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SOBRE O FEMININO E A CIDADANIA EM POMPÉIA

LOURDES M. G. C. FEITOSA
Universidade Estadual de Campinas/SP/ Brasil
FÁBIO FAVERSANI
Universidade Federal de Duro Preto/MG/ Brasil

RESUMO
Nos últimos anos, novos trabalhos tem questionado os antigos paradigmas interpretativos que excluíam a mulher do espa~o
público e do grupo de cidadaos. O objetivo deste artigo é refletir sobre a idéia equivocada do confin amento feminino ao lar e de sua exclu-
sao da vida pública e do poder, durante o século 1 d.C. A análise de inscri~6es parietais de Pompéia tem sido importante para questio-
nar esta imagem sobre as mulheres romanas.

PALA VRAS CHA VE


Feminino, Pompéia, Grafites, cidadania, espa~o público.

ABSTRACT
In the last years, recent studies have been criticising interpretative paradigms that have been excluding the women from the
public space and citizeruy. The aim of this article is to make us think about the wrong idea of the female confinement at home and her
cxclusion from public life and levels of power, during the 1 century a.C. The analysis of several inscriptions from Pompeii has been
important in order to put discuss the image of Roman women.

KEYWORDS
Femininc, Pompeii, Graffiti, Citizenship, Public space.

Até os anos sessenta é possível perceber em


grande pacte da historiografia e de maneira geral a
Entretanto, nos últimos anos, perspectivas his-
toriográficas que se fundavam nestes pressupostos
que trata da Antigüidade, pouca atenr;ao as mulhe- estao sendo muito questionadas. Amplos debates e
res devido a um interesse corrente pelas cenas de novos estudos vem sendo desenvolvidos a respeito
guerras e disputas políticas, espar;o no qual as mu- de urna reinterpretar;ao do lugar das mulheres. Este
lheres pouco aparecem (Perrot 1989: 9-18). Urna quadro alterou-se significativamente com o movi-
interpretar;ao freqüente nestes estudos está na divi- mento feminista das décadas de sessenta e setenta,
sao entre a casa, símbolo da esfera privada, e o que contribuiu para impulsionar os estudos sobre
fórum, espar;o da política, do poder e da vida públi- as mulheres nos diversos períodos históricos. Mas
ca, e como as mulheres sao naturalmente fixadas é com as análises que tomam por pariimetro as rela-
no espar;o da casa, pouca importancia era dada a r;6es de genero que a temática feminina passa a ser
elas. As excer;6es davam-se por conta de alguns discutida relacionada ao contexto social, económi-
estudos relacionados as poucas mulheres chamadas co e político e nas relar;6es de poder estabelecidas
célebres como, por exemplo, a história de Mesalina, entre el as e os homens.
de Cleópatra, de Lívia ou Penélope, cujo interesse
está na relar;ao que possuem com homens famosos o intuito destes estudos é buscar outras infor-
ou pelo poder que detem (López 1994: 37-40). mar;6es sobre a organizar;ao social além daquelas
apresentadas pelas fontes literárias, que foram escri-
tas e intermediadas pelos valores aristocráticos, e
revelar as relar;6es de poder fundamentadas sobre
'I..tJdé't1l as diferenr;as concebidas entre homens e mulheres.
Ntím. 33-34. (mys 2002-2003, pág. 253·259 A releitura das fontes literárias e o uso de outras

