portuguese/2002/agdec27.htm>.

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dentistas em lugares geralmente associados com espaços cuja atuação do


Estado como provedor do bem comum é tradicionalmente muito restri-
ta. Em todos os países da região há o desempenho de atividades relacio-
nadas à educação, saúde, infraestrutura; no caso brasileiro, essa situação é
muito presente especialmente na região amazônica em que a assistência à
saúde, em muitas zonas, depende sobremaneira dos destacamentos mili-
tares. Também no que tange à saúde e controle sanitário, em 2016 as for-
ças foram colocadas na rua para combater o surto de Aedes aegypti que, no
verão, assolou muitas cidades em várias regiões do Brasil. Observa-se tam-
bém que as forças foram empregadas em momentos específicos de ruptu-
ra da segurança pública (incêndios a ônibus em São Paulo no ano de 2013,
por exemplo).
Na América do Sul, considerando as previsões constitucionais, apenas
Brasil, Colômbia e Bolívia, possuem como atribuição das forças armadas os
papeis tanto de defesa nacional quanto de garantia da ordem constitucio-
nal. A garantia da ordem interna é atribuída constitucionalmente ao mi-
litares no Brasil, Peru e Venezuela. Entretanto, podem existir leis comple-
mentares à constituição que estabelecem funções para as forças, como é o
caso da cooperação no que diz respeito à ordem (ou segurança interior),
neste caso, observa-se que há a previsibilidade dessa atribuição em todos os
Estados da região, exceto que, no caso da Argentina, esse papel somente se
dá em situação de estado de exceção pois a sua atuação mantém-se voltada
para o externo (seja ameaças tradicionais ou mesmo participação em ope-
rações de paz).
Nesse sentido, as forças armadas argentinas não se expandiram para a
execução de funções sociais; e - ineditamente na região - a Argentina “con-
seguiu estipular por lei (no 23.554, de abril de 1988) a separação entre defesa
e segurança, evitar a confusão de instrumentos de coerção e estabelecer um
diálogo profícuo entre sistema político e forças armadas na definição dos
rumos da mesma” (SCHWETHER, 2016, p. 30).
O mapa a seguir ilustra as atribuições para as forças armadas sul-ameri-
canas previstas em suas constituições nacionais.

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Fonte: Extraído parte do mapa apresentado pelo Atlas Comparativo de la


Defensa en América Latina y Caribe:2014, p. 41.

Segundo dados do Atlas Comparativo de la Defensa en América Latina


y Caribe (2014), 94% dos países da região realizaram de maneira regular al-
guma atividade ou operação vinculada à segurança pública, seja de comba-
te ao narcotráfico, patrulhas urbanas, controle permanente de fronteiras,
segurança de grandes eventos e pacificação em zonas violentas.
As operações de fronteira são muito mais vinculadas a delitos como vi-
giar a fronteira para restringir a entrada de armas e munições, relacionadas
com o tráfico de drogas e guerrilhas do que propriamente a eventuais amea-

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

ças que outros países possam provocar em termos de ameaças tradicionais de


fronteirasobretudo porque na região as ameaças tradicionais estão latentes e
não fortemente securitizadas. Como o tráfico de drogas é uma das questões
que mais têm preocupado os países17, mesmo que as forças armadas não te-
nham sido empregadas em seu combate – como o faz a Colômbia – há ope-
rações nas quais elas são empregadas em face de sua logística e treinamento18.
Pelo discorrido acima, infere-se que às forças armadas cabe, cada vez
mais e de maneira mais abrangente em termos de quantidade de países,
missões não primárias. Battaglino (2015) considera que na Argentina deu-se
uma expansão baixa e supervisionada, portanto, com um nível de controle
civil alto e com baixo poder político dos militares; no caso do Brasil o nível
de controle civil é baixo, mas com uma expansão média e com supervisão
civil incipiente, o que deixa o poder político dos militares alto.
O caso da Argentina é emblemático e possui relação com a maneira
como se deu o processo de transição para a democracia, no qual a socieda-
de buscou a punição daqueles que fizeram a guerra suja (1976-1983) no país
e que provocou um grande número de sequestros, mortos e desaparecidos,
tendo se caracterizadocomo uma das ditaduras mais violentas da região.
A sociedade de certa forma distanciou-se das questões militares; somente
em meados dos anos 2000desenvolve-se o fortalecimento e hierarquização-
da estrutura orgânico-funcional do Ministério da Defesa (BATTAGLINO,
2015) e passa-se a buscar processos como a reconstrução da indústria de de-
fesa, o que vai gerar um aumento nominal nesses gastos. Deve-se observar,
contudo, que os valores correntes em dólar representam um significativo
aumento que decorre do crescimento do PIBno período temporal conside-
rado, porém,não representa alteração relevanteem termos percentuais. Ao
contrário, os dados de 2003 a 2015 mostram que os percentuais do PIB va-
riaram de 1,1% (2003) a 0,8% (em 2008) e 1,2% em 2015.

17.  Conforme indicam as consultas realizadas pela OEA quando da discussão dos mecanismos de segu-
rança hemisférica. Para uma discussão sobre essas informações, ver Pagliari (2004).
18.  Apenas Chile e Uruguai não preveem o uso das forças armadas para tais operações (ATLAS, 2014).

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Se observarmos a série histórica desde finais dos anos 1980, verifica-se


que o patamar do ano de 1988 que alcançou, em dólares constantes (2014),a
cifra de US$ 3642 milhões,somente será retomado parcialmente em 2012
com o montante de US$ 3443 milhões, e de fato ultrapassado em 2013 quan-
do atingiu US$ 4218 milhões.
Já a transição brasileira negociada, não retirou completamente os mili-
tares de cena. Sintomático de tal construção é a demora que o Brasil teve
em criar o seu Ministério da Defesa e instituir os seus documentos públi-
cos de defesa, como o Livro Branco. A decisão política de criar o Ministério
de Defesa encontrou muitas resistências entre os segmentos militares que
foram, tradicionalmente, contra a sua formação eis que tinham receio de
perder estatura e “influência política junto a outros organismos do Estado,
de poder no plano da sociedade e de valor simbólico no plano da constru-
ção da nacionalidade” (OLIVEIRA, 2005, p. 132).
Nesse período de pouco mais de uma década, a capacidade de gestão ci-
vil sobre os militares ainda não se tornou completa. Em que pese o Minis-
tério da Defesa ser gerido por um ministro civil, a burocracia civil espe-
cializada nas questões de segurança e defesa, ainda é muito reduzida. Essa
supervisão só é possível com

recursos humanos, legais e organizacionais para o desenho, implemen-


tação e monitoramento das políticas militar e de defesa. [...] Não obs-
tante, é indispensável também a existência de agências intraministeriais
conduzidas por civis e integradas por uma burocracia civil especializada
na gestão de todas as dimensões que incluem as políticas mencionadas
(BATTAGLINO, 2015, p. 12, tradução nossa).

O Ministério da Defesa no Brasil carecedessa burocracia civil própria19 e


apta para lidar com o controle civil.Somente no governo de Fernando Henri-

19.  Diferentemente dos outros Ministérios brasileiros nos quais os quadros são compostos via concurso
público, o Ministério da Defesa carece desse tipo de processo seletivo de ingresso.

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que Cardoso (1995-2002) que será possível apresentar um documento públi-


co no qual se estabeleceram os termos da defesa nacional. A partir de então
são criadas as Políticas Nacionais de Defesa (1996, 2005), a Estratégia Nacio-
nal de Defesa (2005)20 e o Livro Branco de Defesa (2012), nos quais se assevera
a preocupação com a soberania e o controle territorial: “A soberania da Na-
ção, sua inserção econômica competitiva e seu desenvolvimento pleno pres-
supõe capacidade de defesa condizente com as potencialidades e aspirações
do país” (LIVRO BRANCO DE DEFESA, 2012, p. 28). Bem como, a priori-
dade com a Amazônia e o Atlântico Sul; mas não apenas a Amazônia ver-
de “com seu grande potencial de riquezas minerais e de biodiversidade”, mas
também a “Amazônia Azul”, região de vital importância na qual está “incluí-
da a camada do pré-sal, estão as maiores reservas de petróleo e gás, fontes de
energia imprescindíveis para o desenvolvimento do país” (POLÍTICA NA-
CIONAL DE DEFESA, 2005).O documento ainda refere a relação estabele-
cida no país entre defesa e desenvolvimento, na qual este é o escudo daquela.
Também no Brasil o desenvolvimento da indústria de defesa é conside-
rado fundamental, que se dará com a atualização permanente ereaparelha-
mento das forças, “com ênfase no apoio à ciência e tecnologia para o de-
senvolvimento da indústria nacional de defesa”, objetivando “redução da
dependência tecnológica e a superação das restrições unilaterais de acesso a
tecnologias sensíveis”. Essa construção relacionada com a preocupação com
a inserção internacional do Brasil justifica o crescimento dos gastos milita-
res do país, especialmente durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva
(2003-2011), que desempenhou um papel bastante protagônico nos temas
de segurança e defesa, deixando de lado uma política reativa para a adoção
de uma política proativa21.
A definição de programas como a criação do submarino de propulsão
nuclear e a aquisição dos caçassão importantes para o reaparelhamento das
forças armadas. Nesse sentido, verificando-se a série temporal desde final da

20.  Tanto a PND quanto a END foram revistas em 2012.

21.  A apresentação dessa análise baseia-se em Villa & Viana (2010).

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década de 1980 constata-se que enquanto a Argentina tem uma queda ex-
pressiva nos valores reais no início do período do pós-Guerra Fria e só reto-
ma um crescimento mais significativo a partir de 2007, o Brasil reduz os in-
vestimentos no início da década de 1990mas ainda no final daquela década
retoma um certo crescimento, o qual passa a ser mais significativo de 2008
a 2014, coincidindo com o aumento total do PIB.
Contudo, no caso do Brasil em 2015 (dados ainda não finalizados) já há
um decréscimo significativo passando do montante de US$ 32660 milhões
para US$ 24584 milhões, em decorrência da queda no PIB. Não se pode
considerar, portanto, que o Brasil possui uma política de aumento cons-
tante nos investimentos militares. O que se verifica, de fato, é que costu-
meiramente sofrem contingenciamento na primeira crise mais significa-
tiva–o que é verificável também em 2015. Por outro lado, observa-se que a
Argentina mantém praticamente inalterado o percentual anual do PIB in-
vestido,gerando aumento apenas em valores nominais.Na série histórica
percebe-se quea Argentina destina em torno de 1% de seu PIB para os in-
vestimentos em defesa e o Brasil em torno de 1,5%22.Os gráficos abaixo apre-
sentam os gastos militares em valores correntes e os gastos demonstrados a
partir dos percentuais dosPIBs, conforme a discussão acima desenvolvida.

Gastos militares em valorescorrentes

Fonte: A autora, adaptado de SIPRI, MilitaryExpenditureDatabase, 2015.

22.  Ainda não foi possível mudar a relação de que parte considerável desses recursos são destinados ao
pagamento de pessoal.

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% do PIB em gastos militares

Fonte:A autora, adaptado de The World Bank, World Databank, 2015.

Os recursos investidos em aquisições militares no período pós-Guerra


Fria não geraram uma corrida armamentista na região e, em face do disten-
sionamento e das medidas de fortalecimento da confiança adotadas nos úl-
timos anos, não se estabeleceu um dilema de segurança. A publicização dos
documentos de mais alto nível sobre a segurança e defesa, bem como a for-
mação da UNASUL e do CDS, retiraram o conflito como mote do relacio-
namento no Cone Sul para configurar uma região na qual os processos de
cooperação e a formação de regimes internacionais tem pautado os relacio-
namentos a partir da década de 1990.

Considerações finais
A transição para o pós-Guerra Fria pode não ter configurado uma nova
ordem internacional, entretanto, redimensionou as preocupações de segu-
rança e defesa na região sul-americana, bem como apresentou dinâmicas e
mecanismos sub-regionais não possíveis durante o período anterior. O dis-
tensionamento construído no Cone Sul e a alteração acerca do que se pas-
sou a considerar como ameaça aos países da região, gerou dúvidas e ques-
tionamentos acerca do papel das forças armadas.
Enquanto no Brasil as forças armadas não perderam completamente
um papel autônomo, na Argentina a sociedade somente se reconcilia com

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as mesmas nos últimos anos, não sem o estabelecimento de um plano efe-


tivado pelo Ciclo de Planejamento da Defesa Nacional que entrou em efe-
tivo exercício em 2007 e pode contribuir para incrementar a relevância das
forças armadas (BATTAGLINO, 2015).
Uma vez trabalhadas as missões, cuja relevância do caráter interno é maior
no Brasil do que na Argentina, os investimentos na compra de armamentos
vão ser definidostambém para programas de mais longo prazo – como o sub-
marino de propulsão nuclear e a aquisição de caças para a força aérea - em
face de definições estratégicas estabelecidas nos documentos de defesa. As
demandas em termos de investimentostendem a ser mais significativas no
que tange aos gastos em relação à atuação externa, seja para participação em
operações de paz, seja para defesa da agressão proveniente de outros Estados.
Contudo, nesses valores considerados como gastos militares também estão
incluídos os custos com pessoal e custeio que são bastante elevados.
O ocaso da bipolaridade permitiu uma aproximação maior entre os Es-
tados sul-americanos em face do distensionamento de suas relações e, com
isso, a criação de mecanismos sub-regionais de defesa e regimes de seguran-
ça. A atual configuração da área sul-americana faz supor que as querelas ter-
ritoriais estão praticamente ausentes da região em um horizonte próximo
de tempo, o que gerou inicialmente uma certa crise de identidade entre os
militares. As definições de atuação que se estabeleceram a partir daí, res-
pondem a essa configuração das relações regionais.
Nesse sentido, mesmo que os gastos militares tenham sido constantes-
nos últimos anoscom uma tendência ao aumento nominal em face do cres-
cimento dos PIBs dos países, e haja declaração de intenção de aumenta-los
progressivamente nos próximos anos, os mesmos não provocaram proces-
sos de ruptura, tensão ou ameaça de uso da força. A criação do CDS como
órgão de concertação e consulta, amplia o tradicional relacionamento bi-
lateral ou trilateral para multilateral entre os países da região, mesmo que
ainda não tenha completamente substituído as relações entre díades e tría-
des. Contudo, considerando que o Conselho surgiu apenas em 2008, os
avanços no sentido da cooperação multilateral são significativos.

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Muito embora o caráter primordial de atuação das forças, qual seja, a


defesa externa contra eventuais ameaças ou agressões - acrescida da atua-
ção em missões de paz da ONU - continuedeterminando a característica
primordial da missão dos militares, um caráter interno desponta em al-
guns países variando desde apoio à infraestrutura, distribuição de remédios
e atuação na área da saúde, como – no caso brasileiro –voltada para a garan-
tia da ordem constitucional e interna.
Em meados do século XXI o desafio maior deixou de estar centrado nos
conflitos territoriais, mas manteve uma preocupação com a estabilidade das
instituições tendo em vista instabilidades políticas internas e foi acrescido
de demandas relacionadas ao combate ao tráfico de drogas, especialmente,
e a luta contra o crimeorganizado transnacional que se vale também do trá-
fico de armas e lavagem de dinheiro. A reconfiguração sistêmica de poder
com o fim da Guerra Fria e a iminência de atores e processos não fortemen-
te aparentes durante a bipolaridade e, em decorrência da reconfiguração,
uma atuação mais seletiva no mundo das grandes potências, permitiu um
escopo mais ampliado de atuação das dinâmicas regionais, contudo, trouxe
a essas regiões outros e impactantes desafios a serem considerados.

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A importância das organizações


internacionais latinoamericanas
– MERCOSUL e UNASUL – para
a região da Bacia do Prata
Elany Almeida de Souza 1
Ricardo Seitenfus 2

Introdução

C onsiderando as dinâmicas das relações internacionais em âmbito re-


gional, verificam-se a necessidade de articulações estratégicas e em de-
terminados momentos quem assume esses importantes papéis, são as orga-
nizações internacionais sejam as de cooperação econômica ou política e, na
região da Bacia do Prata não é diferente.
A região da Bacia do Prata compreende diferenciações territoriais que
são ligadas tanto ao processo de integração sul-americana, quanto às for-
mas físicas de conexão, que vem se dando ao longo dos anos por meio de
uma implementação de uma multi-governança em múltiplas escalas. Tra-
ta-se de uma região que foi cenário de conflitos para delimitação entre as
cortes espanhola e portuguesa e seus processos de ocupação territorial com
características mistas luso-hispânicas, dando à região em comento uma
identidade única.

1.  Mestranda em Direito e Acadêmica do Curso de Relações Internacionais, ambos pela Universida-
de Federal de Santa Maria- UFSM. Integrante e pesquisadora do Grupo de Estudos, Extensão e Pesquisa
em Política Internacional Contemporânea – GEPPIC - Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.
Integrante e pesquisadora do Grupo de Estudo de Política Internacional/linha de pesquisa “Poder, Po-
lítica Externa e Política Internacional” no Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais de Santa
Maria – PRISMA/UFSM. Bolsista CAPES. Advogada. Correio eletrônico: elanyalmeidas@gmail.com.
2.  Doutor em Relações Internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais da
Universidade de Genebra. Professor Titular do Departamento de Direito da Universidade Federal de
Santa Maria – UFSM. http://www.seitenfus.com.br/

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Os processos tanto de colonização como de descolonização, são específi-


cos, contudo são nos anos 80, com a redemocratização dos estados sul-ame-
ricanos, que a rivalidade geopolítica abre espaço para novas relações comer-
ciais em tratados de cooperação, tanto no âmbito dos Estados quanto das
populações de seus respectivos territórios. As cooperações institucionais de
ordem bi ou tri-nacionais, mesmos com as iniciativas integracionistas suge-
ridas por ações governamentais, encontraram e encontram ainda grandes
dificuldades.
Por se tratarem de formações sócio-espaciais que guardam semelhanças,
embora algumas diferenças sejam evidentes, é na atuação dos diversos atores
locais e regionais que a cooperação tem sido fomentada e nesse âmbito, des-
tacando-se o papel da Unasul e do Mercosul, que como organizações inter-
nacionais de âmbito regional, exercem papel promotor do desenvolvimento
sustentável.
A importância das organizações internacionais para a região da Ba-
cia do Prata será demonstrada, tomando-se por foco de análise, o papel
do Mercosul e da Unasul naquela região, observando as variáveis rele-
vantes da atuação dos atores nesse espaço de interação e o poder de in-
fluenciar o palco das decisões. A metodologia empregada consistiu no
método monográfico, por meio de pesquisa bibliográfica e documental
de literatura especializada e interdisciplinar. O presente artigo está divi-
dido em quatro partes, primeiramente, abordar-se-á acerca do comple-
xo da Bacia do Prata no contexto do regionalismo de coalizão. Em um
segundo momento, far-se-á uma análise acerca da influência das orga-
nizações internacionais, em específico o Mercosul e a Unasul na região
da Bacia do Prata, para em considerações finais, inferir que as referidas
organizações internacionais incrementam e reforçam a construção do
núcleo geoeconômico, geopolítico e geoestratégico da região, depen-
dendo os resultados do comportamento desses subespaços transfron-
teiriços, que ora são influenciados por atores locais, ora regionais e que
reclamam cada vez mais uma multigovernança para uma efetiva coope-
ração fronteiriça.

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O complexo da Bacia do Prata no contexto do


regionalismo de coalizão
A Bacia do Prata abrange uma área de mais de 3,1 milhões de km² e a dis-
tribuição consiste em 54% do Brasil, 55% da Bolívia, 100% do Paraguai, 80%
da Argentina e quase 90% do Uruguai, sendo seus principais rios: o Para-
ná (4.352 km), o Paraguai (2.459 km) e o Uruguai(1.600 km), considerado o
maior estuário do mundo alcançando 256 km de extensão. Como mencio-
nado, a formação desses cinco países que compõem a Bacia do Prata pas-
sou por disputas entre Espanha e Portugal no período colonial e foi palco
de conflitos como a Guerra do Paraguai (Paraguai/ Brasil, Argentina e Uru-
guai) e a Guerra do Chaco (Bolívia/Paraguai) (ECOA, 2016)
Em 1828, a então República do Prata e o Brasil, acordaram no sentido de
atribuir plena liberdade dos rios nacionais de ambas as nações, sendo que
em 1851, Brasil e Uruguai “concordaram no uso comum do rio desse último
nome em seus 1.600 km de navegação, no rio Paraná (3.700 km), Uruguai e
Paraguai, observados os regulamentos de polícia e fiscais”. Por conseguinte,
em 1857, o objetivo foi ampliado, sendo declarada a abertura do Prata para
todas as nações, que no futuro seria objeto de tratado a fim de promover
“o desenvolvimento harmônico e a interação física da área, a avaliação e o
aproveitamento de seus recursos, a utilização racional da água e a assistên-
cia à navegação fluvial” (MAZZUOLI, 2006, p. 462)
Outrora caracterizada por uma atividade rural intensa e com pequenos
índices de impacto ambiental, passou por mudanças em suas dinâmicas e
modo de produção, transformando-se em região de grande atividade in-
dustrial e agrícola, com expressivo mercado consumidor e de exportação
de commodities para países como a China, EUA e regiões como a Europa,
dentre outras. Seu caráter econômico, portanto, embora pautado por um
índice que não encontra mais tanto grau de exatidão quanto ao que de fato
seja crescimento, produção de riqueza e desenvolvimento de uma região,
tem no seu Produto Interno Bruto (PIB) mais de 70% daquilo que é conta-
bilizado para o cálculo a cada ano nos cinco países, representando 24% do
total das áreas dos países que a compõem (ECOA, 2016).

