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ENTREVISTA DE MARCOS ARRUDA

A importância do indivíduo e
da diversidade nos caminhos da
solidariedade
**
A BAHIA
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mais sólidos
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a uma nova
a umapráxis
nova social.
práxis social.

A&D: Para começar eu que- para começar a me perguntar por- colocar tudo isso a serviço da so-
ria que você falasse um pouco da que é que havia gente pobre. ciedade.
sua trajetória pessoal – do que o Todo o estudo de história era um Descobri a realidade das em-
despertou para os temas sociais estudo “empacotado”, como se a presas transnacionais, que dão
e de como suas idéias foram mu- sociedade tivesse sido feita auto- continuidade à colonização do
dando, ao longo do tempo, até maticamente, definitivamente, do Brasil pelos portugueses e pelos
chegar, hoje, à proposta de eco- jeito que ela é hoje: nunca teria ingleses. E a conjuntura política da
nomia solidária. sido diferente, nunca vai ser dife- época era a da renúncia do Jânio
Marcos Arruda: É uma longa rente. Só quando quando partici- e depois a da crise do Jango, que
história. Na minha infância eu via, pei das lutas do nosso povo com levou ao golpe militar. Participei
perto da minha casa, em Botafo- a Juventude Universitaria Católi- disso tudo muito intensamente,
go, uma favela, a Dona Marta – ca (JUC) foi que comecei a me dar enfrentando uma grande crise
dali vinham as nossas emprega- conta dessas coisas. Fui além da com minha família, que era con-
das. Eu já nasci vendo aquelas preocupação com uma fé pura- servadora, que não tinha nenhu-
pessoas do morro trabalharem na mente espiritual, exotérica, no ma consciência social e que tinha
minha casa e nunca me ensina- sentido negativo de estar lá fora, uma identidade muito grande com
ram que aquilo era injustiça soci- lá em cima, desconectada do os Estados Unidos.
al. A impressão era que aquilo mundo de cada dia. Fui literal- Minha família era do Rio de
fazia parte de nossa vida. Foi pre- mente sacudido pela realidade Janeiro, de classe média, marca-
ciso eu chegar à Universidade brasileira, pelo desafio que era da por uma história de vínculo
estudar geologia, pelo sentido que com o integralismo. Integralismo
*
Entrevista concedida a Débora Nunes, douto- tinha a pesquisa e descoberta de idealista, não-fascista, mas inte-
ra em Urbanismo (Universidade Paris XII), pro-
fessora e pesquisadora da UNIFACS e da UNEB. minérios e petróleo e por como gralismo. Ligada também a toda

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A IMPORTÂNCIA DO INDIVÍDUO E DA DIVERSIDADE NOS CAMINHOS DA SOLIDARIEDADE

a fala contrária ao nacionalismo, de Pernambuco, e Almino Afon- mais completo, mas o americano
a tudo que era getulismo, popu- so, Ministro do Trabalho do gover- que chefia o projeto em que você
lismo e sindicalismo representa- no Jango. O grande objetivo era entraria vetou o seu nome”. Isso,
dos por Getúlio Vargas, Jango, levar adiante, junto com os sindi- porque eu tinha sido dirigente es-
General Lott. Então foi preciso um catos, os políticos e os profissio- tudantil. Comecei a trabalhar
rompimento, o que se deu quan- nais de energia, a proposta de como tradutor para a Editora Vo-
do eu tinha entre 18 e 19 anos. Vivi uma Minerobrás, uma espécie de zes e fui fazer alfabetização de
esse rompimento na medida em Petrobrás dos minérios, para con- jovens e adultos trabalhadores da
que tinha um grande desejo de trolar o subsolo brasileiro e colo- periferia do Rio. A polícia bateu lá
descobrir uma nova ligação da cá-lo a serviço de desenvolvimen- em casa... Fui embora, com mi-
minha fé com a vida histórica, to do país. Creio que esse foi um nha esposa, para São Paulo e lá
terrena e cotidiana, com a luta do dos fatores que motivou o golpe continuei fazendo alfabetização
povo para fazer um mundo me- militar, porque ameaçava interes- de trabalhadores. Dei aulas de
lhor sem opressão, dominação, ses diretos de algumas empresas geociências, trabalhei um tempo
injustiça e desigualdade. americanas que vieram a financiá- na revista Realidade, da Editora
lo. Quando houve o golpe, passei Abril, e também dei aulas particu-
A&D: Você vem de um meio algumas semanas escondido, lares. Sobrevivemos assim um
católico conservador? porque o diretor da minha escola tempo e, depois que meu casa-
Marcos Arruda: Venho: for- – Othon Leonardos – era direitista mento terminou, larguei tudo e fui
mação católica conservadora, ferrenho. Depois que vi que não trabalhar como operário em uma
escola de padres, depois estudei havia perigo, voltei à faculdade e empresa, com o objetivo de aju-
com os jesuítas... Tudo muito fe- me formei em 1964. Nossa turma, dar os trabalhadores a se educa-
chado, doutrinário. Fiz letras clás- considerada “subversiva” pelo Di- rem e organizarem, a aprenderem
sicas durante o ano e meio que retor, não teve direito nem a ceri- a ler, escrever e a ter uma moti-
passei com os jesuítas e, ao sair mônia de formatura. Não encon- vação.
do seminário, comecei a estudar trei trabalho como geólogo no Rio
geologia. Veio então a segunda de Janeiro e, já casado, acabei A&D: Você tinha um vínculo
etapa da minha vida, agora como indo para Petrópolis. Passei um político nesse período?
geólogo. Ao ganhar consciência ano lá, trabalhando numa área de Marcos Arruda: Sim, eu me
social, comecei a ter papel de li- que gosto muito, a aerofotointer- inspirava na experiência dos pa-
derança na escola. Primeiro, na pretação geológica, que envolve dres operários belgas e franceses,
turma; depois, como presidente o mapeamento de grandes áre- mas também tinha uma ligação de
do diretório, e, mais tarde, ajudan- as, o estudo de geologia estrutu- simpatizante com a Ação Popular,
do a criar a Executiva Nacional dos ral e a identificação de áreas fa- que tinha uma vertente de intelec-
Estudantes de Geologia e sendo voráveis à ocorrência de minérios. tuais que trabalhavam em fábri-
eleito para presidente dessa exe- Demitido, em razão de problemas cas para ajudar os trabalhadores
cutiva. financeiros da empresa, tive que a se conscientizar, a se educar.
Tudo isso se deu entre 1962 e procurar outros trabalhos, mas Fiquei dois anos trabalhando como
1964, ano do golpe militar. Nesse ainda não encontrava nada no Rio operário. Foi uma experiência di-
período eu participava da JUC. No de Janeiro, tudo estava fechado fícil, que me ensinou muito, prin-
mês de fevereiro de 1964, partici- para mim. Cheguei a entregar cipalmente a da convivência com
pando do Grupo de Política Mine- meu currículo ao Departamento os operários: pude saber o que era
ral, ajudei a organizar um grande Nacional de Produção Mineral, a vida de cada dia deles, a ami-
encontro em Belo Horizonte, que mas um amigo, que já trabalhava zade, a confiança, aprendi a viver
teve como tema “minério não dá ali, terminou por me dizer: “de to- com uma cultura tão diferente da
duas safras”. Tivemos a presen- dos os candidatos você é o mais minha. Com os operários, acho
ça de Miguel Arraes, governador capacitado, o que tem o currículo que talvez eu tenha vivido um cho-

