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Universidade de Brasília – UnB

Instituto de Artes – IdA


Programa de Pós-Graduação em Artes
Disciplina: Seminário Avançado 1 e 2 - 1º período de 2009
Professores: Geraldo Orthof, Fátima Burgos, Pedro Alvim, Roberta Matsumoto

Do Pressuposto ao Conceito: a personagem

Fernando Martins
Licenciado em Artes Cênicas (UnB – 2007).
Mestrando do PPG - ARTES na linha de pesquisa Processos Composicionais para
a Cena, com orientação da Prof. Dra. Silvia Davini.

Brasília, 08 de junho de 2009.

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Do Pressuposto ao Conceito: a personagem.
“Ressoar implica em abrir e multiplicar sentidos e requer, portanto, de um imaginário
em constante expansão nutrido por uma prática conceitual sintonizada
com as temperaturas micropolíticas do desejo...”
Silvia Davini, Brasília, 2008

Uma acentuada instabilidade conceitual aparece explicitada numa prática onde,


geralmente, damos por pressuposto o consenso a respeito de questões que nem sequer
estão claramente definidas, nem mesmo nos textos utilizados como referência. Esta
dinâmica pode ser percebida ao analisarmos o conceito de personagem, que circula no
meio artístico e acadêmico, como uma instância delimitada de forma concreta. Dessa
forma, este conceito, crucial na prática teatral, é dado como inquestionável, uma vez
que pressupomos que todos o entendem e estão de acordo ao seu respeito.

O que é uma personagem? Uma pergunta simples e mais uma vez, pressupomos
que pode ser respondida, sem maiores dificuldades, por atores, atrizes ou diretores de
um modo geral. No entanto, esta indagação, ao ser explicitamente colocada, provoca
impasses profundos, que raramente são superados. Considerando esta questão como
ponto de partida, este artigo pretende apresentar uma aproximação pragmática ao tema
da abordagem conceitual no campo do teatro.

Para tanto, esta argumentação se serve da definição conceitual de personagem


proposta por Constantin Stanislavski, que será problematizada diante de uma
abordagem contemporânea, formulada por Silvia Davini. A proposta não corresponde a
contrapor um conceito e outro, e sim, com advento da formulação mais recente, propõe
uma via de superação para uma questão, aparentemente simples, mas de indiscutível
importância no que diz respeito às referências da produção teatral contemporânea.

Stanislavski tem se constituído em referência iniludível no campo da preparação


de atores, desde o início do século XX. Uma aproximação ao discurso do autor pode
elucidar a escassa definição de contorno do que ele apresenta como personagem. Ao
tratar o tema, o autor diz que o objetivo de quem atua “não é somente criar a vida de um
espírito humano, mas, também, exprimi-la de forma artística e bela. O ator tem
obrigação de viver interiormente o papel e depois dar à sua experiência uma encarnação
exterior” (STANILAVISKI: 2003; pág. 44). É possível identificar a partir dessa noção
de trabalho, que a personagem, uma vez idealizada, compreende uma entidade viva e

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ativa, num plano espiritual paralelo à realidade, sem apresentar referências diretas ao
texto teatral.

Diferentemente, a abordagem proposta por Davini parte do texto teatral e


conceitua a personagem como ‘lugar de fala’, ou seja, configurada não só pelo que diz,
mas por ‘como diz o que diz em cena’. Para Davini, “dos modos dominantes nas
texturas verbais, da materialidade vocal de quem atua e dos seus estilos de atuação,
surge a alquimia de tempo e espaço que dá lugar à personagem em cena” (DAVINI:
1998; p. 03). Tal abordagem consiste em conceituar o texto teatral como um mapa, de
intenso contato, e a palavra como a própria materialidade do trabalho do ator, que mais
tarde dará forma às personagens. Para tanto, esta proposta pede por um trabalho
conceitual consistente, que permita uma reconsideração das idéias dominantes de
sujeito, de tempo e de espaço e, portanto, do corpo humano.