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A região da Bacia do Prata é considerada a maior produtora de grãos do


mundo, com intensa exportação para Europa e Ásia, compreendendo ain-
da a maior produção de cana e biocombustíveis da América do Sul. Rica
em biodiversidade, eis que abrange grandes biomas e ecorregiões como a
Amazônia, Sistema Paraguai-Paraná de Áreas Úmidas do qual faz parte o
Pantanal, Cerrado, Bosque Seco Chiquitano, Chaco, Yungas e Mata Atlânti-
ca, não se podendo olvidadar ainda que o Aquífero Guarani localiza-se em
boa parte na Bacia do Prata (ECOA, 2016)
O documento legal que vincula os integrantes da região em estudo é o
Tratado da Bacia do Prata, assinado em 1969 pelo Brasil, Argentina, Bolívia,
Paraguai e Uruguai, é o instrumento jurídico apto a institucionalizar a ex-
ploração desse sistema hidrográfico, de forma racional, harmônica e inte-
grada, tendo por objetivo atender as vontades dos países partes em comple-
mentar as suas economias, haja vista a patente competitividade, e o ótimo
aproveitamento dos grandes recursos naturais da região.
O Comitê Intergovernamental Coordenador dos Países da Bacia do Pra-
ta (CIC), é o órgão que irá fomentar os objetivos propostos. Importante ob-
servar que estes anseios do referido comitê datam fevereiro de 1967, onde
os Chanceleres da Bacia do Prata em uma primeira reunião e em busca de
harmonizar interesses comuns, optaram por realizar estudo conjunto e in-
tegral da área, com o fim de concretização de obras multinacionais, bilate-
rais e nacionais que visassem o desenvolvimento da região (ECOA, 2016).
A importância dessa forma de coalizão regional, adotada pelo mundo,
tem sido um contraponto ao que no passado foi ditado por uma bipolari-
dade que não abria espaço às políticas regionais e que atualmente sofrem
influências de variáveis que operam a nível global, nacional e regional. Nes-
se sentido, as regiões passam a ter sua importância a partir de um viés uti-
litarista, onde podem ser destacados diversos interesses, como a posse de
recursos estratégicos, o volume de comércio e investimento, além dos in-
teresses eleitorais nacionais. Assim, o gerenciamento de tensões regionais
passa a ser conduzido, em sua maioria, por Estados pertencentes à região,
sendo por óbvio benéfico aos interesses daquele espaço e necessário um

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consenso acerca da ordem apropriada, bem como a consciência de que fa-


zem parte de um sistema de unidades de interação, contribuindo para a
ideia de uma sociedade regional e em seguida a construção de uma comu-
nidade regional pacífica (SOUZA e PINTO, 2015)
A institucionalidade para a integração regional da Bacia do Prata foi for-
talecida em seguida, pelo Tratado de Assunção, que deu origem ao Merco-
sul no ano de 1991, visando fomentar o comércio intra-regional e interna-
cional dos países partes. O Comitê Intergovernamental Coordenador dos
Países da Bacia do Prata desde o nascedouro, atuou em áreas de interes-
se comum dos cinco países, incentivando a realização de estudos, progra-
mas e obras de infraestrutura em temas de hidrologia, recursos naturais,
transporte e navegação, solos e energia. Nesse aspecto, importante mencio-
nar o estudo realizado pela OEA (CIC-OEA, 1973) que tratou de elucidar
os recursos naturais da Bacia do Prata, permitindo uma maior compreen-
são quanto ao aproveitamento de potencialidades de energia e transporte
(ECOA, 2016).
Importante observar que a construção de uma sociedade regional não
depende apenas da vontade de atores regionais e de seus interesses afins,
mas também de diversos elementos que podem fazer de determinada uni-
dade de interação uma simples pretensão ou dependendo de onde geopoli-
ticamente essa sociedade regional esteja pretendendo se formar, possa repre-
sentar verdadeira ameaça aos interesses econômicos de grandes potências,
sobretudo porque são fortemente influenciadas pelo equilíbrio de poder
global e a rivalidade entre as grandes potências (SOUZA e PINTO, 2015)
Outro fator determinante para uma integração regional reside na políti-
ca interna adotada em relação aos países vizinhos, ou seja, aqueles integran-
tes da mesma sociedade regional. A política doméstica molda os contor-
nos das relações inter-regionais, devendo essa análise partir da perspectiva
de uma linha contínua, onde em uma extremidade estaria o sistema regio-
nal e na outra a comunidade regional, sendo que a segurança regional esta-
ria bem próxima do sistema regional e na outra extremidade, ao lado da co-
munidade regional, estaria a sociedade regional (AYOOB, 1999)

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No aspecto da segurança regional, a busca pelo equilíbrio de impasses


políticos e militares entre atores de uma sociedade regional, são contorna-
dos visando interesses comuns a serem preservados, apesar das diferenças.
O compartilhamento de uma identidade também é uma variável determi-
nante, pois uma comunidade regional requer mais que incentivos mate-
riais, reclama um regionalismo cognitivo, instituições de cooperação regio-
nal para fins de segurança, bem-estar e respeito aos direitos humanos. Essa
identidade, apesar de ser consabido que cada Estado-Membro apresenta
uma distinção dos demais, deve ser concebida como uma proximidade que
pode se dar através da interação mútua e comum das organizações, na me-
dida que compartilham de semelhanças geográficas e interesses políticos e
econômicos coincidentes, bem como partilham, como decorrência lógica
dessa interação, de competições e conflitos (SOUZA e PINTO, 2015).
Partindo dessas premissas, no tocante ao contexto da Bacia do Prata e a
segurança dessa região, não se pode ignorar a necessidade de um comple-
xo de segurança que deve ser mapeado e monitorado, eis que sua existência
dos ponto de vista geopolítico e geoestratégico, em caso de eventual lide-
rança regional por parte de algum Estado-Membro, poderia sugerir o in-
cômodo de alguma grande potência que tenha seus interesses ameaçados,
como também no âmbito regional, esse aspirante a hegemon pudesse ser
visto como um predador regional e ameaça aos outros Estados e regimes. O
Regionalismo desempenha portanto, papel fundamental na ordem global,
tendo destaque as potências médias e os líderes regionais. Essa união regio-
nal reforça a teoria da Balança de Poder, tornando o poder de países desen-
volvidos menos hegemônico (SOUZA e PINTO, 2015).
Aspectos históricos, como os de colonização e de descolonização dos Es-
tados, além de fatores ligados à religião, também são variáveis que deter-
minam não só o processo político interno de cada país, como também a
política externa com seus vizinhos e consequentemente pode explicar ten-
sões regionais e fracassos em tentativas de interações regionais. A ideia de
autopercepção se reflete nas posições assumidas e nas relações formadas
pelo Estado, bem como na sua identidade e no papel que ele pressupõe

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para si mesmo. O fornecimento de bens públicos mundiais está relaciona-


do a capacidade do Estado de prover um sistema de comércio mais aberto
e a coordenação das políticas macroeconômicas, por exemplo. A relação da
projeção de influência e valores está ligada a alteração ou manipulação dos
interesses dos Estados secundários (SOUZA e PINTO, 2015).
Assim, no que toca a macrorregião transfronteiriça da Bacia do Prata e a
efetividade de um núcleo geoeconômico do Mercosul, verifica-se que esses
subespaços transfronteiriços carecem de iniciativas intergovernamentais a
fim de que a institucionalização seja em verdade formalizada enquanto es-
paço central do mercado comum, exigem portanto uma multi-governan-
ça com ações concatenadas e harmônicas que não se reduza à estrutura ter-
ritorial clássica do continente vertida para o exterior, reflexo dos ocupação
territorial a partir da costa (ALDOMAR e DIETZ, 2012).
Frize-se que as políticas territoriais na escala sul-americana caminham
na mesma sincronia que os esforços integracionistas, que restaram por ga-
nhar maior relevância com a criação de mecanismos como o Mercosul, a
IIRSA - Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Ameri-
cana - que consiste em uma decisão geopolítica e de política territorial de
caráter macro reestruturante, bem como da Unasul - União das Nações Sul-
-Americanas – que são iniciativas fudamentadas nas premissas da CEPAL –
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe - que na década de
90 preconizava o regionalismo aberto, do Banco Interamericano de Desen-
volvimento – BID – e do novo regionalismo (FERNANDÉZ; AMIN, VI-
GIL, 2008).
Nessa vertente, cabe ressaltar a iniciativa da IIRSA – Iniciativa para a
Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana – para a construção
ou melhoria das vias bi-oceânicas reflete a refundação da estrutura territo-
rial clássica, que tinha como foco a direção ao exterior a partir das regiões
produtoras próximas da fachada oceânica. Essas ações, também reforçam a
aproximação política de grupos sociais distintos, de um e de outro lado das
linhas de fronteira, permitindo que os atores locais e regionais possam in-
teragir em favor de temas relacionados à cooperação fronteiriça que resulte

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em uma governança emergente nos espaços transfronteiriços da Bacia do


Prata (ALDOMAR e DIETZ, 2012).
A seguir abordar-se-á como o Mercosul e a Unasul enquanto organiza-
ções internacionais de cooperação econômica e política respectivamente,
influenciam os acontecimentos e deciões no âmbito do complexo da Ba-
cia do Prata.

A influência das organizações internacionais, MERCOSUL e


UNASUL, na região da Bacia do Prata
Compreender a evolução do processo de integração na América do Sul no
século XX, sobretudo no que respeitam as organizações internacionas Mer-
cado Comum do Sul (Mercosul) e União das Nações Sul-Americanas (Una-
sul), pressupõe entender que a primeira tem um caráter de cooperação eco-
nômica e a segunda de cooperação política nas Américas.
O Mercosul, data 1991 e é composto por quatro países, com forte in-
fluência dos processos de redemocratização, em especial da retomada de
relações entre Brasil e Argentina, é marcado por características neoliberais
próprias dos governos nacionais, fruto da reinstauração de governos demo-
cráticos e da aplicação de ideias advindas do pensamento do Consenso de
Washington. Teve êxito em arrefecer o caráter conflitivo das relações do
Brasil e Argentina como retromencionado, que já se prolongava por mais
de século, fruto da instável região da Bacia do Prata e pelas incertezas causa-
das por pretensões de liderança (OLIVEIRA e SALGADO, 2011).
O Mercosul tem motivação política e sua percepção pelos formulado-
res de política externa brasileira traçam dois caminhos. O primeiro visa
oportunidades comerciais, com a criação de novos fluxos e o desvio do “co-
mércio para a própria região das trocas até então realizada com terceiros.
Multiplicar-se-iam as joint-ventures; as pequenas e médias empresas, inex-
perientes na área internacional passariam a agir no novo mercado; abrir-
-se-iam novas fatias de mercado intrarregional” (SEITENFUS, 2016, p. 323).
A segunda percepção, corresponde ao grupo que vê no Mercosul um
intrumento de inserção internacional dos seus países membros, com a

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ampliação de sua expressividade face a negociações travadas com blocos


já unificados como a União Europeia e o Nafta. Veem no novo mercado
a uma possibilidade de fortalecer a atuação brasileira no exterior, como a
“coordenação das exportações das principais commodities”. Noutro passo,
encontram-se aqueles que não formulam política externa, mas que sofrem
seus reflexos, ou seja, a sociedade civil, que tem como ponto de atenção, os
problemas comuns dos países membros. A preocupação nessa seara é “a ne-
gociação conjunta da dívida externa, a recuperação econômica dos setores
produtivos deprimidos e a inserção no mercado de consumo de vastos seto-
res outrora marginalizados”, trata-se portando da contrução de uma pauta
de interesses comunitários (SEITENFUS, 2016, p. 323 e 324).
A Unasul, constituída em 2008, nasce em um contexto de uma estag-
nação do Mercosul no que respeitam suas características mais comerciais.
Essa iniciativa de coesão política na região, abrange desde temas sociais e
até de infra-estrutura, não deixando de lado os interesses comerciais. Am-
bas as organizações internacionais se complementam na busca por uma
promoção da integração, porém cada uma tem características específicas,
sendo ainda o Mercosul o eixo central da integração regional (OLIVEIRA
e SALGADO, 2011).
As razões do surgimento da Unasul refletem o interesse em resolver
questões e conflitos em âmbito regional, sem sofrer interferência da OEA
e consequentemente dos EUA. Visa ainda maior inserção, de forma segura
e competitiva, dos Estados sul-americanos no cenário internacional, apro-
ximando-se de iniciativas regionais como o Mercosul que almejam os mes-
mo objetivos. A questão econômica não é seu foco central, pois volta-se à
seara institucional, às questões estratégicas e políticas como forma de pro-
mover a integração, sendo a área econômica um elemento complemen-
tar. Verifica-se portanto, estar-se diante de “uma organização nos moldes
da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Sul)”(SEITENFUS, 2016,
pg. 301).
Dentre seus objetivos políticos, destacam-se: “a tomada de decisões por
unanimidade, o assentamento na região no mapa múndi, a expressão da

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voz única dos países nas instâncias multilaterais e o aumento da indepen-


dência política regional”. Geoestratégicamente, mesmo não se tratando de
uma aliança militar, a Unasul vem promover “a criação de um polo de po-
der regional, dando ênfase à segurança regional”. Denota-se portanto, que
a Unasul representa o “início da consolidação de uma nova dinâmica e um
novo mapa político na América do Sul, coadunando interesses dos paí-
ses da região” por meio de uma nova visão, estratégica, militar e multidi-
mensional, que objetiva o desenvolvimento produtivo, industrial e comer-
cial, sendo o protagonismo econômico da região é brasileiro (SEITENFUS,
2016, pg. 301-302).
Retomando ao que foi aludido anteriormente quanto a necessidade de
um complexo de segurança quando da abordagem de um regionalismo de
coalisão, deve-se considerar que a criação do Conselho de Defesa Sul-Ame-
ricano (2008), é resultado da necessária agenda de segurança na América do
Sul, sejam por crises diplomáticas e militares em áreas Andinas ou mesmo
pela crescente competição estratégica (Chile e Peru) e de investimentos em
armamentos dos países sul-americanos. Nesse passo, o referido órgão atua
restrigindo o “espaço do processo de resolução de conflitos, retirando-o do
âmbito hemisférico” (SEITENFUS, 2016, pg. 302).
Embora a Unasul, através do seu Conselho de Defesa Sul-Americano,
possa pretender fazer frente a OEA, é consabido que referido órgão “não
pode opor-se aos mecanismos de solução de controvérsias vigentes (CS
das Nações Unidas), e o estrito respeito ao seu alcance territorial, como de-
monstra a inoperância da Unasul frente à crise haitiana”. Isso porque a Una-
sul, bem como o seu Conselho de Defesa, buscam harmonizar interesses
políticos de Estado e de Governo, o que muitas vezes não correspondem as
demandas e interesses da organização (SEITENFUS, 2016, pg. 302).
Outro ponto de grande relevância preconizado pela Unasul, refere-se a
cidadania sul-americana, que em sua oitava Cúpula Extradordinária ocor-
rida em dezembro de 2014, entendeu como um de suas intenções, o futuro
estabelecimento da livre mobilidade, seja para estudar, trabalhar ou circu-
lar nos países da região, podendo inclusive homologar títulos profissionais.

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Dentre os seus mais de 30 projetos de infraestrutura, estão o corredor ro-


doviário Caracas-Bogotá, o acesso ao Rio Amazonas, a ferrovia Paranaguá
(Brasil) e Antofagasta (Chile), além é claro a melhora da navegabilidade
dos rios da Bacia do Prata (SEITENFUS, 2016, pg. 302).
Tanto o Mercosul quanto a Unasul assumem a centralidade na função
de coordenação política e de integração comercial na região sul-americana,
inclusive visando combater a perpetuação da relação desigual entre os paí-
ses e que de alguma forma possa garantir um projeto conjunto de supera-
ção da condição de dependência. Importante salientar que a Unasul nasce
na tentativa de funcionar como estrutura apta a articular e integrar os di-
ferentes blocos econômicos e países existentes na América do Sul. O Mer-
cosul, fomenta uma área de livre comércio sul-americana, ambas as organi-
zações internacionais de caráter flexível e comprometidas em respeitar as
diferentes dinâmicas existentes nos países, tendo a Unasul papel essencial
na interlocução entre as sub-regiões, a fim de acabar com as assimetrias e
promover decisões consensuais sobre uma integração mais igualitária, com
integração industrial e produtiva.
Dada a dificuldade de expansão do Mercosul e ampliação de suas fun-
ções, face sua rígida natureza, bem com a perspectiva de expansão da in-
tegração sul-americana para áreas por ele não contempladas, é que a Una-
sul vem buscar preencher essas lacunas, funcionando como um canal de
coordenação política dos países sul-americanos nos temas regionais. Como
exemplos de sua atuação, verifica-se que na crise institucional ocorrida na
Bolívia, a Unasul foi clara ao isolar os oposicionistas, e afastar qualquer
possibilidade de uma Guerra Civil, e dar respaldo ao governo. Atuou da
mesma maneira quando se colocou prontamente contra o golpe de Esta-
do ocorrido em Honduras, fazendo as vezes de intermediadora do diálogo
entre os países da região e na Colômbia quando da implantação das bases
norte-americanas naquele país (OLIVEIRA e SALGADO, 2011).
Resta evidente que a Unasul colabora para a expansão quantitativa da
integração sul-americana e o Mercosul para uma expansão qualitativa. As-
sim, a integração sul-americana assume contornos regionais, não se restrin-

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gindo a lógica sub-regional. Contudo, não há como negar que a mera for-
mação de uma área de livre-comércio ainda é uma proposta tímida diante
dos benefícios da integração e dos desafios do mundo globalizado. Nesse
sentido, importante aglutinar esforços de ambas as organizações, seja no as-
pecto da cooperação econômica e políticas para fins de integração, uma de-
pendência mútua saudável entre os países e uma maior autonia frente às
demais regiões do globo.
Nesse cenário, ambas as organizações internacionais sofreram desgas-
tes e em alguns momentos se viram desacreditadas quanto às suas fun-
ções precípuas, mas não se pode deixar de considerar que a crescente as-
simetria existente que resta por paralisar o Mercosul, se dá não só pelos
seu viés liberal comercialista, mas também pela falta de uma coordenação
econômica e industrial que efetivamente estabeleça diálogos aptos a acen-
tuar interdependência regional, por meio de ganhos econômicos, estabe-
lecendo uma vinculação estrutural entre os interesses estratégicos dos paí-
ses da região.
Outro ponto a ser analisado, é que o Mercosul enquanto união aduanei-
ra, vem ao longo de sua jornada apresentando inúmeros erros, mormente
se forem consideradas as falhas referente a sua tarifa externa comumo, que
resultou em contenciosos comerciais e dissabores diplomáticos. Esse cená-
rio de desconfiança foi agravado pelas crises econômicas do fim dos anos
90 e início dos anos 2000, reforçando o entendimento de que a melhor es-
colha seria dar primazia as necessidades internas e não ao que era almejado
com a criação do bloco, ou seja, o avanço da integração.
A catalização desse desenvolvimento regional deve ter como ponto de
partida uma nova dinâmica para o Mercosul e a Unasul, onde ambas as
organizações internacionais possam fomentar a distribuição simétrica dos
benefícios econômicos da integração, utilizando-as como mecanismos
complementares no projeto integracionista sul-americano e de crucial im-
portância para as políticas externas de seus membros, eis que são instru-
mentos de inserção internacional e canal para ter voz em organismos como
por exemplo a Organização Mundial do Comércio entre outros.

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Considerações finais
O presente trabalho se propôs a analisar a importância das Organizações
Internacionais, Mercosul e a Unasul, para a região da Bacia do Prata, tra-
zendo para o bojo da discussão elementos essenciais para a compreensão
dos processos de integração sul-americana, verificando as variáveis deter-
minantes nesse regionalismo de coalisão. Observou-se, que as referidas or-
ganizações internacionais incrementam e reforçam a construção do núcleo
geoeconômico, geopolítico e geoestratégico da região, dependendo os re-
sultados do comportamento desses subespaços transfronteiriços, que ora
são influenciados por atores locais, ora regionais e que reclamam cada vez
mais uma multigovernança para uma efetiva cooperação fronteiriça.
Verificou-se que tanto a Unasul quanto o Mercosul ocupam papéis im-
portantes no processo de integração sul-americano. O Mercosul, como ins-
trumento de intensificação das interdependências econômicas na região,
mas também com seu viés de abordagem política e cultural, dada a amplia-
ção de suas funções, o que contribuiu a integração regional, principalmen-
te os temas não econômicos.
A Unasul, como mecanismo de diálogo, solução de conflitos e coopera-
ção política, incentiva a a construção e solidificação de entendimentos entre
os países membros e contribui a formação de uma identidade política sul-
-americana, além é claro de fomentar a busca da formação de um comple-
xo na região. São, como dito alhures, intituições complementares, que visam
colaborar para a superação dos obstáculos políticos, econômicos e culturais
que ao longo dos anos vem impedindo o êxito da integração sul-americana.
Nessa senda, a influência das organizações intenacionais Mercosul e
Unasul na região da Bacia do Prata, como visto, é e será ditada pela capa-
cidade de seus países membros de conduzirem seus interesses de política
externa, de maneira que possam atender à evolução das relações interna-
cionais, as necessidades internas de cada membro, e sobretudo adotarem
conjuntamente a melhor estratégia para o desenvolvimento sustentável da
região, evitando a perpetuação de antigas instabilidades políticas e manten-
do uma promissora estabilização.

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em 15 de abril de 2016.

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O Platô das Guianas no Contexto


da Segurança e Integração
Regional Sul Americana.
Paulo Gustavo Pellegrino Correa 1 e Eliane Superti 2

Introdução

O grande tema das políticas territoriais de integração e segurança na es-


cala sul-americana surge conjuntamente com os esforços integracio-
nistas desta região que tomaram forma mais nítida com a criação do Mer-
cosul, da IIRSA – Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional
Sul-Americana e, mais recentemente, da Unasul - União das Nações Sul-A-
mericanas.
Estes esforços estão baseados nas premissas do regionalismo aberto dis-
cutidas pela CEPAL na década de noventa e do novo regionalismo (FER-
NANDÉZ; AMIN, VIGIL, 2008). Ambos conceitos são frutos do contexto
marcado pelo fim da Guerra Fria que proporcionou mudanças sistêmicas
e trouxe um novo espaço para as relações entre os Estados. Com o fim da
bipolaridade na organização das relações mundiais, descentralizou-se o
sistema internacional, o que fortaleceu o argumento regional. O concei-
to de regionalismo ampliou consideravelmente seu escopo, transcendendo
a economia e compreendendo elementos políticos, culturais e históricos.
Potências regionais, menos atadas pela balança de poder da Guerra Fria,
passaram a ter maior liberdade para conduzir suas políticas externas e se
envolver nas questões dentro de suas regiões (PRECIADO, 2008).