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que cultural maior do que, mais questão ampla e abrangente, que dos, alguma lhe marcou particu-
tarde, como exilado no exterior do combinava com minha visão polí- larmente?
Brasil. A diferença de classe so- tica de que era o Estado que tí- Marcos Arruda: Nos Estados
cial e de escolaridade às vezes é nhamos de conquistar e que era Unidos, me marcaram alguns
maior que a diferença entre naci- dele que deviam vir todas as so- companheiros, alguns professo-
onalidades, línguas – os operári- luções. Ao longo do meu trabalho res americanos: Brady Tyson, que
os falam outra língua, têm outros de economista e de educador, vim me despertou o interesse pelo
hábitos, seu modo de se relacio- a descobrir um outro caminho. estudo da economia e me ajudou
nar é outro. Você tem que se re- Entre 1975 e 1978, trabalhei com a entrar para a American Univer-
ciclar para poder se integrar. Para sity; um iugoslavo chamado Branko
mim, foi uma experiência de acul- A macroeconomia que Horvat, com quem estudei a ex-
turação ou, melhor, de incultura- estudei me levou a ver o periência iugoslava de coopera-
ção, muito rica e muito especial. tema do desenvolvimento tivismo, mas também Celso Fur-
Nesse contexto, fui preso, tor- como uma questão ampla e tado, que foi meu professor em
turado, passei nove meses na pri- abrangente, que combinava Washington, James Weaver, e
são... Consegui sobreviver a es- com minha visão política de pessoas como Robin Hahnel e
ses terrores todos e virei caso da que era o Estado que Howard Wachtel, que desde
Anistia Internacional, porque mi- tínhamos de conquistar e aquele tempo escreviam e tinham
nha mãe fez uma campanha no que era dele que deviam vir um envolvimento social. Também
exterior e conseguiu mobilizar as todas as soluções. estudei Otávio Ianni nessa época.
igrejas católica e protestante nos
Estados Unidos em torno do meu Paulo Freire e equipe no Instituto A&D: Você era da linha cepa-
caso. A Anistia Internacional me de Ação Cultural (IDAC), e fomos lina...
adotou como prisioneiro de cons- assessores do governo da Guiné Marcos Arruda: De certo
ciência e começaram a chegar Bissau e do Cabo Verde na cons- modo. O Raul Prebisch é uma
muitas cartas de pressão ao go- trução de programas de educação grande herança, um dos grandes
verno militar perguntando porque de jovens e adultos. Não uma economistas latino-americanos,
eu estava preso. Acabaram ten- educação abstrata ou mecânica, mas eu tinha uma visão bem crí-
do que me libertar. Ameaçado de aquela de o “Ivo viu a uva”, “O rato tica porque vinha de uma militân-
nova prisão para esperar o julga- roeu a roupa de Rita”. Estávamos cia social e política muita ativa.
mento do processo, iniciado so- trabalhando a realidade da Guiné Estudava economia já com uma
mente depois que me soltaram, fui Bissau, construindo materiais di- postura crítica e foi preciso eu ir
para os EUA, onde morava minha dáticos a partir daquela realidade, trabalhar na Nicarágua para viver
mãe, e foi lá que decidi estudar definindo as palavras geradoras uma transformação profunda de
economia. Morei quatro anos em a partir da pesquisa da realidade visão, de sentimento e de práti-
Washington e sete em Genebra, dos diversos setores da popula- ca. Essa viagem foi realizada em
Suíça. Nos Estados Unidos, aca- ção. Tudo isso em ligação com o 1979, ou seja, no período em que
bei o mestrado e trabalhei como tema do desenvolvimento do país, atuei no Conselho Mundial de
pesquisador econômico. Toda a da sociedade e da cidadania. O Igrejas, 1979/1982. Assim, quatro
economia que estudei sempre me objetivo maior era construir uma meses depois do triunfo sandinis-
levou para o que eu gosto mais. população sujeito do seu próprio ta, eu estava na Nicarágua, pes-
Geologia Estrutural é macro, são desenvolvimento. A grande cha- quisando os impactos das empre-
regiões amplas, e a economia que ve para mim começou ali, naque- sas transnacionais sobre as dife-
estudei foi macroeconomia, mais le trabalho com Paulo Freire. rentes regiões do mundo. Meu
do que micro. A macroeconomia principal contato era o Pe. Xabier
que estudei me levou a ver o tema A&D: Das pessoas com que Gorostiaga, coordenador do Mi-
do desenvolvimento como uma você fez contato nos Estados Uni- nistério do Planejamento e nego-