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evidencias históricas como as fontes epigráficas, História da vida privada, mostra outros ingredien-
arqueológicas, iconográficas, entre outras, tem tra- tes de sua forma de escrever História e podem aju-
zido urna valiosa contribui9ao para este processo de dar a esclarecer quais dessas idéias contraditórias
releitura histórica l. corresponde melhor a sua forma de pensar. Lemos
em seu artigo que: «Deixamos a urna publicayao
Claro está que este movimento de revisao da mais ambiciosa o pormenor dos fatos e o aparato
condi9ao feminina no mundo romano nao é unfulÍ- das provas» (Veyne 1990: 157). Adiante, ternos des-
me; longe dist02 . Nomes vinculados a renova9ao da velado o axioma através do qual Veyne examina
historiografia, como Paul Veyne, reafirmam tudo todos aqueles sujeitos colocados em condi9ao de
quanto as análises mais tradicionais afirmaram acer- opressao em urna sociedade qualquer: «A repres-
ca das mulheres 3 . Para exemplificar a visao que sao é auto repressao, urna vez que a vítima nao é
Veyne tem das mulheres romanas, citamos duas pas- puramente passiva ... Mas a vítima nao é, tao pouco,
sagens em que ela fica bastante clara: «A mulher ativa ... Entre atividade e passividade existe um ter-
nao é a vigilante dona de casa: é urna menor que o ceiro termo, a rea9ao: a obediencia política, o dar a
marido governa, tal como governa os seus clientes si mesmo dignidade, que é típico do oprimido, o
e libertos. Contudo, ele respeita-a e bate-lhe pouco, 'ressentimento' (que nao significa revolta mas, sim,
salvo em casos excepcionais e, neste caso, com um 'adiamento moroso' ou 'rancor impotente')>> (Veyne
pontapé no ventre, para injuriar o animal reprodu- 1990: 161). É gra9as a este axioma que o autor pode
ton> (Veyne 1993: 165), e ainda «As mulheres sao ver a menoridade feminina de Roma como similar a
pequenos seres que nao se respeita e que nao se res- das crian9as contemporaneas. Tanto é assim que
peitam; inocentes como crian9as, fazem aquilo que afirma: «No mundo moderno, o episódio do
os adultos lhes mandam fazer, exceto desobedecer... Satyricon [em que Trimalchio agride Agripina]
Nao sao companheiras, mas crian9as mimadas» poderia ter o seguinte equivalente: um negro ame-
(Veyne 1985: 133)4. Poder-se-ia argumentar que ricanos, jantando em casa de um milionário de cor,
desqualificamos as proposi90es de Veyne ao sele- acaba desabafando, exasperado, ao fingir socar, por
cionarrnos passagens «infelizes» de sua obra. É ver- brincadeira, o teenager presumido, filho de seu anfi-
dade que ele mesmo desdiz isto que afirmou em triao. Com as mulheres e com os rapazes é possível
outras passagens, como nesta: «Algumas, mais brincar sem conseqüencias» (Veyne 1990: 169). Aos
nobres e mais ricas que o marido, recusavam a auto- que nao concordam com isso, é preciso lembrar que
ridade deste; algumas até desempenharam um gran- Veyne, 12 páginas antes, já se eximira de respeitar
de papel político» (Veyne 1990: 83). os fatos ou provar que suas afirma90es fizessem sen-
tido.
Mas afirmar e negar faz parte do «estilo pole-
mista» deste autor. A introdu9ao de seu artigo, em Veyne, contudo, nao é a regra. A tendencia é
a revisao dos preconceitos que herdamos.
Estimulados por estes estudos, pretendemos anali-
1 Como exemplos podemos citar as obras: Foley 1981, sar alguns elementos que permitam repensar o este-
Lefkowitz 1982, Rabinowitz, Richlin 1993, Hawley, Levick reótipo feminino construído pelos e para os homens
1995 e Hallett, Skinner, 1997.
da aristocracia romana, destacando-se a questao da
2 Nem que tal revisao é um exclusivo de obras mais
divisao dos sexos no direito romano; a idéia do con-
recentes. Carcopino, por exemplo, intitulou um sub-capítulo de finamento feminino ao lar e de seu distanciamento
um livro que publicou em 1939 como «emancipas;ao e heroís- da vida pública e da esfera do poder.
mo da mulher romana» (Carcopino 1990: 108-114). É bem ver-
dade que os dois seguintes, nao esques;amos, forarn nomeados
Para iniciar, gostaríamos de salientar alguns
«feminismo e desmoralizas;ao» e «os divórcios e a instabilida-
de da família». aspectos da divisao dos sexos no direito romano, no
final da República e início do Império. Bem, segun-
3 O autor possui urna expressiva produs;ao historiográfica do as leis, será real a total submissao feminina a
a respeito do mundo romano e de teoria da História, como indi- tutela masculina ao longo da história romana? Para
cam as referencias: Veyne 1982, Veyne 1985, Veyne 1987,
Thomas, em seu estudo sobre A divisao dos sexos
Veyne 1988, Veyne 1990 e Veyne 1993.
no Direito Romano, é fato que a condi9ao jurídica da
4 Ao confrontar o padrao feminino romano apresentado mulher romana é de numerosas privayoes quando
por Veyne, em que a mulher é considerada urna crians;a mima- comparada a dos homens, mas a linguagem estereo-
da, vulnerável e submissa, com as obras literárias de Ovídio e
Petrélnio, é possível perceber que, mesmo na elite, havia cam-
pos de as;ao feminino contraditórios e diversificados. Se a gene-
ralizas;ao deste modelo nao pode ser feita nem mesmo entre a 5 Paul Veyne ve os negros norte americanos de hoje
aristocracia, mais problemático o é quando usado como mode- como equivalentes modernos dos libertos romanos (Veyne 1990:
lo para toda a sociedade romana. Cf. Feitosa 1994. 11-48).

