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Setembro/ 2019

Professor/autor: Dr. Marcos Orison Nunes de Almeida


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SUMÁRIO
Teologia Sistemática I - Introdução e Teontologia

Unidade II - Observando o fenômeno da teologia


Introdução..............................................................................................................................04
1. Teologia como ciência.......................................................................................................08
2. Teologia e experiência da fé.............................................................................................15
3. Teologia e palavra de Deus..............................................................................................20
4. Teologia, dúvida e reflexão crítica....................................................................................31

Unidade II - A estruturação da teologia cristã


Introdução..............................................................................................................................42
1. Caminhos históricos..........................................................................................................44
2. O paradigma moderno: o iluminismo...............................................................................54
3. A crise teológica na modrnidade......................................................................................64
4. Teologia pública.................................................................................................................75

Unidade III - O ser de Deus no Antigo Testamento


1. O conhecimento de Deus..................................................................................................91
2. Deus no Antigo Testamento: os patriarcas...................................................................101
3. Deus no Antigo Testamento: tradição mosaica............................................................112
4. Deus no Antigo Testamento: liga tribal e monarquia....................................................123
5. Deus no Antigo Testamento: exílio e pós-exílio............................................................134

Unidade II - A estruturação da teologia cristã


Introdução............................................................................................................................150
1. Fundamentação bíblica nos principais escritos............................................................151
2. Trindade............................................................................................................................162
3. Os atributos de Deus.......................................................................................................176
4. O conhecimento de Deus e a vivência da fé..................................................................184

Resultado dos exercícios....................................................................................................186

Teologia Sistemática I | FTSA | 3


UNIDADE 1 – OBSERVANDO O FENÔMENO DA TEOLOGIA

Introdução

Essa disciplina é a primeira de um grupo de quatro, que ocorrerão ao


longo do curso de graduação, que procura cobrir a área de Teologia
Sistemática, também conhecida como Dogmática Cristã. Olhando
desde uma perspectiva mais abrangente, é como se tivéssemos uma
única disciplina dividida em quatro blocos para tratarmos das principais
doutrinas cristãs.

Ao chamarmos essa disciplina de “sistemática” queremos nos referir à


tentativa de organizar em sistemas as ideias e os conceitos da fé cristã.
Ao chamarmos de “dogmática” o que focamos é o tema do dogma, ou
seja, um princípio fundamental inquestionável da fé aceito como verdade
última. Podemos pensar também que, de certa forma, as expressões
sistemática e dogmática estão assim relacionadas entre si: a sistemática
seria o caminho metodológico de organização do pensamento produzido
pela dogmática.

Vejamos como o teólogo Jürgen Moltmann discute essa questão:

Qualquer “summa” teológica consistente, qualquer


sistema teológico, reivindica a totalidade, a perfeita
organicidade e a coerência universal: De princípio,
deve-se poder dizer algo sobre o todo e sobre cada
parte. Todos os meus enunciados devem ser isentos de
contradições a ajustar-se mutuamente. A arquitetura
deve ser “como saída de uma fundição, inteiriça”.
Todo sistema teórico, inclusive o teológico, ostenta
por isso ao menos um certo atrativo estético. Mas
nisso reside também o seu poder de sedução: os
sistemas poupam a muitos leitores, e certamente aos
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deslumbrados, o pensamento crítico pessoal e uma
decisão independente e responsável, porque não se
apresentam para serem discutidos. Resisti por isso à
tentação de desenvolver um sistema teológico, mesmo
que fosse um sistema “aberto”.

A própria concepção da dogmática, familiar e


consolidada, despertou hesitações em mim. Na
linguagem política de César Augusto, “dogma”
significava decreto (Lc 2,1). Um decreto não pode
ser discutido criticamente e acima de tudo não pode
ser negado; se necessário, é aplicado pela força.
Evidentemente, o conceito teológico do dogma e da
dogmática está muito longe desta postura. Todavia, ele
envolve também o sabor, e muitas vezes também o gesto
positivo de uma sentença definitiva, que não admite
réplica. Mesmo quando não é fruto de dogmatismo, o
pensamento dogmático se expressa na teologia com
clara preferência de teses; teses, porém, não colocadas
em discussão, mas sim como enunciados que postulam
ou a concordância ou a rejeição, nunca um pensamento
independente e a responsabilidade pessoal. Induzem
o ouvinte a pensar segundo elas, não segundo o seu
pensamento próprio (200, p. 11).

Com base na argumentação de Moltmann, podemos ver que o dogma,


mesmo sendo um entendimento da revelação divina, principalmente
expresso nas Escrituras Sagradas, é o resultado de uma formulação
finita e contextual que contém, de forma imprecisa, a revelação. Por isso,
ele deve sempre ser visitado, ao longo do tempo, e avaliado para a sua
confirmação ou reformulação diante de um novo momento contextual
que se apresente. O dogma pressupõe a discussão e diálogo permanente,

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assim como uma responsabilidade por parte de quem o adota. O sistema,
por sua vez, carrega em si essa pretensão de completude, de entender e
explicar um conceito como um todo ou as várias partes que o forma. Aqui
também, vemos que embora os sistemas tenham sido gerados por meio
da reflexão contínua ao longo da história, em determinado momento eles
foram assumidos como acabados, excluindo a possibilidade de novas
reflexões e novos entendimentos que possam surgir com a mudança dos
contextos humanos.

Por outro lado, ao estudarmos a história da igreja, dos seus concílios e de


sua teologia, percebemos que a revisão dos conceitos teológicos sempre
ocorreu. Compreensões das doutrinas, mesmo no tempo bíblico, já foram
alvo de discussão e reformulação. Apenas como exemplo do que aconteceu
na igreja primitiva, posso citar os casos do Concílio de Jerusalém (Atos 15)
e do ensino de Apolo (Atos 18:24-19:7). Isso sem considerar toda a teologia
do Antigo Testamento que foi reelaborada no Novo. Um dos exemplos mais
explícitos desse esforço de reelaboração é o livro de Hebreus.

Nesse difícil processo de tentar compreender os conceitos teológicos,


a área de Teologia Sistemática ou Dogmática, acabou se tornando a
responsável por organizar o estudo dos dogmas da Igreja. Mas ao invés de
pensarmos em dogmas, que podem ter uma conotação mais pesada para
o efeito do estudo e reflexão, preferimos pensar em doutrinas. A expressão
doutrina representa o conceito de um corpo de ensino, que inclui tanto o
conteúdo quanto a ação, e está voltada para a instrução dos participantes
do povo de Deus, com especial atenção aos novos convertidos.

Por razões pedagógicas, a Sistemática clássica tem construído o seu


ensino em torno de sete grandes doutrinas: (1) Deus, (2) Cristo, (3) Espírito
Santo, (4) Criação (mais concentrada no ser humano), (5) Salvação, (6)
Igreja e (7) Últimas coisas. Normalmente, está incluída na Sistemática
uma Introdução à Teologia, que trata do seu objeto, método e história,
que recebe o nome técnico de prolegômenos.

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Saiba mais
As sete áreas clássicas da Teologia Sistemática:

1. Teontologia ou Teologia Própria (teo = Deus + onto = ser ou


existência)

2. Cristologia (cristo = ungido, se referindo ao Messias judaico que


veio a ser Jesus)

3. Pneumatologia (pneuma = vento, que acompanha a ideia


hebraica de ruach, aplicada ao Espírito divino)

4. Antropologia Teológica (antropo = ser humano, mas trata da


criação como um todo)

5. Soteriologia (soter = salvação ou salvador)

6. Eclesiologia (eklesia = assembleia, que transliterada forma a


expressão igreja)

7. Escatologia (eschata ou eschaton = últimas coisas, referentes


ao fim da história humana)

Há quem defenda a ideia de que o estudo da Missão, ou a Missiologia,


deveria compor uma oitava área da Sistemática. Outros já pensam que
a Missiologia deveria ser o fundamento ou pano de fundo para o estudo
das sete grandes áreas. Enfim, é claro que existem outras doutrinas
ensinadas pela igreja e que fazem parte da vida cristã, mas até aqui, tem-se
concordado com a elaboração sistematizada apenas dessas sete citadas,
tentando-se incluir outros assuntos à medida que elas são estudadas. É
de fundamental importância ter em mente que essas doutrinas, embora
didaticamente separadas, não são conceitos estanques e independentes.
Ao contrário, cada uma das doutrinas está intrinsecamente associada a
outra o que torna o seu estudo uma composição de ideias na tentativa de
compreensão da revelação divina como um todo.
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1. Teologia como ciência
A Teologia, no caso da cultura brasileira, pode ser comparada ao
futebol ou à medicina. Ela é um daqueles campos do saber que todo
mundo conhece um pouco e, possivelmente, tem alguma opinião
formada ou algum palpite para dar. No caso do futebol, por ser algo
tão arraigado na cultura e por contar com um excesso de informação e
exploração por parte das mídias, normalmente, faz com que saibamos
quais são as razões dos sucessos e fracassos de um time, qual deve
ser o melhor esquema tático de jogo, a melhor escalação, etc. Com a
medicina acontece algo parecido. Em um passado não muito distante,
nos acostumamos aos tratamentos e remédios caseiros, por isso, não
nos constrangemos em receitar e indicar caminhos para a resolução
de problemas de doenças e enfermidades. Em dias mais recentes, pela
falta de rigor na fiscalização na prescrição e venda de medicamentos,
também nos tronamos capazes de indicar aos outros aqueles remédios
que funcionaram em nosso tratamento pessoal. Em ambos os casos os
discursos e apropriações do conhecimento se dão sem nenhum estudo,
pesquisa ou formação específica. Quando há algum estudo, via de regra, é
superficial, inconsistente e sem qualquer orientação. No caso do futebol,
podemos afirmar que as consequências dessa participação opinativa
generalizada não causam danos às pessoas. Já no caso da medicina
popular, as consequências podem vir a ser nocivas e catastróficas.

O que ocorre com a Teologia é que a religiosidade é um fenômeno


humano que inclui todas as pessoas. Até mesmo os ateus têm opinião
sobre assuntos teológicos. No Brasil, mais ainda, por se tratar de um país
colonizado sob a custódia da Igreja Romana, que instituiu o catolicismo
como religião oficial durante a conquista portuguesa. Nesse sentido,
todas as pessoas sabem algo sobre Teologia. Ou ainda, alguns já sabem
tudo e resistem a conhecer mais ou de maneira diferente. Esse tipo
de comportamento é agravado por estarmos lidando com o campo da
religiosidade e da fé, que na maioria das nossas igrejas, veem a Teologia
como um conjunto de dogmas inquestionáveis.
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Acredito que a maioria das pessoas, quando perguntadas, definiriam
Teologia como o estudo de Deus. O impasse, no entanto, nessa definição
é que aquilo que seria o objeto do nosso estudo é, por essência,
inalcançável. O que estou afirmando, com base no entendimento do
que vem a ser qualquer tipo de ciência, é que ela pressupõe um objeto
de estudo com o qual se estabelece uma relação de aproximação e,
por assim dizer, de manipulação desse objeto. Quer dizer, em algumas
ciências esse pressuposto é mais perceptível que em outras. Por exemplo,
as ciências biológicas têm como objeto de estudo os seres vivos, sejam
eles, as plantas, os animais ou os seres humanos. Elas constroem o
seu conhecimento observando, analisando, propondo e testando suas
teorias e práticas usando os próprios organismos vivos. As ciências
exatas, ainda que tenham um forte componente teórico, possuem como
objeto de estudo as relações, descritas em forma de equações e leis, que
são estabelecidas no mundo material humano. A Matemática e a Física,
por exemplo, embora mais teóricas, encontram nas Engenharias a sua
aplicação e aproximação mais palpável desse objeto que é o universo
material. Ali é possível realizar testes e experimentos que comprovem
as teorias. As chamadas ciências humanas, também bastante teóricas e
complexas, partem do fenômeno humano, como objeto, ao tentar estudá-
lo em suas ações, comportamentos, relações, conhecimento, raciocínio,
emoções, etc. Mesmo não sendo consideradas exatas, seu objeto de
estudo, os seres humanos, ainda continua acessível e manipulável no
sentido da observação e testes do conhecimento.

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Saiba mais
Classificação da Ciência
A palavra ciência deriva do latim “scientia” e significa “conhecimento”.
A partir do momento em que as ciências tornam-se autônomas,
passam a ser classificadas em ciências formais, ciências da
natureza e ciências humanas. As ciências formais recebem esse
nome porque seus objetos de estudo não têm existência concreta,
como a matemática e a lógica. As ciências da natureza são aquelas
que estudam objetos que têm existência concreta, como a biologia, a
química, a física e a geografia. As ciências humanas são aquelas que
estudam aspectos relacionados com o comportamento humano.

Essa classificação é didática, ou seja, ajuda-nos a compreender


melhor os diferentes objetos de conhecimento e a diversidade
de métodos à qual precisamos recorrer para investigá-los. No
entanto, essa classificação é insuficiente, pois não se refere aos
objetos de conhecimento que necessitam de métodos diversos.
Também temos que considerar as novas ciências que surgem e
que apresentam traços das ciências humanas, das ciências da
natureza e das ciências formais simultaneamente.
Fonte: https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/filosofia/seis-topicos-fundamentais-
sobre-filosofia-ciencia.htm

A Teologia, no entanto, tendo, em tese, como objeto o ser de Deus, não


poderia ser considerada uma ciência por causa da falta de acesso ao
seu objeto. Elaborando um pouco mais essa afirmação, o que ocorre é
que Deus, em nossa própria definição, é algo que está além do alcance
humano. Se o ser humano é material, finito e temporal, Deus é imaterial,
infinito e eterno. Aqui recorremos aos conceitos de físico e metafísico,
imanente e transcendente. O ser humano faz parte do mundo físico, das
coisas criadas, esse em que vivemos, tocamos, sentimos, percebemos
e podemos acessar como objetos de estudo. Deus, por outro lado, é
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metafísico, está além do físico, ou seja, inacessível a nós, que pertencemos
e estamos limitados ao mundo físico. O ser humano é imanente, pertence a
esse mundo e se faz representar pelas coisas dele. Deus é transcendente,
pertence a uma realidade que não se faz representar pelas coisas desse
mundo, ou pelo menos, apenas por aproximações produzidas pelo ser
humano para o seu próprio entendimento.

Ora se a Teologia não é o estudo de Deus, tendo-o como objeto


propriamente dito, o que é, então? Permanecendo ainda com o termo
Teologia, composto por teo e logia ou logos, podemos pensar que ela é
o discurso, fala ou palavra (logos) sobre Deus. Obviamente, portanto, a
Teologia é uma tarefa humana. Somos nós quem falamos de Deus, sobre
Deus ou a partir de uma perspectiva divino-humana. Mas com base em
que objeto fazemos isso? Qual é o objeto da Teologia, então?

Exercício de fixação - 01
Considerando a temática da Teologia e seu objeto, responda: Qual
o principal argumento para a afirmação de que o objeto da Teologia,
como ciência, é inalcançável?
a) O fato de a Teologia não ser uma ciência e sim uma descrição da revelação
divina;
b) A transcendência do ser divino;
c) A limitação da revelação divina;
d) O desconhecimento da Palavra de Deus;
e) A falta de esforço humano no conhecimento, estudo e pesquisa.

Consideremos, a princípio, a argumentação de Clodovis Boff que gira


em torno da fé. Boff define a fé como elemento central da teologia.
No entanto, aquilo que ele apresenta como fé é um conceito bastante
elaborado e complexo. Para ele, “o que desperta a teologia é a fé e o
espírito crente. Mas antes de qualquer determinação particular (visão,
experiência, prática), a fé, em sua raiz mais profunda, é irrupção do
‘ser novo’, da ‘vida nova’”. Além disso, “podemos destacar na fé três
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componentes principais: a experiência, a inteligência e a prática. Assim,
a fé tem algo de afetivo, de cognitivo e de normativo”. Tendo a fé essas
três dimensões, abrangendo a integralidade da vida humana, para Boff,
ela se torna “simultaneamente princípio, objeto e objetivo da teologia”.
Mas, em que sentido o objeto da Teologia é a fé? Boff procura esclarecer:

A teologia é a fé mesma que se vertebra, a partir de dentro, em discurso


racional. É o desdobramento teórico da fé. É o seu desabrochamento
intelectual. Teologia é fides in status scientae (a fé em estado de ciência).
É o pathos que toma a forma do logos, a experiência que se faz razão. É
a sabedoria no modo do saber.

A teologia não acrescenta materialmente um pingo de luz


à fé. Desenvolve apenas seu conteúdo material. Desdobra
suas virtualidades latentes. É a ratio estendendo o
intellectus: a razão explanando a intuição. Portanto, a fé é
como a enteléquia da teologia, isto é, sua forma dinâmica
interna. É o seu conatus, sua alma viva e inquieta.
[...] Como se vê, a teologia como discurso se distingue do
discurso da fé, tal a confissão. Dá-se entre as duas certa
ruptura — uma ruptura no nível da forma, especificamente
da linguagem. A teologia é mutável, diversificada, enquanto
a fé tem um caráter absoluto, definitivo. (1999, p. 31).

A elaboração do conceito de fé, para Boff, recebe um alto grau de consideração


levando-a, sem que seja explicitamente mencionado, ao nível da experiência
mística. O crer em Deus envolve a integralidade da vida humana e por causa
da união mística do imanente com o transcendente, possui aspectos que
estão além da investigação científica racional. Isso significa dizer que
apenas alguns aspectos da fé tornam-se objeto da Teologia, enquanto tarefa
investigativa humana. Outros aspectos da fé, como o da crença, inserida
no âmbito da experiência mística, não podem constituir-se em objeto,
tornando-se inexplicáveis e inexauríveis. Por causa desse encaminhamento,
Boff acaba tendo que recorrer a um desdobramento do objeto da Teologia,
separando-o em objeto formal e material:
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1. O objeto material define a coisa de que uma ciência
trata. É como se alguém fizesse um “corte vertical”
na espessura mesma do ente e delimitasse nele uma
região, para dela em seguida se ocupar. Trata-se do
“quê” de um saber (objetum quod).
Sinônimos de “objeto material” são: matéria-prima,
temática, assunto, questão.
2. O objeto formal indica o aspecto segundo o qual se
trata o ente escolhido. É como se fizéssemos agora um
“corte horizontal” no objeto material, a fim de captar-lhe
um nível ou camada. Aqui temos não o “quê”, mas sim
o “como” de um saber.
Sinônimos de “objeto formal” são: aspecto, dimensão,
faceta, lado, nível, razão específica.
(1999, p. 41).

Explorando ainda mais essa ideia, Boff define o objeto material como
sendo o próprio “Deus e tudo o que se refere a ele, isto é, o mundo
universo: a criação, a salvação e tudo o mais” (1999, p. 43). Já o objeto
formal “é ‘Deus enquanto revelado’. Ora, o Deus revelado é o Deus bíblico,
o Deus do Evangelho, o Deus salvador [...] Por outras palavras, trata-se
sempre de Deus enquanto visto ‘à luz da fé’. Essa última diz a perspectiva
própria da teologia” (1999, p. 44). Concluindo, Boff afirma:

Portanto, a teologicidade de um discurso não consiste


no seu objeto material, mas sim no seu objeto formal. É
esse que determina se um discurso é ou não é teológico.
Ser teólogo é assumir uma ótica particular. É ver tudo à
luz de Deus. Em outras palavras: é ver em tudo o Divino.
Deus e sua ação. Pode-se assim dizer que o teólogo
usa os óculos da fé. Numa outra figura, fazer teologia
é Cristo nos pegar pela mão e nos levar pelo mundo,
fazendo-nos ver as cosias como ele as vê (1999, p. 45).
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Ainda que a Teologia, como dito anteriormente, tenha que lidar com a
tensão constante entre o imanente e o transcendente, o acessível e o
não acessível, ao estabelecer como teológico o caminho que se dá pela
experiência subjetiva da fé, expressa por Boff como sendo Cristo nos
conduzindo pelo mundo, encontramos, novamente, um impasse com a falta
de um objeto mais palpável e aberto à investigação coletiva. Na tentativa
de vencer esse impasse, Boff indica uma alternativa mais concreta:

Importa darmo-nos conta que, embora a fé constitua um


só ato sintético, rico de múltiplas determinações, das
quais destacamos três: a fé-experiência, a fé-palavra
e a fé prática, é precisamente através da segunda
dimensão, a da fé-palavra, que se nos transmite o
conteúdo noético essencial da fé e, portanto, o princípio
inteligível da teologia [...] Por isso, devemos dizer que,
ultimamente, a fonte determinante da teologia é a
Palavra de Deus, como prefere a tradição protestante,
ou a Revelação, como costuma dizer a tradição católica
(1999, pp. 110-111).

É nesse ponto que quero concentrar a nossa atenção. Mesmo sendo a fé


composta por elementos que fogem ao inteligível, tangível e investigável,
é na concretização da revelação divina, por meio de sua Palavra, que
encontramos a fonte principal para o estudo teológico. Certamente,
esse ponto crucial para a tradição protestante reformada, pode não ter
a mesma consideração e tratamento por parte da tradição católica ou
mesmo de alguns ramos mais recentes do evangelicalismo. Assim, é
a Palavra de Deus, mais especificamente as Escrituras ou a Bíblia, que
acaba por se constituir o principal objeto da Teologia. Tentando esclarecer
um pouco mais essa afirmação e presente argumentação, consideremos
a discussão em torno da fé-experiência e o seu uso na Teologia.

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2. Teologia e experiência da fé
São raríssimos os casos de pessoas que tenham chegado à fé por meio
da investigação científica do texto bíblico ou de outras literaturas, feita
individualmente, de modo independente. A grande maioria das pessoas
passam a crer ou, na linguagem popular, se convertem, por meio de uma
experiência de fé. Ainda que para se chegar a essa experiência tenha
havido algum tipo de argumentação lógica, via pregações, conversas,
folhetos, mensagens, etc., ela possuía uma abordagem mais existencial
e emotiva do que científica, no rigor do termo.

Mais que isso, a partir do momento em que se instaura a fé, por meio
de uma experiência, que podemos chamar de mística, imediatamente já
estaremos elaborando uma teologia, no sentido de produzimos falas e
discursos sobre Deus. Todas as pessoas, então, são teólogas, porque
falam algo sobre Deus. Mas, que tipo de teologia é essa? Essa teologia
é o resultado da tentativa de entendimento e explicação a si mesmas e
às outras pessoas da experiência de fé. Ela é baseada na experiência,
quer seja do primeiro evento, quer seja de eventos subsequentes que se
dão, principalmente, na participação nas comunidades em momentos
de culto, louvor, oração, etc. De imediato, essa experiência deve, ou
deveria, produzir resultados e tornar-se concreta na vida da pessoa,
assumindo uma forma prática na transformação do caráter, nas ações,
comportamentos e relacionamentos. Talvez, apenas após algum tempo
experimentando e praticando a fé, surja o interesse por uma investigação
mais profunda, que inclua o estudo de cunho mais formal, ou acadêmico,
ou científico sobre essa fé. Em suma, vemos aqui o tripé da fé proposta
no tópico anterior: experiência, prática e inteligência.

Com base nessa breve argumentação, poderíamos até pensar em três


teologias ou três discursos teológicos. O primeiro discurso é aquele que
procura falar e tentar explicar a experiência da fé. O segundo, é o discurso
feito não necessariamente com palavras, mas com ações, tornando prático
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aquilo em que se diz crer. O terceiro é o resultado do uso do raciocínio
e lógica buscando construir um fundamento amplo e coletivo sobre o
que se crê. Olhando para as três teologias, o que deveríamos perceber é
que os discursos crescem em complexidade do primeiro para o terceiro
tipo. Em outras palavras, ao tentarmos construir um discurso, quando
partimos da experiência, dificilmente teremos uma plataforma de diálogo
comum, uma vez que a experiência é subjetiva, ou seja, pertence ao
sujeito, ao indivíduo que passa por ela. Estamos lidando aqui com a esfera
do testemunho, que possui sua importância e utilidade para a fé, mas
que contribui pouco para a elaboração doutrinária. Estamos adentrando
também em um terreno delicado no que diz respeito às tradições e
denominações cristãs. As tradições pentecostais e suas derivações dão
um tratamento diferente à experiência comparadas às tradições mais
antigas, históricas ou reformadas. O surgimento do pentecostalismo se
dá fortemente centrado na experiência mística, produzindo um discurso
teológico mais fluido no que se refere à construção das estruturas
doutrinárias. Já as tradições reformadas, centralizam o seu discurso mais
na argumentação lógica baseada no estudo das Escrituras, com o auxílio
do método científico, tendo supremacia sobre qualquer experiência.

Exploremos um pouco mais essa diferenciação. Por exemplo,


suponhamos que alguém diga que viu, ouviu ou sentiu algo, da parte
de Deus, e que aquilo tem um desdobramento ou consequência
para os outros ao seu redor. Se esse fato ocorre em um ambiente
pentecostal, uma vez que a experiência é tida como fundamental para
o discurso teológico, a tendência é que as pessoas deem crédito, sem
a necessidade de discussões racionais elaboradas, e acatem o que foi
dito. No entanto, qualquer nova experiência tende a ser avaliada tendo
como referência outras experiências passadas já que também existe um
discurso teológico anterior, embora, não necessariamente estruturado,
escrito ou doutrinariamente sistematizado. Juan Sepúlveda, um teólogo
pentecostal chileno, esclarece um pouco essa perspectiva a partir do seu
próprio contexto, mas que se aplica igualmente ao caso brasileiro:
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Em síntese, no pentecostalismo chileno a centralidade da
experiência sobre a doutrina será muito mais marcante
do que no pentecostalismo de origem americana.

É exatamente essa centralidade da experiência religiosa


que abriu um campo extremamente propício para a
inserção da experiência pentecostal na cultura popular
chilena. À medida que a oferta é de um encontro
intenso com Deus, comunicada mais com a linguagem
do corpo e dos sentimentos do que com a razão, o
pentecostalismo abre um novo espaço para que os
setores populares se expressem religiosamente.

[...] Considerando o que já foi dito, não surpreende que,


entre as pessoas que atuam no âmbito da teologia
acadêmica ou outros observadores das chamadas
igrejas históricas, seja um lugar-comum a afirmação de
que o pentecostalismo chileno “não tem teologia” [...]
Todavia, essa objeção parece apontar para algo mais
profundo. O pentecostalismo, como expressão religiosa,
tem seu fundamento mais na experiência (subjetiva) de
Deus do que na revelação (objetiva) divina.

[...] Naturalmente, uma teologia que parte da


experiência terá uma linguagem e uma metodologia
próprias, diferentes da clássica teologia conceptual
[...] Como a experiência não pode ser reduzida a
conceitos, uma teologia que nasce da experiência deve,
necessariamente, ser uma teologia narrativa, como o é,
em grande dose, a teologia bíblica.

A partir dessa perspectiva se pode afirmar, com toda


certeza, que o pentecostalismo chileno tem sua
teologia. Essa teologia, porém, tem de ser buscada nos
testemunhos (1996, pp. 66-68).
Teologia Sistemática I | FTSA | 17
O que ocorre com a teologia, tomando como referência o caso do
pentecostalismo, é que tendo a experiência mística como principal
conteúdo, o estudo e a formulação doutrinária ficam limitados. Ainda que
alguém argumente que as experiências possuam fundamento bíblico,
o que é observado e analisado não é o texto bíblico em si, mas sim as
próprias experiências, para efeitos de produção teológica. As experiências
chegam a um grau de relevância tal que podem vir a influenciar a exegese e
hermenêutica das Escrituras, fazendo com que o resultado da leitura possa
acabar sendo forçadamente adaptado às experiências. Outra objeção que
podemos levantar é a dificuldade de estabelecermos parâmetros que possam
verificar, ou não, a validade das experiências. Como podemos afirmar se
uma experiência testemunhada é aceitável para a construção teológica?
Uma opção seria a verificação da validade por meio de outra experiência,
semelhante àquilo que o apóstolo Paulo propõe em 1 Coríntios 14:26-27:
“Portanto, que diremos, irmãos? Quando vocês se reúnem, cada um de vocês
tem um salmo, ou uma palavra de instrução, uma revelação, uma palavra em
uma língua ou uma interpretação. Tudo seja feito para a edificação da igreja.
Se, porém, alguém falar em língua, devem falar dois, no máximo três, e alguém
deve interpretar”. Outra opção seria a validação por parte de um líder mais
experiente, que assumiria essa responsabilidade. No entanto, o que vemos
é que a validação acaba sendo uma questão coletiva de concordância sobre
alguma experiência e não uma avaliação lógica e referendada por algo que
esteja além da experiência, como por exemplo a Palavra.

Exercício de fixação - 02
Sobre o tema “A experiência e a Teologia”, é correto afirmar que:
a) A experiência não pode ser considerada como fonte válida para o
conhecimento teológico;
b) A experiência é um aspecto objetivo no discurso teológico uma vez que
é compartilhada pela comunidade de fé;
c) A experiência é um dos discursos possíveis, porém, de difícil elaboração
doutrinária;
d) A experiência é o aspecto mais importante na elaboração do discurso
teológico uma vez que expressa a fé genuína de quem encontrou a Deus;
e) A experiência é uma via de discurso da fé prática.

18 | Teologia Sistemática I | FTSA


Assim funciona a fé. Ela é sempre uma questão coletiva. Qualquer
expressão individual da fé só faz sentido dentro de um grupo ou
comunidade. Caso a expressão de fé seja algo totalmente individual, ela
será tratada como loucura ou excentricidade. O problema, no entanto,
é que a coletividade que atesta a contribuição da experiência para a
teologia não é ampla o suficiente para representar todas as tradições
cristãs. As experiências que ocorrem em um grupo específico não
conseguem ser transmitidas como fundamentação teológica para outros
grupos. Novamente, fica faltando algo que esteja além da experiência
e seja válido e aceito por todos para a construção das doutrinas da fé
cristã, entendidas como, em grande parte, comuns a todas as tradições.

É exatamente nesse ponto de tensão que queremos inserir o estudo


da Teologia. Sem desvalorizar a importância da experiência, porém,
reconhecendo a sua limitação intrínseca como plataforma inicial para a
reflexão e discussão, propomos estudar a Teologia a partir das Escrituras,
explorando o aspecto da fé inteligência, racional, cognitiva. Ao invés de
validarmos as Escrituras com base em nossas experiências, propomos
o processo inverso, ou seja, avaliarmos as nossas experiências com
base no texto bíblico. Mas muito além disso, a teologia que queremos
construir é a da busca pelos ensinos (doutrinas) revelados por Deus em
sua Palavra. São essas doutrinas que deverão ser a referência para a
nossa vida, transformando a teologia em prática, e referendando a nossa
experiência com a realidade divina.

A fé é algo profundo e complexo na vida humana. Pode-se dizer que ela é


anterior à própria teologia. No entanto, a experiência de fé é um mistério
que apenas nos insere em um outro universo que é o do conhecimento
do objeto último da mesma. Na experiência de fé somos alcançados por
Deus, mas após esse evento desvenda-se um caminho de busca pelo
conhecimento desse mesmo Deus. Uma vez que temos a Palavra revelada
como algo concreto, é ela que se constituirá no principal objeto de nossa
busca pelo conhecimento de Deus, acima mesmo da experiência mística.
É na Palavra que encontramos o fundamento comum e de concordância
entre todos aqueles que tiveram a experiência fé em Cristo.
Teologia Sistemática I | FTSA | 19
3. Teologia e Palavra de Deus
O desafio que se insere nesse momento, considerando a tarefa teológica
de estudo e estruturação das doutrinas cristãs, tendo como seu objeto
fundamental a Palavra de Deus, é o de estabelecermos alguns caminhos
de aproximação desse fenômeno literário. Antes de qualquer coisa,
a Palavra de Deus, conforme estamos considerando, é o que se faz
representar pela Bíblia Sagrada. Por sua vez, a bíblia é um livro ou uma
coletânea de livros. Ela foi formada por textos escritos por muitas pessoas
ao longo de muito tempo, por isso, é um fenômeno literário. Como tal,
exige uma aproximação específica que considere a sua formação, ou
seja, escrita, edição, cópia, canonização, etc.

Embora a Teologia Sistemática não aborde o assunto da formação da


bíblia, alguns estudiosos procuram, a título de introdução, comentar sobre
esse percurso, uma vez que a mesma constitui o principal objeto de estudo
e fonte das doutrinas. Minha intenção, portanto, não é esgotar o assunto,
nem tampouco tecer comentários detalhados sobre a formação da bíblia,
na particularidade de cada livro, falando sobre datação, autoria, estilo,
objetivo, variações, etc., e sim estabelecer um pano de fundo que nos auxilie
na consideração de alguns pressupostos que podem interferir na opção
metodológica que faremos na construção das propostas doutrinárias.

A maneira como nos aproximamos da bíblia determina a maneira como


fazemos teologia! Este é um dos aspectos mais importantes para essa
disciplina ou, talvez, para todo o estudo da Teologia. O que quero dizer
com isso é que a forma como encaramos os textos que compõem a
bíblia irá determinar a forma como elaboramos o nosso entendimento do
conteúdo ali presente e a construção das doutrinas.

O que está por trás dessa afirmação, às vezes de forma inconsciente, é


como consideramos o fato de a bíblia ser a Palavra de Deus. No passado,
alguns teólogos sugeriram a seguinte reflexão sobre a relação entre a
bíblia e a Palavra de Deus: seria a bíblia a Palavra de Deus ou conteria
a bíblia a Palavra de Deus? A diferença entre as duas opções está na
20 | Teologia Sistemática I | FTSA
perspectiva que podemos ter sobre o fenômeno literário. A primeira opção,
que considera a bíblia como idêntica à Palavra de Deus, é defendida por
aqueles que entendem que a Palavra de Deus está em cada letra do texto.
Assim, a forma editorial que acabou chegando até nós, considerando todo
o processo histórico, desde a tradição oral, passando pela escrita, até a
seleção do cânon, faz parte de um mesmo e grande milagre de revelação
divina. A segunda opção entende que a Palavra de Deus não está na
particularidade de cada palavra registrada e sim na mensagem que o texto
carrega, sendo a percepção da revelação apreendida pelo exercício da
exegese e da hermenêutica — interpretação —, e atestada pela comunidade
de fé. Os que adotam a primeira opção também tendem a defender aquilo
que se convencionou chamar de inerrância e infalibilidade do texto,
baseado em sua literalidade. Os que defendem a segunda opção tendem
a falar sobre inerrância e infalibilidade não do texto, mas da mensagem
divina, encontrada na análise do texto e sua interpretação.

Glossário
Inerrância – conceito de que o texto bíblico não contém erros em
sua composição literária, quer sejam linguísticos ou de conteúdo.
Essa ideia abrange o entendimento de que nas Escrituras não
ocorrem contradições ou imprecisões, mesmo quando o conteúdo
implica em assuntos que se relacionam às ciências como história,
arqueologia, física, etc.

Infalibilidade – conceito de que o texto bíblico não contém erros,


contradições ou imprecisões, especificamente, referentes ao que
ele afirma sobre assuntos de fé e prática.

Em torno dessa discussão estamos, na realidade, considerando alguns


conceitos, de forma implícita, que dizem respeito ao fenômeno literário da
bíblia. Esses conceitos são: revelação, inspiração e iluminação. O motivo
para tratarmos desses conceitos nessa disciplina se dá por duas razões
principais. A primeira, já mencionada, é por causa da consideração da
Teologia Sistemática I | FTSA | 21
bíblia como o objeto principal de estudo da Teologia. A segunda razão
é que a metodologia que usaremos para a construção das doutrinas
não será, prioritariamente, a sistematização argumentativa clássica e
sim a teologia bíblica, que será melhor detalhada, como aproximação
metodológica, mais à frente na disciplina.

Vejamos, então, em mais detalhes esses três conceitos associados ao


fenômeno literário da Palavra de Deus.

3.1. Revelação
Revelar significa tirar o véu de sobre algo, descobrir, trazer à luz aquilo
que estava oculto. Deus é aquele que está oculto ao ser humano em sua
condição de criador, por isso, argumenta Wolfhart Pannenberg,

Conhecimento humano de Deus, porém, pode ser


conhecimento verdadeiro, correspondente à realidade de
Deus, somente sob a condição de ter sua origem na própria
divindade. Deus somente pode ser conhecido quando ele
próprio se dá a conhecer. A sublimidade da realidade de
Deus torna-se inatingível para o homem se ela não se dá
a conhecer por si mesma [...] Se o conhecimento humano
de Deus fosse concebido de tal modo que o ser humano
arrancasse, por suas próprias forças, da divindade o mistério
da sua natureza, ter-se ia realizado de antemão um equívoco
em relação à divindade do referido deus. Um conhecimento
nesses termos em todo caso não seria conhecimento de
Deus, porque seu próprio conceito estaria em contradição
com a idéia de Deus. Por isso conhecimento de Deus jamais
é possível a não ser por meio de revelação (2009, p. 263).

Para conhecermos a Deus, então, ele tem que se fazer conhecido.


A isso chamamos revelação. Mas como Deus se revela? A Teologia
clássica tem proposto três vias para a revelação divina: a natureza ou as
coisas criadas, as Escrituras ou a sua Palavra, e Jesus Cristo ou a sua
22 | Teologia Sistemática I | FTSA
encarnação. Quanto à revelação que há na natureza, sobre Deus, Paul
Tillich oferece a seguinte explicação:

Embora nada se tornasse portador da revelação por


suas qualidades extraordinárias, estas qualidades
determinam a direção na qual uma coisa ou evento
exprime nossa preocupação última e nossa relação
com o mistério do ser. Não há diferença entre uma
pedra e uma pessoa em sua potencialidade de se
tornar portadores de revelação, entrando em uma
constelação revelatória. Mas há uma grande diferença
entre elas com respeito ao significado e verdade das
revelações midiatizadas através delas. Uma pedra
representa um número bastante limitado de qualidades
que são capazes de apontar para o fundamento do
ser e sentido. Uma pessoa representa as qualidades
centrais e, por implicação todas as qualidades que
podem apontar ao mistério da existência. Há, contudo,
qualidades em uma pedra para as quais a pessoa não
é explicitamente representante (o poder de suportar,
resistir, etc.). Tais qualidades podem tornar uma pedra
um elemento auxiliar na revelação através de uma
pessoa, por exemplo, a metáfora “rocha das idades”
aplicada a Deus (1987, pp. 104-105).

Como qualquer via revelatória, ela é limitada na caracterização do ser


divino, sendo insuficiente para explica-lo completamente, mesmo
considerando que o próprio ser humano faz parte dessa via. Por isso,
ficamos na carência de outros meios para o conhecimento de Deus, pelo
menos naquilo que ele deseja mostrar. A via mais cabal, então, é a sua
encarnação, ou seja, mesmo na limitação da forma humana, esvaziada da
própria divindade, é na pessoa de Jesus que ocorre o ápice da revelação.
Jesus é Deus falando e vivendo entre os humanos, comunicando de
maneira plena aquilo que quer revelar. A teologia reformada afirma que a
revelação divina cessou em Jesus Cristo. Tillich esclarece que:
Teologia Sistemática I | FTSA | 23
O cristianismo reivindica estar baseado na revelação
em Jesus, o Cristo, como sendo revelação final. Esta
reivindicação estabelece a igreja cristã. E, onde esta
reivindicação estiver ausente, o cristianismo deixou
de existir [...] O cristianismo muitas vezes afirmou,
e certamente deveria afirmar sempre, que há uma
revelação contínua na história da igreja. Neste sentido,
a revelação final não é última. Só se última significa
a última revelação genuína, revelação final pode ser
interpretada como a última revelação. Não pode haver
revelação na história da igreja, cujo ponto de referência
não seja Jesus como o Cristo. Se outro ponto de
referência for buscado e aceito, a igreja cristã terá
deixado seu fundamento. Mas revelação final significa
mais do que última revelação genuína. Significa a
revelação decisiva, plena, inexcedível, aquela que é o
critério de todas as outras. Esta é a reivindicação cristã.
E esta é a base da teologia cristã (1987, p. 116).

Antes de prosseguirmos, julgo apropriado tecer um comentário sobre


o conceito de revelação que estamos desenvolvendo. O que a teologia
reformada defende é que a revelação de Deus aos seres humanos,
naquilo que concerne à história da salvação ou mesmo à comunicação
de quem ele é, esgotou-se em Jesus Cristo. Dessa forma, não há mais
nada a ser revelado, nada que venha a ser uma novidade, quer seja sobre
Deus quer seja sobre o ser humano e sua salvação. No entanto, o uso
da expressão revelação continua sendo usado no cotidiano da igreja.
Alguém pode dizer, Deus me revelou tal coisa ou Deus está nos revelando
aquela outra coisa como igreja. Nesses casos, o que ocorre é o uso da
expressão aplicada a uma situação contextual específica e que se torna
um desvendar de algo até então desconhecido. Não se considera, no
entanto, que haja a possibilidade de que esse tipo de revelação venha
a trazer algo novo, adicional, àquilo que já ocorreu no passado ao falar
de Deus e que teve o seu ápice em Jesus. Trata-se de algo particular,
24 | Teologia Sistemática I | FTSA
pessoal ou coletivo, mas que não altera a revelação divina sobre si, sua
essência e sua vontade para a humanidade.

Retomando o raciocínio anterior, constatamos que apenas alguns


privilegiados tiveram a possibilidade de ver o Deus encarnado, ou seja,
o acesso a essa via revelatória foi encerrado na morte de Jesus. O que
ocorre, entretanto, é que outro caminho de revelação já estava disponível
na história humana. Esse caminho permanece até hoje entre nós, que é a
Palavra de Deus. Aliás, é pela Palavra que conhecemos, indiretamente, a
revelação final, que é Jesus. É pelo registro nas Escrituras que tomamos
conhecimento da encarnação, somando esse conteúdo à principal via
que temos acesso na atualidade.

Até aqui o que fizemos foi apenas destrinchar um pouco o conceito de


revelação. O que ainda não elaboramos, contudo, foi o entendimento
de como, de modo prático, se deu a revelação por meio das Escrituras.
É importante explorarmos um pouco esse assunto porque ele será
determinante para as possibilidades de entendimento de alguns recursos
que nos auxiliam na construção da teologia bíblica das doutrinas.
Recorremos, então, a uma tentativa de explicação de Wilfrid Harrington:

É claro que, se devemos ser fiéis aos dados da Bíblia,


não devemos compreender a “revelação” apenas no
sentido de afirmações de verdade abstrata, puramente
especulativa; devemos compreendê-la no sentido que
inclina todo o campo da automanifestação de Deus,
devemos abarcar tanto ações como palavras — pois
Deus não é essência abstrata, mas uma pessoa viva. E
o mediador ou intérprete dessa revelação não é apenas
o “profeta” que “recebeu” uma visão ou oráculo, e, em
seguida, o transmitiu a outros; ele é, antes de tudo, um
homem que teve um encontro com Deus, um homem
que chegou a conhecer o Salvador e Criador, que
experimentou o amor criador e salvífico de Deus.
Teologia Sistemática I | FTSA | 25
Restringir a revelação estritamente à assim chamada
“profecia” acarretaria o risco de negligenciar todo o
contexto existencial da ação, da história e da intervenção
pessoal que cerca a Palavra falada de Deus como Palavra
viva e vivida. Fracassar em reconhecer a revelação nos
eventos da história sagrada como na iluminação concedida
aos profetas significaria um perigoso empobrecimento da
extrema riqueza daquele encontro que Deus oferece aos
homens na Bíblia (1985, p. 36).

Destaco, a seguir, algumas ideias interessantes na argumentação de


Harrington. Para ele, a revelação não é um processo de apresentação de
“afirmações de verdade abstrata”. Deus não se automanifestou ditando
conceitos, proposições, ou fazendo construções verbais, na forma de
frases abstratas e genéricas, pela fala ou escrita de seus intermediários,
aqui identificados como “profetas”1. Antes, revelou-se por meio de
situações concretas da vida desses “profetas”, em suas experiências
pessoais, ações e palavras, inseridas em situações históricas e
existenciais concretas. Deus não se revelou, ditando aquilo que deveria
ser escrito, ipsis litteris — letra por letra —, pelos autores do texto sagrado.
O processo que ocorreu foi a transmissão das experiências com Deus,
primeiro na forma oral e depois na forma escrita, narradas por aqueles
que as vivenciaram, a partir de seus próprios contextos, limitados em
seus conhecimentos históricos e científicos. É por causa disso que para
tomarmos conhecimento amplo da revelação necessitamos estudar a
história, a geografia, a arqueologia, as línguas originais, os fenômenos
literários, etc. de tudo o que circunscreve a vida daqueles que transmitiram
suas experiências a nós.

1 O uso do termo profeta entre aspas é para caracterizar aqueles que serviram como
intermediários da Palavra divina na formação do texto. O termo não está restringindo
essa ação à conhecida função do profeta, oficial ou independente, assim identificado
nas Escrituras. Todos os que participaram na formação do texto sagrado são, assim,
considerados “profetas”.
26 | Teologia Sistemática I | FTSA
Exercício de aplicação - 03
Tendo em vista o conceito de Revelação, como podemos entender
este processo no que se refere à composição da Bíblia?
a) Deus se revelou falando verbalmente tudo o que deveria ser escrito;
b) Deus se revelou estruturando literalmente todos os conceitos
necessários para a vida humana;
c) Deus se revelou por meio de expressões gerais que valem para qualquer
situação da vida humana;
d) Deus se revelou ditando a sua mensagem especificamente aos profetas
escritores;
e) Deus se revelou usando as situações de vida experimentadas pelo povo
em sua relação contextual com ele.

