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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

CENTRO DE ARTES, HUMANIDADES E LETRAS


CINEMA E AUDIOVISUAL

MATEUS SANTOS RIBEIRO

CARTOGRAFIA SONORA EM CACHOEIRA:


FILARMÔNICAS SAMBA-DE-RODA E TERREIROS DE CANDOMBLÉ.

Cachoeira, Agosto/2017
MATEUS SANTOS RIBEIRO

CARTOGRAFIA SONORA EM CACHOEIRA:


FILARMÔNICAS, SAMBAS-DE-RODA E TERREIROS DE CANDOMBLÉ.

Memorial de trabalho de conclusão do curso apresentado ao


colegiado do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia, pelo graduando Mateus Santos Ribeiro
como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Cinema e
Audiovisual com ênfase em Documentário, sob a orientação d
professora Msc. Marina Mapurunga de Miranda Ferreira.

Cachoeira, Agosto/2017.
MATEUS SANTOS RIBEIRO

CARTOGRAFIA SONORA EM CACHOEIRA:


FILARMÔNICAS, SAMBAS-DE-RODA E TERREIROS DE CANDOMBLÉ.

Memorial de trabalho de conclusão do curso apresentado ao


colegiado do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia, pelo graduando Mateus Santos Ribeiro
como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Cinema e
Audiovisual com ênfase em Documentário, sob a orientação d
professora Msc. Marina Mapurunga de Miranda Ferreira.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________________
Profa. Mestra Marina Mapurunga de Miranda Ferreira (CAHL/UFRB) – Orientadora

Prof. Mestre Marcelo Mattos de Oliveira (CAHL/UFRB) – Membro Interno

Prof. Mestre Victor Hugo Soares Valentim (CECULT/UFRB) – Membro Externo

Cachoeira, Agosto/2017.
RESUMO

Este trabalho teve por finalidade realizar uma cartografia sonora de pontos culturais
onde há manifestações sonoras de variados estilos e estruturas diferentes na cidade
de Cachoeira, localizada no Recôncavo Baiano, nos meses de Junho a Setembro de
2017. Neste período aconteceram as festas juninas, festas de caboclo em terreiros
de Candomblé, procissões religiosas festivas, cortejos e andanças pela cidade, as
quais foram captadas com um gravador de campo. Todo este material será
arquivado e compartilhado virtualmente através de plataformas específicas
(archive.org e umap) que buscam ilustrar e interagir com o material sonoro captado,
através de um mapa virtual interativo da cidade. Para a realização dessa cartografia,
abordamos neste trabalho as paisagens sonoras de alguns patrimônios imateriais da
cidade, tendo como foco as filarmônicas, sambas de roda e terreiros de candomblé.

Palavras-chave: cartografia sonora, manifestações culturais, patrimônio imaterial,


mapa sonoro.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO........................................................................................06
2-TRAJETÓRIA ACADÊMICA......................................................................08
3-CARTOGRAFIA SONORA EM CACHOEIRA............................................11
4-USO DE PLATAFORMAS LIVRES E DE COMPARTILHAMENTO..........14
5-DIÁRIOS DE PESQUISA DE CAMPO.......................................................17
CONCLUSÕES.............................................................................................33
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................35
ANEXO..........................................................................................................37
APRESENTAÇÃO

Este trabalho de conclusão do curso de Cinema e Audiovisual, um produto


técnico-artístico, nasceu do interesse sobre as recentes pesquisas sobre as
paisagens sonoras na cidade de Cachoeira, como parte da disciplina de Oficinas
Orientadas de Audiovisual I, orientada pela professora Marina Mapurunga, onde os
exercícios de criação de uma cartografia sonora da região foi uma das propostas
principais, o que levou a criar um mapa virtual onde poderiam ser catalogados os
sons de diferentes tipos de paisagens sonoras presente em cada parte da cidade,
fossem elas sons ambientes, ruídos específicos, micro-narrativas do cotidiano e
caminhadas sonoras (soundwalks).
Baseado nesta proposta inicial resolveu-se ampliar esses conceitos em
registros sonoros de diferentes representações do patrimônio cultural e imaterial da
cidade, sendo o foco deste trabalho, os registros de festas tradicionais que
ocorreram entre os meses de Junho a Agosto de 2017, e uma catalogação básica
sobre três diferentes tipos de manifestações sonoras culturais. Estas foram as
Saídas (caminhadas sonoras) do grupo de Samba Esmola Cantada a Festa de
Caboclo nos terreiros de Candomblé e o Cortejo do Samba de Roda de Dona Dalva
com a participação do grupo mineiro Samba de Terreiro. Abordaremos mais adiante
sobre essas manifestações.
Antes disso, descreverei um pouco de minha trajetória acadêmica, onde o
exercício da captação de áudio foi o principal meio para a minha formação
acadêmica e decisões sobre assumir as funções de diretor de som ou microfonista, e
às vezes ambas as funções. Entre os exercícios propostos pelas disciplinas
acadêmicas e outros a convite de diretores ou produtores, foi-se criando certa
experiência, principalmente no gênero documental, onde de certa forma, influenciou
a concepção deste trabalho técnico-artístico.
Como metodologia de pesquisa procurei seguir alguns conceitos formulados
ao longo do final da década de 1970 por pesquisadores, que abordarei ao longo
deste memorial, que foram de extrema importância para os pesquisadores
contemporâneos na área do mapeamento de territórios sonoros. Através deles pude
orientar a minha pesquisa em direção do patrimônio sonoro imaterial da cidade de
Cachoeira, e graças a um calendário festivo extenso, entre os meses de Junho a
Setembro deste ano, pude construir um mapa virtual colaborativo. Neste mapa se
conhece um pouco dos pontos culturais onde a música é um dos seus principais
elementos, tendo como exemplo os sambas de roda, as filarmônicas e o som dos
terreiros de candomblé. Tais métodos me permitiram criar um diário de campo, onde
tento descrever alguns elementos presentes nas camadas sonoras gravadas,
baseado na pesquisa destes textos.
Sobre o compartilhamento virtual, optei por usar a plataforma archive.org
como suporte de armazenamento das imagens e áudios, onde além do
armazenamento se pode inserir uma licença específica. Uso outra plataforma virtual,
o umap, onde se pode criar mapas interativos com diferentes temas, que é o produto
final do meu trabalho, ou seja, um mapa onde podemos localizar e interagir com os
principais pontos de cultura imaterial no que se refere a sua produção sonora.
Abordarei mais especificamente cada uma dessas plataformas, os modos de
compartilhamento e suas licenças nos capítulos seguintes.
É importante ressaltar aqui, que não é objetivo deste memorial debruçar
minuciosamente sobre as teorias de escuta, territorialização e desterritorialização
das paisagens sonoras. Mas apenas dar um suporte teórico para a criação do mapa
virtual dos eventos ocorridos entre esses meses de pesquisa e captação, em que
considero os diários de campo descritos mais adiante como guia de escuta para
detalhar a riqueza de todos esses elementos já teorizados. Resumindo, esse é um
memorial que busca sinalizar a criação de uma Cartografia Sonora inicial na cidade
de Cachoeira, tendo o mapa e os diários como ilustração e narrativa principais.
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1-TRAJETÓRIA ACADÊMICA

