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Das mãos de Bezerra de Menezes à mediunidade de Chico Xavier: trajetos da

reelaboração do Espiritismo no Brasil.

Fabiano Cesar de Mendonça Vidal1

O presente trabalho possui um olhar antropológico, de caráter


essencialmente bibliográfico, e tem por intenção apresentar, com base nas
ideias da antropóloga Sandra Jacqueline Stoll (2003), para quem o Espiritismo,
no Brasil, é uma reelaboração original da doutrina fundada por Allan Kardec na
França, a tese de que a obra Os Quatro Evangelhos – A revelação da
revelação do advogado francês Jean Baptiste Roustaing, contemporâneo de
Kardec, é de fundamental importância para a reelaboração do Espiritismo no
Brasil.
Natural de Bordeaux, Jean Baptiste Roustaing toma conhecimento da
doutrina espírita elaborada por Allan Kardec ao restabelecer-se de uma
enfermidade através da recomendação de um médico que lhe falara sobre as
possibilidades de comunicação entre o mundo corpóreo e o espiritual (VIDAL,
2014, p.46-47). O estudo das obras de Allan Kardec causa grande impacto em
Roustaing, que em parceria com a médium Emilie Collignon, produz a obra Os
Quatro Evangelhos – A revelação da revelação, que lhe teria sido ditada pelos
espíritos de João Baptista, Moisés, Mateus, Lucas, Marcos e João, sendo
considerada por estudiosos da doutrina espírita, a exemplo de Herculano Pires
e Júlio Abreu Filho (1973), Gélio Lacerda (1995), Krishnamurti de Carvalho
Dias (2000) e Sergio Aleixo (2011) como o “primeiro cisma” do Espiritismo. Os
Quatro Evangelhos pretendia responder, sob a ótica espírita, informações
sobre a origem e natureza espirituais de Jesus 2, que teria vindo à Terra em um
corpo fluídico3, e não carnal, ou seja, tudo na vida de Jesus, desde sua

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Mestre em Ciências das Religiões – Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail:
fabianovidal.ufpb@hotmail.com.br
2
Sobre a natureza de Jesus e seus poderes, Roustaing considerava que a obra de Allan
Kardec pouco esclarecia a respeito.
3
O “corpo fluídico” é entendido por Allan Kardec como um corpo sem a coesão característica
de corpos materiais, ou seja, “a vida, neles, não repousa no funcionamento de órgãos
especiais, e neles não se podem produzir desordens análogas; um instrumento cortante, ou
qualquer outro, ali penetra como num vapor, sem lhe ocasionar lesão alguma. Eis porque os
gestação por Maria e o sofrimento de sua morte na cruz haveria ocorrido
apenas em aparência, concepção que posteriormente será rejeitada por Allan
Kardec na Revista Espírita de 1866 e no livro A Gênese (1868)4. Outras teses
roustainguistas também iam de encontro a princípios kardecistas: a
reencarnação, de acordo com Roustaing, serviria como uma punição de
pecados, se opondo ao ciclo evolutivo preconizado e defendido por Kardec,
segundo a qual o espírito reencarnaria tantas vezes fosse necessário até
atingir o estado de espírito puro, que não mais necessitaria reencarnar. Além
disso, Roustaing afirmava que o futuro espiritual da humanidade estaria
destinada à “Igreja do Cristo” e nas mãos do Papa (MAIOR, 2013, p.294).
Desde sua chegada ao Brasil, o Espiritismo, em fase anterior à
proclamação da República, foi severamente combatido pela religião oficial do
Império, o Catolicismo, e foi necessário realizar um grande esforço na busca de
sua legitimação em solo brasileiro. Considero a primeira tentativa nesse
sentido, a criação, em Salvador, do periódico O Écho de Além-Túmulo (1869),
idealizado pelo jornalista Luiz Olympio Telles de Menezes5, que defendia, em
conjunto com seus companheiros do Grupo de Estudos Espiríticos da Bahia
(ARRIBAS, 2010, p.63) a tese de que para ser espírita, não se fazia necessário
abandonar a crença no Catolicismo, pois considerava o Espiritismo “uma
filosofia de vida, uma conduta moral, que podia conviver, nesse momento, com
o Catolicismo”6 (GOMES, 2012, p.155).