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ciador da dívida externa nicara- sistema paralelo ao sistema es- descobri, ao trabalhar com a edu-
güense, de quem me tornei ami- colar, com uma cronologia espe- cação de jovens e adultos, a ex-
go para toda a vida. Quando sou- cífica, adequada à realidade de periência do que eles chamavam
be que eu trabalhara com Paulo cada setor de trabalhadores do de “setor de propriedade social”,
Freire, me apresentou ao Pe. Fer- país, em conformidade com o que que se desenvolvia de modo pa-
nando Cardenal, então responsá- eles fazem, em termos de calen- ralelo às esferas estatal e priva-
vel pela organização da Cruzada dário, conteúdo e método de es- da e em interação com as mes-
Nacional de Alfabetização, o qual tudo. Quem trabalha na agricul- mas. Nesse setor de propriedade
me convidou a participar de uma tura de sobrevivência trabalha de social estavam as cooperativas,
reunião estratégica, em que se as associações de trabalhadores,
discutiriam idéias para a campa- Temos que criar um o tema da autogestão... Foi a par-
nha de alfabetização à luz das sistema paralelo ao tir daí que começou a minha pre-
experiências cubana e guineense. sistema escolar, com uma ocupação em ligar essas duas
Depois ele mesmo convidou-me cronologia específica, coisas. Eu dizia, já na época, que
a assessorar o Ministério da Edu- adequada à realidade de a educação não tem um fim em si
cação, na construção do progra- cada setor de trabalhadores própria, mas que seu objetivo é
ma de educação de jovens e adul- do país, em conformidade ajudar as pessoas a se tornarem
tos. Na época, a influência da ex- com o que eles fazem, em sujeito do seu próprio desenvol-
periência cubana era grande, muito termos de calendário, vimento, pessoal e coletivo. Tudo
marcada pela escolarização dos conteúdo e método o mais, instrumentação, profissi-
jovens e adultos. A idéia que eles de estudo. onalização, é meio. O principal é
tinham é de que era preciso alfa- aprender a viver, é aprender a ser
betizar jovens e adultos para que modo diferente de quem está na dono de si próprio, do seu cami-
esses entrassem imediatamente agricultura de exportação, na pe- nho e da sua caminhada, como
no sistema escolar, passando a cuária, ou no meio urbano em seus pessoa e como coletividade. Pas-
estudar com as crianças e ado- diversos setores. sei a ver o desenvolvimento como
lescentes e, pouco a pouco, fos- o desafio de fazer desabrocharem
sem subindo na escala da esco- A&D: Nesse período, sua con- os potenciais de cada pessoa, co-
la. Nossa experiência era oposta cepção de desenvolvimento eco- munidade e nação. Isso, para mim,
a essa. Nossa proposta partia da nômico era muito vinculada à atu- passou a ser um outro projeto po-
pergunta sobre quem é o analfa- ação do Estado? lítico. Não se tratava mais de par-
beto concreto, e não o abstrato. Marcos Arruda: Sim. Eu já ti- tir do Estado para todas as solu-
O concreto são trabalhadores, nha começado a mudar quando ções, tratava-se de construir
homens e mulheres que são, pri- estava na África e minha transfor- sujeitos individuais e sociais que,
meiro, trabalhadores, só poden- mação se acelerou muito na Nica- pouco a pouco, iam ganhando
do dedicar às aulas um tempo rágua. Nesse período eu não esta- consciência de si e de seu entor-
marginal, pois sua primeira preo- va mais com a equipe do IDAC, no, até se tornarem cidadãos ati-
cupação é sobreviver, manter a estava sozinho e com um desafio vos para defender seus interes-
família, manter os filhos. Então, muito mais próximo da minha cul- ses e transformar sua realidade.
qual é a chave para uma educa- tura, pois somos do mesmo con- Sem isso, qualquer Estado, por
ção deles e delas? O seu traba- tinente. Os africanos têm uma mais popular que se declare, vai
lho. Temos que tomar o trabalho outra cultura, não é a mesma coi- ser um Estado autoritário.
deles como referência primeira da sa que a América Latina. Havia
educação, adequando-a ao ritmo uma intimidade na realidade nica- A&D: Qual a influência de
e ao conteúdo desse trabalho, ragüense que eu sentia em mim, Paulo Freire na sua trajetória?
que é a primeira atividade. Isso que significava um desafio muito Marcos Arruda: Fui muito
significa que temos que criar um profundo. Foi na Nicarágua que marcado pelo meu trabalho e