Minha trajetória no curso de Cinema e Audiovisual, localizado na cidade de


Cachoeira, foi praticamente voltada para o campo sonoro, seja ele técnico ou teórico.
Desde o primeiro exercício, da gravação do curta de oito planos, da disciplina
Linguagens e Expressões Artísticas, ministrada pela professora Angelita Bogado,
iniciando assim os primeiros passos no campo da captação de áudio.
O primeiro passo foi conhecer os gravadores que o Centro de Artes,
Humanidades e Letras disponibilizavam aos alunos no ano de 2011, que era um
gravador profissional modelo Tascam HDP2 e dois gravadores de mão da Sony,
modelo PCM-D50, que na ocasião acabou sendo o primeiro a ser utilizado,
principalmente pela disciplina de sonorização com a parte técnica ainda não ser
ofertada. Sendo assim, os primeiros trabalhos na área do audiovisual foram de plena
experimentação e conhecimento com tentativas e erros com o instrumento de
captação.
Procurei saber de alunos que já estavam no curso a mais tempo como
funcionava o PCM-D50. O aluno na ocasião era Breno Tsokas, graduando já com as
aulas de sonorização preenchidas, que me mostrou tanto o funcionamento, quanto
algumas outras especificidades que o gravador permitia e também algumas de suas
limitações. Realmente, depois de estar em campo, pude perceber que não era fácil
captar um momento na cena, uma ambiência que se deseja de uma forma perfeita,
principalmente pela inexperiência do graduando, mas também pela dificuldade que
se tem ao tentar gravar pontos específicos de diálogos com esses gravadores de
mão.
Já o Tascam HDP2 era um gravador mais adequado para o que eu pretendia
na época, que era a captação de diálogos, e com a ajuda de lapelas, eu podia
realizar um trabalho bem feito. Mas demorei um pouco para começar a utiliza-lo.
Talvez usei poucas vezes por ser também um gravador que tinha um peso
considerável, e também o uso de oito pilhas para o seu funcionamento, e que
mesmo alcalinas de qualidade ainda tinha um mecanismo chamado alimentação
fantasma (phantom power) de 4.8v, que os microfones externos precisam para
funcionar.
Tempos depois esse gravador acabou por estar em desuso pelos alunos
devido a chegada de outros equipamentos mais leves e com menos gasto de pilhas.
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O gravador Tascam DR-40 foi um dos mais utilizados por mim no período seguinte,
tanto em exercícios concedidos pela faculdade, quanto em captação juntamente a
mesa de som em eventos culturais pela cidade de Cachoeira. Por ser leve, com
compartimento para 4 pilhas, metade do que era o Tascam HDP2, e a
disponibilidade de duas entradas combo XLR/P10 onde poderíamos executar uma
gravação mono, no caso de uma entrevista simples para um exercício documental,
ou estéreo captando a ambiência e a voz do personagem ao mesmo tempo, em
diferentes níveis de volume, um para cada ocasião.
Com esse Tascam DR-40, foi executada a maior parte de meus trabalhos
acadêmicos, sempre com a ajuda de microfones e os lapelas com e sem fio que a
Universidade disponibilizava no período em que eu estava em curso.
Os microfones externos disponíveis eram o MKH70 e o MKH-50 da
Sennheiser que utilizei para a captação de diálogos com mais de uma pessoa no
quadro fílmico, de algumas ambiências e de foleys. São bons microfones, tendo eu,
uma preferência a este último, MKH-50 que trabalhei grande parte dos curta-
metragens e documentários realizados. Os microfones de lapelas com fio da Sony e
os sem fio, da Sennheiser foram também elementos externos que junto ao Tascam
DR-40 proporcionou uma qualidade nas captações muito satisfatórias. Estes eram
uma espécie de porto seguro nas captações quando os ruídos externos insistiam em
aparecer ocasionando um som não satisfatório para aquela ocasião.
Minhas experiências com captação com esses aparelhos foram diversas,
participando de alguns documentários na cidade de Salvador, e arredores, captando
entrevistas e ambiências em variados tipos de lugares, desde a salas pequenas e
com teto baixo, até áreas super abertas, como ruas, avenidas e até beira-mar.
Também captei som em outras localidades pertencentes ao Recôncavo
Baiano, com o mesmo gênero documental, que mais tarde se tornaria o tipo de
trabalho preferido deste que vos escreve.
Captações de Grupos musicais, folclóricos e rodas de poesia são exemplos
dos tantos outros trabalhos que proporcionaram uma sensibilidade tanto técnica
quanto artística para que o graduando pudesse concluir com uma bagagem inicial de
experiência que demonstra ser satisfatória.
Um dos principais trabalhos que se pode destacar ao longo desses anos foi
a participação como diretor de som do documentário Odu (2013), do diretor Evandro
de Freitas em parceria com o grupo de pesquisa Cineclube Mário Gusmão, onde é
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relatada a vida do ator baiano Mário Gusmão. Neste mesmo grupo de pesquisa,
pude experimentar uma relação entre cineclubismo e trabalho técnico, inicialmente
como auxiliar de técnico de som e projeção, passando para técnico de som, até o
período final no grupo, onde atuava como técnico de som e de projeção.
Assim, pode-se ter uma relação de afinação do ouvido quanto a questões
técnicas dentro de um ambiente acústico, inicialmente no auditório da Universidade,
regulando as caixas de som, afinando a mesa de acordo com cada filme, pois cada
um vinha com volumes e projetos sonoros diferentes.
Outro trabalho importante foi a participação como um dos microfonistas no
primeiro longa-metragem realizado por graduandos do curso de Cinema e
Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, intitulado Café com
Canela. Neste pude ter contato com diferentes tipos de equipamentos e diferentes
locações, onde mesmo na madrugada o barulho externo da cidade insistia em
aparecer. Mas o período de pouco mais de um mês e meio, com uma rotina de
trabalho diário, seguido de uma forma profissional por todos os integrantes da
equipe, acabou proporcionando uma carga de experiência excelente para um fim de
ciclo no curso de Cinema, onde levarei comigo para as atividades que virão a seguir
depois da conclusão do curso.
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2-CARTOGRAFIAS SONORAS EM CACHOEIRA

Cachoeira é uma cidade do Recôncavo Baiano, onde sua musicalidade ecoa


por todos os cantos e em praticamente todos os meses do ano, tendo um calendário
preenchido com festejos e comemorações de variados tipos. O foco deste trabalho,
no entanto, só se direciona aos meses de Junho a Setembro, onde coexistiram
diferentes tipos de manifestações culturais, principalmente de cunho religioso,
captando sons de festas em terreiros, cortejos, procissões e saídas de grupo de
sambas.
Como método de captação do som, resolvi seguir alguns passos sugeridos
pela autora Lilian Nakahodo (2014), onde três principais métodos são adotados
quando se deseja criar uma cartografia sonora de algum lugar, são eles: o material
sonoro que deve ser captado do mundo real, a localização geográfica sendo inserida
na poética e o deslocamento físico como base da experiência.
Com isso, procurei informações sobre o que aconteceria de movimento
cultural durante esses meses, entrando em contato com as instituições e com
pessoas próximas. Estas informações começaram a abrir um leque de possibilidades
as quais descrevo mais demoradamente nos diários de campo. Neste ínterim,
começava também a escolha do formato dos áudios para comporem o mapa sonoro.
Inicialmente a possibilidade de preencher o mapa com entrevistas e arquivos de
áudios era a mais contundente, mas os grupos que eu ainda pouco conhecia, já
estavam com os seus próprios formatos estabelecidos e acabou por remodelar a
minha proposta para o que seriam as caminhadas sonoras (cortejos, procissões,
saídas) a base que estrutura este trabalho.
Sendo assim, é preciso agora discorrer um pouco sobre as soundwalks,
conceito que surgiu com o pesquisador Murray Schafer em seu livro A Afinação do
Mundo (2001), onde o ato de caminhar ouvindo os sons ao redor tornou se um
método para a catalogação e criação de paisagens sonoras, e que, neste presente
trabalho tem a forma de cortejos, procissões e saídas dos grupos musicais.
O conceito sobre as soundwalks ganharam novos aspectos ao longo dos
anos, se moldando a diferentes tipos de projetos artísticos, como é descrito abaixo.