3.2. Inspiração
Aprofundando um pouco mais o estudo da revelação, desenvolveremos
o conceito de inspiração, que está diretamente atrelado ao conceito de
revelação. Podemos dizer que a revelação se deu por meio da inspiração
divina dada aos “profetas” ou aos autores. É estranho notar, contudo, que
a expressão “inspirada por Deus” (theopneustos) aparece apenas uma
vez na bíblia e que, curiosamente, foi ela que mais marcou a maneira
como costumamos defender o processo de registro escrito da Palavra
de Deus: “Toda a Escritura é inspirada por Deus [...]” (2 Timóteo 3:16).
Complementando esta ideia temos o texto da carta de Pedro que trata
da profecia em geral, mas que, por conseguinte, tem sido aplicado à
inspiração na produção das Escrituras: “Antes de mais nada, saibam que
nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois
jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram
da parte de Deus, impelidos pelo Espírito Santo” (2 Pedro 1:20-21). O texto
de Pedro está em consonância com a compreensão veterotestamentária
da “inspiração” profética, por isso, não recorre a uma nova expressão
Teologia Sistemática I | FTSA | 27
(theopneustos), e sim a uma fórmula mais antiga (pheromenoi) que é a
de ser “impelido”, “guiado”, “conduzido”, “movido” a falar (elalesan), pelo
Espírito de Deus (pneumatos agiou), ou seja, significando ser inspirado.

Mesmo havendo uma distância entre a fala e a escrita profética, os


dois atos são considerados equivalentes, no sentido de reproduzirem a
Palavra de Deus, uma vez que, em certo sentido, a escrita é o registro
da fala. Olhando para as Escrituras, no entanto, não temos apenas o
registro das falas proféticas, propriamente ditas, dos profetas de ofício.
O que temos é o registro das muitas falas, por meio de narrativas de
experiências históricas do povo de Deus, dos vários outros profetas
no sentido amplo. Assim como a nação de Israel era simbolicamente
um reino de sacerdotes, também acabou se constituindo um reino de
profetas ao transmitirem a Palavra de Deus. Mas o desafio que temos é
o de definir o que entendemos por inspiração ou por alguém ser impelido
pelo Espírito na representação do registro da Palavra de Deus.

Especificamente no caso dos profetas de ofício, podemos vir a entender


que esse processo se dava por meio de uma experiência de êxtase,
visão ou audição, de uma manifestação divina, ou o que chamamos de
teofania. Um exemplo clássico é o de Moisés, considerado o primeiro
grande profeta do povo de Israel (Êxodo 3:1-4:17; 33:7-11). Outros
exemplos são os de Samuel, (1 Samuel 3:1-4), Isaías (Isaías 6:1-13) e
Ezequiel (Ezequiel 1:1ss). A maioria, no entanto, tem a sua contribuição
profética associada à fórmula “veio a palavra de Javé (SENHOR),
dizendo”, sem qualquer descrição ou explicação de como se dava esse
processo. Tirando os possíveis casos de teofanias, imaginamos que se
tratava de uma convicção pessoal e íntima, que levava o profeta a se
manifestar como recipiente de uma mensagem divina. Na maioria dos
casos não aparece qualquer alusão à manifestação do Espírito de Deus,
porém, esse entendimento parece ter sido construído, no passado, e estar
implícito na compreensão teológica da tradição do Antigo Testamento. O
texto de Números 11:16-30 aponta para essa construção, da associação
do Espírito de Deus como promotor da fala profética. Algo semelhante é
narrado em 1 Samuel 10:9-13 quando trata da autenticação da escolha
de Saul como rei de Israel.
28 | Teologia Sistemática I | FTSA
Em suma, o que se entendia é que aqueles que falavam em nome de
Deus, eram conduzidos intimamente pelo próprio Deus e o povo aceitava
suas palavras, quer seja pelo comportamento coerente ao conteúdo das
mensagens, quer seja pelo critério estabelecido na Lei, registrado em
Deuteronômio 13:1-5, de não falar algo contraditório à própria Lei. Mas
como mencionei anteriormente, não estamos tratando exclusivamente
do caso clássico da profecia e sim do entendimento da inspiração como
fonte de produção das Escrituras como Palavra de Deus. Não foram os
profetas de ofício quem escreveram a maioria dos textos e sim outros
autores dos quais não temos informações precisas. Mas o povo, por meio
da vivência e registro de suas experiências, passou a considerar alguns
textos como sagrados e como expressões válidas do ensino de Deus para
a vida. Aqueles que transmitiram pela tradição oral, e depois escreveram,
são considerados, portanto, profetas, porque falam a Palavra de Deus,
impelidos pelo mesmo Espírito que esteve com os profetas clássicos.
Não me parece que haja aqui a exigência de qualquer manifestação
sobrenatural ou teofania. O processo indica ser complexo, mas ainda
assim dirigido por Deus. Harrington apresenta a seguinte argumentação:

Devemos estar conscientes de que a maior parte dos


livros do Antigo Testamento é obra de muitas mãos, obra
que se desenvolveu através de um longo período, talvez
séculos. Todos aqueles que colaboraram na produção
de cada livro, quer tenham escrito a substância dele
quer tenham simplesmente acrescentado alguns
detalhes, foram inspirados. A maioria deles não tinha
consciência de estar sendo movidos por Deus; daqui
em diante, nós também consideraremos apena o
lado humano da Bíblia e a consideraremos como um
empreendimento coletivo, a obra de todo um povo que
depositou na Bíblia, através dos séculos, os tesouros de
sua tradição. Ela é a literatura de um povo, entrelaçada
na história desse povo (1985, p. 13).
Teologia Sistemática I | FTSA | 29
Algumas pessoas podem pensar no processo de inspiração como algo
quase similar ao da psicografia ou de uma possessão especial, mas o
que Harrington propõe é que o registro se deu de forma inconsciente,
por parte dos autores, de que estavam escrevendo a Palavra de Deus. A
inspiração aqui é entendida como uma condução silenciosa do Espírito
de Deus, ao longo de séculos, por meio de autores e editores, em meio
aos contextos, histórias e desafios da vida do povo de Israel na relação
com seu Deus.

3.3. Iluminação
Outro conceito atrelado à revelação é o de iluminação. Na verdade, todas
são expressões que tentam dar conta da complexidade da revelação
divina. Rapidamente, digamos que a revelação divina se dá por meio
da inspiração de pessoas para produzirem e registrarem a sua Palavra
à humanidade, mas ela não termina aí, pois, Deus também nos auxilia
no entendimento da sua mensagem. A esse entendimento, tido também
como sendo patrocinado por seu Espírito, chamamos iluminação.
A iluminação também pode ser entendida como a inspiração para o
entendimento, fechando o circuito da revelação. Alguns textos bíblicos
elaboram essa ideia: João 16:12-15; Romanos 16:25-27; Efésios 1:17-
18; 1 Coríntios 2:6-16. Mas assim como a inspiração não está sendo
considerada como algo imediato, dado como um pacote pronto, por um
processo de êxtase, o mesmo ocorre com a iluminação. O entendimento
da Palavra, mesmo tendo o auxílio do Espírito, exige esforço e aplicação
no estudo e conhecimento, usando as nossas faculdades mentais.

A iluminação para o entendimento não ocorre sem o conhecimento, por


exemplo, das Escrituras como um todo. Aliás, esse alerta está presente
na própria bíblia. O profeta Oséias, por exemplo, chama a atenção do
povo de Israel dizendo “Meu povo foi destruído por falta de conhecimento.
Uma vez que vocês rejeitaram o conhecimento, eu também os rejeito
como meus sacerdotes; uma vez que vocês ignoraram a lei do seu Deus,
eu também ignorarei seus filhos” (Oséias 4:6), e convida: “Conheçamos
o Senhor; esforcemo-nos por conhecê-lo” (Oséias 6:3). Aqui vemos a
30 | Teologia Sistemática I | FTSA
necessidade de conhecimento para a vida e de esforço para que ele seja
alcançado. Jesus, debatendo com os teólogos de sua época, afirma:
“Vocês estão enganados porque não conhecem as Escrituras nem o
poder de Deus!” (Mateus 22:29). Lucas ao elogiar os crentes de Beréia, por
sua postura no tratamento daquilo que era ensinado, indica um caminho
para todos: “Os bereanos eram mais nobres do que os tessalonicenses,
pois receberam a mensagem com grande interesse, examinando todos
os dias as Escrituras, para ver se tudo era assim mesmo” (Atos 17:11).

O apóstolo Paulo é aquele mais deu ênfase no uso da mente e da razão


na busca do que ele chama de “pleno conhecimento” (epignosis) dos
mistérios de Deus. Falando dos judeus, aqueles que foram responsáveis
pela maior parte da escrita e transmissão da revelação presente
no Antigo Testamento, ele critica a possibilidade de haver uma alta
consideração por Deus mas sem o necessário entendimento: “Pois
posso testemunhar que eles têm zelo por Deus, mas o seu zelo não
se baseia no conhecimento” (Romanos 10:2). Até mesmo em atos que
podemos considerar menos racionais, como a oração e o louvor, ele nos
adverte: “Então, que farei? Orarei com o espírito, mas também orarei
com o entendimento [noi = mente]; cantarei com o espírito, mas também
cantarei com o entendimento” (1 Coríntios 14:15). Sua argumentação
mais longa procura elaborar como se dá esse processo de iluminação
para o conhecimento da revelação divina que ocorre em uma íntima
relação entre o ser humano e sua mente, e o Espírito de Deus e sua mente,
formando em nós o que ele chama de mente de Cristo (1 Coríntios 2:6-
16). Esse é o desafio que está diante de nós.

4. Teologia, dúvida e, reflexão crítica


A curiosidade e a pergunta são marcas do ser humano desde muito cedo.
Antes de conseguir falar, ainda engatinhando, as crianças, movidas por
um cérebro ávido pela descoberta do mundo, se aventuram a testar e
provar tudo o que está a seu redor. Logo depois surgem os por quês e
os questionamentos que, muitas vezes, testam a paciência dos adultos.
Teologia Sistemática I | FTSA | 31
Grande parte dessa curiosidade que impulsiona o conhecimento vai sendo
deixada para trás à medida que crescemos, provavelmente freada pelos
limites e censuras impostas pelos ambientes, estruturas e instituições
que passam a governar a vida e as relações humanas.

Os ambientes teológicos, principalmente os eclesiásticos, são, em sua


maioria, cerceadores da dúvida. Os questionamentos são, de modo
geral, vistos como afrontas aos dogmas e à fé. É claro que existem aí
elementos de controle do discurso religioso e de manutenção do poder,
não explícitos, exercidos por parte da liderança, nessa ação de restrição.
Alguns chegam a aplicar o subterfúgio do uso impróprio de textos
bíblicos como autenticadores dos mecanismos de tolhimento da dúvida
(ex. Romanos 4:19-20; 14:23; Hebreus 6:11-12; Tiago 1:6-8). Estes textos
procuram contrastar a atitude de fé, no sentido da crença e confiança,
com a atitude de falta de fé, ou seja, da falta de confiança. Os textos,
no entanto, não estão tratando da dúvida como expressão natural da
curiosidade e propulsora da busca pelo conhecimento. Ainda assim, esta
dúvida é tratada como falta de fé, pelo menos na teologia expressa por
algumas instituições e grupos e, por isso, passa a ser repelida.

Podemos afirmar que o fazer teológico necessita da dúvida para realizar


a sua tarefa. Sendo a Teologia uma ciência investigativa e de constante
construção, considerando o fato de ser, sobretudo, humana e finita, mas
que busca a compreensão daquilo que é infinito, é na curiosidade que
ela se desenvolve. Às vezes, a dúvida, não necessariamente, conduz a
descoberta de algo novo. Ela pode apenas confirmar o que já se sabe
diante de alguma nova situação ou contexto, ou ainda expressar aquilo
que já se conhece de maneira mais adequada àquele contexto.

Exercício de reflexão - 04
Reflita como a dúvida contribui para a sua reflexão pessoal e
produção de teologia a partir de suas experiências e história de vida.

32 | Teologia Sistemática I | FTSA


4.1. A dúvida aplicada à busca pelo conhecimento
Minha intenção agora é explorar um pouco mais a ideia de que é na
dúvida curiosa que podemos encontrar um fator motivador para a
investigação teológica. Reforço a ideia de que este tipo de dúvida é
diferente da falta de fé. Pelo contrário, é porque cremos em Deus que
tentamos, curiosamente, compreendê-lo. Vale a pena trazer à mente que
a fé é vivenciada diante de um paradoxo constante, como elaborado no
evangelho de Marcos: “Se podes?, disse Jesus. Tudo é possível àquele
que crê. Imediatamente o pai do menino exclamou: Creio, ajuda-me a
vencer a minha incredulidade!” (Marcos 9:23-24). Na língua original as
expressões creio (pisteuo) e incredulidade (apistia) possuem a mesma
raiz, oriunda da expressão fé (pistis). Por isso, uma possibilidade de
tradução seria: “tenho fé, mas ajuda-me na minha falta de fé”.

De modo semelhante, o apóstolo Paulo também aborda esse paradoxo da


fé usando a experiência de Abraão. Em Romanos 4, ele elabora o tema da
fé e da justificação, ou salvação, e diz que Abraão “contra toda esperança,
em esperança creu” (v. 18). Ao explicar o paradoxo na experiência de
Abraão, Paulo usa como referência o texto de Gênesis 17:17: “Abraão
prostrou-se com o rosto em terra; riu-se e disse a si mesmo: Poderá
um homem de cem anos de idade gerar um filho? Poderá Sara dar à luz
aos noventa anos?”. A expressão rir-se (tsachaq), em hebraico, carrega
a ideia de divertir-se, brincar, zombar, ou seja, caracterizando, no relato,
um riso de dúvida. Comprovando a tese de que o autor de Gênesis está
construindo a noção bíblica do paradoxo da fé, logo no capítulo 18, ele a
expande usando quase que a mesma construção de frases anterior:

“Onde está Sara, sua mulher?”, perguntaram. “Ali na


tenda”, respondeu ele. Então disse o Senhor: “Voltarei
a você na primavera, e Sara, sua mulher, terá um filho”.
Sara escutava à entrada da tenda, atrás dele. Abraão
e Sara já eram velhos, de idade bem avançada, e Sara
já tinha passado da idade de ter filhos. Por isso riu
consigo mesma, quando pensou: “Depois de já estar
Teologia Sistemática I | FTSA | 33
velha e meu senhor já idoso, ainda terei esse prazer?”
Mas o Senhor disse a Abraão: “Por que Sara riu e disse:
‘Poderei realmente dar à luz, agora que sou idosa?’
Existe alguma coisa impossível para o Senhor? Na
primavera voltarei a você, e Sara terá um filho”. Sara
teve medo, e por isso mentiu: “Eu não ri”. Mas ele disse:
“Não negue, você riu” (Gênesis 18:9-15).

Paulo, entretanto, opta por não aprofundar a discussão sobre a presença da


dúvida proposta pelo autor de Gênesis e prefere destacar apenas o papel
da fé ou da esperança que vence a desesperança. Ainda assim, olhando
para as nossas próprias experiências de fé, sabemos que vivemos o dilema
de crer que não existe “coisa impossível para o Senhor”, mas devido às
circunstâncias e à desesperança, lutamos internamente afirmando a nossa
confiança, olhando para o passado, e caminhando na reafirmação dessa fé.

Se as coisas são realmente assim, não está em jogo aqui a fé em Deus e


sim a busca pelo conhecimento gerada por uma dúvida curiosa que quer
entender. Mais uma vez, recorro ao personagem Abraão para reforçar esse
raciocínio. Curiosamente, o texto que quero usar como referência para
a próxima argumentação encontra-se no mesmo capítulo 18 do livro de
Gênesis, dos versículos 16 a 33. O relato da história apresentada possui uma
construção bem interessante, parecendo querer ressaltar a importância da
dúvida curiosa na construção da elaboração do pensamento teológico.

A narrativa de Gênesis 18:16-33 nos ensina que a dúvida teológica é lícita e


própria, ela produz conhecimento e aprofundamento da relação com Deus.
Abraão parece concluir que não apenas pode se aproximar de Deus com
suas dúvidas e curiosidades, como também que o amor e a misericórdia
de Deus são maiores que sua ira, afinal, ele é essencialmente amor. Abraão
não precisou questionar indefinidamente, ainda que tenha sido necessário
um longo processo de elaboração teológica. Em determinado momento,
sua reflexão e o conhecimento obtido foram suficientes sanar a sua dúvida,
aquilo que havia motivado a investigação teológica.

34 | Teologia Sistemática I | FTSA


4.2. A reflexão crítica aplicada à busca pelo conhecimento
Se a dúvida curiosa é a mola propulsora da investigação teológica, a
reflexão é o seu caminho. Imagino que a origem do termo reflexão venha
primeiramente da Física, do fenômeno que ocorre com a luz ao se propagar
no meio e incidir sobre uma superfície. Explicando melhor, pensemos em
um espelho. Quando estamos diante de um espelho, o nosso corpo, ou
a luz emitida por ele, se propaga pelo ar, atinge a superfície do espelho
e retorna para nós. Os nossos olhos, então, conseguem captar essa luz
refletida fazendo com que possamos nos enxergar. Esse é um processo
contínuo. Enquanto houver luz e estivermos diante do espelho haverá
reflexão. Aplicando esse conceito da Física, de forma metafórica ao
pensamento humano, a reflexão seria o processo de idas e vindas de
uma ideia em nossa mente. Por conseguinte, a reflexão crítica é aquela
que consegue emitir opiniões e atribuir valores àquilo que é pensado.

Saiba mais
Reflexão crítica
Reflexão crítica é uma tomada de consciência; examinar ou analisar
fundamentos e razões de alguma coisa. Refletir criticamente é a
atitude de investigar e para isso é necessário conhecer aquilo que é
investigado, sem nenhum tipo de preconceitos e pré-conceitos.
Refletir criticamente também é posicionar-se a partir de um conjunto
de informações conquistadas com a pesquisa. Alguns termos usados
quando se fala em reflexão crítica é não julgar o livro pela capa; não
julgar o fato ou objeto sem antes conhecer criteriosamente suas
intenções, origem, autores, etc.
Reflexão crítica é uma reflexão abrangente, questionadora e autônoma,
é fazer com que um indivíduo vá além do que ele lê ou ouve, buscando
diferentes perspectivas para analisar um mesmo fato. É o fato de
não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as
situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana;
jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido como
um todo (http://www.significados.com.br/reflexao-critica/).

Teologia Sistemática I | FTSA | 35


Ressalto alguns pontos interessantes da definição apresentada sobre
reflexão crítica:
Conhecer o que é investigado sem pré-conceito;
Posicionar-se a partir de um conjunto de informações conquistadas com
a pesquisa;
Ser abrangente, questionadora e autônoma;
Ir além do que lê ou ouve;
Buscar diferentes perspectivas;
Não aceitar como óbvias e evidentes a existência cotidiana.

A maioria dos discursos teológicos que conheço, vindos dos crentes


comuns e também de alguns líderes e pastores, segue o percurso inverso
do proposto pela reflexão crítica. Há muito discurso pronto, pré-concebido,
sem a devida pesquisa e de segunda mão. Há muito pouco conhecimento
e sobra de preguiça. Poucos são os que conhecem a fundo a própria bíblia,
a principal fonte de revelação. Muitos são os que ignoram as línguas
originais, as formas literárias, a história, a geografia, os contextos, mas têm
a petulância de encerrarem discursos sem refletirem minimamente.
A narrativa da experiência de Abraão é um exemplo de intencionalidade
investigativa, porém, o apóstolo Paulo nos oferece um encaminhamento
ainda mais interessante. A bíblia nos informa sobre o currículo de Paulo,
de sua formação no judaísmo como alguém culto e como um teólogo bem
preparado: “Fui instruído rigorosamente por Gamaliel na lei de nossos
antepassados, sendo tão zeloso por Deus quanto qualquer de vocês
hoje” (Atos 22:3); “fariseu, filho de fariseus” (Atos 23:6); “No judaísmo,
eu superava a maioria dos judeus da minha idade, e era extremamente
zeloso das tradições dos meus antepassados” (Gálatas 1:14). Todo o
seu conhecimento da Lei e do judaísmo, no entanto, teve que ser revisto
à luz do encontro com o Cristo ressurreto no caminho para Damasco.
Para isso, ele passou três anos nas regiões da Arábia (Gálatas 1: 17-18)
e calcula-se que ainda mais uns dez anos2 no anonimato antes de iniciar
2 Este período é estimado com base nas datas oferecidas pelo estudo de Werner Kümmel
(1982, p. 326).
36 | Teologia Sistemática I | FTSA
seu ministério missionário. O resultado foi a produção de muitos textos e
a primeira sistematização da teologia cristã. Por isso, quero tomar o seu
livro mais teológico e denso, que é a carta aos Romanos, para basear a
minha defesa sobre a importância da reflexão no estudo da teologia.

Certamente Paulo também teve formação e conhecimento da cultura e


filosofia grega, e ele parece usar a argumentação lógica e retórica na
construção do texto de Romanos. No fundo, seu encaminhamento pode
ser considerado didático e nos auxilia a prestar atenção no uso da reflexão.
Paulo faz impressionantes setenta e quatro perguntas em sua carta3.
Parece que ele tem a intenção de externar a dinâmica do seu próprio
raciocínio, ou talvez antecipar os nossos possíveis questionamentos,
ou, pelo menos, estimular a nossa reflexão. Esse método serve como
exemplo daquilo que deveríamos fazer natural e constantemente diante
do estudo e conhecimento de Deus, que são as perguntas e a busca por
mais aprofundamento.

4.3. A autocrítica aplicada à busca pelo conhecimento


Considero que a maior virtude de um teólogo, e por que não dizer do
crente, seja a humildade. Aquele que acha que sabe, tende à soberba.
Pior, aquele que pensa que sabe algo sobre Deus corre o risco de querer
ser ou agir como ele. Como diz Paulo:

Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do


conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os
seus juízos, e inescrutáveis os seus caminhos! Quem
conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi seu
conselheiro? Quem primeiro lhe deu, para que ele o
recompense? Pois dele, por ele e para ele são todas
as coisas. A ele seja a glória para sempre! Amém
(Romanos 11:33-36).

3 Romanos 2:3, 4, 21-23; 3:1, 3, 6, 7, 8, 9, 31; 4:1, 3, 9, 10; 6:1, 2, 3, 15, 16, 21; 7:1, 7, 13, 24;
8:24, 31, 32, 33, 34, 35, 9:14, 19, 20, 21, 22-24, 30, 32; 10:6, 7, 8, 14, 15, 18, 19; 11:1, 2, 4, 7,
11, 15, 34, 35; 13:3; 14:10.
Teologia Sistemática I | FTSA | 37
Paulo, que talvez tenha sido o maior teólogo bíblico, afirma que os
juízos e os caminhos de Deus são impossíveis de serem explorados ou
investigados (insondáveis e inescrutáveis). Outra emblemática narrativa
bíblica é a do livro de Jó em que ele e seus amigos procuram entender e
formular teologias sobre o que teria acontecido na sua vida. Depois do
longo desenrolar de argumentações, de todo tipo, Deus, simplesmente,
apresenta uma série de perguntas a Jó, que ficam sem resposta (Jó 38-
41), das quais destaco apenas as que estão na introdução do trecho
apontado: “Então o Senhor respondeu a Jó do meio da tempestade.
Disse ele: Quem é esse que obscurece o meu conselho com palavras
sem conhecimento? Prepare-se como simples homem; vou fazer-lhe
perguntas, e você me responderá. Onde você estava quando lancei os
alicerces da terra? Responda-me, se é que você sabe tanto” (Jó 38:1-4).
Também o livro de Provérbios indica o caminho da sabedoria dizendo:
“Confie no Senhor de todo o seu coração e não se apoie em seu próprio
entendimento [...] Não seja sábio aos seus próprios olhos; tema ao
Senhor e evite o mal” (Provérbios 3:5,7). E, é claro, lembramos a célebre
expressão “Deus se opõe aos orgulhosos, mas concede graça aos
humildes” (Tiago 4:6).

O reconhecimento da nossa incapacidade de compreensão e


entendimento nos propõe um caminho de humildade e de busca
constante. Igualmente, essa postura deveria trazer aos palcos onde
ocorrem os diálogos e discussões teológicas o respeito pelo outro e
a abertura para ouvir, sabendo que todos estão na mesma condição
e busca. Por isso é necessário que façamos uma autocrítica sobre o
nosso nível de conhecimento, estudo e maturidade. A grande maioria dos
cristãos possuem pouco conhecimento. Isso se deve em parte à falência
da chamada Escola Bíblica ou Escola Dominical que durante muito tempo
serviu como formação para os membros das igrejas desde a infância.
Outro motivo é a atual forte ênfase na experiência, mística ou sensorial,
em detrimento do raciocínio e da aplicação das doutrinas na vida prática.
A concentração da vida religiosa nas atividades do culto reforça ainda
mais esse quadro. Os momentos litúrgicos que priorizam as experiências
sensoriais têm recebido mais destaque do que os momentos de ensino.
38 | Teologia Sistemática I | FTSA
Mesmo as mensagens têm tido um caráter mais apelativo às questões
existenciais do que um foco na construção do conhecimento das
doutrinas cristãs. As outras atividades, como as reuniões familiares,
de grupos ou células, têm priorizado mais a comunhão e o reforço das
mensagens dos cultos do que proposto algum currículo educacional às
pessoas. O resultado disso é a falta de conhecimento generalizada e a
superficialidade na fé.

Precisamos ser honestos nesse processo de autocrítica e admitir


que a maior parte do conhecimento teológico não se dá pela via da
investigação e estudo profundo. Ela se dá pela repetição daquilo que se
ouve em sermões, palestras, estudos, conferências, letras de cânticos,
testemunhos e experiências de outros. Para reverter essa situação,
é preciso humildade, dedicação, esforço e abertura para trilhar esse
caminho desafiador de tentar conhecer a Deus.

Exercício de aplicação - 05
Levando-se em conta aquilo que foi discutido até aqui, na
aplicabilidade da dúvida, da reflexão e da autocrítica na busca pelo
conhecimento, podemos concluir que:
a) Toda essa postura é uma demonstração da falta de fé em Deus;
b) Toda essa postura nos move a um entendimento mais profundo;
c) Toda essa postura é uma tentação diabólica;
d) Toda essa postura é válida, mas apenas nos casos bíblicos;
e) Toda essa postura é fruto da confusão mental causada pelo
pecado

Conclusão
A Teologia é uma atividade humana que deve ser encarada de maneira
natural e responsável, ainda que possa ser desenvolvida e motivada pelo
prazer da descoberta. Seu alvo final é a vida, como um todo. A busca
Teologia Sistemática I | FTSA | 39
pelo entendimento da revelação, do projeto de Deus para o ser humano,
pode se dar de maneira estruturada, sistematizada ou não, mas precisa
ter a consciência de que é uma tarefa de todos os creem, incluindo as
pessoas e as instituições que compõem esse ambiente.

A fé é algo profundo e complexo na vida humana. Pode-se dizer que ela é


anterior a própria teologia. No entanto, a experiência de fé é um mistério
que apenas nos insere em um outro universo que é o do conhecimento
do objeto último da mesma. Na experiência de fé somos alcançados por
Deus, mas após esse evento desvenda-se um caminho de busca pelo
conhecimento desse mesmo Deus. Uma vez que temos a Palavra revelada
como algo concreto, é ela que se constituirá no principal objeto de nossa
busca pelo conhecimento de Deus, acima mesmo da experiência mística.
É na Palavra que encontramos o fundamento comum e de concordância
entre todos aqueles que tiveram a experiência fé.

É muito importante refletirmos sobre a maneira como compreendemos


a revelação divina. Se por um lado a revelação é algo dado, apresentada
de forma extática e estática, não haverá espaço para a construções e
discussões, muito embora tenhamos que reconhecer que na história cristã
não tenhamos chegado a um entendimento único e universal sobre o seu
conteúdo. Se por outro lado, a revelação se dá em meio a participação
humana, tanto na sua produção quanto interpretação, nos vemos diante
da grande tarefa de apresenta-la com uso de nossos recursos mentais,
ao que denominamos como Teologia.

E é por meio da curiosidade, do questionamento ou da dúvida que busca


esclarecimento que podemos encontrar um estímulo para o estudo. Essa
busca pelo conhecimento não se dará sem o esforço do raciocínio, do uso
das faculdades mentais e da reflexão crítica sobre aquilo que se estuda.
Todo esse processo pressupõe o reconhecimento da nossa limitação
frente a imensidão do ser de Deus. É a postura de humildade que nos
permite escutar e dialogar com quem pensa diferente, além de estarmos
abertos para o estudo e o conhecimento daquilo que ainda não sabemos.

40 | Teologia Sistemática I | FTSA


Enfim, a Teologia é um discurso ou a composição dos nossos discursos
sobre Deus. Ela é a expressão verbal, normalmente escrita, sobre o nosso
entendimento acerca de Deus e da experiência de fé. Mesmo os textos
bíblicos, entendidos como revelação, são os registros dos discursos
do povo de Deus, por meio de vários autores e editores, referentes a
tempos, espaços e contextos específicos. Da mesma forma, as tradições
teológicas registram os discursos daquilo que um ou mais grupos
entenderam sobre Deus e a fé ao longo da história da igreja com todas
as suas variações e vertentes. A nós, estudantes de Teologia, cabe a
investigação, o estudo, o diálogo e a proposição de caminhos rumo ao
futuro do Reino de Deus sobre a terra e a vida humana.

Referências
BOFF, Clodovis. Teoria do método teológico. 2 ed. Petrópolis: Vozes,
1999.
HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a Bíblia: a revelação, a promessa, a
realização. São Paulo: Paulinas, 1985.
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo:
Paulinas, 1982.
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a
Teologia. Petrópolis: Vozes, 2000.
PANNENBERG, Wolfhart. Teologia sistemática. Volume 1. Santo André:
Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2009.
SEPÚLVEDA, Juan. Características teológicas de um pentecostalismo
autóctone: o caso chileno. In: GUTIÉRREZ, Benjamin; CAMPOS, Leonildo
S. Na força do Espírito. São Paulo: Pendão Real, 1996.
SIGNIFICADOS. “Reflexão crítica”. Disponível em: http://www.significados.
com.br/reflexao-critica/). Acessado em 01 de agosto 2015.
TILLICH, Paul. Teologia sistemática. 2 ed. São Paulo: Paulinas; São
Leopoldo: Sinodal, 1987.

Teologia Sistemática I | FTSA | 41


UNIDADE 2 – A ESTRUTURAÇÃO DA TEOLOGIA CRISTÃ
Introdução
A busca pelo conhecimento de Deus e a consequente produção da
teologia como discurso humano é uma jornada de todos os crentes,
vista tanto a partir de uma perspectiva individual quanto comunitária. Até
aqui desenvolvemos algumas ideias gerais sobre a razão de ser desse
discurso e a importância da fé, que surge na experiência, mas que tem na
Palavra de Deus o seu principal objeto de estudo. Esta Palavra revelada
por inspiração divina e compreendida pela ação iluminadora do Espírito
de Deus, nos incita à investigação movida pela dúvida curiosa de quem
procura conhecer o seu objeto de fé último. Assim nasce a teologia, como
uma reação ao fato de termos iniciado esse caminho de conhecimento
de Deus. E aí ela se apresenta com a intenção de compartilhar o
conhecimento entre os que já creem, mas também de comunica-lo aos
que ainda não conhecem.

No entanto, dado o volume de estudo — todas as Escrituras —, a


necessidade de ferramentas de auxílio — história, arqueologia, línguas,
etc. — bem como a preocupação da igreja na preparação de sua liderança,
a teologia passou a ser estruturada de diversas formas ao longo da
história. Outras motivações também contribuíram para a elaboração da
teologia, que foi recebendo diferentes contornos e tratamentos. Apenas
como exercício de análise e investigação, na tentativa de entender
as nossas origens e herança, apresentarei um panorama histórico e
conceitual de como a teologia se organizou no passado. Depois, indicarei
alguns pressupostos importantes para a tarefa de fazer teologia.

De início temos que considerar que a teologia nasce com os escritores


bíblicos. Podemos até falar de teologias, que surgem no Antigo
Testamento e também no do Novo. A igreja primitiva, conhecendo a
teologia do passado, produzida pelo povo de Israel no Antigo Testamento,
e relendo essa teologia à luz do Messias Jesus, procurou comunicar
essa mensagem primeiro aos judeus e depois aos outros povos. Sob a

42 | Teologia Sistemática I | FTSA


liderança dos apóstolos, iniciou-se a comunicação aos judeus, a partir
de Jerusalém, alcançando os que por ali passavam e, timidamente,
alcançando algumas regiões próximas, utilizando a plataforma das
sinagogas. Esse caminho foi entendido como natural uma vez que
a intenção missionária de propagação da mensagem sobre Jesus
encontrava uma ponte imediata com a teologia daquele povo na figura
do Messias. É isso que observamos em alguns discursos registrados no
livro de Atos:

Discurso de Pedro à multidão em Jerusalém: “Portanto, que todo Israel


fique certo disto: Este Jesus, a quem vocês crucificaram, Deus o fez
Senhor e Cristo” (Atos 2:36).

Discurso de Pedro no Sinédrio: “Este Jesus é a pedra que vocês,


construtores, rejeitaram, e que se tornou a pedra angular” (Atos 4:11).

Discurso de Estevão no Sinédrio: “Qual dos profetas os seus antepassados


não perseguiram? Eles mataram aqueles que prediziam a vinda do Justo,
de quem agora vocês se tornaram traidores e assassinos” (Atos 7:52).

Paulo ensinando nas sinagogas: “Logo começou a pregar nas sinagogas


que Jesus é o Filho de Deus” (Atos 9:20); “De Perge prosseguiram até
Antioquia da Pisídia. No sábado, entraram na sinagoga e se assentaram
[...] Então Paulo e Barnabé lhes responderam corajosamente: ‘Era
necessário anunciar primeiro a vocês a palavra de Deus; uma vez que a
rejeitam e não se julgam dignos da vida eterna, agora nos voltamos para
os gentios’” (Atos 13:14, 46).

Como a mensagem sobre Jesus, entendido como o Messias de Israel,


era algo que os gentios não conheciam, por não terem a teologia e
tradição do povo judeu, uma nova teologia passou a ser construída a
partir da ideia da divindade de Cristo e sua característica cósmica. Já
nos escritos paulinos e joaninos vemos essa construção teológica que
será fundamental para o novo ambiente e contexto gentílico em que se
desenvolverá a teologia cristã na história da igreja.
Teologia Sistemática I | FTSA | 43
Esse será o nosso foco, investigar aquilo que ocorreu na produção
teológica da igreja logo após a passagem da primeira geração de
cristãos composta pelos discípulos, testemunhas oculares do ministério
de Jesus, e, principalmente pelos apóstolos. Os textos bíblicos são tidos
como revelação e Palavra de Deus, mas cabe agora um olhar sobre a
interpretação desses textos e sobre as argumentações elaboradas pela
igreja em sua progressão histórica.

1. Caminhos históricos
Ao caminharmos pela história da teologia da igreja é fundamental que
tenhamos a capacidade de tentar nos abstrair daquilo que conhecemos
hoje e nos imaginar naqueles momentos e contextos em que foram
formuladas as primeiras estruturas de pensamento. Isso porque nosso
objetivo não é produzir julgamentos ou emitir opiniões conclusivas. Esse
exercício tem como propósito nos ajudar a perceber como os tempos e
contextos são determinantes na produção da teologia e, assim, termos a
possibilidade de fazer a devida autocrítica do nosso discurso atual, além
de mantermos uma atitude de humildade e abertura para o novo.

1.1. Teologia Patrística


A patrística é considerada como o período dos “pais da igreja” ou “pais
apostólicos”, que ocorreu na transmissão de liderança dos apóstolos de
Jesus para a geração seguinte:

O termo pais apostólicos é tradicionalmente usado


para designar a coleção dos primeiros escritos
cristãos existentes à parte do Novo Testamento.
Estes documentos são a fonte primária de estudo do
cristianismo primitivo, especialmente do período pós-
apostólico (c. 70-135 d.C.). Eles provêm significantes e
geralmente incomparáveis olhares e perspectivas sobre
a vida dos cristãos e do movimento cristão durante um
estágio transitório crítico em sua história.

44 | Teologia Sistemática I | FTSA


Esse era um tempo, por exemplo, quando os problemas
não podiam mais ser solucionados procurando-
se uma resposta autoritária de um apóstolo. Como
consequência, a igreja teve que começar a lidar com
as questões de fontes de autoridade e de tradição
autoritária em um tempo em que novos desafios e
pressões, tanto internas quanto externas, estavam
confrontando os novos movimentos religiosos em
crescentes condições de força (Holmes, 1989, p. 1).

Michael Holmes está se referindo, especificamente, a alguns escritos


quando delimita o período de tempo até meados do segundo século.
Porém, de maneira geral, consideramos o período da patrística como
durando até o início da Idade Média, no quinto ou sexto século. David
Bosch faz um resumo das principais características da Teologia Patrística
cuja a mais relevante talvez seja a grande influência da cultura greco-
romana e da filosofia como via de expressão:

Conceitos originalmente típicos do culto ao imperador,


da área castrense, das religiões gregas de mistério,
do teatro e da filosofia platônica tornaram-se,
gradualmente, comuns no culto e na doutrina cristã
[...] Os muitos paralelos entre religiões pagãs e o
cristianismo constituíam, num sentido real, uma
grande ajuda à igreja em sua missão e defesa da fé. A
mensagem sobre Deus em forma humana, sacrifícios
salvíficos, a vitória da ressurreição e a nova vida não
era totalmente estranha aos ouvintes. Foi fácil ver no
cristianismo a consumação de outras religiões [...]
Pode-se observar melhor, porém, o enorme impacto
da filosofia grega sobre o incipiente movimento
cristão na sempre crescente tendência de definir a fé e
sistematizar a doutrina. O Deus do Antigo Testamento e
do cristianismo primitivo passou a ser identificado com
a idéia geral de Deus da metafísica grega; apresenta-se
Teologia Sistemática I | FTSA | 45
Deus como o Ser Supremo, a substância, o princípio, o
que move sem ser movido. A ontologia de Deus (o ser
de Deus) tornou-se mais importante que a história (as
ações de Deus) (2002, pp. 241-243).

Saiba mais
Os pais apostólicos
Uma colação antiga dos escritos dos Pais Apostólicos traz os
seguintes textos e autores: Clemente; Inácio, bispo de Alexandria;
Policarpo; epístola de Barnabé; o pastor de Hermas, epístola de
Diogneto, epístola e fragmentos de Papias e a Didaquê.
(HOLMES, Michael M. (ed.). The apostolic fathers. 2 ed. Grand
Rapids, MI: Baker, 1989).

Os primeiros concílios da igreja, que estabeleceram os credos, são


uma grande representação do tipo de teologia que era elaborada, cujo
conteúdo e linguagem demonstram a forte influência da filosofia. Por
exemplo, o Credo Niceno-Constantinopolitano, formulado no ano 381,
surgiu como consequência da discussão em torno da divindade de Cristo
que traz, como parte de sua formulação, a expressão “verdadeiro Deus de
verdadeiro Deus, gerado, não feito, consubstancial com o Pai”. Mais que
isso, conforme defende Bosch,

É aos gregos que devemos a disciplina intelectual da


teologia e as formulações clássicas da fé. Na Bíblia
e na literatura cristã primitiva, qualquer forma de
sistematização está praticamente ausente. O teólogo
alexandrino Orígenes (cerca de 185 a cerca de 254 d.C.)
pode ser apontado como o primeiro “teólogo sistemático”
e a primeira pessoa em que se manifestou, de forma clara,
o paradigma teológico oriental (2002, p. 256).
46 | Teologia Sistemática I | FTSA
Essa estruturação advinda da cultura grega, no entanto, estabeleceu
um distanciamento da teologia do Antigo Testamento, considerando-o
como alegórico. Aliás, a alegoria “passou a ser o princípio hermenêutico
dominante da igreja helenística” (Bosch, 2002, p. 246). Outra influência
helênica, que recebeu certa resistência, porém, sem conseguir sucesso no
impedimento de sua penetração na teologia da época, foi o gnosticismo:

O traço mais característico do gnosticismo era um


dualismo ontológico irreversível [...] Esse dualismo
ontológico onipresente manifestava-se em pares
infinitos de opostos: o temporal e o eterno, o físico e
o espiritual, o terreno e o celestial, o aqui e o além, a
“carne aqui embaixo” e o “espírito lá em cima”, etc. A
salvação só poderia significar libertação dos grilhões
deste mundo material hostil, e as pessoas salvas
podiam tratar as realidades materiais com indiferença,
se não com desprezo.

Alguns desses elementos gnósticos se arraigaram


tão profundamente na igreja que continuam vivos e
robustos até hoje (Bosch, 2002, p. 249).

Essa observação de Bosch acerca da influência do pensamento gnóstico


na teologia da igreja, ainda nos dias de hoje, talvez não seja percebida
pela maioria dos crentes por falta de conhecimento sobre a história da
teologia. Esse tipo de dualismo, não característico da teologia bíblica,
principalmente no Antigo Testamento, mas comentado e combatido
no Novo Testamento, realmente, permanece em muitos discursos da
atualidade trazendo consigo os seus efeitos.

Enfim, para Júlio Zabatiero, a teologia patrística é também uma teologia


habitual porque havia se tornado um “habitus de vida e estudo, concebida
como conhecimento de Deus e construída por meio das disciplinas da
oração, do estudo e da participação litúrgica” (2005, p. 20). Era muito
importante para os pais da igreja que a teologia redundasse em uma
Teologia Sistemática I | FTSA | 47
ética e comportamento moral elevados em uma sociedade considerada
decadente. Mais que um discurso, esperava-se que a teologia fosse
capaz de promover não apenas a transformação do caráter, mas a sua
manifestação concreta em uma vida exemplar.

1.2. Teologia Medieval


Zabatiero caracteriza como científica a teologia que predominou durante
a Idade Média, entre o tempo da Patrística e da Reforma Protestante. Para
ele, “a teologia constituía o arcabouço ordenador de todo o conhecimento
humano, bem como o das nascentes universidades na Europa” (2005, p.
20). Paul Tillich explica em mais detalhes essa fase:

A atitude teológica, determinante de toda a Idade


Média, foi o escolasticismo. Trata-se da explicação
metodológica da doutrina cristã [...] O escolasticismo
foi deformado na última fase da Idade Média; mas
a intenção verdadeira do escolasticismo era a
interpretação teológica de todos os problemas da vida
[...] Havia apenas um limite: a educação escolástica
era dada apenas à pequena classe alta. Todos os livros
escolásticos eram escritos em Latim, acessível apenas
aos educados. Naturalmente, as massas não sabiam
ler nem escrever. Como levar ao povo a mensagem
discutida nesses sistemas escolásticos? De duas
maneiras: pela participação nos ofícios religiosos,
nas liturgias, pinturas, por meio da música e pelo
recebimento de outras impressões sensoriais que não
requerem grande atividade intelectual, mas comunicam
o sentimento numinoso e certa orientação moral. Não
significa, porém, que essas coisas objetivas fossem
realmente experiências pessoais. O misticismo é
que fez isso na Idade Média: introduziu a experiência
pessoal na vida religiosa (2000, pp. 146-147).
48 | Teologia Sistemática I | FTSA
Esse distanciamento entre os que pensam, estudam e propõem o
discurso teológico, e os que vivenciam, na prática religiosa, aquilo que
foi proposto, ainda persiste até os dias de hoje na igreja cristã. O que
está em jogo aqui é uma questão de atribuir, ou reconhecer autoridade,
àqueles que elaboram a teologia. Na Idade Média, a autoridade era
entendida como alguma coisa natural a que os cristãos deveriam se
submeter. A autoridade primeira era, obviamente, a divina, mas ela acabou
sendo intermediada pelos autores bíblicos, pelos apóstolos e, por que
não dizer, pelos teólogos oficiais, até certa medida. Ora, a contribuição
desses primeiros teólogos, que compuseram a Patrística, além das
práticas assumidas pela comunidade, passaram a compor aquilo que
se denominou de tradição da igreja e que, por si só ocupava um lugar
autoritativo na teologia. Compunha a tradição, portanto, os escritos dos
pais da igreja, os dogmas e credos dos concílios e, certamente, a bíblia.
Na verdade, essa questão que envolve o lugar da autoridade e da tradição
na formulação da teologia, na maneira como foi elaborada durante a Idade
Média, também permanece até hoje em nosso ambiente eclesiástico.

Exercício de fixação - 06
A Teologia Medieval, conforme tratada anteriormente, pode ser
caracterizada como:
a) Formulações alegóricas fundamentadas na filosofia grega;
b) Formulações racionais e sistematizadas das doutrinas bíblicas;
c) Formulações interpretativas da tradição dos pais da igreja;
d) Formulações livres e criativas da revelação escriturística;

Formulações colaborativas entre a tradição e os novos desafios


contextuais.

Reação: A alternativa que compreende a teologia medieval como as


formulações interpretativas da tradição dos pais da igreja, apresenta-se
como correta. A Idade Média tinha por característica a ideia de autoridade
Teologia Sistemática I | FTSA | 49
muito forte, o que colocava Deus na primazia autoritária, porém, os apóstolos,
ou pais da igreja, como aqueles que tinham grande autoridade por serem
visto como de comunicadores primários da mensagem desse Deus, o que
entende-se pela ideia desses pais da igreja como os teólogos oficiais. O que
fez com que os teólogos da Idade Medieval vissem estes que os precederam
no produzir teológico como precursores da teologia de Cristo.