1.  Doutor em Ciência Política e professor do curso de RelaçõesInternacionaisnaUniversidade Federal


do Amapá (UNIFAP) e pesquisador do Observatório das Fronteiras do Platô das Guianas (OBFRON).
E-mail: paulogustavo@unifap.br.
2.  Doutora em Ciências Sociais e professora da Universidade Federal do Amapá, pesquisadora do Ob-
servatório do Platô das Guianas (OBFRON). E-mail: esuperti@gmail.com

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A segurança internacional é outro aspecto das relações internacionais


que também vai acentuar a tendência de regionalização. A ausência de dis-
putas sistêmicas no modelo da Guerra Fria e a probabilidade das ameaças
percorrerem distâncias mais curtas do que longas colocam o olhar regiona-
lizado sobre a segurança como um importante aspecto da segurança inter-
nacional contemporânea (BUZAN, 2007). Outro importante elemento da
segurança internacional contemporânea é a ampliação do debate sobre seu
escopo. De acordo com o entendimento tradicional, o conceito de seguran-
ça é diretamente ligado à ideia da confrontação entre estados. Nesse con-
texto, segurança diz respeito à sobrevivência, formando assim uma agenda
estritamente político-militar, característica marcante do contexto da Guer-
ra Fria. Entretanto, os debates teóricos que vieram à luz a partir da década
de 1970 trouxeram uma agenda econômica e ambiental para a discussão so-
bre segurança, assim como questões referentes à identidade e crimes trans-
nacionais.
A América do Sul, inserida na tendência de regionalização nas rela-
ções internacionais das últimas décadas, buscou fortalecer esse processo
no subcontinente com iniciativas de integração. Entre as sub-regiões da
América do Sul (os Andes, a Bacia do Prata e a Bacia Amazônica) a região
da Amazônia se destaca por sua vocação internacional, uma vez que está
presente em nove dos treze países da América do Sul 3– e pelas potencia-
lidades de desenvolvimento da região. Uma maior aproximação dos paí-
ses amazônicos apresenta algumas possibilidades como: significar uma
nova escala para pensar e agir na Amazônia transnacional; dinamizar ou-
tras iniciativas regionais (Mercosul, Unasul, CDS); finalmente, fortalecer
a voz da América do Sul (BECKER, 1992, 2005; AMAYO, 1993, 2007, 2009).
Dentre os diversos eixos na sub-região amazônica focaremos a região do
Platô das Guianas.

3.  Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Venezuela e a Guiana Francesa (Depar-
tamento Ultramarino da França).

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Integração no Platô das Guianas


Localizada na região norte do subcontinente Sul Americano, o Platô das
Guianas está caracterizado sócioculturalmente por um identidade amazô-
nico-caribenha. O Platô da Guinas é composto por Brasil, Guiana Francesa,
Suriname, Guiana, Venezuela e uma pequena parte da Colômbia, o que sig-
nifica mais das metades dos países que compõe a Amazônia Transnacional.
Contudo, dada a fragilidade das economias locais e as dificuldades de
integração física nessa região amazônica, dentre outos elementos, o proces-
so de integração regional entre os países do Platô foi caracterizada por uma
escassez de ações vigorosas entre os Estados. As interações ficaram limitadas
à imigração regional, à economia que orbita os garimpos- majoritariamen-
te ilegais, às drogas e aos madeireiros.
Esse cenário muda com o lançamento da Iniciativa para a Integração da
Infraestrutura Regional Sul- Americana (IIRSA) em 2000. Nesse momento
esboçou-se mudanças de posição política e de investimentos uma vez que
diversos projetos infraestruturais são pactuados entre os países do subcon-
tinente e desenhados de modo a permitir integração física, energética e de
comunicação.
Composta por Eixos de Integração e Desenvolvimento (EID), a IIRSA
tem um desses com influência direta na região do Platô das Guianas. Tra-
ta-se do Eixo do Escudo das Guianas que abrange a Região Leste da Vene-
zuela, os Estados da Região Norte do Brasil e a totalidade dos territórios
da Guiana e do Suriname. A área de influência delimitada alcança uma su-
perfície de 4.002.555 km2, equivalente a 40,80% da soma da superfície to-
tal dos países que formam o Eixo de Integração e Desenvolvimento. Com
uma população estimada em aproximadamente 25 milhões de habitantes,
a região em foco apresenta um PIB de aproximadamenteUS$ 199.904,2 mi-
lhões, concentrados em 99,1% entre Brasil e Venezuela (IIRSA).
A região apresenta um potencial ainda pouco explorado em recursos
naturais estratégicos como: petróleo, gás, bauxita, ouro e madeira, reservas
de água doce e potencial de desenvolvimento de hidro-energia. Estão pre-
sentes também atividades industriais de refino do petróleo, produção de

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alumínio, processamento do minério de ferro, avicultura. Entretanto, a fal-


ta de interconectividade no Platô restringe o desenvolvimento das ativida-
des econômicas e os projetos da IIRSA justamente se concentraram nesse
setor. Entretanto, mesmo diante dos potenciais de exploração e o lança-
mento da IIRSA, a integração na região pouco avançou nas últimas déca-
das. A grande parte dos projetos dentro do Eixo do Escudo das Guianas
não saiu do papel.
Dos quatro grupos de trabalho que compõem o Eixo do Escudo Guia-
nês na IIRSA não existe nenhum conduzido diretamente pela França em
seu departamento na América do Sul. Entretanto, há projetos dos países li-
mítrofes com a Guiana Francesa que têm esse território dentro da sua área
de influência e iniciativas de integração apoiados financeiramente pela co-
munidade economia européia e pelo estado francês na Guiana Francesa4.
Dos projetos que envolvem a Guiana Francesa, a Ponte Internacional so-
bre o rio Oiapoque gera expectativas às regiões de sua influência. A ponte
tem como objetivo permitir a conectividade entre Brasil, Guiana Francesa,
Suriname, Guiana e Caribe, possibilitando a constituição de uma malha da
Rodovia Pan-Americana Atlântica e, principalmente, uma ligação entre o
Brasil e a França, Mercosul e a União Europeia.
Os efeitos da ligação física entre o território francês e brasileiro apresen-
tam resultados múltiplos e complexos, pois a ponte reverbera em diferen-
tes escalas e temas. Silva aponta alguns desses efeitos:

Na escala internacional, a sua construção relaciona-se a processos contem-


porâneos de diminuição de descontinuidades geográficas para facilitar a
fluidez, num ambiente de algumas interfaces entre Estados nacionais, em

4.  Amongtheseprojectsfinancedby France, we pointout the PO andtheAmazonieand INTERG. The


firstistheresultof a collaborativeworkledbyFrench Guiana authorities, partner countries (Suriname,
Brazilianstatesof Pará, Amapá and Amazonas. The second. providesfunding for interregionalcoope-
ration acrossEurope, what includes FreanchGuyana. It isimplementedundertheEuropeanCommu-
nity’s territorial co-operationobjectiveandfinancedthroughtheEuropean Regional Development-
Fund (ERDF).

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que a fronteira de contenção, discriminante ou protetora contra “invasões”


físicas, se enfraquece face aos processos econômicos globalizadores. (...)
Na escala sub-regional nacional, a ponte binacional tende a gerar uma al-
teração nas relações sociais, não apenas na zona de fronteira, advindas com
este novo “conector”, que é a ponte, mas também na rede de infraestrutu-
ra de modo geral na Amazônia oriental. Na escala local, a ponte binacio-
nal provocará uma nova dinâmica na relação entre as cidades fronteiriças,
além de já ter promovido uma valorização fundiária urbana e rural e uma
redefinição da expansão urbana das cidades de Oiapoque e Saint-Georges-
-de-l’Oyapock para áreas próximas àquele objeto técnico, bem como rear-
ranjos entre autoridades locais para que problemas característicos daquela
fronteira não afetem a dinâmica projetada para o desenvolvimento regio-
nal e outras transformações (SILVA, 2013, p.67).

Entretanto, pronta desde 2011, a Ponte Binacional não entrou até hoje
em funcionamento. Ela simboliza as dificuldades de integração entre duas
regiões distantes de seus centros de poder, Brasília e Paris, que por sua vez,
não demonstram ter a integração de suas periferias como plataforma estra-
tégica, tampouco prioritária.
Com o Suriname a falta de interconectividade é um dos maiores obstá-
culos a sua “continentalização” e é justamente o foco dos projetos integra-
dores do país no Platô das Guianas. De acordo com os dados da IIRSA, os
projetos em que o Suriname participa estão focados em transporte. Esses
projetos têm como função estratégica implementar e desenvolver um vín-
culo de integração no extremo norte da América do Sul através da conexão
entre Venezuela, Guiana e Suriname e a consolidação da conexão física in-
ternacional para promover o desenvolvimento sustentável e a integração da
Guiana, Suriname e os estados do Pará e Amapá no Brasil5.
A construção e melhoria das estradas surinamesas são de forte impor-
tância econômica, pois dentro do seu território existem reservas minerais

5.  Fonte: http://www.iirsa.org/admin_iirsa_web/Uploads/Documents/lb13_completo_alta.pdf

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abundantes. A exploração dessas riquezas cobiçadas por empresas de países


como a China e Brasil depende de questões logísticas. Isso porque o territó-
rio surinamês é coberto pela floresta amazônica e demograficamente ocu-
pado apenas em suas planícies costeiras, ligações terrestres ao interior do
país possibilitariam a sua ocupação e seu desenvolvimento.
Contudo, de acordo com da IIRSA- Agenda de Implementação Consen-
suada, 2005-2010 - dos projetos que compõem o Grupo 36, todos dentro do
Suriname, nenhum saiu do planejamento ou da pré-execução. Dos projetos
que compõem o Grupo 47 e estão dentro do território surinamês apenas a
estrada Apura - NieuwNickerie está em execução. Isso significa que apesar
dos projetos estarem no plano IIRSA desde sua criação e a despeito da im-
portância estratégica para uma integração mais efetiva do Suriname ao seu
entorno geográfico, o isolamento do país continua como uma característi-
ca predominante.
Os grupos 2, 3 e 4 dos projetos dentro do Eixo do Escudo das Guianas
da IIRSA tem objetivos de integração entre os estados brasileiros do Ama-
zonas e Roraima com a Guiana, consolidando a infraestrutura que liga os
dois países. Os projetos buscam a implementação e desenvolvimento de
um vínculo de integração no extremo norte da América do Sul que liga Ve-
nezuela, Guiana e Suriname. Finalmente, objetivam a consolidação de uma
conexão física internacional entre Guiana, Suriname e os estados brasilei-
ros do Amapá e Pará. Entretanto, dos 15 projetos que compõem os 3 grupos
que estão dentro da Guiana, apenas a Ponte sobre o rio Takutu e as estradas
de Linden-Georgetown estão executadas ou em execução8.

6.  Estradas de conexão entre Venezuela- Guiana- Guiana Francesa; construção da ponte sobre oRio Co-
rentine (Guiana Francesa e Suriname); gasoduto Venezuela- Guiana- Suriname.
7.  Melhoramento da rodovia Georgetown - Albina; Rodovia de Macapá a Oiapoque; Rodovia Ferrei-
ra Gomes - Oiapoque (Brasil-Guiana-Suriname);melhoramento da travessia internacional sobre o Río-
Marowijne, construção da estrada Apura - NieuwNickerie; plano mestre integrado de proteção costei-
ra Albina- Nickerie.
8.  Fonte: IIRSA, Cartera de Proyetos 2013. Disponível em: http://www.iirsa.org/admin_iirsa_web/
Uploads/Documents/cnr23_cartera_2013.pdf. Acesso em 09 de nov. de 2013.

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A construção da ponte sobre o rio Takutu é parte de uma aproximação


entre Brasil e Guiana desenvolvidas a passos lentos desde 1990. Em 2003
foi celebrado o Acordo de Transporte Rodoviário Internacional de Passa-
geiros e Cargas a partir do encontro do presidente Lula e Jagdeo. Após al-
guns anos com as obras paralisadas por irregularidades, em 2009 a ponte
foi concluída.
A inauguração da ponte foi feita com uma farta menção ao significado
simbólico de integração da Guiana ao Brasil e à América do Sul (ver LIMA,
2011). Entretanto, a ligação entre um dos países mais pobres do subcon-
tinente com o estado da federação brasileira em situação econômica ho-
mônima não logrou grande dinamismo no processo de regionalização. Re-
ceios de um alastramento de ameaças de caráter transnacional (garimpeiros
ilegais, drogas, extração ilegal de madeira) se mostraram presentes com a
inauguração da ponte (GEHRE & GOMES, 2013), mas não apontam para
uma politização mais forte desses temas.
De acordo com os relatórios da IIRSA (2013), os projetos com a Venezue-
la e Suriname não apresentam grande evolução nos últimos anos. As razões
estão vinculadas a falta de prioridade dos países envolvidos e também litígios
que a Guiana tem com seus vizinhos, tema de nosso próximo tópico.

Dinâmicas de Segurança no Platô das Guianas


A dinâmica de segurança da região das Guinas apresentam elementos co-
muns em toda área. Destacam-se: as dinâmicas migratórias e suas repercus-
sões; a extração de ouro na região e as atividades que compõem o garimpo
e litígios fronteiriços.
A dinâmica migratória intraregional apresenta um fluxo de grupos suri-
nameses, guianeses e, principalmente, de brasileiros. Este último grupo é
percebido na Guiana Francesa como pressão migratória que assume carac-
terística conflituosa quando ligada ao garimpo. No Suriname o fluxo de
migração brasileiro como ameaças aos interesses locais.
Na Guiana Francesa a diversidade populacional é acentuada e isso é o
resultado de sucessivas ondas migratórias. A composição da população era

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principalmente de índios, crioulos, negros pardos, asiáticos e metropolita-


nos (metro)9 no início dos anos 1960 e, posteriormente, a diversidade se in-
tensificou com a chegada de imigrantes brasileiros, haitianos, guianeses e
surinameses. De acordo com o Institut National de la Statistique et des Étu-
des Économiques (INSEE), em 2009 os imigrantes representavam 29,7% da
população do Departamento francês, o que representa a região francesa
com o mais alto índice de migração do país.
A emigração de brasileiros rumo à colônia francesa começou desde os
tempos coloniais e ao longo do século XX conheceu momentos mais inten-
sos como na II Guerra Mundial (AROUCK, 2001). Na década de 1960 a pre-
sença brasileira se faz mais notável devido à necessidade de mão de obra
para a construção do Centro Espacial de Kourou e em 1980 as migrações de
brasileiros em busca de emprego em razão das crises econômicas. Percebe-
mos, então, a partir dos anos 60, um fluxo migratório menos ou mais inten-
so, mas ininterrupto. Nesse processo, soma-se os imigrantes ilegais que es-
tão na extração de ouro como garimpeiros e nos serviços que estruturam
essa atividade, como alimentação, transporte, comércio e prostituição. Sua
clandestinidade faz com que seu número seja bastante impreciso10.
No fluxo migratório de brasileiros para a Guiana Francesa existe, de
acordo com as autoridades francesas e brasileiras, um grande número de
clandestinos, principalmente com destino aos garimpos na floresta. Danos
ambientais, criminalidade, ameaça às populações indígenas devido à conta-
minação dos rios e dos peixes pelo mercúrio do garimpo, evasão de divisas,
malária e HIV/AIDS são alguns dos elementos ligados às atividades de ga-
rimpo conduzidas principalmente por brasileiros.
Silva destaca que

para o Consulado brasileiro em Caiena, há registros de 6.752 imigrantes


brasileiros legalizados na Guiana Francesa. A Cônsul Ana Beltrame in-

9.  População oriunda do território central francês.

10.  Ver Baldwin (2010)

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formou que há probabilidade de existirem três ilegais para cada legaliza-


do (SILVA, 2013, p. 156).

Essa previsão de ilegais adicionaria de 20 a 30 mil pessoas ao número de


brasileiros na Guiana Francesa dos quais uma porcentagem estaria ligada
diretamente ao garimpo ilegal. Nesse contexto, o fluxo de brasileiros legais
e, principalmente, ilegais passou a ser percebido como uma pressão migra-
tória e a resposta do governo francês configurou-se em medidas como: um
maior controle dos estrangeiros com implementação de barreiras no in-
terior do território, um dispositivo extraordinário e inexistente na França
metropolitana; criminalização e multa a quem emprega estrangeiros ile-
gais11; criminalização a quem ajudar um estrangeiro ilegal a entrar e a per-
manecer no território francês12.
É válido destacar que a relação de circulação de pessoas entre os estados,
ou seja, a relação entre o “nós” e “eles” é uma variável marcante para situar o
grau de integração entre esses duas ou mais unidades políticas (ADLER, E.
& BARNETT, M. 1998). No caso da relação Brasil- Guiana Francesa, a entra-
da legal de brasileiros no Departamento francês é feita somente através de
vistos. Já para a circulação de guianenses, esses com passaporte francês, a re-
cíproca não é verdadeira.
Na esteira da relação entre a Guiana Francesa com a região baseada pri-
mordialmente através de atividades securitizadas o governo francês buscou,
além das medidas acima mencionadas, controlar a pressão migratória bra-
sileira por meio de algumas iniciativas de cooperação com o Brasil como:
Carta de circulação transfronteiriça, Criação de posto consular em Saint-
-georges-de-L’Oyapock, Casa do Migrante e Conselho do Rio (Oiapoque).
Para a embaixadora Ana Beltrame13, do Consulado Brasileiro em Caie-
na, o fluxo migratório brasileiro em direção à GF é visto como uma espécie

11.  Art. L8251-1 e L8256-2do Código do Trabalho Francês

12.  Art. L622-1do CESEDA, Code de l’Entrée ET Du Séjour des Étrangers Et du Droit d’Asile

13.  Ver CORREA (2014).

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de ameaça ao emprego dos franco-guianenses. Outro ponto levantado pela


embaixadora sobre a comunidade brasileira na GF diz respeito à diferença
da taxa de natalidade entre a família brasileira e a franco-guianense. “É o tri-
plo”, diz a Embaixadora, “Ultrapassa o teto atual da previdência social france-
sa. Você vai atentar que marido e a mulher (franceses) trabalham e a media de
filhos por casal é de 1,6.. Na família brasileira a mulher não trabalha, quando
trabalha ela faz faxina no mercado marginal, ela não conta para a previdência
e eles têm 6 filhos. Eles perfuram o teto da previdência social e dão um déficit”.
Quando indagamos sobre a pressão migratória dos brasileiros, a embaixa-
dora afirmou que “nós somos um vizinho muito grande com uma popula-
ção muito grande, eles sabem que se um décimo do Brasil migrasse para cá
nós seríamos maior que a população franco-guianense. Ele assusta pelo ta-
manho de nossa população. A capacidade de ocupar um espaço fisicamente”.
Entretanto, Ana Beltrame não entende que a pressão migratória influencia
na relação Franco-Brasileira. Para a Embaixadora o garimpo seria a primeira
barreira no aprofundamento da integração entre os dois territórios em ques-
tão. “Aí bem longe, bem depois, a imigração”, afirma Ana Beltrame.
No Suriname, a extração de ouro e as remessas de surinameses no exte-
rior são as principais fontes de dinheiro do país. A imigração nos últimos
20 anos, especialmente de brasileiros, esteve ligada diretamente ao garimpo
e às atividades que o estruturam, como alimentação, transporte, comércio
e prostituição. Apontamos essa diferença, pois a imigração de brasileiros
na Guiana Francesa, já abordada no presente texto, está relacionada apenas
parcialmente ao garimpo. Outra parte desses brasileiros que migram em di-
reção à GF saem em busca dos atrativos de um território europeu como o
euro, benefícios sociais e saúde.
No Suriname, a chegada dos garimpeiros brasileiros se da na década de
1980. É justamente no final dessa década que a pressão pelo fim da explo-
ração dos garimpos na Amazônia brasileira se efetiva14. A criação de reser-

14.  Extinção do regime de Matrícula e estabelecimento do regime de Lavra Garimpeira (Lei no 7.805,
de 18 de julho de 1989, que altera o decreto anterior – Decreto-Lei no 227,t de 28 de fevereiro de 1967)

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vas indígenas e a “onda verde” já presente no cenário internacional passam


a se fortalecer no Brasil buscando eliminar atividades de grandes danos am-
bientais. Isso significou que os milhares de garimpeiros no Brasil, detento-
res de um know-how importante na extração de ouro na floresta amazônica,
buscaram outros espaços para continuar suas ocupações.
A chegada dos brasileiros aos garimpos do Suriname representou uma
forte transformação na extração do ouro. Isso não foi apenas devido ao nú-
mero de brasileiros que chegavam das fronteiras do norte do Brasil, mas,
principalmente, devido à forma de garimpagem brasileira desconhecida
pelos maroons. De acordo com Oliveira, os brasileiros conheciam técnicas
de desmonte hidráulico em terra firme, método de extração desconhecido
pelos quilombolas. Isso contribuiu para que a mineração artesanal desen-
volvida pelos quilombolas perdesse espaço para um novo o ritmo trazido
pelos atores dessa nova frente migratória (OLIVEIRA, 2010, p.55).
Dados do Ministério da Justiça do Suriname apontaram para a existên-
cia de mais de 8 mil brasileiros ilegais no país em 2008. Entretanto, esses
dados não são precisos e existem estimativas que trabalham com a possi-
bilidade de até 20 mil brasileiros ilegais no Suriname (JUBITHANA-FER-
NAND, 2009) ou ainda de 30 a 40 mil brasileiros em terras surinamesas
(OLIVEIRA & KANAI, 2011). Essas estimativas, tanto as menores quanto as
maiores, representam um percentual significativo de brasileiros na peque-
na população surinamesa, ou seja, a comunidade brasileira representa de
5-10% do total de pessoas no Suriname. Soma-se a esse número o dado qua-
litativo de que esses brasileiros estão concentrados na exploração da maior
riqueza do país.
Nesse contexto, a sociedade surinamesa associa o brasileiro diretamen-
te à mineração de ouro, à criminalidade nas regiões de garimpo e ao sexo.
Essas associações tem influência direta nas relações interpessoais (HOFS,
2006). A pesquisa realizada por Rafael da Silva Oliveira (2012) entre os anos
de 2007 e 2010 nos jornais Times ofSurinam (TS) e De WareTijd (DWT) do
Suriname, apontou a construção da imagem dos imigrantes brasileiros li-
gadas ao sexo, à clandestinidade, à violência e ao crime. O estudo constata

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que das 944 matérias analisadas, sendo 531 do TimesofSurinam (TS) e 413
do De WareTijd (DWT), o TS publicou pelo menos uma reportagem so-
bre os brasileiros no Suriname a cada 2,74 dias, ao passo que o DWT a cada
3,53 dias. Do total de notícias que abordavam os brasileiros 94,60% teve tra-
tamento negativo e os três temas mais presentes nessa linha de tratamento
são “garimpo/garimpeiros”, “danos ambientais” e “imigração ilegal”.
Na esteira da representatividade dos brasileiros no Suriname, o trabalho
de Carolina CarretHöfs afirma que

Os brasileiros eventualmente são representados como uma ameaça à ba-


lança étnica, expressa em pequenos eventos cotidianos – como as bati-
das policiais e a ostensiva burocracia de controle do comércio. A aten-
ção pública se volta para a imigração brasileira principalmente quando
acontecem alguns eventos limites como os casos de desordem pública
por badernas, crimes, envolvimento com tráfico de drogas ou até mes-
mo, histórias de esposas surinamesas que vão a público defender seus
casamentos “destruídos” pelas mulheres brasileiras (HÖFS, 2006, p.47).