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convivência com ele, pela nossa aconteceu depois. Não foram au- Carlos Afonso. Trabalhei quatro
amizade, que, na verdade, incluía tores econômicos que me deram anos no IBASE, mas tivemos al-
toda sua família: Elza, sua queri- essa percepção, foi minha práxis guns desacordos, principalmente
da esposa, Fátima, Cristina, Madá, de economista e educador, mais o sobre os objetivos do nosso tra-
Lute e Joaquim. Tenho uma imen- estudo do cooperativismo... Acho balho. A idéia deles era de um
sa dívida de gratidão para com ele que o Coraggio já escreve há mais Instituto que produzisse apenas
e Elza. Paulo Freire é uma das tempo que eu sobre essa temática, informação para a base social, o
pessoas que me marcaram não a partir dos seus estudos sobre a que, a meu ver, era insuficiente.
só como autor, mas como com- economia popular. Agora, minha Eu, que trabalhara como operário,
panheiro de trabalho, de vivências era solicitado continuamente para
em comum. Passei a incorporar Minha idéia da atuar na formação do trabalhador.
toda essa aprendizagem ao meu socioeconomia solidária, Com essa formação pretendia-se
trabalho de economista. Comecei do cooperativismo, de um que os trabalhadores se tornas-
a trabalhar a questão da educa- projeto de globalização sem capazes de selecionar e in-
ção dos jovens e adultos traba- cooperativa e solidária terpretar informações, pesquisar
lhadores como sujeitos da econo- eu construí a partir de sua realidade e que, a partir dis-
mia. Não era mais um projeto só uma infinidade so e da compreensão crítica re-
político, era político e econômico. de leituras, inclusive sultante, soubessem traçar seus
Era preciso que os trabalhadores históricas, mas também próprios planos de ação transfor-
se tornassem donos e gestores refletindo sobre as próprias madora.
dos empreendimentos em que experiências que eu
trabalham. No capitalismo eles só estava vivendo. A&D: Você escrevia sobre es-
poderiam ser donos se tivessem ses temas?
dinheiro, capital. No pós-capitalis- idéia da socioeconomia solidária, Marcos Arruda: Escrevia bas-
mo eles são donos pelo trabalho do cooperativismo, de um projeto tante. Tenho um curriculum vitae
que realizam. O valor do trabalho de globalização cooperativa e so- com 80 páginas de atividades e
é que deve ser o centro organiza- lidária, na verdade, eu construí a publicações, muitas delas no Bra-
dor da economia e não o capital. partir de uma infinidade de leitu- sil, mas também no exterior. E te-
ras, inclusive históricas, mas tam- nho um livro pronto, em castelha-
A&D: Nessa concepção você bém refletindo sobre as próprias no, com meus escritos sobre edu-
se aproxima de José Luis Coraggio. experiências que eu estava viven- cação de jovens e adultos na
Marcos Arruda: Conheci Co- do. Foi na aproximação com o co- Nicarágua, que ia sair pelo Institu-
raggio e a mulher dele, Rosa María operativismo no Rio de Janeiro, to Nicaragüense de Pesquisas
Torres, em 1985, na Nicarágua. no Rio Grande do Sul, na Espa- Econômicas e Sociais (INIES),
Ficamos muito amigos, na época, nha, com algumas assessorias a mas acabou não sendo publicado.
porque ele também era economis- movimentos cooperativos aqui no Vários artigos meus foram publi-
ta e discutíamos muito sobre a Brasil... cados, no Brasil, pela Revista de
economia do desenvolvimento da Cultura Vozes, outros, pelo IBASE,
Nicarágua. A mulher dele era edu- A&D: Fale-nos de como foi e outros ainda pelo Instituto de
cadora e eu tinha uma relação sua volta para o Brasil. Políticas Alternativas para o Cone
muito próxima com os dois. Mas Marcos Arruda: Eu voltei para Sul (PACS). No IBASE, comecei
Coraggio era um companheiro, não o Brasil em 1982 e continuei as- uma experiência maravilhosa, que
li muita coisa dele na época, éra- sessorando a Nicarágua até 1989. transferi mais tarde para o PACS.
mos colegas. Ele escreveu um óti- Desde 1979 estava empenhado Foi um trabalho no Vale do Aço de
mo livro sobre economias em tran- em criar o Instituto Brasileiro de Minas Gerais, centrado principal-
sição, refletindo sobre muitos Análises Sociais e Econômicas mente em Ipatinga, onde está si-
caminhos, mas acredito que isso (IBASE) junto com o Betinho e tuada a Usiminas, na época uma