Para entender um pouco melhor a importância dessa discussão, vejamos


a argumentação de Tillich que, considerando o longo período que abarcou
a Idade Média, em linhas gerais, oferece três fases no entendimento da
relação entre a autoridade e a racionalização do pensamento teológico.
A primeira fase foi aquela em que

A Idade Média enfrentou essa situação, primeiramente,


no domínio das decisões práticas, representado na lei
canônica. Essa lei era a base da vida medieval; o dogma
era uma das leis canônicas e vinha daí a sua autoridade
dentro da igreja. Necessidades práticas, então, criaram
uma classe de pessoas devotadas a harmonizar o
significado das leis canônicas existentes. O método
empregado era dialético, conhecido como o método “do
sim e do não”. A razão era o instrumento desse trabalho.
Ela combinava e harmonizava as sentenças dos pais
e dos concílios, primeiramente na prática e logo em
seguida no que se refere às declarações teológicas. A
razão coletava, harmonizava e comentava as sentenças
dos pais. Era a sua função principal (2000, p. 148).

Nessa fase o peso da tradição era muito grande não havendo liberdade
para a elaboração de novos conceitos ou perspectivas teológicas. A
função da teologia era afirmar e reforçar a tradição, ainda que pudessem
haver discrepâncias entre as ideias propostas no passado pelos pais da
igreja e pelos concílios. Já a segunda fase, não difere muito da primeira a
não ser pelo método, que não era mais simplesmente o “sim e não”, mas
a tentativa de interpretação da tradição pela dialética aristotélica.
50 | Teologia Sistemática I | FTSA
O próximo passo foi dado, menos especulativamente
e com mais cautela, por pensadores que levavam a
sério Aristóteles, na sua elaboração teolólgica, como
demonstra, especialmente, Tomás de Aquino. Achavam
que a razão era adequada para interpretar a autoridade.
Na verdade, a razão jamais se opõe à autoridade; a
tradição viva pode ser interpretada em termos racionais.
A razão não precisa ser destruída para interpretar o
significado da tradição viva (Tillich, 2000, p. 149).

Se a segunda fase parecia indicar um progresso na produção teológica,


introduzindo o raciocínio lógico, mesmo que limitado pela tradição, a
fase seguinte consistiu-se em um fechamento e cerceamento dessa já
reduzida liberdade produtiva.

O último passo foi a separação entre razão e autoridade.


Duns Escoto e Guilherme de Ockham, o nominalista,
entendiam que a razão não prestava para interpretar a
autoridade nem a tradição viva, nem mesmo expressá-
las. O nominalismo posterior diria isto, claramente.
Entretanto, se a razão não pode interpretar a tradição,
a tradição se transforma em autoridade de modo
bem diferente; passa a ser a autoridade mandatória
a exigir submissão, mesmo se não for entendida. É
o que chamamos de “positivismo”. A tradição é dada
positivamente: está aí e a vemos; aceitamo-la e nos
submetemos a ela do modo como nos é dada pela igreja.
A razão não tem capacidade de mostrar o sentido da
tradição; só pode mostrar as diferentes possibilidades
derivadas das decisões da igreja e da tradição viva. A
razão pode chegar a probabilidades e a possibilidades,
mas nunca a realidades. Não pode dizer como as
deveriam ser. Isso depende da vontade de Deus. A
vontade de Deus é irracional e dada. É dada na natureza.
Teologia Sistemática I | FTSA | 51
Precisamos, pois, de certo empirismo para descobrir
como são as leis naturais. Não estamos no centro da
natureza. Relacionamo-nos com as ordens da igreja,
com a lei canônica, de modo que é a essas decisões
que nos submetemos positivamente; devemos aceitá-
las como leis positivas, pois não as podemos entender
em termos racionais (Tillich, 2000, p. 149).

Esse fenômeno de fechamento conservador sempre esteve presente na


história da igreja. Ele é gerado no centro do poder e justificado como
sendo a representação da vontade de Deus, adornado pelo discurso do
zelo pelas coisas divinas. Sempre é acompanhado pela disseminação e
imposição do temor, às vezes de forma sutil, mas muitas vezes com o
uso de ameaças e de força. Mas a negação da racionalidade na busca
pelo conhecimento de Deus é também a negação do ser humano, pois a
razão lhe é intrínseca. A consequência, portanto, sempre virá na forma de
reação e confronto, o que ocorreu na história da igreja com o movimento
da Reforma Protestante.

1.3. Teologia Moderna


A Idade Moderna inicia-se no final do século XV e início do século XVI
tendo como principais eventos causadores de mudança no contexto
ocidental a conquista do Império Bizantino pelos árabes, conhecida
como a queda de Constantinopla em 1453; a redescoberta da filosofia
grega, com o resultado daquilo que se passou a chamar de Iluminismo;
o consequente humanismo, centrado na capacidade do uso da razão; e
as transformações causadas pela Reforma Protestante e os movimentos
nacionalistas, após 1517. É fundamental em todo esse processo o papel
das escolas e universidades como incubadoras de novas estruturas de
pensamento e reflexão, tanto para a teologia como para o surgimento
das ciências. Importante recordar que durante a Idade Média a teologia
era quem ditava o rumo do conhecimento. As universidades haviam sido
fundadas em sua maioria pela própria igreja e permaneciam sob o seu
controle, porém, aqueles que ali estudavam não eram necessariamente
52 | Teologia Sistemática I | FTSA
clérigos. Sendo um lugar de reflexão e busca pelo saber, foi inevitável que
ali surgissem exatamente aqueles que iriam colocar em xeque a posição
da igreja e da teologia como controladoras do conhecimento.

A reviravolta que ocorreu na Idade Moderna levou a teologia a um lugar


diametralmente oposto ao que ocupava anteriormente. Zabatiero assim
apresenta esse novo momento:

Este paradigma se caracteriza por subordinação da


teologia aos imperativos do mundo acadêmico devido
à perda de prestígio e poder das Igrejas no campo
universitário, e do saber em geral.

Esta subordinação foi transformando, cada vez mais,


a teologia em uma “ciência”, ou melhor, em um sistema
disciplinar de conhecimento, dividido em áreas do saber
teológico ou em disciplinas particulares (2005, pp. 20-21).

Essa é atual situação da teologia como ciência. Zabatiero menciona que


estamos diante de um paradigma e dada a necessidade de entendermos
mais a fundo como funciona a teologia nesse paradigma moderno,
abordaremos o assunto em mais detalhes nos próximos tópicos.

Glossário
Idade Antiga – 4.000 a.C.(invenção da escrita) a 476 d.C.(queda do
Império Romano)
Idade Média – 476 (queda do Império Romano) a 1453 (Tomada
de Constantinopla)
Idade Moderna – 1453 (Tomada de Constantinopla) a 1789
(Revolução Francesa)
Idade Contemporânea – 1789 (Revolução Francesa) a segunda
metade do séc. XX.
Idade Pós-moderna – a partir da segunda metade do séc. XX

Teologia Sistemática I | FTSA | 53


2. O paradigma moderno: iluminismo
Há grande relevância no entendimento do paradigma moderno para a
nossa abordagem introdutória ao estudo da teologia. Mais que isso, é
fundamental compreendermos o conceito de paradigma, desde uma
perspectiva mais ampla, e como ele afeta o nosso conhecimento. Ao
fazermos isso, adentramos no ambiente do que chamamos na filosofia
de epistemologia.

2.1. O processo cognitivo


Provavelmente, a grande maioria das pessoas jamais parou para
refletir sobre o fato de que sua forma de pensar é condicionada por um
paradigma que é transmitido pela cultura e pelo sistema educacional
estabelecido por ela. Conscientes ou não, somos “ensinados” a
pensar de uma determinada forma. Não que ela seja única em nossos
raciocínios, mas, pelo menos, se torna predominante em nosso ambiente
cultural. Isso significa que quando raciocinamos, seguimos caminhos de
pensamentos condicionados pelo ambiente e pelo grupo que formam o
nosso contexto de vida.

É necessário certo esforço de nossa parte para entender a proposta de


David Hesselgrave, exposta no vídeo, sobre os processos cognitivos
e as formas de pensar (1995, p. 309-358), ou melhor, para tentar
compreender como se dão os processos de conhecimento e pensamento
humanos. Contudo, a falta de interesse nas questões epistemológicas,
provavelmente, nos deixará estagnados na construção do discurso
teológico diante da necessidade de diálogo com ambientes distintos
dos nossos ou que possuam um paradigma diferente. Apenas adiantado
o desafio que está diante da teologia na atualidade, e insistindo na
importância em conhecermos o paradigma moderno, vivemos em
contextos, principalmente os urbanos, em que o paradigma pós-
moderno tem questionado o processo cognitivo até então predominante
no ocidente desde a década de 1980. Há muitos que já não seguem o
esquema proposto acima mesmo vivendo em contextos ocidentais.
54 | Teologia Sistemática I | FTSA
A influência de outras culturas, incluindo a indiana e chinesa, é bem
recebida pela pós-modernidade e altera a nossa percepção da realidade.

Exercício de fixação - 07
Acerca do tema e da discussão sobre o pensamento humano. É
correto afirmar que:
a) O pensamento humano ocorre de forma dependente da influência
cultural;
b) O pensamento humano ocorre de forma independente de caminhos
predominantes;
c) O pensamento humano ocorre de forma independente de paradigmas;
d) O pensamento humano ocorre de forma dependente da consciência
formativa;
e) O pensamento humano ocorre de forma independente da maneira
como se percebe a realidade.

Ressalto a relevância de nos aprofundarmos na discussão sobre a


função do paradigma na construção do pensamento. O conceito de
paradigma que quero tratar aqui é o referente à filosofia da ciência e,
particularmente, aplicado à teologia. Para tanto, utilizarei o estudo feito
por David Bosch (2002) que usa como referencial os escritos de Thomas
Khun, um historiador da ciência. Bosch foca sua investigação na Teologia
da Missão, mas ela se aplica em grande parte à teologia como um todo.

2.2. Teoria do paradigma


Há muitas definições para paradigma, mas a ideia que quero explorar
é a que o entende como um conjunto de crenças, valores, técnicas,
procedimentos e tradições de pesquisa compartilhadas por um grupo
ou comunidade. O paradigma, então, é entendido também como o corpo
de estruturas de referência, modelos de interpretação e caminhos para
o conhecimento. Para Thomas Khun, observando a história humana, a
Teologia Sistemática I | FTSA | 55
ciência não cresce cumulativamente, mas sim por meio de “revoluções”
ou saltos em que ocorre uma nova percepção da realidade. Um paradigma
não é “criado” ou propositalmente elaborado; ele surge, cresce e amadurece
inserido em uma rede composta por diversos fatores sociais e científicos.
Alguns indivíduos começam a perceber a realidade de
modo qualitativamente diferente de seus antecessores
e coetâneos que estão realizando “ciência normal”.
O pequeno grupo de pioneiros sente que o modelo
científico existente está repleto de anomalias e se
mostra incapaz de resolver problemas emergentes.
Principiam, então, a procurar um novo modelo ou
estrutura teórica, ou (termo favorito de Khun) um
novo “paradigma”, que está, por assim dizer, apenas
esperando para substituir o velho (Bosch, 2002, p. 230).

Quando um novo paradigma surge, ele não é aceito imediatamente


por todos como algo óbvio, pois, a mudança de paradigma não é mera
questão de dar um passo racional. Na linguagem de Khun, a mudança
de paradigma acontece em um lampejo de intuição. Ele chega a usar
linguagem religiosa afirmando que abandonar um paradigma em função
de outro é como uma conversão, como escamas caindo dos olhos.

Isso explica por que defensores da velha ordem e


paladinos da nova, frequentemente, contendem sem
chegar a consenso algum. Protagonistas do velho
paradigma, sobretudo, tendem a se imunizar contra os
argumentos do novo. Elas resistem a seus desafios
com reações profundamente emocionais, porque
esses questionamentos ameaçam destruir sua própria
percepção e experiência da realidade, na verdade, seu
mundo todo. Nas palavras de Einstein, “é mais fácil romper
átomos do que preconceitos” (Bosch, 2002, p. 231).
56 | Teologia Sistemática I | FTSA
Isso significa dizer, então, que sempre há conflito entre os defensores do
velho e do novo paradigma, embora vivam no mesmo mundo e contexto.
As reações emocionais, que deporiam contra a argumentação científica
racional que, em tese, sustenta qualquer paradigma, aparecem por causa
da sensação de insegurança em perceber que o sistema que fundamenta
as estruturas daquela comunidade está sendo ameaçado por uma nova
ordem. Curiosamente, o velho paradigma raras vezes desaparece por
completo. Via de regra, acabamos por encontrar grupos que insistem em
perpetuar o seu paradigma como se não houvesse outro.

Podemos fazer uma análise dos caminhos históricos da teologia com


base na teoria do paradigma de Khun. Na unidade anterior indicamos
apenas três fases históricas por uma questão de simplificação e
proximidade do tempo contemporâneo, contudo, Bosch indica seis
grandes paradigmas na história do cristianismo, com ênfase na questão
missiológica, conforme sugerido por Hans Küng:

1. O paradigma apocalíptico do cristianismo primitivo.

2. O paradigma helenístico do período da patrística.

3. O paradigma católico romano medieval.

4. O paradigma protestante (da Reforma).

5. O paradigma moderno do iluminismo.

6. O paradigma ecumênico emergente.

(2002, pp. 227-228).

Teologia Sistemática I | FTSA | 57


Com base nesses seis paradigmas, Bosch analisa o processo de
mudanças e permanências, mostrando sua complexidade:

Também, em um outro sentido, o “velho” paradigma raras


vezes desaparece completamente. Em seu diagrama de
mudanças de paradigma na teologia, Küng indica que o
paradigma helenístico do período patrístico ainda vive
em partes das igrejas ortodoxas, o paradigma católico
romano medieval, no tradicionalismo católico romano
contemporâneo, o paradigma da Reforma protestante,
no confessionalismo protestante do século 20, e
o paradigma iluminista, na teologia liberal. Brauer
[Jerald, cf. Küng] nos lembra que, em quase todas as
denominações hodiernas, encontramos, lado a lado,
crentes fundamentalistas, conservadores, moderados,
liberais e radicais. A questão torna-se ainda mais
complexa pelo fato de que as pessoas, frequentemente,
estão comprometidas com mais de um paradigma ao
mesmo tempo (2002, pp. 232-233).

Pensando na igreja, talvez essa coexistência de paradigmas em um mesmo


grupo seja devido ao desinteresse pelo estudo e busca pelo conhecimento,
por parte da maioria dos crentes, e pela priorização da experiência mística
desassociada da racionalização da fé. Talvez seja até o indício da influência,
não consciente, do paradigma da pós-modernidade. No entanto, para o
nosso propósito, que é o estudo da teologia, quero destacar a importância
do paradigma moderno por causa de sua predominância na maneira como
a teologia está estruturada, formal e informalmente, na igreja cristã nos
dias de hoje. Ao olharmos para o paradigma moderno devemos manter em
mente que, embora dominante, ele não é o único que permeia as mentes
e práticas dos crentes. Como vimos, há outros paradigmas que se fazem
presentes e influentes

58 | Teologia Sistemática I | FTSA


Exercício de aplicação - 08
Considerando a “Teoria do paradigma”, de que forma é possível
observar esse fenômeno aplicado à Teologia?
a) Houve vários paradigmas na história da igreja e a transição entre eles
sempre ocorreu de forma racional e processual;
b) Houve vários paradigmas na história da igreja e a transição entre eles
se deu de forma consensual, sem crises;
c) Houve vários paradigmas na história da igreja cujo surgimento se deu
por causa de novas revelações divinas para novos contextos;
d) Houve vários paradigmas na história da igreja e a adoção de cada um
deles se deu pela concordância dos teólogos;
e) Houve vários paradigmas na história da igreja e ainda é possível
perceber a influência de alguns deles nos dias de hoje;

2.3. O Iluminismo
Para entender o paradigma moderno precisamos olhar para o
processo histórico que o gerou. O período de transição entre a Idade
Média e Moderna foi marcado por uma série de eventos e expressões
culturais, filosóficas e políticas que culminou com o surgimento de um
novo paradigma. Esses movimentos e períodos receberam diversas
designações e nomenclaturas, normalmente feitas depois do ocorrido
ou ao tentar remeter-se às mudanças causadas por eles no mundo
ocidental. Renascimento, humanismo e iluminismo são os termos mais
recorrentes ao nos referirmos à era moderna. Justo González comenta
sobre esse período:

Poucos termos na história são usados com maior


ambiguidade que os de “Renascimento” e “humanismo”.
O próprio título “Renascimento”, aplicado a uma época
histórica, implica em um juízo negativo da época que
Teologia Sistemática I | FTSA | 59
lhe precedeu. Neste sentido o termo foi usado pelos
que o cunharam. Para eles a Idade Média era somente
isso: um período intermediário entre as glórias da
antiguidade e as dos tempos modernos [...] Mas apesar
de tudo isto ainda podemos, particularmente na Itália,
dar o nome de “Renascimento” a este período. Muitos
dos principais intelectuais da época viam no passado
imediato, e às vezes no presente, uma época de
decadência com respeito à antiguidade clássica, e por
causa disto se empenhavam em provocar um renascer
desta antiguidade, em voltar às suas fontes, e em imitar
sua linguagem e estilo. É a isto que nos referimos aqui
quando falamos “Renascimento” (1995, pp. 135-136).

A menção sobre o resgate da antiguidade está diretamente relacionada


ao conteúdo da filosofia e cultura greco-romana em seu auge, ou seja, que
ocorreu até o século V d.C. A essa capacidade humana criativa e, de certa
forma, autônoma em relação ao controle da igreja, deu-se a designação de
humanismo. Para González, a principal característica do humanismo foi
o estudo cuidadoso da literatura clássica e a admiração pelo tipo de ser
humano capaz de produzir arte (1995, p. 136). Em tempos mais tardios,
o humanismo veio a representar a confiança na capacidade humana, seu
intelecto e razão, em conduzir-se a um estado de plenitude em todos os
sentidos. Essa independência tinha como principal referência antagônica
o controle da igreja e religião sobre o conhecimento conforme ocorria
anteriormente na chamada Idade Média. A perspectiva humanista se
tornou, assim, a precursora do desenvolvimento das ciências baseadas
na observação, experimentação e proposição racional de explicação da
realidade, dando origem ao período do iluminismo.

Também o iluminismo possui definição fluida sobre o que foi e como


se desenvolveu. Tomarei alguns comentários de Alister McGrath sobre
o assunto para delimitar os contornos relevantes ao que nos interessa

60 | Teologia Sistemática I | FTSA


na presente argumentação. Para ele, a identificação do iluminismo com
o racionalismo radical é um exagero, embora, em determinado período,
entre 1720 e 1780, defendia-se a ideia de que ele seria “o livre e construtivo
uso da razão com vistas a derrubar mitos antigos que eram vistos como
atreladores de indivíduos e sociedades ao passado” (1994, p.78). A
nomenclatura Idade da Razão, para McGrath, não deve ser tratada como
sinônimo do iluminismo, ainda que “uma ênfase na habilidade da razão
humana em penetrar os mistérios do mundo é acertadamente entendida
como uma característica definidora do iluminismo” (1994, p. 78). O que o
autor quer evitar é a percepção que alguém possa vir a ter de que antes
na história não se usava a razão ou de que o iluminismo tenha ficado
limitado ao tipo de racionalismo defendido por alguns autores, como René
Descartes, que propunha que “o mundo externo pode ser conhecido pela
razão, e apenas por ela” (1994, p. 79). Ainda no século XVIII Imannuel Kant
questionou essa perspectiva em seu livro A crítica da razão pura, propondo
o que chamou de “mente ativa” no processo de conhecimento, que se daria
por meio da experiência, ou seja, da observação e contato com as coisas
do mundo, sem a exclusividade do uso da razão para conhecê-las.

O mais importante a ser destacado sobre o iluminismo é a mudança


de paradigma na epistemologia. O método científico iniciado a partir
dali influenciou também a maneira de se fazer teologia. Francis Bacon,
René Descartes, John Locke, Isaac Newton, David Hume, Immanuel Kant
e tantos outros filósofos, matemáticos e físicos estabeleceram uma
nova forma de compreensão do mundo que, para a maioria de nós, é
tida como a única, por termos sido formados na cultura ocidental e mais
ainda pela maneira como recebemos o evangelho. É claro que estamos
tratando de um longo período de tempo na história ocidental e de muitas
mudanças na produção do conhecimento. No que se refere à teologia,
também temos fases distintas, mas meu objetivo é, de modo resumido,
apresentar alguns efeitos do iluminismo e as principais consequências
práticas na estruturação do pensamento teológico.

Teologia Sistemática I | FTSA | 61


Saiba mais

Francis Bacon (1561-1626) René Descartes (1596 - 1650) John Locke (1632 - 1704)

Isaac Newton (1643 - 1727) David Hume (1711 - 1776) Immanuel Kant (1724 - 1804)

Na análise de Stanley Grenz,

No Iluminismo, a ênfase primeira sobre as causas finais


(o telos, ou o propósito dos objetos) deu lugar à visão
matemática e quantificadora da empresa científica da
qual foi pioneiro Galileu, cerca de um século antes.
O novo estudo dos fenômenos naturais ressaltava a
aplicação de técnicas matemáticas para a produção
de resultados quantificáveis [...] O ponto alto dessa
revolução na ciência foi o trabalho de Isaac Newton
(1642-1727). O universo de Newton era uma máquina
grande e organizada. Seus movimentos podiam ser
conhecidos porque seguiam certas leis observáveis [...]
62 | Teologia Sistemática I | FTSA
O objetivo de Newton ao procurar descrever o universo
não era simplesmente acadêmico. Ele cria que, ao
mapear os ritmos regulares do universo, a ciência
aumentava nossa percepção da grandeza de Deus
(1997, pp. 105-106).

Se no paradigma medieval a explicação do mundo e da realidade era


uma questão dogmática e transmitida pela tradição dos pais da igreja,
a partir do discurso teológico, sem questionamentos, no iluminismo,
o ser humano é livre e autônomo para investigar, com o uso da razão,
esse mesmo mundo, descobrindo as leis que governam essa grande
máquina. O conceito de matemática aqui não se refere a uma questão
numérica e sim filosófica. A matemática é a ciência da lógica, daquilo
que é exato, que é rigorosamente demonstrado e que ficou conhecido
como método cartesiano, ou seja, proposto por Descartes. Em tese, seria
difícil incluirmos a teologia nesse paradigma uma vez que seu objeto
primário, que é Deus, não está diluído no mundo nem tampouco acessível
por meio das coisas naturais. Entretanto, como vimos, a tese de Newton
era a de que ao conhecermos o mundo também conheceríamos a Deus,
por via indireta, por aquilo que concerne ao que foi revelado na natureza.
Em parte, o que ocorreu foi uma divisão no campo da teologia entre
os que propunham uma teologia natural, alcançada pela investigação
científica do universo, incluindo o ser humano, e uma teologia revelada,
que pressupunha alguma intervenção sobrenatural em sua investigação.
Os defensores da teologia natural, ou religião natural, deram origem ao
que se chamou de deísmo e “desfizeram-se de vários dogmas que a
tradição da igreja havia atribuído à revelação divina, pois consideravam-
nos inadequados como parâmetros da verdade religiosa” (Grenz, 1997,
p. 112). Mais tarde, como sustenta Leslie Newbigin, também originou a
teologia liberal:

daquilo em que é possível acreditar-se foram firmemente


fixados nos axiomas do Iluminismo [...] Isso requereu a
reconstrução da história bíblica nas linhas da ciência
histórica moderna. Ela requereu a eliminação do
Teologia Sistemática I | FTSA | 63
milagre [...] integridade intelectual requeria que a Bíblia
fosse entendida nos termos daquilo que era possível
para uma pessoa moderna acreditar (1986, p. 44).

Assim, o iluminismo representou a mudança de paradigma na construção


do conhecimento humano, antes determinado por um caminho de simples
explicação de uma tradição recebida, de forma dogmática. O novo
paradigma, defendido pelo iluminismo propunha que o conhecimento
da realidade poderia se dar pelo uso da razão humana, em sua livre
investigação, tendo como pressuposto que o mundo consistia em uma
máquina cujas leis haveriam descobertas e expostas em forma objetiva
e proposicional.

3. A crise teológica na modernidade


Continuando o raciocínio sobre o paradigma moderno, gostaria de refletir
sobre a crise que a sua influência gerou no campo teológico. Mais
adiante, incluiremos na discussão como a pós-modernidade, e seu novo
paradigma, questionou a modernidade e, com ela, o tipo de estrutura de
pensamento teológico moderno que predomina na igreja de hoje.

A intenção aqui não é defender qualquer paradigma, ao contrário, o que


questiono é a capacidade de os paradigmas humanos conseguirem
dar conta da realidade, das questões ontológicas, da existência, e de
Deus. Novamente, apelo para que tenhamos uma postura de abstração.
Apesar de sermos, quase que todos, guiados pelo paradigma moderno,
para podermos analisar as suas consequências sobre a construção da
teologia, temos que tentar abrir um pouco o nosso raciocínio.

3.1. O paradigma moderno e a teologia revelada


Deixando de lado o ramo da teologia natural foquemos a nossa atenção
na teologia revelada. Com o advento da Idade Moderna a teologia tentou
conciliar o fenômeno sobrenatural de Deus, sua revelação e interação
com o ser humano, aos moldes do paradigma moderno. A partir daí o
64 | Teologia Sistemática I | FTSA
que observamos é que passaram a surgir várias crises na produção do
conhecimento, e que perduram até hoje.

Tanto Leslie Newbigin quanto Stanley Grenz identificam que uma das
crises ocorreu no surgimento de dicotomias que acabaram sendo mal
elaboradas pelo discurso teológico. Newbigin fala da dicotomia entre o
que consideramos o mundo público e privado e da dicotomia entre fatos
e valores: “O mundo público é um mundo de fatos que são os mesmos
para todo mundo, quaisquer que sejam os seus valores; o mundo privado
é um mundo de valores onde todos são livres para escolher seus próprios
valores e, portanto, executar os cursos de ações que correspondam a
eles” (1986, p. 37). Sem nos aprofundarmos muito na discussão, o
que quero alertar é a dificuldade em elaborar teologicamente essas
dicotomias. Newbigin observa que o pensamento moderno levou a igreja
a pensar que a vida pública acontece independente da vida privada. Na
vida pública temos os fatos, os acontecimentos, mas é na vida privada
que escolhemos, livremente, os valores que queremos ter. Para os
cristãos modernos esse tipo de percepção é “natural”, no entanto, não
era assim que ocorria na Idade Média, quando a igreja determinava os
valores da vida pública. Perguntamos: seria, realmente, a questão dos
valores algo restrito somente à vida privada? Deveríamos pensar que
devem haver valores que valham para todos as pessoas indistintamente
no âmbito privado ou público? Será que as ações privadas, baseadas nos
valores que escolhemos, não afetam a vida coletiva e pública? Ser cristão
seria uma questão puramente privada sem qualquer interferência na vida
pública? A dificuldade é que vivemos um desconforto e uma crise porque
tanto a igreja quanto a sociedade baseiam os seus argumentos seguindo
o mesmo paradigma.

Outra dicotomia é apontada por Grenz, como sendo a que se dá entre os


conceitos de corpo e alma:

De modo específico, as idéias de Descartes e de Newton


eram o sustentáculo de uma dicotomia entre o corpo e
a alma que provocaram uma ruptura total entre a alma
Teologia Sistemática I | FTSA | 65
humana e o restante da criação. Não era fácil para os
modernos posteriores conceberem a atuação divina
nesse mundo dualístico. A dificuldade em entender o
modo por que a alma e o corpo poderiam interagir resultou
na caracterização da mente como um epifenômeno, um
subproduto do cérebro; consequentemente, eliminou-se
o conceito de alma humana sob a alegação de que se
tratava de um “espírito dentro da máquina” desprovido
de substância (1997, pp. 20-21).

Algumas linhas teológicas ainda mantêm essa dicotomia entre o material


e o imaterial, representada pelo corpo e alma, ou corpo e espírito, ou ainda
de forma mais complexa, entre corpo, alma e espírito, criando priorizações
e rupturas na vida prática cotidiana. Fora isso, a questão da valorização
daquilo que é imaterial — espiritual para alguns —— como sendo superior ao
material também gerou um distanciamento das pessoas do resto da criação.
Muitas são as tradições teológicas que não consideram ou se envolvem
com as questões sociais, políticas, econômicas, ecológicas, etc., muito
embora habitemos esse mundo material e complexo, criado por Deus para
ser o lugar onde vivemos e nos desenvolvemos. Essa dicotomia é antiga,
oriunda do neoplatonismo e gnosticismo, mas tem seus efeitos negativos
ao tentarmos incluí-la no paradigma moderno de construção da teologia.

Entretanto, o que quero ressaltar, ainda, como crise mais importante é


a existência de uma certa esquizofrenia na produção do conhecimento
teológico moderno. Procurando adequar-se ao paradigma moderno
a teologia tentou, sem sucesso, conciliar sua fé dogmática com a
metodologia cartesiana iluminista. A teologia cristã afirma a crença em
um Deus que está acima e além do mundo humano, mas tenta submeter a
sua revelação totalmente aos processos cognitivos humanos. Ela afirma
que Deus é capaz de tudo, de realizar coisas impossíveis aos humanos e
além de seus pensamentos, mas enquadramos o nosso discurso sobre
Deus em sistemas e estruturas delimitadas e previsíveis produzidas
pelos nossos raciocínios.
66 | Teologia Sistemática I | FTSA
Na maior parte do cotidiano, agimos segundo uma compreensão
“objetivista” do mundo, do conhecimento e da verdade. Na realidade,
aceitamos esse “bom senso” do mundo como evidente em si mesmo.
Supomos que o mundo é objetivamente real, que ele manifesta uma ordem
inerente a si mesmo e independente da atividade humana. A maioria de
nós supõe que a mente humana seja capaz de refletir, de modo mais
ou menos correto, essa realidade externa e não-humana; muitos de nós
supomos também que a língua, como produto da mente humana, seja
um meio adequado para comunicar a nós mesmos, e a outras pessoas, o
que pensamos a respeito do mundo.

Ao fazer essas suposições “objetivistas”, agimos segundo o que se


designa como teoria da correspondência da verdade. De acordo com
essa teoria, as afirmações ou são verdadeiras ou são falsas e nós somos
capazes de determinar se são falsas ou verdadeiras comparando-as com
o mundo (Grenz, 1997, p. 69-70).

O que Grenz está chamando à nossa atenção é que desde o momento em


que consideramos o mundo como um objeto, que pode ser investigado por
nossas faculdades mentais e pode ser explicado por leis e proposições
verbais, resultantes da expressão linguística humana, passamos a
conceber a realidade como algo que está circunscrito à nossa noção
do que é certo e errado ou a partir da nossa representação humana da
verdade.

Muitos terão dificuldade em entender o que estou afirmando pela


falta de abstração ou pela incapacidade de pensar fora do paradigma
moderno. Infelizmente, a maior parte da teologia produzida até hoje, e
multiplicada na vivência da igreja, está apoiada em discursos teológicos
sistematizados, fechados, prontos e afirmadores do que é certo e errado,
verdadeiro e falso. Ainda que estes discursos — construções teológicas
— partam do pressuposto de que são fiéis expositores da revelação
de Deus, dada em sua Palavra, eles acabam por se constituir em algo
maior e mais poderoso do que a própria Palavra. Uma coisa é o que está
revelado na Palavra, outra é aquilo que interpretamos e sistematizamos
Teologia Sistemática I | FTSA | 67
e construímos em nossos discursos. O que indiretamente afirmamos é
que os nossos discursos são a expressão exata daquilo que a Palavra
diz ou quer dizer. Daí, qualquer pessoa que questione o discurso oficial
e dominante de uma determinada tradição teológica será considerado
rebelde, herege ou infiel.

Se consideramos a possibilidade de construção de um discurso


sistematizado, nos moldes do paradigma moderno, como sendo algo
tão exato, perfeito, óbvio e claro, como podemos explicar a enorme
quantidade de discursos diferentes, e até antagônicos, representados
pela infinidade de correntes e tradições denominacionais. Se todas as
denominações e tradições cristãs tem acesso à mesma bíblia, à revelação
de divina, e constroem as suas doutrinas baseadas na argumentação
lógica do pensamento humano, como explicar as diferenças entre os
vários discursos? Como podemos definir quem tem o discurso correto?
Quem de nós pode se colocar acima dos outros e afirmar qual o discurso
que representa a realidade de Deus?

Exercício de aplicação - 09
Sobre a discussão acerca da “Crise na teologia revelada”, indique
qual opção NÃO representa os efeitos causados pelo paradigma
moderno sobre a teologia.
a) A percepção de que é possível compreender toda a revelação divina
em sistemas elaborados pelo esforço intelectual humano;
b) A consciência de que o paradigma moderno afeta a maneira como
elaboramos as teorias teológicas;
c) Os muitos e diferentes discursos ou sistemas teológicos que se
julgam corretos, um em detrimento do outro;
d) A suposição de conseguir determinar precisamente quais afirmações
das compreensões humanas da revelação divina são verdadeiras ou
falsas;
e) A incapacidade de conciliar a experiência da fé com os sistemas
teológicos resultantes da aplicação do método científico moderno.

68 | Teologia Sistemática I | FTSA


Antes que surjam as primeiras reações, agitações e desconfortos
dizendo, “mas isso é relativismo” ou “então, não existe certo e errado ou
verdadeiro e falso”, advirto que essas reações são naturais por parte de
quem raciocina a partir do paradigma moderno e não consegue perceber
que a realidade está além dele. Aliás, a realidade, e Deus, está além de
qualquer paradigma humano na história. A nossa dificuldade consiste
em tentar conhecer a Deus apesar e além dos paradigmas.

3.2. O questionamento da pós-modernidade


Sem querer estabelecer datas para o início da pós-modernidade, Stanley
Grenz indica os escritos de Friedrich Nietzsche como determinantes para
o surgimento do novo paradigma da pós-modernidade:

A modernidade tem sido atacada pelo menos desde que


Friedrich Nietzsche desferiu o primeiro golpe contra ela no
fim do século XIX; contudo, o ataque frontal em grande escala
só começou na década de 70. O impulso intelectual imediato
para o desmantelamento do projeto iluminista veio com o
surgimento do desconstrucionismo como teoria literária,
influenciando um novo movimento na filosofia (1997, p. 21).

Explicando um pouco melhor como a teoria literária teve a capacidade de


questionar o paradigma moderno, Grenz argumenta:

Segundo os estruturalistas, a linguagem é uma construção


social e as pessoas desenvolvem documentos literários
—textos— na tentativa de prover estruturas de significado
que as ajudarão a dar sentido ao vazio da sua experiência.
Os estruturalistas argumentam que a literatura equipa-
nos com categorias que nos auxiliam a organizar e a
compreender nossa experiência da realidade. Além do
mais, todas as sociedades e culturas possuem uma
estrutura comum e invariável.
Teologia Sistemática I | FTSA | 69
Os desconstrucionistas (ou pós-estruturalistas)
rejeitam este último princípio do estruturalismo. O
significado não é inerente ao texto em si, dizem eles,
emerge apenas à medida que o intérprete dialoga com
o texto. Uma vez que o significado de um texto depende
da perspectiva de quem dialoga com ele, são muitos os
seus significados, como são muitos também os leitores
(ou leituras).

Os filósofos pós-modernos aplicaram as teorias do desconstrucionismo


literário ao mundo como um todo. Assim como um texto terá uma leitura
diferente conforme o leitor, dizem eles, da mesma maneira a realidade
será “lida” diferentemente por todo ser dotado de conhecimento com que
ela se depare. Isso significa que o mundo não tem apenas um significado,
ele não tem nenhum centro transcendente para a realidade como um
todo (1997, p. 22).

O que a teoria literária introduziu na discussão filosófica foi a dúvida


sobre o discurso. Se na modernidade partia-se do pressuposto de que
a realidade poderia ser descrita na forma de leis ou proposições exatas,
na pós-modernidade o que se questiona é a capacidade deste discurso
proposicional representar e explicar a realidade. No paradigma pós-
moderno estas pretensas leis gerais, produzidas pela modernidade, são
consideradas discursos resultantes de um contexto específico, tendo a
realidade interpretada neste contexto e limitada a ele. Um exemplo que
nos ajuda a entender a força deste argumento foi o que ocorreu com a
física newtoniana.

De posse do modelo mecanicista, os cientistas


modernos ocuparam-se da tarefa de desvendar os
mistérios do universo. Com base nesse modelo, que
parecia oferecer uma visão incontestável do mundo, a
empresa científica comemorava uma descoberta após
a outra. Em decorrência disso, a ciência impunha um

70 | Teologia Sistemática I | FTSA


respeito quase universal na sociedade moderna; os
indivíduos modernos olhavam para os cientistas em
busca de respostas para a vida e de orientação rumo
ao aperfeiçoamento da condição humana.

Em meio ao maior de seus trunfos tecnológicos,


contudo, determinados aspectos fundamentais da
cosmovisão científica moderna foram abalados de
dentro para fora. O desafio interno mais devastador
veio da física, a disciplina que lhe proporcionara seu
mais sólido fundamento. As descobertas em princípios
do século XX puseram em dúvida a suposição moderna
de que o universo apresentava uma ordem interna
consistente, facilmente compreensível e imaginável
pela mente humana (Grenz, 1997, p. 83).

Durante séculos a humanidade aceitou como correta as formulações do


sistema mecanicista de Newton, tendo vivido sob elas e construído boa
parte da tecnologia moderna em função das mesmas. A partir do século
XX as novas descobertas da física quântica mostraram que aquilo que
era tido como verdade e exato, na realidade, não eram.

Paralelamente ao desenvolvimento da teoria quântica,


houve uma outra série de descobertas a que nos
referimos sob o título genérico de “teoria da relatividade”.
Foi graças a sua “teoria especial da relatividade” que
Einstein solapou a noção aparentemente racional de
que o espaço e o tempo são absolutos [...].
A exemplo da teoria da relatividade, a física quântica
revela alguns dados surpreendentes sobre o universo
que minam as bases do modelo mecanicista moderno
e da moderna suposição acerca da certeza científica.
Por exemplo, não existem modelos racionais capazes
de nos ajudar a reconciliar a natureza dupla da matéria
Teologia Sistemática I | FTSA | 71
e da energia —refiro-me ao fato de que, às vezes,
elas se comportam como ondas outras vezes como
partículas, dependendo do modo como as examinamos.
Semelhantemente, a imagem familiar de um elétron
orbitando em torno de um núcleo atômico como
um planeta em torno do sol, mostrou-se totalmente
inadequada para caracterizar o que realmente ocorre
no nível subatômico. A física, em tal ambiente, não é
tão mecânica e precisa [...] O universo não consiste em
partículas individuais dotadas de essências específicas
em seu interior, dizem os novos físicos; as partículas
elementares são, na verdade, muito mais dependentes
em seu contexto —em seu relacionamento umas
com as outras— do que é capaz de prever o modelo
mecanicista (Grenz, 1997, pp. 84-85).

Mesmo para aqueles que têm dificuldade em entender essa terminologia


ou que não estejam familiarizados com os conteúdos da física,
a importância do que está sendo apresentado por Grenz está no
questionamento do paradigma moderno. Aquilo que se tinha como
certo e capaz de explicar a realidade, durante muito tempo, e sobre o
qual as pessoas depositavam sua confiança, foi desconstruído. Vale
ressaltar que não houve uma ação proposital e intencional para se
derrubar a física newtoniana e o paradigma moderno. O que ocorreu foi
que novas descobertas, por si sós, mostraram que havia um equívoco
no pressuposto filosófico do empreendimento científico. Esse abalo
foi o suficiente para se questionar todas as outras ciências e as suas
prerrogativas de habilidade em produzir o conhecimento da realidade.
As ciências exatas perceberam o impacto de modo mais forte do que as
ciências humanas, já que os discursos destas últimas já carregam em si
as ambiguidades e complexidades do fenômeno humano e, portanto, são
mais perceptivelmente adaptáveis ao paradigma pós-moderno.

72 | Teologia Sistemática I | FTSA


Assim, a conclusão de Grenz sobre o impacto da pós-modernidade sobre
a teologia é a de que é necessário fazermos uma conjugação entre os
paradigmas, tomando aquilo que cada um traz de contribuição para a fé
cristã. Por isso, ele adverte:

Conforme observamos anteriormente, a modernidade


ergue-se sobre a suposição de que o saber é certo,
objetivo e bom. O pós-modernismo rejeita essa
suposição. Infelizmente, os evangélicos aceitam, com
muita frequência e de modo acrítico, a visão moderna
do saber, apesar de que a crítica pós-moderna, em
determinados pontos, seja mais conforme os pontos
de vista teológicos do cristianismo [...].

Conforme já pudemos ver, a epistemologia moderna


foi edificada sobre o encontro do eu cartesiano com
o universo de Newton como objeto externo. Todavia,
diferentemente do ideal moderno do observador
desapaixonado, afirmamos a realidade da descoberta
pós-moderna, segundo a qual nenhum observador pode
ficar de fora do processo histórico. Tampouco podemos
ter acesso a um saber universal e culturalmente neutro
na qualidade de especialistas não-condicionados.
Pelo contrário, somos participantes de nosso contexto
histórico e cultural, e todos os nossos esforços
intelectuais estão, inevitavelmente, condicionados por
essa participação (1997, pp. 240-241).

O que isso significa é que a produção teológica desenvolvida sob o


paradigma moderno carrega o problema intrínseco de arrogar-se dona
do discurso correto, absoluto e final dobre Deus. A maior representação
desse problema aparece, precisamente, na Teologia Sistemática,
com seus discursos fechados e inquestionáveis, variáveis, é claro, na
diversidade de denominações e correntes.

Teologia Sistemática I | FTSA | 73


3.3. Efeitos sobre a Teologia Sistemática
A Teologia Sistemática ou Dogmática que conhecemos, aprendemos,
repetimos e ensinamos, em sua grande maioria, é filha da modernidade.
O método de investigação utilizado na sua formulação pressupõe a
possibilidade de explicar a Deus e conhecê-lo por meio de sistemas e
proposições finais. A própria subdivisão em disciplinas é característica
da especialização com vistas a utilização do método empirista e objetivo
moderno que procura dar conta das variáveis que circundam o fenômeno
a ser observado. Isso ocorre para todos os grandes temas e talvez seja
mais perceptível em alguns mais do que em outros.

Tomemos, por exemplo, o tema da salvação. Citando apenas dois sistemas


clássicos, que não se coadunam, vemos a dificuldade que o paradigma
nos causa. Isso é o que ocorre quando estudamos as propostas calvinista
e arminiana. Mesmo sem nos aprofundarmos no assunto, mas usando-o
como referência para esta discussão, temos no calvinismo a concepção
de que não há participação humana na decisão que leva as pessoas ao
acesso à salvação. Aqui, a soberania divina se sobrepõe à liberdade de
escolha humana. Já no arminianismo, é exatamente a escolha humana
que proporciona o acesso à salvação ofertada por Deus.

Ora, por estarmos inseridos no paradigma moderno não tivemos a


capacidade de perceber os condicionamentos históricos e culturais
que vieram embutidos em suas propostas. Simplesmente, recebemos,
aceitamos e nos adaptamos, mesmo quando alguma dúvida interior
surgia e nos alertava de que nem tudo se encaixava no sistema
ao tentarmos explicar a realidade. Assumimos que a realidade era
possível ser expressa e representada por meio de proposições e, por
isso, passamos a resumir a propagação do evangelho a uma fórmula,
composta destas proposições, que deveria ser aceita pelas pessoas,
conforme sistematicamente apresentadas. De igual modo proliferaram
as expressões apologéticas, de defesa dos sistemas cristãos, em
contraposição a qualquer outro sistema religioso. Até mesmo dentro
do cristianismo foram estabelecendo-se bastiões da apologética, para
74 | Teologia Sistemática I | FTSA
apontar os hereges ou deturpadores do discurso correto sobre Deus.

Por falta de alternativas melhores e por uma natural resistência ao


paradigma pós-moderno os discursos teológicos modernos foram
afastando-se das gerações contemporâneas ao ponto de não conseguirem
sequer aproximar-se de algumas pessoas para serem ouvidos. Daí
a necessidade de repensarmos a Teologia Sistemática como tal e
buscarmos caminhos que possibilitem o conhecimento e a transmissão
das doutrinas cristãs em um novo contexto. Minha proposta, portanto,
pensando em toda a discussão desenvolvida até aqui, é que ao invés de
estabelecermos o método sistemático como caminho de conhecimento
e explicação dos ensinos bíblicos, busquemos uma abordagem mais
próxima ao texto bíblico, tomando-o como revelação, mas respeitando
suas características e limites. Mesmo que ainda utilizemos a divisão
de temas da sistemática, em suas sete grandes áreas, o que proponho
é uma aventura investigativa a partir da chamada teologia bíblica. A
diferença entre os métodos da teologia sistemática e da teologia bíblica
ficará mais clara a partir do próximo tópico e ao longo de sua aplicação
nesta e nas outras disciplinas correlatas.

4. Teologia bíblica
No Antigo Testamento temos aquilo que passou a ser conhecido
como Shemá4, a principal confissão de fé do povo de Israel. O texto de
Deuteronômio 6:1-9 representa uma convocação geral ao povo de Israel
para um envolvimento no ensino e incorporação da teologia à vida:

Esta é a lei, isto é, os decretos e as ordenanças, que


o Senhor, o seu Deus ordenou que eu lhes ensinasse,
para que vocês os cumpram na terra para a qual estão
indo para dela tomar posse. Desse modo vocês, seus
filhos e seus netos temerão ao Senhor, o seu Deus, e
obedecerão a todos os seus decretos e mandamentos,
4 Shemá ou shama é a primeira palavra hebraica da perícope que compreende os versículos
4 a 9 do livro de Deuteronômio. Sua tradução é “ouve” ou “ouça”.
Teologia Sistemática I | FTSA | 75
que eu lhes ordeno, todos os dias da sua vida, para que
tenham vida longa. Ouça e obedeça, ó Israel! Assim tudo
lhe irá bem e você será muito numeroso numa terra onde
manam leite e mel, como lhe prometeu o Senhor, o Deus
dos seus antepassados. Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso
Deus, é o único Senhor. Ame o Senhor, o seu Deus, de
todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as
suas forças. Que todas estas palavras que hoje lhe ordeno
estejam em seu coração. Ensine-as com persistência a
seus filhos. Converse sobre elas quando estiver sentado
em casa, quando estiver andando pelo caminho, quando
se deitar e quando se levantar. Amarre-as como um sinal
nos braços e prenda-as na testa. Escreva-as nos batentes
das portas de sua casa e em seus portões.