Inegável a percepção de que a personagem se configura no corpo de quem atua,


mas cada abordagem propõe uma rede conceitual distinta, que merece consideração.
Portanto, não há como falar em personagem sem situar também o conceito de corpo
presente em cada um desses discursos. Primeiro temos:

A fim de exprimir uma vida delicadíssima e em grande parte subconsciente,


é preciso ter controle sobre uma aparelhagem física e vocal
extraordinariamente sensível, otimamente trabalhada. Este equipamento
deve estar pronto para reproduzir instantânea e exatamente, sentimentos
delicadíssimos e quase intangíveis (STANILAVISKI: 2003; pág. 44-45).

A linguagem apresentada oferece pistas, aparentes na opção pelo uso dos termos
‘aparelhagem’ e ‘equipamento’, que indicam o conceito de corpo situado como um
instrumento do ator. Esta noção, dominante no campo do teatro contemporâneo,
apresenta limitações conceituais incontestáveis e não só podem, mas devem ser
argumentadas.

No desejo de apresentar uma proposta concreta de superação aos impasses


gerados pela consideração constante do corpo como instrumento do ator, Davini propõe
a formulação conceitual do “corpo como lugar de produção ou primeiro palco da cena”
(DAVINI: 2008; p. 19), ou seja, o primeiro lugar de intersecção das dimensões visual e
acústica. Ela aponta a falácia da noção instrumental através de uma única pergunta: se o
corpo [humano] é um instrumento, onde está o instrumentista? Em outras palavras, se o
corpo é o instrumento do ator, onde se situa o ator? E acrescenta “um instrumento é uma
ferramenta, uma prótese, que utilizamos para um dado fim e, portanto, não é nem pode

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ser humano [...]. Os limites entre corpo e instrumento são os limites entre humano e não
humano” (DAVINI: 2008; p. 74). Assim, o que a autora denomina ‘visão instrumental’
configura-se também, como um sintoma da instabilidade conceitual que atravessa a
área.

Uma vez localizado o corpo como lugar de produção, a voz é definida como
“uma produção do corpo na mesma categoria que o movimento. Porém, por constituir-
se em lugar da palavra, a voz comporta uma capacidade de definição discursiva muito
maior que o movimento” (DAVINI: 2008; p.60). Desta forma é possível apontar que, de
fato, a abordagem proposta por Davini, se propõe a revisar inconsistências conceituais
que limitam qualquer argumentação sobre a atividade teatral, quando por outro lado, o
conceito de corpo como instrumento não permite, por exemplo, a localização da voz e
da palavra. Se o corpo é um equipamento, o que é a voz? O equipamento do
equipamento? Inevitavelmente, estas propostas conceituais perdem possibilidade de
sustentação ao serem confrontadas com tais perguntas. Ainda a respeito do corpo
humano, Sulian Vieira nota que:

Somente nas últimas décadas do século XX o corpo humano se tornou


objeto de discussão nas Ciências Humanas, nos Estudos Culturais e na
Filosofia. No que diz respeito às noções de corpo que circulam hoje no
campo dos estudos teatrais, observa-se que a confluência sujeito-corpo no
trabalho dos atores contribui para a opacidade na definição dos limites e
extensões do que chamamos de corpo humano (VIEIRA: 2008; pág.02).

Tardiamente tematizado no campo dos estudos teatrais, o conceito de corpo


encontra pouca consistência a partir da ‘visão instrumental’, que não dá conta da
complexidade de questões que envolvem o tema, principalmente daquelas surgidas da
interação corpo e tecnologia.

A diferença de abordagem sobre a personagem e sobre o corpo do ator em cada


proposta possibilita problematizar outra questão ao combinar as informações adquiridas,
entre ambos os casos. Quando Stanislavski declara que:

Na prática, o que terão de fazer é mais ou menos isto: primeiro terão de


imaginar, a seu próprio modo, as ‘circunstâncias dadas’ fornecidas pela
peça, pela encenação do diretor e pela sua concepção artística própria. Esse
material todo lhes dará um contorno geral para a vida dos personagens que
representarão e as circunstâncias que os cercam. É preciso que vocês,
realmente, acreditem nas possibilidades gerais dessa vida e depois se
habituem a ela até o ponto de se sentirem muito próximos. Se o
conseguirem, verão que os ‘sentimentos que parecem verdadeiros’ e as
‘emoções sinceras’ crescerão espontaneamente em vocês (STANILAVSKI:
2003; pág. 81).

