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CONCEPÇÕES DISCURSIVAS SOBRE O GÊNERO EPISTOLOGRÁFICO EM ROMA.

Prof. Me. Lucas Amaya (UFRJ)1

RESUMO:
O tratamento teórico dado ao gênero epistolar romano sempre se ateve a relegar a um segundo plano tal
conjunto de obras. A complexidade de estudar um gênero que não teria quase que nenhum traço literário único e
restrito a si mesmo acabou por limitar o estudo das epístolas de grandes autores, que compuseram cartas que
deveriam ser publicadas em parte, outras não. Apesar disso, um gênero epistolar era reconhecido pelos antigos e
a sua publicação e circulação promovia tanto a educação – pois servia como modelos aos jovens estudantes –,
quanto filosofia, política e até mesmo oratória – temas comuns nas epístolas de diversos autores, como Cícero e
Plínio o Jovem. Por isso, acreditamos que analisar tal gênero não como literário, mas discursivo pode nos levar a
compreender melhor como funciona a composição e as funções epistolares dentro da sociedade romana.
Palavras-chave: Epistolografia, Gênero do Discursivo, Cartas, Gênero Literário

DISCOURSIVE CONCEPTIONS ABOUT THE EPISTOLOGRAPHIC GENDER IN ROME.


ABSTRACT:
The theoretic usage given to the roman epistolary gender always adhered to relegate to the background
such works. The complexity of studying a gender that would have no unique and restricted to itself literary traces
turned out to limit the epistolary studies from great authors that composed letters that some should be published,
some not. Nevertheless, a epistolary gender was recognized by the ancient e its publication and circulation both
promoted education, once it served as models to the young learners, philosophy, politics and even oratory,
common themes in the epistles of several authors, as Cicero and Pliny the Young. Therefore, we believe that to
analyze such gender not as literary, but as discoursive may lead us to better comprehend the composition process
and the epistolary functions inside the roman society.
Key-word: Epistolography, Discoursive Gender, Letters, Literary Gender.

A recente análise literária sobre o lugar da epistolografia na literatura Clássica sempre foi discutida de
forma breve e sem aprofundamento, devido a falta de umareflexão maior sobre uma arte epistolográfica e sobre
o seu uso e suas funções para os homens gregos e romanos do período tanto arcaico, quanto clássico e pós-
clássico, com exceção ao papel das cartas e epístolas na construção do cristianismo e de sua irradiação por todo o
Império Romano.
Podemos ver isso ao analisar a afirmação de Martin e Gaillard, quando dizem que:
Est-on fondé à parler de « genre épistolaire »? Ou en d’autres termes : ce genre existe-t-il ? Impossible d’éluder
ce problême irritant et peut-être insoluble. Quand quelqu’un rédige un pièce de théâtre, un roman, un traité
moral ou scientifique, il accomplit un acte dont la spécificité est évidente, acte qui consiste à écrire pour masse
plus ou moins importante, mais en principe anonyme, constituant ce qu’il est convenu d’appeler « le public » ; il
n’est plus alors un simple « scripteur », mais un « écrivain », et l’on pourrait dire qu’il mérite ce titre même si
en fin de compte il ne publie jamais ce qu’il écrit...2(MARTIN e GAILLARD, 1990 : 454)
Os teóricos franceses buscam uma definição romana de Gêneros Literários - que por si só já é
complicada, pela falta de definição concreta de o que é Literatura e o que seria literário, segundo a concepção
moderna e sincrônica na qual eles se inscrevem. Apesar disso, deste pequeno trecho já podemos começar a
identificar porque parece, a priori, infrutífera a tentativa de adentrar o campo epistolográfico clássico: a
dicotomia “emissor x receptor”. Soa-nos estranho considerar qualquer coenunciador como anônimo ou qualquer
sentido próximo a este. Nenhum discurso é formado exclusivamente pelo seu autor físico, uma vez que ele faz
parte de uma sociedade que está em refração constante em relação à língua que ela mesma constrói e pela qual é
construída.
É preciso então tomar outras teorias como base, saindo do viés teórico literário e entrar no campo
discursivo, o que nos parece mais adequado para o caso. Assim cabe falar de Gênero Discursivo, que pode ou
não se configurar como literário, novamente tomando a semântica hodierna do termo.Parece-nos claro que

1
Mestre e doutorando em Letras Clássicas pela UFRJ. Professor substituto de língua latina na UFRJ.