Para melhor entendermos esse texto é necessário ler os capítulos


anteriores do livro de Deuteronômio. O contexto apresentado é o
do discurso de despedida de Moisés do povo quando este, após a
peregrinação de quarenta anos no deserto, está prestes a entrar na
terra prometida. Ele lembra toda a história passada e conclui com a
repetição da base da aliança do povo com Deus, que era a obediência
à Lei. Embora alguém possa pensar que ele estaria limitando a Lei aos
Dez Mandamentos, fica claro, nos primeiros versículos do capítulo 6, que
está em consideração a sua totalidade: “decretos e ordenanças”. A Lei
se constituiu na principal fonte teológica para o Antigo Testamento. Ela
sintetizava as principais doutrinas, elaboradas na forma de ordenanças,
compreendendo a amplitude da vida humana com leis religiosas, sociais,
econômicas, políticas, de saúde, higiene, ecologia, etc., que poderiam
ser conjugadas em pelo menos dois grande princípios, justiça e paz. A
tradução, infelizmente, omitiu a palavra justiça que aparece no original
hebraico no primeiro versículo (mishpat). Vale lembrar também, que é
desse texto que Jesus apresenta uma das sínteses de toda a Lei5: “Ame
5 A outra parte da síntese da Lei que Jesus apresenta está em Levítico 19:18: “Não
procurem vingança, nem guardem rancor contra alguém do seu povo, mas ame cada um
o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o Senhor”.
76 | Teologia Sistemática I | FTSA
o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo
o seu entendimento” (Mateus 22:37).

Os primeiros versículos trazem em sua intenção original, traduzindo


diretamente do hebraico, a ideia de que a Lei, entendida pela composição
sinonímica dos termos mandamento (mitsvah), ordenança (choq), e justiça
(mishpat), é para ser ensinada, aprendida, treinada (lamad) e posta em
prática (asah) na terra que eles estariam começando a habitar. O objetivo
desse aprendizado e prática seria o sucesso do projeto de existência
daquela nação, representado pelas expressões “prolongamento dos
dias” (yarikhun yameika), “ir bem e ser feliz” (yatav) e “ser muito grande,
numeroso” (ravah meod). A prosperidade daquele povo estava, portanto,
intrinsecamente associada ao aprendizado, perpetuação e prática da
Lei, sendo perpassada pelas gerações, expresso explicitamente pelos
termos, filhos e netos.

É com base nessa introdução que deve ser entendido o Shemá.


Aquilo que ficou tão conhecido como uma declaração de amor a Deus
acontece, concretamente, por meio da obediência à Lei, cumprindo seus
mandamentos. Isso é o que representa amar a Deus. Aliás, Jesus se
apropria do mesmo conceito hebraico ao afirmar: “Quem tem os meus
mandamentos e lhes obedece, esse é o que me ama. Aquele que me ama
será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me revelarei a ele” (João
14:21). Amar não é declarar o que se sente com meras palavras sem
que elas possuam uma prova concreta desse amor. Amar é demonstrar
o amor que se diz ter ou sentir pela obediência aos mandamentos. Essa
é a lógica que o mesmo apóstolo João escreve em uma de suas cartas:
“Se alguém tiver recursos materiais e, vendo seu irmão em necessidade,
não se compadecer dele, como pode permanecer nele o amor de Deus?
Filhinhos, não amemos de palavra nem de boca, mas em ação e em
verdade” (1 João 3:17,18) e “Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas
odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê,
não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 João 4:20).

Teologia Sistemática I | FTSA | 77


Mas, o amor a Deus, sendo expresso pela obediência à Lei, deve ser
ensinado e aprendido no dia-a-dia da vida. Esse processo pedagógico,
que perpassa as gerações, não é para estar restrito ao ambiente
acadêmico. Fazer teologia, falar de Deus e de suas doutrinas, é algo que
deve ser natural e passado de pai para filho: “Converse sobre elas quando
estiver sentado em casa, quando estiver andando pelo caminho, quando
se deitar e quando se levantar”. Há ainda que se adicionar atitudes mais
intencionais como os registros visíveis para todos os que estiverem ao
redor, uma forma de testemunho público, que também serve de memória
e fonte de consulta: “Amarre-as como um sinal nos braços e prenda-as
na testa. Escreva-as nos batentes das portas de sua casa e em seus
portões”. Principalmente, no entanto, a teologia tem que estar no centro
da nossa vontade, disposição e raciocínio, representado pelo coração:
“Que todas estas palavras que hoje lhe ordeno estejam em seu coração”.

Concluindo a seção que trata da introdução à Teologia, considerando


todas as discussões e temas tratados até aqui, minha intenção é
indicar um caminho, de certa forma metodológico, de como construir
o conhecimento teológico que atenda aos desafios contextuais
contemporâneos. O caminho que indico é o da Teologia Bíblica. Embora
possamos pensar que todo tipo de teologia seja bíblico, por apoiar-se em
conceitos e textos das Escrituras, o que estou chamando aqui de Teologia
Bíblica é algo específico e que será explicado em mais detalhes adiante.

Antes, porém, gostaria de comentar sobre outro tipo de aproximação


da produção de conhecimento teológico que tem alguma associação
com a Teologia Bíblica. Trata-se da chamada Teologia Narrativa. Tanto a
Teologia Bíblica quanto a Narrativa são recentes na história da Teologia.
Aliás, ambas ainda são pouco conhecidas e difundidas na maioria
dos ambientes acadêmicos, que permanecem fortemente atrelados
aos programas e currículos fundamentados no paradigma moderno.
Há muito pouca fonte bibliográfica em língua portuguesa sobre essas
perspectivas, além do pouco desenvolvimento das ciências literárias na
aplicação desta abordagem aos processos exegéticos e hermenêuticos
no meio evangélico em geral.
78 | Teologia Sistemática I | FTSA
A ideia de se construir o discurso teológico a partir da narrativa está na
simples observação de que o nosso principal objeto de estudo, que são
as Escrituras, não são compêndios de Teologia Sistemática. A bíblia não
nos oferece a revelação divina em forma de sistemas teológicos prontos
ou de pacotes doutrinários fechados. Pelo contrário, as Escrituras são
um depositório de histórias de experiências de um povo com o seu
Deus. Estas histórias consistem em narrativas de pessoas e grupos que
exprimem a sua experiência de fé em meio aos desafios concretos do
seu contexto e de suas crises pessoais. Sendo narrativas, elas possuem
dinâmica, cadência e estilo literário próprios, que afetam a maneira como
interpretamos as suas mensagens. Não parece haver a preocupação
dos autores bíblicos em sistematizar o ensino, na grande maioria das
narrativas. Talvez apenas dois momentos sejam os que mais se pareçam
com uma tentativa de oferecer um sistema, o dos sacerdotes levitas e o
do apóstolo Paulo. Os sacerdotes procuraram organizar a religião em seu
sistema sacrificial e de controle legal. Já o apóstolo Paulo, em algumas
seções de suas cartas, procurou organizar algumas doutrinas de maneira
lógica e de acordo com a argumentação grega. No entanto, mesmo
estas expressões não se comparam com as estruturas sistematizadoras
modernas uma vez que elas também trazem consigo as narrativas
próprias de seus contextos.

Não nos aprofundaremos no tema da Teologia Narrativa já que sua


metodologia pressupõe um maior domínio das ciências linguísticas,
além de outras propostas como a da leitura popular do texto bíblico. O
que nos importa chamar à atenção, ao mencionarmos esta perspectiva,
é o que nos adverte Charles Van Engen:

Nossa tese é que a teologia narrativa vista desde uma


perspectiva evangélica oferece um caminho criativo e
frutífero de integrar as afirmações da Bíblia sobre a missão de
Deus com nosso entendimento da teologia de missão e seus
múltiplos, dinamicamente integrados horizontes de texto,
comunidade e contexto [...] Também deve se levar a sério a

Teologia Sistemática I | FTSA | 79


estrutura narrativa de grande parte da Bíblia, um fato que tem
sido reconhecido ao longo da história da igreja. Recentemente
tem havido uma crescente conscientização que as narrativas
bíblicas contêm tanto história quanto teologia, e são reunidas
por um formato de “estória”. A base histórica para as estórias
é crucial, mas a interpretação daquela estória no texto é o
verdadeiro objeto de interpretação [...] A teologia narrativa é
uma tentativa de construir pontes entre os vários horizontes na
Escritura e da Escritura para os nossos dias (1996, pp. 45-46).

Com base nesse pressuposto, e dada a sua proximidade com a Teologia


Narrativa, é que quero inserir a discussão e proposta da Teologia Bíblica
como caminho para a construção do conhecimento das doutrinas cristãs,
o que ficará mais claro à medida que o assunto for sendo explorado.

4.1. Definição e metodologia


Timóteo Carriker, na introdução do seu livro Missão Integral (1992),
procura definir o que seria a Teologia Bíblica. Ali, ele apresenta uma
importante diferenciação entre a adjetivação e a metodologia no que se
refere à construção teológica:

No sentido geral e mais abrangente, toda teologia


cristã, quer seja sistemática ou dogmática, quer
contemporânea ou prática, enfim, qualquer pensamento
cristão a respeito de Deus tem o dever de ser bíblico,
isto é, ter seu embasamento em princípios bíblicos. Do
ponto de vista semântico, talvez este seja o sentido
mais correto. Mesmo assim, dentro do currículo
teológico, especialmente nos últimos cinquenta anos,
o termo vem adquirindo um sentido mais específico e
técnico. Desde então, se refere a um método específico
de estudar a Bíblia, prestando atenção aos temas e aos
vários leitmotivs no seu contexto cultural e histórico que
se desdobram através das Escrituras. Neste sentido, a
80 | Teologia Sistemática I | FTSA
teologia bíblica não é “bíblica” apenas por procurar sua
base em princípios bíblicos, mas também por seguir
a sequência bíblica, através da qual estes temas são
apresentados e desenvolvidos (1992, p. 9-10).

Para Carriker, apenas usar textos bíblicos não faz com que a teologia seja
bíblica. Nesse sentido, ele adverte:

Já indicamos que o método hermenêutico que trata a


Bíblia como uma “mina”, procurando textos de prova
para apoiar sua predeterminada perspectiva, não
serve. Tanto o método dedutivo quanto o indutivo pode
cair nesse perigo. O melhor seria reparar a estrutura
básica da mensagem bíblica no seu desdobramento
mais amplo, a fim de discernir as nuanças do texto
em relação à tarefa do povo no mundo. Desta forma,
não buscamos na Bíblia referências que legitimam a
nossa perspectiva e atuação missionárias já existentes
e os nossos programas eclesiásticos. Pelo contrário,
queremos ouvir o julgamento de Deus quanto a missão
do seu povo (1992, p. 9)

A diferença entre usar os textos bíblicos aleatoriamente, ou com


perspectivas predeterminadas, e usá-los conforme são apresentados em
seus contextos, está na aproximação metodológica. A Teologia Bíblica
pressupõe o seguinte processo:

• Atenção aos temas de estudo e aos outros temas recorrentes ou


condutores (leitmotivs);

• Seguimento da sequência bíblica em que os temas são


apresentados e desenvolvidos;

• Interpretação e construção dos conceitos a partir do contexto


cultural e histórico em que são apresentados.
Teologia Sistemática I | FTSA | 81
Explicando um pouco mais cada componente do processo, o primeiro
trata de como delimitar o assunto que queremos investigar. Ao
escolhermos um tema, para o qual queremos construir uma teologia
bíblica, precisamos estar atentos para a sua relevância e abrangência
conforme apresentado nas Escrituras. Nem todos os temas que nos
interessam ser estudados estão expostos explícita ou implicitamente
na bíblia. Há outros temas que estão inseridos em temáticas maiores
ou elaborados em conjunção com outros. Por isso, a definição de um
tema deve considerar possíveis subtemas ou, sob outro ponto de
vista, um tema escolhido pode vir a tornar-se um subtema após uma
investigação mais aprofundada, levando o estudo a ter um espectro
maior do que o imaginado inicialmente. Por exemplo, digamos que
alguém queira desenvolver uma teologia bíblica da mulher. Dadas as
limitações da abordagem do tema na bíblia, considerando uma produção
literária majoritária de cunho cultural machista dos livros, teríamos certa
dificuldade em fundamentar um estudo profundo. Nesse caso, o tema da
mulher deverá estar inserido em um tema maior, que é o do ser humano,
incluindo a criação, a questão de gênero, além da questão das relações
humanas. O mesmo raciocínio poderíamos aplicar com respeito aos
temas da criança, do jovem e do idoso.

Por questões históricas, haverá também assuntos que não estarão


compreendidos no escopo bíblico e que deverão ser investigados a partir
de princípios e temas maiores. Estou me referindo aqui a temas mais
contemporâneos como ecologia, genética e o mundo virtual da computação
e internet. Estes temas nos desafiam a pensar em sustentabilidade,
responsabilidade humana, clonagem, manipulação genética, transgênicos,
comunhão virtual, etc. Certamente, há princípios bíblicos e temas que
servem como referência para esses assuntos, mas eles não são imediatos
e merecem uma atenção especial em sua apreciação.

Ainda sobre os temas, Carriker nos alerta acerca da importância de sempre


levar em consideração os leitmotivs bíblicos. Muito embora tenhamos a
intenção de buscar a compreensão bíblica acerca de um tema, temos
82 | Teologia Sistemática I | FTSA
que manter em mente que existem os chamados temas condutores ou
recorrentes que permeiam todos os outros. A importância em se conhecer
esses leitmotivs é que será com base neles que os outros temas irão
ser construídos ou referenciados. Me refiro aqui a alguns temas bíblicos
condutores como amor, justiça, esperança, fé, reino de Deus (soberania,
reinado, poder, etc.), aliança, comunhão, salvação, missão, entre outros.

O segundo componente do processo metodológico da Teologia Bíblica,


conforme indicado por Carriker, é o respeito à sequência bíblica na
construção do tema. Muitas pessoas têm dificuldade em entender
o que isso significa ou em aplicar essa dinâmica na construção do
conhecimento. Por já possuirmos uma noção antecipada da bíblia e
termos a teologia cristã fundamentada, principalmente, nos textos
do Novo Testamento, quando nos remetemos aos textos iniciais das
Escrituras temos a tendência de lermos e interpretá-los a partir do prévio
conhecimento daquilo que está mais adiante. Muitos são os que não
conseguem abstrair-se do que sabem e, assim, não conseguem contentar-
se com aquilo que aparece aos poucos na sequência de apresentação
bíblica do tema, que tende a uma compreensão paulatina e acumulativa.

É fundamental para a Teologia Bíblica percorrermos esse caminho


histórico na apresentação da revelação divina. Isso porque as limitações
de cada fase e contexto histórico trazem consigo aspectos importantes
que serão interpretados, revisitados, revistos, renovados ou até mesmo
substituídos à medida que novas circunstâncias modificam a situação
de vida do povo responsável pela intermediação da mensagem bíblica.
Essa dinâmica de construção também serve como sustentação para a
contínua tarefa hermenêutica que somos obrigados, como igreja, a fazer
ao longo da história humana.

Para esclarecer um pouco mais esse componente metodológico,


utilizemos um exemplo de como isso se aplica e quais as nuances nele
envolvidas. Tomemos o caso da Missiologia. Novamente usamos a
proposta de Carriker. Ao tentarmos estudar o tema da Missão, a partir da
Teologia Bíblica, e iniciando o estudo pelo livro de Gênesis, nos deparamos
Teologia Sistemática I | FTSA | 83
com os primeiros textos que tratam da criação. A princípio, poderíamos
pensar que não há nada ali que trate da Missão, no entanto, definindo-a
como a reponsabilidade que o povo de Deus tem sobre sua ação no
mundo, aqueles primeiros textos nos indicam algumas compreensões,
que podemos obter por inferência, e que serão aprofundadas na sequência
bíblica da revelação, até ao ponto da indicação da Igreja de Cristo como o
principal agente dessa Missão. Não são nos primeiros textos de Gênesis
que encontramos a importância, o papel e a responsabilidade da Igreja.
Contudo, as informações que ali aparecem, restritas àquele período
histórico, contribuem para o entendimento da Missão, como um todo,
incluindo aquilo que a Igreja deve considerar como sua responsabilidade.
Especificamente, o relato da criação apresentado no livro de Gênesis
constrói o tema da Missão da seguinte forma:

Primeiro, reconhecemos que o Deus da Bíblia não é uma


divindade de especulação filosófica, mas o Deus vivo que
age na história deste mundo. As Escrituras começam
contando sobe as atividades de Deus no mundo [...]
Os relatos da criação revelam inequivocamente que
Iahweh tem absoluto controle sobre Sua criação [...]
Consequência direta da soberania de Deus é a idéia de
que seu propósito será levado à cabo. O Deus Criador
e Soberano guia a história para que toda a Sua criação
tenha seu cumprimento, sim, sua própria salvação em
Cristo (Efésios 1:10; Colossenses 1:20) (Carriker, 1992,
pp. 27-28).

É claro que não está presente no texto de Gênesis o ápice do plano divino,
no que concerne à salvação da criação, por meio da encarnação, ministério
e morte de Cristo. A menção que Carriker faz sobre esse assunto, e que
aparecerá bem mais tardiamente nas Escrituras, é apenas para reforçar
a ideia de que Deus leva à cabo o seu plano iniciado em Gênesis. O que
o autor está argumentando é que limitando a nossa observação aos
textos da criação de Gênesis, podemos ter conhecimento de que Deus é

84 | Teologia Sistemática I | FTSA


o principal interventor na história humana, desde a formação cuidadosa
da natureza, do especial tratamento dispensado na formação do ser
humano, até ao trato com o mesmo após a Queda, preparando um plano
de restauração para os efeitos da mesma. Ora, como construção inicial,
e que já serve como parte do nosso conhecimento sobre Deus e sua
Missão, podemos concluir que se Deus se preocupa com toda a criação
com esse nível de atenção e cuidado, a Igreja, como sua representante,
não pode estar aquém desta mesma atitude, ou seja, também deve
devotar a mesma atenção e cuidado.

A revelação divina sobre a Missão, obviamente, não está limitada ao relato


da criação no livro de Gênesis, portanto, seguindo a sequência bíblica,
temos que ir mais adiante para conseguirmos construir este conceito,
até percorrermos todos os textos das Escrituras. Cada texto, em cada
contexto, nos trará novas informações que nos ajudarão a compreender
a teologia bíblica desse tema.

Ao mencionarmos o contexto, nos aproximamos do terceiro componente


do processo metodológico da Teologia Bíblica. A questão contextual e
histórica é inerente à sequência bíblica. Ao percorrermos as Escrituras,
respeitando a sequência bíblica, estamos nos movendo ao longo
da história do Antigo Oriente, da qual o povo de Israel faz parte. É
fundamental para a tarefa de leitura e interpretação dos textos bíblicos
prestarmos atenção às particularidades, características e limitações
de cada contexto. Isso inclui aspectos linguísticos, literários, culturais,
geográficos, sociológicos, etc. que influenciam o próprio texto, além da
mensagem que o autor quer transmitir. Por exemplo, não podemos supor
que um texto que trate de um tema relativo à família esteja partindo dos
mesmos pressupostos que temos hoje em função da família urbana
ocidental. Em quase todas as Escrituras podemos perceber que a estrutura
familiar era, naturalmente, composta por um homem, suas mulheres e
concubinas, todos os filhos gerados nessas relações, além de parentes
próximos como sobrinhos, tios, avós, sogros e até escravos. Este é um
padrão ainda encontrado em sociedades tribais africanas, que remonta a

Teologia Sistemática I | FTSA | 85


tempos imemoriais da história humana, formando o sistema de clãs. Isso
é apenas um exemplo, mas se considerarmos outros aspectos culturais,
sociais, etc., notaremos que o desafio para construirmos a Teologia Bíblica
é bastante grande, exigindo de nós um conhecimento que não pode se
conformar com a superficialidade.

Exercício de reflexão - 10
A partir daquilo que foi exposto como metodologia de construção
de teologias bíblicas, reflita como você, normalmente, elabora os
seus estudos pessoais e busca por conhecimento. Como você
avalia o seu processo à luz do que foi proposto? Indique pontos
positivos e negativos, vantagens e desvantagens desse processo
em função da sua própria experiência.

4.2. Fundamentos e conhecimento prévio


A importância da Teologia Bíblica também reside no fato de que ao adotá-la
estamos procurando nos aproximar e nos identificar um pouco mais com
o processo de revelação. Não me parece válido ajeitarmos, de antemão,
as Escrituras às nossas experiências ou preferências eclesiásticas e
denominacionais, ou ainda, não é próprio fazermos teologia a partir de
um único verso ou perspectiva. Precisamos da compreensão de cada
tema em toda a Bíblia. Por conseguinte, devemos ter a coragem e
humildade de nos calar sobre aquilo que a Bíblia se cala. Indiretamente,
estamos lidando aqui com alguns pressupostos da teologia reformada,
em que afirmamos que as Escrituras são responsáveis por explicar as
próprias Escrituras, sem invenções, ainda que com o apoio de todo tipo
de conhecimento humano, que não o teológico apenas. Aliás, o uso
de ferramentas no auxílio da compreensão dos textos bíblicos é uma
prerrogativa para essa tarefa.

Há quem pense que o conhecimento surja de uma experiência miraculosa,


de uma hora para outra, como que caindo do céu. Outros preferem imaginar
86 | Teologia Sistemática I | FTSA
que o entendimento de um assunto, mesmo que inserido em toda a
complexidade das Escrituras, será revelado por meio de uma experiência
mística, obtendo assim a compreensão necessária. Talvez por preguiça
mental, falta de tempo, incapacidade intelectiva, deficiência na formação
educacional, ou outras razões, há quem prefira advogar esse tipo de
abordagem como sendo até superior e mais santa do que o estudo regular,
aplicado e com o uso do raciocínio lógico. Lamentavelmente, existem
ainda os que preferem pensar que o uso das ciências humanas mancha
e interfere na aproximação da revelação divina, pelas mesmas razões já
levantadas, reforçando uma dicotomia na construção do conhecimento.
O conhecimento é uma dádiva divina inerente à constituição do ser
humano não havendo separação entre sagrado e profano. A descoberta
da realidade, sua descrição e tentativa de explicação, pelo uso das
faculdades mentais, faz parte do fenômeno humano. À medida que
investigamos a natureza e a existência estamos tendo acesso à criação
divina e ao conhecimento da realidade, independente do objeto de estudo
ser as Escrituras. Nesse sentido, devemos estar confortáveis com o
uso de todas as ciências como recurso de auxílio na compreensão da
revelação presente na bíblia.

De maneira mais prática, o que estou defendendo é a necessidade de


aprofundarmos os nossos estudos em algumas áreas, interdisciplinares
à Teologia, propriamente dita, que irão formar uma base fundamental para
a melhor compreensão da mensagem transmitida nos textos bíblicos.
Antes, porém, temos que considerar que o conhecimento prévio da bíblia,
como um todo, é uma condição sine qua non para nos aventurarmos
na Teologia Bíblica. O que quero dizer com essa afirmação é que penso
ser quase impossível desenvolvermos o estudo particular de qualquer
tema bíblico sem a percepção do todo. Como defendido por Carriker,
temos que estar atentos aos leitmotivs e eles só são apreendidos com o
conhecimento prévio do todo da bíblia. Em outras palavras, para alguém
estudar algum tema bíblico, defendo ser fundamental uma leitura prévia, de
antemão, de toda a bíblia. Essa leitura pode ser devocional, investigativa,
indutiva, etc., no entanto, atenta ou não, ela deverá ser capaz de nos
Teologia Sistemática I | FTSA | 87
proporcionar uma perspectiva ampla dos leitmotivs, além de permitir
uma percepção das redes de relações e conexões entre os personagens
e as histórias que conduzem a grande narrativa da revelação.

É impressionante o desconhecimento bíblico dos crentes em geral.


Mais impressionante ainda é nos depararmos com o desconhecimento
daqueles que intencionam estudar, formalmente, Teologia. Não é minha
intenção discutir aqui as razões que nos conduziram a esse cenário, mas
é no mínimo curioso pensar que alguém queira estudar Teologia sem um
conhecimento, mesmo que superficial, de toda a bíblia. Afinal, como já
elaboramos anteriormente, a bíblia é o nosso principal objeto de estudo e
um curso de Teologia não se propõe a ensinar essa aproximação básica,
que deve ocorrer na igreja, no desenvolvimento da fé e da experiência
pessoal com Deus. Tanto é assim, que o ingresso no curso de Teologia
pressupõe a realização de um exame de conhecimentos bíblicos prévios.
Infelizmente, a carência de ensino e formação na igreja leva muitos a
buscarem um curso superior em Teologia para supri-la, o que não é o
caso e nem objetivo do mesmo. Portanto, ao nos propormos percorrer o
caminho da Teologia Bíblica, necessitamos de um conhecimento prévio
que, caso não exista, deve ser buscado de maneira emergencial.

Fora esse conhecimento prévio de toda a bíblia, necessitamos do apoio


de outros recursos fundamentais para compreendermos os textos em
seus contextos. Me refiro aqui aos seguintes recursos:
a) História de Israel e do Antigo Oriente Próximo, incluindo as
informações de história comparada e arqueologia;
b) Geografia das regiões e dos tempos bíblicos, incluindo as
informações de clima, recursos naturais, etnias, migrações, etc.;
c) Sociologia dos povos nos tempos bíblicos, incluindo os tipos de
organização social, disputas políticas e sociais, instituições, etc.;
d) Ferramental literário, incluindo as introduções aos testamentos e
seus respectivos livros, no que se refere às discussões sobre temática,
datação, autoria, público alvo, tradição teológica, etc.;
88 | Teologia Sistemática I | FTSA
e) Ferramental linguístico, incluindo o conhecimento das línguas
originais e recursos hermenêuticos.

O acesso a esses recursos se dá por meio da leitura e estudo de uma


vasta produção bibliográfica, que deve ser desenvolvido paralela e
concomitantemente. A aplicação do conhecimento bíblico e desses
recursos fundamentais na produção da Teologia Bíblica ficará mais
claro à medida que estudarmos os temas propostos pelas disciplinas de
Teologia Sistemática.

A Teologia é uma atividade humana que deve ser encarada de maneira


natural e responsável, ainda que possa ser desenvolvida e motivada pelo
prazer da descoberta. Seu alvo final é a vida, como um todo. A busca
pelo entendimento da revelação, do projeto de Deus para o ser humano,
pode se dar de maneira estruturada, sistematizada ou não, mas precisa
ter a consciência de que é uma tarefa de todos os creem, incluindo as
pessoas e as instituições que compõem esse ambiente.

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BRAATEN, Carl E. e JENSON, Robert W. (ed.). Dogmática Cristã. Vol.1.
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cristianismo. A era dos sonhos frustrados. v. 5. São Paulo: Vida Nova,
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nosso tempo. São Paulo: Vida Nova, 1997.

HESSELGRAVE, David J. A comunicação transcultural do evangelho.


Teologia Sistemática I | FTSA | 89
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Grand Rapids, MI: Baker, 1996.

ZABATIERO, Júlio. Fundamentos da teologia prática. São Paulo: Mundo


Cristão, 2005.

90 | Teologia Sistemática I | FTSA


UNIDADE 3 – O SER DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO
1. O conhecimento de Deus
Começando o estudo propriamente dito das áreas clássicas da Teologia
Sistemática, esta unidade inicia o tema da Teontologia ou da Teologia
Própria, que em sua designação quer indicar o estudo da pessoa de
Deus, ou de maneira mais abrangente, da existência como um todo. A
expressão teontologia, portanto, une três termos gregos com a intenção
de apontar para a ideia de se promover o discurso ou estudo (logos)
sobre Deus (theos) e o seu ser ou a sua existência (onto).

Essa curiosidade sobre a existência de Deus parece surgir daquilo que


o autor de Eclesiastes sugere no capítulo 3, versículo 11: “Ele [Deus] fez
tudo apropriado a seu tempo. Também pôs no coração do homem o
anseio pela eternidade; mesmo assim este não consegue compreender
inteiramente o que Deus fez”. A observação do sábio de Eclesiastes é de
que existe um anseio humano pela transcendência, por aquilo que está
além dele. Todo ser humano carrega esse anseio que, ao mesmo tempo,
não é totalmente atendido. Este fenômeno da curiosidade humana
pela transcendência também é observado pela Antropologia. Todas as
expressões culturais humanas de que se tem conhecimento na história
apresentam suas construções religiosas e elaboração de divindades.
Mesmo antes do desenvolvimento da religiosidade hebraica e cristã,
conforme registrado na Bíblia, já existia uma variedade de religiões
produzidas pelos diversos povos espalhados pela terra.

A pergunta sobre a existência das coisas, sua origem, sempre ocorreu


como um fenômeno humano geral com maior ou menor profundidade
dependendo do momento histórico que queiramos observar. Algumas
respostas para a existência possuem direta relação com a construção
da religião e da crença em divindades. No entanto, pelo menos para o
mundo ocidental, a maior contribuição para o assunto foi desenvolvida
Teologia Sistemática I | FTSA | 91
pela filosofia grega. Mais tarde, a modernidade também se ocupou em
investigar o tema. No nosso caso, embora usemos as informações das
outras ciências, a atenção estará voltada para a resposta dada pela
Teologia para explicar a existência.

1.1. Transcendência e existência


É com base na busca humana pela transcendência que quero fazer
as primeiras incursões no campo da Teontologia. Entendemos a
transcendência como aquilo que está além da realidade humana sensível,
ou seja, além daquilo que é experimentado por nossos sentidos mais
imediatos. Esta realidade sensível também é chamada de imanência.
Sem querer reforçar qualquer tipo de possível dicotomia, uma vez que
tanto a imanência quanto a transcendência fazem parte da realidade
humana, olhamos para transcendência como aquilo que extrapola os
sentidos ou aquilo que existe no âmbito da possibilidade.

Duas compreensões básicas, pelo menos, compõem o fenômeno da


transcendência. A primeira tem a ver com o pensamento humano. O
pensamento, embora entendamos que seja gerado no cérebro, que é
um órgão do corpo humano e, portanto, imanente, tem a capacidade de
imaginar, elaborar e criar coisas que estão além do próprio ser humano.
Sonhos, planos, projetos e outras expressões resultantes do pensamento
encontram-se na esfera da transcendência por estarem além da realidade
imediata. Aqui encontramos um elo direto e motivador da percepção
da existência humana. Como afirmou René Descartes, “penso, logo
existo” (cogito, ergo sum). O pensamento cria um universo próprio na
interioridade humana gerador das perguntas básicas da existência:
Quem ou o que sou? De onde vim? Para onde vou? Estas perguntas
surgem naturalmente com o objetivo de encontrar a razão, a explicação,
a motivação para a vida. Este aspecto da transcendência necessita de
respostas, mesmo que penúltimas, dentro de um ambiente de constante
busca, que engloba todos os seres humanos em todos os tempos e em
todos os lugares.
92 | Teologia Sistemática I | FTSA
Glossário
Imanência – Qualidade ou característica do que está na essência de algo;
qualidade do que é inerente ao mundo material e concreto; a realidade
concreta.
Transcendência – Na metafísica clássica, caráter inerente daquilo que
é de natureza superior, portanto, radicalmente diferente e separado da
realidade sensível; segundo o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-
1804), qualidade das ideias que se caracterizam por estarem muito
acima de qualquer experiência possível, sendo portanto inapropriadas
para o conhecimento.
(Fonte: http://michaelis.uol.com.br)

A segunda forma básica de pensarmos na transcendência é pela ideia de


divindade. Neste caso, a divindade é algo que está, por definição, além do
ser humano e possui existência própria. A ontologia, contudo, pode ser
vista desde a perspectiva humana, o que sugere que a divindade surge
como explicação para a origem ou causa da existência humana.

A discussão que este fenômeno traz para as ciências humanas é a de


que, neste sentido, a divindade poderia ser considerada uma criação
humana. Em parte, aquilo que também foi observado pelo autor de
Eclesiastes, contribui para esta percepção, que é o fato de o ser humano
não conseguir “compreender inteiramente” a Deus. Ao tentar aventurar-
se na elaboração racional da transcendência, o ser humano depara-se
com a limitação da sua imanência. Por ser a transcendência algo que
está além, ela acaba por tornar-se algo inesgotável e, assim, passível
da crítica de ser uma construção humana para satisfazer este anseio.
Ambas as formas de transcendência, no entanto, necessitam relacionar-
se com a imanência humana, caso contrário, perdem a sua significância.
Isto quer dizer que a transcendência só tem razão de ser em função da
realidade imanente do ser humano. Assim, o transcendente precisa tocar
ou relacionar-se com o imanente.
Teologia Sistemática I | FTSA | 93
Diante disto, resta-nos a argumentação da via alternativa, ou seja, a
de que é a transcendência, em sua existência autônoma, que vai de
encontro à imanência. Este é o pressuposto judaico-cristão. O anseio
pela transcendência encontra-se implantado no coração humano,
contudo, é a própria transcendência que toma a iniciativa de preencher
este anseio de interação. Em outras palavras, Deus é quem busca o ser
humano. Resgatamos aqui o conceito de revelação, fundamental para a
Teontologia cristã. É com base nele que faremos, mais adiante, nossa
investigação do tema a partir das Escrituras.

1.2. Conhecimento natural


Há pelo menos dois textos bíblicos que sugerem um tipo de revelação
que possibilita o conhecimento de Deus a toda a humanidade. O primeiro
texto encontra-se no livro de Salmos:

Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a


obra das suas mãos.
Um dia fala disso a outro dia; uma noite o revela a outra noite.
Sem discurso nem palavras, não se ouve a sua voz. Mas a sua
voz ressoa por toda a terra, e as suas palavras, até os confins
do mundo. Nos céus ele armou uma tenda para o sol, que é
como um noivo que sai de seu aposento, e se lança em sua
carreira com a alegria de um herói. Sai de uma extremidade
dos céus e faz o seu trajeto até a outra; nada escapa ao seu
calor (Salmo 19:1-6).

O segundo é apresentado pelo apóstolo Paulo em sua carta aos romanos:

Portanto, a ira de Deus é revelada do céu contra toda


impiedade e injustiça dos homens que suprimem
a verdade pela injustiça, pois o que de Deus se pode
conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes
manifestou. Pois desde a criação do mundo os
atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua
94 | Teologia Sistemática I | FTSA
natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo
compreendidos por meio das coisas criadas, de forma
que tais homens são indesculpáveis; porque, tendo
conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus,
nem lhe renderam graças, mas os seus pensamentos
tornaram-se fúteis e os seus corações insensatos se
obscureceram (Romanos 1:18-21).

Ambos os textos afirmam que a natureza é uma fonte de conhecimento


de Deus. Embora o Salmo pareça restringir os elementos naturais aos
astros celestes, o que nos salta aos olhos é a quantidade de expressões
que podemos associar ao exercício do fazer teológico. São elas: declarar
ou relatar (saphar), proclamar ou anunciar (nagad), falar ou borbulhar
palavras (nava omer), revelar ou fazer conhecido (chavah), palavra
(omer) e discurso (dabar). Já o texto de Romanos traz as seguintes
expressões: conhecer (gnostos), manifestar (faneros), entender ou ver
claramente (noieo), compreender ou perceber (kahtorao), pensamentos
(dialoguismos).

A questão imediata que surge, então, é como, ao observarmos a natureza,


temos a capacidade de conhecer a Deus, conforme indicam os textos?
Mais ainda, sendo a natureza uma revelação comum a toda humanidade,
ela independeria da religião e da fé como fonte para o conhecimento de
Deus. Aliás, é por esta razão que o apóstolo Paulo considera todos os seres
humanos indesculpáveis. Este assunto introduz uma discussão bastante
complexa na Teologia que permeia o pensamento cristão desde a Patrística.
Wolfhart Pannenberg (2009) oferece uma investigação abrangente sobre
esta discussão chegando ao ponto de diferenciar o que seria o conhecimento
natural e a teologia natural. Pannenberg explica que o conceito de teologia
natural é anterior ao cristianismo, tendo surgido na Grécia:

Panáicio designou como “teologia natural” a doutrina


filosófica sobre Deus diferenciada da “teologia mítica”
dos poetas por um lado, e, por outro, da “teologia
política” dos cultos instituídos com autoridade estatal
Teologia Sistemática I | FTSA | 95
e sustentado pelos estados. O sentido da expressão
está ligado à pergunta levantada pela sofística acerca
da expressão “de natureza”, isso é, pelo verdadeiro
de si mesmo, em contraposição ao verdadeiro, cuja
validade se deve exclusivamente a proposições
(thesis) humanas, seja por costume e origem, seja por
determinação política (2009, pp. 118-119).

A teologia cristã elaborada pela igreja primitiva, tendo se desenvolvido no


ambiente greco-romano, teria se apropriado desta perspectiva da teologia
natural e usado daquela estrutura filosófica para construir o seu discurso.
Ao longo da história a teologia natural foi mudando de concepção e em
determinado momento entendeu-se que ela se diferenciava da teologia
revelada em suas fontes primárias. Principalmente na modernidade, a teologia
natural representava o esforço humano racional no conhecimento de Deus,
tendo como objeto a natureza e o próprio ser humano, enquanto a teologia
revelada ocupava-se das Escrituras. Pannenberg resume esse percurso:

A função das “demonstrações antropológicas da


existência de Deus” consiste, em contrapartida, na
comprovação de que a idéia de Deus é elemento
constituinte e essencial de uma autocompreensão
adequada do ser humano, seja com vistas à razão
humana seja sob inclusão de outras realizações básicas
da existência humana. Do grupo das demonstrações da
existência de Deus que argumentam expressamente
de modo antropológico, já faz parte a comprovação de
Agostinho de que a consciência conhecedora depende
da luz da verdade, que não procede dela mesma.
Também faz parte a comprovação de uma idéia de
Deus inata à consciência humana, no saber do infinito,
que procede a toda idéia de coisas finitas e se encontra
em sua base, na terceira meditação de Descartes. Além
disso, pertencem a esse grupo a demonstração moral da
existência de Deus de Kant na Crítica da Razão Prática,
96 | Teologia Sistemática I | FTSA
bem como o ver-a-si-mesmo da autoconsciência como
estar-fundamentado no absoluto, como é apresentado
nas posteriores doutrinas de Fichte, como liberdade,
que existe por meio do ser absoluto. Além, disso,
também se deve incluir aí a comprovação por parte
de Schleiermacher de um sentimento de absoluta
dependência como base da autoconsciência humana e
a tese de Kierkegaard de uma referência constitutiva da
autoconsciência ao infinito e eterno. A série justamente
destas tentativas pode ser continuada até o presente
[...] Nenhum desses argumentos antropológicos é
capaz de demonstrar a existência de Deus em sentido
rigoroso. Na maioria dos casos também não se tem
essa pretensão, mas se afirma apenas uma relação do
ser humano com uma realidade que transcende o ser
humano e a realidade, no mais inescrutável, de modo
que se garante ao nome de Deus da tradição religiosa
um apoio na realidade da experiência do homem em
si mesmo. Além disso, não pode tratar-se de uma
verdadeira demonstração da existência de Deus,
porque deveria ser demonstrada a existência de Deus
não somente em relação ao ser humano, mas também
e, sobretudo, em relação à realidade do mundo.
Nisso se fundamenta a importância permanente das
demonstrações do tipo cosmológico e o interesse nelas
ainda no pensamento presente (2009, pp. 141-142).

Aquilo que determinaria, portanto, o conhecimento natural de Deus pode


ser considerado como a consciência ou autoconsciência humana de
sua própria existência, que teria origem em algo anterior, ou seja, Deus,
seja pelo princípio temporal ou pelo princípio do movimento da máquina
da criação. Novamente, o tema da transcendência é lembrado, porém,
trazendo a necessidade de relação com a imanência do cosmos.

Teologia Sistemática I | FTSA | 97


1.3. Conhecimento revelado
A Teologia não lida diretamente com o conhecimento natural como principal
fonte de conhecimento de Deus, embora use-o constantemente como aporte.

A ontologia é possível porque existem conceitos que


são menos universais do que o ser, e mais universais do
que qualquer conceito ôntico. Isto é, são mais universais
do que qualquer conceito que designa um reino de
seres. Esses conceitos foram chamados “princípios”,
“categorias” ou “noções últimas”. A mente humana
trabalhou durante milhares de anos em sua descoberta,
elaboração e organização. Mas não chegou a nenhum
consenso, embora certos conceitos reapareçam em
quase toda ontologia. A teologia sistemática não pode,
nem deveria entrar na discussão ontológica como tal.
Contudo, ela pode e deve considerar estes conceitos
centrais do ponto de vista de seu significado teológico.
Tal consideração, exigida em cada parte do sistema
teológico, pode influenciar indiretamente a análise
ontológica. Mas a arena da discussão ontológica
não é a arena teológica, embora o teólogo deva estar
familiarizado com ela (Tillich, 1987, p. 142).

A arena da Teologia é a fé e a revelação divina. O conhecimento é menos


uma busca, e mais um encontro. Ele se dá pelo estudo da revelação, que
inclui a parte natural, mas se concentra muito mais na revelação especial
das Escrituras e de Jesus. É isto que a neo-ortodoxia de Karl Barth
defende, de acordo com McGrath: “Barth declarou que a teologia cristã
não era de maneira alguma dependente da filosofia humana, mas era
autônoma e autossustentável. Deus foi perfeitamente capaz de revelar-
se sem qualquer auxílio humano” (1994, p. 125).

De certa forma, alguns assuntos estudados anteriormente concorrem


para a presente discussão sobre o conhecimento revelado de Deus. Tanto
a discussão sobre revelação, inspiração e iluminação, quanto sobre a
98 | Teologia Sistemática I | FTSA
Teologia Bíblica podem nos auxiliar aqui. No entanto, gostaria de explorar
alguns outros aspectos referentes à Bíblia como fonte principal do
conhecimento revelado. Como já dito, dependemos da iluminação divina
para o entendimento das Escrituras, mas isso não significa ausência
de esforço racional, estudo organizado e dedicação. Embora revelado,
o conhecimento não está pronto; ele precisa ser adquirido, construído.
Assim, a Teologia Bíblica indica um meio, um caminho, uma maneira de
tentarmos chegar a esse conhecimento.

Exercício de Fixação - 11
Sobre a diferença entre a teologia natural e a teologia revelada é
correto afirmar que:
a) A teologia natural pressupõe o uso da razão humana e a revelada não;
b) A teologia natural não permite o conhecimento de Deus, apenas a
revelada;
c) A teologia natural e a revelada se equivalem em tudo, menos nas fontes
primárias;
d) A teologia natural limita-se às questões da realidade humana enquanto
a revelada inclui o fenômeno da revelação divina e da fé;
e) A teologia natural estuda a revelação bíblica com o uso das ciências
humanas e a revelada a estuda apenas pela fé.

Olhando, então, para a revelação feita por meio das Escrituras, o que temos
em mãos é um livro (biblos) ou uma coletânea de livros (biblia). Cada um
destes livros veio a fazer parte desta coletânea por ter sido considerado
sagrado pela comunidade da fé, que foi formada primeiro pelo povo de
Israel e depois pela igreja. Para os cristãos, a bíblia é composta por dois
grandes grupos de livros, o Antigo e o Novo Testamento ou a Antiga e a
Nova Aliança. Já o povo judeu considera como sagrados apenas os livros
da chamada Bíblia Hebraica, que coincide com o Antigo Testamento da
bíblica cristã. O Novo Testamento é a compreensão da Nova Aliança, que
Teologia Sistemática I | FTSA | 99
substitui a Antiga, instituída entre Deus e o povo de Israel, renovada com
base na pessoa de Jesus Cristo, o Messias judeu. Como o judaísmo não
reconhece Jesus de Nazaré como o Messias prometido, eles permanecem
apenas com os livros do Antigo Testamento.

Os livros que compõem o Antigo Testamento foram sendo escritos,


editados, copiados e usados pelo povo de Israel, ao longo de sua
história. A seleção dos livros considerados sagrados, ou aqueles que
representavam a Palavra de Deus revelada, ocorreu dentro desse longo
processo e feita pela própria comunidade. Aquilo que hoje chamamos
cânon, ou seja, o grupo dos livros sagrados que formam a bíblia
ocorreu em duas etapas distintas. A primeira, referente aos textos do
Antigo Testamento, e a segunda, referente ao Novo. O cânon do Antigo
Testamento foi adotado pela igreja cristã como sendo o mesmo da Bíblia
Hebraica, que havia sido determinado apenas por volta do ano 100 d.C.
no chamado Concílio de Jâmnia. Antes, porém, por volta do ano 200 a.C.
havia sido elaborada uma versão grega da Bíblia Hebraica, chamada
Septuaginta, que continha outros livros além daqueles estabelecidos em
Jâmnia. Foi a Septuaginta que os autores dos livros do Novo Testamento
usaram para citar os textos sagrados em seus próprios escritos. A Igreja
Cristã também foi determinando o seu cânon paulatinamente até que no
Concílio de Hipona, em 393 d.C., quando foi estabelecido este grupo de
livros que temos hoje.