Nos dias de hoje essas caminhadas sonoras se diversificavam quanto ao


método de produção, às intenções e processos significativos que compõe
este mapeamento [...] o que está em jogo em todas essas manifestações e
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experiências é o processo de mapear e criar territórios afetivos e


imaginários, através da escuta, engajada com a experiência física.
(NAKAHODO, 2014. Pág.22)

As saídas do grupo de samba Esmola Cantada, o cortejo do Samba de Dona


Dalva, e a Procissão Festiva na Boa Morte, com a presença das filarmônicas Lyra
Ceciliana e Minerva Cachoeirana, são as soundwalks, que conceitualmente é o
caminhar com os ouvidos atentos a paisagem que se mostra pelo caminho. Essas
soundwalks são registradas através das captações sonoras. Elas guiarão o ouvinte a
um aprofundamento das paisagens sonoras e geográficas da cidade, onde através
da intromissão de ruídos, se percebe a profundidade do ambiente acústico e a
localização geográfica quando se ouve, por exemplo, os sons abafados de uma casa
pequena ou a amplitude de uma grande praça quando certo grupo ali faz o seu
percurso.
A geografia da cidade de Cachoeira, com suas ladeiras íngremes que levam
para os bairros mais afastados do centro e, ao mesmo tempo, com ruas extensas
que cortam toda a cidade, foi parcialmente explorada nos períodos de captação
deste trabalho. O cortejo e a procissão da Boa Morte praticamente foram conduzidos
pelas ruas do centro onde não há nenhum tipo de elevação, com exceção do Largo
D’Ajuda, um pouco mais elevado do que as outras ruas ao seu redor. As saídas da
Esmola Cantada juntamente com a festa de caboclo no terreiro Ogodô Dey foram
exploradas nos pontos mais elevados da cidade, onde a paisagem sonora ganha
mais riqueza em sua ambiência e perde um pouco dos ruídos indesejados do centro
da cidade.
Murray Schafer, em seu livro A Afinação do Mundo (2001), pesquisa também
as transformações na sonoridade dos espaços, principalmente na zona urbana, onde
a presença de veículos é cada vez mais constante, e cria um termo particular para
abordar esses fenômenos de transformação do que ele viria a chamar de
soundscape (paisagem sonora), que segundo ele:

É todo e qualquer evento acústico que compõe um determinado ambiente,


sendo que o termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções
abstratas, como composições musicais e montagens de fitas, em particular
quando consideradas como um ambiente. (SCHAFER, 1997. P.366)

Com as três saídas do grupo de samba Esmola Cantada pude explorar um


pouco algumas paisagens sonoras de localidades afastadas, como os bairros do
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Caquende, Faceira e Alto do Cruzeiro, tão diferentes do caos urbano do centro da


cidade, onde se pode notar nos áudios captados, uma relevante presença de ruídos,
seja vinda de automóveis com o grave de seus motores e o agudo de suas buzinas,
ou da rádio poste local. Segundo Giuliano Obici (2006, p.96), situações como estas
vêm desapropriar nosso território de escuta, tomar nossas mentes e nos fazer
participar de assuntos, sons, conversas e notícias que não nos interessam. Se por
um lado, a música desterritorializa o ambiente, criando outro território sonoro aos
nossos ouvidos, por outro lado, toda a sonoridade que invade os silêncios entre a
música e o território sonoro vigente de certo lugar (ruídos, chiados, etc) também a
desterritorializa, invadindo-a, levando-a para outros territórios. Este seria, segundo
ele, o princípio da arte, desterritorializar com velocidade para trazer outros mundos
possíveis à tona.
Os cortejos, as procissões sonoras e as saídas que só acontecem a cada
ano, e especificamente nestes dias, mudam a paisagem sonora da cidade, movem
as pessoas, provocam o estranhamento para quem ainda não está habituado com
as tradições festivas que permeiam o calendário. Guatarri, em seu livro Caosmose
(1992), escreve sobre ritornelos existenciais, como sendo aqueles que delimitam um
espaço funcional bem definido, tanto a subjetividade do eu (o narrador da TV, do
rádio) com a do coletivo (rituais, corporações do trabalho, festividades) que marcam
tempo e cristalizam agenciamentos encarnando e singularizando territórios
existenciais. Estes ritornelos operam módulos catalisadores “que nos mergulham na
tristeza, ou então, em um clima de alegria e de animação” (SCHAFER, 1992, p.27).
Podemos analisar então o território dos terreiros de candomblé pesquisados
por uma vertente de potência sonora, movida pelos tambores, onde se tem uma
demarcação de território, e que serve também como forma de chamar as pessoas ao
redor para o ritual. Assim, o toque destes tambores tem a qualidade de não só
apresentar o que está sendo cultuado, mas, também, de operar com este módulo
catalisador que é a música como instrumento de movimento dos corpos.
Sendo assim, pode-se ter uma breve ideia de como os sons, presentes
nessas paisagens sonoras, tem as propriedades acima citadas e, além disso,
quando captados por aparelhos eletrônicos, podem ser arquivados e contemplados
futuramente como objeto de pesquisa, ou para lembrar-se do tempo em que tais
manifestações culturais aconteceram.
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3-USO DE PLATAFORMAS LIVRES E DE COMPARTILHAMENTO

Este trabalho tem também o objetivo de divulgar uma crescente criação de


mapas virtuais servindo de inspirações artísticas para compor micronarrativas, que
promovem a compreensão de lugares ao disponibilizarem os dados captados por
cada pessoa ou comunidades inteiras, seja para contar uma história ou para resolver
questões socioculturais. Como exemplo, a conservação sonora de um patrimônio
imaterial que possui escassas gravações e poucos incentivos vindos dos órgãos
governamentais.
A plataforma virtual archive.org foi uma das opções para o armazenamento
de todo material sonoro contido nesta pesquisa, pelo motivo de ser uma organização
sem fins lucrativos, dedicada a manter um banco de dados com fins de
compartilhamento dos arquivos com o uso de licença Creative Comonns, onde é
possível definir essa licença com direitos aos autores serem creditados, proibindo o
seu uso comercial e qualquer alteração sem a devida permissão. O objetivo dessa
licença é não permitir que isso ocorra com os arquivos, já que a intenção aqui é o
compartilhamento da cultura e não seu uso para fins próprios.
Assim, foi criado um perfil dentro desta plataforma intitulado Cartografias
Sonoras, onde se poderão ouvir todas as paisagens sonoras das manifestações
culturais que houve na cidade de Cachoeira durante o período da realização deste
trabalho, e se a intenção do visitante for para aprofundar sua pesquisa, ou
compartilhar deste conteúdo, há diversos formatos disponíveis para download como
nos mostra mais detalhadamente a imagem abaixo (imagem 01).
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Imagem 01: trecho de uma página archive.org do projeto Cartografias Sonoras. Ao lado direito está o quadro que
mostra as opções de diferentes formatos de arquivo para download.

Como se pode notar na imagem 01, o esquema estabelecido como título,


autoria, data de publicação, tipo de licença, palavras-chave e breve descrição
compõem uma rica gama de informações essenciais para que um futuro pesquisador
possa utilizar e/ou compartilhar em seus trabalhos. È importante ressaltar também,
que o arquivo ficará catalogado na coleção Community Audio, onde os áudios de
diferentes projetos espalhados pelo mundo estão armazenados.
Segundo nos descreve abaixo o pesquisador, Ricardo Campos:

a criação de uma biblioteca digital assume implicitamente a estrutura de um


típico sistema empresarial: captura, armazena, disponibiliza informação [...]
Esses sistemas de informação baseados na web, os web archivings
aparecem assim como uma alternativa no contexto da utilização das
tecnologias por parte das bibliotecas que inicialmente usavam para a
simples digitalização de recursos simples (CAMPOS,2007, p.02).

Já o umap, é a interface onde todos esses arquivos da pesquisa são


demonstrados de uma forma interativa e onde também o internauta poderá acessar
com precisão cada som gravado ao longo da extensa geografia da cidade. No umap,
o internauta poderá também identificar onde está localizado cada ponto cultural. Os
terreiros, casas de samba e as filarmônicas, é o produto inicial deste trabalho, que
tem a intenção de se propagar com futuras contribuições de outras pesquisas que
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poderão ser realizadas por diferentes pessoas, bastando somente enviar os arquivos
para o e-mail que será deixado nos créditos do mapa virtual.
A plataforma virtual umap foi criada utilizando os mapas já criados pela rede
de contribuidores openstreetmap, onde se tem feito uma constante atualização nos
mapas de todo o mundo colaborativamente e sem fins comerciais. Assim como o
archive.org, o umap também permite a criação de licenças Creative Commons e
desta forma contribui para que todo o corpo deste projeto seja creditado para as
instituições a que pertencem os áudios. No nosso caso os sambas, terreiros e
filarmônicas.
Os módulos oferecidos pela Creative Commons podem resultar em licenças
que vão desde uma abdicação quase total, pelo licenciante, dos seus direitos
patrimoniais, até opções mais restritivas, que vedam a possibilidade de criação de
obras derivadas ou o uso comercial dos materiais licenciados.
A interface do umap é de fácil acesso, tendo a sua versão em português,
permite que qualquer pessoa que já tenha um cadastro no openstreetmap possa
criar o seu próprio mapa, com diversas cores, links de imagens, áudios e vídeos e
posicioná-los em seus pontos geográficos específicos. Abaixo, o mapa cartográfico
de cachoeira em fase final (imagem 02), sendo um projeto que visa futuras
contribuições sonoras.