Assim como os governos do Brasil, com a operação Anaconda, e da Fran-


ça, com a operação Harpia, o Suriname, através de suas forças policiais e mi-
litares, executou a operação Clean Sweep. Em 2008 um conjunto de minis-
térios do Suriname deram início à operação Clean Sweep com o objetivo
cessar atividades ilícitas como extração do ouro e madeira, o tráfico de dro-
gas e posse ilegal de armas (JUBITHANA-FERNAND, 2009).
Foram executadas outras duas operações Clean Sweep, buscando contro-
lar as áreas de garimpo em outras partes do país. Apesar de não serem os
brasileiros o alvo da operação, a Clean Sweep atingiu-os diretamente, for-
talecendo dessa forma a imagem dos brasileiros com a ilegalidade e a cri-
minalidade. Como destaca Oliveira (2012), a operação que conta com uma
“vassoura” como símbolo promoveu o discurso da “limpeza” fortalecendo
estereótipos, além de contribuir para “rotular e impor imagens negativas
aos brasileiros que vivem no Suriname” (p. 466).

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Outro episódio que marca as tensões entre surinameses e brasileiros,


mais especificamente com os maroons, aconteceu na cidade de Albina, lo-
calizada no distrito de Marowijne. Em dezembro de 2009 uma briga de bar
evoluiu para um conflito generalizado entre brasileiros e maroons. Na bri-
ga, um brasileiro assassinou um maroon e a retaliação do grupo quilombola
foi generalizada contra a comunidade brasileira. Os relatos descrevem estu-
pros, incêndios, espancamentos e assassinatos contra os brasileiros15.
O político e empresário RonnieBrunswijk é uma das principais lideran-
ças quilombolas do Suriname e é oriundo da região do mencionado confli-
to. Em entrevista ao jornal brasileiro Folha de São Paulo o líder maroon diz
que nos últimos anos os brasileiros mataram 68 pessoas e acredita que a re-
taliação é uma reação a anos de violência conduzida por brasileiros contra
sua comunidade 16. Para Brunswijk, a explicação dos estupros, tipo de vio-
lência comum praticada contra as mulheres brasileiras, está no pressuposto
de que “as brasileiras vão lá para ser [sic] prostitutas. Talvez eles [os maroons]
tenham a ideia de que tinham o direito de fazer isso”. Tal afirmação coadu-
na com a argumentação de Höfs (2006) e Oliveira (2012) no que diz respei-
to à imagem e discurso sobre a comunidade brasileira no Suriname.
O episódio pode ser analisado como algo isolado, uma vez que não
apresentou repetições de mesma intensidade. Entretanto, ele compõe um
cenário de securitização dos brasileiros no Suriname. Os marrons se cons-
tituem como atores cada vez mais presentes no cenário político surinamês
desde o fim da guerra civil nos anos 1990. Sua luta pelo direito às terras que
ocupam, regiões com abundância de reservas auríferas, já conquistou pre-
cedentes e respaldo de instituições supranacionais. A extração de ouro é
parte fundamental da economia maroons e do Suriname de forma geral e
sua exploração é feita basicamente por brasileiros. Esses, por sua vez, são
alvo de um discurso que os conecta às atividades ilícitas moralmente con-

15.  Ver G1, 2009

16.  São Paulo, terça-feira, 05 de janeiro de 2010 . ENTREVISTA - RONNIE BRUNSWIJK. Disponível
em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft0501201008.htm

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

denáveis pela sociedade local e que na relação com os maroons tem tomado
contornos de um discurso de ameaça.
Na Guiana, sua formação étnica é também bastante peculiar quando
comparada aos demais países da América do Sul. Atualmente existem seis
grupos étnicos que pouco se misturam entre si, mantendo uma divisão só-
cio-econômico-política dentro do país. Compõem a sociedade guianense
os grupos africanos, europeus, asiáticos, indianos, indígenas e portugueses.
Entre esses grupos, os islâmicos e os hindus constituem a maioria da nação
e dividem o poder entre si (LIMA, 2011, p.25).
Essa formação étnica guianense influencia na política doméstica do
país e também em sua política externa. De acordo com Vizentini (2010),
“as elites são relativamente permeáveis aos casamentos mistos, mas em ge-
ral cada grupo mantém forte identidade, havendo pouca mestiçagem. Pos-
teriormente, a constituição dos movimentos e partidos políticos foi forte-
mente assentada em linhas étnicas”. Desde sua independência em 1966, os
presidentes do país representaram essa diversidade elegendo um chefe de
estado chinês (1970-1980), dois afro-guianenses (1980-1992), dois indianos
(1992-1997, 1999-2011) e uma branca, judia e estadunidense (1997-1999). A re-
presentação da diversidade na escolha dos chefes de estado do país é inicial-
mente um dado interessante do ponto de vista democrático. Entretanto, os
caminhos apontados pelos diversos presidentes na construção e desenvolvi-
mento da nação não convergiram.
Na Guiana, A formação da comunidade brasileira não é recente. Entre-
tanto, alguns fatores contribuíram para uma potencialização da dinâmica mi-
gratória entre os dois países. Sobre o fluxo de guianenses para o Brasil, entre os
elementos que potencializaram a migração destacam-se: a busca de serviços de
saúde públicos; busca de trabalhos na construção civil e domésticos; redes de
relacionamentos parentais. No sentido inverso desse fluxo, ou seja, de bra-
sileiros na Guiana, os elementos potencializadores são: a já mencionada di-
minuição substancial de garimpos na Amazônia brasileira na década de
1980; a construção da ponte sobre o rio Takuto, parte dos projetos que com-
põem a IIRSA.

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A presença dos guianenses no Brasil é marcante no estado de Rorai-


ma. Entre as décadas de 1960-1990, devido às crises político-econômicas da
Guiana, essa presença se intensificou. Precisar o número de guianeses no
Brasil mostra-se uma tarefa difícil não apenas pela quantidade de ilegais,
mas também pelo número de registros duplos..
De acordo com Procópio (2007, p.106) existem aproximadamente 12 mil
guianenses com cidadania brasileira e guianesa vivendo em Roraima. Entre
as razões para esse registro duplo está o fato de que muitos guianenses têm
uma rede ampla de parentesco, bem como os processos socioculturais que
se desenvolvem entre as etnias Makuxi e Wapichana que vivem na fronteira
entre os dois países. Esse encontro populacional é denominado por Rodri-
gues (2009) como parte do “Lugar Guayana” que se construiu a partir dos
encontros de populações muito diferentes e permanece como um lugar de
grande complexidade onde vivem populações indígenas de diversas etnias,
migrantes regionais e imigrantes de todos os continentes (p.223).
A comunidade brasileira representa, de acordo com os dados do cen-
so de 2002, a terceira maior comunidade de estrangeiros na Guiana, ape-
nas atrás dos venezuelanos e surinameses. O trabalho de HisakhanaCorbin
(2009, p. 173-174) identifica diferentes grupos de migrantes brasileiros na
Guiana e duas características se destacam: a concentração do trabalho dos
brasileiros nas atividades ligadas ao garimpo e o fato dos brasileiros serem
trabalhadores sazonais. A concentração na garimpagem atinge diretamen-
te os interesses dos ameríndios que lutam para estabelecer seus direitos so-
bre suas terras.
A sazonalidade dos brasileiros, por sua vez, não desenvolve o interes-
se desse grupo em se fixar, aprender o idioma oficial e se inserir na cultu-
ra do país (LIMA, p. 50). Isso significa uma baixa intensidade de integração
do grupo e a ampliação do espaço de construção de uma imagem dos brasi-
leiros como um grupo que gera apenas tensão nos garimpos e nas mazelas
que circundam a atividade – como também observamos no Suriname e na
Guiana Francesa. Frisamos, entretanto, que nossa pesquisa não encontrou
evidência de politização, tampouco securitização dos brasileiros dentro da

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

Guiana. Contudo, fica evidente que a extração de ouro e o desempenho das


atividades que dão suporte ao garimpo (armas, drogas, comércio, prostitui-
ção) feitas majoritariamente por garimpeiros brasileiros, se apresenta como
um problema de segurança em diferentes aspectos e intensidades na região.
No Departamento Ultramarino Francês, as tensões relacionas ao garim-
po não ficam restritas ao governo francês, pois como um espaço amazônico
europeu a proteção da Guiana Francesa (GF) nas questões ambientais está
ligada à Constituição da Europa. A criação de um parque nacional no De-
partamento é uma consequência direta da proteção ambiental e de afirma-
ção territorial de um espaço cobiçado por seus recursos auríferos (PIAN-
TONI, 2011).
As ações francesas contra o garimpo ilegal deram origem à Opera-
ção Harpia. Composta por policiais e militares franceses a operação, des-
de 2008, faz constantes incursões nas regiões de garimpos. As centenas de
ações resultaram na prisão de mais de 1500 imigrantes ilegais e tiveram dois
militares franceses mortos por garimpeiros17. De acordo com Laurent Pi-
chon, coordenador da polícia francesa (Gendarmerie), “Para os franceses
da Guiana Francesa, o maior desafio da fronteira entre os dois países, é a
luta contra o garimpo ilegal18”.
O combate ao garimpo ilegal gerou esforços bilaterais entre Brasil e
França na assinatura de acordos. São eles: Acordo sobre Exploração Mine-
ral, que busca organizar institucionalmente a exploração mineral;Acordo
franco-brasileiro contra garimpagem ilegal.
Os recentes acordos são representativos na aproximação entre França e
Brasil na região, mas ainda não trouxeram grande efetividade no comba-
te à garimpagem ilegal. O tema do garimpo é constante quando o assunto
é a relação da GF com os países do seu entorno geográfico. O predomínio
de brasileiros nessa atividade faz com que o garimpo se estabeleça como a
principal barreira na aproximação entre Brasil e o departamento francês.

17.  Fonte: http://www.defense.gouv.fr/operations/france/harpie

18.  Ver SANTIAGO, 2013.

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Finalmente, destacamos os litígios fronteiriços do Platô das Guianas


que envolve todos os países, exceto o Brasil. Disputas de fronteiras são par-
te de questões clássicas de segurança e de securitização. Por se tratar de so-
berania territorial, o ator securitizante é normalmente o estado e os setores
político e militar são predominantes. Desde o tratado de Westifália em 1648
a reivindicação por fronteiras foi a origem de diversos conflitos bélicos de
alta intensidade.
Atualmente na América do Sul algumas demandas territoriais com-
põem o cenário de segurança que, num passado recente, foi origem de con-
flitos armados entre países amazônicos19. Atualmente, não existe a iminên-
cia da deflagração de nenhum conflito militar para a resolução das questões
fronteiriças. Entretanto, um processo de integração coeso, ou a construção
de uma comunidade de segurança se enfraquecem diante do desafio de re-
soluções fundamentais para as relações entre os estados da região como as
questões fronteiriças.
O Suriname possui os mais extensos litígios fronteiriços da região com
a França e a Guiana. Ambos foram herdados do período colonial e ador-
mecidos até a descoberta de riquezas minerais nas regiões. Com a Guiana
francesa, o contencioso se refere a um território na fronteira sul do Surina-
me com o departamento francês. O litígio com a Guiana, por sua vez, é du-
plo: o primeiro se refere à jurisdição sobre o rio que faz fronteira entre os
dois países, o rio Corentyne; o segundo é referente à região do Triângulo
do New River, localizado na fronteira sul dos dois países próximo ao Brasil.
A disputa com a Guiana Francesa data dos anos 1860 e se refere à origem
do rio Maroni. O Suriname defende que sua origem é o rio Lawae e os fran-
ceses, o rio Tapahony. Até a descoberta de ouro nas últimas décadas do sécu-
lo XIX, a determinação da comissão franco-holandesa que favorecia os fran-
ceses não foi questionada. Após a descoberta, outras arbitragens foram feitas,
mas sem que um acordo se firmasse. Tal situação segue ainda hoje indefinida.

19.  Peru e Equador em 1981 e 1995 entraram em conflitos armardos por questões fronteiriças na região
amazônica.

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Apesar da aproximação de Suriname e França através de acordos de coo-


peração, o Suriname continua com a tese holandesa sobre as fronteiras. Os
mapas surinameses mostram a fronteira contestada, mas o assunto não é
abordado com alguma relevância desde o começo da década de 1990. Al-
gumas razões fazem com que o assunto não ganhe maior reverberação no
Suriname: os surinameses compõem a segunda maior população de estran-
geiros na Guiana Francesa, as remessas dos imigrantes são importante para
a economia surinamesa; os projetos de cooperação com a França (Agence-
Française de Développement, 2008) são volumosos e as possibilidades de po-
tencializar as relações com o vizinho europeu são atraentes para a limitada
economia surinamesa.
As questões fronteiriças com a Guiana, se referem à soberania das re-
giões: rio Courantyne, que os separa; o Triângulo do New River, que fica
no extremo sul dos países em uma área com aproximadamente 15.000 qui-
lômetros quadrados de floresta amazônica e equivale cerca de 10% do terri-
tório surinamês; parte do Mar do Caribe que se estende ao norte de suas li-
nhas costeiras e em 2007 teve a sentença arbitral do Tribunal Internacional
do Direito do Mar proferida. Assim como no contencioso com a Guiana
Francesa, esses litígios se encontravam adormecidos até a descoberta de re-
servas auríferas nas regiões em questão e até a possibilidade de exploração
de petróleo. Após décadas de negociação no contencioso com a Guiana, os
países não entraram em um acordo e a necessidade de uma arbitração in-
ternacional mostrou-se como a única saída.
O litígio marítimo entre Suriname e Guiana tem em seu passado recen-
te alguns momentos de tensão que desembocaram no recurso de arbitra-
gem internacional. Em 1978 barcos surinameses foram presos por barcos da
marinha da Guiana, o que fez ambos os países trabalharem em um acordo
que culminou com a assinatura de um Memorando de Entendimento, em
1991. No memorando os países se comprometeram a permitir a exploração
conjunta de petróleo em zonas marítimas em litígios reclamados.
Entretanto, o Parlamento do Suriname nunca retificou o memorando
e multinacionais petroleiras passaram a explorar a região sob concessão da

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Guiana. Em 2000 a situação ficou ainda mais tensa quando barcos da ma-
rinha surinamesa empregaram atos hostis contra uma plataforma da CGX
Resources Inc. a CanadianbasedPetroleumCompany (CGX), alegando que
a empresa estava em uma Zona Econômica Exclusiva (ZEE) do país.
O incidente levou a uma série de discussões de fronteira entre os dois
países e a expectativa da Guiana era de que o memorando fosse respeita-
do. Propôs, então, para ambos os países compartilharem os ganhos de con-
cessão na área de sobreposição. O governo do Suriname não aceitou e de-
mandou a revogação da licença da CGX. Após a tentativa do intermédio
da Comunidade do Caribe (CARICOM), que tem pouca experiência no
tema, a questão se dirigiu ao Tribunal Internacional do Direito do Mar,
uma vez que Suriname e Guiana são signatários da Lei de Convenção Ma-
rítima (HOYLE, 2001).
Na sentença arbitral proferida pelo tribunal os três temas decididos fo-
ram: i) que o Tribunal Arbitral possui jurisdição para decidir sobre as fron-
teiras marítimas, o uso ilegal da força e sobre as alegações dos artigos 74 e
83 de MontegoBay; ii) estipula as fronteiras de maneira cartográfica, com
base no princípio da equidistância e reconhece que a ação armada do Suri-
name – relativa à CGX – foi uma ameaça, segundo a Carta das Nações Uni-
das, mas o pedido feito pela Guiana por compensação foi rejeitado; iii) am-
bos os países violaram os artigos 74 e 83 de MontegoBay (p. 165-166).
Para o governo do Suriname a sentença apresenta erros de cálculo e
para Harvey Naarendorp, Ministro de Relações Exteriores do Suriname,
não foi justa e equitativa, já que para a Guiana foram concedidos 65% dos
31.600 quilômetros quadrados de largura da antiga área de disputa, enquan-
to Suriname recebeu as 35% restantes (CAIRO, 2007). Entretanto, não ocor-
reram outras demandas por parte do Suriname, ficando o tema como arbi-
trado pelo Tribunal.
Em um cenário em que o Suriname se encontra prensado entre dois li-
tígios territoriais, a possibilidade de um conflito com a França é algo dis-
tante, entre outras razões, pela assimetria de forças e pela relação do Surina-
me com a Guiana Francesa. Com a Guiana, por sua vez, episódios recentes

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de tensão foram interpretados como uma ameaça pelo governo guianês e


levados ao Tribunal Internacional do Direito do Mar, sem participação de
outros atores sul-americanos e a possibilidade de exploração de petróleo na
região acentuou a tensão entre Guiana e Suriname. Um cenário pouco fér-
til para um processo de regionalização coeso que afeta não apenas o Platô
das Guianas, mas também arquiteturas mais robustas de integração no sub-
continente.
O litígio territorial entre Guiana e Venezuela também é uma herança
dos tempos coloniais. A reivindicação venezuelana pela região de Essequi-
bo, correspondente a dois terços do território guianês, atravessou séculos e
ainda está presente nas relações entre os dois estados.
A região em questão é rica em recursos minerais (ouro, bauxita e urâ-
nio), outros recursos naturais (produtos da floresta) e recursos hídricos
com potencial hidrelétrico. Próximo da rica região venezuelana do delta do
Orinoco, o mar territorial da região em disputa é rico em petróleo (DESI-
DERÁ, 2012).
No histórico do litígio podemos destacar que o acordo entre a Venezue-
la e a Guiana, ainda colônia britânica, feito em 1899, passou a ser contesta-
do pelo governo venezuelano a partir da segunda metade do século XX. Em
1962, Caracas começou a fazer esforços mais enérgicos para resolver o lití-
gio de Essequibo. A Grã-Bretanha concordou, em novembro, em realizar as
negociações tripartidas, incluindo os representantes da Guiana Inglesa, que
iriam rever o registro da arbitragem de 1899. Após algumas conferências
ministeriais, as partes concordaram em procedimentos por meio dos quais
as reivindicações em conflito poderiam ser resolvidas definitivamente.
Após complicações durante a década de 1960 causadas por ocupações e
reivindicações da Venezuela, a comissão tripartite que vinha negociando a
disputa territorial declarou-se incapaz de produzir uma solução. Os dois
governos começaram as conversações bilaterais em 1970, ano em que líde-
res dos dois países assinaram o Protocolo de Port-of-Spain. Sob os termos do
protocolo, Caracas concordou em suspender as suas reivindicações territo-
riais para doze anos. As duas nações estabeleceram relações diplomáticas e

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continuaram suas conversas. Entretanto, no final da década de 1970 a possi-


bilidade de construir uma hidroelétrica na região a partir do rio fronteiriço
Mazaruni sofreu contestação da Venezuela.
Apesar da tensão entre os dois países não ter desembocado num confli-
to armado, o episódio demonstrou que quando se tratou da exploração das
riquezas da região em contestação, o movimento de securitização se inten-
sificou. Acontecimento semelhante ao episódio entre Guiana e Suriname
ligado a plataforma da CGX.
Nos anos 1990, a questão fronteiriça ficou sem maiores demandas ou no-
vidades, porém na década seguinte, no dia 13 de março de 2006, o presidente
Hugo Chavez anunciou algumas mudanças na bandeira nacional, a qual in-
cluía a adição de uma oitava estrela em homenagem à província da Guiana na
luta da independência venezuelana – episódio que não apresentou grande re-
percussão na discussão sobre a região em litígio. Entretanto, dois acontecimen-
tos recentes apontam para o potencial de securitização entre os dois estados:
em 2007 soldados venezuelanos, apoiados por helicópteros, usaram explosivos
para destruir duas dragas de garimpo de ouro no Rio Cuyuni localizado perto
da fronteira. As embarcações foram destruídas, pois de acordo com as autori-
dades venezuelanas elas estavam no lado da Venezuela20; em 2013 a Marinha da
Venezuela deteve um navio operado por uma companhia petroleira dos Esta-
dos Unidos que navegava na região em litígio. Ambos os países alegaram que a
embarcação que realizava estudos sísmicos estava em seus territórios21.
Os episódios foram tratados como acontecimentos isolados e não vincu-
lados à reclamação venezuelana pela região do Essequibo. Em nenhum dos
casos houve movimentações militares maiores e a diplomacia bilateral tra-
tou dos problemas. Entretanto, o histórico de tensão na região desde o final
da década de 1970 teve a exploração dos recursos naturais como o ponto de
partida de ações extraordinárias, securitizando o litígio.

20.  http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,guiana-acusa-venezuela-de-invadir-zona-de-garimpo-
-em-seu-territorio,81568,0.htm
21.  http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/venezuela-e-guiana-vao-se-reunir-sobre-navio-detido

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A área de influência de muitos dos projetos de integração que com-


põem o Eixo do Escudo Guianês está na região contestada e a grande par-
te dos projetos não saiu do papel desde sua concepção em 2000. Mesmo
sem declarações oficiais que vinculem o litígio com o baixo processo de re-
gionalização e execução dos projetos integradores entre Guiana e Venezue-
la, entendemos que o histórico aponta para essa associação. O litígio com
a Venezuela é uma variável importante na formulação da política domés-
tica e externa da Guiana e influencia a dinâmica de integração e seguran-
ça da região.
Desde a ascensão de Hugo Chavez ao poder em 1999, a Venezuela vem
buscando construir um papel de liderança na região. Esse papel é marcado
por uma capacidade de influenciar iniciativas conjuntas de integração re-
gional e de buscar construir um eixo ideológico anti-hegemônico. Esse per-
fil trouxe uma agenda negativa de conflitos diplomáticos, distanciamentos
políticos e tensões com vizinhos na região.
Essa agenda não afetou o Brasil diretamente, ao contrário, acabou cons-
truindo um cenário de aproximação econômica e política entre os dois paí-
ses. Entretanto, a ampliação de influência, liderança e espaço de poder na
região mexe na balança de poder, podendo gerar disputas entre os dois paí-
ses. Diante disso, o posicionamento do Brasil perante o conflito fronteiriço
entre Venezuela e Guiana torna-se variável importante na dinâmica de inte-
gração e segurança da região.
Entretanto, o posicionamento oficial diplomático brasileiro manteve-se
na tradicional não interferência e não buscou influenciar qualquer movi-
mentação na resolução do litígio com a Venezuela. Organizações regionais
como a Organização do tratado de Cooperação Amazônico e União nas
Nações Sul-americanas tampouco registraram envolvimento na resolução
do litígio, ausência observada nos outros litígios aqui trabalhados.
Os litígios que comprimem a Guiana com seus vizinhos aparentemente
congelados no que diz respeito a sua resolução, também congelam as pos-
sibilidades de desenvolvimento de projetos nacionais e regionais na região.
Um processo de securitização sobre os contenciosos territoriais afetariam,

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

além dos países diretamente envolvidos, o Brasil. O silêncio do Brasil e das


organizações regionais demonstram sua falta de força política e disposição
de atores fundamentais na dinâmica de integração e segurança na Améri-
ca do Sul.

