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ABORDAGENS HISTORIOGRÁFICAS: APONTAMENTOS PARA A

HISTÓRIA DA SEXUALIDADE
HISTORIOGRAPHICAL APPROACHES: NOTES FOR THE HISTORY OF SEXUALITY

Ismael Antônio Vannini1

VANNINI, I. A. Abordagens historiográficas: apontamentos para


a história da sexualidade. Akrópolis Umuarama, v. 20, n. 1, p.
55-62, jan./mar. 2012.

Resumo: O presente ensaio propõe um conciso debate relacionado


o tema da sexualidade na História. Indica, sobretudo, o contexto his-
toriográfico da Nova História e da História Cultural, suas tendências
teóricas e metodológicas, que permitiram importantes transformações
nas últimas décadas. Aponta para o tema da sexualidade que ganhou
destaque e relevância no contexto do movimento historiográfico dos
Annales. Ao apresentar os diferentes expoentes da sexualidade, des-
taca algumas das obras, que até o momento, formam o embasamen-
toteórico e metodológico para a pesquisa desta área. Sugere a idéia
de que a sexualidade é um tema já legitimado no âmbito nacional e
internacional e se constitui em um campo muito promissor para a pes-
quisa acadêmica. Por fim, procura demonstrar como os estudos rela-
cionados à sexualidade, permitem um progresso interdisciplinar entre
as áreas das ciências humanas.
Palavras-chave: História, Historiografia, Sexualidade.

Abstract: The present essay proposes a concise debate related to


the subject of the sexuality in the History. It indicates, especially, the
1
Doutor em História pela PUC, Professor e historiographical context of the New History and the Cultural History, its
Coordenador do Curso de História da UNI-
PAR – Unidade de Francisco Beltrão. methodological and theoretical tendencies, which permitted important
transformations in the last decades. It points at the subject of the sexu-
ality that has had highlight and relevance in the context of the Annales’
historiographical movement. Presenting the different sexuality expo-
nents, it emphasizes some of the works, that the present time, form
the methodological and theoretical foundation for the research of this
area. It suggests the idea that the sexuality is an already legitimized
subject in the international and national scope and it constitutes itself in
a very promising field for the academic research. Finally, it intends to
show how the studies related to the sexuality permit an interdisciplinary
progress among the areas of humanities.
Keywords: History; historiographical; sexuality.

Recebido em *****
Aceito em ******

Akrópolis, Umuarama, v. 20, n. 1, p. 55-62, jan./mar. 2012


VANNINI, I. A..