Imagem 02: página virtual do umap onde foi criado uma cartografia sonora da cidade de Cachoeira com seus
respectivos pontos culturais.
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Como se pode observar na imagem 02, o mapa foi preenchido por linhas e
pontos de localização sinalizados com as cores verdes para os samba de roda,
amarelo para as filarmônicas e vermelhas para os terreiros. Através do mapa
também se pode analisar a geografia dos terreiros, estes localizados mais acima e
afastados do centro, enquanto que as filarmônicas presentes no centro da cidade e
os sambas de roda em pontos variados.
Clicando nesses pontos, abre-se uma janela lateral onde se poderão
acessar os áudios captados, além de uma imagem ilustrando a sua localização, uma
breve descrição de cada ponto cultural e um link da página web do grupo para que o
visitante possa conhecê-lo ainda melhor.

2-DIÁRIOS DE PESQUISA DE CAMPO

05 E 06 DE AGOSTO DE 2017
FESTA DE CABOCLO NO TERREIRO DE MÃE LÚCIA
RUA DA FEIRA, CACHOEIRA, BAHIA.

O terreiro de mãe Lúcia foi o primeiro que fiz a visita de campo, aproveitando
o momento de festa para conhecer o terreiro e os membros que prestam os
trabalhos aos orixás. Antes, fiz uma rápida visita e conversei com Gilmar, um dos
membros e filhos de Mãe Lúcia. Gilmar é quem conduziu um dos atabaques nas
festas que se seguiram. No primeiro dia de festa, dia 06 de Agosto, Fui na
companhia de um amigo, Caio Csermak, que está em Cachoeira na sua pesquisa de
doutorado. Ele havia me falado da festa e já me ajudara antes com o grupo de
samba de roda Esmola Cantada nas gravações da apresentação do grupo nas
festas juninas.
Ao chegar no terreiro, apenas conseguimos ficar no corredor, devido ao
terreiro, incrustado no alto do terreno e no meio urbano, ter um espaço limitado.
Enquanto isso várias pessoas chegavam para ouvir e ver as apresentações dos
caboclos e caboclas que já haviam começado os trabalhos. O toque dos atabaques,
do Gan (que parece uma espécie de sino largo, mas sem o badalo e tocado com
uma baqueta), ressoava por todo o terreiro impedindo qualquer intromissão de
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barulhos externos, mesmo o terreiro estando localizado ao lado de uma estrada com
muito movimento de carros.
Os cantos misturados aos toques dos atabaques eram expressivos e davam
energia para continuar noite adentro com as homenagens. Depois de um tempo,
levamos os presentes para dentro de uma sala pequena, mas toda coberta de folhas,
onde no outro dia, Mãe Lúcia receberia seus filhos de santo, abençoando-os e lhes
dando comida, bebida e charutos. Após isso, terminamos a nossa visita, mas no dia
seguinte soube que a festa adentrou a noite e durou até às 8 horas da manhã.
O Ritual seguia uma sequência de toques e cantos dos caboclos, que
ficavam próximos aos Alabês, que são os tocadores de atabaque, Cada caboclo se
aproximava discretamente dos tambores, fazia uma reverência e cantava sua
cantiga. Importante também de se destacar o número de cantigas que foram
executadas por cada um, numa noite inteira, o que demonstra a riqueza da
sabedoria oral deste povo.
No outro dia, chegamos as 15 horas da tarde e conseguimos um lugar
melhor para acompanhar o ritual. Pude sentir de perto o som das pisadas firmes e
compassadas dos caboclos dançando e cantando em homenagem aos seus orixás.
Ofereciam vinho tinto, paçoca e logo após um prato com arroz, carne e salada.
Enquanto isso, os caboclos e caboclas se revezavam em seus cantos e danças.
Os três atabaques, afinados respectivamente em tons médios, graves e
agudos, sendo eles chamados de run, rumpi e lé, davam o ritmo cadenciado em
sequências de batidas que neste terreiro são tocados com as mãos, acompanhados
pelo Gan e ainda duas tabuinhas, que eram batidas uma nas outras com as mãos,
dando ritmo as músicas. Depois de certo tempo assistindo ao ritual, resolvemos nos
despedir de Mãe Lúcia, que continuava na pequena sala recebendo seus filhos de
santo.
Neste ritual, como não tinha ainda nenhuma relação com o povo do terreiro
e em respeito as suas tradições, onde nem sempre o uso de gravadores e câmeras
são permitidos, resolvi apenas acompanhar o rito como observador.
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12 DE AGOSTO DE 2017
FESTA DE CABOCLO NO TERREIRO OGODÔ DEY
LADEIRA DA CADEIA, CACHOEIRA, BAHIA.

Subindo a ladeira da cadeia, rua em que moro há dois anos, mas que ao
longo deste memorial já me fez conhecer mais de sua cultura e dos saberes dos
mais velhos do que todo o período em que morei, encontram-se alguns terreiros,
dentre eles, o Ogodô Dey, onde nessa data, 12 de Agosto, se celebra a festa de
Caboclo.
A rua tem esse apelido (Ladeira da Cadeia), pois o nome oficial é Benjamin
Constant, pelo fato de começar ao pé da câmara municipal da cidade, onde
antigamente era uma cadeia, e daí se sobe uma ladeira bem íngreme, assim como
praticamente quase todas as ladeiras de Cachoeira.
A festa começou em torno das 21 horas. Fui desta vez com o gravador de
campo da Universidade, numa bolsa a tira colo, e modestamente antes do início do
culto, pedi a seu Theodoro, que é o pai de santo do terreiro, juntamente com a Mãe
Raílda, para que pudesse gravar um pouco do ritual, o que foi permitido depois da
sessão inicial.
O áudio captado tem 85 minutos de duração. Este é uma mescla entre as
conversas iniciais, a chegada de pessoas, crianças, os primeiros cânticos, que logo
são abafados pelo toque dos instrumentos de percussão. Os percurssionistas
inicialmente estavam improvisando com um tambor de som agudo e dois médios, A
falta do grave (que se chama Rum), deu ao rito um toque diferenciado, onde se pode
observar depois, com sua chegada, vindo do terreiro de baixo, do filho de Theodoro,
uma mudança singular na percussão, que fez com que eu abaixasse um pouco o
volume do gravador para que o som não fosse prejudicado pelas altas frequências
emitidas. Essa parte se dá entre o meio e o fim da gravação.
O ritual tinha elementos novos, diferente da ultima festa de Caboclo que fui,
na Rua da Feira semanas atrás. O vestuário das pessoas que incorporavam o
caboclo era diferente. Na festa anterior todos estavam vestidos como caboclos
boiadeiros, com roupas de couro e nesta ocasião, estavam apenas com o chapéu,
que Mãe Railda e mais alguns usavam, e mais alguns tecidos, de variadas estampas.
Mãe Raílda dançava em círculos, acompanhada de caboclos e caboclas,
alguns com tabuinhas, acompanhando o ritmo da percussão, e ela com um pequeno
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sino, que fazia um som compassado e agudo, mas não tão alto. Este som era o
único que tinha a qualidade de percorrer toda a sala, se aproximando e se afastando
do meu gravador, criando profundidade única, diferente dos outros instrumentos de
percussão, que sempre ficavam ao fundo da sala, fixos. Quando mãe Raílda ia para
uma sala reservada, outra pessoa cuidava de tocar essa sineta, mas desta vez,
sentada na parte superior direita da sala.
Os Caboclos e Caboclas se revezavam cada vez mais. Depois de meia hora
de culto, já se tinha na chamada, gira de caboclo, mais de sete pessoas, todas
dançando e esperando a sua vez de cantar as canções que parecem infinitas, já que
a festa não tem hora para acabar.
Pelo áudio gravado, pode-se com atenção escutar alguns desses cânticos,
mas como gravei de forma muito reservada, para não desviar a atenção das
pessoas que ali estavam e em respeito ao culto, existe alguma dificuldade de ouvir
claramente. Mas o que mais abafa esse canto certamente são os instrumentos de
percussão e o toque do sino e da sineta. Pois são tocados de uma forma tão intensa
que é muito difícil de distinguir outros sons. Mas pelo registro, foi uma bela
experiência. Os terreiros costumam ter muitos atributos visuais que merecem
destaque, mas nesta ocasião, a escuta é o principal foco. As repetições do ritmo dos
tambores com o compasso da sineta e do sino dão a forma do conteúdo, permitindo
apenas algumas breves análises nos intervalos de uma cantiga ou na troca de um
tocador de percussão, ou nas pausas para beber vinho tinto, ou comer a ceia, com
frango, farofa, arroz e salada.
Não acompanhei o restante do rito, pois pela manhã bem cedo, ali mesmo
naquela ladeira, descendo, haveria a primeira saída do grupo de samba de roda
Esmola Cantada, onde eu acompanharia o seu percurso saindo da sede do grupo
até as comunidades do Caquende e Faceira, o que abordarei um pouco mais logo
adiante.
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DOMINGO, 13 DE AGOSTO DE 2017.