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estatal tão ditatorial quanto o regi- fazer, já faziam, como educadores mos, liderança como catalisador,
me militar então vigente. Junta- das suas bases sindicais. Fomos serviço e co-responsabilidade.
mente com agentes de pastoral e destrinchando o assunto e, no fi-
sindicalistas da região, realizei ali nal, eles disseram: “está certo A&D: Vem daí seu vínculo
um seminário, em 1984, ao fim do Marcos, já que você não vai ser com o PT?
qual o pessoal da Usiminas, que responsável conosco pela tomada Marcos Arruda: Participei das
se opunha à direção sindical dessa decisão, deve mesmo ir primeiras discussões para a cria-
pelega da empresa, veio me con- embora”. Só 15 dias depois é que ção do PT, ainda no exílio, em 1979.
vidar para um outro seminário. O me telefonaram para dizer que Sou economista e educador do
objetivo deles era buscar respos- haviam decidido correr o risco de PT. Mas todas essas atividades
ta para a dúvida seguinte: “Se lan- concorrer e que já tinham feito a que relatei foram realizadas no
çarmos uma chapa para concor- inscrição da chapa, já me chaman- âmbito do PACS, uma instituição
rer às eleições sindicais e perder- do para fazer outro seminário, no aberta para trabalhar com qual-
mos, a Usiminas vai nos demitir e caso, de planejamento da campa- quer prefeitura que tenha uma
vamos passar anos para construir nha. Bom, nessa altura quase con- proposta democrática participati-
outro grupo de oposição dentro da seguimos ganhar a eleição sindi- va. Foi no PACS que comecei a
empresa. Desse modo, seria o cal em Ipatinga, mas a empresa e trabalhar a vertente do cooperati-
caso de concorrermos na próxima a ditadura Figueiredo fizeram tais vismo aqui no Brasil, principal-
eleição?”. Estávamos em 1984 – manobras e intimidações que aca- mente agora, nos anos 90, cola-
Figueiredo, ditadura, Delfim Neto bamos perdendo no segundo tur- borando para desenvolver o
e companhia. Expliquei-lhes que, no. Fizemos novos seminários e Fórum do Cooperativismo Popu-
talvez, a melhor pessoa para aju- surgiu um grande movimento po- lar no Rio de Janeiro. Para aí le-
dá-los fosse um sindicalista, lem- lítico dos operários: eles consegui- vei a experiência da Nicarágua,
brando que havia vários educa- ram eleger Chico Ferramenta – onde o trabalho sobre o desen-
dores sindicais ótimos, ao que ar- que fora candidato da chapa Fer- volvimento local comunitário era
gumentaram que não era pelo ramenta à presidência do sindica- atravessado pela tentativa de
conhecimento do sindicalismo que to – deputado estadual e, depois, construir formas coletivas de pro-
estavam me chamando, mas pela federal. Em 1988, ganhamos a priedade e gestão, sobretudo de
metodologia. Afinal concordei, co- prefeitura de Ipatinga e de Timó- construir uma educação a serviço
meçando aí uma colaboração de teo. Temos governado Ipatinga do aprendizado de se tornar su-
anos... Fiz um novo seminário com desde aquela época até hoje e jeito dessa gestão. Houve tam-
eles, que evoluiu até o momento estamos no segundo mandato em bém a experiência na Espanha,
em que disseram estar prontos Timóteo. E Ivo José, um dos mais onde companheiros como Enri-
para tomar a decisão e, nesse ativos membros da Pastoral Ope- que del Río, Joan Lluis Jornet e
momento, achei que era tempo de rária e do Grupo Ferramenta, está outros me instruíram tanto a res-
eu ir embora. Não concordaram, completando seu terceiro manda- peito da práxis cooperativa nos
apesar de eu lembrar que tinham to como deputado estadual. Hoje, territórios espanhol e catalão.
me chamado para ajudá-los a to- o Vale do Aço é uma região de fer-
mar aquela decisão, para a qual mentação social importante, uma A&D: Há uma corrente que
já estavam prontos, afirmando que espécie de grande árvore nascida identifica a economia solidária
queriam que eu permanecesse: das sementes plantadas com esse como uma vertente mais européia
“você é um companheiro, lutador pequeno trabalho de educação e a economia popular como sendo
e educador”. Assim, propus que a econômico-política com aqueles uma experiência mais desenvolvi-
discutíssemos, antes de acabar o dirigentes sindicais. Eles estão no da na América Latina, com particu-
seminário, o papel de liderança de poder e levam à prática aquelas laridades. O que acha disso?
um educador, uma vez que esse posições que discutíamos, o con- Marcos Arruda: A primeira
papel era o mesmo que eles iam ceito de liderança que trabalha- coisa a dizer é que nós queremos