seres fluídicos designados sob o nome de agêneres não podem ser mortos” (KARDEC, 2003,
p.303) (Grifo original do autor).
4
Para Kardec, “Se durante sua vida Jesus tivesse estado nas condições dos seres fluídicos,
não teria experimentado nem a dor, nem nenhuma das necessidades do corpo. (...) Se tudo
nele era só aparência, todos os atos de sua vida (...) teria sido um vão simulacro, para enganar
com relação à sua natureza e fazer crer no sacrifício ilusório de sua vida, uma comédia indigna
de um homem honesto e simples, quanto mais, e por mais forte razão, de um ser também
superior; numa palavra, teria abusado da boa fé de seus contemporâneos e da posteridade.
Tais são as consequências lógicas desse sistema, consequências que não são admissíveis,
pois resultaria em diminuí-lo moralmente, em lugar de o elevar” (KARDEC, 2003, p.304).
5
Criado como católico, Luiz Olympio Telles de Menezes é considerado pelo jornalista Luciano
dos Anjos, um dos maiores defensores da obra de Roustaing no Brasil, como um adepto das
teses roustainguistas, tendo feito, inclusive, a recomendação da leitura de sua obra: “O Sr.
Roustaing, espírita sério, tem a probidade da franqueza e a virtude da abnegação.
Recomendamos, portanto, a todos os espíritas sérios a leitura dessa obra incontestavelmente
de um mérito real”. (ANJOS, 1993, p.158).
6
A tentativa de conciliar Espiritismo e Catolicismo por Telles de Menezes lhe valeu uma
reprimenda por parte de Armand Théodore Desliens, da Societé Anonyme à parts d’intérêts à
Capital Variable de La Caisse générale ET centrale du Spiritisme. Desliens considerava que “O
Espiritismo não deve adstringir-se a nenhuma forma religiosa determinada; é, e deve
permanecer uma filosofia progressiva e tolerante, abrindo seus braços a todos os deserdados,
Exemplares de Os Quatro Evangelhos chegaram ao Brasil em 1870,
ocasião em que se dá início a seu estudo e divulgação, não sem dificuldades,
visto que ainda encontrava-se publicada em seu idioma original – o francês.
Apenas em 1880, por ocasião da fundação da Sociedade Espírita Fraternidade,
ocorreu a primeira tentativa de traduzi-la para o português, em um manuscrito
feito por João Kall. De acordo com Barros e Martins, biógrafos de Roustaing,
esta primeira tentativa de tradução não possuía o objetivo de uma futura
publicação, o que ocorreria apenas em 1883, por iniciativa do Marechal
Francisco Raimundo Ewerton Quadros, apenas um ano antes da fundação da
Federação Espírita Brasileira – FEB (BARROS; MARTINS, 2005, p.560-561).
Empolgado com o Espiritismo, em 24 de agosto de 1871 Telles de
Menezes realiza a primeira tentativa de reconhecimento oficial do Espiritismo
ao entregar, para o Vice-Presidente da Bahia, Dr. Francisco José da Rocha,
requerimento onde pedia aprovação dos estatutos e autorização do que seria a
Sociedade Espírita Brasileira. Um decreto de número 2.711, de 19 de
dezembro de 1860 estabelecia que a aprovação por parte do governo de
qualquer sociedade religiosa não-católica deveria ser submetida para a
aprovação do Ordinário, D. Manoel Joaquim da Silveira, com quem Telles de
Menezes polemizara alguns anos antes. D. Joaquim nega a aprovação ao
afirmar que o Espiritismo era um “atentado formal contra a fé católica”, e que
uma doutrina que possuía por objetivo contrariar a religião do Estado, só
poderia ser contra esse mesmo Estado (VIDAL, 2014, p.12-13).
Com o insucesso de Telles de Menezes em formatar um Espiritismo à
brasileira no qual este dialoga com a doutrina católica, caberá a Bezerra de
Menezes a elaboração de um discurso que tem, em Roustaing, o elemento
necessário para viabilizar a formatação deste Espiritismo à brasileira idealizado
por Telles de Menezes, uma vez que a obra roustainguista possui teses em
comum com o catolicismo, a exemplo da virgindade de Maria, por também
entender que Jesus não poderia nascer fruto de um pecado.
Arribas considera que Bezerra de Menezes foi um
(...) dos líderes e intelectuais mais importantes que trabalharam para
a consolidação da doutrina espírita nos moldes ensejados pelo
campo religioso brasileiro em formação. Não é à toa que foi e ainda é

qualquer que seja sua nacionalidade e a crença religiosa a que pertençam” (FERNANDES,
2010, p.64).
reconhecido pela designação de “Allan Kardec brasileiro”, justamente
pelo fato de ter sido ele o “codificador” do espiritismo no Brasil, o seu
organizador. A partir daí, a ideia de uma “doutrina religiosa” –
enquanto corpo sistemático e organizado de princípios – só se tornou
possível através de sua interpretação (ARRIBAS, 2010, p.136-137).