PRIMEIRA SAÍDA DA ESMOLA CANTADA:
DA SEDE ATÉ AS COMUNIDADES DO CAQUENDE E DA FACEIRA.

Domingo de manhã, depois de uma noite de festa de Caboclo no terreiro


Ogodô Dey, acordo cedo e já vejo de minha janela alguns integrantes do samba de
roda Esmola Cantada na calçada a conversar e esperando o restante dos membros
para a primeira saída do grupo esse ano.
As saídas da Esmola Cantada foram divididas em três domingos, sendo
essa a primeira. Cada domingo o grupo sai pedindo esmola e cantando nas ruas, em
diferentes bairros da cidade de Cachoeira, saindo sempre da sede da AMELC
(Associação dos Moradores Estáveis da Ladeira da Cadeia) localizada na Rua
Benjamin Constant, com a intenção de reunir fundos (as esmolas) para a realização
da festa em homenagem a Santa Cruz.
Enquanto o grupo se reúne, vou ajeitando os equipamentos e me
preparando para a captação dessa saída que prometia também uma nova forma de
me relacionar com a cidade. O bairro do Caquende é uma rota que pouco conheço,
foi uma chance para conhecer um pouco mais, agora não só as suas ruas, mas
também seus moradores, suas casas, seus quintais.
Chegando à sede, vejo o grupo tomando o café e animados com o dia
(apenas começando) e muita coisa para se fazer. Eles, claro, conhecem o trajeto e já
estavam preparados para o que viria. Eu, um mero iniciante, receberia as
informações como quem acaba de chegar à cidade, e sofreria pelo despreparo
técnico e físico. Pois o grupo só retornaria aquele local novamente quase que no fim
do dia.
Às 9 horas da manhã, finalmente o grupo estava completo, com homens e
mulheres, grande parte já com seus cinquenta a setenta anos de idade,
acompanhados de instrumentos variados. Os homens com pandeiros, triângulo,
surdo, atabaque, viola e cavaquinho; acompanhados das mulheres com tabuinhas,
(aquelas mesmas presentes nas festas de caboclo), se reúnem ao redor de uma
capelinha que fica ao lado da sede, mais conhecida como Santa Cruz. Essa
pequena capela é um anexo da AMELC e de lá origina o nome da Festa que
acontecerá em Setembro.
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Esse será o ponto de partida para a captação do áudio, o grupo faz a


primeira oração em frente a Santa Cruz e depois disso sai em uma espécie de
peregrinação alegre a pedir esmolas pelas ruas. Abaixo, um trecho da oração que foi
cantada em toda casa que a Esmola Cantada entrou. Durante toda a gravação do
áudio, essa oração é a marcação para que o ouvinte saiba identificar todas as
paradas que foram feitas, principal motivo das saídas:

Nos abre a porta devoto


Nos abre a porta devoto
Que a Santa Cruz vai chegando
Pela família da casa
Ele no céu tá rezando
Pela família da casa
Ele no céu tá rezando
Coro:
Tirando a Esmola
Com muita alegria
Louvores no céu e na terra
Quando chegar o seu dia
Louvores no céu e na terra
Quando chegar o seu dia

Descendo a ladeira da cadeia, os primeiros sambas são entoados, daqui a


duas semanas o grupo pedirá esmola para as pessoas dessa rua, mas hoje ela
apenas serve de caminho para o Caquende. Percebo isso, pois o grupo é convidado
a entrar na primeira casa, ainda na rua da ladeira da cadeia, mas um dos integrantes
explica que fará a visita nas saídas que viriam adiante, dia 27 de Agosto para ser
mais preciso. E tudo isso descendo a ladeira, conversando e cantando.
Esse foi o espírito da Esmola Cantada durante todo o trajeto, é de se invejar
a disposição que o grupo demonstraria durante o percurso, foi uma das primeiras
demonstrações de fé e vontade para que aquilo tudo não desaparecesse, pois um ia
animando o outro, revezando canções, trocando conversas, risadas e encontrando
parentes e conhecidos pelo caminho.
Enquanto o grupo descia a ladeira e passava em frente a Câmara Municipal,
o espaço era amplo, o som se expandia e ganhava os primeiros elementos urbanos,
que permearia a partir dali a paisagem sonora com veículos como carros e motos,
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com o grave de seus motores e o agudo de suas buzinas. É frequente a aparição


desses elementos, pois o grupo segue no meio da rua, e volta e meia tem que
desviar desses carros, também pela cidade possuir calçadas pequenas. Às vezes
pessoas conhecidas estão de carro, dão esmola, buzinam para um conhecido que é
membro do grupo.
Chegando à rua Inocêncio Boaventura, que liga o centro da cidade ao bairro
do Caquende, o grupo faz a sua primeira visita. Como é a semana da festa da Boa
Morte, as pousadas estão cheias de hóspedes que vem de fora para acompanhar as
festas, e claro que os Sambas de Roda são um dos principais atrativos. Sendo
assim, a visita a cada pousada dessa rua é feita em clima de empolgação por parte
dos visitantes, e a pousada do Conjunto do Carmo é a primeira de muitas paradas
que se desenrolaria no decorrer do dia.
A partir dessa primeira entrada, as camadas sonoras captadas pelo gravador
começam a mudar, ganhando elementos de som abafados pelos corredores e salas
pequenas, o que viria a acontecer nas outras pousadas também, como um trajeto
onde o som se contrai, torna se mais alto e abafado e de repente se liberta
novamente, seja na saída ou em alguns interiores largos como no caso dos quintais
das pousadas e de algumas casas.
Depois desse percurso pela rua Inocêncio Boaventura, chegamos a rua do
Caquende, onde o grupo visita o primeiro bar do trajeto. Nos bares, como se sabe, o
clima é de euforia ainda maior e é distribuído não só a esmola, como refrigerantes e
cerveja, para que a animação se torne ainda maior estrada a fora, e realmente as
boas risadas, o samba e a cerveja são, em minha opinião, a receita e o combustível
para que a animação do grupo nunca cesse.
Depois de visitar mais um dos bares rua acima, o grupo entra nas primeiras
casas de cristãos devotos, que vão aos poucos aparecendo nas janelas e
convidando o grupo para entrar em suas casas. Em algumas delas, pude notar,
especialmente nessa rua que já faz parte do bairro do Caquende, que existem
devotos a São Cosme e Damião. O grupo ciente disso, não só faz a oração
costumeira em todos os locais visitados, mas também uma oração aos santos, que
ganham a devoção principalmente das mães cristãs de filhos gêmeos, ou que
nascem no dia da Festa. Abaixo um trecho da oração:
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São Cosme mandou fazer


Duas camisinha azul
São Cosme mandou fazer
Duas camisinha azul
No dia da festa dele
São Cosme quer caruru
Vadeia, Cosme, vadeia
To vadiando, vadeia...