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tipada dos juristas nao permite que se tenha urna familias; entretanto, várias alteras.:oes nas leis ates-
idéia coerente sobre o significado de stas diferens.:as. tam mudans.:as na condis.:ao feminina. O próprio
Em seus discursos é corrente a explicas.:ao basea- Augusto efetuou urna série de revisoes nas leis
da em nos.:oes de urna inferioridade natural da mul- matrimoniais (lei Júlia de 18 a. C. e Júlio-Pompeiana
her, em sua limitada capacidade intelectual e em sua de 9 d. C.), dentre elas implicas.:oes relativas a mater-
ignorancia do direito (Thomas 1990: 178). nidade e paternidade (Suetone, 31, v. 1), na qual
ficou estabelecido que a mulher livre romana, casa-
A historiografia tradicional tomou estes pre- da ou nao, que passasse por tres gestas.:oes (para as
ceitos jurídicos como um retrato da realidade, sendo libertas ou livres itálicas, quatro e para as provin-
que algumas exces.:oes ilustres apenas serviriam para ciais, cinco), tendo os filhos sobrevividos ou nao,
reafirmar a regra e demonstrar a fraqueza dos estaria isenta do controle dos agnado s sobre elas.
homens que permitiram que mulheres tivessem Legalmente, estas mulheres deixavam de estar sob
poder. O exemplo paradigmático deste caso é dado o poder paterno e passavam, elas próprias, a gerir o
por Julia Agrippina 6 . Mas, sem nos determos ao seu patrimonio, situas.:ao que se estendeu, poste-
conjunto das incapacidades femininas, gostaríamos riormente, para todas as mulheres, com exces.:ao do
de destacar alguns aspectos que mostram o estatu- dote, administrado pelo esposo enquanto a mulher
to de su as capacidades jurídicas e que vao lhe con- estivesse casada. Quando separada, a própria mul-
ferindo maior autonomia ao longo do século pri- her passava a ser responsável pelo gerenciamento
meiro de nossa era. do dote que recebia de volta. É evidente que nao se
pode afirmar a existencia de similaridade jurídica
Segundo as leis romanas, o estatuto jurídico entre homens e mulheres, mas estes exemplos sao
que determina a condis.:ao de escravo ou livre de importantes para contestarmos o modelo generali-
urna crians.:a, ao nascer, é determinado pelo status zante de submissao jurídica absoluta da mulher
de sua mae, sendo ela casada ou nao. A mulher livre romana, presente na historiografia tradicional.
e cidada gera um cidadao romano. O mesmo nao
acontece com o homem, pois apenas as crians.:as Em relas.:ao a idéia do confinamento feminino
nas cid as de um casamento legítimo seguem a con- ao lar, distante da vida pública e do centro das deci-
dis.:ao do pai e as nascidas [ora desta relavao, a soes políticas e do poder, colocamos alguns ques-
condis.:ao da mae, embora o homem possa conferir tionamentos. Em recentes estudos sobre a casa roma-
o seu status de cidadao a outro, em um sistema de na, dentre os quais queremos destacar os de
ados.:ao (Thomas 1990: 176). Wallace-Hadrill e de Grahame, a sua definis.:ao como
um espas.:o privado, destinado ao descanso e restri-
Mesmo com urna série de incapacidades jurí- to a convivencia familiar, tem sido bastante critica-
dicas, grande parte das mulheres livres possuía da. Estas novas teorias procuram compreender o
a condis.:ao de cidadania. Pode-se argumentar que a funcionamento da casa aristocrática de Roma e
condis.:ao de cidadania feminina nao se igualava Pompéia por meio das diferens.:as decorativas
com a do homem cidadao devido a sua menorida- e arquitetonicas entre os seus comodos e como fruto
de civil, a quallhe submetia a autoridade do pai da peculiaridade da vida pública romana, onde parte
ou do tutor. Mas as limitas.:oes legais nao se restrin- da casa também pertenceria a esfera pública.
giam apenas as mulheres. Em urna família, tanto Wallace-Hadrill (1994: 5-10) defende que no interior
el as quanto os seus irmaos estavam submetidos ao de sta casa eram desenvolvidas articulavoes políti-
poder do pai, pois o cidadao romano adquiria per- cas e relas.:oes de clientela com pessoas de diferen-
sonalidade civil autonoma, deixando o seu estado tes estratos sociais, recebidos em espavos específi-
de dependencia legal, somente quando passava a ser cos de acordo com a sua posis.:ao social. Para
designado de pater familias. Este título era con- Grahame (1995: 141-162), a divisao entre os espa-
quistado pelo filho após a morte de seu pai, quan- s.:os público e privado nao serve apenas para regu-
do entao deixava de estar submetido ao seu poder lar as relavoes entre os habitantes da casa e as pes-
(GrimaI199l: 62; Thomas 1990: 136). soas de fora, mas também para regular as relavoes
entre os próprios habitantes da casa. Segundo o
Nesta ordem sucessória, parece que nao havia autor, a farrulia nao era composta apenas pelo núcleo
a possibilidade de a mulher assumir o papel de mater familiar, mas também por outros indivíduos cuja
presens.:a nao significava apenas urna fonte de renda,
em forma de trabalho ou aluguel, mas também um
signo de poder social. Como a criavao desta gran-
6 Como bem destacou Luciane M. Omena (1998) «A
historiografia, assim, apresenta a mulher submissa em tudo aos de farrulia dificultava a distins.:ao entre os seus mem-
homens. Para a imensa maior parte da historiografia, a mulher bros, as diferenvas arquitetonicas e decorativas ser-
quando nao é submetida pelos homens, é malévola para eles!». viam como regulador desta diferenciavao.