INTRODUÇÃO res e os sentimentos socialmente constituídos


no interior dos diferentes grupos, tempos e es-
Este ensaio apresenta alguns dos de- paços históricos.
bates historiográficos relacionados ao tema da
sexualidade na História. A proposta está volta- BASES TEÓRICAS PARA A HISTORIOGRA-
da, sobretudo em pontuar os aportes teóricos e FIA DA SEXUALIDADE
metodológicos que a historiografia pós-moderna
imprimiu no campo da pesquisa, em que a sexu- Até pouco tempo, a historiografia não
alidade, entre outros temas, ocupou a condição voltava seu olhar para temáticas como a sexua-
de objeto da História. Momento que a temática lidade e não propunha uma abordagem em me-
se consolidou como categoria de análise no con- nor escala. Essa realidade se alterou a partir das
junto das explicações das experiências huma- últimas décadas do século XX, quando do ad-
nas. vento da “nova história”.Após a década de 1970,
Nas últimas décadas as discussões in- a historiografia assinalou o advento da micro-
tensificaram-se, fator que colocou em relevo o -história e da história cultural. Sob esse olhar,
tema da sexualidade. Como é comum no interior originaram-se uma nova visão e definição do
da Academia, surgem variados posicionamentos indivíduo moderno, como uma construção indivi-
em relação a sua base teórica de abordagem, dual, típica das representações culturais de seu
apesar de consolidado é apresentado em relei- tempo. A história, então, passou a reconhecer as
turas no conjunto de seus elementos. As aborda- individualidades culturais como forças de mani-
gens dão conta de delimitar a sexualidade nas festação social das relações coletivas.
mais variadas implicações humanas. Ela figura Até as últimas décadas do século passa-
como elemento da cultura, da religião, da demo- do, as tendências filosóficas seguiam um para-
grafia, da política, do Estado, da economia, da digma hegemônico, no qual as definições estru-
demografia, dos mercados matrimoniais, da fa- turalistas, até então entronadas, delimitavam as
mília, dos jovens, dos sentimentos, dos crimes, macrorrelações deterministas para a historiogra-
etc. sempre como elemento integrante e deter- fia. As bases do historiador partiam dos mode-
minante das relações humanas. No que tange los macro-históricos, renegando as diversidades
a sexualidade, compreender suas nuanças na culturais e suas representações. As interpreta-
vida social compreende um considerável desa- ções analíticas totalizantes não contemplavam o
fio. homem comum, pois as narrativas deterministas
Com o movimento dos Annales, a his- alicerçavam as estruturas, impondo as linhas
toriografia já havia incorporado novos objetos condutoras. Nesse sentido, as diversidades cul-
e novos temas. Foi um fenômeno fortalecido a turais eram generalizadas, obedecendo a uma
partir da década de 1960, quando novos cami- base de interpretação macroestrutural e da his-
nhos permitiram ao historiador uma observação tória vista de cima (CARDOSO; VAINFAS, 1997,
mais particular e regional do seu objeto. Multi- p. 4).
plicando-se temáticas, houve diversificação de A partir da década de 1970, a investiga-
fontes e a história se propôs a buscar respostas ção histórica tentou realizar de outro modo a lei-
por meio de outros olhares. A novidade metodo- tura das sociedades, partindo de pontos particu-
lógica procurou, com frequência, narrar a partici- lares e tomando como objeto os acontecimentos
pação de pessoas comuns, direcionando o olhar importantes ou obscuros de uma trajetória de
para os acontecimentos ocorridos no cotidiano vida, ou até a história de um grupo específico.
daqueles que não haviam, até então, protagoni- A história cultural, formulando novos temas, ela-
zado a história. Indivíduos simples e desconhe- borou também novas questões da prática histó-
cidos, mas que influenciaram os acontecimentos rica em variadas reflexões: “É apenas ao identi-
de seu tempo, passavam, então, com as novas ficar as partilhas, as exclusões, as relações que
concepções, a ocupar um lugar de relevo na re- constituem os objetos em estudo, que a história
construção histórica. poderá pensá-los, não como figuras circunstan-
A análise da sexualidade integra os prin- ciais de uma categoria supostamente universal,
cípios historicamente construídos em relação ao mas, pelo contrário, como ‘constelações’ indivi-
corpo. Além do papel da procriação, engloba as duais ou mesmo particulares” (CHARTIER,1990,
prescrições estabelecidas, bem como, os valo- p. 78).

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As delimitações da história cultural apre- A valorização do homem comum e a ex-