Saiba mais
Sobre a questão da canonicidade, Wilfird Harrington explica:
Canonicidade significa que um livro inspirado, destinado à Igreja, foi
recebido como tal por ela. Embora todos os livros canônicos sejam
inspirados e nenhum livro inspirado exista fora do cânon, contudo,
as noções de canonicidade e inspiração não são as mesmas. Os
livros são inspirados porque Deus é o seu autor; eles são canônicos
porque a Igreja os reconheceu e admitiu como inspirados, pois, só a

100 | Teologia Sistemática I | FTSA


Igreja, por meio da revelação, pode reconhecer o fato sobrenatural
da inspiração. O reconhecimento pela Igreja não acrescenta nada
à inspiração de um livro, mas reveste o livro de uma autoridade
absoluta do ponto de vista da fé e, ao mesmo tempo, é o sinal e
garantia da inspiração.
(HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a bíblia: a revelação, a promessa, a
realização. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 51).

A complexidade do assunto nos remete mais uma vez ao elemento


da fé. Tanto a revelação, como a inspiração e, por conseguinte, o
reconhecimento de ambos os fenômenos nos textos escritos, realizado
pelo povo de Deus, são questões de fé. Partimos da fé, porém, uma fé
que nos conduz à investigação e ao uso das faculdades intelectivas com
o objetivo de investigar a revelação divina em busca do conhecimento de
Deus e da nossa própria humanidade.

2. Deus no Antigo Testamento: os patriarcas


Efetivamente, iniciamos o estudo sobre Deus usando a metodologia
da Teologia Bíblica, que se dará conforme indicado anteriormente.
Apenas para lembrar e reforçar a metodologia que usaremos, temos
diante desta tarefa os seguintes elementos:
a) Atenção aos temas de estudo e aos outros temas recorrentes ou
condutores (leitmotivs);
b) Seguimento da sequência bíblica em que os temas são apresentados
e desenvolvidos;
c) Interpretação e construção dos conceitos a partir do contexto
cultural e histórico em que são apresentados.
Antecipo, desde já, que alguns terão mais dificuldade que outros em
entender a aplicação da metodologia e também as conclusões a que
chegaremos. Normalmente, esta dificuldade surge por causa da falta de
abstração dos conhecimentos que já possuímos. Ao iniciarmos o estudo
Teologia Sistemática I | FTSA | 101
respeitando a sequência bíblica, devemos nos limitar aos textos e seus
referidos contextos evitando inserir os conceitos que já tínhamos, por
outras fontes, resultado da nossa caminhada cristã e experiência da fé.
Outro motivo causador de dificuldade no desenvolvimento do estudo é a
falta de conhecimento prévio do próprio texto bíblico, além de conteúdos
da história, sociologia, geografia, etc.

Visando organizar nossa investigação, resumirei nossa análise a alguns


tempos ou momentos significativos na história do povo de Israel, divididos
conforme as grandes mudanças na organização social e no contexto de
vida, que geraram textos característicos e referentes aos mesmos. De
maneira geral, podemos dividir a história de Israel nos seguintes momentos:
a) Patriarcas (Gênesis);
b) Tradição mosaica (Pentateuco, com ênfase no Êxodo);
c) Liga tribal ou Anfictionia (Josué, Juízes);
d) Monarquia (Reis e Profetas correlatos);
e) Exílio e pós-exílio (Esdras, Neemias e profetas correlatos)
Os livros poéticos e de sabedoria, também conhecidos como Escritos,
poderão ser usados, à medida que se fizerem necessários, sendo
inseridos nos diversos momentos históricos.

2.1. Deus como Elohim


“No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gênesis 1:1). É com este
interessante verso que se inicia toda a revelação bíblica. Pensando na
questão teontológica, que investiga a transcendência, representada pelos
temas de Deus e da existência, parece que obtemos, de imediato, uma
informação contundente. Neste breve texto encontramos a afirmação de
que a existência tem início em Deus. É ele quem cria o mundo imanente.
Como consequência, ele é anterior à existência, como a conhecemos
desde uma perspectiva humana, ou, ele é a própria existência. Igualmente,
também concluímos que Deus é o Criador.

Como dito, estas são informações contundentes e que, de certa forma,

102 | Teologia Sistemática I | FTSA


estabelecem um tipo de clima para tudo o que virá depois. Quando digo
tudo, estou me referindo não apenas ao livro de Gênesis, mas à toda a
revelação bíblica. É a partir destas primeiras e significativas informações
que se desenvolverá todo o drama humano e sua busca por compreensão
de Deus e de si mesmo.

Embora possa parecer simples e imediato, o que acabamos de elaborar


é algo muito mais complexo e delicado. Ao lermos o verso inicial do
livro de Gênesis nós o fizemos usando a tradução em português de um
texto hebraico muito antigo. O que o texto original diz, na realidade, é
que no princípio de tudo, quem cria as coisas é elohim ( ~yhil{a?
). O texto
de Gênesis, no entanto, apresenta dois relatos da criação. O primeiro é
o que está compreendido entre os versos 1:1 a 2:3, e o segundo entre
2:4 a 3:24. Há uma significativa diferença entre estes dois relatos no
que se refere a identificação de Deus. O primeiro relato, como já vimos,
indica elohim como responsável pela criação; o segundo indica Yahweh
elohim (~yhil{a? hA’hy ) como o criador. Algumas versões de bíblias
em português trazem a expressão Yahweh traduzida como “SENHOR”,
com todas as letras maiúsculas, diferenciando-a da expressão “Senhor”
que é a tradução da palavra hebraica adonai. Este detalhe nos insere
no problema literário da composição e edição do texto bíblico. Alguns
estudiosos são unânimes em afirmar que o entendimento de Deus como
Yahweh (Javé) é uma elaboração posterior ao tempo dos patriarcas,
surgida apenas no período da tradição mosaica, que irá dar origem à fé
monoteísta javista adotada pelos israelitas:

Todas as narrativas patriarcais foram escritas do ponto


de vista de uma teologia javística por homens que
adoravam Iahweh. Quer mencionassem seu nome ou
não, eles não tinham a menor dúvida de que o Deus
dos patriarcas era realmente Iahweh, Deus de Israel, a
quem os patriarcas, consciente ou inconscientemente,
adoravam. Entretanto, não podemos atribuir a fé
de Israel posterior aos patriarcas. Embora possa
parecer teologicamente legítimo agir desse modo,
Teologia Sistemática I | FTSA | 103
não é historicamente preciso afirmar que o Deus dos
patriarcas era Iahweh. O Javismo começou com Moisés,
como a Bíblia afirma explicitamente (Êx 6:2ss), e como
toda a evidência o confirma (Bright, 1978, p. 124).

O que nos interessa, então, é fazermos uma tentativa de filtrar esta influência
editorial que identifica Deus como Yahweh no tempo dos patriarcas e nos
aventurarmos a construir o entendimento sobre Deus a partir apenas da
realidade histórica daquele tempo anterior. É naquele período que se dá a
origem ao povo de Israel, com Abraão, e que se inicia toda a jornada de fé
e de revelação divina. Mais à frente nos dedicaremos ao estudo de Deus
como Yahweh, seguindo a contribuição da tradição mosaica.

Retomando, portanto, a discussão sobre elohim, ao usarmos a palavra


Deus, em português, carregamos em nossa mente um conjunto de
significados teológicos que possuímos de antemão e que interfere na
interpretação do texto. O que precisamos, no entanto, é nos abstrair do
conceito “Deus” que carregamos e tentarmos investigar o que significava
ou significa elohim, pois é a ele que são atribuídas as características
divinas de pré-existência e criador de todas as coisas.

Esta palavra [elohim] está na forma plural e embora


signifique mais frequentemente “Deus” ela pode ser
usada no sentido plural. Assim, ela pode se referir a
outros deuses (Ex. 20:3; Js 24:16), deuses estrangeiros
(Jr 5:7), deuses das nações (Is 36:18), etc. Às vezes,
ela parece significar seres com qualidades divinas ou
autoridade — tanto angelical quanto humana (Sl 8:5;
82:1, 6; 138:1).

O uso na forma plural com sentido singular não é


particularidade de Israel. Formas similares ocorrem
em textos pré-israelitas, babilônicos e canaanitas em
104 | Teologia Sistemática I | FTSA
que um adorador deseja exaltar um deus em particular
sobre os outros. Esta forma tem sido chamada de
“plural de majestade” ou de “plural intenso” porque
implica que a totalidade da divindade está concentrada
em um deus. ‘Elohim’ sendo o termo mais comum para
Deus no AT carrega, assim, esta ideia. Alguns também
têm pensado que o uso frequente de ’Elohim enfatiza
que Deus não é intrinsecamente monístico, mas
inclui nele mesmo pluralidade de poderes, atributos e
pessoalidade (Wright, 1982, pp. 505-506).

A intenção aqui não é abordar a expressão elohim tanto como um nome


e sim como uma ideia. Nesse sentido, ela se aproxima da palavra deus,
com letra minúscula, em português, que também é usada para qualquer
tipo de divindade, não sendo exclusiva da tradição judaico-cristã. Quer
dizer, ainda que usemos a palavra “deus” para nos referirmos ao Deus
cristão, ela também é usada para se referir a outras divindades como Alá,
Ogum, Shiva, Zeus, etc.

Exercício de Fixação - 12
O que o termo elohim indica sobre o conhecimento de Deus,
considerando o seu uso na tradição patriarcal?
a)Elohim indica o nome próprio de Deus para Abraão, Isaque e Jacó;
b) Elohim indica que Deus é composto de várias pessoas, no caso as
pessoas da Trindade;
c)Elohim indica uma denominação genérica, semelhante ao uso da
expressão deus em português;
d) Elohim indica um Deus monístico, porém, sob a forma de plural
intenso;
e) Elohim indica o mesmo que Yahweh, porém, na língua semítica-
cananéia.

Teologia Sistemática I | FTSA | 105


2.2. Deus como El
A ideia que elohim traduz é a de divindade, um ser transcendente dotado
de poder, cuja compreensão pertence, em geral, a todas as culturas
daquela região do Antigo Oriente. Mas o termo elohim possui sua raiz na
palavra el que é assim explicada por Christopher Wright:

A palavra ’el também era usada como substantivo


próprio para se referir ao supremo deus do panteão
canaanita, como é conhecido dos textos ugaríticos
(séc. 14 a.C.) que o exalta como “pai dos homens” e
“deus dos deuses”. O nome é comumente composto
com outros títulos descritivos nas narrativas patriarcais
do AT (meados do segundo milênio a.C.). É claro que a
tradição do AT tratou todos estes nomes como o único
Deus, o Deus de Israel (“’El, o Deus de Israel”, como Ele é na
realidade chamado em Gn 33:20). Mas provavelmente,
nomes distintos de possíveis divindades distintas, ou
nomes associados com distintos centros de adoração
de uma divindade, se tornaram identificados com
Yahweh, o nome pessoal do Deus de Israel. Entretanto,
grande incerteza deve permear qualquer tentativa de
delinear os estágios históricos desta assimilação, e
esta tarefa é improdutiva. Embora o AT certamente
testemunhe em exaustão o ambiente politeísta de
Israel — e o politeísmo de seus próprios ancestrais
(Js 24:14ss) — desde a perspectiva da revelação, ela
testemunha principalmente as várias revelações do
único Deus vivo aos patriarcas contra o pano de fundo
cultural daquele tempo (1982, p. 505).

O que é curioso notar é que a construção da tradição patriarcal utiliza


uma forma de denominação para Deus que varia ao longo das narrativas.
Tomemos o caso do patriarca Abraão, que é o principal personagem que
dá origem a toda a história do povo de Israel.
106 | Teologia Sistemática I | FTSA
(Mapa adaptado de Galbiati e Aletti, 1991, p. 65)
A história de Abraão começa perto da cidade sumérica de Ur [...] Em
Ur, ou talvez melhor nos arredores de Ur, acampado à maneira dos
seminômades, vivia o clã de Taré [ou Terá], pai de Abraão. Após a queda
da III dinastia de Ur (c. 1955 aC) a região foi agitada ao longo de mais de
um século por frequentes perturbações políticas, com eventuais choques
armados e pilhagens.

Talvez tenha sido este o motivo que influiu na decisão de Taré em


abandonar Ur, dirigindo-se com todo o rebanho rumo ao norte, seguindo
o curso do Eufrates, cobrindo um percurso de mais de mil quilômetros.
A meta da viagem era Harã (Harran), uma cidade que tinha em comum
com Ur o culto da deusa Lua (Sin) e nos documentos de Mári (séc. XVIII)
aparece numa área de população amorréia, os semitas do oeste, da qual
tiveram origem também os arameus (Galbiati e Aletti, 1991, p. 63).

Teologia Sistemática I | FTSA | 107


Abraão é descrito como sendo um integrante do povo semita amorita
que habita Ur, uma cidade da Baixa Mesopotâmia. Ele, assim como sua
família, era seminômade, e esta característica cultural é mantida quando
ele se separa do clã de seu pai e inicia suas peregrinações na terra de
Canaã, ao sul de Harã (Gênesis 12:4). Ao lermos as narrativas da história
de Abraão notamos que ao longo do seu circuito de peregrinações ele
estabeleceu diversos locais como santuários:

Sua fundação era de acordo com as regras de escolha


de um lugar de culto. Eles são estabelecidos onde um
elemento natural manifesta a presença do Deus dos
patriarcas — perto de uma árvore, uma colina, uma
fonte, mas principalmente onde Deus se manifestou
em uma teofania. Esses santuários localizam-se ao
longo da rota dos patriarcas (De Vaux, 2003, p. 327).

Percebe-se uma estreita relação entre esses locais e as expressões


religiosas de Abraão. Em alguns destes lugares são descritas a ocorrência
de teofanias, ou seja, aparições ou manifestações de Deus, ou de outros
eventos significativos. Nesse primeiro momento da história podemos
olhar para esta experiência como sendo bem incipiente e fortemente
influenciada pela cultura semítica e cananeia:
1. Gênesis 12:7 – Siquém (carvalho de Moré) – aparição e altar;
2. Gênesis 12:8 (13:3) – Entre Betel e Ai – altar e invocação;
3. Gênesis 13:18 – Hebrom (carvalhais de Manre) – altar;
4. Gênesis 16:13 – Entre Cades e Berede (Beer-Laai-Roi) – invocação e
poço;
5. Gênesis 21:32 – Berseba (tamargueiras) – invocação
6. Gênesis 22:2 – Moriá (monte) – holocausto

As narrativas não nos oferecem detalhes sobre os altares, sobre as


árvores, poço ou monte. Nem tampouco são descritas as formas
108 | Teologia Sistemática I | FTSA
litúrgicas de invocação, ou seja, os rituais de culto em si. O que temos
é uma estranha variedade de lugares e coisas que não formam uma
unidade coerente com a identificação de Deus. Mais que isso, vemos
uma variedade no uso de expressões ou nomes de Deus. Vale aqui a
releitura da definição do termo el, descrita acima, para entender melhor
algumas dessas variantes.
1. El Elyom (Gênesis 14:18-22) – alto, superior, exaltado;
2. El Shaddai (Gênesis 17:1) – autossuficiente, senhor, deus da chuva,
deus da montanha;
3. El Olam (Gênesis 21:33) – eterno;
4. El Roi (Gênesis 16:13) – que vê;
5. El Bethel (Gênesis 31:13) – da cidade de Betel (casa de Deus)

Há quem entenda que estas variantes estão apenas sugerindo


percepções dos atributos de um mesmo e único Deus. Por outro lado,
podemos pensar que a história dos patriarcas são compilações tardias,
em forma de texto, daquilo que foi transmitido pela tradição oral. John
Bright explica,

Embora seja impossível descrever a religião dos


patriarcas em seus pormenores, em virtude das
falhas de nosso conhecimento neste campo, ela era
claramente do tipo comum da religião da época. Em
relação a quaisquer experiências religiosas pessoais
que os patriarcas possam ter tido, não podemos
naturalmente acrescentar nada ao que a Bíblia nos
diz. Que os antepassados de Israel tenham sido antes
pagãos é não só uma certeza a priori, mas também a
própria Bíblia o afirma (Js 24:2, 14) (1978, p. 128).

Talvez o que os textos das narrativas de Gênesis queiram revelar, por


meio dos autores e editores, é que o conhecimento de Deus ocorreu por
um processo naturalmente humano, em meio às complexidades da vida
Teologia Sistemática I | FTSA | 109
e conforme contextos específicos. Mesmo que seu início tenha ocorrido
por caminhos estranhos para nós hoje, como o paganismo e politeísmo,
o que se vê na história de Abraão e de seus descendentes imediatos,
Isaque e Jacó, é uma experiência curiosa, que no futuro conduzirá a uma
compreensão diferente e mais elaborada, dando origem à fé javista. Por
isso, Bright conclui,

A religião patriarcal era assim uma religião de clã, na


qual o clã era realmente a família do Deus patrono.
Embora possamos supor que dentro do clã o Deus
patrono fosse adorado acima de todos os outros
deuses, quando não com exclusão de todos eles, seria
errado chamar a este tipo de religião de monoteísmo.
Também não sabemos se a religião dos patriarcas era
uma religião sem imagens. A religião de Labão com
certeza não o era (Gn 31:17-35). Entretanto, ela não
se parecia nem com as religiões politeístas oficiais da
Mesopotâmia nem com o culto da fertilidade de Canaã,
de cujas orgias não há nenhum vestígio na narrativa do
Gênesis (1978, p. 130).

Georg Fohrer concorda com Bright dizendo,

Então, nossa primeira conclusão é de que no período


antigo de Israel cada clã (e provavelmente também
cada tribo) cultuava o seu deus particular. Esse é o
mais antigo estágio que se pode discernir. Há uma
multiplicidade de religiões de clã (e religiões tribais), de
modo que a tradição está correta em sustentar que os
pais cultuavam outros deuses (Gn 35:1-7; Js 24:2,1-15).
Tudo aquilo que restou, naturalmente, são referências a
quatro deles [Abraão, Isaque, Jacó e Moisés?]. Nesses
casos, pelo menos o relacionamento pessoal entre a
divindade e o fundador do culto, que provavelmente
110 | Teologia Sistemática I | FTSA
era também o fundador ou líder do clã, representa um
importante papel. Por intermédio do fundador do culto,
todo o grupo e sua posteridade se tornavam adoradores da
divindade relacionada com seu ancestral (2012, pp. 46-47).

O que podemos compreender, então, é que a construção da ideia de Deus,


a partir da história dos patriarcas, iniciada com o uso da expressão elohim
e as variações de el, apresenta uma estreita relação com a experiência
do líder do clã que é transmitida a gerações futuras. Deus, então, se
torna o Deus de Abraão, depois o Deus de Isaque e depois o Deus de
Jacó. Deixando de lado as continuidades e descontinuidades entre estas
três representações, foram elas que conduziram a linha mestre para o
entendimento de Deus na história de Israel. Observando, portanto, como
Deus era entendido pelos patriarcas, além das características de poder,
de criador e de superioridade, acima das outras divindades, temos, entre
algumas possíveis constatações, o seguinte resumo elaborado por Fohrer:

O deus do clã não é um deus do céu, nem está associado


com um santuário local. Ele é um deus que protege os
nômades errantes em suas viagens. Os nômades sentem-
se dependentes da direção da divindade, porque movem-
se entre forças que são estranhas e, frequentemente,
hostis. Eles procuram a sua proteção, porque o seu
deus conhece os caminhos e os perigos, e os guiará
com segurança. Ele dá origem ao crescimento dos
rebanhos, toma providências para que os proprietários
dos territórios habitados sejam benevolentes durante a
transumância anual ou dá ao fraco nômade a astúcia
que o salvará diante do poderoso. Finalmente, ele o
ajudará a ganhar a sua própria terra e fará com que a sua
posteridade seja numerosa. A melhor expressão de todo
esse complexo de idéias é a expressão idiomática que
diz que a divindade está ou estará “com” a pessoa em
questão (2012, p. 48).
Teologia Sistemática I | FTSA | 111
O que observamos, então, é que a tentativa de se construir o conhecimento
sobre Deus, por meio de sua revelação bíblica, tomando como princípio
metodológico a Teologia Bíblica, deveria nos remeter a uma postura de
humildade e compreensão do fenômeno humano. Nossa busca pela
transcendência e explicação da existência produziu várias representações
religiosas desde os primórdios da humanidade. A experiência dos
patriarcas, neste sentido, nos insere neste universo, apresentando um
tipo de religiosidade e compreensão da divindade diretamente atrelado
ao contexto e realidade daqueles habitantes do Antigo Oriente Próximo,
com todas as suas limitações.

Pensando, por exemplo, em uma aplicação imediata deste entendimento,


podemos citar as ações missionárias da igreja quando em contato com
outras realidades religiosas, quer seja em meio aos povos não alcançados
quer seja em um contexto plurirreligioso como os grandes centros
urbanos. Deus como aquele que quer revelar-se e relacionar-se com o ser
humano parece bem mais condescendente com as tentativas humanas de
contato transcendente do que aquilo que representa a maioria de nossas
ações e posturas atuais por parte da igreja evangélica. O nosso pretenso
exclusivismo teológico acaba tornando-se uma barreira para o diálogo e
compreensão do fenômeno humano de anseio por Deus. Nossas rápidas
condenações e fechamentos sistemáticos parecem divergir da paciência
e tratamento divino para com o ser humano.

3. Deus no Antigo Testamento: tradição mosaica


Seguindo a sequência bíblica, após termos mergulhado no período dos
patriarcas, nos deparamos agora com um novo momento histórico do
povo de Deus, que inaugura uma radical transição contextual, religiosa
e teológica. Se durante o período patriarcal temos uma perspectiva
de vida percebida desde a realidade e desafios de um contexto
seminômade, durante o longo período de desenvolvimento da tradição
mosaica encontramos uma variedade de situações e contextos, que
contrastam e se complementam, como num estado transicional para
algo mais permanente.
112 | Teologia Sistemática I | FTSA
Os relatos bíblicos narram as dificuldades enfrentadas pelo clã de Jacó
na luta pela sobrevivência em um período de escassez de alimentos em
Canaã. A saída encontrada para esta situação foi o refúgio no Egito, um
poderoso império que possuía condições de abrigar os estrangeiros.
Werner Schmidt sintetiza esta experiência:

Quando o AT fala de uma razão para a migração ao Egito,


aponta simplesmente para o instinto de preservação.
Que a ameaça de fome forçava a migração (Gn 12:10;
26:1; 41:57; 42:1ss; cg. Rt 1:1,6) é confirmado pelo
relato de um funcionário de fronteiras egípcio mais ou
menos contemporâneo da saída de Israel: os guardas
deixavam passar os nômades que queriam entrar em
território egípcio, “a fim de manter com vida a eles e
seus rebanhos pelo beneplácito do faraó”6 (2004, p. 68).

Schmidt continua seu argumento comentando sobre a deterioração da


situação de vida desse povo no Egito, após a permanência que durou
alguns séculos, e a causa da saída de seus descendentes de lá.

Durante sua permanência na região do Delta, os


antepassados de Israel tiveram que prestar trabalhos
forçados — como aconteceu mais tarde com
estrangeiros que trabalharam nas obras de Salomão (1
Rs 9:15, 19 e outras). Contudo, o AT não entende essa
obrigação aparentemente habitual de realizar trabalhos
forçados (politicamente) como prestação de serviços
ao Estado egípcio, mas (teologicamente) como
maquinação dos egípcios para “oprimir” Israel e, assim,
impedir a multiplicação do povo e, por conseguinte, a
realização da promessa (Ex 1:10s) (2004, p. 68).

Os textos introdutórios desta história não apresentam detalhes deste


longo período. Não sabemos o que ocorreu durante aquele tempo,
6 Schmidt faz referência aqui a fontes arqueológicas egípcias.
Teologia Sistemática I | FTSA | 113
apenas que o povo sofreu uma transição na forma como era tratado
pelo governo egípcio até o ponto de se considerar que viviam sob uma
situação de opressão social, econômica e política. O personagem central
desta história é Moisés. Foi em torno dele que se construiu uma nova
compreensão sobre Deus que passou para todo o grupo de pessoas que
veio a se constituir, no futuro, o povo de Israel.

3.1. Deus como Yahweh (Javé)


O texto central que conduz a revelação bíblica rumo a essa nascente tradição
é o de Êxodo 3:1-4:17. Ali, vemos Moisés diante de uma teofania que procura
associar a tradição patriarcal a um novo conhecimento sobre Deus:

Disse ainda: “Eu sou o Deus de seu pai, o Deus de Abraão,


o Deus de Isaque, o Deus de Jacó”. Então Moisés cobriu
o rosto, pois teve medo de olhar para Deus [...] Moisés
perguntou: “Quando eu chegar diante dos israelitas e
lhes disser: O Deus dos seus antepassados me enviou
a vocês, e eles me perguntarem: ‘Qual é o nome dele?’
Que lhes direi?” Disse Deus a Moisés: “Eu Sou o que
Sou. É isto que você dirá aos israelitas: Eu Sou me
enviou a vocês”. Disse também O que torna este texto
interessante é exatamente a tentativa em associar a
experiência de Moisés com a experiência religiosa do
povo, cuja referência é a tradição de seus antepassados.
A narrativa descreve que Moisés estaria diante de
uma divindade desconhecida. A primeira tentativa de
identificação é a afirmação de que esta divindade era “o
Deus de seu pai” ou o Deus dos patriarcas. Curiosamente,
a pergunta de Moisés confirma o seu desconhecimento
e, também, do próprio povo. Nem Moisés nem o povo
sabiam o “nome” de Deus, mesmo tendo a designação
como Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó,
conforme procura explicar o próprio texto mais adiante:
“Disse Deus [elohim] ainda a Moisés: ‘Eu sou o SENHOR
114 | Teologia Sistemática I | FTSA
[Yahweh]. Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como o
Deus Todo-poderoso [el-shaddai], mas pelo meu nome,
o SENHOR [Yahweh], não me revelei a eles’” (Êxodo 6:2-
3). Alguns estudiosos argumentam que o nome Yahweh
é anterior ao tempo de Moisés, por isso, Christopher
Wright comenta que não se trata aqui de não se saber
o nome no sentido de uma simples nominação, mas no
sentido de caracterização:

Uma exegese mais cuidadosa de Ex 6:3, entretanto, mostra que esta


passagem diz respeito ao caráter e conteúdo dos respectivos nomes
’El Shaddai e Yahweh, não simplesmente conhecimento dos nomes
propriamente. Poderia ser, assim, traduzido: “Eu apareci a Abraão ... no
caráter de ’El Shaddai, mas como o caráter do meu nome Yahweh eu
não me fiz conhecido” [...] O que era novo no chamado de Moisés e no
Êxodo não era a revelação do nome em si mas uma nova experiência de
seu significado, associado com a fidelidade de Deus à sua promessa de
aliança e atos redentores em favor de seu povo (1982, p. 507).

Por outro lado, Schmidt, que concorda com o argumento de Wright,


sugere um ambiente e pressuposto politeísta para a narrativa:

Por mais significativo que seja o frequente “Eu sou


Javé” no AT, esta forma de falar como tal provém
do politeísmo. A divindade se apresenta pelo nome,
para que o interlocutor saiba quem ele tem diante de
si (compare com Gn 17:1; Ex 6:2 P com Gn 45:3). No
Antigo Oriente, a divindade geralmente usa o nome que
a define e distingue de outras. Só o nome da divindade
permite que se possa falar dela e com ela; pois somente
pelo fato de ela ter um nome e agir como pessoa
denominada, os mitos podem falar sobre os deuses e
seus feitos (2004, p.98).

É claro que tanto o contexto de Moisés quanto o do povo é formado pela


Teologia Sistemática I | FTSA | 115
cultura egípcia, sabidamente politeísta. Quanto à situação religiosa dos
descendentes dos patriarcas, não é de se supor que não tivessem sofrido
a influência dessa cultura e adotado suas religiões e crenças após quase
400 anos, talvez até mesmo de forma sincrética com a fé patriarcal. Daí
a interrogação de Moisés carregar uma dupla significância. Vale recordar
também o conhecido caso da confecção e adoração ao Bezerro de Ouro,
realizada pelo povo, após a saída do Egito (Êxodo 32). Sendo, portanto,
este Deus que se apresenta a Moisés um desconhecido, no sentido de
sua caracterização ou no sentido de diferenciação em meio às outras
divindades, a sua nominação se torna um evento fundamental para toda
a história que será desenvolvida adiante. Nosso foco se volta, então, para
o significado e impacto que a autodenominação de Deus como Yahweh
tem para a construção da teologia nesta tradição. Recorremos, então, à
explicação de John Mackenzie sobre o termo Yahweh:

O Deus de Israel é chamado por seu nome pessoal,


mais do que por todos os outros títulos juntos; o nome
não somente identificava a pessoa, mas revelava seu
caráter. Este nome é agora pronunciado Iahweh pelos
estudiosos; a verdadeira pronúncia do nome perdeu-se
durante o Judaísmo, quando um medo supersticioso
do nome evitava seu enunciado. Em seu lugar, era
lido Adonai, “Senhor”; a combinação na escrita das
consoantes IHWH e as vogais de Adonai, a-o-a, criaram o
híbrido Jeová. O significado do nome, etimologicamente,
é muito controvertido. A LXX traduziu-o por “Aquele que
é”, e a Vulg. “Eu sou quem sou”. Há acordo geral em que
o nome deriva da forma arcaica do verbo ser, hawah;
outras etimologias propostas são demasiadamente
numerosas para serem citadas. W. F. Albright interpretou
o nome como derivado da forma causativa e propõe que
ele seja somente a primeira palavra do nome completo
yahweh asher-yihweh, “Ele traz ao ser tudo o que vem
do ser”. O nome, portanto, o designaria como criador,

116 | Teologia Sistemática I | FTSA


e esta etimologia é considerada como a mais provável
por muitos estudiosos (1983, p. 231).

Wright procura expandir um pouco a discussão em torno da etimologia da


expressão Yahweh propondo uma interpretação ainda mais entrelaçada
à toda a história que será desenvolvida no Êxodo:

Em Ex 3:14ss Deus declara que Seu nome é ’ehyeh


’aser ’ehyeh. O verbo ’ehyeh é qal imperfeito e está
obviamente ligado ao tetragrama [YHWH], como os
versículos 14ss tornam claro. Dos dois possíveis
sentidos, “Eu sou quem/o que sou” e “Eu serei quem/o
que serei”, o último é preferível mas não porque a
ideia de Deus como um ser auto-existente, único e
transcendente seja “estranha ao pensamento hebraico”,
como frequentemente tem sido dito (cf. Is 40-55, que
descreve Yahweh em linguagem exaltada que implica
todas essas coisas). Antes, é preferível porque o verbo
hayâ tem um sentido mais dinâmico de ser — não pura
existência, mas vir a ser, acontecer, ser presente — e
porque o contexto histórico e teológico deste primeiros
capítulos do Êxodo mostra que Deus está se revelando
a Moisés, e subsequentemente a todo o povo, não a
natureza interior de Seu ser, mas Sua ativa e redentora
intenção em seu favor. Ele “será” para eles “o que” Seus
feitos mostrarão que Ele “virá a ser”.

É especialmente esclarecido que Ele será “com” eles.


No contexto do chamado de Moisés e da revelação da
significância do nome divino, a promessa “Eu serei com
você/sua boca” ocorre três vezes (Ex 3:12; 4:12, 15). A
presença de Deus é então cumprida na aliança, cujo
prefácio vital é Deus proclamando a si mesmo um Deus
redentor (20:2) e perdoador (34:6). “É a garantia da

Teologia Sistemática I | FTSA | 117


presença do Deus Salvador com o seu povo da aliança
que é incorporado ao nome Yahweh” (1982, p. 507).

Para Wright, a apresentação do nome de Yahweh como “Eu serei quem


serei” tem uma significância mais associada à construção literária e
teológica em torno de toda a história de libertação do Egito e aliança
sinaítica do que um propósito de nominação em si. A construção
teológica, então, passa a receber um tipo de formulação de lembrança da
ação divina com perspectiva de ação futura: “Eu sou Yahweh, o teu Deus,
que te tirou do Egito, da terra da escravidão. Não terás outros deuses
além de mim” (Êxodo 20:2-3). Esta formulação será constantemente
revisitada ao logo das Escrituras, reforçando a identificação de Deus como
Yahweh. No entanto, não podemos nos esquecer de que a construção do
conhecimento sobre Deus não se inicia com Yahweh e sim com elohim e
el, ou seja, nesta nova proposta encontramos a indicação de associação
de ideias afirmando que Yahweh é o mesmo Deus dos patriarcas, o Deus
de Abraão, de Isaque e de Jacó. Schmidt nos auxilia na compreensão
deste processo:

De acordo com o testemunho de Gênesis, o relacionamento


entre Deus e os pais — que viviam em famílias ou clãs — era
direto; por outro lado, de acordo com o livro de Êxodo, há a
necessidade de um mediador entre Javé e o grupo: Moisés
é “enviado” ao povo (Êx 3:10ss). Mesmo assim, existe
uma profunda característica comum: também àqueles
que saem do Egito e peregrinam pelo deserto é dada a
condução divina experimentada pelos patriarcas. E mais:
de certa maneira a tradição patriarcal parece transferir sua
índole para a tradição do êxodo: esta conhece o mesmo
Deus do futuro, que anuncia salvação, que anda à frente
no caminho, que cuida de seus protegidos em situações
aflitivas, até conduzi-los à terra prometida. A promessa de
descendência e posse de terra, feita aos pais, se renova
na promessa divina a Moisés e no prenúncio do êxodo
(2004, p. 66).
118 | Teologia Sistemática I | FTSA
Schmidt aponta para continuidades e descontinuidades na construção
do conhecimento de Deus quando do encontro das duas tradições.
É curioso o destaque que ele faz de que Yahweh introduz uma noção
de distanciamento entre Deus e o povo com inserção da figura de um
mediador. Por outro lado, Deus permanece sendo aquele que caminha
com seu povo, conduzindo-os, em segurança, mesmo em meio a
dificuldades, a lugares de descanso.

Outra característica fundamental de Yahweh é sua expressa demanda por


exclusividade. Em meio a um passado e presente contexto cultural politeísta,
mesmo considerando as experiências anteriores e certa licenciosidade,
Deus agora expressa-se como única opção para o povo de Israel dada a sua
superioridade e unicidade. Cada vez mais isto se constitui um fator evidente na
relação entre Deus e seu povo, dadas as situações de embate e comparações
com as realidades dos povos vizinhos, que como Yahweh ele é Senhor dos
senhores e Deus dos deuses. A primeira referência aparece na simbólica disputa
com os deuses, mágicos e sacerdotes egípcios, além da figura divinizada do
faraó, e a segunda com os próprios deuses de seus antepassados. Daí, as
primeiras exigências feitas para o novo momento de entendimento de Deus
na relação com o povo se dar no resumo dos três primeiros mandamentos do
decálogo, levando-nos aos primórdios do monoteísmo israelita:

Não terás outros deuses além de mim.

Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de


qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da
terra. Não te prostrarás diante deles nem lhes prestarás
culto, porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso,
que castigo os filhos pelos pecados de seus pais até a
terceira e quarta geração daqueles que me desprezam,
mas trato com bondade até mil gerações aos que me
amam e guardam os meus mandamentos.

Não tomarás em vão o nome do Senhor teu Deus, pois o Senhor não
deixará impune quem tomar o seu nome em vão (Êxodo 20:3-7).

Teologia Sistemática I | FTSA | 119


A representatividade de Moisés é outro elemento que salta aos olhos e
que também será perpetuado até o tempo de Jesus. Moisés, ou a tradição
mosaica, será sinônimo de uma religiosidade atrelada ao código legal que
contém aspectos litúrgicos e éticos reunidos em vários compêndios de
épocas e edições distintas, mas com uma perspectiva relativamente comum.

3.2. Deus da aliança e da Lei


Alguns autores defendem a ideia de que a tradição mosaica apresenta, no
fundo, duas grandes tradições, a da libertação do Egito e a da aliança no
monte Sinai, também denominado Horebe. Elas aparecem editorialmente
conectadas por meio da aparição de Deus a Moisés, enquanto pastoreia
as ovelhas de seu sogro, evento já explorado anteriormente, quando temos
a revelação da caracterização de Deus com Yahweh, e, posteriormente
após a saída do Egito, quando ocorre a aliança entre Deus e todo o povo
(Êxodo 19). Sobre este fato, Schmidt faz a seguinte análise:

Após a aparição de Deus a Moisés (Êx 3; 6), a revelação


de Javé no Sinai fundamenta o relacionamento entre
Deus e o povo. Assim, a descrição da revelação no
Sinai ocupa o espaço mais amplo do Pentateuco, mas
surpreendentemente ela raras vezes é mencionada
fora dessa obra historiográfica, sendo bem secundária
em comparação com a confissão da libertação do
Egito (2004, p. 79).

O que Schmidt está chamando a atenção é de que a aliança entre Deus e o


povo, que instaura a relação de obediência aos mandamentos presentes
nos códigos legais, ocupa a maior parte dos textos do livro de Êxodo,
e do Pentateuco em geral, comparada com o grande ato de libertação
do Egito. No entanto, ao longo das Escrituras, o evento de libertação
será, comparativamente, mais revisitado do que evento do Sinai, ainda
que a Lei, como conteúdo e preceito seja fundamental para a fé javista.
Ainda assim, é importante destacar esta intrínseca relação construída
entre a fé em Yahweh, o único Deus de Israel, e a aliança estabelecida,
intermediada pela Lei, como forma de demonstração desta fé.
120 | Teologia Sistemática I | FTSA
No primeiro momento, o da libertação, entendemos que Deus vê a
opressão, se importa com ela e age no sentido de impedi-la. Este ato
ocorre como algo unilateral da parte de Deus, dado o desconhecimento
do povo de quem ele era e da ausência de uma relação entre eles. A
informação seguinte é a de que Deus, como já revelado anteriormente,
seguindo a tradição patriarcal, é aquele que caminha com o povo e o
conduz em segurança a um lugar melhor. No segundo momento, no Sinai,
encontramos parâmetros mais concretos desta nova relação que passa
a ser construída como uma aliança, um pacto, um casamento. Embora a
edição dos textos reúna diversos relatos e tradições que parecem carecer
de uma organização temporal ou temática mais ordenada, o resultado
que temos é o de que a aliança se baseia em duas premissas básicas,
uma por parte de Deus e outra por parte do povo (Êxodo 23:20-33; 34:10-
17). Deus assume a responsabilidade de cuidado do povo garantindo
a posse da terra para a qual ele os conduziria, além de prosperidade.
A posse, no entanto, se daria pela conquista dos povos que habitavam
Canaã após batalhas vitoriosas. A responsabilidade do povo na aliança
consistia na prática da fé exclusiva em Yahweh, demonstrada pela
ausência de cultos e imagens de outros deuses em sua cultura religiosa,
mas, principalmente, na obediência às leis apresentadas por Moisés.

É fundamental percebermos que a questão religiosa, embora apresentada


na forma radical de extirpação violenta de qualquer outra prática, não
consiste no tema central da responsabilidade do povo na aliança. O foco
principal é o cumprimento da Lei. Isto é demonstrado tanto pelo volume
de texto dedicado aos códigos legais, quanto pela simples lógica de que a
questão de extirpação de outras religiões não garantiria por si só a fé em
Yahweh, nem mesmo a prática de novos rituais litúrgicos. O que realmente
demonstra a fé javista é a vivência em sociedade que demonstre o caráter
de Yahweh expresso em sua Lei, que não apenas contrasta com a opressão
do Egito como também com os sistemas dos outros povos.

No conteúdo das Leis é que encontramos qual o projeto de vida proposto


por Deus ao seu povo. Vemos ali que mesmo a prosperidade não surge
do nada ou cai do céu. Ela é produzida nas relações equilibradas que
promovem a justiça e a paz na terra. Neste sentido, os Dez Mandamentos

Teologia Sistemática I | FTSA | 121


são um resumo introdutório deste princípio por trás da Lei. Os quatro
primeiros mandamentos são de cunho religioso, mas os outros seis são
referentes às relações entre as pessoas. Ali encontramos, na forma de
negativas, ações práticas de relacionamento social que promovem um
ambiente de justiça e paz: “não matarás; não adulterarás; não furtarás;
não darás falso testemunho contra o teu próximo; não cobiçarás a
casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seus
servos ou servas, nem seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe
pertença” (Êxodo 20:13-17). Depois do Decálogo encontramos mais
leis, que fazem parte da aliança, entre os capítulos 21 e 24. Nos outros
livros do Pentateuco vemos a ampliação detalhada dos códigos legais
consolidando a tradição mosaica. Enfim, em tese, o descumprimento de
qualquer dos mandamentos representa o descumprimento de toda a Lei,
não havendo distinção entre leis religiosas e civis.

Exercício de Aplicação - 13
Em que sentido a construção de Deus como Yahweh, na tradição
mosaica, se aproxima e/ou distancia da construção como Elohim/
El na tradição patriarcal?
Yahweh e Elohim/El são nomes diferentes do mesmo Deus não
havendo diferenciação entre as construções;
Yahweh e Elohim/El concordam na ideia de um Deus que conduz
o povo em segurança, porém, Yahweh aparenta um maior
afastamento por causa do uso de um mediador;
Yahweh e Elohim/El exigem exclusividade do povo em meio ao contexto
politeísta, porém, Elohim/El permite o uso de vários santuários;
Yahweh e Elohim/El são nomes diferentes do mesmo Deus cuja
diferenciação está apenas na introdução do código legal a partir do
momento que ele se revela como Yahweh;
Yahweh e Elohim/El são construções totalmente diferentes,
originárias de períodos históricos diferentes, que foram unidas por
Moisés para convencer o povo da necessidade de libertação;

122 | Teologia Sistemática I | FTSA


Como indicado por Mackenzie, Yahweh nos remete à ideia de criador e
ainda que o foco central do texto não seja a discussão das questões
da transcendência e existência não podemos ignorar que há nesta
denominação, formada a partir do verbo ser, um interessante aspecto
revelador. Yahweh não é um nome genérico como Elohim ou ainda alguma
variante de El. Também não é um nome que insira um fator limitante à
divindade; ao contrário, ele não apenas nos remete à importante busca
pela transcendência e explicação da existência, como aponta para uma
relação de intervenção cuidados e construção de um relacionamento
futuro, oferecendo a possibilidade de sentido e propósito ao ser humano.
Encontramos em Yahweh a ideia de exclusividade na expressão da fé, por
meio de uma aliança, que tem como consequência a demonstração do
caráter de Deus que busca a promoção do ser humano em uma vivência
de justiça e de paz sobre a terra.

4. Deus no Antigo Testamento: liga tribal e monarquia


Os períodos históricos dos patriarcas e da instauração da tradição
mosaica representam grandes fundamentos teológicos para o
conhecimento de Deus. Nos períodos subsequentes temos a impressão
de que este conhecimento é colocado em prática na vivência do povo
de Israel. Melhor, o conhecimento é expandido como forma de entender
a profundidade da pessoa de Deus e de sua ação à medida que novas
realidades contextuais se apresentam.

De maneira mais resumida, apresentarei dois momentos que


complementam a sequência bíblica do Antigo Testamento.
Comparativamente, estes momentos representam um volume maior
de textos e embora sirvam como base para a revelação divina sobre o
conhecimento de Deus, diferente dos outros dois momentos anteriores,
não ocorrem neles grandes discussões doutrinárias acerca da pessoa de
Deus. O que observamos é mais a interação do conhecimento de Deus
com a vida humana, levando-nos ao conhecimento de outras doutrinas
que possuem relação direta e funcionam como desdobramento deste
conhecimento inicial. Na realidade, a revelação bíblica não apresenta
Teologia Sistemática I | FTSA | 123
as divisões doutrinárias a que nos acostumamos a lidar. É em meio à
revelação da pessoa de Deus que descobrimos os temas da criação, do
pecado, da salvação, de Cristo, do Espírito, da Igreja, das últimas coisas
e tantas outras. Tudo permeado pelos grandes temas do amor, justiça,
bondade, esperança, paz, etc.

4.1. Deus no período da liga tribal


Esse período histórico é compreendido pelo tempo em que se dá a
efetiva conquista de Canaã e o assentamento do povo naquele território.
Os principais textos são os livros de Josué e Juízes cuja intenção é cobrir
o período aproximado entre 1250 a 1050 a.C. Considera-se que é durante
este tempo que Israel definitivamente toma forma como um povo cuja
identidade se constrói atrelada a fé em Javé (Yahweh). Como qualquer
fenômeno humano, esta formação não se dá de forma simples nem
imediata. Pelo contrário, todos os elementos históricos e contextuais
demonstram o curioso processo pelo qual passou a nação de Israel até
fazer a transição para um estado soberano sob o sistema monárquico.

A conquista do território, interpretada por alguns como como uma


Guerra Santa, é sugerida por Werner Schmidt como tendo sido uma
ocupação longa cujas guerras não representam um esforço único de
conquista, mas a descrição dos constantes embates que ocorriam
entre os povos pelo domínio da terra. Ele também chama a atenção
para a formação do povo por meio de vários movimentos e grupos que
vieram a compor a nação de Israel.

A unidade “Israel” nasceu somente na Palestina. Por isso,


a despeito da descrição do livro de Josué, a Palestina
dificilmente foi conquistada numa única expedição
militar sob o comando de Josué. Provavelmente os
diversos grupo e tribos se estabeleceram somente
de forma isolada, gradual e sucessiva na região
montanhosa; eles vieram de diferentes direções e no
decurso de um longo período. Seu domínio também
não abrangia toda a Palestina, nem mesmo formava
124 | Teologia Sistemática I | FTSA
um território coeso. O litoral, as planícies e várias
cidades-estado permaneceram ainda por longo tempo
nas mãos dos cananeus. A população nativa, naquela
época, não tinha uma organização política homogênea;
o território se dividia em múltiplas entidades políticas
singulares (2004, pp. 167-168).

Outro aspecto fundamental neste processo foi a sedentarização, ou seja,


a mudança no modo de organização social daqueles grupos.