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A separa9ao entre as esferas pública e priva- alcan9aram plenamente. Isto é o que demonstram
da seria ainda inapropriada para as casas menores os estudos mais recentes 7 .
de Pompéia. Segundo Laurence (1994: 131), era
comum as pessoas trabalharem e morarem no A atua9ao das mulheres também pode ser
mesmo local, o que fazia com que homens e mul- observada em outra esfera que, até alguns anos atrás,
heres da mesma casa permanecessem juntos gran- era considerada como essencialmente masculina: a
de parte do tempo. participa9ao em campanhas políticas. Na cidade de
Pompéia, foram encontrados cartazes de propagan-
É importante observarmos que estes estudos da política do século I d.C., denominados pro-
evitam a generaliza9ao de um modelo de casa para grammata, que nos mostram mulheres participan-
toda a extensao do império, procurando respeitar as do de campanhas eleitorais 8 .
particularidades regionais e as diferen9as do uso do
espa90 doméstico feito por pessoas de diferente sta- Pudemos verificar que pelo menos 24 inscri-
tus sociais. Por meio deles, também podemos pen- 90es trazem 21 mulheres declarando apoio a candi-
sar na casa como um espa90 de articula9ao política datos. Temos desde apoios familiares, como o caso
e, assim, pressupor que as mulheres nao estariam Taedia Secunda pedindo votos para seu netinho,
muito distantes de stas articula90es. L. Popidius Secundus (C/L, IV, 7469), até declara-
90es de voto feítas por prostitutas a pretenden tes a
Entretanto, também no denominado espa90 cargos públicos que, como veremos, sao várias.
público, podemos verificar a atua9ao feminina. Os
estudos de Boatwright (1991: 248-272) e Rawson Uma primeira pergunta que podemos fazer é
(1995: 1-20) mostram como na Itália, durante o se este comportamento feminino era desejado pelos
Império, e na Grécia e Ásia Menor, durante o perío- homens ou nao. Uma referencia a isto é dada pela
do helenístico e romano, freqüentemente mulheres indica9ao do nome de C. l. Polybius. Em duas ins-
aristocráticas eram responsáveis por benefícios e cri90es ele recebe o apoio de duas prostitutas,
constru90es públicas. Seus nomes podem ser encon- Zmyrina (CIL, IV, 7864) e Cuculla (CIL, IV, 7841).
trados em pórticos, termas, moedas e monumentos O nome delas foi apagado. Nao sabemos por que.
que lembram a sua participa9ao financeira na rea- Tanto pode ser por este apoio ser indesejável, quan-
liza9ao de jogos e na distribui9ao de alimentos. Estes to por outro candidato nao querer que elas o apoias-
registros históricos nos levam a certificar o status sem. Impossível saber. O que é certo é que O mesmo
financeiro e a independencia de muitas mulheres candidato recebeu o favor de outra mulher, Specula9,
romanas. esta, uma operária (CIL, IV, 7167). Este candidato
a duumviro era um padeiro, mas nao foi apoiado por
É importante observarmos que a dedica9ao a duas trabalhadoras de padaria que manifestam seu
coisa pública por meios de encargos da distribui9ao apoio a candidatos aedilidade, sem que apoiassem
pública, citados acima, constituía-se em uma das nenhum candidato ao duumvirato. Statia e Petronia
atribui90es essenciais da cidadania romana (Nicolet trabalhavam em uma padaria e, em 79, apoiaram
1991: 24-30) e, desta maneira, mulheres participa- M. Caselius e L. Albucius a edilidade (CIL, IV,
vam, de uma<maneira mais ou menos direta, de deci- 3294=3678). Statia, um ano antes, também apostou
soes comuns da comunidade. Desta maneira, pare-
ce razoável aceitar que a participa9ao de stas
mulheres envolvidas na organiza9ao do espa90
comunitário em que viviam era um sinal de sua atua- 7 Este tra«o da historiografia da Antigüidade que toma o