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ENTREVISTA DE MARCOS ARRUDA

convidar todas as tendências a se de criador. Para mim, isso é uma A&D: Você acha que as pes-
juntarem, a convergirem no mes- coisa ingênua e também arrogan- soas que estão trabalhando com
mo esforço de construção. O que te. O que importa são as transfor- a idéia de economia solidária es-
importa é que haja essa conver- mações da realidade, aquilo que tão testemunhando na sua práti-
gência em termos de princípios, de a palavra consegue operar na ca, na sua forma de viver, de se
objetivos, do modo de colaborar, consciência de cada um e que relacionar, esses valores que são
respeitando-se ao máximo a diver- gera transformações concretas intrínsecos da economia solidária?
sidade de cada caminhada. Ao nas vidas das pessoas. Então, por Marcos Arruda: A resposta
mesmo tempo, os nomes são im- esse lado, não gosto de discutir os não pode ser sim ou não para to-
portantes. Eu, por exemplo, não dos nós, mas nuançada, uns mais
gosto da nomenclatura usada pe- Nós queremos convidar outros menos. Você tocou no pon-
los gaúchos – economia popular todas as tendências to central. O que propomos não é
solidária – porque dá a impressão a se juntarem, a só uma transformação objetiva,
de que é uma proposta, um proje- convergirem no mesmo das instituições e mesmo dos
to de economia que é muito bom esforço de construção. modos de relação de produção e
para o povo ou apenas para os O que importa é que haja reprodução na sociedade. Envol-
setores pobres da sociedade. Para essa convergência em ve também uma transformação
nós, o projeto de economia solidá- termos de princípios, de individual, dos valores, atitudes,
ria é um projeto global, para toda objetivos, do modo de comportamentos, do modo de re-
a sociedade. A idéia é de uma colaborar, respeitando-se lação entre nós. É uma revolução
globalização solidária, uma econo- ao máximo a diversidade intelectual, moral, espiritual de
mia globalizada solidária, envol- de cada caminhada. cada um de nós e essa é uma luta
vendo todos os setores da popu- de cada dia, porque o grande peso
lação, não só os pobres. Essa é a termos, discuto-os pelo sentido é a velha cultura, são os velhos
primeira observação. A segunda, que têm e esse sentido é impor- valores que estão presentes na
é que ninguém está preocupado tante. A minha opção tem sido por nossa existência. Eles atuam, dia
em ser proprietário de termos, em “socioeconomia solidária” e a ra- a dia, na nossa relação conosco
saber se foi o Orlando Nuñez, o zão é a seguinte: assim como te- mesmos, com os filhos, com a
Laville ou o Singer quem falou de mos que falar em democracia par- companheira, com os companhei-
economia solidária... Nós todos ticipativa para indicar a democracia ros de trabalho – aí nosso ego
estamos bebendo de fontes muito que não é a burguesa, também aparece dando gritos para ser re-
anteriores a nós. Os grandes cria- temos que falar em socioeconomia conhecido e cultuado. Mesmo
dores dessas vias de autonomiza- para identificar uma economia que quando estamos fazendo o dis-
ção do mundo do trabalho vêm do tem por objetivo o bem-viver e o curso da coletividade, da solidari-
século XIX. Aí encontram-se soci- desenvolvimento integral do ser edade, muitas vezes é o nosso
alistas, passam por Marx, Gramsci, humano e da sociedade e, portan- ego que quer aparecer. Quando
Landauer, Buber, Ventosa y Roig to, não é capitalista. É para casar, um atropela a fala do outro para
e outros, desembocando, na atu- na nossa mente, a economia com falar de solidariedade, mostrando
alidade, em gente maravilhosa que o social, com o político, para indi- desrespeito pela idéia e pela pa-
estamos encontrando aqui no car que tudo está unificado na lavra do outro, está fazendo o
Fórum Social Mundial (FSM), na vida concreta da sociedade, para oposto do que diz. Então, a nos-
Conferência e Seminário sobre sublinhar que é uma aberração sa idéia é que, na educação para
Economia Solidária. Acho que é ouvir o General Médici voltar do que cada um se torne sujeito, tra-
uma doença do Ocidente querer Nordeste muito chocado e dizer balhemos muito essa noção da
se apropriar individualmente das publicamente: “a economia do transformação pessoal e da luta
idéias, dos termos e dos concei- Brasil vai muito bem, a vida do – luta nos campos cultural, moral
tos e querer colocar lá sua marca povo é que vai mal”. e mesmo espiritual para sermos

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A IMPORTÂNCIA DO INDIVÍDUO E DA DIVERSIDADE NOS CAMINHOS DA SOLIDARIEDADE