Conclusão
A falta de interconectividade entre os territórios que compõem o Platô das
Guianas é um elemento marcante e a pouca evolução dos projetos da II-
RSA não conseguiu alterar essa realidade. A região continua “de costas”
para o subcontinente e alijada de outros processos de integração na Amé-
rica do Sul.
O Brasil, desfrutando de uma posição de potência regional, teve nas úl-
timas duas décadas a América do Sul como parte de seu foco estratégico in-
ternacional. Entretanto, o papel do país no Platô das Guianas foi de uma
relação com “uma outra América do Sul” que, apesar de algumas tímidas
iniciativas de aproximação com a região, não se inseriu como prioridade na
agenda da política externa brasileira e mesmo representando um caminho
para o Caribe, o papel do Brasil no Platô como Estado foi marcado pela
ausência.
A presença brasileira na dinâmica do Platô no contexto de integração
e segurança não fez por projetos e iniciativas, mas pelo fluxos migratórios,
extração de ouro nos garimpos, comércio ilegal de armas e drogas e prosti-
tuição. Essas são atividades protagonizadas por brasileiros na região.
Soma-se na dinâmica de segurança da região os litígios fronteiriços não
resolvidos desde o período colonial que, com exceção do Brasil, envolve to-
dos os países do Platô das Guianas. Mesmo não apresentando uma iminên-
cia de conflito armado, os litígios dificultam uma integração coesa e “con-
gelam” o desenvolvimento e criação de projetos na região.
Diante desse cenário, o Platô das Guinas apresenta-se como desafio na
construção de uma América do Sul como uma região geopolítica dotada
de unidade mínima e arcabouço institucional baseados em princípios e
macro-objetivos comuns nas relações internacionais. A aproximação da

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Amazônia caribenha com os demais países da região é um fator funda-


mental para a integração do subcontinente. Uma “Sulamericanização” do
Platô das Guinas, aproximando a região com o subcontinente, é um ele-
mento determinante na efetiva constituição de uma América do Sul que,
para além da coexistência e cooperação, possa se constituir como região
integrada.

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Sobre Defesa e Desenvolvimento nas


Fronteiras da Amazônia Setentrional
Brasileira – questões e problemas
Tiago Luedy

Introdução

A integração da Amazônia com o restante do país se tornou uma preo-


cupação efetiva do governo brasileiro a partir do fim da década de 30 e
início da década de 40 do século XX. No contexto das “descobertas” e “con-
quistas” que o governo pretendia para a Amazônia a fim de deixar para trás
a marca de abandono que até então caracterizava as fronteiras geográficas do
Norte, dois marcos são importantes: o programa de governo “Marcha para o
Oeste” (1938), que objetivou estimular a integração econômica no país e es-
tabeleceu que a região amazônica era um espaço a ser ocupado pelo poder
central, e o “Discurso do Rio Amazonas” (1940), do então presidente Getúlio
Vargas, que apontou a necessidade de ocupação das fronteiras brasileiras na
Amazônia e a dificuldade que o vazio demográfico na região representava.
Com efeito, nos primeiros anos da década de 40 os temas regionais da
Amazônia passaram a ganhar destaque, especialmente os temas militares.
Artigos foram publicados, estudos foram feitos, mas poucas ações práticas
foram implementadas. Foi somente em 1953 que um verdadeiro planeja-
mento regional foi apresentado para a ocupação territorial da Amazônia,
por meio da criação da Superintendência do Plano de Valorização Econô-
mica da Amazônia (SPVEA). Os investimentos feitos pela SPVEA na região
tiveram influência direta em questões de segurança nacional, já que o con-
trole político regional seria resultante de futuras concentrações populacio-
nais na Amazônia.
Com a extinção da SPVEA em 1966 e a consequente criação da Superin-
tendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), durante o gover-

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no do presidente Castello Branco, o planejamento regional para a área da


Amazônia Legal passou a considerar a região como uma fronteira em três
sentidos: como fronteira demográfica, como fronteira econômica e como
fronteira geopolítica.
Vista como fronteira demográfica, a Amazônia deveria “levar para a ter-
ra sem homens os homens sem terra”, isto é, deveria atrair fluxos migrató-
rios para solucionar o problema do vazio demográfico e assim estabelecer
uma presença constante na região. Foi nesse contexto que se iniciou a cons-
trução da Rodovia Transamazônica e propostas como as agrovilas tomaram
corpo. A percepção de fronteira econômica para a Amazônia começaria a
ser superada a partir da implantação de grandes projetos minerais e indus-
triais que valorizassem a economia da região. Os incentivos fiscais do Po-
loamazônia, o Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Ama-
zônia, estimularam a implantação de grandes projetos empresariais como
o Programa Grande Carajás e o Projeto Jari. A ideia de fronteira geopolíti-
ca, por sua vez, sugeria a necessidade de visualizar a Amazônia como um es-
paço de afirmação do poder nacional, especialmente nas áreas de frontei-
ra, a fim de coibir incursões estrangeiras e pressões criminosas para dentro
do país.
As preocupações com o resguardo da soberania nacional sobre o terri-
tório amazônico incentivaram uma série de ações na região, tanto políti-
cas quanto militares. Entre essas ações valem a pena destacar a assinatura
do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), a criação do Programa Calha
Norte e a implantação do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), ad-
ministrado pelo Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam).
A proposta feita pelo regime militar em 1978 de criação de um Trata-
do de Cooperação Amazônica (TCA) entre 8 dos 9 países da Amazônia
Transnacional (a Guiana Francesa, Departamento Ultramarino Francês, foi
intencionalmente deixada de fora) mais tarde convertido na Organização
do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), enfatizava a necessidade
de salvaguardar as fronteiras e a soberania dos Estados diante das ameaças
externas representadas pelas incursões estrangeiras e pela atuação de gru-

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pos guerrilheiros ligados ao narcotráfico. É claro que o desenvolvimento da


economia regional, a preservação do meio ambiente, o uso racional dos re-
cursos hídricos e a busca por uma maior cooperação e integração física en-
tre os países figuravam como objetivos do Tratado de Cooperação Amazô-
nica, mas a dimensão estratégica da segurança acabou se sobressaindo em
detrimento dos objetivos de desenvolvimento econômico e integração.
Em 1985 o Governo Federal lançou o Programa Calha Norte (PCN)
com o objetivo de proteger as fronteiras da Amazônia Setentrional, des-
de o Oiapoque-AP até Tabatinga-AM, uma área rica em recursos minerais
e entrecortada por reservas indígenas. Abrangendo atualmente 194 muni-
cípios (dos quais 95 estão situadas ao longo da faixa de fronteira) de 6 Es-
tados da Federação (Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima)
o Programa Calha Norte vai muito além do aspecto da vigilância, ele visa
contribuir com o desenvolvimento ordenado e sustentável da porção bo-
real amazônica.
Ainda no leque de projetos estratégicos, o Sistema de Vigilância da
Amazônia (Sivam), que faz parte do Sistema de Proteção da Amazônia (Si-
pam), é uma rede integrada de sensoriamento remoto que tem como ob-
jetivo fazer o monitoramento da Amazônia e também a fiscalização das
fronteiras. O monitoramento da região amazônica é de responsabilidade
da Casa Civil da Presidência da República e o monitoramento da atividade
aérea é de responsabilidade da Força Aérea Brasileira. O Exército tem tam-
bém um sistema de sensoriamento, o Sistema Integrado de Monitoramen-
to de Fronteiras (SISFRON), voltado para o fortalecimento da presença e
da capacidade de ação do Estado na faixa de fronteira.
Todas essas ações políticas, projetos estratégicos e presença militar – fí-
sica e cibernética – na região amazônica e na faixa de fronteira são de rele-
vante importância para a defesa da Amazônia Setentrional Brasileira, pois
garantem a soberania do país sobre sua porção da Amazônia transnacional,
o bioma amazônico presente não apenas no Brasil, mas também na Bolívia,
no Peru, no Equador, na Colômbia, na Venezuela, na Guiana e no Surina-
me (além da Guiana Francesa).

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As Condições Fronteiriças da Amazônia Setentrional


Brasileira
A Amazônia Setentrional Brasileira é a parte do território amazônico lo-
calizada acima do rio Amazonas, isto é, uma área que se limita ao sul com
o rio Amazonas e ao norte com os países vizinhos. Abarca territórios do
Amazonas, de Roraima, do Pará e do Amapá e faz fronteira com Colômbia,
Venezuela, República da Guiana, Suriname e Guiana Francesa.
Essa porção norte da Amazônia é um espaço marcado por algumas ten-
sões. Na parte brasileira da Amazônia Setentrional, observam-se casos li-
gados ao narcotráfico na fronteira com a Colômbia e casos relacionados a
imigrações ilegais nas fronteiras com o Suriname e com a Guiana Francesa,
motivadas pelo garimpo ilegal. Na parte transnacional, Nascimento (2009)
destaca que nos últimos anos pelo menos duas situações foram dignas de
destaque entre os vizinhos brasileiros: a aquisição de equipamentos pelas
forças armadas de Venezuela e Republica da Guiana, motivadas principal-
mente pela questão do Essequibo, e a criação do “Plano Colômbia” pelos
EUA, para dar apoio bélico ao governo colombiano no combate às FARC.
As regiões de fronteira da Amazônia Setentrional apresentam algumas
particularidades em comum que potencializam a dificuldade de manter a se-
gurança, como baixa densidade populacional, baixo nível de desenvolvimen-
to e forte dependência dos principais centros comerciais, políticos e financei-
ros de seus respectivos países. É essa dependência dos grandes centros que faz
com que as regiões de fronteira na Amazônia sejam consideradas áreas peri-
féricas e por isso o problema geopolítico seja ainda mais agravado em termos
de segurança pela condição demográfica e econômica, que facilita o desen-
volvimento de interesses externos num contexto de vulnerabilidade.
Nas chamadas fronteiras mortas, aquelas que não foram vivificadas pela
presença vibrante da vida das cidades, as ameaças trazidas pelas tensões
fronteiriças são um problema de segurança ainda mais complicado. Adicio-
ne a essas fronteiras mortas as características naturais do espaço amazônico
e além de problemas potenciais de segurança teremos também a dificulda-
de em planejar e executar ações de defesa.

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As fronteiras são consideradas zonas de tensão tanto por estarem no li-


mite entre duas jurisdições soberanas, quanto por constituírem a linha de
defrontação entre os interesses de dois Estados. Como lembra o Embaixa-
dor Marcos Henrique Camilo Cortes (2003), ainda que o Brasil não tenha
problema de fronteira desde 1909, quando foram estabelecidas as frontei-
ras atuais do Estado do Acre, através do Tratado do Rio de Janeiro, e com
o Uruguai, em outubro do mesmo ano, no Tratado da Lagoa Mirim, o país
não deixou de ter problemas nas fronteiras.
Como espaço que necessita de presença do Estado e das Forças Arma-
das para afirmar a soberania nacional e evitar tanto os problemas nas fron-
teiras quanto os problemas de fronteira, a Amazônia Setentrional Brasilei-
ra ganhou maior espaço no planejamento estratégico das Forças Armadas e
também nas ações do poder central em inúmeras áreas, desde a atração de
investimentos, o desenvolvimento social e a implantação de infraestrutura
viária (com rodovias, portos e aeroportos), até o desenvolvimento de proje-
tos de defesa e segurança das fronteiras. (NASCIMENTO, 2009).

A Presença Militar nas Fronteiras da Amazônia


É natural que uma região tão estratégica, com tantas riquezas e cujas
fronteiras são tão porosas seja alvo da cobiça estrangeira e se conver-
ta em um desafio em termos de defesa. A despeito das dificuldades co-
locadas, a presença das forças armadas nas fronteiras da Amazônia Se-
tentrional pode ser observada desde a região conhecida como “cabeça
do cachorro”, no município de São Gabriel da Cachoeira, no estado do
Amazonas, extremo noroeste do Brasil (fronteira com a Colômbia e a Ve-
nezuela), até a foz do rio Amazonas, no Estado do Amapá, contato com
o Oceano Atlântico.
A fim de proteger a Amazônia e dar conta das necessidades geopolí-
ticas e estratégicas de defesa da região, no ano de 1956 foi criado o Co-
mando Militar da Amazônia (CMA), com responsabilidade estendida so-
bre toda Amazônia Legal. Com a diretriz de adensamento da presença de
unidades militares na região amazônica e nas áreas de fronteira da Estra-

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tégia Nacional de Defesa (END), o Exército Brasileiro, com base na sua


Concepção Estratégica descrita no SIPLEx/2011 criou, em 2013, o Coman-
do Militar do Norte (CMN), com a responsabilidade de garantir a defesa
e a segurança estratégica sobre a banda oriental da Amazônia. Dessa for-
ma, o CMA ficou responsável por 9.358 km de fronteiras englobando os
estados do Amazonas, Rondônia, Roraima e Acre, e o CMN ficou respon-
sável por 1.890 km de fronteiras englobando os estados do Pará, Amapá e
Maranhão.
Com sede em Manaus desde 1969, o CMA conta com quatro Brigadas
de Infantaria de Selva (a 1ª Bda com sede em Boa Vista-RR, a 2ª Bda com
sede em São Gabriel da Colchoeira-AM, a 16ª Bda com sede em Tefé-AM e
a 17ª Bda com sede em Porto Velho-RO), além do 2º Grupamento de Enge-
nharia e a 12ª Região Militar a ele subordinado. Já o CMN, mais novo co-
mando militar de área do Exército Brasileiro, com sede em Belém-PA, tem
8 organizações militares diretamente subordinados, entre os quais se desta-
cam a 8ª Região Militar, a 23º Brigada de Infantaria de Selva, com sede em
Marabá-PA, o 2º Batalhão de Infantaria de Selva, com sede em Belém-PA e
o Comando de Fronteira Amapá / 34º Batalhão de Infantaria de Selva, com
sede em Macapá-AP, além da 22ª Brigada de Infantaria de Selva, em implan-
tação na capital amapaense.
Para melhor atender aos objetivos de defesa da região amazônica além
das Brigadas, Batalhões já apontados, há ainda diversas Companhias e mais
diversos Elementos de Fronteira (Pelotões Especiais de Fronteira – PEFs,
Companhias Especiais de Fronteiras – CEFs e Departamentos Especiais de
Fronteiras – DEFs) em localizações estratégicas espalhadas pelos mais de
11.000 km de fronteira terrestre da Amazônia, vivendo com o lema “vida,
combate e trabalho” (e proteção) na dupla missão de defender a pátria e co-
laborar com o desenvolvimento nacional, corroborando a imagem de “bra-
ço forte e mão amiga” do Exército Brasileiro.
Os Pelotões Especiais de Fronteira representam uma linha de frente na
vigilância e na defesa da soberania do país, dificultando qualquer penetra-
ção na faixa de fronteira. A presença dos PEFs está ligada a “estratégia da

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presença” que prevê o combate e resistência às ameaças externas funcionan-


do como uma “ponta de lança” da defesa, além de cumprir com a função de
“vivificação” da fronteira, onde os militares passam a ocupar essas regiões
de difícil acesso e com baixa densidade demográfica dificultando também
ocupações ilegais (MIRANDA, 2012).
Dos 27 Pelotões Especiais de Fronteira presentes na Amazônia 24 estão
subordinados ao Comando Militar da Amazônia. A maioria das Brigadas
e grande parte do efetivo militar encontra-se ainda na porção ocidental do
território amazônico e não na parte oriental, não obstante sua importância
estratégica e geopolítica vinculada ao acesso através do Oceano Atlântico.
Na própria página do CMA na internet é possível encontrar a afirmação de
que este é “considerado prioritário pelo Exército”. Entretanto, a tendência é
de que a porção oriental passe a ter cada vez mais importância, o que ficou
evidente com a criação do CMN e a implantação da 22ª Brigada de Infanta-
ria de Selva com sede em Macapá-AP.
De qualquer forma, a presença das Forças Armadas na Amazônia Seten-
trional como um todo, tanto na porção ocidental quanto na porção orien-
tal, gera uma série de reflexos positivos, tanto em termos de defesa quanto
de assistência cívico-social. Na parte da defesa e da melhoria na sensação de
segurança é possível citar, como exemplo, os seguintes pontos positivos: o
aumento da capacidade de vigilância e monitoramento; o refreamento das
atividades de narcotráfico e inibição da evasão ilegal de riquezas da região;
o combate ao crime organizado, ao contrabando, à imigração ilegal e a ilí-
citos ambientais; a preservação ambiental, a proteção à biodiversidade e a
proteção às populações indígenas; e, sobretudo, a vivificação de áreas de fai-
xa de fronteira. Já na parte de assistência cívico-social (ACISO) vale a pena
elencar como aspecto positivo especialmente o atendimento de necessida-
des básicas e de saúde (médica e odontológica) para populações geralmen-
te desassistidas (sem as quais, boa parte das comunidades indígenas e ribei-
rinhas ficaria sem cuidados básicos), bem como o fornecimento gratuito de
medicamentos e vacinas, auxiliando o governo central no desenvolvimen-
to da região amazônica.

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O Desenvolvimento nas Políticas de Defesa para a


Amazônia
A formulação de políticas voltadas para o setor de defesa nunca foi uma
preocupação formal dos governos brasileiros até o final dos anos 90 do sé-
culo XX. Até muito recentemente, o Brasil não tinha sequer um Ministério
da Defesa, criado apenas em junho de 1999 no governo Fernando Henrique
Cardoso. Foi a crescente projeção do Brasil no cenário internacional que le-
vou o país a direcionar esforços para as questões de defesa e a considerar o
tema como uma questão estratégica e de vital importância para a salvaguar-
da das riquezas e dos interesses nacionais.
O tema do desenvolvimento, por outro lado, forjado no contexto políti-
co-econômico do pós-guerra como expressão da necessidade de atenuar o
atraso estrutural do terceiro mundo, tem sido amplamente debatido através
de diversas concepções teóricas, desde os desenvolvimentistas cepalinos até
a ideia do desenvolvimento sustentável e do moderno desenvolvimentismo,
quando não buscado na prática por intermédio de políticas públicas.
A relação necessária entre os dois temas, defesa e desenvolvimento, ain-
da não tem tido a devida importância no país, especialmente na região
amazônica. Embora os estudos sobre defesa pareçam estar fortemente vin-
culados às academias militares e às Forças Armadas e pareçam estar desco-
nectados da ideia de desenvolvimento, o fato é que a reflexão sobre defesa e
desenvolvimento como temas que se influenciam mutuamente é de gran-
de relevância na Amazônia setentrional por se constituir em um espaço ao
mesmo tempo periférico, necessitando fortemente de desenvolvimento, e
estratégico, demandando uma defesa compatível com os recursos da região.
Partindo do pressuposto de que defesa e desenvolvimento são temas que
necessariamente se inter-relacionam, é preciso que as diretrizes de defesa
presentes na Política de Defesa Nacional, na Estratégia Nacional de Defesa
e, especificamente no caso das fronteiras, no Plano Estratégico de Frontei-
ras, estejam sendo acompanhadas por políticas públicas visando a imple-
mentação de ações que possam não apenas garantir a defesa, mas também
o desenvolvimento da Amazônia setentrional brasileira.

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O primeiro documento sistematicamente elaborado sobre a política de de-


fesa do país foi a Política de Defesa Nacional (PDN), publicado em 1996. De
acordo com o professor Eliézer Rizzo de Oliveira (2005), o general Alberto Car-
doso, na época ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, foi o
principal responsável pela elaboração do documento, que não teve a participa-
ção da sociedade civil na sua preparação. As concepções ali expostas eram fruto
de uma visão construída pelos militares ao longo das últimas décadas e embo-
ra tivesse ficado registrado de forma clara que aquele era um “tema de interes-
se da sociedade como um todo” (1996) o documento não trazia nenhuma relação
com o tema que realmente interessava a toda sociedade, o desenvolvimento.
A revisão da Política de Defesa Nacional, feita em 2005 sob os auspícios
do governo Luís Inácio Lula da Silva, contou com a participação de civis e
militares na elaboração do documento a pedido do próprio presidente. Na
reformulação da PDN houve a manutenção de diversos pontos importan-
tes do texto, especialmente com relação aos objetivos precípuos de garan-
tir não apenas a soberania, a preservação da integridade territorial, do pa-
trimônio e dos interesses nacionais, mas também o Estado de Direito e as
instituições democráticas.
Não obstante, foi possível perceber importantes diferenças em relação
ao texto, desde a forma de publicidade/divulgação dos documentos (a PDN
de 1996 foi disponibilizada pela Secretaria de Comunicação Social da Pre-
sidência da República apenas mediante solicitação, ao passo que a edição
de 2005, dada pelo Decreto n.º 5.484, de 30 de junho de 2005, foi publicada
no Diário Oficial da União) até uma atualização do conceito de segurança
conforme os padrões da Organização dos Estados Americanos (OEA) e das
Nações Unidas (ONU), que abrange a ideia de segurança coletiva, coopera-
tiva e humanitária, o que abre espaço para incluir questões que se relacio-
nam com o tema do desenvolvimento. A concepção clássica de segurança
ligada à ameaça de agressão entre Estados foi substituída por uma preocu-
pação em dar respostas multilaterais e através da cooperação (segurança co-
letiva) entre os Estados para os problemas de segurança e demais temas se-
curitizáveis, como o desenvolvimento. (MATOS, 2014).