sentadas por Roger Chartier, um de seus princi- plicação dos fenômenos históricos, por meio da
pais expoentes, indica que “é preciso pensá-la vida cotidiana ampliaram os caminhos da his-
como a análise do trabalho de representação, tória. Sharp afirma que “esta perspectiva atraiu
isto é, das classificações e das exclusões que de imediato aqueles historiadores ansiosos por
constituem, na sua diferença radical, as confi- ampliar os limites de sua disciplina, abrir novas
gurações sociais e conceptuais próprias de um áreas de pesquisa e, acima de tudo, explorar
tempo ou de um espaço” (CHARTIER, 1990, p. as experiências históricas daqueles homens e
27). mulheres, cuja existência é tão frequentemen-
Constantino observa que a microabor- te ignorada, tacitamente aceita ou mencionada
dagem já é uma realidade consolidada na his- apenas de passagem na principal corrente da
toriografia, tanto no âmbito da historiografia em história”. (SHARP, 1992, p. 40).
geral, bem como na historiografia nacional. Protagonizando os indivíduos comuns do
Brasil Colônia, Lana Lage percorre o cotidiano
Nas últimas décadas, no Sul do Brasil, a amoroso familiar do século XVIII, desvelando a
exemplo de todo o País, especificidades re- história ao olhar as camadas sociais inferiores. A
gionais são priorizadas nos estudos historio- autora escreve:
gráficos. Na zona das antigas colônias, sob
a liderança de pesquisadores vinculados à Deste renovado interesse surgiram (nas ul-
Universidade de Caxias do Sul (UCS), desen- timas décadas) inúmeros estudos sistemá-
volve-se produção acadêmica da maior im- ticos que, a despeito das divergências ou
portância, com ênfase na imigração veneta, acertos entre as diversas correntes, quanto
predominante na área de colonização agríco- ao tratamento específico do objeto de aná-
la. Já no âmbito do Programa de Pós-Gradu- lise, focalizaram com êxito a importância da
ação em História da Pontifícia Universidade família. Homens e mulheres, antes testemu-
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o nhos mudos da nossa história, ganharam fei-
estudo enfatiza a imigração em zonas urba- ção, fala e presença na complexa trama de
nas e, consequentemente, a origem nas re- relações sociais que vivenciaram e ora recu-
giões meridionais italianas (CONSTANTINO, peradas com vigor (LAGE, 1987, p. 9).
2007, p. 69).
Figurantes inominados, poderiam ser
Carl Ginzburg, um dos principais autores
vistos como inexpressivos na vida e no contexto
da História cultural, define que a cultura determi-
histórico, como o foram por muito tempo. Anali-
na conjuntos de normas que imprimem a forma
sar a história por meio desses indivíduos anôni-
positiva que os indivíduos devem seguir. São
mos não significa entregar-se à permissividade,
valores que ultrapassam as questões de ordem
pois a temática propõe-se à diversificação e ca-
legal definidos como elementos constitutivos bá-
racteriza a história com outro olhar. Nessa mul-
sicos da cultura. Se a base de organização dos
tiplicidade absoluta, Peter Burke observa que
grupos humanos são seus elementos culturais,
essa definição permite a reconstrução das expe-
há dificuldade em negá-los ou superá-los. “Da
riências desde as dos pastores medievais até as
cultura do próprio tempo e da própria classe não
dos trabalhadores industriais (1992, p. 40).
sai a não ser para entrar no delírio e na ausência
O historiador Boris Fausto, na elabora-
de comunicação” (GINZBURG, 1978, p. 10).
ção de uma das principais obras de história e
Para a história cultural, as estruturas do
crime da historiografia brasileira, apesar de não
mundo social são historicamente produzidas pe-
usar o termo, retrata os primeiros anos do Brasil
las diferentes práticas cotidianas articuladas. É
República com a visão da história de baixo. Com
nesse contexto de demarcações e esquemas
base em registros criminais do período 1880 a
que se modela e se constitui a ideia de Char-
1924, o autor contempla o cotidiano dos crimes
tier: “O objeto de uma história cultural, que leva
da ascendente cidade de São Paulo. Fausto
a repensar completamente a relação tradicional-
aborda o panorama das implicações sociais na
mente postulada entre o social, identificado com
criminalidade dos grupos populares, recriando
um real bem real, existindo por si próprio, e as
o mundo das pessoas anônimas. Ao mesmo
representações, supostas como refletindo-o ou
tempo, revela como no senso comum a história
dele se desviando” (CHARTIER, 1990, p. 27).
dos inominados é difícil de ser pensada como