9ao política nas esferas de poder local. que seria a sociedade ideal na visao das elites como a realidade
vivida, nao se restringe ao caso das mulheres, mas se expande
a todos os domínios. O que funda este tra«o é urna perspectiva
Com isto, nao estamos sustentando que as mul- elitista de ver nao só o passado, mas também nosso presente
heres tivessem o mesmo nível de participa9ao na (Faversani 1999).
vida pública que os homens. Mas, como tem
8 Maiores detalhes sobre esta questao podem ser encon-
demonstrado os estudos mais recentes, nao é pos-
trados em Bernstein (1987) e Savunen (1995).
sível afirmar que as mulheres nao tivessem partici-
pa9ao alguma. A historiografia que buscou afirmar 9 Na inscri«ao, o seu nome vem como Specla. Parece
a exclusao absoluta das mulheres tomou o que esta- estranho que alguém nao saiba escrever o próprio nome, mas
va na lei como sendo a realidade. No entanto, a lei estes erras de ortografia eram comuns nas interven«oes parie-
representa apenas como os que a escrevem gosta- tais. Escritos deste modo, os nomes se adequam a forma como
eram ditos, servindo melhor 11 identifica«ao das autoras. Tanto
riam que fosse a realidade. Os aristocratas romanos é assim que «erro» similar pode ser encontrado no nome de
desejaram excluir as mulheres dos assuntos públi- outra mulher que também apoiou outros candidatos: Felicla
cos. Fizeram as leis objetivando este fim, mas nao o por Felicula.