2
“É seguro falar em “gênero epistolar”? Ou, em outras palavras, esse gênero existe? É impossível elucidar esse
problema excitante e talvez insolúvel. Quando alguém redige uma peça de teatro, um romance, um tratado de
moral ou cientifico, cumpre uma ação cuja especificidade é evidente, ação que consiste em escrever para um
grupo mais ou menos importante, mas a principio anônimo, e que constitui o que convém chamar de "público".
Ele não é mais, então, um simples "escritor", mais um “autor”", e poder-se-á dizer que ele merece o titulo,
mesmo que, no final das contas, ele jamais publique o que escreveu”.
nenhuma comunicação linguística verbal existe sem uma sociedade prévia donde ela nasce, assim como não
existe uma sociedade sem comunicação verbal, independente de escrita - ao menos conforme podemos atestar
seguramente. Portanto, sociedade e comunicação linguística verbal são interdependentes: uma língua - pela qual
a comunicação é feita - depende de uma comunidade de falantes que construa seus significados e compreenda
sua estrutura interna, ao passo que uma sociedade só existe através de uma língua que permita suas instituições -
jurídica, religiosa, social etc - e que sirva de base e de ferramenta para a construção e manutenção de uma
memória social justificadora de sua existência.
Não obstante, será, então, melhor falarmos em “Discurso”, não “Texto Literário”, uma vez que a carga
semântica que este último léxico carrega pode levar-nos a uma inexatidão em sua relação com a sociedade, cabe
melhor usarmos o termo “Discurso”. Conforme Foucault:
O discurso, assim entendido, não é uma forma ideal e intemporal que teria, além do mais, uma história; o
problema não consiste em saber como e por quê ele pôde emergir e tomar corpo num determinado ponto do
tempo; é, de parte a parte, histórico - fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que
coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua
temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo. (FOUCAULT, 2008: 132,
133)
A partir disso, podemos ter já uma prévia noção de que Discurso é, senão, história, uma vez que
constrói a história e é construída por ela. Não muito distante dessa formulação, a conceituação de Bakhtin
também é de grande auxílio para estabelecermos o que seria “Discurso”:
A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais ou escritos), concretos e únicos, que emanam
duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de
cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada
nos recursos da língua - recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais -, mas também, e, sobretudo, por sua
construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-
se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de
comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização
da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do
discurso. (BAKHTIN, 2006: 209, 210)
Tiramos desse pequeno excerto bakhtiniano que o Discurso também é fruto de recursos linguísticos -
que são, também, parte de um recorte histórico determinado - e que se agrupa em gêneros, conforme
semelhanças e diferenças internas e externas a si: finalidade, estilo e conteúdo, consoante a teoria do teórico
russo. Mas assim como a história, estilo, conteúdo e finalidade só existem através do próprio Discurso, pois sem
ele, não tomariam forma e não existiram, ainda que em Discurso mentalizado ou internalizado por uma
comunidade.
Portanto, se entendemos o Texto Literário como um fruto isolado, apresentando certo conjunto de
regras e que existe independente de uma realidade histórica, assim não é o Discurso, que vai além de si mesmo e
supera os limites impostos pelo meio em que existe, pois como fruto de uma comunidade, está ligado a outros
Discursos dessa mesma comunidade de alguma forma. A escolha vocabular de um Discurso, a título de exemplo,
dá-se de forma a enquadrá-lo em um conjunto de outros que usufruam do mesmo grupo lexical, ou no mínimo
diferenciá-lo doutros com os quais não lhe convenha partilhar do léxico por motivo qualquer, e tal atitude o
enquadra num recorte espaçotemporal muito preciso, pois apenas uma mesma comunidade reconheceria tais
ferramentas, como a escolha vocabular e os sentidos usados para construi-lo, além dos sentidos construídos
internamente em si.