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um tema digno: “Os meus dedicados amigos do O estudo da sexualidade na área das
Arquivo Judiciário do Estado de São Paulo, por ciências humanas vem aumentando significati-
exemplo, talvez nunca tenham chegado a en- vamente, apontando para os aspectos culturais
tender por que eu me preocupasse com pilhas e políticos dos diferentes grupos sociais e en-
de pacotes empoeirados, onde se amontoam fatizando a relação do corpo, além das ques-
dados sobre imigrantes obscuros e ladrões ‘pé- tões biológicas, médicas, químicas, etc. Nesse
-de-chinelo’.” (FAUSTO, 2001, p. 27). sentido, a sociologia, a antropologia e a história
Junto com as transformações da nova assumem um significado ímpar nas relações hu-
história, o tema da sexualidade ocupou um lu- manas.
gar de destaque e assinalou importante impul- No decorrer da história, as diferentes co-
so após as obras clássicas de Michel Foucault munidades humanas, tanto as primitivas quanto
publicadas na década de 1980. Tais obras se as mais modernas e contemporâneas, organi-
tornaram referência às novas gerações de histo- zaram sua estrutura de sobrevivência e produ-
riadores sobre o tema. Nas palavras de Foucault ção. Na maioria das vezes, pelo menos ao que
sobre a sexualidade: se sabe, a sexualidade fez parte da estratégia
de sobrevivência, a ela sendo legados diferen-
Muito mais que um mecanismo negativo de tes sentidos e valores. Ao longo do tempo, os
exclusão ou de rejeição, trata-se da colo- impulsos sexuais humanos passaram por impor-
cação em funcionamento de uma rede sutil tantes transformações e as características de
de discursos, saberes, prazeres e poderes; diferenciação comportamental ainda podem ser
não se trata de um movimento obstinado em
observadas na atualidade. Nas diferentes épo-
afastar o sexo para uma região obscura e ina-
cessível, mas, pelo contrário, de processos cas e espaços geográficos, a humanidade esti-
que o disseminam na superfície das coisas pulou regras, condutas e discursos sobre a vida
e dos corpos, que o excitam, manifestam-no, sexual. Telarolli Junior assinala que a cultura e
fazem-no falar, implantam-no no real e lhe o meio social são fundamentais para definir a
ordenam dizer a verdade. Todo um cintilar vi- forma como as pessoas conduzem os impulsos
sível do sexual refletido na multiplicidade dos sexuais e se relacionam sexualmente umas com
discursos (FOUCAULT, 1984, p. 71). as outras (TERALOLLI, 1997, p. 38).
Michael Foucault define os elementos
Na história da sexualidade, os caminhos culturais como a base das ações cotidianas que
abertos por Michel Foucault indicam também os constituem a vida do indivíduo, inclusive de seu
novos rumos da historiografia. A partir da década sexo: “O estudo da moral sexual deve determinar
de 1970, temáticas que até então eram consi- de que modo, e com que margem de variação
deradas irrelevantes passaram a despertar um ou de transgressão, os indivíduos ou grupos se
interesse cada vez maior por parte dos historia- conduzem em referência a um sistema prescri-
dores. “Tanto no passado quanto no presente, tivo, que é explícita ou implicitamente dado em
acadêmicos e cientistas estudiosos da sexuali- sua cultura, e do qual eles têm consciência mais
dade humana sustentaram e têm sustentado po- ou menos dela.” (FOUCAULT, 1984, p. 211).
der criar uma ciência do sexo – uma disciplina Pesquisadora da sexualidade, Magali
objetiva, desapaixonada, factual, tão ‘científica’ Engel lembra que a produção historiográfica ca-
quanto, digamos, a astronomia ou economia.” racterizada por abordagens do cotidiano da se-
(FOUCAULT, 1984, p. 13). xualidade tem se tornado cada vez mais expres-
Ao apagar das luzes do século XX, tor- siva. A nova história, que, entre outros aspectos,
naram-se claras as manifestações e atitudes em distingue-se pela incorporação de novos objetos,
relação à sexualidade; novas atitudes e concei- trouxe à luz novas fontes de pesquisa, até então
tos passaram a ser problematizadas. Roy Porter desprestigiadas. Entre as principais fontes de
destaca que, “na medida em que novas formas estudos referentes à sexualidade estão os pro-
de sexualidade foram ‘descobertas’ ou aven- cessos jurídicos, civis, criminais e eclesiásticos,
tadas, tornou-se progressivamente mais claro proclamando as condutas e vivências sexuais.
para a maioria dos comentadores que as incli- (ENGEL, 1997, p. 307).
nações sexuais e o desejo sexual não eram algo Na visão de Porter, as bases técnicas e
que pudesse ser reduzido ao biológico, ou biolo- documentais de pesquisa para a ciência da se-
gicamente ‘dado’”. (PORTER, 1997, p. 12). xualidade são ampliadas e reivindicam autentici-