humilde, para percebermos que preciso que falem e, quando eu do me corrigir a cada dia, apren-
assim como nós somos um cen- resistir, não é porque não quero dendo a ser melhor a cada dia.
tro do mundo, cada outra pessoa ouvir críticas, é porque tenho ra-
é também um centro do mundo e zões para ter agido daquele jeito. A&D: Aproveitando sua fala,
tem que ser respeitada como tal. Podem ser que sejam falsas ra- como você vê este momento do
Se a realidade é uma infinidade zões e é aí que vocês têm que mundo em que o neoliberalismo
de centros do mundo, diversos me responder – ‘olha, isso não é é vitorioso e, ao mesmo tempo,
uns dos outros e convivendo no correto’. Não tomem como se eu é contestado? Está se construin-
mesmo planeta, a melhor maneira quisesse agredir vocês, quando do uma nova opção, fazendo-se
é se integrar, fazer acordos e cri- uma nova proposta que podem
ar regras de boa convivência, de Se a realidade é uma estar ligadas a essas discussões
colaboração solidária, dando as infinidade de centros do espirituais de nova era, de novo
mãos e procurando um caminho mundo, diversos uns dos momento, de uma era mais ins-
em comum. outros e convivendo no pirada na solidariedade que na
mesmo planeta, a melhor competição...
A&D: Marcos, você é uma maneira é se integrar, fazer Marcos Arruda: As “viagens”
pessoa-chave para falar deste acordos e criar regras de do pessoal alternativo, espiritua-
tema. É um dos que lideram um boa convivência, de lista, às vezes vão pelo caminho
evento de importância internaci- colaboração solidária, errado. Mas isso não impede que
onal, o Seminário sobre Economia dando as mãos a origem da preocupação seja
Solidária do Fórum Social Mundial e procurando um muito positiva. É a busca de um
e, naturalmente, é muito solicita- caminho em comum. sentido para além do imediato e,
do. Como consegue exercer essa mesmo, desta vida transitória.
função e ao mesmo tempo estar parecer que foi agressão, venham Nós somos seres imanentes e
atento, aberto, disponível, humil- me dizer e vou explicar o porquê transcendentes ao mesmo tempo,
de, solidário... e se tiver feito mal, vou pedir des- então há uma sede, uma busca
Marcos Arruda: Não sei di- culpas”. É assim no dia-dia. Isso de algo mais além. Ninguém se
zer... me trabalhando a cada dia, tem a ver com a espiritualidade. satisfaz com a idéia de morrer e
procurando não me tomar tão a Quer dizer, para mim o sentido da acabar tudo – mesmo uma pes-
sério assim, procurando avaliar, a vida é uma escolha permanente soa materialista, se ela está fa-
cada dia, em que não estou sendo entre o ser humano agressivo, zendo bem a alguém é porque
coerente com os meus valores, competitivo, que está instintiva- acredita em alguma coisa a mais
me abrindo para as críticas dos mente dentro de nós e o potenci- do que no seu próprio interesse
outros, procurando ouvir, mesmo al de ser humano cooperativo, no aqui e agora. Então, acho que
quando discordo, me perguntan- convivial, amoroso que também esta onda de esperança no novo
do por que eu teria dado razão a está em nós. Entre os dois, temos século, numa nova consciência,
essa crítica, aprendendo a pedir que escolher, a cada momento, numa nova transformação, num
desculpas quando erro, dizendo em cada relação, e essa escolha ponto de mutação que leve a hu-
para todos, inclusive no meu tra- é a escolha entre o amor e o de- manidade a uma nova etapa, não
balho: “Não pensem que, porque samor. Nós todos estamos nessa é uma coisa abstrata, mas tem o
sou coordenador do nosso institu- luta, até na hora de morrer esta- potencial de transformar o concre-
to, sou infalível – me critiquem e remos nessa luta. Para mim, o to, porque chama de volta o ser
me ajudem a melhorar, não guar- sentido da nossa vida é escolher humano, chama-o a se ligar com
dem mal estar, sejam francos, o amor e é viver de acordo com aquilo que o fez se tornar a prin-
transparentes, porque eu só pos- essa escolha a cada momento. É cipal espécie animal no planeta
so mudar se souber o que está claro que somos cheios de defei- Terra: a comunicação, a coopera-
incomodando vocês. Para isso é tos... então, tenho que sair tentan- ção, o apoio mútuo na caminha-