Sobre isso, alerta-nos Foucault,
O discurso - como a psicanálise nos mostrou - não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é,
também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que - isso a história não cessa de nos ensinar - o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o
poder do qual nos queremos apoderar. (FOUCAULT, 2010: 10)
Mais que isso, se um Discurso é um Discurso de verdade - a ser entendida aqui como Nietzsche (2007)
a definiu, uma mentira já gasta que perde sua forma e toma o valor de verdade -, não universal, mas coconstruída
pelos coautores envolvidos no processo de escrita e de ressignificação do discurso. Assim, não é apenas a voz,
escrita ou não, de quem o produziu de forma física, mas também as vozes da comunidade a qual pertence o autor
e da comunidade à qual o discurso se volta.
Porém há outros fatores concernentes a um Discurso que são determinantes para a sua existência, não só
os coautores e vocabulário. Há uma série de fatores interdependentes entre si e de mesmo nível hierárquico:
intertextualidade, circulações temáticas, dêixis enunciativas, os meios usados para propagação do discurso, os
modos de coerência e os modos de enunciação. Tais fatores, também chamados de planos, reunidos formam o
que Dominique Maingueneau chama de Semântica Global,
Isso quer dizer que a ordem de sucessão dos “planos” que seguimos em nossa apresentação é completamente
arbitrária no que diz respeito ao “esquema construtor” global representado pela competência discursiva que os
investe. Não constitui de forma alguma um modelo genético em virtude do qual o enunciador escolheria
previamente um tema, depois um gênero literário, depois um vocabulário etc. (MAINGUENEAU, 2008: 77).
E a soma de parte desses planos interdependentes, conforme citação de Maingueneau, rende-nos o que
chamaremos de Gênero Discursivo. Bakhtin já direcionava sua teoria de Discurso para a existência de um
Gênero Discursivo, seguindo uma série de funções internas e externas ao texto - tema, estilo e estruturação
composicional. Também Foucault dissertará sobre isso, alertando que a aceitação de um discurso enquanto
verdade deve também estar ligada ao espelhamento de características de um gênero que se deseja inserir o
discurso. Parece então que as três definições são de certa forma consoantes entre si, pois falam de uma
semelhança entre discursos e, com isso, há um GêneroDiscursivo.
Não obstante, Maingueneau, em sua teoria da Semântica Global, dirá que um discurso será composto
por diversos planos de único nível hierárquicos, sendo todos iguais, sejam eles: tema, tom, enunciador,
destinatário, modo de coesão, gênero discursivo, cronologia, vocabulário, cena, intertextualidade - ainda que,
com o passar do tempo, o analista discursivo francês tenha modificado a nomenclatura e condensado a teoria,
com a evolução da ideia de etos discursivo, englobando enunciador e tom, e de coenunciação, já que a voz do
outro se faz presente também através do enunciador. Assim, qualquer um dos planos deve estar consoante aos
outros para que o discursivo seja entendido da forma desejada por seu enunciador; em caso de assonância entre
dois ou mais planos, o discursivo pode ser interpretado de forma não inicialmente desejada pelo enunciador ou
até ser ininteligível.
Portanto, um Gênero do Discurso depende de diversos fatores em consonância, como o vocabulário, o
enunciador, o destinatário, a cena, os modos de coesão. Para que haja determinado Gênero, em determinada
sociedade, em determinado tempo, é necessário um vocabulário específico, estruturas de coesão específicas, por
exemplo. Isso não quer dizer que todos os discursos estejam presos a uma mesma configuração de planos para
que sejam igualados em gênero, pois um discurso não é fruto de um processo de construção exata, construído
unicamente por apenas um enunciador que estabelece por si só todo o significado do texto.
Como o discurso é feito por uma sociedade, ao passo que a constrói - não sendo um fator cultural
inócuo -, a própria leitura da relação entre os planos concernentes a Semântica Global muda, uma vez que a
sociedade nunca é exatamente a mesma. Por conseguinte, a valoração de um plano feita pela sociedade muda,
conforme esta própria muda: a questão de se uma epopeia é fantástica ou histórica, se retrata fatos meramente
literários ou se traz fatos e relatos reais, é, senão, um fator que depende da comunidade. Se hoje não aceitamos a
correlação histórica entre Otávio Augusto e o jovem guerreiro troiano Eneias, Vergílio os retrata de forma
histórica e não necessariamente fantástica - ainda que isso gere confusões e incompreensão por vezes.