Ainda de acordo com esta autora, coube a Bezerra de Menezes “não só


o trabalho de selecionar, na obra de Allan Kardec, determinados aspectos em
detrimento de outros, como também o de encandeá-los, juntamente com
outras coordenadas externas à obra kardequiana, visando dar ao seu
espiritismo certa coerência e ordenação dentro de uma nova conformação
estrutural” (ARRIBAS, 2010, p.137) (Grifo nosso). De fato, é o que irá ocorrer
após Bezerra de Menezes assumir pela primeira vez a presidência da
Federação Espírita Brasileira, ocasião na qual seu mandato é encurtado em
menos de um ano em função das disputas entre aqueles que enfatizavam o
aspecto científico do Espiritismo e aqueles que, assim, como ele, eram
denominados de místicos (SANTOS, 2004, p.24).
A partir de 1890, Bezerra de Menezes realiza estudos no Grupo Ismael,
de O Livro dos Espíritos de Allan Kardec e de Os Quatro Evangelhos de
Roustaing. É a partir deste momento que Bezerra de Menezes, que antes
pregava uma postura de unificação federativa do movimento espírita, passará a
definir-se como um autêntico integrante da tendência religiosa do espiritismo,
fato este que se torna evidente quando, em sua segunda passagem como
presidente da FEB, instituirá a obrigatoriedade do estudo da oba de Roustaing,
da qual se torna destacado defensor, em conjunto com O Livro dos Espíritos
(ARRIBAS, 2010, p.175).
É a partir desta decisão de obrigatoriedade do estudo de Os Quatro
Evangelhos que a Federação Espírita Brasileira – FEB, dá início à construção
de um discurso conciliatório entre as teses de Kardec e Roustaing, procurando
demonstrar, de forma incisiva, que a obra roustainguista é um complemento
necessário à obra de Allan Kardec. Com este objetivo, o novo discurso ganhará
destaque entre os adeptos a partir das edições de Reformador e da obra Brasil,
Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, psicografia de Chico Xavier atribuída
ao espírito Humberto de Campos (VIDAL, 2014, p. 56).
Fig. 01 – Exemplar de Reformador
com o novo discurso Kardec-
Roustaing desenvolvido a partir da
decisão de Bezerra de Menezes em
tornar obrigatório o estudo da obra de
Roustaing em conjunto com O Livro
dos Espíritos de Allan Kardec.

Nascido a 2 de abril de 1910 na cidade de Pedro Leopoldo, Chico


Xavier, de formação católica, assumirá, anos mais tarde, o papel de médium
espírita e terá atuação significativa para a legitimação da doutrina espírita em
seu caráter religioso no Brasil, tornando-se “a principal referência do espiritismo
no Brasil” (LEWGOY, 2004, p.11). Sua produção mediúnica teve ampla
divulgação por parte da Federação Espírita Brasileira – FEB, que se utilizou do
médium como agente representativo do enfoque doutrinário da instituição, mais
voltado para o aspecto religioso do espiritismo, tomando como base doutrinária
o discurso Kardec-Roustaing empreendido por Bezerra de Menezes. Não à toa,
Lewgoy (2004, p.13) compreende Chico Xavier como “um personagem cercado
de uma aura de sacralidade, modelo de uma proposta religiosa de alta
ressonância na sociedade brasileira, tendo cumprido um papel central na
criação de um espiritismo singularmente ‘brasileiro’”.
Camargo (1961) já destacava a importância da figura de Chico Xavier na
formação do “Espiritismo nacional”, equiparando-o, em termos de importância,
ao próprio fundador da doutrina espírita, Allan Kardec: “Sua doutrina [de Chico
Xavier] acentua o caráter religioso do Espiritismo, dando ênfase aos valores
sentimentais e incrementando o movimento social e a caridade” (CAMARGO,
1961, p.05). Este autor também destaca que, apesar do impacto provocado
pelas obras de Chico Xavier no movimento espírita, estas “não apresentam
teoricamente o mesmo grau de autoridade que envolve os trabalhos de Kardec.
Nos círculos espíritas mais intelectualizados, afirmações por ele psicografadas
já foram discutidas e contestadas” (CAMARGO, 1961, p.05).
Tais contestações de parte do movimento espírita partem do
pressuposto de que as obras psicografadas por Chico Xavier não foram
submetidas à metodologia de controle das mensagens dos espíritos idealizada
por Allan Kardec, denominada de Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos
(CUEE), amplamente explicitada por Kardec na introdução de O Evangelho
Segundo o Espiritismo. Além disto, há a acusação da influência da obra de
Roustaing sobre Chico Xavier. O jornalista Luciano dos Anjos cita vários
momentos da vida de Chico Xavier, assim como passagens de suas obras e
cartas enviadas ao então presidente da FEB, Wantuil de Freitas7, em que este
afirma e reafirma sua admiração e carinho pela obra do polêmico advogado de
Bordeaux: “Como se todos estes depoimentos não bastassem 8, devo assinalar
que possuo, em minha biblioteca particular, o 1º tomo de “Os quatro
evangelhos” devidamente autografado para mim” (ANJOS, 1993, p.87).
Neste breve recorte acerca dos trajetos de reelaboração e legitimação
do Espiritismo no Brasil, fica evidente para mim uma influência fundamental da
obra de Roustaing na formatação deste Espiritismo à brasileira cujas
características persistem até os dias atuais, onde a doutrina espírita é
compreendida como religião e possui rituais definidos como a prática do
evangelho no lar e da aplicação de passes9. Há, também, no movimento
espírita brasileiro, uma verdadeira “adoração” aos médiuns espíritas, a exemplo
de Chico Xavier e Divaldo Franco, em uma situação semelhante ao que
acontece com a adoração aos santos da Igreja Católica.
Entendo que o Espiritismo à brasileira é uma reconstrução original do
modelo praticado na França, porém ressalto a importância de atores como
Telles de Menezes, Bezerra de Menezes e Chico Xavier neste processo, por
possibilitarem, cada um à sua maneira, à produção de um discurso Kardec-