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Outra diferença importante a destacar é a percepção em torno da noção


de ameaça: no documento de 1996 as ameaças eram consideradas como ad-
vindas apenas de fatores externos; em 2005 elas passaram a ser vistas como
preponderantemente externas, isto é, em grande parte elas continuam sen-
do de natureza externa, mas o país pode ter que lidar com problemas e
ameaças de ordem interna capazes de desestabilizar a segurança do Estado
e das instituições, como a falta de desenvolvimento, por exemplo.
A ideia de ameaça como algo que pode surgir internamente é corrobo-
rada por Elke Krahmann (2006) em seu trabalho sobre as novas ameaças e a
emergência de novos atores envolvidos, especialmente quando o autor dis-
cute terrorismo e tráfico de drogas, problemas que já acometem (no caso
das drogas) ou podem acometer (no caso do terrorismo) as regiões de fron-
teira da Amazônia. Outros problemas não citados pelo autor, mas que são
característicos das fronteiras na Amazônia Setentrional, como por exemplo
o garimpo ilegal, também são fatores desestabilizadores da segurança que
podem causar um impacto sobre o desenvolvimento regional e que devem
ser tratados por políticas e estratégias de defesa.
As PDN de 1996 e 2005 refletem a perspectiva oficial do Estado brasilei-
ro em torno da defesa mesmo que com certas descontinuidades, haja vis-
ta terem sido fruto de realidades políticas distintas, tanto de ordem interna
quanto de ordem externa. Essa perspectiva oficial, entretanto, é apenas um
elemento condicionante do planejamento estratégico que diz qual é a polí-
tica de defesa do país e as políticas públicas que devem ser criadas para via-
bilizar o status de segurança. Não fica claro nas PDN nenhuma maneira de
como executar essas políticas. A função de execução é, na verdade, uma in-
cumbência da estratégia de defesa.
A Estratégia Nacional de Defesa (END), aprovada pelo Decreto n.º
6.703, de 18 de dezembro de 2008, traz indicações de quais ações estratégi-
cas de médio e longo prazo devem ser tomadas para modernizar a estrutu-
ra nacional de defesa e colocar na prática o pensamento desenvolvido des-
de a primeira PDN. Para a consecução de tais objetivos a END se edifica
sobre alguns eixos estruturantes. O problema é que alguns desses eixos es-

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truturantes, como a reestruturação da indústria de defesa, que pressupõe a


ampliação do orçamento para o setor o alargamento dos recursos orçamen-
tários para a defesa (com o aumento com os gastos no setor), podem gerar
um imbróglio de ordem interna.
Internamente o governo pode enfrentar problemas para convencer a so-
ciedade da necessidade de investir em defesa ao invés de colocar recursos
em outras áreas tidas pela população como prioritárias para o desenvolvi-
mento do país, como saúde e educação, por exemplo. Acontece que o de-
senvolvimento também está associado à defesa, e a END procura mostrar
isso ao afirmar que o desenvolvimento motiva a defesa na medida em que
a defesa fornece escudo para o desenvolvimento, uma reforçando as razões
da outra: “defendido, o Brasil terá como dizer não, quando tiver que dizer não;
terá capacidade para construir seu próprio modelo de desenvolvimento” (2008).
As preocupações com a defesa no Brasil parecem ter se assentado nas es-
feras governamentais que cada vez mais percebem a posição geopolítica do
país e seu entorno geográfico, de modo a buscar, de forma estratégica, a efe-
tiva e necessária garantia de segurança que o desenvolvimento pressupõe.
Resta saber se o país vai colocar em prática na Amazônia setentrional as es-
tratégias de defesa projetadas e se isso acontecerá em harmonia com a ne-
cessidade de desenvolvimento regional.

Considerações Finais
É muito difícil, embora necessário, para um país que teve poucas experiên-
cias efetivas com guerras e que mantém um relacionamento pacífico com
seus vizinhos fronteiriços, mas que necessita fortemente de perspectivas
inovadoras em relação ao desenvolvimento, se convencer da importância
de securitizar o tema do desenvolvimento aproximando-o das questões de
defesa. Essa dificuldade acaba se transformando em falta de políticas públi-
cas capazes de promover o desenvolvimento associado à defesa e isso gera
um problema muito particular para a Amazônia setentrional.
Foi a partir da posição de destaque internacional que o Brasil passou a
ter após o fim da bipolaridade na ordem mundial que o tema da defesa, em

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especial a defesa da Amazônia, tornou-se cada vez mais importante e pas-


sou a necessitar de uma atenção especial sobre a possibilidade de securiti-
zar o tema do desenvolvimento, relacionando intimamente defesa e desen-
volvimento.
Estar em evidência no cenário internacional em termos geopolíticos ao
mesmo tempo em que fortalece a imagem externa do país também desper-
ta a cobiça das riquezas que o país dispõe e que tornam a Amazônia mun-
dialmente conhecida e cobiçada. É a política de defesa e suas respectivas es-
tratégias que garantem ao país a salvaguarda dos interesses e das riquezas
da região amazônica, entre as quais pode-se destacar sua variada biodiversi-
dade, a presença de importantes minérios, a quantidade de reservas de água
potável e até mesmo a prospecção de exploração comercial de petróleo e
gás natural.
Tudo isso coloca a Amazônia, em geral, e a porção setentrional da Ama-
zônia Brasileira, em particular, em posição estratégica – e são fatores que
demandam uma nova postura no campo da defesa. E essa nova postura pre-
cisa ser expressa em termos de políticas públicas que garantam o desen-
volvimento regional através da defesa na faixa de fronteira, pois nenhum
país desenvolvido no mundo hoje conta com espaços inseguros e não se-
curitizados.

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A questão pesqueira em uma fronteira


amazônica: o caso de Oiapoque
Gutemberg de Vilhena Silva 1 e Camilo Pereira Carneiro Filho 2

 Introdução

A temática pesca permeia os estudos geográficos pela implicação ter-


ritorial e pela relação densa entre sociedade e natureza que pressu-
põe. Em geral, esta atividade quando geradora de lucro e renda, o que não
inclui pesca recreativa, é subdividida em artesanal – foco do presente tra-
balho – e empresarial/industrial. Tal divisão se baseia na organização do
processo produtivo e nos distintos níveis de capitalização das estruturas
geradoras de renda.
Segundo Cardoso (2001a), estudos geográficos sobre a pesca, ora como
objeto central, ora como pano de fundo no estudo de comunidades e
áreas litorâneas ou ribeirinhas, forneceram importantes análises desse se-
tor produtivo. Entre os trabalhos sobre o tema merecem destaque os es-
tudos de Bernardes e Bernardes (1950); Bernardes (1959); Lago (1961); Ma-
druga (1986) Cardoso e Diegues (1991); Costa (1992); Costa (1995) Borges
e Cardoso (2013); Cardoso et al. (2013); Kemel e Cardoso (2008); Cardo-
so (2014; 2013ab; 2010; 2009; 2007; 2005; 2003; 2001ab; 1999) e Silva e Car-
doso (2015).

1.  Docente do Curso de Relações Internacionais na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), Brasil.
Pesquisador do Observatório das Fronteiras do Platô das Guianas (OBFRON, www2.unifap.br/obfron)
e Líder do Grupo de Pesquisa Políticas Territoriais e Desenvolvimento (POTEDES). Bolsista de Pós-
-Doutorado CNPq na Université Sorbonne Nouvelle, Paris 3. Email: bgeografo@gmail.com
2.  Doutor em Geografia pela UFRGS. Pesquisador do LABETER – Laboratório Estado e Território.
Bolsista de Pós-Doutorado CAPES no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacio-
nais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. Email: caedre@ig.com.br

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Um estudo teórico feito por Cardoso (2007) verificou algumas ten-


dências na interface entre geografia e pesca no BRASIL. Para o autor, te-
mas como gêneros de vida; conflitos de apropriação dos espaços e re-
cursos litorâneos, marinhos, lacustres e fluviais; o conhecimento de
pescadores sobre a natureza; os processos ambientais que interferem na
atividade pesqueira e aspectos econômicos da produção pesqueira, este
último abordado do presente artigo, destacam-se na literatura brasileira
sobre a geografia da pesca.
Ao considerarmos a diversidade pesqueira e as formas de geração de
renda para populações autóctones em Oiapoque - município localizado no
norte da Amazônia brasileira, no estado do Amapá - temos por objetivo
avaliar a sua geografia da pesca, destacando padrões, problemas e logísticas.
A metodologia utilizada pauta-se em pesquisa documental, com o levanta-
mento dos dados mais atuais em termos de publicação, e em um trabalho
de campo, a partir das quais foram realizadas observações diretas e indire-
tas, além da aplicação de um questionário semi-estruturado para um uni-
verso de 20% dos pescadores locais.
O trabalho está dividido em duas partes. A primeira traz elementos re-
levantes para se pensar a geografia da pesca na Amazônia brasileira e no
Amapá, constituindo-se, com efeito, uma seção com abordagem panorâmi-
ca. A segunda, eixo central do trabalho, apresenta uma análise aprofunda-
da da geografia da pesca em Oiapoque, destacando os problemas existentes,
o papel do atravessador e a logística de escoamento da produção, como ei-
xos fundamentais para a análise econômica da espacialidade da pesca na-
quele município.

Geografia e pesca: considerações sobre a Amazônia


brasileira e sobre o estado do Amapá

A Geografia da Pesca na Amazônia Brasileira


O litoral brasileiro estende-se por cerca de 7.367 quilômetros lineares. Se
considerarmos as reentrâncias da costa do país, o tamanho de seu litoral

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alcançará 8.500 quilômetros (Moraes, 1999; Cardoso, 2013), o que, segun-


do Ab’Saber (2003), coloca o Brasil com o maior litoral inter e subtropi-
cal do mundo. Por suas dimensões, no seu litoral há uma grande diversi-
dade de ambientes favoráveis a atividades pesqueiras, tais como intensa
descarga de água doce, volume de sedimentos, ambientes estuarinos e
deltaicos.
A atividade pesqueira no Brasil é regulada pela Lei nº 11.959/2009, por
meio da qual foram estabelecidas normas gerais e regras mais específicas
para a gestão dos recursos pesqueiros existentes nas diferentes regiões do
país. A operacionalidade da gestão ocorre de forma compartilhada entre o
Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) e o Ministério do Meio Ambien-
te (MMA). Embora duas modalidades de pesca comercial existam no Brasil
– artesanal e industrial – grande parte do pescado de qualidade que chega
à mesa do brasileiro é fruto da primeira, resultado de uma produção supe-
rior a 500 mil toneladas/ano (cerca de 60% do total nacional). Essa pesca
contribui para a criação e a manutenção de empregos nas comunidades do
litoral brasileiro e também em cidades e vilas localizadas à beira de rios e
lagos, como é o caso de Oiapoque.
Ao longo do seu extenso litoral, o Brasil apresenta uma grande diver-
sidade de ambientes, o que influencia as características da atividade pes-
queira nas diferentes latitudes. No tocante aos números do setor, entre
2000 e 2008, a produção brasileira de pescado aumentou em 25%, passan-
do de 990,9 mil toneladas anuais para 1.240,8 milhões. Além disso, en-
tre 2008 e 2009, houve um crescimento de 15,7% na produção de pesca-
do (MPA, 2012).
Os estados brasileiros com maior participação na produção pesqueira
entre 2009 e 2010, últimos anos com dados estatísticos oficiais coletados,
foram Santa Catarina, Pará, Bahia, Ceará e Amazonas (Fig. 1). O estado do
Amapá ocupou a 16ª posição nesse ranking no conjunto dos 26 estados do
Brasil. Tal comportamento não tem sofrido alterações significativas nos úl-
timos anos (MPA, 2012; Cardoso, 2013a).

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Figura 1 – Pesca extrativa no Brasil (%)

Dentre os atores que se ramificam da relação entre pescadores comer-


ciais e de subsistência, identificam-se os agentes intermediários – em nível
de atacado – como alguns dos principais pivôs da desagregação e domina-
ção da pesca artesanal a favor da exploração comercial da força de trabalho
no setor e de controle sobre a produção de um território. Esses intermediá-
rios assumem formas variadas na cadeia de comercialização, sendo os mais
presentes: o patrão aviador, o marreteiro e o atravessar.
O primeiro é o agente que financia o esforço de pesca, custeando a ali-
mentação (rancho), o combustível e o gelo necessários, sendo, frequente-
mente, o dono da embarcação ou da geleira. O segundo, o marreteiro, é um
tipo de intermediário com raio de ação bastante restrito, que adquire pe-
quenas quantidades de pescado diretamente dos pescadores e as comercia-

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liza nas vilas ou na cidade com feirantes ou pequenos comerciantes, intera-


gindo, também, com os atravessadores. Por último, estão os atravessadores,
que podem ser enquadrados em duas categorias: os corretores, que adqui-
rem o produto diretamente dos pescadores e dos aviadores, para posterior
comercialização com agentes varejistas; e os agentes intermediários, que se
ocupam do transporte e venda do produto em outros municípios, dentro e
fora do estado de origem.
Os agentes intermediários possuem um papel expressivo na Amazônia
brasileira, dadas as condições geográficas de isolamento das comunidades,
baixo grau de instrução formal e de rendimentos financeiros. Por isso, tais
agentes assumem relativa vantagem e importância na cadeia de produção,
já que muitas vezes se apresentam como a única alternativa para efetivar o
escoamento e comercialização da pesca das comunidades.
A região amazônica possui uma posição de destaque na produção na-
cional de pescado (Fig. 1) em virtude da riqueza de espécies exploradas; da
quantidade de pescado capturado; e, pela dependência das variadas popu-
lações tradicionais em relação a essa atividade, em especial, as comunidades
de pescadores. Estima-se que o total de pescado desembarcado nos núcleos
urbanos desta região, contabilizando o que é consumido pela população ri-
beirinha de pesca artesanal e industrial, gire em torno de 400.000 mil tone-
ladas/ano (Ruffino, 2004).
Considera-se a pesca uma das principais atividades da Amazônia bra-
sileira, desenvolvida desde tempos pré-colombianos pelos povos originá-
rios, os ameríndios, mas somente registrada pela História oficial a partir
do período colonial. De maneira geral, a pesca naquela região caracteriza-
-se predominantemente pela forma artesanal com o uso de utensílios con-
feccionados com nylon. Nos últimos anos, o crescimento da exploração dos
recursos pesqueiros nos Estados da Amazônia, com novas técnicas de pro-
dução, tem intensificado a pressão sobre esses recursos e contribuído para
o acirramento das disputas pelo acesso aos territórios de maior piscosidade.
O Estado do Amapá, tem participação ativa na geografia da pesca da
Amazônia (Fig. 1), embora os dados estatísticos demonstrem pouca relevân-

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cia quantitativa. A intensa descarga d’água doce aliada ao grande volume


de sedimentos proveniente da drenagem continental (efeito do rio Amazo-
nas), mantém baixo o nível de salinidade da água do mar ao longo da costa
do Amapá, o que favorece a alta produtividade de espécies demersais de re-
levante valor econômico.

Geografia da Pesca no Estado Do Amapá


O estoque piscoso amapaense se caracteriza-se por apresentar influências
da bacia amazônica e, ao mesmo tempo, das águas do oceano. Os barcos
amapaenses atuam entre a barra do rio Oiapoque até a foz do rio Amazo-
nas (Mapa 1). Os locais mais importantes para carga-descarga são Baia do
Oiapoque, Cabo Orange, Cabo Cassiporé, Boca do Cunani, Boca do Cal-
çoene, Boca do Amapá, Maracá, Boca do Sucuriju, Boca do Araguari, Cabo
Norte, Farol Guará e Canal do Curuá (Fig. 2). Dessas localidades provém
grande parte do pescado amapaense. Durante a estação chuvosa são captu-
radas, no ambiente estuarino, espécies como a dourada, o filhote, a piramu-
tada e o bagre estuarino. Já durante a estiagem, a captura é, sobretudo, de
espécies de origem marinha, como as pescadas.
A extensão da costa amapaense, que possui 698 quilômetros (cerca de
10% de todo o litoral brasileiro), é banhada pelo oceano Atlântico. De acor-
do com Porto (2005). Esta costa pode ser subdividida em duas:
i) a costeira atlântica, ou oceânico, com 57.001 km², que representa 84%
do total da costa a qual abriga menos de 10% da população do estado. Uma
área que compreende os municípios de Calçoene, Amapá, Oiapoque, Pra-
cuúba e Tartarugalzinho;
ii) a amazônica ou estuarina, com 10.517 km², que abrange os municí-
pios de Cutias, Itaubal, Macapá, Santana e Mazagão.
No tocante à produção pesqueira do Amapá, no ano de 2005, último
com dados oficiais, o estado produziu 4.940 toneladas, sendo que os pei-
xes representavam quase a totalidade da produção pesqueira desembarca-
da: 97,8% (Tabela 1).

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Figura 2 – Geografia da Pesca do Estado do Amapá e Município de Oiapoque

Em relação à evolução da produção pesqueira marítima do Amapá,


entre os anos de 2000 e 2005, foi registrado um incremento total 36,5%,
com destaque para o aumento da pesca de espécies como corvina, tu-
barão, tainha e bagre. Em 2005, dentre todos os municípios do Amapá,
Calçoene foi o que registrou a maior produção desembarcada de espé-
cies marinhas e estuarinas, com cerca de 2.980 toneladas, representando
60,3% do total do estado, seguido por Santana (15,8%), Amapá (9,8%) e
Oiapoque (8,1%).
Em relação às espécies capturadas, verificou-se que a corvina se destacou
entre as demais, com mais de 919 toneladas, representando 18,6% dos de-
sembarques, sendo seguida pelo bagre com aproximadamente 860 tonela-
das (17,4%), da pescada amarela, com pouco mais de 853 toneladas (17,3%) e
da gurijuba, com cerca de 603 toneladas, representando 12,2% do total. En-

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tre 2000 e 2005, a maioria das embarcações se concentrava nos municípios


de Calçoene, com 116 unidades (21%), e Amapá, com 111 (20%).
Por sua vez, Oiapoque possuía 12% do total no período, sendo as embar-
cações, em sua maioria, canoas motorizadas (catraias) e barcos de peque-
no porte. Entre os diversos tipos de embarcações que operam no litoral do
Amapá, os barcos de médio porte apresentaram um maior volume de pro-
dução com cerca de 3.037 toneladas, representando 61,5% do total desem-
barcado, e, em seguida, o barco de pequeno porte, com pouco mais de 993
toneladas, o correspondente a 20,1%. Pelas características apresentadas, a
produção oiapoquense se concentra em barcos de pequeno porte (222 to-
neladas) e nas catraias (175,8 toneladas).

Figura 3 – Volume de pescado produzido nos municípios do Amapá (2005)

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Oiapoque é um dos cinco municípios que possuem uma atuação con-


siderável na atividade pesqueira no conjunto estadual (Fig. 3). Sua produ-
ção na área costeira do Atlântico, mas também com influência das águas da
foz do rio Oiapoque. A atividade pesqueira em Oiapoque baseia-se na fro-
ta artesanal, com embarcações de pequeno porte (menos de 10 toneladas).
Os pescadores provenientes dos municípios litorâneos e estuarinos (foz do
Amazonas) são responsáveis pelo abastecimento de frigoríficos instalados
em diferentes partes do estado do Amapá e de outros estados brasileiros.

A geografia da pesca em Oiapoque


O município de Oiapoque está localizado na fronteira setentrional brasi-
leira, distante cerca de 600 quilômetros de Macapá, capital do estado do
Amapá. Sua produção pesqueira, apesar de se desenvolver na costa atlân-
tica, também sofre influência das águas do rio Oiapoque. A seguir, explo-
raremos as características socioeconômicas dos pescadores, as dificuldades
de produção, relações de dependência e a logística de escoamento do seu
pescado.

Caracterização socioeconômica dos pescadores de Oiapoque


A questão da posse da terra, mais propriamente a falta de sua titularidade,
configura um problema crônico em todo o estado do Amapá e gera impac-
tos em diversos setores da economia. Os números do questionário aplica-
do aos pescadores oiapoquenses revelaram que, no âmbito da moradia, 8%
moram de aluguel; 5% são arrendatários; 8% vivem em imóvel cedido; 8%
são “ocupantes”; 3% residem em barco; 67% são proprietário, porém sem tí-
tulo; e 1% não respondeu. O fato é que, na realidade, ninguém possui a ti-
tularidade das terras ocupadas, mesmo os que se declararam proprietários.
Existe um grupo de pescadores cuja insegurança de moradia reflete a insta-
bilidade financeira com a atividade de pesca, normalmente o único traba-
lho desenvolvido pelos entrevistados.
No tocante à propriedade das embarcações, o questionário revelou
que, dos entrevistados, 74% são proprietários de barco com tripulação,

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15% são empregados em barcos de terceiros, 8% são pescadores indivi-


duais em barcos de terceiros, e 3% são pescadores individuais em barcos
próprios.
Em relação aos dados referentes à moradia, posse da terra, renda fami-
liar total, renda derivada exclusivamente da pesca e o pagamento do segu-
ro defeso, a pesquisa constatou que 72% dos pescadores moram dentro do
núcleo urbano da cidade, 20% vivem na própria orla, enquanto 8% dos en-
trevistados habitam em comunidade de pescadores. A renda média de uma
família gira em torno de 2 a 5 salários mínimos (54% dos casos), enquan-
to 36% das famílias possuem renda que vai de 1 a 2 salários. De modo geral,
a pesca artesanal parece suprir financeiramente as necessidades dos donos
das embarcações.
No período de defeso, quando a atividade pesqueira é interrompida
para algumas espécies, constatou-se que 64% dos pesquisados não recebem
o auxílio financeiro estabelecido por lei. Isso gera um impacto negativo
muito forte para a própria sobrevivência da família do pescador, uma vez
que a renda familiar cai drasticamente.
Um dado importante a ser levado em consideração é o fato de que
apenas 42% dos pescadores que atuam no território amapaense nasce-
ram no Amapá (Fig. 4). Nesse cenário se destaca o contingente de pesca-
dores nascidos no estado do Pará (38% do total). Os pescadores paraen-
ses no Amapá são oriundos dos mais diversos municípios: Belém, São
Caetano de Odiveiras, Marajó, Gurupá, Chaves, Bragança e Vigia, este úl-
timo sendo o mais expressivo (origem de 10% dos pescadores). Por sua
vez, o Maranhão é o estado de origem de 13% dos pescadores que atuam
no Amapá, enquanto Goiás e Mato Grosso, somados, respondem por 6%
do total.