Voltandoà citação de Martin e Gaillard feita destarte, podemos afirmar que, ainda que o enunciador
físico de um enunciado, literário ou não, desconheça nominalmente todos os seus coenunciadores, todos fazem
parte de uma mesma sociedade e, no caso de Roma, de ordens sociais específicas, com uma memória social
específica e que justifica a existência daquele grupo e daquele discurso simultaneamente, enquanto tal. Em
verdade, o enunciador conhece sim seus coenunciadores e eles são, sem dúvida, presumidos de uma forma ou
doutra.
É comum à estrutura epistolográfica a presença de um emissor e de um destinatário explícitos, seja no
corpo do texto, seja no meio usado para transporte - no caso de Roma normalmente um cilindro de transporte de
volumines - através de selos ou marcas próprias. Ainda que possa haver uma carta com emissor e destinatários
anônimos, é imprescindível um Eu e um Tu - ou Nós, por mais de um assinar a missiva ou, por motivos
retóricos, uma assinatura plural, e um Vós - e que estes estejam afastados no tempo ou no espaço, uma vez que é
necessária a presunção de ausência para o ato de composição epistolar.
Mais que isso, a relação sócio-política explícita na carta entre o Eu e o Tu é de extrema importância
para a composição epistolar. Podemos afirmar com segurança que tal relação não é uma escolha relativa a um ou
outro lado, mas a um contexto sócio-histórico que se faz presente através dos diversos planos da Semântica
Global, o que inclui os coenunciadores. Assim, determinada relação entre os coenunciadores só pode existir em
apenas um único recorte temporal, de forma a também preencher os outros planos da Semântica Global. E ainda
que ambos sejam anônimos, podemos atestar sua relação através do vocabulário usado, como pronomes de
tratamento, vocativos e expressões gramaticais que tendem à formalidade ou à informalidade, além da
estruturação interna, como a presença ou não de um ou outro cabeçalho, conforme o contexto geral exigisse.
E quando falamos de epistolografia Clássica, em Roma especificamente, parece-nos então que o grupo
em posição de escrever uma carta é consideravelmente pequeno. A educação romana, apesar de abarcar também
a plebe e, não raro, termos famosos escritos de escravos libertos, era voltada de uma forma geral à classe patrícia
e era neste processo educacional que se aprendia a escrever cartas, partindo da imitação de modelos consagrados,
passando por sua emulação e chegando à escritura de cartas próprias, ainda que mantivesse a estrutura já
conhecida. Contudo, soa-nos estranho acreditar que apenas cartas com claras marcas retóricas ou literárias
possam ser consideradas verdadeiras e vindas de ordens patrícias.
Ainda nos limitando à discussão de autoria e receptividade, num campo analítico discursivo, o emissor
de um texto, o seu enunciador, não precisa necessariamente ser versado em retórica e poética, pelo contrário.
Não temos como negar a existência de correspondência entre soldados e suas famílias, ou entre pequenos
comerciantes, bem como membros distantes de uma mesma família plebeia. O objetivo não é limitado pela
retórica ou literariedade da carta, mas sim pelo simples objetivo de redução do espaço-tempo para que haja uma
comunicação, ainda que cada carta corresponda ao que poderíamos chamar de turno - ainda que a voz do outro a
quem o emissor se dirige sempre se faça presente no próprio discurso, e não se trate de um monólogo.
Uma carta pode ter um vocabulário relativamente pequeno, com estruturas simples e até fugaz de uma
norma tida como padrão – que, no caso do latim, se resumia a como determinados autores escreviam -, desde que
seja um coestabelecimento entre emissor e destinatário: ambos devem dominar as regras gramaticais e
vocabulários aplicados, entender como aceitável para aquele discurso em específico e ser presumível o
entendimento mútuo. Desta forma, as relações sócio-políticas entre emissor e receptor não são necessariamente
delimitadoras ou excludentes, pois tais relações também passam por um filtro interno-discursivo de
reestabelecimento delas mesmas: Cícero comumente escreve a Tirão, escravo seu; ou a posição das heroínas
enquanto subjugadas e abandonadas no caso das Heroides ovidianas; da mesma forma Cícero atesta haver
correspondência entre ele e César, dois dos principais homens da política republicana romana do século I. Isso
demonstra que há comunicação epistolar entre diferentes níveis hierárquicos.