7
Estas cartas são reproduzidas e comentadas por Suely Caldas Schubert no livro
Testemunhos de Chico Xavier.
8
O autor se refere ao fato de Chico Xavier ser adepto das teses de Jean Baptiste Roustaing.
9
Também conhecida por fluidoterapia, esta é uma técnica onde os médiuns, “usando fluidos
energizados, utilizam para o tratamento das enfermidades físicas e espirituais.” (NÚCLEO
ESPÍRITA NOSSO LAR, acesso em 27 jan 2016. http://nenossolar.com.br/).
Roustaing difundido pela FEB que fez do Espiritismo “científico” pretendido por
Kardec uma nova religião no campo religioso brasileiro, de forte influência
católica e de Roustaing.

REFERÊNCIAS

ANJOS, Luciano dos. Os adeptos de Roustaing. Rio de Janeiro: AEEV, 1993.


ARRIBAS, Célia. Afinal, Espiritismo é religião? A diversidade religiosa
brasileira. São Paulo: Alameda, 2010.
BARROS; MARTINS. Jean Baptiste Roustaing: apóstolo do espiritismo.
Rio de Janeiro: Casa de Recuperação e Benefícios Bezerra de Menezes, 2005.
CAMARGO, Cândido Procópio. Kardecismo e Umbanda. São Paulo:
Biblioteca Pioneira de Estudos Sociais, 1961.
FERNANDES, Magali Oliveira. Vozes do céu: os primeiros momentos do
impresso kardecista no Brasil. 2ª edição. São Paulo: Annablume, 2010.
GOMES, Adriana. O imaginário místico e amalgamador de religiosidades
brasileiras e a exegese científica do espiritismo francês: da inserção da
doutrina espírita no Império à construção de sua legitimação religiosa no limiar
da República. PLURA, Revista de Estudos da Religião, ISSN 2179-0019, vol. 3,
no 1, 2012, p. 149-172.
KARDEC, Allan. A gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo.
Tradução de Victor Tollendal Pacheco. 21ª Ed. São Paulo: Lake, 2003.
LEWGOY, Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura
brasileira. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
MAIOR, Marcel Souto. Kardec: a biografia. 1. ed. – Rio de Janeiro: Record,
2013.
NÚCLEO ESPÍRITA NOSSO LAR. A fluidoterapia. Disponível em:
http://nenossolar.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=7:a-
fluidoterapia&catid=6:as-curas-espirituais&Itemid=3. Acesso em 27 jan. 2016.
SANTOS, José Luiz dos. Espiritismo: uma religião brasileira. Versão ver. e
ampl. pelo autor. – Campinas, SP: Editora Átomo, 2004.
STOLL, Sandra. Espiritismo à brasileira. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2003.
VIDAL, Fabiano Cesar de Mendonça. Em torno do Nosso Lar: uma análise
das controvérsias produzidas no movimento espírita. 2014. 100 f.
Dissertação (Mestrado em Ciência das Religiões) - Universidade Federal da
Paraíba, João Pessoa, 2014.

Trabalho apresentado no IV Videlicet – Congresso Internacional de Imaginário,


Ciências e História das Religiões, realizado de 04 a 07 de novembro de 2015
no Campus I da UFPB, na condição de comunicação oral.

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