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dade. Para o autor, o conhecimento desta ciência destacando as diferentes formas de interrogató-
estabelece seu verdadeiro status por intermédio rios e confissões na teia inquisitória nos crimes
da mais alta autoridade, seja por placas de pe- da sexualidade. Destaca números apontando
dra, seja por escritos da escritura sagrada, que que, na primeira visitação do Santo Ofício no
podem ser identificados em textos clássicos ou Brasil, das 62 confissões registradas 30 dizem
na biologia básica, ainda encontrados na história respeito a delitos de ordem sexual, entre so-
natural, nas doutrinas psicológicas ou nas nor- domia, bigamia, sedução e outras proposições
mas legais (PORTER, 1992, p. 17). escandalosas. Lage afirma que “as confissões
Uma possibilidade de abordagem da constituem, entre outras fontes inquisitoriais,
sexualidade é proporcionada pelos registros uma documentação extremamente rica para os
criminais. Estes se consolidaram como fontes estudos sobre a sexualidade, merecendo, por
essenciais na busca da compreensão histórica isso mesmo, um tratamento a parte” (LAGE,
dos grupos humanos, pois seus registros expli- 1987, p. 37).
citam as características conjunturais das vivên- Os processos judiciais também recebem
cias cotidianas. O antropólogo francês Ronald destaque com a historiadora Maria B. Niza da
Nossintchouk percorreu os diferentes períodos Silva ao descrever o sistema de casamento no
históricos, contemplando os crimes e a violência Brasil Colonial, analisando aproximadamente
sexual. O autor identifica as características, os duzentos processos arrolados pela Justiça da
valores, as implicações e as normas das dife- época. Os dados revelam as normas sexuais do
rentes sociedades em relação aos delitos sexu- sistema de matrimônio e os desvios sexuais das
ais. Simultaneamente ao mundo dos crimes do condutas dos cônjuges, o que levou à interven-
sexo,desvela as múltiplas contemplações que ção da Justiça nas dispensas matrimoniais, nos
a humanidade atribuiu e atribui à sexualidade. divórcios e nas nulidades de casamentos. A obra
(NOSSINTCHOUK, 1993, p. 56). da autora permite, entre outras, a constatação
Em pesquisa realizada na década de das inúmeras implicações atinentes à vida amo-
1980, baseada nos registros criminais das vi- rosa e moral da sociedade colonial e faz aflorar
sitações inquisitoriais no Brasil Colônia, Ronal- as questões sobre virgindade, sedução e crimes
do Vainfas analisa a sociedade da época pelos sexuais, bem como os discursos do Estado e da
registros nos crimes sexuais arrolados na teia Igreja no cotidiano sexual da sociedade (SILVA,
inquisitorial. As visitações no Brasil originaram 1994, p. 56).
uma gama de inquéritos e processos nos quais Inúmeras são as obras de historiadores
vários historiadores se embasaram para analisar que retratam a sexualidade no Brasil Colônia
os fenômenos históricos do período. Partindo por meio de processos crime, dos quais extraem
dos registros do Santo Ofício na Colônia, nasceu elementos contemplativos de todo o universo
a possibilidade de aventar o contexto da Metró- histórico, como fez Mary Del Priore. Suas obras
pole e as implicações da Igreja no momento da Ao sul do corpo e Mulheres no Brasil Colônia
Contra-Reforma. O próprio Vainfas contempori- desvelam as condições femininas na sociedade
za as implicações entre os registros criminais da e destacam questões sobre preconceito, explo-
inquisição brasileira com a conjuntura histórica. ração, prostituição, virgindade, maternidade, pe-
cado, entre inúmeras outras vivências do cotidia-
No conjunto do trabalho, analisando as con- no sexual feminino. Vale lembrar outros autores
dutas sexuais na Colônia ou sua decifração não menos importantes, como Luz Mott, que
e culpabilização no Palácio dos Estados ou contempla os fenômenos da homossexualidade;
nas visitações inquisitoriais, procuro inserir Laura de Melo e Souza, que analisa o embate
o cenário brasileiro no quadro mais amplo
entre os padres e as feiticeiras do Brasil Colônia,
possível da América, da Península Ibérica e
da Europa, efetuando as possíveis compara- bem como Celeste Zenha, com o casamento e
ções em vários domínios. (VAINFAS, 1997, a sexualidade no cotidiano da Justiça colonial,
p. 16). e, ainda, Magali Engel, revelando aspectos de
prostituição e da vida feminina nos bordéis.
Seguindo o caminho dos inquiridos, Lana Outra obra marcante que retrata o coti-
Lage também se propõe a análise dos proces- diano popular do Rio de Janeiro da Belle Épo-
sos crime das visitações do Santo Ofício no Bra- que nos anos primeiros da República é alvitre
sil Colônia. A historiadora percorre os registros, do historiador Sidney Chalhoub. Com base nos