Ademais, a necessidade de comunicação entre pessoas distantes temporalmente ou espacialmente não se
mostra apenas em casos específicos de relações sócio-políticas. Assim, uma carta pode ser enviada a um
desconhecido, desde que ele esteja em uma posição que configure aquilo presumido pelo emissor ao compor a
cartar e se tornar o seu receptor. E mesmo que não seja o caso, a carta não perderá o sentido, mas este mudará, já
que os planos estruturais do discurso não corresponderão igualmente ao proposto por emissor e receptor,
podendo ocasionar situações diversas, como incompreensão, comicidade, engano, tragicidade etc.
Neste caminho, a questão “emissor - receptor” parece estabelecer-se dentro do próprio discurso e não
fora dele, o que levaria em conta apenas situações externas ao ato comunicacional epistolar, que por si só já
refrata os traços da sociedade, ainda que de duas pessoas apenas, que o compuseram. Por isso, uma análise que
leve em consideração apenas os fatores sociais de composição e de autoria nos parece infrutífera e efêmera, pois
haveria de ignorar boa parte dos planos estruturais presentes e dados pelo discurso.
Podemos ainda falar que a escolha vocabular e de estruturas coesivas dentro do gênero epistolar
apresenta-se de forma muito ampla e sem a priori uma regularidade. Como praticamente qualquer tema é
possível - uma vez que a circulação temática entre dois coenunciadores distantes no tempo e no espaço tende a
todo e qualquer assunto entre eles -, parece-nos que em um primeiro momento a escolha é transpassada e expõe a
relação sócio-política entre emissor e destinatário. É também limitado o vocabulário e ferramentas de coesão
pelas possibilidades aferidas pela língua e meios usados para transmissão da carta em si - no caso de Roma, o
latim e o volumen, respectivamente.
Contudo, há expressões internas que são recorrentes e necessárias para que, em sua presença, haja uma
carta. Falamos aqui da Formula Valetudinis e das expressões de saudação e despedida: aparentes no começo e no
final da carta, assim como também no corpo, desde o mundo clássico são atestadas tais expressões, não só nas
cartas reais do período clássico que chegaram até os dias de hoje - a maioria em dialetos gregos -, como também
naqueles que teorizaram sobre o fazer epistolográfico.
Em latim eram comuns as siglas S.P.D. ou S.D., Salutem Plurimam Dicit (“saúda muitíssimo”) ou
Salutem Dicit (“saúda”), que comumente estariam no início de cartas de tom pessoal ou familiar. Ainda que esta
forma fosse usual, ela não era a única e comumente seu valor semântico poderia ser substituído por outras
expressões, ou até mesmo sentenças inteiras. Assim, o uso do S.P.D. ou outra semelhante é atestado em um
grupo específico de cartas - cartas pessoais ou familiares -, e pode não ser atestado em outras - como cartas de
recomendação, políticas, retóricas. E apesar de ter claramente uma primeira e uma segunda pessoa no discurso,
tais saudações eram comumente escritas na terceira pessoa, num modelo A saúda a B, o que delimita e específica
os coenunciadores envolvidos e dá ênfase maior ainda as expressões de saudação.
Já a Formula Valetudinis, em tipos de cartas, era comumente atestada através da sigla S.V.B.V.E.E.V., Si
Vales, Bene Est, Ego Valeo (“se estás bem, ótimo, estou bem”). Essa é uma expressão comum às expressões de
saudação, mas estas são atestadas em tipos específicos de cartas, enquanto em outros, há também expressões de
mesmo valor semântico, mas em escritas de forma diferente, normalmente até maiores e não abreviadas. O uso
das expressões iniciais de saudação e a Formula Valetudinis demonstra que poderíamos presumir sim um
entendimento prévio das siglas ou de expressões equivalentes e que a sua diferença intrínseca mudaria o tom, e
consequentemente o etos, da carta. Ademais, agora percebemos não mais a construção a partir de uma
expectativa de um público desconhecido, mas a aproximação e a estabilização da primeira e segunda pessoa no
discurso - o que demonstra em si o começo do diálogo.