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Figura 4 – Estados de Origem dos Pescadores de Oiapoque

Ainda em relação à origem dos pescadores de Oiapoque, o questioná-


rio revelou que aproximadamente 20% nasceu em Vila Velha do Cassiporé,
uma localidade no interior do município (Fig. 2). Este povoado sofreu pres-
são de órgãos ambientais contra a atividade pesqueira alguns anos após a
criação do Parque Nacional do Cabo Orange (PN Cabo Orange), em 1980.
O PN Cabo Orange constitui uma Unidade de Conservação de Proteção
Integral, o que, impede todo e qualquer uso dos recursos naturais em sua
área para comercialização.
Segundo os pescadores de Oiapoque, apenas no início da década de
1990, com a maior rigidez das autoridades ambientais, foram constatados
os problemas e conflitos de interesses gerados com a criação do PN Cabo

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Orange. Para Cardoso (2001b), a criação de parques e reservas naturais em


áreas de morada e trabalho de pescadores, como é o caso de Oiapoque, tem
sido alvo de denúncias por parte destes trabalhadores, uma vez que as res-
trições de uso acabam comprometendo a sua reprodução social enquanto
comunidades tradicionais.
Embora haja uma diversidade de descrições sobre os locais de captura
do pescado, pode-se observar que o perímetro habitual de pesca correspon-
de ao limite do PN Cabo Orange, o que tem implicado em problemas com
órgãos ambientais. Cerca de 10% dos pescadores que responderam o ques-
tionário declararam que pescam na foz do rio Oiapoque, mas aproximada-
mente 90% identificaram perímetros na costa norte do Amapá, ao longo de
uma área que começa na foz do rio Oiapoque e termina na desembocadu-
ra do rio Cassiporé.
Pelo fato da pesca ser uma atividade frequentemente desenvolvida na
costa amapaense, justamente onde se localiza o PN do Cabo Orange, o Ins-
tituto Nacional Chico Mendes da Biodiversidade (ICMBio), gestor deste
parque, promoveu um acordo com os pescadores para a retirada de peixe
com uma frequência de, no máximo, cinco embarcações simultâneas em
tal área, o que, em tese, nem poderia acontecer por se tratar de um parque
nacional de proteção integral. O acordo objetivou minimizar o problema
social criado com a implantação do parque em uma área onde historica-
mente a população local tira seu sustento financeiro e alimentar por meio
da pesca. O ICMBio, mesmo com o acordo firmado por cinco anos – entre
2005 e 2010 –, ainda não aplicou as devidas restrições prescritas nas leis que
tratam das unidades de conservação, dando continuidade à prática de libe-
ralização até que uma saída adequada do ponto de vista ambiental, social e
econômico seja encontrada.
Um fato determinante e sensível nesse cenário, comprovado pelos ques-
tionários aplicados em campo, é a baixa escolaridade dos pescadores de
Oiapoque. Os números referentes ao nível educacional deste público reve-
laram que a escolaridade média varia entre o primário incompleto (32%)
e o fundamental incompleto (33%), com uma pequena parcela declarando

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possuir o primário completo (15%). O baixo nível educacional é a realida-


de de cerca de 80% dos entrevistados. Esta é uma situação que faz com que
os pescadores oiapoquenses tenham dificuldades em procurar instituições
e mecanismos legais para proteção de seus direitos e, com isso, terminem
por se submeter ao padrão estipulado pelos atravessadores, personagens re-
levantes na geografia da pesca em Oiapoque.

A Geografia da produção pesqueira de Oiapoque: Dificuldades


de produção, relações de dependência e logística de
escoamento do pescado de Oiapoque
A produção pesqueira em Oiapoque é proveniente em sua totalidade da
pesca artesanal. As embarcações possuem um tipo de estocagem do peixe
bem diferenciado do comum (que é a câmara fria), uma vez que 92% delas
utiliza urnas com gelo. Esse tipo de estocagem parece dar conta da demanda
que hoje existe no município. No entanto, uma eventual ampliação da ati-
vidade pesqueira necessitaria da instalação de câmaras frias, por possibilita-
rem a conservação da produção por mais tempo.
O problema da estocagem é grave, haja vista que o tempo médio de per-
manência dos pescadores no mar é de três semanas. Cada embarcação faz
ao menos duas jornadas de trabalho por mês, enquanto uma minoria, cerca
de 18% das embarcações, permanece um mês inteiro no mar. Cada embar-
cação faz a viagem com cerca de três pescadores, número relativamente bai-
xo, mas que se justifica pelo tamanho das embarcação, que são, na maioria
dos casos, de pequeno porte. Em Oiapoque, a comercialização da produção
pesqueira é realizada principalmente através da figura dos atravessadores.
Do total de pescado produzido em Oiapoque, a maior parte é passada
aos atravessadores, frequentemente por um preço abaixo da média do mer-
cado. Isso ocorre por existir uma relação de dependência entre o pescador
(que não tem recursos monetários e necessita de financiamento para com-
pra de gelo, redes e óleo, por exemplo) e o atravessador (que conta com o
capital financeiro necessário para a atividade pesqueira em áreas distantes
do cais de Oiapoque). O atravessador, em troca de seu financiamento, com-

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

pra boa parte do pescado capturado a um preço abaixo da média do mer-


cado, além de receber o pagamento do financiamento concedido ao pesca-
dor. Após a logística de captura e venda, cada atravessador, que dispõe em
média dois caminhões com gelo, desloca o pescado para fora de Oiapoque.
O pescado, então, é enviado para dois destinos diferentes: uma parte vai
direto para Macapá em caminhonetes e abastece principalmente três feiras
existentes na capital; e o restante é levado para ser industrializado em Cal-
çoene, cidade vizinha de Oiapoque, onde a infraestrutura para tratamento
do pescado é melhor. Nessa cidade, o peixe é filetado e embalado, sendo en-
tão enviado quase que em sua totalidade para os estados do Pará e do Cea-
rá (Fig. 2). Desses estados, parte do pescado é distribuída para outras regiões
do país e também para o exterior.
Pescadores com embarcações maiores, de médio porte, que possuem ca-
pacidade de navegação para seguir viagem até a cidade de Calçoene, prefe-
rem fazer esse trajeto para vender sua produção diretamente para as fábri-
cas instaladas naquela cidade, pois ali conseguem preços melhores do que
aqueles pagos pelos intermediários em Oiapoque.
Em março de 2011, um quilo de pescada amarela comprado em Oiapo-
que, diretamente do pescador, custava R$ 5,50. O preço final chegava a cus-
tar R$ 10,00 quando comprado do atravessador. Já em Macapá, o quilo desse
mesmo peixe oriundo de Oiapoque custava R$ 14,00. Quando industriali-
zada, a pescada amarela atingia um preço de R$ 30,00 nos supermercados de
Macapá, segundo o senhor Júlio César presidente à época da CPO Z3 (Co-
lônia de Pescadores do Oiapoque, Zona 3).
Face o cenário descrito, a alteração da lógica pescador-atravessador-con-
sumidor ou pescador-atravessador-industrialização-consumidor para uma
relação pescador-consumidor ou, no máximo, pescador-industrialização-
-consumidor seria uma solução para o aumento da renda dos próprios
pescadores.
Os problemas de infraestrutura em Oiapoque dificultam a vida da co-
munidade de pescadores (Fig. 5). Na cidade existe apenas uma fábrica de
gelo, a Polar Pesc, que produz uma quantidade insuficiente para abastecer

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todas as embarcações e a demanda dos moradores da cidade. Por sua vez, o


cais apresenta condições sanitárias precárias e constitui um grande entrave
para a possibilidade de venda do pescado a destinos cujas normas de higie-
ne são mais exigentes, como do departamento ultramarino da Guiana fran-
cesa. A falta de higiene pode ser comprovada na pouca estruturada feira de
pescado, onde os dejetos dos peixes jogados diretamente no rio.
Caso as condições sanitárias fossem adequadas, a Guiana francesa pode-
ria ser um mercado consumidor importante para o pescado oiapoquense.
A falta de infraestrutura adequada em Oiapoque dificulta a comercializa-
ção da produção e favorece uma relação de dependência dos pescadores em
relação a outros agentes, como os fabricantes de gelo e os atravessadores.
A ausência de condições de industrialização do pescado oiapoquense
tem acarretado a perda de oportunidades de comércio para o setor pesquei-
ro do município. Poucos anos atrás, uma grande indústria de pescado de
Itajaí-SC demostrou interesse pelo produto dos pescadores de Oiapoque,
no entanto, para comprá-lo solicitou-se que o pescado fosse filetado, indus-
trializado e embalado em Oiapoque para que pudesse ser revendido a gran-
des redes de supermercados como o Carrefour. Por fim, o negócio não se
concretizou.
Um ponto importante a ser destacado é a falta de financiamento bancá-
rio aos pescadores. O acesso às linhas de financiamento é um aspecto que
permite identificar o nível de integração dos pescadores artesanais e suas
entidades representativas com as instituições financeiras de fomento. Essa
variável é de suma importância, tendo em vista que o acesso às linhas de
crédito para custeio e, principalmente, de investimento para aquisição de
embarcações, equipamentos e treinamento de recursos humanos ampliaria
substancialmente o desempenho produtivo dos pescadores artesanais. Infe-
lizmente, esse acesso não acontece e isso se soma aos problemas enfrenta-
dos pelos pescadores oiapoquenses.
Na Amazônia, os primeiros financiamentos bancários destinados à pes-
ca artesanal foram concedidos pelo Banco da Amazônia (BASA), na década
de 1960 (Cruz et al., 1993). Naquela ocasião, por deliberação do governo fe-

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deral, foi criado um departamento de cooperativismo dentro do BASA, vi-


sando estimular a formação de cooperativas rurais para viabilizar os finan-
ciamentos no meio rural, incluindo a pesca artesanal. Com o advento da
Secretária Especial de Pesca e Aquicultura (SEAP), criada pelo governo fe-
deral em 2003, novas linhas de financiamento passam a estar disponíveis
para a pesca artesanal.
O BASA também estruturou novos programas de financiamento que
hoje estão disponíveis para o pescador artesanal, inclusive, compatibilizan-
do com os encargos financeiros do Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar (PRONAF) (Cruz et al., 1993 apud D’almeida, SD).
Apesar da existência de linhas de financiamento, as mesmas não são usu-
fruídas pela comunidade de pescadores de Oiapoque. A não utilização pos-
sui uma relação direta com a falta de titularidade das terras naquele muni-
cípio, mas também com a dificuldade dos pescadores em elaborar projetos
para financiamento.

Considerações finais
Na Amazônia a pesca se destaca pela riqueza de espécies exploradas e pelo
grande volume de pescado capturado. A atividade é considerada um alicer-
ce da economia da região, embora inúmeros problemas sociais e econômi-
cos precisem de mais atenção e de ações efetivas. No estado do Amapá a pes-
ca sempre se baseou na frota artesanal, com o predomínio de embarcações
de pequeno porte. A análise da geografia da pesca em Oiapoque compro-
vou que o crescimento da atividade pesqueira local encontra entraves como:
o insuficiente fornecimento de gelo; a falta de um cais estruturado; proble-
mas na comercialização; e a ausência de financiamento aos pescadores.
Os dados analisados demonstram um setor limitado ao próprio tipo de
produção artesanal. Um cenário que só poderá se modificar a curto ou mé-
dio prazo com a intervenção de atores governamentais e de instituições
como universidades e centros de pesquisa, haja vista que a comunidade lo-
cal de pescadores se caracteriza pela baixa formação educacional e por uma
situação social vulnerável.

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A atividade pesqueira desenvolvida no litoral norte do Amapá é total-


mente artesanal, sendo uma pequena parcela destinada ao abastecimento
local e a maior parte entregue a atravessadores ou intermediários a preços
abaixo da média do mercado. Apesar dos pescadores de Oiapoque passa-
rem em média três semanas no mar durante os períodos de pesca, a produ-
tividade é baixa. Além disso, existe uma carência de equipamentos adequa-
dos para a estocagem do pescado.
Por fim, os problemas de infraestrutura (pequeno porte das embarca-
ções; a existência de uma única fábrica de gelo, que produz uma quantida-
de insuficiente e a um preço caro; e as instalações precárias do cais de Oia-
poque) são obstáculos ao aumento da produção e à exportação do pescado
local à Guiana Francesa, um mercado consumidor em potencial de 250 mil
pessoas que poderia dinamizar a economia de Oiapoque e trazer benefí-
cios aos habitantes desse rincão da Amazônia brasileira.

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

Fronteiras, escalas e tópicos sobre o


Desenvolvimento Regional como agenda
pós-colonial no linde amazônico-caribenho
Daniel Chaves 1

Introdução: historicizando o problema e a condição


pós-colonial na região das Guianas

É inevitável notar a contribuição dos estudos históricos americanistas


para a formação da pesquisa em humanidades no Brasil, como no já
tradicional campo (ou campos, pela sua heterogeneidade) dos estudos la-
tinoamericanos, ou dos estudos sobre os Estados Unidos da América, nos
apontando um conjunto de sendas fundamentais. Apesar do que Maria Lí-
gia Coelho Prado (2001;2005) e Maria Helena Rolim Capelato (2000) argu-
mentam sobre a precariedade tradicionalmente existente na compreensão
brasileira sobre a sua relação de pertença com a América do Sul e a Améri-
ca Latina (um debate ainda inconcluso, diga-se em passo acelerado), o que
se testemunhou e testou nos últimos 10, quiçá 20 anos, foi uma prolifera-
ção qualitativa e quantitativa impressionante de estudos em teses, disserta-
ções e iniciações científicas sobre as Américas nas Universidades brasilei-

1.  É professor adjunto de História Contemporânea na Universidade Federal do Amapá (Unifap). Di-
retor do Núcleo de Inovação e Transferência de Tecnologia (NITT) da Unifap. Doutor em História
Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC/UFRJ), é docente per-
manente do Programa de Pós-Graduação em Mestrado em Desenvolvimento Regional (PPGMDR/Uni-
fap), dos Cursos de Especialização: a) em Defesa e Segurança e b) em História e Historiografia da Ama-
zônia, ambos da Unifap. É pesquisador sênior do Observatório de Fronteiras do Platô das Guianas
(OBFRON) e do Círculo de Pesquisas do Tempo Presente (CPTP), ambos da Unifap. Dirigiu a Edito-
ra Universitária da Unifap (2014-2016). Realiza estágio pós-doutoral de curta duração na Universidade
de Coimbra, acolhido pelo Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT-FL/
UC, 2016). Atuou como Pesquisador Visitante no Centro de Estudos Sociais/Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra (CES-FE/UC, 2016). Contato: daniel.chaves@unifap.br .

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

ras. A existência de novos Programas de Pós-Graduação e de Instituições


de Ensino Superior voltadas para o continente e suas nações, além de no-
táveis grupos e institutos de pesquisa, deve ser notada e compreendida em
face dos processos hodiernos e dos arranjos estratégicos contemporâneos
que transitavam na sociedade brasileira – e a disputavam como tentativa
de novo projeto hegemônico. Estando diante da inevitabilidade em notar
a contribuição do americanismo e do latinoamericanismo para a historio-
grafia brasileira, também é preciso compreender de forma a situar no espa-
ço, no tempo e nas tendências os motivos de tal expansão contemporânea e
como tal expansão é determinante para a região das Guianas, o jovem Nor-
te da América do Sul.
A fragilização política – seja nas eleições, seja nos programas políticos,
seja nos lobbies históricos – do neoliberalismo como uma agenda possí-
vel para determinados e diversos grupos políticos nas Américas pode ser fa-
cilmente historicizada, a título de balizas de compreensão, pelo início dos
anos 2000. O processo de ascensão de um nacionalismo latinoamericanista,
de novo tipo e com heterogêneos padrões de associação com movimentos
sociais, indústria nacional, nacionalidades indígenas, segmentos da sempre
presente classe média, entre outros, veio como uma “Onda Rosa” (termo
cunhado pela primeira vez por Larry Rohter, repórter do NY Times), uma
maré esquerdizante que venceu eleições na Venezuela (1998), Brasil (2002),
Argentina (2003), Uruguai (2004), Bolívia (2005), Honduras (2005), Chile
(2006), Costa Rica (2006), Equador (2006), Nicarágua (2006), aparentemen-
te arrasando governos da Direita liberal, rentistas ou extrativistas, legatários
de minguada socialdemocracia residual das distensões políticas dos anos
’80 do Século XX. Tais regimes, cuja incapacidade de sustentação eleitoral,
moral ou social era notável, sucumbiram em sucessivas crises de representa-
ção política, que na beira do precipício do fim das Repúblicas, foram rear-
ranjados para constituírem-se novos pactos em torno de renovados padrões
de governança que reconectavam as entidades de base aos executivos nacio-
nais – o que alguns denominariam “Socialismo do Século XXI”, outros cha-
mariam de “Neopopulismos”, dependendo do seu posicionamento no jo-

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

gral narrativo. De certo modo, com diferentes matizes em um degrade de


derrotas liberais, nesta década rompeu-se uma hegemonia que já perdura-
va por 20 ou 30 anos a fio, de Carlos Ménem a Gonzalo Sanchez de Lozada,
passando por Fernando Henrique Cardoso e Alberto Fujimori. A ascensão
e queda de tais regimes ainda será objeto de originais estudos com novas
perspectivas, diante da corrente refrigeração ou deterioração dos ‘governos
rosas’ na segunda metade da segunda década do XXI.
A história desses socialismos e nacionalidades é a história do legado das
Onda Rosa, mas também em corte de maior duração a história da emanci-
pação, da dependência e dos vínculos e nexos que afiançam a experiência
das Guianas como unidades autônomas com uma historicidade comparti-
lhada. Da questão colonial em Cayenne, ao experimento surinamês, pelo
difícil relacionamento de Georgetown com os EUA, a estratégia comparati-
va serial, buscando as linhas de semelhança e distinção entre as partes.
E é precisamente a partir desta heterogeneidade que se constituiu a ri-
queza desta história de resistências e originalidades nas três décadas mais re-
centes. Não se pode desprezar, ainda que se reconheça o seu iminente ocaso,
o papel revolucionário que tal Onda gerou no pensamento social brasilei-
ro no crepúsculo do alvorecer de um novo século fóruns, organizações e ei-
xos internacionais legatários das históricas relações Sul-Sul . Nesta busca por
soluções, no campo das Esquerdas globalistas dos Fóruns Sociais, o alter-
mundialismo pontuou-se embrionário parasoluções políticas inovadoras –
em especial diante do problema da participação e da representação políti-
ca - face ao catastrófico depauperamento da supremacia das pautas clássicas
marxista-leninistas, fazendo com que reuniões de movimentos sociais inter-
nacionais antissistêmicos contassem com presenças garantidas de chefes-de-
-Estado sul e centro-americanos dialogando com intelectuais e ativistas. Ao
mesmo tempo causa e efeito de um amplo processo de reconfiguração de
agendas políticas de massa, o processo influenciou e moldou uma geração
de estudos estratégicos e de políticas públicas da então sólida economia bra-
sileira, evidenciando certa importância de novos paradigmas de compreen-
são que evoluiriam ao ponto da criação de foros como a Aliança Bolivariana

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para os Povos da Nossa América (ALBA, 2004) ou, de forma mais republica-
na e ecumênica, a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL, 2008). Esta
última se destaca de forma indelével pelo inédito construto da primeira ini-
ciativa de integração que abarcava todas as nações independentes da Améri-
ca do Sul (com a exceção da Guiana Francesa, colônia tardia), atuando como
um espaço de coordenação multilateral da região diante do mundo. Assim,
os países do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) se uniriam aos países
da Comunidade Andina de Nações (CAN), com o fundamental ganho da
presença de outros países como o Chile, mas também aos ‘caribenhos’ Suri-
name e República Cooperativa da Guyana, propondo uma integração inédi-
ta de Ushuaia até Guajira colombiana, de João Pessoa até Piura.
Em determinados casos, como da plurinacional Bolívia e da participati-
va Venezuela, o efeito estrutural se demonstrou na refundação dos modelos
de Estado, no reconhecimento de novos padrões nacionais e da institucio-
nalização de novas formas de governança, em um contexto que se aparenta-
va ateado pelo fogo da crise conjuntural. Era mais que isso, contudo: a Na-
ção, o Estado e o Povo eram conceitos históricos que, mesmo revisitados
continuavam a exibir vitalidade, mesmo dois séculos depois da descoloni-
zação das Américas e das bicentenárias campanhas da Pátria Grande. A lon-
gevidade destes debates se demonstra, na região das Guianas, de forma vi-
vaz, entretanto diferente. A maneira tardia da sua formação sociopolítica,
a descolonização distante no tempo, o seu papel periférico diante da Amé-
rica hispano-lusófona, a sua demográfica e cultural diacrônica quanto aos
seus vizinhos ao Sul e mais próxima dos seus vizinhos caribenhos ao Norte,
entre outros fatores, distingue trajetórias de encontros e diferenças permea-
das pelo cosmopolitismo de nações forjadas - e em forja - no tempo presen-
te. Nem totalmente caribenhas, tampouco absolutamente sul-americanas, e
meio amazônicas, meio marítimas: as Guianas, moldadas pelas diásporas e
douradas em oportunidades para migrantes, conquistadores, trabalhadores
e famílias, ainda são território franco para novas histórias e narrativas que
terão seguramente espaço cativo nas narrativas sobre as mais ensolaradas
terras da América do Sul.