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em dois candidatos aedilidade: A. Suettius Verus e porar;ao dos dorminhocos, dos que bebem a altas
M. Herennius Celsus (CIL, IV, 2683). horas, dos ladroes, da associar;ao dos escravos fugi-
tivos (Étienne s/d: 133-134).
Ainda no sentido de tentar desvendar se a atua-
r;ao feminina era ao arrepio do interesse masculino, Asellina era a chefe de um grupo de prostitu-
temos uma inscrir;ao bastante elucidativa: Cassia e tas na casa em que trabalhava. Trata-se de uma
seu marido, Cerialis, pedem seu voto a A. Trebius amostra de «rar;as». Asellina tinha a seu cargo Aegle
Valens em uma mesma inscrir;ao (CIL, IV, 7669). (grega), Maria (judia), Smyrna (<<exótica»). Ainda
Aqui parece claro que Cassia tinha independencia há outras, como Palmyra (<<oriental»), por exemplo,
para apoiar um candidato diferente daquele esco- mas esta a servir;o de Hermes. Asellina apóia dois
lhido por seu marido. Nao fosse assim, para que seu candidatos a duumviro; Smyrna, também (CIL, IV,
nome ser explicitado? Mesmo porque, se o apoio 7863, 7864 e 7873). Vm deles coincide e elas fazem
da esposa necessariamente acompanhasse o mari- uma única inscrir;ao para manifestar sua preferen-
do, ele nada valeria. cia por C. Lollius Fuscus. Quanto ao outro candi-
dato, há divisao. Asellina prefere L. Ceius Secundus
Isto nao quer dizer que a atuar;ao feminina nas e Smyrna, C. l. Polybius. Mas nenhuma das duas
campanhas eleitorais estivesse vinculada a orienta- tem candidato aedilidade. Nesta casa, o apoio a edis
r;oes masculinas. Vm exemplo vem de Aegle, de ori- ficou por conta de Maria e Aegre, como vimos. Cada
gem grega, e Maria, judia, duas prostitutas 10 que uma delas, como fica claro, tinha independencia
apóiam um mesmo candidato a edil (Cn. Helvius para escolher seus candidatos!3. Como as prostitu-
Sabinus) em duas inscrir;oes diferentes (CIL, IV, tas tinham candidatos, também os tinham as donas
7862 e 7866). Mas este candidato nao tem o apoio de tabernas. Assim, Pollia apoiou Cn. Cerinus Vatia
de Fabius Eupor, que liderava os judeus de Pompéia a edilidade (CIL, IV, 368) e Pherusa preferiu
(Étienne s/d: 134), e que apóia, no ano 79, a L. Popidius Secundus (CIL, IV, 7749).
M. Cerinus Vatia e C. Cuspius Pansa.
Nao eram apenas as prostitutas, trabalhadoras,
Poder-se-ia indagar se um candidato apoiado donas de tabernas, esposas com ou sem seus mari-
por duas prostitutas nao teria arruinado sua cam- dos e parentes de candidatos, contudo, que davam
panha. Afina!, os candidatos usavam em sua «prop- apoio eleitoral. Outras inscrir;oes ande mulheres
aganda», no geral, nada mais que a afirmar;ao de oferecem apoio a candidatos sao numerosas ainda.
que eram de elevada moral, sem afirmar «progra- Aparecem figuras que nao pudemos identificar me-
mas». Como nos é dito por Carolus Zangemeister: lhor quem seriam, como lunia (CIL, IV, 1168),
«Como aquelas que, tantas vezes, proclama digno Epidia (CIL, IV, 6610) e Sutoria Primigenia (CIL,
da vida pública, homem probo, digníssimo, a estes IV, 7464), na campanha de 79; Cornelia (CIL, IV,
chamam homens bons ... »ll (CIL, IV, Programmata 3479), em 77; Caprasia (CIL, IV, 171), em 76; e
Antiquissima, p. 1). Este candidato, em particular, Vibia (CIL, IV, 3746), cujo candidato nao foi pos-
contava também com o apoio dos isíacos (CIL, IV, sível discernir. Dentre estas, destaca-se Caprasia,
787), dos alunos do pórtico (CIL, IV, 673), de com a seguinte declarar;ao: «Per;o que far;am edil a
«Valentino com os seus seguidores»12 (CIL, IV, A. Vétio Firmo, pois é digno do cargo. Caprasia
698), entre outros. Isto pode demonstrar que os can- com Ninfio e com os vizinhos pedem que o far;am
didatos que tinham o apoio das prostitutas nao man- (edil)>> 14. Claramente, é uma mulher que coloca a
chavam com isto a sua moralidade. O que ocorre servir;o de seu candidato urna rede de relar;oes pes-
com Cn. Helvius Sabinus se repete com todos os soais razoavelmente expandida e nao apenas seu
demais candidatos. Quando os pompeianos queriam apoio pessoal.
jogar desgrar;a sobre a campanha de alguém, nao
lhe atribuíam o apoio de prostitutas, mas o da cor- A idéia de que as mulheres fossem totalmen-
te alheias a vida pública, ao menos no caso das elei-

10 As duas prostitutas em questao trabalhavam em um


mesmo local, bem como outras duas que também aparecem 13 Há mais urna referencia de apoio de prostituta a can-
apoiando candidatos, Smyrna e Asellina, como nos esclarece didatos, mas esta é incerta. Para nós parece razoável identifi-
nota do editor do CIL a inscri9ao 7866. car Svilimea, que tem junto a seu nome urna palma, como a
Palmyra que aparece em outras inscriyoes na casa. Mas se trata
11 <<Veluti cum illa totiens decantent dignum re publica, de urna conjectura apenas. De toda sorte, trata-se de urna mul-
iuvenem probum, verecundissimum alia, haec candidatos viros her apoiando um candidato a edilidade (CIL, IV, 7494).
bonos appellare satis habent ... »
14 «A. Vettium Firmum aed o.v.f. digno est. Caprasia
12 «Valentinus cum discentes suos». cum Nymphio rog. una et vicini o.v.f.».'