No final das cartas temos, então, as expressões de despedida, que fecham a carta. Nas cartas escritas em
latim, eram usadas expressões com o verbo valere (“saudar”, “desejar bem”, “querer bem”), como vale,
imperativo presente singular, ou expressões que envolvam os deuses, como di te incolumen custodiant (“que os
deuses te guardem a salvo”). Em verdade, é comum ao último parágrafo o emissor demonstrar certo bem querer
para com o destinatário, independente do tom da carta, e se despedir como se estivessem um na presença do
outro, ato esse que deixa clara uma das principais funções da carta, a aproximação espaçotemporal.
De certa forma, não é uma escolha meramente vocabular, mas também de coesão interna e externa que
começa a carta, ligando a relações externas - como o recebimento de outra missiva, caracterizando aquela como
uma resposta, o envio de felicitações ou condolências, ou simplesmente a presença do destinatário enquanto
imagem concreta na memória do emissor, comumente visto com expressões significando “ter em mente”, “ter no
coração, “ter em memória”. Por outro lado, diz Demétrio (1902: 176) “the letter like the dialogue, should abound
in glimpses of character. It may be said that everybody reveals his own soul in his letters.In every form of
composition it is possible to discern the writer’s character, but in none so clear as in the epistolary”3. Assim, o
destinatário também recebe uma imagem do próprio emissor através da carta.
Contudo, é pela escolha de um grupo vocabular e não doutro que as tais expressões e fórmulas se
apresentam e não se igualam a uma introdução ou conclusão qualquer. Em geral são preferidos termos que
transpassem intimidade e apreço, no caso de uma relação minimamente amigável, ou de neutralidade, quando há
tensão entre os coenunciadores. Não raro, também, expressões expletivas da relação entre emissor e destinatário
- como uma relação paterna, materna, marital, de amizade -, que normalmente envolvam terceiros, como
divindades ou pessoas ordinárias que sirvam de alguma forma como mediadores entre as relações que envolvam
os coenunciadores.
Desta forma, pronomes de tratamento são geralmente comuns - em latim, especificamente, o uso de
pronomes possessivos, como meus,mea, meum, que é tido, com o vocativo em sua forma masculina reduzida mi,
ou o feminino mea, como uma das principais expressões de tratamento afetivo, pois seria uma forma mais amena
e menor, gerando um tom mais propício a cartas, normalmente as pessoais e familiares. Tal uso, ao lado da
escolha de verbos com significados como desejar bem, ter esperança, saudar, louvar ou estimar permitem a
criação de um etos que será comum na maioria das obras epistolográficas, criando um nível igualitário colocando
o emissor em posição inferior numa escala hierárquica interna ao discurso, uma linguagem não rebuscada - ainda
que não configure necessariamente um registro informal - e que possibilite uma cenografia permissiva à presença
de ambos no mesmo tempo e espaço,ainda que imaginária e linguística.
Tal reconhecimento deve haver minimamente entre os coenunciadores, que por sua vez estão inseridos
numa sociedade que detém, de certa forma, o mesmo conhecimento formulaico4 do vocabulário e estruturas de
coesão - que dividem a introdução, o meio e a despedida - internas de uma carta. Portanto, o uso ou não uso das
expressões aferidas anteriormente poderiam qualificar a carta enquanto tal e subdividi-la em pequenos grupos.
Vemos, desta forma, que a infrutífera tentativa de analisar as epístolas do período Clássico pelos
teóricos de hoje passa pelo fato de não observarem as cartas como ferramenta de comunicação diária em diversos
âmbitos e estratos sociais e políticos, que se configurariam entre as relações internas e externas entre os
coenunciadores, percebidas através das escolhas que dariam forma aos planos discursivos inerentes ao discurso
epistolar. E por mais variados que sejam as possibilidades de análise desses planos discursivos, uma teoria sobre
o funcionamento de uma arte epistolar ajudaria tanto a entender o gênero, quanto sua extensão, que a priori
parece chegar à política, ao fazer poético, à vida cotidiana, à educação romana e à oratória.

Referências Bibliográficas:
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Universitária, 2008.

3
“A carta, como o dialogo, deveria abundar em traços de uma imagem do enunciador. Pode-se dizer
que todo mundo revela sua alma em suas próprias cartas. Em toda forma de composição pode se
discernir a imagem do autor, mas em nenhuma tão clara como na composição epistolográfica”.
4
Tradução lusitana comumente referida ao léxico inglês Formulaic. Transmite a ideia de padronização
em fórmulas específicas.
__. A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 2ª ed. São Paulo:
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