O samba agora segue pela Rua do Rosário, no mesmo ritmo e empolgação


do começo. Talvez agora ainda mais empolgados, pelos petiscos, pela cerveja, pela
boa companhia e pela música, que é o motor principal do grupo. Entrando em casas,
bares, ele segue, agora até a última rua do percurso, a Rua Doutor Geraldo Simões
Santos, uma rua longa, mas que lá quase no seu fim há um monumento que foi
construído a muitos anos atrás com uma grande cruz, motivo de peregrinação.
Quando lá cheguei, percebi o porquê das três saídas do grupo serem por esses
caminhos; todos eles possuem um cruzeiro. Este foi o primeiro, na semana seguinte
a esmola caminha em direção a um bairro chamado Alto do Cruzeiro, antes
desconhecido por mim, mas com um nome que sugere que o seu percurso até lá
será mais difícil.
Depois das orações no cruzeiro localizado no bairro da Faceira, o grupo
volta pelo mesmo caminho, mas continuando a pedir as esmolas, cantar, dançar e
tocar o samba. Na volta alguns trechos do percurso foram alterados, entrando numa
ruazinha aqui, outra ali, e depois de voltar do Caquende, o grupo seguiu em direção
a rua 25 de Junho, que já estava se enchendo de gente para os festejos da Festa da
Boa Morte. Ficaram por lá praticamente mais uma hora e depois subimos todos a
Ladeira da Cadeia. Já eram quase 16 horas da tarde, eu exausto e os integrantes do
grupo nem tanto, ainda sorrindo e cantando, todos eles praticamente com o dobro de
minha idade.
Foi servido um almoço, com macarrão e frango, na sede do grupo. Com a
fome que me encontrava, não poderia dispensar. Depois disso fui embora e deixei
alguns poucos por lá, ainda com as risadas e as conversas que tinham fôlego para
anestesiar o cansaço do corpo.
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15 DE AGOSTO DE 2017
PROCISSÃO FESTIVA EM HOMENAGEM A NOSSA SENHORA DA GLÓRIA
FILARMÔNICA LYRA CECILIANA E MINERVA CACHOEIRANA
SAINDO DA IGREJA DA MATRIZ ATÉ A IRMANDADE DA BOA MORTE

Numa terça-feira, aproximadamente ao meio dia, cheguei até a Igreja da


Matriz, onde já se ouvia ao longe o burburinho de pessoas em volta da calçada e
ocupando praticamente toda a rua. Essa procissão festiva atrai gente de todo canto
do Brasil e do mundo. Por isso esse dia em especial, onde as duas filarmônicas da
cidade se encontram para guiar a procissão, foi uma excelente oportunidade para
um registro de uma paisagem sonora tão rica em elementos sonoros.
Dentro da igreja, onde era impossível adentrar, devido o número de pessoas
presentes, se dava os últimos passos para que começasse a procissão. O povo de
fora se animava entre casos e risadas, todos em tom de voz muito alto, pois era
impossível ouvir algo de alguém ali que não fosse num tom de voz elevado. As duas
filarmônicas já a postos, cada uma de um lado da rua, ensaiavam suas posições,
dando as últimas notas antes da saída da procissão.
Finalmente, com o badalar dos sinos da Igreja e a agitação das pessoas, o
andor de Nossa Senhora da Glória começa a sair da igreja e ligo o gravador me
espremendo naquela multidão. Fogos de artifício estouram no ar e também na
captação do meu gravador de momentos em momentos. Essa seria também uma
presença constante nas saídas e procissões que gravei. A dificuldade de me
locomover entre as pessoas e procurar um bom lugar para a captação fez com que o
começo não fosse tão próximo das filarmônicas como eu gostaria, mas aos poucos
fui me aproximando e conseguindo uma melhor captação finalmente quando o
cortejo sai da Rua Ana Nery. Esta rua é estreita para que se possa locomover
livremente com tantas pessoas acompanhando. Mas ao chegar à praça dos correios,
já se abre mais espaço e posso finalmente manejar o espaço como pretendido.
As filarmônicas vão se revezando ao longo do caminho. Inicialmente a
Minerva Cachoeirana executa suas primeiras músicas, e depois é a vez da Lyra
Ceciliana. São quatro apresentações de cada filarmônica nesse revezamento e a
multidão que segue faz a marcação com o aplauso, para que a próxima recomece.
No áudio, ouve-se claramente essa marcação, com gritos e palmas sendo abafados
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pelo toque imponente dos metais, que são os instrumentos de sopro, posicionados a
frente de cada grupo.
Nessa caminhada, tive tempo de percorrer todas essas diferentes camadas:
os sinos no início da procissão, o burburinho das pessoas como uma camada que
preenche todo o áudio nos momentos de pausas das filarmônicas e duas partes das
mesmas filarmônicas que são os instrumentos de sopro na frente e os tambores ao
fundo. No áudio, é de se notar que os trompetes, clarinetes, saxofones, trompas e
tubas preenchem toda a camada quando me posiciono a frente do grupo. Às vezes
está presente no áudio apenas os instrumentos da bateria, como o bombo, caixas
de rufo e pratos. Essa estratégia que tive no momento da captação permite que o
ouvinte possa aproveitar mais o todo de uma filarmônica que está se movendo pelas
ruas, em fila, incapacitando uma captação de todos os instrumentos
simultaneamente e com qualidade.
Assim, a procissão já se aproxima do primeiro casarão que é a sede da Lyra
Ceciliana, localizada na Rua Monsenhor Tapiranga, ao lado do CAHL (Centro de
Artes, Humanidades e Letras). Nesse momento, o grupo faz uma parada, e
executam de quatro a cinco peças do seu repertório. O mesmo aconteceria logo
mais adiante, quando a procissão vira a esquina em direção da sede da Minerva
Cachoeirana, na rua Conselheiro Virgílio Damásio.
Finalmente a procissão chega ao seu destino, que é a sede da Irmandade
da Boa Morte, onde a própria Minerva apresenta os últimos toques que se pode
ouvir no áudio. Depois disso, o burburinho volta a dominar por um momento, mas
uma outra camada sonora, também de pessoas dentro da sede, faz com que eu
posicione meu gravador para dentro, onde é possível ouvir o padre fazendo algumas
orações e os fiéis respondendo com um “amém” que ecoa por todo o casarão. Assim
sendo, acho um momento peculiar para encerrar as gravações e me preparar para,
logo mais acompanhar a saída do Samba de Roda Suedrieck, o samba de Dona
Dalva, que teve a participação do grupo mineiro Samba de Terreiro.
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15 DE AGOSTO DE 2017
CORTEJO DO SAMBA DE DONA DALVA NA FESTA DA BOA MORTE
PARTICIPAÇÃO DO GRUPO MINEIRO SAMBA DE TERREIRO

Momentos após a procissão festiva em homenagem a Nossa Senhora da


Glória, com a participação das duas filarmônicas da cidade, aconteceu, por volta das
três da tarde, o cortejo do Samba de Dona Dalva, sendo conduzido sonoramente
pela participação do grupo mineiro Samba de Terreiro, que é composto por
percussionistas, com viola, trompete e dois Djembes (membranofones de origem
africana da Guiné, pertencentes a família dos tambores de taça. Tem um corpo de
madeira esculpido em forma de cálice, com esticadores a toda volta) e pelas
sambadeiras, que traziam em suas mãos um novo instrumento, talvez inventado
pelo próprio grupo. Este consiste num balde de tamanho médio, de metal, todo
furado e preenchido esses furos por parafusos intencionalmente um pouco
afrouxados, para dar um som parecido com o de um grande chocalho de metal
(imagem 03). Tanto esteticamente quanto sonoramente, o instrumento era destaque
na linha de frente do cortejo, seguido pelo samba de Dona Dalva, e logo ao fundo, a
viola e o trompete seguido dos djembes, davam um ritmo empolgante ao cortejo.
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Imagem 03: Apresentação das sambadeiras no cortejo de Dona Dalva com os baldes sonoros.