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registros dos crimes sexuais, ele recria o mundo pressam, ao mesmo tempo em que produzem,
dos trabalhadores cariocas e traça o perfil deste as mais diversas contradições sociais.” (CHA-
grupo social. Seguindo as definições de Faus- LHOUB, 1986, p. 24). Por meio dessas contradi-
to, podemos identificar também em Chalhoub as ções presentes nos fenômenos da sexualidade
bases metodológicas na análise dos crimes, pois é possível pensar em aspectos morais e sexuais
ambos apontam para a regularidade dos acon- de uma cultura.
tecimentos como elemento imperativo na defini-
ção das condutas sociais. Poderíamos, então, CONSIDERAÇÕES FINAIS
dizer, com base em Fausto e Chalhoub, que a
repetição de certos comportamentos num grupo Indicamos aqui, portanto, algumas das
social consolidaria determinadas características bases teóricas e metodológicas que a historio-
históricas fundamentais. Aventando os registros grafia vem fazendo uso para estudos históricos
criminais da Belle Époque carioca, Chalhoub do tema da sexualidade. Tema que leva a His-
enfatiza como a frequência dos acontecimentos tória a desnudar os mais variados elementos
permitiu a sistematização de sua obra Trabalho, que implicam a formação e organização dos
lar e botequim: grupos humanos. Sempre presente nas estraté-
gias das diferentes sociedades e no transcurso
Os vários detalhes do cotidiano destes per- da história, a sexualidade congregou valores e
sonagens que aqui se insinuam, como o mo- princípios que superaram sua função primitiva
vimento frequente entre o local de trabalho e e biológica da reprodução da espécie. Com im-
o botequim e vice-versa. O importante é estar portantes implicações relacionados ao sistema
atento as ‘coisas’ que se repetem sistemati-
patriarcal, predominante após o nascimento das
camente: versões que se reproduzem muitas
vezes, aspectos que ficam mal escondidos, sociedades excedentes, cumpriu a função deli-
mentiras ou contradições que aparecem com mitadora do núcleo familiar legatário. Também
frequência (CHALHOUB, 1986, p. 21). foram atribuídos imprescindíveis valores, com a
sexualidade sendo elevada a quesito de ordem
Essa regularidade apontada por Fausto moral e religiosa, cumprindo limites nos ideais
e Chalhoub, permite identificar e caracterizar os positivos, estabelecidos como camufladas rela-
comportamentos e representações históricas da ções de poder.
cultura em relação aos valores e aos delitos se- A sexualidade humana tem uma História,
xuais. Bem mais que simples registros quantifi- construída em milhares de anos e que sempre
cáveis, os reistros traduzem as tensões reais da esteve nas estratégias de organização e nor-
sociedade, aproximando o vivido das interpreta- matização dos grupos humanos. O que pode
ções ditas ilícitas da sexualidade e seus signifi- ser observado é que a partir da segunda me-
cados. Para Chalhoub, “os significados devem tade do século XX, o tema foi incorporado nos
ser buscados nas relações que se repetem sis- mais variados campos da ciência. A partir dele,
tematicamente entre as várias versões, pois as emergiram explicações para diferentes áreas do
verdades do historiador são estas relações sis- conhecimento humano. Observa-se uma vasta
tematicamente repetidas” (CHALHOUB, 1986. produção bibliográfica, tanto em nível internacio-
p. 23). nal como nacional, apesar de que os especialis-
A abordagem do tema da sexualidade, tas das ciências humanas apontam que no Bra-
significa uma tentativa de construir explicações sil as pesquisas abordam a temática de forma
válidas do social, partindo das versões conflitan- superficial.
tes apresentadas por diversos agentes envolvi- A conjuntura científica expõe um área da
dos direta ou indiretamente nos acontecimentos. pesquisa, em boa parte, ainda a ser desenvol-
As versões, os discursos e o contexto incidem vida, imprescindível para aprofundar o conheci-
efetivamente sobre as coisas e fatos, possibili- mento dos dispositivos da sexualidade no nosso
tando ao historiador o acesso ao conjunto dos país. A sociologia e a psicologia são áreas do
fenômenos históricos. conhecimento, que próximas à história, também
Chalhoub atenta para esses fatos e as- estão se atendo ao tema da sexualidade. Os pro-
sinala que “resta ao historiador a tarefa árdua gramas de pós-graduação em História, sobretu-
e detalhista de desbravar o seu caminho no do, dedicam-se cada vez mais a esta temática
sentido dos atos e das representações que ex- desvelando diferentes estratégias e elementos