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O trecho apresentado é um dos raros momentos em que o autor, apresenta de
forma explícita e direta, uma indicação sobre o que ele pensa ser o trabalho de atuação.
Ainda sim, ao tratar o assunto dessa maneira ele atribui uma grande carga de
passividade a esta atividade. Uma noção recorrente na obra de Stanislavski que reduz o
trabalho do ator à reprodução ao indicar que “quando as condições interiores estiverem
preparadas – e certas -, os sentimentos virão à tona espontaneamente” (STANILAVSKI:
2003; pág. 83). Davini aponta que “uma abordagem introspectiva da atuação, de um
modo aparentemente paradoxal, promove fortes implicações políticas, incidindo
também de forma peculiar sobre o lugar a palavra em performance na cena
contemporânea” (DAVINI: 2007; p. 02). Pensar o trabalho do ator como condutor da
ação cênica implica em interferir nessas dinâmicas consolidadas, que foram mistificadas
e, consequentemente, deslocam o trabalho de atuar para noções explícitas de não
atividade. De fato, como sustentar o trabalho em cena considerando que a personagem
atua sobre o ator e não o contrário?

As propostas de Davini apontam definir um marco conceitual consistente, para


favorecer a consolidação de noções mais complexas a respeito de teatro, bem como,
conceitua o corpo de maneira a dar conta do como afetamos e somos afetados pela
tecnologia e o meio. Obviamente, a voz e a palavra, reconhecidas dentro desta
abordagem, retomam sua potência afetiva, tantas vezes plasmada na história do teatro
ocidental. A esse respeito declara:

Se o que dizemos sobre as coisas revela o que pensamos sobre elas, a


instabilidade conceitual, assim como a recorrente consideração da voz como
instrumento do ator, no discurso produzido sobre a voz no teatro, indica a
necessidade de uma reflexão consistente, originada no campo da produção
de voz e palavra em performance (DAVINI: 2008; p. 84).

Enquanto Davini aponta a retomada da palavra como lugar de destaque na


experiência teatral, as propostas de Stanislavski distanciam-se desse desejo, uma vez
que o autor declara ser preciso estudar uma personagem “quanto à época, o tempo, o
país, as condições de vida, os antecedentes, a literatura, a psicologia, a alma, o sistema
de vida, posição social e aspecto exterior” (STANILAVSKI: 2003; pág. 50), sem
qualquer indicação objetiva quanto à produção de voz e palavra referente ao texto. O
que temos é a noção de “personagem como entidade fixa, surgida duma biografia
unívoca, trabalhada a partir de todo o que nunca será concretamente apresentado em

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cena” (DAVINI: 2008; p. 03). Stanislavski não percebe na superfície do texto a
materialidade da cena e referente à questão declara:

O dramaturgo acaso fornece tudo que os atores têm de saber sobre a peça?
Pode-se, acaso, em cem páginas, relatar inteiramente a vida da lista de
personagens? O autor, por exemplo, fornece pormenores suficientes daquilo
que aconteceu antes do início da peça? E faz-nos, acaso, saber o que
acontecerá depois de terminada ou o que se passa por trás das cenas? O
dramaturgo, freqüentemente, é avaro nos comentários [...] E as falas? Será
bastante decorá-las? Será que os dados fornecidos descrevem o caráter dos
personagens e nos indicam todos os matizes dos seus pensamentos,
sentimentos, impulsos e atos? A tudo isso o ator deve dar maior amplitude e
profundidade. Nesse processo criador a imaginação o conduz
(STANISLAVSKI; 1996; 88 - 89).

Davini aponta que “a ênfase na individualidade do ator, colocada por


Stanislavski, mantém sua vigência nas tendências de Teatro Laboratório que, diversas
em aparência, compartilham da mesma linhagem conceitual” (DAVINI: 2008; p. 03).
Consequentemente, esta abordagem individualista e introspectiva se sobrepõe às
propostas dos autores, que acabam sendo desqualificados de forma arbitrária e
autoritária. Tal pressuposto indica que é preciso completar, com saturações pessoais,
uma suposta ‘deficiência’ nas obras teatrais.