O percurso é relativamente pequeno, da frente da Casa de Samba de Dona


Dalva até o largo da ajuda, entrando pela ladeira de mesmo nome. São poucos
metros, mas as camadas sonoras que foram captadas, vão desde a reverberação da
estreita Rua Ana Nery, com seus altos casarões, pouco distantes um dos outros, até
a Praça Doutor Milton, onde o som se expande, mas também é invadido por outras
camadas sonoras, como veículos automotivos e som mecânico.
Subindo a Ladeira d’Ajuda, a empolgação cria corpo e nos faz mais
próximos um dos outros ao nos espremermos para caber tanta gente. O som
também chega mais calorosamente aos ouvidos. Nesse momento começam, além
dos toques, cantigas populares e sambas, guiados pelas palmas, pelos baldes
sonoros e pela percussão cada vez mais animada. O grupo de percussionistas
tocam e cantam. Um pouco mais a frente as sambadeiras também começam a
cantar seus sambas, chegando ao Largo d’Ajuda e abrindo a roda para o samba
começar de vez, com o público todo ao redor e no horizonte o por do sol, o grupo se
despede com seus últimos passos, na espera do próximo ano.
O Largo d’Ajuda é rodeado por casas, muros de quintais, pela capela e pela
Irmandade da Boa Morte, um ambiente perfeito para uma roda de samba, sendo um
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pouco mais elevado do que suas ruas vizinhas, faz com que seu som se expanda
mais facilmente, e para quem está nele, faz com que o corpo sinta a música mais
perto, sendo acolhedora.
Como morador da ladeira da cadeia, desci algumas vezes olhando para o
largo e ouvindo nitidamente o som que ali se fazia, sendo que a distância entre
esses dois locais é bem relevante.
Mais tarde, aconteceria a participação da Esmola Cantada no palco da festa
da Boa Morte nesse mesmo local, mas não consegui gravar nem participar, pela
exaustão de um dia cheio, festivo e pela falta de suporte técnico.

20 DE AGOSTO DE 2017
SEGUNDA SAÍDA DO GRUPO ESMOLA CANTADA
MORUMBI E ALTO DO CRUZEIRO

Na segunda saída do grupo de samba Esmola Cantada, já estava mais


habituado e conhecendo um pouco melhor os integrantes, que desde o início
sempre foram bem atenciosos e ficaram muito a vontade mesmo sabendo que
estavam sendo gravados. O clima era de festa como sempre, pois o trajeto desta
vez não era tão simples como o outro, já que a missão final ficava num dos pontos
altos que a geografia cachoeirana contém.
A saída se deu entre as nove e dez da manhã, descendo primeiramente a
ladeira do Orobó, localizada ao lado da Santa Cruz e da associação de moradores.
Neste percurso já se nota um som mais reverberante por conta de ser uma ladeira
com casas muito próximas umas das outras e de tamanho mais elevado. É comum
notar nesta ladeira que grande parte das casas tem mais de um andar. Assim o som
se manifestou de forma reverberante e ao entrar nas casas, mais abafado. Após a
entrada e a reza em algumas casas da ladeira, o grupo desce para a Praça do
Jambo, em direção a Rua Doutor João Vieira Lopes, que dá acesso a Praça dos
correios onde o grupo “saiu” um pouco da rota e fez uma visita na Rua Ana Nery a
casa de samba de Dona Dalva, de corredores estreitos que dão para um quintal
aconchegante onde o samba de roda rolou com motivo de alegria entre os
integrantes e os visitantes que lá estavam no momento.
Depois disso, o grupo seguiu em direção a Rua Durval Chagas, onde fica
localizada a Santa Casa da Misericórdia e o Hospital de Cachoeira, essa rua estreita
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também tem um formato parecido com a da ladeira do Orobó no que se referem às


casas próximas umas as outras e de dois andares, deixando o som do samba de
roda mais reverberante e próximo. Nesta rua fizeram visitas em duas ou três casas
de senhoras devotas também de São Cosme e Damião, entoando a oração ao seu
santo protetor.
Indo em direção ao bairro da Pitanga, mas só de passagem, o grupo vai
descendo um pouco as ruas, para depois a longa subida íngreme da ladeira da rua
Manoel Vitorino, uma das mais íngremes da região. Neste trecho paro um pouco e
capto a fluência de um dos córregos que corta a cidade, influenciando a paisagem
sonora, ou mais claramente falando, o samba de roda se misturando a fluência da
ambiência sonora local. Entrando nas ruas dos artistas o grupo ainda faz uma visita
a residência de Dona Dalva, mais uma devota de São Cosme e Damião, onde o
grupo reza as orações e se mantém um pouco mais conversando e comendo alguns
petiscos.
Após isso, o grupo segue em frente e antes da subida da ladeira, outra
parada num bar, onde são oferecidas comidas e bebidas e o grupo começa uma
animada roda de samba, cantando e tocando um repertório vasto e riquíssimo, que
não deixou ninguém sem sambar.
Voltando aos ritos religiosos, o grupo segue a penitência ladeira acima. Por
volta das 13hrs da tarde, começa a subida. Nesta ladeira o ambiente é mais aberto,
e o som se propaga. As pausas entre uma casa ou outra é que dão um momento de
silêncio nas ruas num dia de domingo. Lá em cima, antes de o grupo entrar por
outras ruas, agora já pertencentes a outro tipo de paisagem sonora, longe dos ruídos
do centro, está situado o Alto do Cruzeiro, uma pequena comunidade que parece
tranquila nas ruas, batendo papo, aproveitando o dia de folga e um número extenso
de crianças a brincar em suas ruas recentemente calçadas.
Seguindo numa espécie de zigue-zague o grupo finalmente volta a subir
uma pequena rua e chega no alto, ao lado da estação de tratamento de água, um
cruzeiro construído por mãos devotas, de aparência simples, mas com seu poder de
atração e prova de fé.
Andar com aquele grupo de maioria beirando aos sessenta, setenta anos de
idade, e ver a força e o sorriso nos olhos de quem completou mais uma etapa em
seu caminho de devoção foi revigorante para mim, já que neste dia estava com uma
virose que me deixou um pouco enfraquecido. Mas tudo valeu a pena ao chegar lá
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em cima, o visual, o conhecimento de uma parte de Cachoeira que nunca


conheceria se não fosse essa pesquisa, o samba de roda e ao ver em volta a fé
daquelas pessoas, que com toda a dificuldade e o desgaste do tempo não
desistiram. A partir daqui resolvi encerrar a captação de áudio, que já se somavam
mais de 3 horas, e resolvi descer junto ao grupo uma extensa escadaria que daria
acesso ao ponto inicial da Cidade, na entrada do Bairro da Pitanga, achando que
dali o grupo iria direto de volta para a sede. Mas pelo visto o samba não tinha hora
para acabar e por conta dessa virose resolvi deixar o grupo, já as 18 horas ainda na
Rua Santo Antônio, onde daria acesso novamente a ladeira do Orobó e
consequentemente a sede na Ladeira da Cadeia.