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Abordagens historiográficas...

dos grupos humanos. mes e violências sexuais da antigüidade aos


Enfim, parece que não há mais dúvidas nossos dias. Tradução Maria Bragança. Portu-
de que a sexualidade incide de forma determi- gal: Dom Quixote, 1998.
nante na composição das sociedades, nas es-
tratégias físicas e nos elementos culturais. PORTER, R. História do corpo. In: BURKE, P.
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Edusp, 2001. HISTORIOGRAPHICAL APPROACHES:
NOTES FOR THE HISTORY OF SEXUALITY
FOUCAULT, M. A história da sexualidade: o
Resumen: The present essay proposes a concise
cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1988. v. 3. debate related to the subject of the sexuality in the
History. It indicates, especially, the historiographical
______. A história da sexualidade: o uso dos context of the New History and the Cultural History,
prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1988. v. 2. its methodological and theoretical tendencies, which
permitted important transformations in the last deca-
______. A história da sexualidade: a vontade des. It points at the subject of the sexuality that has
de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. v. 1. had highlight and relevance in the context of the An-
nales’ historiographical movement. Presenting the
______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: different sexuality exponents, it emphasizes some of
Graal, 1979. the works, that the present time, form the methodo-
logical and theoretical foundation for the research of
GINZBURG, C. O queijo e os vermes. São this area. It suggests the idea that the sexuality is
Paulo: Companhia das Letras, 1987. an already legitimized subject in the international and
national scope and it constitutes itself in a very pro-
LIMA, L. L. G. da. Mulheres, adúlteras e pa- mising field for the academic research. Finally, it in-
dres: história e moral na sociedade brasileira. tends to show how the studies related to the sexuality
Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1987. permit an interdisciplinary progress among the areas
of humanities.
Palabras clave: History; historiographical; sexua-
MOTT, L. Escravidão e homossexualidade. In:
lity.
VAINFAS, R. (Org.). História e sexualidade no
Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

NOSSINTCHOUK, R. O êxtase e a ferida: cri-

Akrópolis, Umuarama, v. 20, n. 1, p. 55-62, jan./mar. 2012 61


VANNINI, I. A..

ISSN 1415-8167

• Publica trabalhos na área de Medicina Veterinária,


Zootecnia, Zoologia

• Periodicidade: Semestral

• e-mail: arqvet@unipar.br
http://revistas.unipar.br/veterinaria

O conhecimento não é nada se não for compartilhado

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