A transição definitiva de um modo de vida (semi)


nômade para o camponês aboliu um antagonismo entre
os antepassados de Israel e os cananeus, facilitando,
assim, o relacionamento. No decorrer do tempo,
diluíram-se também as limitações geográficas entre o
Israel das montanhas e as cidades-estado cananéias,
de modo a surgirem estreitos contatos com a cultura
urbana (cf. Js 9; 16:10) (Schmidt, 2004, p. 169).
A fixação destes grupos teve como elemento característico e diferencial a
formação de uma liga entre as diversas tribos que ocuparam o território.
John Bright chama a atenção para o importante fato de que o elo ideológico
para a manutenção da Liga Tribal foi a religião, ou seja, a fé javista:

Inicialmente, encontramos Israel na Palestina como


uma confederação ou liga sagrada de doze tribos
(muitas vezes chamadas de anfictionia). Foi dentro da
estrutura desta liga que as tradições sagradas de Israel
e suas instituições se desenvolveram e receberam sua
forma normativa. Assim, poderia parecer um método
descrever primeiro a natureza da organização tribal
primitiva de Israel, antes de nos ocuparmos de sua
religião, que se pode ver refletida nas suas tradições
e instituições normativas. Contudo, de certo modo,
isto seria inverter a ordem das coisas. Embora seja
verdade que conhecemos a religião de Israel primitivo
Teologia Sistemática I | FTSA | 125
somente através das tradições da liga tribal, de modo
nenhum esta religião foi um mero adjunto da liga ou
uma excrecência em sua vida.

A confederação tribal não criou sua religião de uma


maneira secundária. Pelo contrário, a religião era parte
constitutiva da federação. A liga das tribos era uma
constituição sagrada, que se baseava na religião e nela
se expressava. Se não fosse a natureza característica de
sua religião e da aliança que lhe deu origem, Israel não
teria nenhum elemento que o separasse de organizações
similares do mundo antigo (1978, pp. 184-185).

Bright insiste que, embora a Liga não fosse uma monarquia, ela significava
um reinado: “A aliança significava a aceitação da soberania de Iahweh por
Israel, e foi justamente aqui que começou a noção do domínio de Deus sobre o
povo, o Reino de Deus, tão central no pensamento de ambos os Testamentos”
(1978, p. 197). Alguns autores se referenciam a esta fase histórica como uma
teocracia, o governo de Deus, em que, como explica Bright,

A obrigação religiosa era baseada num favor antecipado


de Iahweh; por isso, a aliança não dava a Israel nenhum
direito de colocar Iahweh em qualquer dívida para o
futuro. A aliança deveria ser mantida somente enquanto
as cláusulas da soberania divina fossem observadas.
Ela exigia obediência para ser mantida, bem como a
renovação contínua de uma livre escolha moral por
parte de cada geração.

As cláusulas da aliança, primariamente, eram que


Israel aceitasse o domínio do seu Deus-Rei, não
tivesse qualquer contato com nenhum outro deus-rei e
obedecesse à sua lei em todos os seus atos com outros
súditos do seu domínio (isto é, irmãos de aliança)
(1978, pp. 198-199).

126 | Teologia Sistemática I | FTSA


As tribos unificadas pela fé em Javé tinham autonomia e liderança própria,
conforme o sistema de clãs. Mas por causa do parentesco, sanguíneo
ou histórico, atrelado ao passado e à tradição mosaica-sinaítica, que
também significava um parentesco religioso, elas estabeleceram uma
inovadora cooperativa de ajuda em situações de dificuldade. Mais
especificamente, estas situações eram ameaças concretas de povos
circunvizinhos que resultavam em guerras. Sem um exército e liderança
fixa que representasse essa união das tribos, elas se reuniam sob o
comando de um representante de todos, capacitado pelo carisma de Javé.
Esses líderes foram chamados de juízes. A figura e a ação do juiz eram
entendidas como a intervenção de Javé no cuidado de seu povo. Parece
iniciar-se neste período a ideia de um Deus associado à guerra, como
também acontecia em outras culturas. Deus se torna o líder, condutor e
principal responsável pelos sucessos ou fracassos dos exércitos da Liga,
passando a receber a designação de “Senhor dos Exércitos (Yahweh
saba)” (1 Samuel 1:3). Esta ideia será reforçada no período monárquico.

Saiba mais
As doze tribos: significado religioso
A divisão da Terra Prometida mediante sorteio (daí os termos
equivalentes de “sorte” e de “herança”, isto é, propriedade fundiária
hereditária) põe em evidência que o verdadeiro dono da terra é o
próprio Deus, que coloca à disposição do seu povo, a fim de que nela
prospere e se prepare para a salvação messiânica a realizar-se em
tempo oportuno. Por isso, a herança fundiária permanecia intocável,
não podendo ser transferida de uma tribo para outra, nem de uma
família para outra. A fim de impedir que as famílias caídas na pobreza
vendessem de modo indefinido as próprias terras, a legislação
estabelecia que, no ano do jubileu (a cada cinquenta anos), as terras
vendidas voltassem aos proprietários antigos, evitando dessa forma a
acumulação das terras nas mãos de poucos latifundiários (Dt 25:8-18)
(Galbiati e Aletti, 1991, p. 86).
Mapa: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tribos_de_Israel

Teologia Sistemática I | FTSA | 127


Cabe ainda citar aqui um dado relevante sobre o javismo, ainda não
comentado, que é a sua forma de culto. Conforme registrado no
Pentateuco, o culto a Javé ficou associado ao Tabernáculo e às festas
cíclicas. O culto do Tabernáculo é primeiramente entendido como uma
típica expressão da realidade cultural do tempo do deserto, antes do
assentamento em Canaã. Mais especificamente, tratava-se de um culto
em uma tenda, semelhante às tendas em que as pessoas habitavam,
porém, dedicada ao serviço religioso. Schmidt explica em mais detalhes
o que representava a tenda

A “tenda da reunião, do encontro” era, como já revela


o nome, o local de culto de quem morava em tendas.
De fato, ela é atestada de forma inequívoca apenas no
período do deserto; e santuários de tendas semelhantes
eram usados também por outras tribos nômades.
Segundo a tradição antiga, a tenda se encontrava
fora do acampamento, já que era um espaço sagrado,
separado da área residencial normal (Êx 33:7-11; Nm
11:16s., 24ss.; 12:4s., 10; Dt 31:14s.). De acordo com
concepções mais recentes, a tenda tornou-se o centro,
em torno do qual se ordenava o acampamento. Já
cedo a tenda parece ter desaparecido; as informações
posteriores sobre sua estadia em Silo (Js 18:1; 1 Sm
2:22 e outras) ou Gibeom (1 Cr 16:39 e outras) são
menos dignas de confiança [...] No santuário ambulante
cada um podia consultar Deus (Êx 33:7), não somente
o sacerdote. Ele era, ao que parece, simultaneamente
lugar do oráculo e local da aparição de Deus. Este
encontro era entendido como acontecimento: ele “não”
mora permanentemente na tenda, como as divindades
dos santuários da terra do cultivo, mas ele vem à tenda
quando se o procura (2004, pp 193-194).

O que se entende por esse tipo de religiosidade é que Javé era um Deus
acessível, próximo, assim como no tempo dos patriarcas, e que que
128 | Teologia Sistemática I | FTSA
habitava com seu povo. A construção religiosa e teológica em torno da
descrição de um Tabernáculo mais elaborado e restrito aos ofícios dos
sacerdotes é entendida como sendo uma edição posterior da tradição
literária sacerdotal do chamado Segundo Templo (Bright, 1978, p. 214).
A intenção teológica deste grupo era remeter a importância da figura
e ofício sacerdotal ao início do javismo. No entanto, alguns autores
concordam ao entender o início do javismo como uma representação de
Deus menos complexa e mais próxima do povo. Nesta mesma direção,
Bright defende que já no tempo do assentamento, após o período do
deserto, quando não se tem muita referência sobre a importância e lugar
da tenda, mais relevante do que qualquer liturgia relacionada a ela, o que
mais representava o culto a Javé eram as festas.

O culto de Israel primitivo não se centralizava num


sistema sacrificial, mas em certas grandes festas
anuais. O Livro da Aliança, relaciona três (Ex 23:14-17;
34:18-24), nas quais o orador deveria apresentar-se
diante de Iahweh: a festa dos ázimos, a festa da ceifa e
das primícias e a festa da colheita. Todas estas festas
eram mais antigas do que Israel e, salvo a festa da
Páscoa, eram todas de origem agrícola. Israel recebeu-
as de fora. E que não nos cause estranheza este seu
modo de proceder.

Devemos notar que Israel logo deu uma significação


nova a tais festas, atribuindo-lhes um conteúdo
histórico. Elas deixaram de ser meras festas da
natureza, tornando-se ocasiões em que se celebravam
os feitos poderosos de Iahweh em favor de seu povo
(1978, p. 218).

Este dado sobre as festas é bastante interessante se pensarmos


que ele revela uma identidade de Deus que amplia ainda mais a ideia
de proximidade. A festa é um evento que nos remete imediatamente
à comunhão, à alegria, à celebração da vida e do cuidado diário de
Teologia Sistemática I | FTSA | 129
Deus. Nela os grandes atores são os membros das famílias e não
os sacerdotes. Celebra-se com cânticos, refeições e inclusividade.
Rapidamente, podemos associar esta ideia à maneira como Jesus teria
descrito sua missão, desde a perspectiva escatológica do Reino de Deus,
comparando-a com uma grande festa (Mateus 22:1:14).

4.2. Deus no período da monarquia


O ambiente contextual que tornou o momento propício à mudança do
sistema de organização política do povo de Israel, de uma confederação
de tribos para uma monarquia, foi a incapacidade da liga tribal em lidar
com as constantes investidas militares do povo filisteu. Os filisteus
habitavam a planície costeira do leste e queriam controlar a rota
comercial para o oeste passando pelo território montanhoso israelita. As
narrativas bíblicas indicam que Saul, da tribo de Benjamin, demonstrou a
habilidade carismática e militar necessária para, como líder, ser capaz de
enfrentar a ameaça filisteia. Ainda que o modelo de liderança até então
utilizado fosse a dos juízes, dada a vacância do cargo com a velhice de
Samuel e a ausência de outros, os anciãos das tribos viram em Saul esta
figura, no entanto, parecem ter iniciado de maneira gradual um processo
de construção da figura de um rei.

Como em qualquer sociedade, essa transição se deu com apoios e


resistências. Mesmo os relatos bíblicos deixam transparecer essa
dualidade de perspectiva. Sob um ponto de vista, a instauração da
monarquia era entendida como rejeição do reinado de Javé (1Sm 8).
Sob outro ponto de vista via-se no rei um líder com o carisma de Javé,
capacitado como os juízes, para liderar o povo em suas batalhas (1Sm
10:1-13). É exatamente em torno de Saul que se constrói esta tentativa
transicional entre o juiz e o rei sem, contudo, trata-lo com todas as
estruturas monárquicas.

Uma fonte (1 Sm 8:5,20) denuncia a monarquia como


uma imitação das nações pagãs. E assim foi: uma
instituição de certo modo estranha a Israel, apesar de
comum em outros lugares, e portanto sugerida a Israel
130 | Teologia Sistemática I | FTSA
por seus vizinhos. Mas a Monarquia de Israel era única.
Certamente, não era moldada no sistema de cidade-
estado feudal, como em Canaã e na Filistéia. Apesar de
ter assimilado características de Edom, Moab e Amon,
ela permaneceu um fenômeno caracteristicamente
israelita, no começo mudando o menos possível a antiga
ordem [...] Mas, é interessante que a fonte que fala da
unção de Saul (1 Sm 9:1s até 10:16; 13:4b-15) não faça
referência a ele como rei (melek), e sim como “líder” ou
“comandante” (nagîd). Isso pode significar que Samuel
e os anciãos da tribo nunca pretenderam elevar Saul
à dignidade de rei no sentido convencional, desejando
simplesmente que ele servisse como líder militar. Porém,
quaisquer que tenham sido suas intenções, podemos
estar certos de que, no começo, o povo pensava em
Saul como rei, e logo começou a dirigir-se a ele como
tal (o título era comum entre os vizinhos de Israel, e é
regularmente aplicado a Saul em qualquer outra parte
das fontes) (Bright, 1978, pp. 245-246).

É com Davi, no entanto, que a transição para a monarquia


se concretiza. Algumas circunstâncias contribuíram
para isso. Primeiro a carreira independente de Davi
que o levou a conquistar o título de rei de Judá, sua
tribo de origem, com o apoio dos filisteus. Depois a
personalidade desequilibrada de Saul, que descuidou
de suas obrigações como líder das tribos na defesa
do território contra os filisteus para empreender uma
perseguição pessoal a Davi. Quando Saul é derrotado
e morto pelos filisteus, seu filho Is-bosete, que estava
exilado, não obteve apoio suficiente para sucedê-lo
(2Sm 2:8-11). Assim, as outras tribos viram em Davi o
líder capaz de assumir o comando da nação, desta vez,
contudo, com as prerrogativas de rei.
Teologia Sistemática I | FTSA | 131
As Escrituras descrevem o herói Davi como um personagem carismático,
mas muito humano e sensível. É nas entrelinhas, entretanto, que vemos
a sua habilidade em construir em torno de si um governo e estrutura que
possibilitaram instaurar finalmente a monarquia em Israel, ainda que
em breve tempo ela sucumbisse, dividindo-se em dois reinos, devido
às diferenças irreconciliáveis que sempre rondaram os dois grupos que
representavam o seu reino — o grupo original do sul, representado por
Judá, e as outras tribos do norte anexadas após a morte de Saul.

Pode ser considerado um grande mérito de Davi ter conseguido resgatar


a fé em Javé como elo ideológico para manter as tribos unidas sob o
seu governo. Estrategicamente, Davi escolhe uma cidade neutra para
estabelecer a sede do reino, que ficava localizada na fronteira entre o
território do sul e do norte. Em Jerusalém, que pertencia ao jebuseus, ele
constrói o seu palácio e reúne os dois principais elementos religiosos,
que estavam esquecidos pelo povo: a arca e a tenda. Com essa ação ele
gerou uma associação, comum em outros povos, que foi a tendência à
divinização da figura do rei. Bright explica:

Todavia, isto significava que a instituição da realeza,


originalmente estranha a Israel e aceita de má vontade
por muitos, tinha conseguido um lugar na teologia
javista. A realeza, em Israel como em qualquer outra
parte, era uma instituição sagrada, isto é, não secular:
tinha bases teológicas e litúrgicas. Uma noção oficial
de realeza era reafirmada regularmente durante o
culto, no qual, em ocasiões festivas — provavelmente,
em especial na grande festa outonal do ano novo — o
rei desempenhava um papel importante [...] Alguns
estudiosos afirmam que, adotando a instituição da
realeza, Israel também adotou uma teoria pagã da
realeza e um padrão ritual, para expressá-la de modo
supostamente comum a todos os seus vizinhos [...] O rei
de Israel era chamado o “filho de Iahweh”, mas apenas
num sentido adotivo (cf. Sl 2:7); ele era o substituto de
132 | Teologia Sistemática I | FTSA
Iahweh, reinando por escolha e sob permissão divinas,
com a tarefa de promover justiça sob pena de punição
(Sl 72:1-4, 12-14; 89:30-32). Ele estava sujeito à censura
dos profetas de Iahweh, censura que frequentemente
recebia (1978, pp. 296-298).

A monarquia e todo o aparato necessário para mantê-la (1 Samuel


8:10-17), a partir deste momento, passou a representar um conflito
ideológico. A cultura tribal, que significava maior autonomia dos clãs na
busca de seus próprios interesses e maior proximidade entre as pessoas
e Deus, contrastava com a nova cultura monárquica, que fazia do rei o
representante de Deus e, portanto, exigia a manutenção de toda a corte e
sua estrutura. Neste período, Deus passa a ser associado e representado,
popularmente, pela figura do principal líder do povo, o rei. Este tipo de
concepção, de certa forma, ainda está presente na teologia cristã,
porém, atrelada a outros tipos de liderança. Também, como mencionado
anteriormente, dado o ambiente de constante conflito entre os povos na
Palestina, reforçou-se o conceito de Deus como o “Senhor dos Exércitos”
(Yahweh saba) e “Deus das hostes” (elohim marakhot) (1 Samuel 17:45).

O reino unido, sul e norte — Judá e Israel —, durou apenas o tempo de


dois soberanos, Davi e seu filho Salomão. As narrativas bíblicas contam
a história paralela dos dois reinos irmãos, contrastando as ações dos
reis e da liderança e suas relações com Deus. Conforme destacado por
Bright, surge no cenário teológico a importante figura do profeta como
aquele que representa a voz de Deus na observação da fidelidade a Javé
e regulação dos atos da liderança de acordo com os princípios da aliança
e da Lei. Geralmente, estes profetas agiam de forma independente dos
chamados profetas profissionais, mantidos pela corte, movidos por uma
convicção de vocação para transmitir a palavra de Javé à liderança e
ao povo. Estes profetas diferenciavam-se dos sacerdotes e dos falsos
profetas e, por isso, eram perseguidos e mortos.

A mensagem profética trouxe consigo uma interessante perspectiva no


conhecimento de Deus. Os profetas demonstravam que Javé não estava
Teologia Sistemática I | FTSA | 133
alheio à situação do povo. Mesmo com os desmandos dos reis, os
pretensos representantes de Deus, os profetas traziam a consciência do
juízo divino, apresentando os caminhos de condenação e arrependimento
para a liderança e nação. Profetas como Amós, Miquéias e Isaías, por
exemplo, são muito específicos na condenação da injustiça social e na
necessidade de proteção dos marginalizados (Amós 2:6-8; Miquéias 2:1-
2; Isaías 1: 16:17). Deus, portanto, é aquele que vendo a injustiça faz ouvir
a sua voz, independente das estruturas do poder e da religião, apontando
a possibilidade de um caminho de paz por meio da mudança de atitude e
acolhimento de seus mandamentos. Ele também é aquele que condena
a maldade, mesmo que isso represente, dependendo da ótica, a rejeição
de seu povo. No fundo, ele leva à cabo o acordo da aliança, que prevê
o castigo da retirada de sua proteção especial no caso de insistente
desobediência. É este fato que nos conduz ao próximo momento histórico
do povo de Israel, o castigo do exílio babilônico.

5. Deus no Antigo Testamento: exílio e pós-exílio


Esta última fase na busca pelo conhecimento de Deus, conforme
apresentado no Antigo Testamento, compreende algumas significativas
mudanças. A experiência do exílio na Babilônia e a posterior tentativa
de restruturação da nação de Israel, embora tenha ocorrido em um
tempo comparativamente curto na história, contribui com muitas novas
perspectivas para a teologia daquele povo.

A partir de determinado momento, os escritores bíblicos passaram a


concentrar sua atenção apenas no reino de Judá. Isto porque o reino
do norte havia sofrido sua queda durante a conquista de seu território
pela Assíria entre os anos 733 e 722 a.C. (2Rs 15:27; 17). A história do
povo de Deus, portanto, passou a ser apenas a história deste pequeno
povo, representado pelo remanescente das tribos de Judá e Benjamim,
com a denominação simplificada de Judá, dado o relevante passado sob
a dinastia da casa de Davi. Foi esta pequena nação que levou adiante
a fé javista e que acabou sendo conquistada em 587 a.C. pelo império
babilônico, que era governado por Nabucodonosor.
134 | Teologia Sistemática I | FTSA
Este complexo processo histórico contou com o exílio de uma parte da
população de Judá, constituída pelos líderes e aristocracia erudita, num
total de aproximadamente dezesseis mil pessoas, com base na contagem
do profeta Jeremias, que considerava apenas os homens (Jeremias
52:28-30). Foi este contingente e seus descendentes que conservaram a
fé javista e ficaram responsáveis por iniciar a reconstrução da nação após
a permissão concedida pelo imperador persa Ciro para que realizassem
esta tarefa a partir de 539 a.C.

Os livros bíblicos que contam esta história, na realidade, intercambiam


as narrativas dos períodos que antecederam o exílio, já que ele ocorreu
em etapas. O profeta Jeremias foi aquele que concentrou sua mensagem
exatamente nesta transição. Os profetas Ezequiel, Ageu e Isaías (Deutero
ou Segundo Isaías — cap. 40-55) lidam com este período, assim como as
narrativas históricas de Esdras, Neemias e a obra de releitura histórica
dos cronistas (1 e 2 Crônicas). É nesta época também que surge a
literatura apocalíptica encontrada em alguns trechos de livros, que têm
como principal representante o livro de Daniel.

5.1. Javé, juiz e senhor do mundo


A queda dos dois reinos que compunham o povo de Israel representou
um grande desafio para a teologia vigente. Como interpretar tamanha
calamidade abatendo-se sobre o povo que vivia sob a aliança do Deus
único, Javé? Como explicar a destruição completa da nação e a tomada
de todo o território que havia sido prometido como posse eterna às
gerações futuras deste povo?

Olhando desde uma perspectiva mais ampla, no sentido mundial da


época, Israel nunca foi um grande império. Ele sempre representou
um pequeno reino situado no meio da rota comercial entre os grandes
impérios que surgiram na história, ao norte e ao sul da Palestina. Hoje,
talvez tenhamos a ideia de que Israel e sua religião representavam
algo importante no cenário mundial, no entanto, esta percepção está
mais relacionada aos efeitos do cristianismo e judaísmo na atualidade
Teologia Sistemática I | FTSA | 135
do que em sua significância para a época. A relevância da fé javista se
restringia apenas à experiência contextual de Israel, que diante da nova
configuração imposta pelo exílio necessitou fazer uma releitura da
relação de Javé com Israel. John Bright explica:

Embora o teste tenha sido severo, a religião de Israel


fez-lhe frente vitoriosamente, mostrando uma admirável
tenacidade e vitalidade. Uma solução para o problema — que,
essencialmente, desse uma adequada explicação teológica
do desastre nacional e do fato de manter-se viva a chama
de esperança para o futuro — já tinha, de fato, sido dada
anteriormente pelos próprios profetas que viveram a tragédia,
particularmente Jeremias e Ezequiel [...] Anunciando-a
incessantemente como um justo julgamento de Iahweh
devido ao pecado da nação, estes profetas deram à tragédia
uma explicação coerente, permitindo que ela fosse encarada
não como uma contradição, mas como uma justificação da
religião histórica de Israel (1978, p. 471).

Ainda, segundo Bright, a mensagem do Segundo Isaías trouxe uma


contribuição teológica inovadora para a interpretação do exílio:

Foi ele, realmente quem deu ao monoteísmo sempre


implícito na religião de Israel sua expressão mais clara
e mais consistente. Ele pintou Iahweh como um Deus
de incomparável poder: criador de todas as coisas sem
auxílio ou intermediário, senhor das hostes celestes
e das forças da natureza, nenhum poder terrestre
lhe poderia resistir e nenhuma semelhança poderia
representá-lo (c. 40:12-26). Ele também satirizou
com ironia selvagem os deuses pagãos (c. 44:9-20),
chamando-lhes pedaços de madeira e de metal (cc.
40:19ss; 46:5-7), que nada podiam fazer na história
porque nada eram (c. 42:21-24). Iahweh é o primeiro

136 | Teologia Sistemática I | FTSA


e último, o único Deus, ao lado do qual nenhum outro
existe (cc. 44:6; 45:18, 22; 46:9) (1978, p. 481).

Javé ganhou, assim, dimensões para além dos limites de Israel,


estabelecendo uma compreensão de inter-relação com as outras nações:

Proclamando esta teologia, o profeta podia assegurar


a seu povo que Iahweh tinha o controle absoluto da
história [...] O Segundo Isaías teve mesmo a coragem
de chamar Ciro de instrumento inconsciente da vontade
de Iahweh, instrumento que Iahweh tinha suscitado e
iria usar para o restabelecimento de Sião (cc. 44:24 a
45:7; 41:25ss; 46:8-11). Com isso, o profeta deu uma
resposta ao desafio da história do mundo, resumindo
toda a marcha do império com base na religião
histórica de Israel: todas as coisas se realizam dentro
da vontade e pelo poder de Iahweh, que é o único Deus.
E ele convocou Israel a confiar neste Deus onipotente e
redentor (cc. 40:27-31; 51:1-16) (Bright, 1978, p. 481).

O que Bright sugere é que a experiência do exílio transformou o


entendimento de Deus, que estava restrito ao ambiente e relação com
o povo de Israel, em alguém que tinha o controle e ação mundial, sobre
todas as nações, sobre seus líderes e seus desígnios. Esta nova percepção
criou uma esperança momentânea para aquele contexto, principalmente
para os que vislumbravam a restauração da nação de Israel-Judá.

Contudo, alguns problemas surgiram na tentativa de reconstrução da


nação, a partir da cidade de Jerusalém, transformando esta esperança
em desespero. Contando com a permissão e o apoio do imperador Ciro,
uma pequena parcela dos exilados retornou à terra natal encontrando
um cenário devastador com a cidade destruída e seus habitantes
passando necessidades. O projeto inicial era começar a restauração
da nação com a construção do Templo, por causa da sua significância
para a cultura e fé do povo, numa tentativa de criar um foco ideológico e
Teologia Sistemática I | FTSA | 137
de estímulo. Estima-se, porém, que os judeus levaram vinte e três anos
para conseguirem construir o templo, e o ambiente em que ocorreu sua
inauguração é assim descrito por Bright:

O novo templo estava longe de ser o santuário nacional


do povo israelita no sentido em que tinha sido o de
Salomão. Israel não era mais uma nação e, portanto,
não mais possuía instituições nacionais. O templo,
construído sob o patrocínio da coroa persa, incluía
sacrifícios e orações para o rei no seu culto (Ed 6:10).
Além disso, como aconteceu durante todo o período da
monarquia dividida, muitas pessoas de descendência
israelita, na Samaria e em outras partes, não lhe eram
fiéis. Entretanto, ele oferecia um local de reunião e
dava aos “remanescentes de Israel” uma identidade,
como a comunidade de culto do templo de Jerusalém.
A experiência da restauração havia sido salva. Tinha
sobrevivido à sua primeira crise. E iria continuar.
Entretanto, sabemo-lo muito bem, as esperanças
anunciadas por Ageu e Zacarias não se concretizaram.
O trono de Davi não foi restabelecido, e a época da
promessa não teve a sua aurora (1978, p. 504).

Considero que os dois principais efeitos deste cenário para a compreensão


de Deus que passou a ser elaborada pelo povo de Israel foram o
surgimento do judaísmo, como uma proposta religiosa específica, e do
apocalipsismo, como um movimento religioso e literário. São estes dois
efeitos que serão estudados a seguir.

5.2. O judaísmo
Se durante o exílio desenvolveu-se uma compreensão mais ampliada
de Deus, que o levava para limites além do povo de Israel, o judaísmo
representou o retorno à perspectiva reducionista e exclusivista.
Historicamente, o que se chama de judaísmo foi o resultado de uma série
de atitudes e práticas, acompanhada de elaborações teológicas, que
138 | Teologia Sistemática I | FTSA
apontava para uma separação e consequente identificação dos que se
consideravam os verdadeiros representantes do povo de Deus. O cenário
enfrentado por aqueles que retornaram do exílio e tentaram reconstruir a
nação e a fé javista em seu território natal foi caótico.

A comunidade tinha de lutar por sua identidade como


“Israel”, contra os povos de Samaria e outros residentes na
terra cuja pureza religiosa era duvidosa. Um mar de povos
pagãos ou semipagãos a circundava, de todos os lados.
Tinha-se de se traçar uma nítida linha divisória para que a
pequenina comunidade simplesmente não se dissolvesse
no seu ambiente, perdendo seu caráter distintivo, como já
estava em perigo de perder sua língua distintiva. Foi este
perigo que levou Neemias e Esdras a tomar suas enérgicas
medidas separatistas [...] (Bright, 1978, p. 604).

O risco de perder a identidade, que estava diretamente associada à questão


religiosa da fé em Javé, além da esperança de ver se cumprir a promessa do
reino davídico eterno, trouxe como consequências práticas o separatismo, o
exclusivismo, o orgulho étnico e uma proposta de pretensa pureza religiosa
ou, usando a terminologia teológica, de santidade. Todo este entendimento,
que se fez acompanhar por um corpo de doutrinas, trouxe um olhar negativo
em relação aos outros povos e suas expressões religiosas.

A nota da separação é dominante na literatura do


judaísmo. Dominava a mentalidade de que os judeus
deviam evitar tanto quanto possível qualquer contato
com os gentios e de modo algum se tornarem
semelhantes a eles (por exemplo, Jr. V. Ep. 5); sobretudo
os pais não deviam permitir que seus filhos ou filhas
se casassem com nenhum deles (Tb 4:12ss), porque
tal procedimento era o mesmo que fornicação (Jub
30:7-10). Havia, muito compreensivelmente, um forte
sentimento de que os judeus deviam manter-se unidos,
se desejavam mesmo vencer as maquinações de seus
inimigos (cf. Ester). Competindo com sua aversão pelos
Teologia Sistemática I | FTSA | 139
inimigos, estava o desprezo que os judeus nutriam pelos
israelitas que desprezavam a lei e apostatavam. Estes são
os “maus”, os “ímpios”, os “zombadores”, com os quais
não se deve ter nenhuma relação (Sl 1), são os “sem-lei”,
que se comprometem com os caminhos dos ímpios (1Mc
1-11) [...] Além desta separação dos estrangeiros, sente-
se na comunidade judaica um enorme orgulho. Os judeus
eram profundamente cônscios de sua posição peculiar
e se vangloriavam dela [...] Orgulhavam-se de possuir
a lei (Sl 147:19ss; Tb 4:19), orgulhavam-se da posição
privilegiada de povo de Deus (Eclo 17:17), orgulhavam-se
de falar a língua usada por Deus na criação (Jub 12:25ss),
cuja Cidade Santa era o Centro da Terra (Jub 8:19; 1En c.
26) (Bright, 1978, pp. 606-607).

Para Bright, este fenômeno ocorreu inserido em uma tensão, por que ao
mesmo tempo em que se expressava por uma via separatista, também
pretendia a conversão dos outros povos à fé javista. Esta conversão, no
entanto, não previa em sua abordagem missionária ações muito além
de uma provável conquista por meio do surgimento de alguma simpatia
que as pessoas poderiam vir a ter pelas práticas judaicas, percebidas nas
comunidades ou nas sinagogas espalhadas pelas nações do mundo antigo,
ou pela simples atração ao centro da religião que estava em Jerusalém.

Saiba mais
John Bright faz referência a alguns livros considerados não
canônicos pela igreja cristã antiga. Após a Reforma Protestante a
Igreja Católica os incorporou ao seu cânon passando a identifica-
los como deuterocanônicos, ou seja, do “segundo cânon”. Embora
não sendo considerados canônicos pelas igrejas protestantes,
esses livros tem grande relevância para o entendimento da história
que circunscreve o período bíblico. Os livros citados por Bright são:
Tobias (Tb); Jubileus (Jb); Macabeus (Mc) e Ecleisástico (Eclo).

140 | Teologia Sistemática I | FTSA


Foi no período do exílio que se desenvolveram algumas características
marcantes da religiosidade do povo que foram incorporadas ao
judaísmo, trazendo novas compreensões e percepções sobre Deus. Duas
características estão bastante inter-relacionadas que são o uso da sinagoga
como lugar de culto e a guarda do sábado. Durante o período anterior ao
exílio, o culto estava centralizado no templo de Jerusalém e na prática das
festas anuais. O sábado não era visto como um dia de culto comunitário
e sim de descanso, ou ainda como o dia separado para as celebrações
principais durante as festas. Quando o povo foi dispersado, no processo
de conquista e exílio babilônico, tendo o templo sido destruído e estando
eles impossibilitados de retornarem à sua terra, eles passaram a reunir-se,
principalmente no sábado, para manter viva as suas tradições e fé.

Os deportados foram mais seriamente atingidos pela


impossibilidade de continuar a adorar Iahweh num
templo como em Jerusalém [...] Então, desenvolveram
outras formas em substituição. A escola religiosa,
que, mais tarde, se transformou na sinagoga,
substituiu o Templo; ali o povo reunia-se para uma
forma simples de adoração que compreendia oração,
hinos e uma preleção. A última, sob influência da
escola deuteronomística7, consistia primariamente
de interpretação histórica. Supõe-se, com frequência,
que o culto da sinagoga já estava inteiramente
desenvolvido no período deuteronômico, mas não se
pode oferecer uma prova definitiva para tal suposição.
De qualquer maneira, a classe dos mestres da lei, neste
contexto, ficou em evidência. Ela existia, pelo menos,
desde o fim do período pré-exílico, possivelmente
como consequência da reforma deuteronômica. Tinha
a tarefa de interpretar a lei e aplica-la aos vários casos
particulares que eram levantados no dia-a-dia. O povo

7 Considera-se a reforma promovida pelo rei Josias, ocorrida por volta do ano 622 a.C.,
como o início do movimento deuteronomista (Gottwald, 1988, p. 141).
Teologia Sistemática I | FTSA | 141
reunia-se para a adoração do Shabbath8, que, assim,
adquiriu nova importância. Sua observância tornou-se
o substituto mais importante do culto; guardar o santo
Shabbath tornou-se uma obrigação religiosa decisiva
(Fohrer, 2012, pp. 404-405).

A compreensão de Deus como alguém que exige a prática de um culto


regular semanal — no sábado para o judaísmo ou no domingo após a
adaptação cristã da mesma prática — tem origem neste movimento. O
que estou destacando aqui não é a validade da prática do culto semanal
e sim a ideia que perpassa a mente de muitos na vivência da fé de que
isto é uma obrigação religiosa requerida por Deus. O uso do espaço da
sinagoga, por outro lado, mesmo não tendo sido instituído oficialmente
por nenhuma tradição bíblica, tornou-se um elemento muito interessante
ao absorver o culto a Deus que estava restrito ao templo. De certa forma,
ela resgatou a ideia de um Deus presente aonde o povo se reúne e não
apenas limitado ao templo. Outra questão interessante foi a divisão
de responsabilidades entre os mestres e os sacerdotes. Quer dizer, os
sacerdotes estavam com sua função adormecida pela falta do templo,
o que permitiu o desenvolvimento da atividade de estudo e ensino das
coisas de Deus, para benefício da fé javista. Os fariseus e escribas, do
tempo de Jesus, são herdeiros deste processo, claro que já influenciados
pela expressão exclusivista e sectária assumida pelo judaísmo.

Por último, vale ressaltar ainda outra característica desenvolvida pelo


judaísmo que foi o conceito de pureza religiosa ou santidade, assim
explicado por Fohrer:

No exílio, deu-se também ao código legal contido em


Lv 17-26 a sua forma final. Ele é chamado de Código
de Santidade com base na fórmula freqüentemente
repetida: “Vós sereis santos, pois eu, Iahweh vosso
Deus, sou santo” (com pouca variação). Ele contém
primariamente normais cultuais e éticas [...] O Código
de Santidade colocava diante do povo a exigência de
8 Shabbath é a transliteração da palavra hebraica traduzida para o Português como Sábado.
142 | Teologia Sistemática I | FTSA
que eles deviam ser santos no sentido da pureza cultual
e ética [...] Desta maneira, durante o exílio, as exigências
da lei converteram-se no princípio diretor da conduta
humana para uma parte de Israel; o cumprimento
dessas exigências foi elevado à condição de modo
exemplar de vida. Depois dos inícios no movimento de
reforma deutreonômica, agora podemos falar de uma
abordagem legal da vida e de uma religião legalística
(2012, pp. 407-409).

Como consequência desta perspectiva teológica, foi transmitida a ideia de


que Deus não apenas fazia-se representar por padrões éticos humanos,
muitas vezes discutíveis e grandemente influenciados por questões
culturais contextuais, como exigia que o povo se expressasse por
comportamentos sociais, externos e rígidos, e pautados na interpretação
das leis de santidade. Da mesma forma, fortaleceu-se a ideia de um Deus
circunscrito às práticas litúrgicas cultuais, que exigia o cumprimento
estrito das mesmas como forma de ser agradado.

Exercício de Aplicação - 14
Tentando fazer um simples exercício de imaginação comparativa,
pense que características da religiosidade do período exílico e
pós-exílico estão representadas nas experiências das igrejas
evangélicas, em geral, na atualidade. Da lista abaixo, qual das
opções seria a que menos percebemos ou vivenciamos?
a) O estabelecimento de um padrão rígido de comportamento e práticas religiosas;
b) A prática de uma forma simplificada de culto em um ambiente e lugar alternativo
ao templo;
c) O interesse pela conquista de outros para a fé;
d) A exigência de práticas religiosas em um dia exclusivo da semana;
e) A segregação de pessoas que não pertencem à sua mesma etnia.

Teologia Sistemática I | FTSA | 143


5.3. O apocalipsismo e outras influências da cultura
babilônica
Concluindo este período histórico, da construção do conhecimento de
Deus no tempo exílico e pós-exílico e, consequentemente, no Antigo
Testamento, apresento um conteúdo que merece atenção e, certamente,
um aprofundamento maior sobre aquilo que será apresentado. Sugiro a
leitura das fontes bibliográficas indicadas nesta unidade, além de outras
que possam complementar os temas discutidos.

Este período histórico tornou-se muito prolífero na produção de conteúdo


escatológico, ou seja, de assuntos que falam do futuro ou do fim dos
tempos. Alguns autores distinguem fases entre os escritos escatológicos
e os apocalítpticos. É certo que há grande aproximação entre estes
dois fenômenos literários, havendo até quem não os diferencie. Para os
objetivos que pretendemos alcançar aqui, que é o de procurar observar
como os textos bíblicos deste período contribuíram para a formação do
conhecimento sobre Deus, não me preocuparei em entrar em detalhes
literários ou de diferenciação dos movimentos. O que farei é tratar
da contribuição dos mesmos na construção do pensamento, mais
especificamente, preocupado em mostrar a influência que a cultura
babilônica exerceu sobre os autores e teólogos daquele tempo.

O apocalipsismo, como movimento religioso, e a apocalíptica, como


sua expressão literária, estão presentes em alguns textos do Antigo
Testamento do período exílico e pós-exílico. Norman Gottwald explica o
apocalispsismo:

O termo “apocalipse”, do grego para “revelação”,


“descoberta”, “tirar o véu”, é usado convencionalmente
para um tipo de literatura revelatória, do qual existe
grande número de exemplos judaicos, cristãos,
gnósticos, greco-romanos e persas, a partir do
período de 200 a.C-300d.C. O único apocalipse bem
desenvolvido, a ser aceito na Bíblia Hebraica foi o livro
144 | Teologia Sistemática I | FTSA
de Daniel, se bem que vários textos proféticos bíblicos
manifestem suficientes sinais antecipados do gênero
para nos oferecer um sentido de como a apocalíptica
surgiu nos círculos judaicos (1988, p. 539-540).

Os outros textos bíblicos que apresentam sinais da influência apocalíptica,


segundo Gottwald, são Isaías 24-27; 56-66; Zacarias 1-8; 9-14 e Ezequiel
(1988, p. 544), e o que caracteriza este tipo de literatura é a ideia de uma
revelação, transmitida por uma visão, audição ou ambas.

Em todos os casos, um mediador de além-túmulo,


normalmente concebido como ser angélico, comunica
ou explica a revelação ou serve de guia nas viagens
visionárias. O destinatário humano da revelação é
geralmente identificado como figura venerável do
passado. Nos apocalipses judaicos, pseudônimos
favoritos são tirados do período primordial (Henoc,
Abraão) e especialmente da época do exílio e início da
restauração (Baruc, Daniel, Esdras).

O que é revelado num apocalipse? O conteúdo da


revelação estende-se ao longo de um eixo, seja
“temporal”, seja “espacial”.

A revelação temporal desvenda crise eminente de


perseguição e cataclismos do outro mundo, que
conduzirão rapidamente ao final da ordem do mundo
atual em julgamento e em salvação. Este fim pode
envolver transformação do mundo, porém sempre
abrange salvação pessoal para o crente fiel em alguma
forma de vida após a morte, frequentemente ressurreição
corporal [...] A revelação espacial apresenta o recebedor
humano da revelação à “geografia e demografia do
céu e do inferno”, habitualmente no veículo de uma
viagem dirigida através de regiões cósmicas, onde se

Teologia Sistemática I | FTSA | 145


enfrentam seres angélicos e demoníacos, e o trono de
Deus é aproximado (Gottwald, 1988, pp. 540-541).

Entende-se que o movimento apocalíptico, principalmente no judaísmo,


surgiu em círculos proféticos que haviam se desencantado com o
contexto em que viviam, além de perderem a esperança futura na
mudança de situação histórica em que viviam. A esperança destes
escritores é lançada para um futuro sem contato com a realidade
concreta, em relação ao tempo e ao espaço, associada à destruição do
mundo corrente e restauração em um novo mundo separado apenas para
os justos e perseverantes.

O impacto desta corrente teológica para a compreensão de Deus é que


se perde a perspectiva da ação divina na história concreta, e mesmo da
participação humana. Ocorre a transferência da ação divina, intermediada
por um exército formado por seres espirituais, que são os anjos, para
a esfera celeste. As lutas não são mais humanas e sim espirituais e
celestiais, entre anjos e demônios, com suas consequências para a
humanidade. Esta percepção teológica tornou-se uma novidade para
todas as tradições teológicas anteriores do Antigo Testamento. Entende-
se que ela tenha ocorrido por influência do caráter mitológico “cananeu-
fenício e mesopotâmico” da cultura com a qual o povo teve contato
durante o exílio, conforme indica Fohrer (2012, p. 413).

Saiba mais
A palavra anjo é a tradução do termo hebraico malakh e do grego
aggelos, que significa, em ambas as línguas, mensageiro ou
representante enviado. O significado original dos termos não tem
qualquer conotação referente a seres espirituais, sendo traduzidos,
ao longo do texto bíblico em português, tanto como mensageiro
quanto como anjo.

146 | Teologia Sistemática I | FTSA


É exatamente neste período, quando surge a interpretação do mundo a
partir da angelologia, que se constrói também a figura de Satanás ou
Satã, assim explicada por Fohrer:

No começo do período pós-exílico encontramos as


primeiras menções de Satã, mas como parte do mundo
de Iahweh, um membro da corte celestial (Zc 3:1ss; Jó
1:6ss; 2:1ss) [...] Ele é frequentemente interpretado como
uma espécie de promotor público segundo o modelo
das cortes reais do Oriente Médio, apontando perante
Iahweh a perversidade dos homens; o nome “Satã” é
interpretado como um título ou função, “adversário”. É,
porém, mais exato entender o termo como referência
à sua conduta: ele é chamado de Satã (“inimigo”,
“oponente”), porque é o ser celestial hostil ao homem. No
relato, porém, do Cronista que diz como Davi é induzido
a fazer o censo, “Satã” tornou-se um nome próprio (1 Cr
21:1, sem o artigo); a figura assim designada assume a
função anteriormente atribuída a Iahweh (cf. 2 Sm 24:1).
O incitamento para o mal estava também relacionado
com essa figura. Assim, colocou-se a estrutura para a
introdução de um autor e representante do mal na fé
do javismo. O período posterior desenvolveu mais essa
noção, mas sem cair no dualismo, visto que Satã era
considerado um anjo decaído expulso do céu ou um
espírito do mal criado por Iahweh.

Ao mesmo tempo, desenvolveu-se aí um conceito de


espíritos do mal, possivelmente incorporando aquilo
que fora originalmente um espírito do mal ou de mentira
emanado de Iahweh (cf. 1 Sm 16:14; 1 Rs 22:22). A
antiga demonologia também sofreu considerável
desenvolvimento. Anteriormente, só de infortúnios
Teologia Sistemática I | FTSA | 147
externos os demônios tinham sido acusados; agora,
apareciam também sob a forma de tentadores que
incitavam os homens ao mal moral, ao pecado. Pouco a
pouco, todos esses desenvolvimentos levaram à noção
de uma esfera organizada do mal, hostil à soberania
de Iahweh, dentro da qual seres do mal operam como
anjos de Satã para afastar os homens do domínio de
Deus (2012, p. 485-486).

Todo este conteúdo passou a influenciar o conhecimento que se tinha de


Deus. Deus, de certa forma, distanciou-se do ser humano, além de ter alguém
que podia se opor a ele. Mesmo entendendo-se que a figura de Satanás, até
então desconhecida na teologia das outras tradições, teria sido construída
como uma criatura divina, ou seja, submetida a Deus, o desdobramento da
compreensão que se teve foi de um ser que passou a medir forças com
Deus, além de exercer forte influência sobre os seres humanos, podendo até
mesmo ser responsabilizado por influenciar atos e decisões.

Foi esta forte influência teológica do judaísmo, da apocalíptica e da


angelologia pós-exílica que compôs o contexto histórico encontrado
por Jesus e pelos autores do Novo Testamento, que tiveram a tarefa de
interpretar a pessoa de Deus e comunicar o conhecimento que passaram
a adquirir diante da pessoa de Jesus, o Deus encarnado.

Exercício de Reflexão - 15
Pensando em toda a construção bíblica da pessoa de Deus
feita ao longo do Antigo Testamento, reflita quais dos aspectos
apresentados estão mais presentes ou são mais enfatizados na
sua experiência de igreja. Qual teologia, de que tradição ou período,
é que mais influencia o seu entendimento pessoal?

148 | Teologia Sistemática I | FTSA


Bibliografia
BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulinas, 1978.
DE VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo:
Teológica, 2003.
FOHRER, Georg. História da religião de Israel. São Paulo: Academia
Cristã/Paulus, 2012.
GALBIATI, Enrico Rodolfo; ALETTI, Aldo. Atlas histórico da Bíblia e do
Antigo Oriente. Petrópolis: Vozes, 1991.
GOTTWALD, Norman K. Introdução socioliterária à Bíblia hebraica. São
Paulo: Paulinas, 1988.
HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a bíblia: a revelação, a promessa, a
realização. São Paulo: Paulinas, 1985.
MACKENZIE, John L. Dicionário bíblico. 6 ed. São Paulo: Paulus, 1983.
McGRATH, Alister E. Christian theology: an introduction. Oxford, GB;
Cambridge, EUA: Blackwell, 1994.
PANNENBERG, Wolfhart. Teologia sistemática. Vol. 1. Santo André:
Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2009.
SCHMIDT, Werner H. A fé do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal,
2004.
TILLICH, Paul. Teologia sistemática. 2 ed. São Paulo: Paulinas; São
Leopoldo: Sinodal, 1987.
WRIGHT, Christopher J. H. God, names of. In: BROMILEY, Geoffrey W. (ed.)
The international standard bible encyclopedia. Vol. 2. E-J. Grand Rapids:
Eerdmans, 1982.