27 DE AGOSTO DE 2017
SAÍDAS DA ESMOLA CANTADA
LADEIRA DA CADEIA

Na última das saídas, do grupo de samba Esmola Cantada, não poderia


estar de fora do roteiro a rua, apelidada de Ladeira da Cadeia, onde praticamente
todos os integrantes do grupo residem, inclusive este que vos escreve, motivo este
também que foi de bastante relevância na confecção e escolha deste trabalho.
Como já foram descritas nas outras saídas, o processo de organização das
saídas, suas canções e orações, ainda também um pouco da paisagem sonora de
cada região, deixo aqui para descrever os pontos que me chamaram a atenção e
para quando o leitor, começar a ouvir os áudios captados, terem uma amostra de
todo esse repertório de sambas populares, já que esta ultima saída tiveram mais de
4hrs de gravação, compartilhando este extenso repertório e adicionando outras
surpresas que o caminho concedia.
Neste dia de domingo, último de doações da esmola para o grupo organizar
a festa principal, que será realizada na sede e na capela da Santa Cruz no dia 17 de
Setembro, particularmente se cria um clima de fim da peregrinação e começo dos
preparos festivos. No momento presente, um clima de empatia por todos os
membros que nesta rua residem.
Convido o grupo já em seus primeiros passos na ladeira, a visitar a minha
casa e cantar e rezar para a divina Santa Cruz. Este momento foi pleno de
envolvimento entre o “objeto” da pesquisa e o pesquisador, onde me encontro com a
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cruz de madeira que é dado para cada dono ou dona de casa segurar enquanto se
cantam e pedem a esmola e na outra mão o gravador, captando o momento agora o
mais próximo possível, no clima onde envolveu também a emoção de estar
acompanhando o grupo e já habituado com o processo.
Depois disso o grupo subiu até o fim da ladeira, continuando até o alto da
ladeira, num momento onde já se não vê mais moradias e sim uma paisagem mais
bucólica, com uma estrada antiga de chão batido que dava acesso a comunidade de
Belém. A partir disso o grupo retorna ao caminho de volta, mas agora passando por
ruas pequenas, que não imaginava que existiam por ali, e que abrigava um povo de
devoção calorosa, em casas pequenas e aconchegantes, onde numa delas aparece
a figura de uma senhora que já começa a entoar sambas que o grupo até então não
se lembrava. Esta senhora foi parte importante da jornada nesta última saída da
Esmola Cantada, pois mostrou o quanto é rica a sabedoria oral deste povo que
sempre teve o samba de roda correndo em suas veias, mesmo que sua orientação
religiosa seja católica ou do candomblé, todos são devidamente respeitados e as
visitas do grupo não são negadas. Voltando a falar desta senhora, peço que o leitor,
ao ouvir a extensa gravação presente neste trabalho, que ouça com atenção para
que não deixe escapar a oportunidade de conhecer estas canções que oralmente
estão espalhadas pelas ruas pequenas e as vezes distantes do centro de Cachoeira.
Termino aqui este diário de campo, resumindo o quanto foi satisfatório e
enriquecedor conhecer esses movimentos e organizações sejam os sambas de roda
ou terreiros de candomblé, os seus bairros, suas ladeiras, sua geografia em geral,
em especial a sua sonoridade, e sua manutenção com a presença de jovens que
sempre acompanharam os grupos durante toda essa pesquisa.
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CONCLUSÕES

Nesta conclusão do processo gostaria de salientar o apontamento de alguns


processos na confecção e ideia de criação do trabalho, sabendo-se que se trata de
uma pesquisa com poucas referências, e quase que pioneira em se tratando de um
produto para conclusão do curso de Cinema e Audiovisual, principalmente por se
tratar de um produto sonoro, o que há escasso envolvimento por parte destes dez
anos de criação do curso, onde a maioria dos trabalhos tem a imagem e o vídeo
como principal fonte de pesquisa, e quando a referência se mostra sonora, ela
sempre está atrelada ao campo visual.
Construir um mapa sonoro da cidade de Cachoeira não é tarefa fácil, o
campo de pesquisa tende a ser extenso e de múltiplas facetas. Para um estudante
que conviveu e captou vários destes momentos, ainda foi de extrema dificuldade
elaborar um projeto onde todos os pontos culturais fossem envolvidos. Onde
inicialmente foi a ideia original, mas devido ao desconhecimento de como se daria
conta de tantos setores, procurei me moldar ao que estava sendo ofertado nos
meses em que seguiram o semestre da conclusão do curso.
Assim foram sendo criadas estratégias dentro do calendário festivo da região.
A Ideia inicial era a de construir também um banco sonoro com entrevistas de cada
setor, mas como disse acima, o calendário festivo foi moldando a pesquisa até se
tornar o que considero um início de um mapeamento para futuras pesquisas, onde
se tem uma breve ideia de como são as saídas da esmola cantada, as festas de
caboclo de alguns terreiros e as procissões e cortejos realizados na semana de
devoção a Nossa Senhora da Boa Morte.
Certamente a extensão do calendário permitirá que o mapa se expanda,
mas como conclusão deste momento, as captações realizadas já me deram aporte
para a construção deste memorial. Sendo assim, tenho a impressão de que o
trabalho possa render frutos no futuro e também análises críticas, onde através
delas o autor possa melhorar a forma como criará as próximas paisagens sonoras
presentes nesta cidade de tão rica musicalidade.
Concluindo este memorial, quero dizer um pouco sobre como se
desenvolveu meu processo de aprendizado na área do campo sonoro, sendo a parte
técnica o que me motivou para trabalhar na maioria dos meus trabalhos realizados
dentro e fora do circuito acadêmico, e de como, através deste trabalho de conclusão
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de curso, pude desenvolver um lado que ainda não tinha envolvimento pleno, que foi
o da área de pesquisa em campo. Esta me fez ter uma aproximação mais sincera
com as pessoas ao meu redor e “objeto” da minha pesquisa, já que antes, por me
situar numa área de captação sonora, seja ela de um filme de ficção ou de um
documentário, o envolvimento maior com as pessoas sempre foram pela parte dos
diretores e idealizadores dos projetos.
Assim, mais uma área do campo sonoro, a área do patrimônio imaterial
sonoro, conservada em sua grande maioria pela memória oral das pessoas, serviu-
me como uma forma também de contribuir para que esses áudios captados fossem
doados em forma de mídia física (CD ou DVD) para estes grupos, e no campo virtual,
como forma de conservação de um patrimônio que através do registro sonoro está
arquivada em campos seguros onde pessoas que não tem acesso e nem
conhecimento a tão rico patrimônio possa vir a cidade de Cachoeira e ter as suas
próprias experiências sonoras.
Termino este memorial com a esperança de que, mesmo escassos, esses
grupos ainda possam manter as suas tradições culturais para que não só a cidade
continue exalando musicalidade, como também a própria essência de cada tradição
continue ainda atraindo os jovens para que estas manifestações culturais nunca
deixem de existir.
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REFERÊNCIAS

ARCHIVE.ORG. Cartografias Sonoras. Disponível em:


<https://archive.org/details/@cartografias_sonoras>. Acesso em: 01 set. 2017.

CAMPOS, Ricardo. As Bibliotecas Digitais e os Motores de Busca:: novos


Sistemas de Informação no contexto da Preservação Digital. 2007. 09 f. TCC (Graduação) -
Curso de Centre For Human Language Technology And Bioinformatics, Instituto Politécnico
de Tomar, Tomar, 2007.

FACEBOOK, Samba de Terreiro. Disponível em:


<https://www.facebook.com/SambaDeTerreiro/>. Acesso em: 20 ago. 2017.

GUISALBERTI, Simone. Bravo Afro Brasil: Instrumentos Musicais de Origem


Africana.2010.Disponível em: <http://bravoafrobrasil.blogspot.com.br/2010/07/instrumentos-
musicais-de-origem.html>. Acesso em: 10 jul. 2016.

NAKAHODO, Lilian Nakao. Cartografias Sonoras: Um estudo sobre a produção de


lugares a partir de práticas sonoras contemporâneas. 2014. 164 f. Tese (Doutorado) - Curso de
Setor de Artes, Comunicação e Design, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014.

NISENBAUM, Márcio; KÓS, José Ripper; BOAS, Naylor Barbosa Vilas. O estudo das
paisagens sonoras por meio de soundwalks: estratégias e possibilidades de
representação. Enanparq: Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p.1-20, jul. 2016.

OBICI, Giuliano. Condição da Escuta: Mídias e Territórios Sonoros. 2006. 162 f.


Dissertação (Mestrado) - Curso de Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade
Católica, São Paulo, 2006.

SCHAFER, R.Murray. A Afinação do Mundo: uma exploração pioneira pela história


passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a
paisagem sonora. trad. Marisa Trench Fonterrada – São Paulo: Editora UNESP,
2001.
36

UMAP (Cachoeira) (Ed.). Cartografia Sonora em Cachoeira: Filarmônicas, Sambas


de Roda e Terreiros de Candomblé. 2017. Disponível em:
<http://umap.openstreetmap.fr/pt/map/cartografia-sonora-em-cachoeira-filarmonicas-
samba_160254#15/-12.6066/-38.9585>. Acesso em: 30 ago. 2017.
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ANEXO

Link para página na web:


http://umap.openstreetmap.fr/pt/map/cartografia-sonora-em-cachoeira-filarmonicas-
samba_160254#15/-12.6066/-38.9585
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