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ENTREVISTA DE MARCOS ARRUDA

da evolutiva. Sou geólogo, estu- fazendo-se acompanhar por se- me conhecer, tenho que mergu-
dei biologia, antropologia, evolu- res que têm uma capacidade e li- lhar no fundo de mim e me per-
ção e tudo o mais e terminei es- berdade de escolha que lhes per- guntar quem sou, quem estou
crevendo uma tese de doutorado mite inclusive se separar dele ou sendo, que potenciais a Vida me
com um forte componente evolu- dela própria (ser absoluto) por um deu, potenciais que me cabe de-
tivo e sistêmico. Uma idéia mara- simples ato de vontade. É na es- senvolver ao longo da minha vida.
vilhosa que os pesquisadores têm colha voluntária de adesão ao al- Se eu descobrir que sou uma di-
desenvolvido é essa: a tendência, truísmo, à convergência e ao ple- versidade, que sou contradição,
os instintos agressivos não teriam no acolhimento do outro que se tenho a possibilidade de escolher
dado conta de fazer um ser hu- dos vários eus aquele que real-
mano chegar ao que ele é hoje. É na escolha voluntária mente pode me realizar mais.
Foi essencialmente a cooperação de adesão ao altruísmo, Este é o paradoxo do eu mesmo
que o fez evoluir, e alguns biólo- à convergência e ao pleno (self), o ser ao mesmo tempo eu-
gos e médicos chegam a ponto de acolhimento do outro que relação – o eu-e-tu e o eu-e-nós.
identificar isso como tendência se realiza o amor. E é isso que me leva a reconhe-
evolutiva... Há vários autores que Então, essa busca de cer o amor como o sentido do
tratam dessa questão: Humberto transcendência não tem nosso viver, é o que dá à idéia do
Maturana, Francisco Varela, chi- nada de apenas abstrato, amor o caráter de lei natural. Se
lenos; Teilhard de Chardin, geó- ela deve se converter descobrimos que neste dar ao
logo e teólogo francês, exilado na no nosso modo de vida outro, na amorosidade, na convi-
China durante anos; e orientais, nessa vida terrena. vialidade, estamos realizando a
como o militante, historiador e evolução, isso significa também
místico indiano Sri Aurobindo. São realiza o amor. Então, essa bus- que estamos indo adiante, elevan-
pessoas que afirmam a noção de ca de transcendência não tem do a consciência humana a níveis
que a nossa tendência à conver- nada de apenas abstrato, ela deve sempre. Há, assim, uma conver-
gência, à comunicação, à comu- se converter no nosso modo de gência para o que todos já sabe-
nhão, à amorosidade é uma lei da vida nessa vida terrena. É aqui e mos: maior felicidade, afeto, co-
própria natureza e não somente agora que temos que vivenciar municação, em vez de brigas,
um postulado ético ou moral. É essa busca e ela está desafiando guerra, agressividade, ódio. O
algo como um impulso que nos o nosso dia-dia – para mim não desafio para mim, como econo-
leva para adiante, ao qual pode- há divino lá fora, lá em cima, o mista, é criar uma economia amo-
mos aderir ou trair, porque uma divino está aqui dentro de cada rosa, uma economia para este ser
condição para esse processo de um de nós e de todo o universo. humano amoroso, uma economia
convergência se realizar é a liber- É ele que anima – esta é uma para que cada ato de troca seja
dade. A liberdade vem de uma palavra latina muito rica, ANIMA: muito mais do que um ato materi-
consciência autônoma – de indi- aquele que dá vida, dá alma, dá al de trocar objetos. É uma rela-
víduo, mas também de coletivida- vivência, dá consciência. É uma ção humana que carrega traba-
de e espécie – que ganha conhe- chama interior, inerente, imanente lho, energia, que tem, pois, uma
cimento de uma realidade em que a nós, não exterior. Então, se é dimensão invisível tão real e di-
pode escolher. Então, esse é o interior, eu estou intimamente li- nâmica quanto a visível. É uma
grande mistério. E quando se fala gado, o desafio está dentro de relação energética Em que eu dou
da relação com o divino, com mim, não está fora, não são re- e recebo ao mesmo tempo. Tenho
qualquer conceito de divino que gras que vêm de fora que me de- que querer bem a quem me deu,
se tenha, todas as fés se maravi- vem fazer desistir e me levar a e isso vai motivar o outro a me
lham com esse paradoxo. O ser andar num caminho e não em querer bem igualmente, ainda que
absoluto aceita se relativizar, cri- outro. É um movimento interior não seja essa a razão do meu dar.
ando seres ou, digamos assim, meu – mas para isso tenho que Quando cada um está preocupa-

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A IMPORTÂNCIA DO INDIVÍDUO E DA DIVERSIDADE NOS CAMINHOS DA SOLIDARIEDADE

do com o outro todo mundo ga- das massas de trabalhadores, o ser sujeito de cada outro e por
nha com isso. Esta é a idéia do mudou para mim. Não se trata de formar alianças, coalizões de su-
cooperativismo, da associativis- “massas trabalhadoras”, sujeito jeitos, coalizões subjetivas, que se
mo, da Economia Solidária. impessoal. Nós queremos cons- tornam novos sujeitos, sujeitos co-
truir um sujeito e este sujeito é, letivos. Assim, acabei perceben-
A&D: Eu queria que você fi- ao mesmo tempo, subjetividade, do que o projeto político vai muito
zesse uma relação ideológica e objetividade e sensibilidade, indi- além do que eu percebia naquela
material dessa experiência de vida vidualidade, comunalidade e so- época: é um projeto de “empode-
do Marcos Arruda que viveu os ciabilidade, então é a combinação ramento” de cada ser humano e
anos 60, cujo ideário era um so- de tudo isso. Desse modo, o eixo coletividade humana para o amor.
cialismo implantado pela tomada sai de uma coletividade sem cara Hoje as polarizações são muito
do poder, e este Marcos Arruda e vai para cada pessoa, cada in- grandes. Eu aprendi a dialética
de hoje, que aposta na idéia da divíduo, mas não o indivíduo abs- assim, quebrando os dogmas,
economia solidária. trato, isolado na sua totalidade, quebrando as visões, uni ou bidi-
Marcos Arruda: A grande mas um indivíduo-totalidade e, ao mensionais, descobrindo que a
mudança foi passar a ter uma nova mesmo tempo, parte de totalida- questão não é “ser ou não ser”,
concepção acerca do sujeito da des maiores. Portanto, responsá- mas sim “ser e não ser ao mes-
história. Aquela idéia do sujeito, vel por ser sujeito e por respeitar mo tempo”.

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