Teologia Sistemática I | FTSA | 149


UNIDADE 4 – O SER DE DEUS NO NOVO TESTAMENTO
O Novo Testamento insere uma grande transição no conhecimento bíblico
sobre Deus. Podemos afirmar que todo o conteúdo do Antigo Testamento
é posto em xeque diante da revelação encarnada de Deus em Jesus de
Nazaré. Isto não significou negar tudo o que havia sido construído, mas,
certamente, reinterpretar ou, pelo menos, entender melhor aquilo que
havia sido transmitido por meio da experiência do povo de Israel. O autor
de Hebreus inicia o seu livro com a seguinte máxima:

Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de várias


maneiras aos nossos antepassados por meio dos
profetas, mas nestes últimos dias falou-nos por meio
do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as
coisas e por meio de quem fez o universo. O Filho é o
resplendor da glória de Deus e a expressão exata do
seu ser, sustentando todas as coisas por sua palavra
poderosa. Depois de ter realizado a purificação dos
pecados, ele se assentou à direita da Majestade nas
alturas, tornando-se tão superior aos anjos quanto o
nome que herdou é superior ao deles (Hebreus 1:1-4).

A argumentação do autor é a de que Deus havia se revelado exaustivamente


no passado, por meio de intermediários, mas que naquele tempo ele havia
utilizado um meio mais direto e próximo de sua real intenção. Jesus é,
portanto, apresentado como o filho herdeiro, participante da criação e o
reflexo do brilho da glória de Deus, seu Pai. Continuando sua apresentação,
ele diz que Jesus é a “expressão exata” (character tes hypostaseos) do
ser de Deus. A ideia que o autor parece construir com os termos gregos
é a do processo de impressão, usando um símbolo ou letra esculpida
em alto relevo, que é transmitida para alguma superfície. A impressão
(character) é, assim, a imagem representativa daquele símbolo. No caso
de Jesus, o autor diz que ele é a impressão, ou expressão, da substância
(hypostasis) de Deus. Substância aqui transmite a ideia de essência,
aquilo que se encontra lá no fundo, o fundamento de algo. O que Hebreus
150 | Teologia Sistemática I | FTSA
indica é que Jesus deve ser entendido como aquele que melhor consegue
transmitir quem Deus é em sua essência. Esta é uma afirmação bastante
forte, que nos leva a reinterpretar tudo o que foi revelado anteriormente
no Antigo Testamento; não no sentido de anular seus conteúdos, mas
de poder melhor entendê-los, filtrando os efeitos e influências históricas
contextuais dos autores do passado.

É importante destacar que o ambiente teológico deste período é constituído


pelo domínio do judaísmo, como principal manifestação religiosa, e
pela forte influência do movimento apocalíptico e suas concepções de
mundo. Devemos, portanto, ter esta consciência ao lermos os textos do
Novo Testamento por causa dos conflitos que surgem como pano de
fundo na construção das narrativas. Muitos diálogos e discussões são
provocados exatamente como forma de inserir uma nova compreensão
de Deus corrigindo os exageros produzidos neste ambiente.

Ainda usando a aproximação metodológica da Teologia Bíblica, podemos


dizer que o caso do Novo Testamento se constitui em um processo mais
simples por causa do pequeno espaço de tempo em que foi composto,
além da menor variação de contexto em que ocorreram as construções
literárias. De maneira resumida e simplificada, podemos abordar o
compêndio neotestamentário em três grandes grupos — evangelhos
sinóticos, escritos paulinos e escritos joaninos — deixando de lado
outros livros por não apresentarem grandes adições teológicas ao que
estes grupos trazem. Esta divisão não se preocupa com a sequência de
datação de composição dos livros e sim com a observação da proposta
de abordagem teológica dos autores, já que estamos considerando para
todos um contexto histórico muito próximo.

1. Fundamentação bíblica nos principais escritos


1.1. Deus nos evangelhos sinóticos
A grande relevância das narrativas dos evangelhos sinóticos — Mateus,
Marcos e Lucas — está na tentativa de apresentar o ministério concreto
de Jesus no meio do povo que habitava a região da Palestina, em
Teologia Sistemática I | FTSA | 151
especial o povo judeu, considerado o povo de Deus. Esta abordagem é
ligeiramente diferente, por exemplo, da que foi feita pelo apóstolo Paulo,
que tentou construir um corpo doutrinário em torno da pessoa de Cristo,
fazendo uma ponte com a teologia do Antigo Testamento, porém, mais
direcionado aos gentios. João, que conviveu com Jesus, mas também
foi bastante sensível ao contexto greco-romano, aplicou uma abordagem
mista, que tanto procurou descrever o ministério prático de Jesus quanto
elaborou algumas construções doutrinárias.

Olhando, então, para as narrativas dos evangelhos, podemos destacar


alguns elementos que apontam para nuances que nos fazem repensar
as percepções construídas pelas tradições do Antigo Testamento. Já
na introdução do Evangelho de Mateus, encontramos a curiosa história
dos magos que teriam vindo das regiões orientais, possivelmente da
Mesopotâmia, que interpretaram um evento astronômico — uma estrela
no Oriente — como sinal do nascimento do Messias judaico (Mateus 2:1-
12). O termo mago era aplicado, nas culturas babilônica, medo e persa,
a homens sábios que exerciam ofícios de mestre, sacerdote, médico,
astrólogo, vidente, intérprete de sonhos, mágico, encantador, etc. São
a estes magos, considerados pagãos, que Mateus concede a honra
de primeiro perceberem o cumprimento da promessa messiânica e de
prestarem o primeiro ato de adoração ao Deus encarnado. Para Mateus,
não foram os judeus, receptáculos e mantenedores da fé em Javé, que
entenderam que o Messias havia chegado e sim os estrangeiros pagãos.
O que podemos concluir com isso? Há aqui alguma relação com aquilo
que aprendemos com a experiência dos patriarcas, de que Deus se revela
em meio à diversidade cultural dos povos?

Outra história interessante é a de João Batista. Ele segue a linhagem


profética dos profetas autênticos, independentes dos círculos
profissionais e religiosos, mostrando a igual independência de Deus
destes sistemas. A pregação de João retoma a profecia do Deutero-
Isaías (Mateus 3:3; Isaías 40:3), que diante da experiência do exílio do
povo, fala de um Deus igualmente exilado. Uma maneira de interpretar
este texto é entender que Mateus está indicando que uma das razões dos
152 | Teologia Sistemática I | FTSA
estrangeiros terem sido os primeiros a perceberem a presença do Messias
é porque Deus se encontrava exilado. Deus é descrito como a aquele que
“clama no deserto” e o profeta é a sua “voz”, seu intermediário. A princípio,
não faz sentido Deus estar clamando no deserto, afinal não há ninguém ali
para escutá-lo. A expectativa seria a de que ele deveria ser encontrado no
templo de Jerusalém ou, pelo menos, nas sinagogas. Esta expressão, então,
nos leva a pensar que Deus se apresenta ao povo como alguém exilado
ou auto-exilado. O motivo deste exílio parece ser explicado ao longo do
livro de Mateus, onde o autor mostra como a religião oficial, representada
pelo grupo dos fariseus, escribas, saduceus e sacerdotes, e também pela
estrutura do Templo, havia se tornado uma falsa representante da fé em
Deus. Estes que pretendiam ser os responsáveis pelo conhecimento de
Deus na terra foram exatamente os que não conseguiram reconhecer em
Jesus o seu Messias, e entender e acatar sua mensagem. Por isso também,
essa pesada estrutura rejeitou, perseguiu e matou o Deus encarnado. A
revelação de um Deus que se afasta daqueles que, em tese, são o seu povo
e representantes, necessitando usar os profetas que estão na periferia
teológica, certamente não agrada os líderes da religião tida como oficial.

Não é apenas neste emblemático discurso de João Batista que Deus se


revela como descontente com os crentes da época. A opção de Jesus em
estabelecer o seu ministério longe de Jerusalém e do Templo, na Galiléia
dos gentios, cercado de gente considerada impura, também indica uma
face de Deus esquecida pela religião judaica (Mateus 4:23-24). O Antigo
Testamento já havia construído a imagem de Deus como aquele que se
preocupa com os marginalizados e oprimidos, como vimos no ministério
e discurso dos profetas durante o período monárquico. No entanto, a
imagem transmitida pela religiosidade judaica era a de associação das
misérias humanas ao pecado de falta de santidade (Marcos 7:1-23). É
curioso, então, notar que Lucas constrói o cenário do início do ministério
de Jesus em torno da rejeição que ele teve em sua própria terra natal ao
assumir o discurso do profeta Isaías como referência paradigmática:
Ele foi a Nazaré, onde havia sido criado, e no dia de
sábado entrou na sinagoga, como era seu costume. E
Teologia Sistemática I | FTSA | 153
levantou-se para ler. Foi-lhe entregue o livro do profeta
Isaías. Abriu-o e encontrou o lugar onde está escrito:
“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me
ungiu para pregar boas novas aos pobres. Ele me enviou
para proclamar liberdade aos presos e recuperação da
vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar
o ano da graça do Senhor”.
Então ele fechou o livro, devolveu-o ao assistente e
assentou-se. Na sinagoga todos tinham os olhos fitos
nele; e ele começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu a
Escritura que vocês acabaram de ouvir”.
Todos falavam bem dele, e estavam admirados com
as palavras de graça que saíam de seus lábios. Mas
perguntavam: “Não é este o filho de José?”.
Jesus lhes disse: “É claro que vocês me citarão este
provérbio: ‘Médico, cura-te a ti mesmo!’ Faze aqui em
tua terra o que ouvimos que fizeste em Cafarnaum”.
Continuou ele: “Digo-lhes a verdade: Nenhum profeta
é aceito em sua terra. Asseguro-lhes que havia muitas
viúvas em Israel no tempo de Elias, quando o céu foi
fechado por três anos e meio, e houve uma grande
fome em toda a terra. Contudo, Elias não foi enviado
a nenhuma delas, senão a uma viúva de Sarepta, na
região de Sidom. Também havia muitos leprosos em
Israel no tempo de Eliseu, o profeta; todavia, nenhum
deles foi purificado: somente Naamã, o sírio”.

Todos os que estavam na sinagoga ficaram furiosos


quando ouviram isso. Levantaram-se, expulsaram-no
da cidade e o levaram até ao topo da colina sobre a
qual fora construída a cidade, a fim de atirá-lo precipício
abaixo (Lucas 4:16-29).

154 | Teologia Sistemática I | FTSA


A narrativa de Lucas é construída como um resumo de tudo o que
aconteceu com Jesus em seu ministério. Jesus apresenta ao seu povo
um Deus que se importa com os pobres, presos, cegos e oprimidos
para trazer a sua graça. É na figura das viúvas e leprosos, desprezados
pela sociedade, que ele indica ser esta a condição simbólica de todos,
mas apenas alguns conseguem perceber este fato ao ponto de serem
alcançados por Deus. Com este discurso e prática, desde o passado já
revelado na experiência de Israel, Deus é rejeitado pelo seu próprio povo
ao ponto de chegarem a mata-lo.

Exercício de Aplicação - 16
A imagem de Deus a partir de Cristo e sua missão, segundo
o relato de Lucas, é a de alguém sensível aos necessitados.
Pensando no senso comum, ou na maior parte da igreja evangélica
contemporânea que conhecemos, qual das duas opções abaixo
melhor a representaria?

A igreja contemporânea se aproxima dessa percepção uma vez


que entende que sua missão, que ao mesmo tempo revela o Deus
em quem crê, é, principalmente, a de cuidar dos necessitados;

A igreja contemporânea se distancia dessa percepção uma vez que


entende que sua missão, que ao mesmo tempo revela o Deus em
quem crê, é, principalmente, a de pregar o evangelho da salvação
eterna, espiritualizando a questão dos necessitados.

Ao longo de seu ministério Jesus revela um Deus que caminha no meio


do povo, próximo da ideia do Tabernáculo do deserto. Ele mostra um Deus
sensível e disposto ao diálogo com qualquer pessoa, principalmente os
que se percebem aprisionados pela mazela humana e na condição de
carência de misericórdia. Por isso, ele está próximo dos pecadores, ao
Teologia Sistemática I | FTSA | 155
contrário do que pressupunha os religiosos da época. O grande e único Javé,
revelado pela tradição da Lei mosaica, não é legalista; ele é antes um Deus
que se preocupa com os princípios por trás das leis, que, prioritariamente,
significa a sempre a expressão maior do amor (Mateus 22:34-40).

Ainda, considerando o conhecimento da tradição monárquica, o reinado


de Deus se dá, na maioria das vezes por meio da inversão dos valores
dos reinos humanos (Mateus 18:1-5; 20:20-28). O Reino de Deus, tão
proclamado por Jesus, possui uma ética típica, para a qual se exige a
mesma atitude de obediência (Mateus 7:24-28), e pode ser apreendida em
seu resumo didático do Sermão do Monte (Mateus 5-7). O Reino de Deus,
e o seu rei, são para os humildes e não para os soberbos e arrogantes. A
entrada no Reino, ou seja, o acesso a Deus, se dá pelo arrependimento,
o reconhecimento da insuficiência humana, e conversão ou mudança na
caminhada da vida (Mateus 21:28-32).

Deus, em Jesus, é paradoxalmente apresentado como um Deus frágil, que


sente, sofre chora e morre (Mateus 9:36; Lucas 5:13; 7:13; 18:15; 22:44;
23:46). Não apenas isto, mas a sua proximidade se torna semelhante à
de um pai amoroso, sempre disposto a cuidar, a estreitar a relação e a
receber com um abraço os que o procuram sinceramente (Mateus 5:43-
45; 6:9ss; 7:11; Lucas 15:11-32).

1.2. Deus nos escritos paulinos


Todo o ministério de Paulo foi fundamentado na sua convicção do
chamado apostólico que ocorreu em sua viagem entre Jerusalém e
Damasco (Atos 9:1-30). A aparição de Jesus, em uma visão especial
(1 Coríntios 15:8-9), que o enviara para pregar o evangelho aos gentios
(Romanos 11:13), determinou a reinterpretação da teologia judaica, na
qual havia se formado desde jovem como um fariseu.

O tipo de formação que ele teve também influenciou a maneira como


desenvolveu a sua teologia. Certamente, ele é o autor bíblico mais erudito
na estruturação e apresentação de seu pensamento, ainda que ele o tenha
156 | Teologia Sistemática I | FTSA
difundido na forma de cartas pastorais às igrejas pelas quais se sentia
responsável. Como mencionado, o evento da aparição de Jesus como o
Cristo ressurreto foi o elemento fundante de sua produção teológica. No
entanto, o resultado da reinterpretação de sua fé judaica para a nova fé
cristã resultou em uma complexa associação, aproveitando elementos
de todas as tradições do Antigo Testamento. Tendo Jesus Cristo como
o centro deste intrincado processo de elaboração teológica, Paulo
reforça um encadeamento de conceitos na tentativa de trazer coesão ao
conhecimento de Deus. Isto sem contar a necessária tradução das ideias
judaico-cristãs para o mundo greco-romano da igreja gentílica.

Considero a introdução da carta de Paulo aos Efésios um excelente


resumo de seu pensamento sobre Deus:

Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo,


que nos abençoou com todas as bênçãos espirituais
nas regiões celestiais em Cristo. Porque Deus nos
escolheu nele antes da criação do mundo, para sermos
santos e irrepreensíveis em sua presença. Em amor
nos predestinou para sermos adotados como filhos por
meio de Jesus Cristo, conforme o bom propósito da sua
vontade, para o louvor da sua gloriosa graça, a qual nos
deu gratuitamente no Amado. Nele temos a redenção por
meio de seu sangue, o perdão dos pecados, de acordo
com as riquezas da graça de Deus, a qual ele derramou
sobre nós com toda a sabedoria e entendimento. E nos
revelou o mistério da sua vontade, de acordo com o seu
bom propósito que ele estabeleceu em Cristo, isto é, de
fazer convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou
terrenas, na dispensação da plenitude dos tempos. Nele
fomos também escolhidos, tendo sido predestinados
conforme o plano daquele que faz todas as coisas
segundo o propósito da sua vontade,

Teologia Sistemática I | FTSA | 157


a fim de que nós, os que primeiro esperamos em Cristo,
sejamos para o louvor da sua glória. Nele, quando vocês
ouviram e creram na palavra da verdade, o evangelho
que os salvou, vocês foram selados com o Espírito Santo
da promessa, que é a garantia da nossa herança até a
redenção daqueles que pertencem a Deus, para o louvor
da sua glória (Efésios 1:3-14).

Sendo Jesus Cristo o centro do pensamento paulino, Deus assume,


principalmente a figura de Pai. Em todas as introduções de suas cartas
ele se refere a Deus como o Pai de Jesus. No entanto, a paternidade
de Jesus é transmitida a todos os que se fazem irmãos de Cristo, por
adoção, ou seja, pela fé naquele que é o próprio Deus encarnado. O
Deus criador é, portanto, o Pai gerador de toda a raça humana em seu
projeto original. Esta ideia faz de Deus não um criador distante, mas um
Pai próximo e extremamente interessado no ser humano. Sua criação
perfeita, irrepreensível, é abalada pela quebra da relação introduzida pela
busca humana de independência, consistindo na via do pecado.

Neste ponto, encontramos outro elemento de destaque no pensamento


paulino que é a metáfora jurídica aplicada a Deus. Ao mesmo tempo
que Deus é Pai, ele se torna um Juiz implacável. Este paradoxo de
ideias é traduzido nos conceitos de justiça, juízo e justificação. Talvez
aqui encontremos algumas pistas da formação farisaica de Paulo. A
importância da Lei e de seu cumprimento teve que ser reinterpretada à luz
do Cristo ressurreto. É nesta arena que também se insere a soteriologia
de Paulo. O tema da salvação é desenvolvido a partir da perspectiva da
ressurreição. Como foi possível a ressurreição de Jesus Cristo? Paulo
transpõe a ideia de cumprimento cabal da Lei pela obediência perfeita
e submissão amorosa de Jesus à vontade do Pai. Ele também percebe
que a inevitável incapacidade de cumprimento da Lei por parte dos seres
humanos, por causa do pecado, que levaria à condenação, só poderia ser
resolvida se Deus tomasse uma atitude graciosa. Olhando para Cristo, ele
vê essa reversão da Lei pela Graça. Deus age com graça em relação aos
158 | Teologia Sistemática I | FTSA
seres humanos quando eles se submetem a Jesus, assim como Jesus
se submeteu a ele, em amor. Esta submissão é ao mesmo tempo uma
mortificação, ou seja, uma negação da vida em pecado que só pode ser
resolvida com a morte. Por isso, o exemplo de Cristo em sua voluntária
mortificação humana na cruz torna-se uma grande referência para Paulo.

Mas para completar a sua alta construção da pessoa divina, ele insere a
ideia de que é o próprio Deus quem ajuda os seres humanos neste difícil
caminho de obediência e mortificação, derramando o seu Espírito ajudador.
Resumidamente, a pessoa de Deus para Paulo é o início e o fim de tudo:
criador, redentor e consumador da vida humana (Romanos 11:36).

1.3. Deus nos escritos joaninos


A crítica literária, como ramo da teologia, se debruça em detalhes sobre
as questões de autoria, datação e propósito dos livros bíblicos (cf.
Kümmel, 1982; Bruce, 1994). Acompanhar as discussões técnicas que
são apresentadas pelos autores é bastante interessante, mas requer,
ao final, a escolha de alguma linha de raciocínio. Assumimos, portanto,
a hipótese de um mesmo autor para o Evangelho e para as três cartas
presentes no Novo Testamento, com as seguintes características:

A forma linguística de Jo também faz pensar em um


autor de língua grega num ambiente semita. Além
disso, o universo conceptual mostra relação com os
grupos gnósticos próximos do judaísmo. Portanto, a
suposição de que teve origem na Síria é, provavelmente,
a melhor conjectura (Kümmel, 1982, p. 315).

João, então, é um judeu escrevendo para uma comunidade mista, sob a


influência das culturas judaica e grega, “visando confirmar e fortalecer a fé
dos cristãos”, entendendo que “a fé em Jesus é a realização do judaísmo,
bem como da verdadeira religião dos gentios” (Kümmel, 1982, p. 292).

Nesse ambiente, ele imediatamente associa o Deus judaico, por intermédio


de Jesus, o Messias, ao princípio divino grego presente na ideia de Logos.
Teologia Sistemática I | FTSA | 159
O termo logos era familiar em algumas escolas
filosóficas gregas, onde ele denotava o princípio da
razão ou ordem imanente no universo, o princípio que
impõe forma no mundo material e constitui a alma
racional no homem. Não está no uso filosófico grego,
entretanto, aquilo que deveria ser visto no pano de
fundo de pensamento e linguagem de João. Ainda, por
causa daquele uso, logos constituiu uma palavra-ponte
pela qual pessoas vindas do pensamento grego, como
Justino Mártir no segundo século, encontraram seu
caminho para o cristianismo joanino.

O verdadeiro pano de fundo do pensamento e linguagem


de João é encontrado não na filosofia grega, mas na
revelação hebraica. A “palavra de Deus” no Antigo
Testamento denota Deus em ação, especialmente na
criação, revelação e libertação (Bruce, 1994, p. 29).

Em uma alusão direta ao texto da criação de Gênesis, João apresenta


o Deus judaico como criador do universo, por meio da sua palavra, no
caso, apropriando-se do conceito grego logos, e tendo esta “palavra”, ou
logos, tornada humana na pessoa de Jesus. Ao afirmar isto, ele aponta
para Jesus como sendo a expressão revelada de Deus para, a partir daí,
apresentar o seu ministério, exemplo e ensino. Um pouco diferente da
abordagem dos evangelhos sinóticos em que Jesus é descrito em um
contexto mais concreto e próximo da realidade cultural e histórica judaica,
João apoia-se em algumas metáforas que o tornam conceitualmente
mais amplo e com características cósmicas. Assim, Jesus é a “luz do
mundo” (João 1:4; 8:12), a “água da vida” (João 4:13-14) e o “pão da vida”
(João 6:35), revelando um Deus que sacia as necessidades básicas da
vida não apenas no sentido material, mas, principalmente, no sentido
ontológico. A existência para João é fortemente marcada pelo tema da
eternidade, ou seja, da vida e morte eterna realizada com base na relação
que se estabelece com Deus.

160 | Teologia Sistemática I | FTSA


Talvez, o traço mais marcante da face de Deus nos escritos joaninos seja o
amor (1 Jo 4:8). João apresenta um Deus apaixonado pelo ser humano (João
3:16) e radicalmente comprometido em amá-lo até a última consequência,
que é a morte (João 15:13). Por isso, a morte de Cristo não é uma questão
jurídica de satisfação de um Deus irado com o pecador e sim um ato radical
de amor na busca de salvar o ser humano. Mais que isso, o amor, passa
a ser o referencial, o padrão de comportamento e o indicador principal da
presença e ação de Deus no meio do seu povo (1 João 4:7-21).

Enfim, o que podemos concluir com esta rápida abordagem do


conhecimento de Deus nos textos do Novo Testamento, é que muitas
ideias desenvolvidas no Antigo Testamento parecem ser limitadoras
da pessoa de Deus. É com a encarnação de Deus em Jesus que temos
a oportunidade de reinterpretar aquilo que foi transmitido na literatura
veterotestamentária e entender que não se trata de uma revelação
pura e simples de Deus sobre a sua própria pessoa, senão, também,
uma revelação de Deus sobre a pessoa humana, com seus limites
e capacidades de viverem e expressarem a sua percepção da vida na
relação com ele.

Exercício de Fixação - 17
Como podemos descrever as principais diferenças de abordagem
entre os três grupos de escritos do Novo Testamento (sinóticos,
paulinos e joaninos) na construção do conhecimento sobre Deus?
a) Os sinóticos focam o ministério prático de Jesus, os paulinos
reinterpretam o judaísmo à luz do evento Cristo e os joaninos dialogam
com a cultura greco-romana;
b) Os sinóticos focam a divindade de Jesus, os paulinos dialogam
com a cultura greco-romana e os joaninos reinterpretam o ministério
prático de Jesus;
c) Os sinóticos reinterpretam judaísmo à luz da cultura greco-romana,
os paulinos reinterpretam o ministério prático de Jesus e os joaninos
reinterpretam a divindade de Cristo;

Teologia Sistemática I | FTSA | 161


Os sinóticos focam o ministério prático de Jesus, os paulinos dialogam
com a cultura greco-romana e os joaninos reinterpretam o judaísmo à luz
o evento Cristo;

Os sinóticos, os paulinos e os joaninos abordam da mesma forma a


construção do conhecimento sobre Deus.

2. Trindade
Após o estudo do conhecimento de Deus construído pela abordagem da
Teologia Bíblica, analisando os textos do Antigo e Novo Testamentos,
nosso foco se voltará para a discussão de outros temas que pertencem
à Teontologia e que permeiam o discurso teológico da igreja desde o
tempo da patrística.

Um desses temas é o da Trindade. A ideia de Deus como uma unidade


composta por três pessoas, que passou a ser designada como Trindade,
é um dos conceitos mais complicados da Teontologia. Isto porque, como
veremos, não se trata de uma doutrina claramente exposta e desenvolvida
nas Escrituras. A maior parte do raciocínio é de origem filosófica, seguindo
o tipo de construção característica do contexto em que viveram os pais
da igreja, que foram os primeiros a elaborarem esta ideia.

Minha intenção, portanto, será apresentar uma resumida análise bíblica


do assunto para que possamos refletir sobre a propriedade e aplicação
deste conceito para a teologia atual. A seguir, apresentarei um rápido
apanhado histórico dos fatores geradores da discussão em torno do
tema, trazendo os resultados que permanecem influenciando a teologia
até os dias de hoje.

2.1. Discussão bíblica


O tratamento de Deus na teologia do Antigo Testamento é claramente um
apelo ao monoteísmo radical. Deus é único, sem comparação, nominado
como Javé, e além dele não existem outros deuses. A radicalidade

162 | Teologia Sistemática I | FTSA


desta percepção coloca Deus como a origem de tudo, inclusive do mal
(Isaías 45:7), mesmo não havendo uma elaboração mais profunda desse
conceito, à parte da prática de atos que descumprem os mandamentos
divinos. Como visto, é apenas após o período exílico que se desenvolve o
conceito do mal como sendo representado por Satã, tido como uma das
criaturas divinas angelicais.

Mesmo as mais promissoras construções da figura do Messias no


Antigo Testamento não davam conta de conceber o compartilhamento
da divindade por este ser, tratado como filho ou servo. Embora em
escritos mais tardios a sua figura tenha recebido contornos divinos, ele
se caracterizava mais como uma criatura especial capacitada por Javé
para agir no cumprimento de seus desígnios do que como o próprio Deus.
Não se percebe qualquer indicação de que ele partilhasse da condição
divina como uma extensão de Javé.

Também, analisando apenas o Antigo Testamento, ao pensarmos no


Espírito, ele havia sido apresentado como a ação perceptível de Deus, o
vento (ruach), que move e transforma a realidade do mundo criado, das
pessoas e das coisas. O vento impessoal tornava visível a ação do Deus
pessoal. Nesse sentido, e semelhante ao que ocorria com o Messias, não
se percebe no Espírito uma extensão pessoal de Javé.

Outras formas de pessoalidade ou de caracterização de uma possível


representação de Deus foram elaboradas em função dos temas da Palavra
e da Sabedoria. Aquilo que se desenvolveu como Palavra, que mais tarde
foi aproveitado para compor o pensamento de João, associando-a ao
Logos, recebe um tratamento inicial como a força motriz realizadora da
intenção divina. Logo no relato da criação vemos esta ideia por trás do
uso repetitivo da expressão “disse Deus” e o consequente resultado de
seu cumprimento. Mais adiante na história do povo de Israel, o profeta
Isaías apresenta o seguinte entendimento:

Assim como a chuva e a neve descem dos céus e não voltam


para ele sem regarem a terra e fazerem-na brotar e florescer,

Teologia Sistemática I | FTSA | 163


para ela produzir semente para o semeador e pão para o que
come, assim também ocorre com a palavra que sai da minha
boca: Ela não voltará para mim vazia, mas fará o que desejo
e atingirá o propósito para o qual a enviei (Isaías 55:10-11).

Com o profeta vemos uma construção metafórica que dá a impressão


de certa autonomia da Palavra, no sentido de diferenciar-se de Deus, que
a envia, ao mesmo tempo que a associa ao ser divino de maneira bem
próxima ao que é feito com o Espírito. Contudo, o texto mais perceptível
sobre este tipo de consideração sobre a Palavra está no Salmo 119,
que lida com várias expressões e ideias semelhantes ao tratar da Lei,
mandamentos, etc: “A tua palavra, Senhor, para sempre está firmada nos
céus” (Salmos 119:89).

Com a Sabedoria acontece algo similar. O livro de Provérbios constrói


uma imagem personificada da Sabedoria:

A sabedoria clama em voz alta nas ruas, ergue a voz nas


praças públicas;

nas esquinas das ruas barulhentas ela clama, nas portas da


cidade faz o seu discurso:

Até quando vocês, inexperientes, irão contentar-se com a


sua inexperiência? Vocês, zombadores, até quando terão
prazer na zombaria? E vocês, tolos, até quando desprezarão
o conhecimento? Se acatarem a minha repreensão, eu lhes
darei um espírito de sabedoria e lhes revelarei os meus
pensamentos (Provérbios 1:20-23).

Também no livro de Jó, a Sabedoria aparece ao lado de Deus,


metaforicamente personificada (Jó 28:12-28). Mas o que entendemos
disto é que tanto a Palavra quanto a Sabedoria são expressões da
revelação de Deus baseadas em referências didáticas aproximando-o da
realidade humana. Não há a intenção nos textos de alimentar qualquer

164 | Teologia Sistemática I | FTSA


ideia que ultrapasse a percepção da fé monoteísta em Javé. Este inclusive
é o mesmo tratamento que é dado ao Espírito e que será elaborado de
forma diferente no Novo Testamento, possibilitando alguma alusão à
ideia de Trindade.

É precisamente o Novo Testamento que enseja as primeiras elaborações


que provocarão a elucubração dos teólogos da patrística. Ainda que os
autores bíblicos não tenham construído uma doutrina da Trindade, o
evento histórico de Jesus, como Messias e Filho de Deus, provocou o
tratamento que recebeu dos primeiros cristãos, considerando-o como
parte da divindade. De maneira mais clara, é na fórmula do batismo e
da bênção apostólica que encontramos a junção das três principais
representações de Deus:

• Fórmula de batismo: “Portanto, vão e façam discípulos de todas


as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo [...]” (Mateus 28:19);

• Fórmula de bênção: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de


Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vocês” (2
Coríntios 13:14).

Pai, Filho e Espírito Santo aparecem destacados e participantes de atos


significativos da vida da igreja. Aqui encontramos aquilo que Robert
Jenson indicou como sendo o nome de Deus. Sua tese é de que assim
como no Antigo Testamento Javé era o nome de Deus, a partir do Novo,
o nome de Deus passa a ser Pai-Filho-Espírito Santo:

O nome trinitário não caiu do céu. Os crentes o


formularam para o Deus com que nos encontramos
envolvidos. “Pai” era a maneira peculiar em que Jesus
se dirigia à transcendência particular diante de quem
vivia. Ele se qualificou como Filho exatamente por este
modo de dirigir-se a Deus, e na memória da Igreja nos
primórdios a sua aclamação como Filho foi o início da

Teologia Sistemática I | FTSA | 165


fé. “Espírito” foi o termo fornecido por toda a teologia
bíblica para o resultado de tal encontro entre este Deus
e um ser humano especial seu. O envolvimento nesta
estrutura do próprio evento de Jesus — a oração dirigida
ao “Pai” com o “Filho” no poder de e para o “Espírito”
— é o conhecimento de Deus que a fé possui. Assim,
“Pai, Filho e Espírito Santo” também foram juntados
simplesmente para nomear o Deus apreendido no
mesmo, e aparentemente isso aconteceu antes de
qualquer análise de sua conveniência (1990, p. 110).

O livro de João ainda apresenta a interrelação desta tríade Pai-Filho-


Espírito Santo de maneira misteriosa. Nos capítulos 14, 16 e 17, João
constrói um diálogo entre Jesus e seus discípulos em forma de despedida.
Jesus diz que está de partida, rumo ao Pai, mas que, ao mesmo tempo,
não abandonará os seus discípulos ao deixar com eles um representante
(parakletos) (João 14:16). Este representante, entendido como uma forma
de procurador na cultura grega, é identificado como sendo o Espírito Santo,
que seria enviado pelo Pai (João 14:26). A condição para o envio do Espírito
é a ida de Jesus para junto do Pai, para que o próprio Cristo possa, então,
enviá-lo (João 16:7). Por último, encontramos uma construção ainda mais
misteriosa que é a afirmação de unidade entre Jesus e o Pai, e a possível
inclusão dos crentes nesta unidade (João 17:21).

Enfim, as indicações de uma possível doutrina da Trindade nos textos


bíblicos parece ser algo frágil, o que deveria nos levar a uma atitude mais
tranquila ao tratarmos do tema, sem que ele tenha o peso dogmático que
adquiriu na história da igreja.

Exercício de Aplicação - 18
No que implica para a teologia a consideração de que a construção
bíblica sobre a Trindade é algo frágil, isso considerando os textos,
desafios e dilemas presentes nas Escrituras, como um todo, no
desenvolvimento do tema?

166 | Teologia Sistemática I | FTSA


a)Implica no entendimento de que a Bíblia não está em acordo com
as doutrinas elaboradas pela igreja, ou seja, a Bíblia está errada no
tocante ao conceito de Trindade;

b)Implica no entendimento de que a igreja não está em acordo com


a doutrina da Trindade apresentada na Bíblia, ou seja, a igreja está
errada em sua construção do conceito de Trindade;

c) Implica em uma percepção da doutrina da Trindade como um


assunto não acabado e, assim, propondo mais estudo, análise e
diálogo quanto à sua elaboração;

d) Tal consideração é um erro, pois a Bíblia sendo inspirada por


Deus e inerrante não poderia ter doutrinas elaboradas de maneira
frágil.

2.2. Discussão histórica


A ideia de um Deus formado por três pessoas — Pai, Filho e Espírito Santo
— foi o resultado de um longo processo histórico causado, primeiramente,
pela necessidade de afirmação da condição especial de Jesus Cristo
para a fé da igreja nascente. Naquele ambiente de religiosidade judaica,
rigidamente monoteísta em sua afirmação do Deus Javé, Jesus Cristo
já constituía um entrave para além da discussão messiânica. Os
testemunhos de sua morte e ressurreição alçavam-no a esta condição
divinizadora. Mas é no ambiente greco-romano que a teologia cristã irá
procurar defender sua nova compreensão de Deus.

A condição de Jesus na afirmação de ser o Filho de Deus, fazendo de


Javé o seu Pai, insere a natural reflexão sobre a sua divindade. Em que
sentido Jesus seria filho de Deus? Seria ele um filho, na condição humana;
uma criatura, como qualquer outro ser humano? Seria ele uma geração
especial, uma criatura especial ou um ser humano de outro tipo? Ou
seria ele um deus por ter sido gerado por Deus? A fé cristã foi construída
Teologia Sistemática I | FTSA | 167
e defendida com base na convicção da divindade de Jesus, que havia
comissionado os seus discípulos a levarem a mensagem do Reino de
Deus e da salvação por ele ofertada a todo o mundo. Foi neste impulso
que o encontro dos discípulos com outras crenças e cosmovisões tornou
necessária a defesa argumentativa do Deus cristão.

O paradigma da época conduziu o pensamento teológico pela


argumentação filosófica para caminhos de difícil compreensão. A
tentativa de conciliar o ser divino como Pai e Filho, além do Espírito, fez
surgir algumas hipóteses sobre as quais a igreja e seus pensadores se
debruçaram ardorosamente. Não há como deixar passar despercebido as
motivações de controle político e de poder que ocorreram nesta história.
No entanto, vamos nos concentrar na produção teológica surgida nos
primeiros séculos da igreja cristã.

Algumas propostas teológicas sugeriram resolver o problema divino. O


docetismo — do grego dokeo, que significa aparência — propunha que
Jesus era totalmente divino e que sua existência histórica se deu por
meio de simples aparência humana. Esta opção teológica era certamente
influenciada pelo gnosticismo que considerava a esfera material como
ruim. Desta maneira, sendo Jesus um ser divino, ele não poderia ter
assumido a forma humana considerada ruim, ou seja, negava-se, portanto,
a encarnação de Deus e possibilitava-se uma imediata compreensão da
unidade divina, uma vez que Jesus seria considerado uma teofania.

Quase como uma construção oposta ao docetismo, o adocionismo foi uma


corrente que defendia que Jesus era totalmente humano, mas que teria
sido adotado por Deus para cumprir a vocação messiânica e salvífica. Esta
adoção considerava um controle especial de Deus sobre Jesus por meio
do seu Espírito, que o impelia a realizar os sinais e prodígios. O evento que
inaugura este processo é tido como o batismo no rio Jordão quando o
Espírito desce em forma de pomba sobre Jesus (Marcos 1:10). No fundo,
esta opção negava a divindade de Jesus e mantinha o ser de Deus conforme
entendido no Antigo Testamento, apenas na expressão de Javé.

168 | Teologia Sistemática I | FTSA


Outra corrente de pensamento propôs o que se chamou de modalismo,
que defendia a unicidade de Deus manifesta em três modos, em três
épocas distintas. Simplificando, no modalismo, Deus assumiu o modo de
ser do Pai, conforme expresso no Antigo Testamento, o modo do Filho,
durante a vida terrena de Jesus Cristo, e o modo do Espírito Santo, desde
o princípio da igreja até os dias de hoje.

Ainda houve, entre outras, a proposta do triteísmo. A ideia da Trindade


foi resolvida pela simples afirmação de três deuses independentes que
compartilhavam da mesma substância divina. Eles seriam iguais em
poder e autonomia, mas concordantes em seu propósito.

Ao lermos a história da igreja, em especial o que ocorreu nos primeiros


concílios ecumênicos oficiais da igreja1, podemos acompanhar um pouco
da discussão em torno da definição do ser de Deus, que incluiu a rejeição
destas correntes apresentadas acima. A chamada fórmula do credo
niceno-constantinopolitano, iniciada no concílio de Niceia e concluída no
concílio de Constantinopla, foi a que se estabeleceu ao longo da história
e é considerada até os dias de hoje como válida para se referir à doutrina
da Trindade: “Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de
Deus, gerado do Pai antes de todos os séculos Deus de Deus, Luz da
luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, da mesma
substância do Pai”.

A afirmação do credo apenas estabelece a maneira como se decidiu crer


sem, contudo, explicar bíblica ou teologicamente a força do argumento.
Fica claro a intenção de divinizar a pessoa de Jesus Cristo, na categoria
de Filho, mas diferenciando-o dos outros seres humanos. Por isso, Jesus
é gerado e não feito. Ele é gerado pelo Pai, mas não como as outras
criaturas. A questão da geração, no entanto, não resolve o problema da
sua existência prévia, eterna, no ser do Pai. Outra afirmação que tenta
1 Os cinco primeiros concílios ecumênicos da igreja cristã, sempre referenciados às
cidades onde ocorreram, foram Nicéia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431), Calcedônia
(441) e Constantinopla (553). Os documentos finais, resultado das discussões teológicas
realizadas pelos bispos e teólogos da igreja, eram promulgados na forma de dogmas e
credos a serem aceitos por toda a igreja.
Teologia Sistemática I | FTSA | 169
indicar a divindade de Jesus Cristo é a que se faz com o uso da expressão
“mesma substância” (homoouosios). Nas discussões teológicas, esta
expressão está em antagonismo com a expressão “substância similar”
(homoiousious). Jesus é gerado a partir da mesma “substância” divina e,
portanto, possui a mesma substância do Pai, o que faz dele igualmente
Deus. O problema é que a estruturação da ideia foi feita com base em uma
argumentação filosófica grega e com uma expressão sem parâmetros
bíblicos, no caso, substância.

Finalmente, há o famoso e decisivo “homoousios


com o Pai”. A história da palavra homoousios passou
por posições diferentes. Foi usada teologicamente
pela primeira vez pelos gnósticos, para designar o
surgimento mítico de suas diversas entidades divinas.
Orígenes usou a palavra, porém raras vezes, para dizer
que o Filho tinha todas as mesmas características
essenciais do Pai, mas num nível ontológico diferente.

Não sabemos como nem por que essa veio a ser a


palavra importante em Nicéia. Talvez ela tenha sido
introduzida exatamente por Ário tê-la usado no sentido
negativo, simplesmente para contradizê-lo. Ário tinha
dito: “O Filho (...) não é homoousios com [o Pai]” para
rejeitar o trinitarismo do tipo ocidental ou qualquer
noção de Pai e Filho serem dois pela divisão de uma
única substância.

Os bispos, pelo que parece, não tiveram nenhum


significado particular em mente quando usaram
homoousios. Os conselheiros ocidentais de
Constantino em Nicéia, que pensavam em latim, sem
dúvida consideraram homoousios como simples
tradução da expressão “de uma única substância”, de
Tertuliano, e não tiveram mais nenhum problema. Para
aqueles que pensavam em grego, o assunto não era tão
simples (Jenson, 1990, p. 145).
170 | Teologia Sistemática I | FTSA
Havia nas discussões teológicas uma disputa entre os representantes
da ala oriental da igreja, de língua grega, e da ala ocidental, de língua
latina. Até o rompimento destas duas alas em 1054, que deu origem
a duas igrejas cristãs distintas, a disputa permaneceu ocorrendo na
tentativa de conciliar o entendimento sobre as principais doutrinas
da igreja. É importante ressaltar que a nossa perspectiva teológica é
herdeira da igreja ocidental, cuja sede se encontrava em Roma, a capital
do império. Robert Jenson explica que na tentativa de esclarecimento do
uso de homoiousious a ala oriental sugeriu outra formulação, elaborada
pelos capadócios, em um concílio próprio: “um ser (ousia) de Deus em
três hipóstases (hypostaseis)” (1990, p. 149). Jenson analisa em mais
profundidade a questão:
Com isso, providenciou-se para o Oriente uma
terminologia trinitária equivalente, em termos de
extensão, à expressão “uma substância (substantia)
em três pessoas (personae)” do Ocidente. Mas é vital
que se compreenda que as duas terminologias não são
equivalentes quanto à sua intenção. Se uma proposição
de uma delas for colocada simplesmente na outra, seu
significado não é necessariamente preservado. O fato
de se deixar de observar isso tem sido e é a causa
de muita confusão. “Substância” e “pessoa” jamais
foram intercambiáveis. Assim sendo, sua distinção não
evocou nenhuma nova percepção. Elas também não
continham qualquer história de controvérsia trinitária.

Tanto ousia quanto hypostasis entraram na teologia


procedentes da tradição filosófica. Nela foram usadas
quase intercambiavelmente para designar o que é —
conforme apreensão helênica, aquilo que é possessão
de algum complexo específico de características
permanentes. Por conseguinte, são usadas também
para designar o “ser” assim possuído, isto é, tanto este
complexo de características quanto a estabilidade ao
longo do tempo que a possessão mesma confere.
Teologia Sistemática I | FTSA | 171
Entre os significados de ousia e hypostasis havia,
no entanto, pequenas nuanças e diferenças. Ousia
costumava ser usado para designar a realidade que
as coisas reais têm e assim evocar, por exemplo, a
humanidade que Sócrates possui, mas não tanto as
marcas pelas quais ele, como ser humano, difere de
outros seres, enquanto, hypostasis tinha conotações
mais fortes de distinção e identificação. Quando o
uso trinitário separou os termos, a divisão foi feita de
acordo com essas nuanças. Hypostasis significou
agora simplesmente aquilo que pode ser identificado,
enquanto ousia significou o que tal coisa identificável
é. Isso fez hypostasis cair necessariamente para o
nível do indivíduo e localizou ousia no nível do ser que
qualquer tipo de indivíduos têm em comum — exceto
que hypostasis trazia consigo um ar de dignidade
metafísica que faltava nas expressões anteriores que
designavam o indivíduo (1990, p. 150).

O que esta interessante formulação oriental não conseguiu superar foi


a questão das pessoas individuais que formam a Trindade. Isto porque
ela não é capaz de evitar inequivocamente as tendências ao modalismo
e ao triteísmo. Aliás, podemos dizer que muitas das expressões de fé
da igreja atual, por falta de entendimento da doutrina da Trindade,
seguem exatamente estas percepções. Muitas pessoas pensam em
Deus como propõe o modalismo, tratando Deus e Jesus mais como
expressões históricas ou celestiais, e o Espírito como sua atual e palpável
representação. Outras pensam nos moldes do trietísmo, como se as três
pessoas divinas fossem independentes, com ações e vontades próprias,
chegando a lidar com cada uma delas de forma diferente, inclusive com
desdobramentos litúrgicos.