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<;oes em Pompéia, nao faz qualquer sentido. As inter- la<;ao de cerca de 10.000 habitantes? Alguns dirao
ven<;oes parietais demonstram um envolvimento de que sim, mas cremos que a importancia nao está no
mulheres com os processos eleitorais. A lei as número, mas no fato de estes cartazes nos indica-
excluiu, mas a realidade vivida reservou-lhes um rem possibilidades de participa<;ao feminina jamais
espa<;o que elas nao deixaram de ocupar. Além disto, imaginada tempos atrás.
parece que o determinante no caso das simpatias
femininas nao eram as rela<;oes que elas estabele- Para finalizar, podemos afirmar que a nossa
ciam com seus maridos ou pais, mas suas rela<;oes inten<;ao, neste artigo, foi a de destacar estudos que
clientelísticas. Se as mulheres fossem inteiramente tem rompido o estereótipo generalizante da sub-
sujeitas a patria potestas, nao teria sentido elas afir- rnissao ferninina e que nos permitem discutir a com-
marem seu apoio; ele seria automático e, ademais, pleta supremacia masculina na rela<;ao entre homens
pouco valeria se nao fosse independente. e mulheres na sociedade romana, freqüentemente
tomada como real e contínua ao longo da história.
Mas, o que justificaria a participa<;ao de stas Por meio de stas reflexoes, é possível questionar-
mulheres nas campanhas eleitorais de Pompéia, já mos as análises historiográficas que reduzem a dina-
que nao há nenhuma possibilidade de a mulher votar mica social romana a um modelo generalizante e
ou ser votada? a-histórico, pautadas pela aceita<;ao acrítica de cer-
tas idéias apresentadas pelos documentos escritos,
Procurando analisar algumas razoes que leva- e muito distante da diversidade de comportamen-
riam mulheres a apoiarem publicamente candida- tos sociais trazidos aluz por outros registros his-
tos, uma justificativa poderia estar na possibilidade tóricos.
de elas exercerem poder político por meio da ami-
citia e clientela. Mas esta nao é a única possibili- Como as pesquisas sobre as mulheres roma-
dade, como vimos há pouco, pois dentre as assina- nas ainda tem muito a avan<;ar, cremo s que estudos
turas presentes nos cartazes encontravam-se nomes futuros seguramente mostrarao contextos históricos
de mulheres de diferentes status sociais, incluindo específicos, construídos por rela<;oes entre homens
nomes de libertas e escravas, teoricamente sem e mulheres em su as singularidades históricas; aná-
recursos financeiros para barganhas políticas. lise que brevemente apresentamos para a cidade
Pompéia.
Entao, como compreender esta participa<;ao
de mulheres ricas e pobres na vida política do muni-
cípio? Como sugere Savunen (1995: 194-206), os
AGRADE CIMENTO S
programmata podem ser vistos como uma ativida-
de coletiva da qual mulheres faziam parte como
membros ativos, dando suas opinioes, discutindo Somos gratos ao Professor Pedro Paulo A.
política, apoiando e indicando candidatos e que, tal- Funari, da Unicamp, Brasil; aos Professores José
vez, esta participa<;ao na organiza<;ao da comuni- Remesal Rodríguez e Víctor Revilla, da
dade fosse mais importante do que as elei<;oes em Universidade de Barcelona; a Antonio Aguilera
si mesmas. Martín e Lluís Pons Pujol, membros do Ceipac/
Universidade de Barcelona, pelo estímulo e suges-
É certo que em um universo de, aproximada- toes dados a este texto. Agradecemos, também, a
mente, 2.500 cartazes encontrados em Pompéia, Fapesp, pelo apoio financeiro concedido a Lourdes
somente 30% possuem o nome da pessoa que está M. G. C. Feitosa para a realiza<;ao de estágio em
apoiando e, dentre estes, somente 52 constam nomes institui<;oes de pesquisa da Espanha e Itália. As
de mulheres (Bernstein 1987: 180; Savunen 1995: idéias apresentadas sao de responsabilidade exclu-
195). Seriam números inexpressivos em uma popu- siva dos autores.

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BIBLIOGRAFIA

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