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

A inserção, tardia e periférica


A entrada das Guianas como periferias do sistema sul-americano não é
um imperativo único sobre essa condição – inevitavelmente, falar em uma
geopolítica das Guianas independentes ou pós-coloniais perpassa a existên-
cia de um fértil ambiente internacional para tais comportamentos geopolí-
ticos que inevitavelmente eram novos. Nesse sentido, a despeito da intensa
hegemonia da polaridade Oeste-Leste na Guerra Fria, a polaridade Nor-
te-Sul também fora importante, especialmente no final da década de ’70,
para a promoção de uma nova ordenança geopolítica na agenda global, por
sua vez gradativamente notável desde a Conferência de Bandung, em 1955.
No ambiente de distensão casual da bipolaridade Oeste-Leste, a luta por
justiça econômica e racial – bem como por autodeterminação política e in-
dependência cultural – orientava as ideias-força de redistribuição, compen-
sação e reorganização do poder em suas mais diversas instâncias. Diante do
imperativo do reconhecimento, não apenas dinâmicas próprias devem ser
situadas, mas a forma com a qual a comunidade internacional recebera tal
impulso.
É possível que se diga que, desde a segunda metade do Século XIX - pe-
ríodo no qual, como ressaltamos, ocorre a inclusão das Guianas em um
sistema capitalista bem constituído -, as Guianas permaneciam até pouco
tempo atrás ocultadas em uma geopolítica, como se fossem paradigmáticas
no que diz respeito a invisibilidade política, cultural e econômica na Amé-
rica do Sul, notáveis apenas em observações carregadas de pejoração sobre
crises de sistemas e estruturas da efetividade e da identidade nacional do
Estado, tendo dificuldade em inserir-se nos processos de desenvolvimen-
to regionais. No entanto, olhares mais compreensivos, cientes da complexi-
dade da inserção guianense no sistema internacional notam que tal depen-
de invariavelmente de uma compreensão sobre como o Caribe forjou tal
inserção e sobre como, do ponto de vista pivotal, as Guianas são na verda-
de um ponto de junção entre as geopolíticas caribenhas e sul-americanas.
Aqui reside o mais sensível e vital aspecto das leituras geopolíticas sobre as
Guianas, que com investimentos inteligentes, sustentáveis e inovadores so-

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

bre energia, tecnologia e transportes, podem gerar ganhos em escala de mé-


dio e alto valor agregado, contribuindo inevitavelmente para o desenvolvi-
mento regional.
As Guianas e o seu Platô não são, de forma decisiva, um conjunto de
países ou uma região que influencia decisivamente a geopolítica das Amé-
ricas, em especial da América do Sul, ainda que seja possível notar diversos
momentos em que a sua importância se viu destacada, e a atenção das po-
tências regionais, e inclusive internacionais, se dedicou a região. Neste sen-
tido, é preciso fazer um exercício inclusivo, porém cuidadoso. Mais que
propriamente recuperar o nexo da relação comparada entre a formação dos
padrões nacionais das Guianas com o restante dos estados-nações sul-ame-
ricanos, em especial no que diz respeito à identidade étnica, perfil cultural,
corpo institucional ou padrões de desenvolvimento econômico, seria ne-
cessário buscar as intersecções necessárias para compreender como o pro-
cesso tardio de inserção guianense em um sistema regional sul-americano
e caribenho. Este último, por sinal, possui destacada importância para as
perspectivas e possibilidades das escolhas políticas e das geopolíticas das
Guianas.
A despeito da notadamente histórica condição periférica e fronteiriça das
Guianas (JACOBS, 2012), nas fímbrias ao norte da América do Sul, tal posi-
ção tem sido contemporaneamente revertida, no ambiente político e acadê-
mico da Amazônia, a partir da detecção de que a condição fronteiriça é, de
ainda que de forma tardia e precária se comparada a fronteira sul-sudoeste
do Brasil. É possível notar objetivamente, nesta direção, ações e propositu-
ras que demonstraram a tomada de consciência sobre a importância geopo-
lítica do Platô das Guianas em termos de políticas públicas e investimentos.
Para uma compreensão sobre a dimensão sul-americana do processo, tendo
em vista o todo em torno das ações específicas, é preciso situar as ações estru-
turantes que, se no planejamento são promissoras, no plano político se rea-
lizam de forma notadamente precária. No início do Século XXI, no entanto,
aponta-se uma reversão de tal contexto, na emergência da Iniciativa para a In-
tegração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). A inovação em

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

torno da IIRSA era a sua pretensão em apontar, executar e articular coopera-


tivamente uma convergência regional de integração efetiva, tendo a infraes-
trutura física como fator essencial para a integração do espaço econômico e
do desenvolvimento sul-americano. Em outras e mais simples palavras, a II-
RSA teve papel histórico efetivo e simbólico no projeto de integração regio-
nal sul-americana no amanhecer do Século XXI, como seus números e crí-
ticas antagônicas ou construtivas demonstram. Com base nos balanços de
dez anos de pregnância e eficácia da IIRSA, aponta-se que boa parte das na-
ções passou por mudanças sócio-econômicas e políticas, reestruturando seus
agentes de fomento. Ainda, pela própria desconexão com as outras formas
institucionais organizadas em torno do projeto de integração - a IIRSA, de
fato, não possuía clara conexão com os problemas dos desenvolvimentos am-
bientais e sociais do subcontinente - e, por fim, a própria institucionalidade
crescente e cada dia mais relevante da União das Nações Sul-Americanas aca-
baram por colocar a IIRSA em xeque de forma quase definitiva quando trata-
da como protagonista do processo. Do ponto de vista geral, tal iniciativa era
animadora, ainda que como frisamos, a efetividade das iniciativas mereces-
sem maior efetividade. Ainda que neste sentido devamos destacar e reforçar
o papel histórico da IIRSA, historicamente demarcado, é preciso reposicio-
nar as nossas instituições na direção de um novo olhar sobre as novas e autô-
nomas formas institucionais da regionalização sul-americana. A UNASUL,
neste sentido, representa efetivo passo à frente e o COSIPLAN, no que se re-
fere a integração física, representará a sua vanguarda. O lançamento da Ini-
ciativa, na Primeira Reunião dos Presidentes da América do Sul, realizada em
2000, alteraria sensivelmente o estado das relações entre o Platô das Guianas
e o resto do continente na medida em que propunha a superação da sua des-
conexão viária e logística do resto do continente (QUINTANAR & LOPEZ,
2003: 213-214). Este papel deveria ser deslocado para um de seus 12 Eixos, nes-
te caso o do Escudo das Guianas 2. Do ponto de vista local da fronteira seten-

2.  IIRSA. Eje del Escudo Guayanés. Disponível em: <www.iirsa.org/admin_iirsa_web/Uploads/Docu-


ments/lb09_seccion3_eje_escudo_guayanes.pdf>. Acesso em 03 Abr 2015.

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trional brasileira, aproximando a lupa podemos destacar que os resultados


do ‘Brasil em Ação’ e ‘Avança Brasil” são decisivamente apresentados na cons-
trução da Ponte Binacional entre Brasil e França, conectando Amapá e Guia-
na Francesa, bem como no projeto da Rodovia Transguianense, de escopo
consideravelmente mais amplo no que diz respeito a capacidade de projeção
e alcance cooperativo (MARTINS,2008: 16).
Neste sentido, na hipótese que se realizariam tais projetos e envolvi-
mentos de forma efetiva, as Guianas emergiriam ao final do processo com
uma nova condição estratégica. Fixando o seu potencial como uma “uma
espécie de ‘nova fronteira’ do processo de integração sul-americano” (VI-
ZENTINI, 2008: 1), em um reposicionamento estratégico de interesse para
um diálogo sobre leituras da ideia das calhas amazônicas como rimland
(SPYKMAN, 1942), desde um ponto de vista da estratégia terrestre do con-
tinente. Por outro lado, em perspectiva de escala regional ampliada, torna-
-se também concernente ao histórico contexto de conexão entre América
do Sul e Caribe/América Central (SIMÕES, 2011: 39-54), absolutamente res-
pectivo ao debate de integração latino-americana do período posterior a 2ª
Guerra Mundial – condensada decisivamente desde a fundação de organis-
mos como a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CE-
PAL), das Nações Unidas (ONU), ou a Organização dos Estados America-
nos (OEA), ambas em 1948. Os desdobramentos destes organismos para a
integração latino-americana já são conhecidos e até hoje e, ainda que indi-
retamente (em larga medida pelo seu ocaso), impactam sobre as “mediter-
râneas” discussões e decisões regionais (MORSE, 1967: 172).
Considerando a emergência de uma configuração multidimensional do
sistema internacional, onde a globalização acentua diferenças, possibilita
sinergias conjunturais e rearranja os parâmetros e políticas sobre as frontei-
ras inter ou intranacionais (COSTA, 2009: 3), entende-se aqui que a com-
preensão das geopolíticas das Guianas (a Guiana Francesa, a República
Cooperativa da Guiana, o Suriname, e um plano subperiférico, as unidades
administrativas do Amapá e Guayana Essequiba) é essencial para entender
as geopolíticas que se centram sobre a subregião, e em perspectiva, apon-

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tam as potencialidades para que tal se constitua como área-pivô dos proje-
tos de integração regional. Da mesma forma, pode ser útil entender que a
imersão destas geopolíticas se dá de forma múltipla, em larga medida por
conta da sua necessidade de sobrevivência em um ambiente pouco estru-
turado no que diz respeito a regionalização e a subsequente inserção con-
temporânea, influenciando as suas perspectivas de securitização e projeção
(GRIFFITH, 2003: 1-2).
Mesmo diante da sutil diferenciação das suas composições histórico-
-geográficas e das suas relações com a vizinhança e o mundo, há muito
mais convergências que divergências em jogo. Assim, podemos considerar
que a convivência de padrões geomorfológicos compartilhados, de contex-
tos nacionais e identitários genealogicamente parelhos, e dilemas históri-
cos razoavelmente comuns sobre o desenvolvimento possibilitam tal com-
preensão comparativa.

Desafios para a condição lindeira


Tal situação específica pode ser interessante para uma discussão decisiva, e
cada vez mais estratégica, sobre a envergadura dos projetos integração das
Guianas como um sub-complexo regional, considerando a singularidade
da presença continental de uma potência nuclear europeia, caso único no
hemisfério. É interessante notar que, apesar de uma trajetória de contesta-
ções históricas sobre a fronteira no Platô, em especial a Questão do Amapá,
a presença francesa não é interpretada regionalmente como hostil ou con-
tra-cooperativa, com a sua presença na Organização do Tratado do Atlân-
tico Norte (OTAN) sendo raramente advertida quanto aos debates sub-re-
gionais de segurança. Nesse sentido positivo, a ponte binacional entre esse
país e o Brasil é um bom exemplo de como a cooperação pôde se estabele-
cer mesmo diante de tal idiossincrasia, mesmo considerando que tal obra
ainda não é usufruída cotidianamente por ambos 3. Problemas semelhantes

3.  REIS, Lucas. Brasil ‘abandona’ ponte construída em parceria com a França. Folha de São Paulo, Ca-
derno Mundo, 25 fev 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/02/1594386-bra-

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foram notados na fronteira entre Lethem (R. C. da Guiana) e Bomfim (Ro-


raima), na ponte sobre o rio Tacutu, mas com diferentes resultados, na me-
dida em que a obra se efetivou em uso (SANTOS, OLIVEIRA & SENHO-
RAS, 2009).
A questão das fronteiras no Platô é assunto, como dissemos, para ques-
tões fronteiriças entre praticamente todos os seus estados nacionais envol-
vidos. A Venezuela reclama a área da Guayana Essequiba (159,500 km²) so-
bre a R. P. da Guiana; a Guiana disputa (pequenas) áreas em torno do Rio
Corentyne e New River Triangle, com o Suriname; o Suriname, por sua
vez, reclama a área que vai do Rio Marowini ao Rio Litani com a Guia-
na Francesa, demonstrando a relativa instabilidade no que diz respeito a
determinados consensos geográficos essenciais, remontando a sua precária
formação territorial colonial. Apesar disto, em corte histórico cosmopoliti-
zante, é possível operar comparações globais com as transformações e con-
vulsões nas Américas portuguesa e espanhola, coloniais e pós-coloniais.
Tais comparações poderão, inclusive, encontrar ampla relação com dis-
cussões específicas da região amazônica sobre este contexto no que diz res-
peito aos limites e fronteiras, tanto formais quanto conceituais, campo
relativamente consolidado apesar de subsidiário a tais discussões, se com-
parados ao desenvolvimento dos debates sobre as Guianas. A guisa de ana-
logia e exemplo, podemos citar o arco de movimentos contestatórios da
transição moderno-contemporânea, como o Levante de Berbice (1763-
64) (CLEVE, 2007: 55-56), ou a Rebelião dos Escravos de Demerara (1823)
(VIOTTI DA COSTA, 1998), ou até mesmo a Cabanagem e outros conflitos,
por exemplo. Nesta mesma direção, devem ser observadas possíveis rela-
ções com desdobramentos da instabilidade europeia posterior a Revolução
Francesa e a Era Napoleônica (1804-1814), como na Invasão da Martinica
(1809) e Guadalupe (1810), ou ainda a Batalha do Suriname (1804), pois é
neste contexto que começam a se conformar e definir os limites entre as
colônias - o que até hoje se demonstra insólito e frágil, com contenciosos

sil-abandona-ponte-construida-em-parceria-com-a-franca.shtml >. Acesso em 10 mar 2015.

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de fronteira atuais entre todos os países do Platô, com a exceção do Brasil


diante de seus pares - ainda sob a determinação da expansão imperial eu-
ropeia a partir da segunda metade do XIX, que consagraria a segunda onda
de expansão europeia e as suas consequências estruturantes para a periferia
do sistema internacional da época.
A condição periférica destas dinâmicas sociais, desde um ponto de vista
histórico é interessante para uma plêiade de contribuições diversas sobre o
papel do Estado e do mercado nas sociedades de fronteira, bem como suas
tensões e conflitos decorrentes, sob diferentes prismas, que variam desde as
relações locais lindeiras (ROMANI, 2013; BAINES, 2013; VAN LIER, 2005),
até os novos usos e articulações estratégicas das fronteiras (VILHENA SIL-
VA, 2013; SANTOS & PORTO, 2013; SUPERTI, 2013; LOBATO, 2013), pas-
sando pela trajetória histórica dos contenciosos sobre a delimitação de tais
restrinjas (GRANGER, 2013; SEMERENE COSTA, 2009; TANAKA, 2007;
DONOVAN, 2003), considerando a importante presença das Forças Arma-
das como ponta-de-lança de tais fronteiras, contenciosos e governanças até
o protagonismo social das inevitáveis discussões locais de caráter étnico nas
suas representações associativas, dispersas ou reunidas diante do Estado).
As Guianas são, neste sentido, riquíssimas do ponto de vista da plurali-
dade das possibilidades de revisitar-se a mecânica destas relações no siste-
ma internacional sobre tais temas topicais vis-à-vis as tendências contem-
porâneas a redimensionar dinâmicas subalternas e eleva-las a um ponto de
alcance de mesma importância aos temas da grande estratégia, por exem-
plo. O reconhecimento destas questões é, categoricamente, não apenas um
elemento vital da integração destes povos e nações com o restante do con-
tinente, mas um imprescindível horizonte para a ação diante das opções
contemporâneas de desenvolvimento sustentável, considerando a inevitá-
vel absorção destas territorialidades em novas cadeias produtivas decorren-
tes da integração. Além disso, academicamente, a perspectiva crítica quanto
à naturalização da relação entre povo e Estado vem inserindo novamente a
condição pós-colonial em um debate político efetivo e crescente, apreensi-
va quanto risco da determinação do conceito de nação em abstração dian-

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

te das construções históricas nacionais ainda em afirmação, e mesmo pelos


experimentos de retrocesso já vividos, como ditaduras, populismos, confli-
tos e instabilidades.
É importante mapear, aqui, que os níveis de confiança destas relações
entre os Estados no contexto geopolítico contemporâneo mudaram sen-
sivelmente. Desde a época na qual o Caribe era o ‘Mare Nostrum’ estadu-
nidense, passando por momentos críticos de ruptura diante do isolamen-
to, como a Missão Venturini no Suriname (DOMINGUEZ AVILA, 2011:7;
HALLIDAY, 1983), por exemplo, até as últimas décadas do século XXI, cul-
minando com a inovadora perspectiva integracionista desse novo momen-
to, há ressaltáveis mudanças de padrão que fazem caminhar de um cenário
insólito de esquecimento até um novo cenário de valorização (PROCÓ-
PIO, 2007:116), e que devem ser notadas atentamente.
A inclusão da R. P. da Guiana e do Suriname na União das Nações Sul-
-Americanas, na virada da primeira para a segunda década do Século XXI,
apontam para esta direção animadora para as relações com o resto da Amé-
rica do Sul – o que carecerá de atenção, reiteramos, são os padrões e ní-
veis de comprometimento com a integração de forma efetiva e sustentável,
equilibrando os interesses e atendendo às necessidades locais, regionais e
continentais. O sucesso deste equilíbrio poderá definir o triunfo ou o fra-
casso da integração como projeto coletivo e, por conseguinte, cooperati-
vo. Consequentemente, o futuro do desenvolvimento regional – priorita-
riamente orientado ao Sul e ao seu papel conectivo com o Norte – também
depende desta correlação de forças, destes princípios e seus resultados.Tais
geopolíticas deverão ter especial atenção ao novo contexto de reabertura
da economia cubana a investimentos internacionais (2014) e a revolucio-
nária perspectiva em curto-médio prazo do escoamento de commodities
agrícolas do Centro-Oeste brasileiro, cravando o Extremo Norte do Brasil
– e consequentemente, parte do Platô – tanto na geopolítica da exportação
das commodities brasileiras quanto das novas possibilidades políticas do
Caribe. As mudanças em uma Venezuela pós-chavista, em um cenário de
eleição de Henrique Capriles Radomski, atual protagonista da oposição ao

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Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV) acentua sensivelmente a im-


portância geoestratégica do Platô em curto prazo. Nos termos de Théry, a
Amazônia deixaria de periferia do Brasil para se tornar centro do continen-
te. Nos nossos termos, a franja setentrional redimensiona o seu papel, em
especial diante da hipótese aventada a de que é necessário constituir a com-
preensão de que o Platô das Guianas possui uma geopolítica multidimen-
sional, e que nestas possibilidades, o seu nexo amazônico-caribenho repre-
senta enorme potencial para a integração América do Sul-Caribe.
Tendo em vista esta contextualização renovada, e reconhecendo esse im-
perativo geopolítico caribenho inicial sobre o Platô, notamos que na pri-
meira onda global de integração regional (a qual se agita em período con-
tíguo a ascensão da deténte, no seio da Guerra Fria) as recém-independentes
República Cooperativa da Guiana e o Suriname aderiram a Comunidade
do Caribe (CARICOM) 4 e ao Tratado de Cooperação Amazônica (TCA,
depois Organização do Tratado, OTCA) em 1973 e 1978, respectivamente,
sendo este segundo potencialmente relevante do ponto de vista das co-
nexões Caribe-América do Sul. A emergente Associação dos Estados Ca-
ribenhos (AES) também absorveu as Guianas em uma iniciativa integra-
cionista recente, na chamada segunda onda global de integração regional
(SENHORAS & CARVALHO, 2015: 3), apesar de ter importância diminuí-
da diante do CARICOM e de outros relacionamentos em construção.
É preciso notar que, como certa exceção peculiar, ainda existam acordos
de livre-comércio e trocas privilegiadas entre as ilhas e departamentos ul-
tramarinos franceses de presença determinante na região, e nestes inclui-se
a Guiana Francesa – que é uma colônia francesa, e em última instância, re-
miniscente do imperialismo francês sobre as Américas. Nesta direção, no

4.  É preciso frisar, cuidadosamente, que o Suriname só ingressa de forma decisiva no CARICOM em
1995, em função de uma diversidade de questões econômicas e políticas. Ver: CARIBBEAN COMMU-
NITY. Communiqué issued at the conclusion of the sixth inter-sessional meeting of the conference of
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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

que diz respeito às convergências regionalizantes, a França não está con-


templada nestes arranjos formais como deliberadora votante – como apon-
ta Granger, “A Guiana francesa encontra-se assim ao cruzamento de vários
rumos e conjuntos político-econômicos” (2008: 9). Este contexto represen-
ta um desafio, por um lado, mas não necessariamente um óbice, por outro,
considerando-se as enormes potencialidades.

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vel em: <http://www.ufrgs.br/nerint/folder/artigos/artigo2.pdf>. Acesso em 03
mar 2015.

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

Organizadoras e Organizador

Maria Raquel Freire é investigadora do Centro de Estudos Sociais e Pro-


fessora Associada com Agregação de Relações Internacionais da Faculda-
de de Economia da Universidade de Coimbra. É titular de uma Cátedra
Jean Monnet - EU External Relations towards the East - 2016-2019. É douto-
rada em Relações Internacionais pela Universidade de Kent, Reino Unido
(2002). É atualmente diretora do Programa de Doutoramento em Política
Internacional e Resolução de Conflitos - International Politics and Con-
flict Resolution, CES|FEUC (FCT funded programme). É ainda membro
do Conselho Executivo da Direção da European International Studies As-
sociation (EISA).

Danielle Jacon Ayres Pinto é professora adjunta no Departamento de Eco-


nomia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria/
UFSM-RS. Doutora em Ciência Política na linha de Política Internacional
pela UNICAMP, Mestre em Relações Internacionais na linha de Estudos
de Paz e Segurança na Universidade de Coimbra (Portugal) com diploma
revalidado pela Universidade de São Paulo/USP, Bacharel em Relações In-
ternacionais pela Universidade de Coimbra com diploma revalidado pela
Universidade de São Paulo/USP, Especialista em Estudos da Paz e Seguran-
ça pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra/FEUC (2008)
e em Direito Humanos e Democracia pela Faculdade de Direito da Univer-
sidade de Coimbra/FDUC (2007). Coordenadora do Grupo de Estudo, Ex-
tensão e Pesquisa em Política Internacional Contemporânea/GEPPIC, Pes-
quisadora Associada do Grupo de Análise de Performance e do Grupo de

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Fron te iras contempor â nea s c om pa r a d a s

Diplomacia de Defesa, Cooperação Técnica e Segurança Marítima da Esco-


la de Guerra Naval/EGN da Marinha do Brasil, Pesquisadora associada ao
Círculo do Tempo Presente da Universidade Federal do Amapá/UNIFAP.

Daniel Chaves é professor adjunto de História Contemporânea na Univer-


sidade Federal do Amapá (Unifap). Diretor do Núcleo de Inovação e Trans-
ferência de Tecnologia (NITT) da Unifap. Doutor em História Compara-
da pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC/
UFRJ), docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Mestrado
em Desenvolvimento Regional (PPGMDR/Unifap), do Programa de Pós-
-Graduação em Estudos de Fronteira (PPGEF/Unifap) e do Pólo Unifap do
Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória/CAPES). É pes-
quisador sênior do Observatório de Fronteiras do Platô das Guianas (OB-
FRON) e do Círculo de Pesquisas do Tempo Presente (CPTP), ambos da
Unifap. Dirigiu a Editora Universitária da Unifap (2014-2016). Realizou
estágio pós-doutoral de curta duração na Universidade de Coimbra, aco-
lhido pelo Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Territó-
rio (CEGOT-FL/UC, 2016). Atuou como Pesquisador Visitante no Centro
de Estudos Sociais/Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
(CES-FE/UC, 2016).

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Este livro foi composto em Sabon
Next LT pela Editora Autografia e
impresso em papel offset 75 g/m².

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