Diferentemente, o discurso que cerca a personagem como ‘lugar de fala’, se


desenvolve a partir de uma intensa aderência ao texto teatral, contato este que, implica
numa dimensão política, ao considerar a personagem como um modo discursivo imerso
no universo da peça. Nesse sentido, a palavra aparece considerada como primeiro plano
de sustentação do trabalho do ator. Esta noção de personagem constitui uma rede de
abordagem que conflui para uma modulação do pensamento, no sentido de superar a
parca produção conceitual que impede o desenvolvimento de um discurso surgido no
campo da produção teatral.

Este breve percurso sobre as noções de personagem, corpo e voz, permite uma
aproximação a esta questão crucial, instaurada no campo do teatro contemporâneo.
Analisar a mecânica de pensamento de Stanislavski, provavelmente o autor mais
referenciado na área, pretende também identificar as manobras que fizeram desse
discurso, o material mais difundido internacionalmente ao longo do século XX até hoje.

A partir de uma prática conceitual sintonizada às altas temperaturas da arte, este


artigo propõe uma reflexão a respeito de dois modos diferentes de contato com o ato
teatral, que para tanto, requer renovada produção terminológica e, obviamente, de maior

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densidade conceitual. Em Stanislavski a personagem é considerada primordialmente,
independente do corpo de quem atua, portanto, da voz, da palavra e do movimento que
este corpo produz. No entanto, ao considerar a palavra como ponto de partida para
configuração da personagem, Davini busca diversas referências na história do teatro
ocidental, onde a manifestação teatral esteve calcada na experiência sonora.

Questionar e problematizar questões evidentemente pouco definidas na proposta


de Stanislavski faz parte de uma dinâmica que busca a expansão do conhecimento e
produção conceitual no campo das artes cênicas. No mesmo sentido, cabe questionar a
hegemonia destas publicações, difundidas em português nos anos 1930. A que demanda
corresponde essa consideração como imprescindível para o trabalho do ator, se
anteriormente, há registros de 25 séculos de história de um teatro potente no ocidente
apoiado na escuta? O que houve com esses outros registros? Evidentemente, não trato
aqui da desconsideração à produção de Stanislavski, mas sim, ao questionamento dos
efeitos deste material na produção conceitual contemporânea diante de evidências que já
localizaram o teatro ocidental como uma prática potente.

Qual o lugar da palavra na atualização da personagem em cena hoje? Os


conceitos de personagem aqui apresentados, buscam elucidar questões para que as
propostas técnicas e metodológicas considerem o corpo de quem atua no sentido de não
calar a palavra no teatro contemporâneo.

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Referências Bibliográficas

DAVINI, Silvia Adriana. Cartografías de la Voz en el Teatro Contemporáneo. El Caso de


Buenos Aires a fines del siglo XX. Colección Textos y Lecturas em Ciencias Sociales,
Buenos Aires, EdUNQ, 2008. ISBN 978-987-558-127-2

_______. O Jogo da Palavra. Humanidades – Teatro. N0 44, pp.37-44, Ed. UnB, Brasília, 1998.

_______. O Corpo Ressoante: estética e poder no teatro contemporâneo. Portal ABRACE,


Belo Horizonte, 2008.

_______. Voz e Palavra – Música e Ato (capítulo). Ao Novo Encontro da Palavra Cantada -
Poesia, Música, Voz. Org. Neiva de Matos, Cláudia; Elizabeth Travassos e Fernanda
Teixeira de Medeiros, Editora Apoio FAPERJ, Rio de Janeiro, 2007.

STANISLAVSKI, Contantin. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro. Civilização


Brasileira, 2003, 19ª edição.

_______. A construção da Personagem. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2004,


12ª edição.

_______. A Criação de um Papel. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2002, 8ª


edição.

VIEIRA, Sulian. Do Corpo como Instrumento ao Corpo como Lugar, Anais do V Congresso
da Associação de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas /ABRACE. Belo
Horizonte, 2008.

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