Procurando superar as inerentes dificuldades das formulações


filosóficas antigas, surgiram as propostas, mais recentes, de Karl Barth
e Karl Rhaner. Devemos admitir que ambas são bastante complexas em
172 | Teologia Sistemática I | FTSA
sua argumentação, mas consideram uma maior relevância da revelação
bíblica, quando comparadas com a antiga priorização da construção
filosófica. O conceito de revelação é fundamental para toda a teologia de
Barth, mas não como algo imediato obtido na literalidade das Escrituras.
Por isto mesmo, Wolfhart Pannenberg destaca uma importante
declaração de Barth: “[...] Karl Barth chegou a dizer que na Escritura
existiam ‘indícios explícitos’ para a Trindade, mas que nós ‘não devemos
encontrar a doutrina da Trindade claramente expressa no Antigo ou
no Novo Testamento’” (2009, p. 412). Usando ainda a apresentação de
Pannenberg do pensamento de Karl Barth encontramos o seguinte:

De fato, porém, a Kirchlichte Dogmatik desenvolveu a idéia


do Deus trinitário não a partir dos fatos da revelação histórica
de Deus como Pai, Filho e Espírito, mas a partir do conceito
formal da revelação como auto-revelação, que, segundo
Barth, encerra um sujeito da revelação, um objeto da mesma
e a própria revelação como momentos que, simultaneamente,
são um em conjunto. Esse modelo de Trindade da revelação
pode ser reconhecido sem dificuldade como estruturalmente
idêntico com o do Absoluto consciente de si mesmo,
especialmente se o fato de que Deus é manifesto em sua
revelação deve ser entendido em primeiro lugar como um
ser auto-revelado. O sujeito revelador é apenas um único,
neste caso. Barth pode até mesmo compreender a doutrina
da Trindade como apresentação da “subjetividade” de Deus
em sua revelação. Nessas circunstâncias não podia haver
espaço para uma pluralidade de pessoas no Deus uno; no
máximo, para diferentes “modos de ser” de uma subjetividade
de Deus (2009, p. 403).

A ideia principal de Barth está na concepção de Deus como sujeito


consciente de si mesmo e que se mostra ao ser humano pela via da
auto-revelação. Para Pannenberg, Karl Rahner irá assumir esta a ideia de
Teologia Sistemática I | FTSA | 173
Barth e acentuá-la com a tese das expressões imanente e econômica da
Trindade. A Trindade imanente é a que se refere à essência de Deus e a
econômica a que se refere à sua revelação na história da salvação humana.

O ponto de partida da tese de Rhaner consistiu na constatação


de que Jesus Cristo é o Filho de Deus em pessoa, que, portanto,
a encarnação é atribuída ao Filho não somente por meio de
uma apropriação exterior, em contraste com as outras duas
pessoas da Trindade. O ser humano Jesus Cristo é “símbolo
real” do Logos divino. Sua história “é a existência do Logos
como nossa salvação junto a nós, que revela o próprio Logos”.
A encarnação, porém, deve ser vista no contexto da ação
histórica-salvífica do Deus trinitário como um “caso” especial
do envolvimento de uma pessoa trinitária com a realidade do
mundo. O “caso” da união hipostática do Logos divino com
o ser humano Jesus, na verdade, é único, sem paralelo. Não
obstante, ele se encontra no contexto de um agir do próprio
Deus trinitário na história do mundo, que abarca toda a
economia salvífica [...] Não obstante, também o Pai está
relacionado à história da economia salvífica por meio do Filho
e do Espírito. Em sua deidade, por meio da criação do mundo
bem como por meio do envio de Filho e Espírito para agirem
nele, ele até mesmo se tornou dependente do curso de sua
história. Isso resulta da dependência recíproca das pessoas
trinitárias na realização da transferência e da restituição do
reino em conexão com a entrada econômico-salvífica do Filho
e do Espírito no mundo e sua história (2009, p. 444-445).

Se pudéssemos resumir o que parece que estes teólogos estão dizendo,


diríamos que Deus é único e que a ideia da Trindade se refere ao ser
de Deus, não necessariamente como três pessoas, mas como uma
expressão complexa, percebida na revelação que ele faz de si mesmo na
história humana. Ou ainda, podemos pensar, como Jenson, que propõe a
superação da intemporalidade da doutrina trinitária observando-a desde
uma perspectiva escatológica:
174 | Teologia Sistemática I | FTSA
Enquanto a teologia estivesse presa ao axioma da
intemporalidade, a eternidade de Jesus só poderia ser
concebida como uma realidade que sempre existiu em
Deus. Assim se postulou o “Logos asarkos”, o “Verbo
[ainda] não encanado”, o doublé metafísico de Jesus,
que sempre estava em Deus e então se tornou aquele
que nos foi enviado na carne. Descreveu-se a relação do
Logos com o Pai como relação Pai-Filho, e com razão,
já que é a relação de Jesus com seu Pai que deve ser
interpretada. Mas o gerar e o ser-gerado deste Pai e Filho
tinham que ser intemporais; assim essa “processão”
não podia, de fato, ser o mesmo que a relação temporal
de Jesus com seu Pai, isto é, que a “missão” [...] Ao invés
de interpretar a divindade de Cristo como uma entidade
separada que sempre era — e de proceder de maneira
análoga com o Espírito —, deveríamos interpretá-la
como um resultado final, e, assim, como eterna, assim,
como o enquadramento em volta de todos os princípios
e fins. A vida histórica de Jesus foi um envio do Pai;
a relação filial entre esse homem e a transcendência
a quem ele se voltava temporalmente ocorreu; e esse
homem ressuscitou dos mortos, de maneira que sua
missão deve triunfar, de maneira que sua relação filial
com seu Pai é incontestável. Assim, a obediência de
Jesus ao Pai, e o amor deles para conosco que nisso
ocorre, provarão ser um evento insuperável, isto é,
são um evento de Deus, uma “processão” de Deus. A
oração aramaica ou hebraica de Jesus e sua apreensão
profética da palavra de Deus serão a auto-expresão
final do Pai, pela qual ele estabelece a sua identidade
para nós e para si próprio. E o Espírito que é a espiração
desse futuro soprará todas as coisas diante de si para
dento de uma nova vida (1990, p. 171).

Teologia Sistemática I | FTSA | 175


Ainda que não tenhamos tratado em detalhe o aspecto do Espírito Santo
na Trindade, que também teve sua abordagem específica na patrística,
a intenção principal aqui foi explorar um pouco esta temática, visando
conhecê-la, mas com o intuito de superar restrições dogmáticas que
não contribuem necessariamente para a fé prática. Considero que aquilo
que temos como revelação é a expressão de um Deus único, mas neste
processo revelatório ele se mostra de maneiras diferentes, sem abrir mão
de sua unicidade e propósito para o ser humano. A limitação, portanto,
está em nós, receptores da revelação e em nossa incapacidade de
conceber totalmente o ser de Deus.

3. Os atributos de Deus
Concluindo a disciplina e, especificamente, a seção que tratou da
Teontologia, voltamos a nossa atenção para algumas perguntas
elementares na busca pelo conhecimento de Deus: Como podemos
descrever Deus? Quem ele é? Como ele é? Como respostas, até aqui
apresentamos a construção do conhecimento de Deus pela via da
discussão filosófica e da Teologia Bíblica. Contudo, parece que a nossa
aproximação existencial ou experiencial de Deus se dá mais em relação
àquilo que construímos em nossa mente, em função da imagem que
fazemos dele. Parte desta imagem é obtida pela reflexão conceitual
filosófica, parte pela revelação bíblica e parte pela própria cultura e
compartilhamento da experiência humana.

O tema dos atributos trata desta via de descrição de Deus e das maneiras
que usamos para nos referir a ele em função de suas características
e qualidades. Valem aqui os alertas dos teólogos para que não nos
deixemos levar totalmente pela nossa imaginação criativa, mas que
atentemos para a revelação bíblica, com todas as limitações que isto
incorre para a caracterização de Deus. Lembremos também que o
caminho que estamos trilhando é o da finitude humana tentando sondar
a infinitude divina. A existência de Deus e sua essência são realidades
176 | Teologia Sistemática I | FTSA
que independem de nossa atribuição de descrições. Emil Brunner (2004,
pp. 322-323), por exemplo, destaca alguns caminhos que utilizamos para
conferir atributos a Deus que são oriundos da teologia natural:

Via da negação: abstração daquilo que é humano rumo


a uma ideia de absoluto de superação em uma esfera
mística. Na tentativa de perceber quem Deus é propõe-
se o caminho do exercício de auto-esvaziamento da
realidade humana;

Via da eminência: processo de ascensão gradual


daquilo que é humano, em busca da superação de seus
limites, atribuindo à divindade as características de um
tipo de super-humano;

Via da causalidade: baseada no conceito de que todo


efeito pressupõe uma causa, observa-se a natureza e
as realidades humanas e sugere-se a potencialidade
divina como causadora dos fenômenos.

Também aqui, o que buscamos não é o resultado simples de uma teologia


natural e sim a aplicação de nossa racionalidade tentando entender a teologia
revelada. Devemos lembrar que a revelação se dá por meio das expressões
culturais e contextuais humanas ao longo da história. Ela também se dá
pelo uso da narrativa literária. Assim sendo, a base para a construção do
conhecimento de Deus parte do próprio ser humano. O conhecimento de
Deus é descrito a partir da realidade humana e, por isso, os atributos, assim
como outras referências a Deus, são construídos por antromorfismos,
que significa o uso de formatos (morphe) humanos (antropos), para que
possamos obter alguma compreensão do mistério divino.

De certa forma, já tratamos, indiretamente, de muitos atributos divinos


ao estudarmos o conhecimento obtido nos textos do Antigo e Novo
Testamentos. No entanto, nosso objetivo agora é voltarmos a atenção
Teologia Sistemática I | FTSA | 177
para atributos específicos que são gerados tanto pela especulação
filosófica quanto pela avaliação da teologia revelada.

3.1. Onipotência, onipresença e onisciência


É curioso notar como estes atributos são quase que de imediato
repetidos, ensinados e defendidos pela grande maioria dos crentes.
Entretanto, gostaria de apresentar uma abordagem bastante interessante
desenvolvida por Brunner sobre estes atributos. Começando com o tema
da onipotência, Brunner (2004, pp. 327-336) discorre sobre o processo de
construção do conceito que levou ao tipo de entendimento que a maioria
de nós tem hoje. A onipotência é entendida como uma ideia absoluta
de poder, porém, pela via especulativa, eminente e filosófica. A princípio,
o que se entende é que por estarmos tratando de Deus, deveríamos
conceber que em sua condição divina ele tem poder absoluto. Sendo
esta uma via especulativa, ela também possibilita a formulação de
problemáticas sem solução:

É proveniente da idéia de omnipotentia que todas aquelas


questões teóricas, curiosas, imaginárias se levantem, que
estão incluídas nesta idéia de que “Deus tudo pode fazer”, e
“o que Ele não pode fazer” — um processo de questionamento
que caracteristicamente começa com Agostinho, e em Tomás
de Aquino leva a extensas dissertações sobre questões tais
como “se Deus poderia fazer o passado não ter existido” ou se
Ele “pode fazer com que não faça”, ou “se Deus poderia fazer
aquilo que Ele faz ainda melhor”, que finalmente terminou
naqueles problemas absurdos no sofismo que Erasmo trata
com mordaz zombaria. Uma vez mais isto não é acidental.
Surge inevitavelmente da idéia de omnipotentia, que seria
impossível para um sistema de pensamento genuinamente
bíblico (2004, p. 328).

O que Brunner está defendendo é que o atributo da onipotência não segue


aquilo que a bíblia revela sobre Deus. Para ele, a afirmação do Deus Todo-
poderoso está associada diretamente à sua criação, ou seja, é um poder
178 | Teologia Sistemática I | FTSA
exercitado sobre alguma coisa. Neste sentido, Deus pode operar milagres,
preservar, manter ou suspender o curso da natureza, e até mesmo destruí-
la. No entanto, a revelação bíblica apresenta um Deus que se autolimita
por criar algo que não é ele mesmo, em relativa independência. Assim, o
Deus Todo-poderoso cria para si uma limitação, “a fim de que a criatura
possa ter espaço ao Seu lado, em quem e para quem Ele pode revelar
e compartilhar a Si mesmo” (2004, p. 331). A liberdade humana torna-
se uma demonstração da limitação da onipotência divina. Portanto, as
perguntas especulativas não fazem sentido se forem elaboradas fora
daquilo que é revelado. O ser de Deus é aquele que é revelado, em que
a sua vontade ou desejo não estão no campo da especulação, mas
demonstradas nas suas ações.

Quando imaginamos o seu ilimitado poder, para fazer coisas impossíveis


aos humanos, temos que submeter esta ideia à limitação da sua revelação.
Os milagres, por exemplo, não são exemplos de poder absoluto e sim de
aplicações do seu poder ao propósito de glorificação de si mesmo, com
vistas ao cumprimento de seu plano salvífico para a humanidade. Ainda,
talvez possamos comprovar a autolimitação divina de sua imaginada
onipotência no exemplo de Cristo, conforme indicado pelo apóstolo
Paulo na carta aos Filipenses: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo
Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus
era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser
servo, tornando-se semelhante aos homens” (Filipenses 2:5-7). O Deus
Todo-poderoso foi o mesmo que resolveu esvaziar-se de sua divindade na
encarnação de Cristo e, ainda mais, sofrer todas as limitações humanas
ao ponto de morrer numa cruz. Daí, ficamos com o paradoxo de Paulo:
“Mas ele me disse: ‘Minha graça é suficiente para você, pois o meu poder
se aperfeiçoa na fraqueza’” (2 Coríntios 12:9).

O tratamento que Brunner dá aos atributos da onipresença e onisciência


seguem uma lógica semelhante. Em termos absolutos a ideia de
onipresença significa que Deus está em todo lugar. Se usarmos a
categoria da metafísica isto poderia nos levar a uma compreensão
Teologia Sistemática I | FTSA | 179
panteísta, como se Deus estivesse diluído em tudo e em todos. Mas
sabemos que esta ideia não é bíblica. Podemos pensar, portanto, a
partir da realidade antropomórfica, em lugares onde Deus está. Na via
especulativa e eminente, Deus está em todos os lugares por causa do
conceito absoluto de sua ilimitada divindade. Mais uma vez, contudo,
Brunner argumenta que esta também não é a perspectiva revelada.

Antes de olharmos para algumas indicações bíblicas sobre a presença


de Deus, vale considerar que a questão espacial, ou seja, do lugar onde
Deus está é uma referência apenas a partir da criação. O aqui e lá não
fazem sentido para a transcendência divina que não pertence ao mundo
criado. Podemos ir além, ao pensarmos também que o estar, para a o ser
humano, não envolve apenas o espaço, mas também o tempo. Vivemos
numa dimensão espaço-tempo. Deus, no entanto, anterior à criação, e
consequentemente eterno, transcende esta limitação dimensional. A
afirmação de que ele está em todo lugar ou em algum lugar, seja em que
tempo for, é imprópria. Mas deixando de lado esta conjectura, voltemos
nossa atenção para o que a bíblia nos revela.

Assim como Deus ao conceder liberdade às suas criaturas limita o seu


poder, ele também dá “a este espaço, e às criaturas que contém, o caráter de
realidade, e de — limitada — independência. Aquilo que cria uma sensação
de distância é real para nós, mas não para Deus; porque Ele aponta-a, ela
é verdadeira, e porque é ele quem faz assim, para Deus ela não existe”
(Brunner, 2004, p. 339). As Escrituras constroem a ideia de um Deus que
se limita em sua presença, respeitando a liberdade humana. Desta forma,

[...] Deus não está presente em todos da mesma maneira. Além


desta presença extensiva de Deus há uma que é intensiva
e qualitativa. É apenas em função do background desta
diferenciação qualitativa da Presença que a linguagem bíblica
sobre a Onipresença é corretamente compreendida. Há uma
“distância” e uma “proximidade” de Deus. Alguém pode estar
“próximo” de Deus, e alguém pode estar “longe” dEle. Portanto,
Deus pode “se aproximar” e pode “se afastar”, e nós podemos
“nos aproximar” e “afastarmo-nos” dele (Brunner, 2004, p. 340).

180 | Teologia Sistemática I | FTSA


A mesma concepção de presença atribuída ao espaço se aplica em
relação ao tempo, por isso, encontramos o conceito de “vinda” de Deus.
Deus é aquele que vem, que desce, que se faz presente no meio do seu
povo. É com base nisto que a escatologia cristã é construída. Afirmamos
que Jesus está conosco, porém, aguardamos a sua volta.

Sobre a onisciência Brunner procura, novamente, explicar o entendimento


revelado em contraste ao especulativo absolutista. Ele diz:

O fato de que Deus conhece a respeito de sua criatura


não é a mesma verdade como dizer que ele as cria.
Ele as conhece como uma realidade criada, que está
em oposição a Ele. Ele conhece, sobretudo, a respeito
da livre atividade desta criatura para a qual conferiu
liberdade para decidir por si mesma.

Mas o conhecimento divino não está limitado ao Tempo


e ao Espaço, à percepção e inferência, como o nosso
está. Tudo permanece em eterna presença perante os
olhos de Deus — e ainda como conhecimento de algo
que não é Ele mesmo. A atividade da criatura que ocorre
em liberdade é encerrada dentro deste conhecimento.
A partir da previsão de Deus os homens induziram a
falsa conclusão de que a criatura não tem liberdade.
Agostinho já provou que esta foi uma conclusão errada.
Nós, certamente, só podemos conhecer de antemão na
proporção em que algo não acontece em liberdade; pois
o Tempo e o Espaço limitam o nosso conhecimento.
Só podemos conhecer o futuro na medida em que
está contido no presente, como necessariamente
decorre daquilo que agora é. A liberdade do Outro é a
linha limite do nosso conhecimento. Para Deus esta
limitação não existe. Seu conhecimento do futuro não
é um conhecimento baseado em algo que já existe no
presente, mas é um conhecimento que situa-se além
das limitações temporais (2004, pp. 344-345).
Teologia Sistemática I | FTSA | 181
A dificuldade em entendermos este tipo de argumentação é inerente
à nossa limitação humana, como criaturas encerradas na dimensão
espaço-tempo. O que Brunner defende é que “Deus conhece aquilo que
acontece em liberdade no futuro como algo que acontece em liberdade”
(2004, p. 345), ou seja, desde a percepção humana do presente, o que
vemos é que Deus nos dá a liberdade de decisão, que naquele momento
presente ele decide não saber, por causa da liberdade atribuída ao ser
humano, mas esta mesma decisão se torna conhecida antecipadamente
por Deus caso ele a observe desde o futuro, após o acontecido.

O que lemos na revelação bíblica é que o conhecimento de Deus não está


associado ao controle do ser humano como se este fosse uma máquina
programável ou como se estivesse preso a um sistema determinista. O
conhecimento de Deus é associado ao respeito e ao cuidado, expressões
do seu amor. É assim que devemos entender alguns textos que tratam da
presciência divina (Salmo 139; Jeremias 29:11; Atos 15:18; etc.).

Exercício de Fixação - 19
Levando-se em consideração o tratamento que Emil Brunner dá aos
atributos divinos, qual a principal objeção que ele aponta como sendo
responsável pelo tipo de entendimento mais comum entre os crentes?
a) A formulação dos atributos pela imaginação criativa e uso da
revelação bíblica;
b) A formulação dos atributos pela especulação filosófica e pela da
via da eminência;
c) A formulação dos atributos pela via da causalidade e pelo
testemunho da igreja;
d) A formulação dos atributos pela especulação filosófica e uso da
revelação bíblica;
e) A formulação dos atributos pela via da eminência e uso da revelação
bíblica.

182 | Teologia Sistemática I | FTSA


3.2. Eternidade e Imutabilidade
Os atributos da eternidade e imutabilidade estão diretamente relacionados
à observação temporal. Na filosofia antiga a eternidade foi entendida
como algo que não é afetado pelo tempo. A concepção platônica aplicava
esta definição para tratar do mundo das ideias, não necessariamente
aplicada ao ser de Deus. Por exemplo, a argumentação de que dois
mais dois é igual a quatro seria uma ideia imutável, eterna. Se usarmos
este mesmo argumento para Deus, ele deveria ser considerado eterno
e imutável, desde a concepção especulativa. Certamente a eternidade,
tanto significando a ausência do tempo quanto um tempo que se inicia e
não termina, é facilmente aplicável a Deus, ainda que devamos considerar
o seu envolvimento radical com o tempo humano ao encarnar-se e
limitar-se em seu distanciamento da eternidade. No entanto, a questão
da imutabilidade já não recebe este mesmo tratamento nas Escrituras.

Podemos dizer que existe um pensamento dialético ou paradoxal sobre a


imutabilidade de Deus na revelação bíblica. Um aspecto da imutabilidade
estaria relacionado à percepção da passividade de Deus e outro aspecto
estaria relacionado à estabilidade de seu caráter. Em ambos os aspectos,
o que nos interessa é a aplicação dos mesmos ao tipo de relação que
Deus estabelece com o ser humano. Brunner argumenta:

Por isso, o Deus Santo e Vivo não é — num certo


sentido — imutável. Se for verdadeiro que realmente
existe um tal fato como Misericórdia e a Ira de Deus,
então Deus, também, é “afetado” pelo que acontece
às Suas criaturas. Ele não é como aquela divindade
do platonismo que é indiferente, e, portanto, estático,
por tudo que acontece sobre a terra, mas segue o Seu
caminho no céu sem olhar em volta, sem levar em
consideração o que está acontecendo na terra. Deus
“olha em volta” — Ele se interessa com o que acontece

Teologia Sistemática I | FTSA | 183


aos homens e com as mulheres — Ele está interessado
a respeito da mudança, sobre a terra. Ele altera seus
sentimentos de acordo com as mudanças nos homens.
Deus “reage” às ações dos homens, e no que Ele “reage”,
Ele muda. Deus diz: “Eu não serei a causa da minha face
cair sobre vós” [Jr 3:12]. Ele “oculta sua face” [Is 64:7],
Ele retira — e novamente: Ele se aproxima, ele se revela,
Ele “faz a sua face brilhar sobre eles” [Nm 6:25]. A mais
vigorosa expressão na Bíblia para este fato de que Deus
“muda” é aquela que diz que “O Senhor se arrependeu
disso” [Am 7:3,6; Jr 42:10; 1 Sm 15:11] (2004, pp. 353-
354).

Esta argumentação mostra um Deus simpático, sensível ao ser humano e


à relação construída com ele. Por esta face mutável é que compreendemos
outros atributos como a misericórdia, graça, amor, etc. Por outro lado,
na carência por uma estabilidade divina em comparação à instabilidade
humana, Deus também se mostra imutável em seu caráter e propósito.
A fé carece deste atributo para criar esperança na caminhada. Por isso,
Deus se mostra também como a Rocha Eterna (Isaías 26:4), inabalável,
em quem podemos confiar. Seu amor também é imutável (Romanos
8:38-39). Principalmente, lemos repetidas vezes sobre a fidelidade de
Deus, que dura para sempre (Salmo117).

4. O conhecimento de Deus e a vivência da fé


Ao terminarmos esta curta investigação sobre o conhecimento de Deus
e a significação de nossa existência, gostaria que a impressão final que
ficássemos é a de que este é um processo inacabado, cheio de desafios,
mas prazeroso, pois é próprio Deus o maior interessado em se fazer
conhecer e proporcionar maturidade e plenitude para a nossa vida e
jornada de fé.

184 | Teologia Sistemática I | FTSA


Exercício de Reflexão - 20
A partir daquilo que foi estudado nesta disciplina, como você avalia a sua
interação com esses conteúdos? Como você percebe que foi o impacto
do processo de construção teológica na sua vida até aqui?

Bibliografia
BRUCE, F. F. The gospel of John. Grand Rapids: Eerdmans, 1994.

BRUNNER, Emil. A doutrina cristã de Deus. Dogmática: Vol. 1. São Paulo:


Novo Século, 2004.

JENSON, Robert W. O Deus triúno. In: BRAATEN, Carl E. e JENSON, Robert


W. (ed.). Dogmática Cristã. Vol.1 e 2. São Leopoldo: Sinodal, 1990.

KÜMMEL, Werner G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo:


Paulinas, 1982.

PANNENBERG, Wolfhart. Teologia sistemática. Volume 1. Santo André:


Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2009.

Teologia Sistemática I | FTSA | 185


Exercício de fixação - 1
Considerando a temática da Teologia e seu objeto, responda: Qual o principal
argumento para a afirmação de que o objeto da Teologia, como ciência, é
inalcançável?
a. O fato de a Teologia não ser uma ciência e sim uma descrição da revelação
divina;
b. A transcendência do ser divino;
c. A limitação da revelação divina;
d. O desconhecimento da Palavra de Deus;
e. A falta de esforço humano no conhecimento, estudo e pesquisa.
Reação: A resposta correta é referente a alternativa b. A transcendência
de Deus torna a exploração e o estudo científico do mesmo impossível.
Deus como um ser transcendente e nós como seres imanentes temos, por
tais motivos, um distanciamento intrínseco. Conhecer a Deus passa a ser
então um movimento de estudo e compreensão de sua revelação, o que por
si só não revela a totalidade da transcendência do ser divino e sim, apenas
parte desse Deus. Por esse motivo é que a transcendência se torna um
obstáculo para a concretização de Deus como objeto de estudo científico,
considerando aqui o método moderno de compreensão da ciência.

Exercício de fixação - 2
Sobre o tema “A experiência e a Teologia”, é correto afirmar que:
a. A experiência não pode ser considerada como fonte válida para o conhecimento
teológico;
b. A experiência é um aspecto objetivo no discurso teológico uma vez que é
compartilhada pela comunidade de fé;
c. A experiência é um dos discursos possíveis, porém, de difícil elaboração
doutrinária;
d. A experiência é o aspecto mais importante na elaboração do discurso
teológico uma vez que expressa a fé genuína de quem encontrou a Deus;
e. A experiência é uma via de discurso da fé prática.
Reação: Por conta da subjetividade das experiências religiosas, ou
seja, aquilo que o sujeito ou o indivíduo experimenta, que por vezes
podem estar baseadas nas tradições e culturas religiosas, torna-se de
difícil a elaboração de uma teologia que represente a todos. Portanto,
a elaboração teológica tem como meio de construção a revelação
186 | Teologia Sistemática I | FTSA
“universal” e talvez mais concreta de Deus, que é a Bíblia, e não as
experiencias que apresentam características variadas e singulares de
pessoa para pessoa.

Exercício de aplicação - 3
Tendo em vista o conceito de Revelação, como podemos entender este
processo no que se refere à composição da Bíblia?
a. Deus se revelou falando verbalmente tudo o que deveria ser escrito;
b. Deus se revelou estruturando literalmente todos os conceitos necessários
para a vida humana;
c. Deus se revelou por meio de expressões gerais que valem para qualquer
situação da vida humana;
d. Deus se revelou ditando a sua mensagem especificamente aos profetas
escritores;
e. Deus se revelou usando as situações de vida experimentadas pelo povo em
sua relação contextual com ele.
Reação: Entendemos que a revelação bíblica é gradativa e associada a
contextos e acontecimentos da vida cotidiana daqueles personagens
envolvidos na narrativa e nos relatos bíblicos. Portanto, Deus se revela a
partir da vida comum e das situações as quais a vida de cada personagem
bíblico é exposta. Deus se relaciona a partir da história do povo a quem
quer comunicar-se, relacionar-se e por meio deste tornar-se conhecido.
Tais afirmações fazem da alternativa (e) a opção correta.

Exercício de reflexão - 4
Reflita como a dúvida contribui para a sua reflexão pessoal e produção
de teologia a partir de suas experiências e história de vida.
Reação: A intenção deste exercício não é a de encontrar uma resposta
única e sim provocar a reflexão a partir de sua caminhada como produtor
de teologia, entendendo que todos, de certa forma, produzimos teologia.
Como expresso anteriormente, o fazer teológico necessita da dúvida e da
reflexão, pois, estas ações nos levam a cavar mais fundo, atrás de algo
novo sobre os variados aspectos e temas teológicos aplicados à vida
cotidiana. Assim, considere a dúvida e a reflexão como portas de acesso
para a elaboração de teologias cada vez mais apropriadas.
Teologia Sistemática I | FTSA | 187
Exercício de aplicação - 5
Levando-se em conta aquilo que foi discutido até aqui, na aplicabilidade
da dúvida, da reflexão e da autocrítica na busca pelo conhecimento,
podemos concluir que:
a.Toda essa postura é uma demonstração da falta de fé em Deus;
b.Toda essa postura nos move a um entendimento mais profundo;
c.Toda essa postura é uma tentação diabólica;
d.Toda essa postura é válida, mas apenas nos casos bíblicos;
e.Toda essa postura é fruto da confusão mental causada pelo pecado
Reação: Esta postura de busca por respostas para as questões que
a vida traz à tona não deve ser vista como tentação, algo mau, como
um caminho para a perda da fé ou como uma confusão causada pelo
pecado. Ao contrário, ela ajuda a nos tornarmos pessoas interessadas
no aprendizado sobre Deus, sua Palavra e sobre a existência e o mundo
em geral. Exemplos como o Abraão, Paulo e muitos outros nas Escrituras
corroboram para a ideia de que a dúvida, se bem administrada confere
valor ao processo de aprendizado, podendo gerar um aprofundamento
quanto aos variados conhecimentos, principalmente, do próprio Deus e
sua maneira de se relacionar conosco. Portanto, a alternativa (b) é a que
melhor representa a proposta aqui apresentada.

Exercício de fixação - 6
A Teologia Medieval, conforme tratada anteriormente, pode ser
caracterizada como:
a. Formulações alegóricas fundamentadas na filosofia grega;
b. Formulações racionais e sistematizadas das doutrinas bíblicas;
c. Formulações interpretativas da tradição dos pais da igreja;
d. Formulações livres e criativas da revelação escriturística;
e. Formulações colaborativas entre a tradição e os novos desafios contextuais.
Reação: A alternativa que compreende a teologia medieval como as
formulações interpretativas da tradição dos pais da igreja, apresenta-se
como correta. A Idade Média tinha por característica a ideia de autoridade
muito forte, o que colocava Deus na primazia autoritária, porém, os
188 | Teologia Sistemática I | FTSA
apóstolos, ou pais da igreja, como aqueles que tinham grande autoridade
por serem visto como de comunicadores primários da mensagem desse
Deus, o que entende-se pela ideia desses pais da igreja como os teólogos
oficiais. O que fez com que os teólogos da Idade Medieval vissem estes
que os precederam no produzir teológico como precursores da teologia
de Cristo.

Exercício de fixação - 7
Acerca do tema e da discussão sobre o pensamento humano. É correto
afirmar que:
a. O pensamento humano ocorre de forma dependente da influência cultural;
b. O pensamento humano ocorre de forma independente de caminhos
predominantes;
c. O pensamento humano ocorre de forma independente de paradigmas;
d. O pensamento humano ocorre de forma dependente da consciência formativa;
e. O pensamento humano ocorre de forma independente da maneira como se
percebe a realidade.
Reação: Considerando a argumentação apresentada até aqui e os exemplos
apresentados no vídeo, torna-se perceptível a grande influência cultural na
formação e elaboração do pensamento humano. Vimos como a mente
humana toma caminhos diferentes quando exposta a diferentes culturas
de forma até mesmo inconsciente. O entendimento de como se dá esse
processo nos ajuda a respeitarmos as diferenças que existem entre os
vários grupos humanos e a estabelecer uma plataforma inicial de diálogo.

Exercício de aplicação - 8
Considerando a “Teoria do paradigma”, de que forma é possível observar
esse fenômeno aplicado à Teologia?
a. Houve vários paradigmas na história da igreja e a transição entre eles
sempre ocorreu de forma racional e processual;
b. Houve vários paradigmas na história da igreja e a transição entre eles
se deu de forma consensual, sem crises;
c. Houve vários paradigmas na história da igreja cujo surgimento se deu
por causa de novas revelações divinas para novos contextos;
Teologia Sistemática I | FTSA | 189
d. Houve vários paradigmas na história da igreja e a adoção de cada um
deles se deu pela concordância dos teólogos;
e. Houve vários paradigmas na história da igreja e ainda é possível
perceber a influência de alguns deles nos dias de hoje;
Reação: O paradigma como fenômeno da ciência pressupõe certo
conflito ou rompimento com aquele que o precede. Isso fica claro
quando entendemos a quantidade de paradigmas que a história nos
apresenta e como o rompimento que um novo paradigma propõe gera
crises de adaptação e até mesmo de aceitação. Na história da igreja e,
especialmente, da sua missão esse princípio também se aplica. O que
observamos hoje é que vários paradigmas, embora diferentes, ainda são
sustentados pelas igrejas e a transição para qualquer nova proposta é
sempre lenta e conflituosa.

Exercício de aplicação - 9
Sobre a discussão acerca da “Crise na teologia revelada”, indique qual
opção NÃO representa os efeitos causados pelo paradigma moderno
sobre a teologia.
a. A percepção de que é possível compreender toda a revelação divina em
sistemas elaborados pelo esforço intelectual humano;
b. A consciência de que o paradigma moderno afeta a maneira como elaboramos
as teorias teológicas;
c. Os muitos e diferentes discursos ou sistemas teológicos que se julgam
corretos, um em detrimento do outro;
d. A suposição de conseguir determinar precisamente quais afirmações das
compreensões humanas da revelação divina são verdadeiras ou falsas;
e. A incapacidade de conciliar a experiência da fé com os sistemas teológicos
resultantes da aplicação do método científico moderno.
Reação: Certamente a teologia foi impactada pelo paradigma moderno
que defende a capacidade humana de apreender e explicar a realidade.
Ao partir desse pressuposto a teologia, entendida com uma ciência
moderna, perdeu a capacidade de compreender como esse mesmo
190 | Teologia Sistemática I | FTSA
paradigma afeta de maneira quase esquizofrênica a consciência de
suas limitações. Sendo Deus transcendente e incapaz de ser totalmente
absorvido e explicado pela mente e pelo método científico humano,
muitos não se dão conta de quão distantes seus discursos e sistemas
são imprecisos e imperfeitos. Muitos permanecem tentando impor os
seus discursos sobre os outros ao invés de se disporem a estabelecer
uma busca e construção coletiva e dialógica.

Exercício de reflexão - 10
A partir daquilo que foi exposto como metodologia de construção de
teologias bíblicas, reflita como você, normalmente, elabora os seus
estudos pessoais e busca por conhecimento. Como você avalia o seu
processo à luz do que foi proposto? Indique pontos positivos e negativos,
vantagens e desvantagens desse processo em função da sua própria
experiência.
Reação: É claro que não existe um único método de construção de
teologia. É difícil até mesmo indicar o que é melhor ou pior, pois muitas
vezes isso depende do nosso perfil de personalidade e das habilidades
que possuímos. A provocação desse exercício tem a ver mais com
o processo que usamos para conhecer e entender temas, conceitos,
caminhos, etc. desde uma perspectiva bíblica. O uso de versículos soltos,
a simples cópia de algo pronto, a restrição a um determinado autor, a
repetição de algo que ouvimos, não representa necessariamente a
abrangência bíblica daquilo que queremos conhecer ou ensinar. Por isso,
a indicação para o uso da metodologia da Teologia Bíblica pode servir
como uma boa alternativa para que possamos alcançar esse objetivo.

Exercício de Fixação - 11
Sobre a diferença entre a teologia natural e a teologia revelada é correto
afirmar que:
a. A teologia natural pressupõe o uso da razão humana e a revelada não;
b. A teologia natural não permite o conhecimento de Deus, apenas a revelada;
c. A teologia natural e a revelada se equivalem em tudo, menos nas fontes
primárias;
d. A teologia natural limita-se às questões da realidade humana enquanto a
Teologia Sistemática I | FTSA | 191
revelada inclui o fenômeno da revelação divina e da fé;
e. A teologia natural estuda a revelação bíblica com o uso das ciências humanas
e a revelada a estuda apenas pela fé.
Reação: A teologia natural está voltada à vivência humana, à existência,
à vida cotidiana e aquilo que podemos perceber imediatamente em
nossa interação com esse mundo palpável. Já a teologia revelada está
relacionada às questões mais transcendentes, ao fenômeno religioso,
enfim, à revelação divina. Foi isso que se procurou apresentar até aqui.

Exercício de Fixação - 12
O que o termo elohim indica sobre o conhecimento de Deus, considerando
o seu uso na tradição patriarcal?
a. Elohim indica o nome próprio de Deus para Abraão, Isaque e Jacó;
b. Elohim indica que Deus é composto de várias pessoas, no caso as pessoas
da Trindade;
c. Elohim indica uma denominação genérica, semelhante ao uso da expressão
deus em português;
d. Elohim indica um Deus monístico, porém, sob a forma de plural intenso;
e. Elohim indica o mesmo que Yahweh, porém, na língua semítica-cananéia.
Reação: A palavra elohim na tradição patriarcal indica uma referência
geral à divindade e não um nome ou identificação específica, por isso,
também era usada para referir-se aos diversos deuses das outras religiões
do mundo antigo. Nesse mesmo sentido, ela não carrega a concepção
teológica do monoteísmo.

Exercício de Aplicação - 13
Em que sentido a construção de Deus como Yahweh, na tradição mosaica,
se aproxima e/ou distancia da construção como Elohim/El na tradição
patriarcal?
a. Yahweh e Elohim/El são nomes diferentes do mesmo Deus não havendo
diferenciação entre as construções;
b. Yahweh e Elohim/El concordam na ideia de um Deus que conduz o povo em segurança,
porém, Yahweh aparenta um maior afastamento por causa do uso de um mediador;
192 | Teologia Sistemática I | FTSA
c. Yahweh e Elohim/El exigem exclusividade do povo em meio ao contexto
politeísta, porém, Elohim/El permite o uso de vários santuários;
d. Yahweh e Elohim/El são nomes diferentes do mesmo Deus cuja diferenciação
está apenas na introdução do código legal a partir do momento que ele se revela
como Yahweh;
e. Yahweh e Elohim/El são construções totalmente diferentes, originárias de
períodos históricos diferentes, que foram unidas por Moisés para convencer o
povo da necessidade de libertação;
Reação: Tanto o conceito Bíblico de Yahweh quanto Elohim estão atrelados
à ideia de um Deus que cuida de um povo, que os conduz a determinado
objetivo, em segurança, em meio a outros povos. Deus escolhe este
povo para uma aliança de cuidado, porém, na tradição mosaica vemos a
introdução da figura de um mediador (Moisés e os sacerdotes), enquanto
na traição patriarcal, relacionada ao entendimento de Deus como elohim,
a relação se dá de forma mais imediata.

Exercício de Aplicação - 14
Tentando fazer um simples exercício de imaginação comparativa, pense
que características da religiosidade do período exílico e pós-exílico
estão representadas nas experiências das igrejas evangélicas, em
geral, na atualidade. Da lista abaixo, qual das opções seria a que menos
percebemos ou vivenciamos?
a. O estabelecimento de um padrão rígido de comportamento e práticas
religiosas;
b. A prática de uma forma simplificada de culto em um ambiente e lugar
alternativo ao templo;
c. O interesse pela conquista de outros para a fé;
d. A exigência de práticas religiosas em um dia exclusivo da semana;
e. A segregação de pessoas que não pertencem à sua mesma etnia.
Reação: O objetivo aqui é relembrar algumas características do período
indicado e, ao mesmo tempo, relacionar, por meio de uma análise crítica,
aquilo que ocorreu no passado com o que ocorre na contemporaneidade.
A opção (a) talvez seja percebida atualmente nas igrejas que possuem
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os chamados “usos e costumes”. A alternativa (b) indica, por exemplo,
aquilo que ocorre nos lares ou nas igrejas que se organizam em células.
A letra (c) se refere aos nossos esforços pela conversão das pessoas ao
cristianismo. Já a opção (d) aponta para a mais comum das práticas que
é a guarda do domingo como dia dedicado aos cultos a Deus em quase
a totalidade das igrejas. A última alternativa (e) se refere a exclusão
relacionada à etnia, algo que no contexto brasileiro não parece ocorrer.
Isso não elimina, no entanto, um outro problema, que pode ser a acepção
de pessoas ou algum outro tipo de preconceito.

Exercício de Reflexão - 15
Pensando em toda a construção bíblica da pessoa de Deus feita ao longo
do Antigo Testamento, reflita quais dos aspectos apresentados estão
mais presentes ou são mais enfatizados na sua experiência de igreja.
Qual teologia, de que tradição ou período, é que mais influencia o seu
entendimento pessoal?
Reação: Certamente todos temas e conceitos desenvolvidos no Antigo
Testamento estão presentes, de certa forma, em nossa compreensão
de quem Deus é. No entanto, sem ser categórico, me parece que a
contribuição do período pós-exílico, embora menor, em volume, que as
outras tradições, é a que percebemos como mais influente. Uma razão
para que isso aconteça talvez seja a sua influência sobre a teologia que
veio a ser produzida pelos autores do Novo Testamento e que, certamente,
tem a maior influência sobre a igreja na atualidade.

Exercício de Aplicação - 16
A imagem de Deus a partir de Cristo e sua missão, segundo o relato de
Lucas, é a de alguém sensível aos necessitados. Pensando no senso
comum, ou na maior parte da igreja evangélica contemporânea que
conhecemos, qual das duas opções abaixo melhor a representaria?
a. A igreja contemporânea se aproxima dessa percepção uma vez que
entende que sua missão, que ao mesmo tempo revela o Deus em quem
crê, é, principalmente, a de cuidar dos necessitados;

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b. A igreja contemporânea se distancia dessa percepção uma vez que
entende que sua missão, que ao mesmo tempo revela o Deus em quem
crê, é, principalmente, a de pregar o evangelho da salvação eterna,
espiritualizando a questão dos necessitados.
Reação: Esse breve exercício teve por objetivo apenas provocar um pouco
a nossa reflexão. A maior tendência da igreja evangélica contemporânea
me parece ser ainda a de dicotomizar a sua ação no mundo. A teologia
mais adotada tende a ser aquela que prioriza as questões espirituais em
detrimento da vida humana comum, que se apresenta com uma série
de realidades duras que se expressa cruamente na vida daqueles mais
carentes. No texto de Lucas, Jesus indica que a sua missão messiânica é
caracterizada pela manifestação da graça de Deus sobre aquelas pessoas
fragilizadas pela sociedade. Alguns, tentando escapar de textos como esse,
espiritualizam o texto, interpretando presos como os que são escravos do
pecado, cegos como os que não enxergam a mensagem do evangelho, e
oprimidos como aqueles que sofrem a ação do maligno. Pensando que
esse texto é uma citação do livro de Isaías, não me parece que esta seja a
mensagem original. O que precisamos é refletir o que essa mensagem de
Cristo, registrada por Lucas, nos ensina sobre quem Deus é.

Exercício de Fixação - 17
Como podemos descrever as principais diferenças de abordagem entre
os três grupos de escritos do Novo Testamento (sinóticos, paulinos e
joaninos) na construção do conhecimento sobre Deus?
a. Os sinóticos focam o ministério prático de Jesus, os paulinos reinterpretam
o judaísmo à luz do evento Cristo e os joaninos dialogam com a cultura greco-
romana;
b. Os sinóticos focam a divindade de Jesus, os paulinos dialogam com a cultura
greco-romana e os joaninos reinterpretam o ministério prático de Jesus;
c. Os sinóticos reinterpretam judaísmo à luz da cultura greco-romana, os
paulinos reinterpretam o ministério prático de Jesus e os joaninos reinterpretam
a divindade de Cristo;
d. Os sinóticos focam o ministério prático de Jesus, os paulinos dialogam com a
cultura greco-romana e os joaninos reinterpretam o judaísmo à luz o evento Cristo;
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e. Os sinóticos, os paulinos e os joaninos abordam da mesma forma a construção
do conhecimento sobre Deus.
Reação: Relembrando aquilo que foi discutido nesta unidade, podemos
compreender os sinóticos a partir dos relatos sobre a vida e ministério
de Cristo. Estes escritos, de fato, comprometem-se a expor a questão
prática de seu ministério. Já Paulo, sendo um judeu por formação e
tradição familiar, dedica-se a reinterpretar a cultura judaica a partir
da vida e reinterpretações que Cristo traz ao judaísmo. Os escritos de
João, por sua vez, apresentam-se como ponte dialogal com a cultura e o
mundo greco-romano, por exemplo, como quando usa o termo Logos no
seu evangelho.

Exercício de Aplicação - 18
No que implica para a teologia a consideração de que a construção bíblica
sobre a Trindade é algo frágil, isso considerando os textos, desafios e
dilemas presentes nas Escrituras, como um todo, no desenvolvimento
do tema?
a. Implica no entendimento de que a Bíblia não está em acordo com as doutrinas
elaboradas pela igreja, ou seja, a Bíblia está errada no tocante ao conceito de
Trindade;
b. Implica no entendimento de que a igreja não está em acordo com a doutrina da
Trindade apresentada na Bíblia, ou seja, a igreja está errada em sua construção
do conceito de Trindade;
c. Implica em uma percepção da doutrina da Trindade como um assunto não
acabado e, assim, propondo mais estudo, análise e diálogo quanto à sua
elaboração;
d. Tal consideração é um erro, pois a Bíblia sendo inspirada por Deus e inerrante
não poderia ter doutrinas elaboradas de maneira frágil.
Reação: O exercício acima não tem por proposta apontar falhas da igreja
ou mesmo das Escrituras, independente das questões de inspiração
e inerrância. A questão propõe uma observação daquilo que ocorreu
como um processo histórico e de aplicação ao contexto eclesial de fé
em função da complexa doutrina da Trindade. O que se pretende aqui é

196 | Teologia Sistemática I | FTSA


confirmar a nossa dificuldade e limitação em entender, explicar e ensinar
um conceito que parece mais próximo ao que o apóstolo Paulo chamou
de mistério do que de uma clara e aplicável doutrina para a igreja.

Exercício de Fixação - 19
Levando-se em consideração o tratamento que Emil Brunner dá aos
atributos divinos, qual a principal objeção que ele aponta como sendo
responsável pelo tipo de entendimento mais comum entre os crentes?
a. A formulação dos atributos pela imaginação criativa e uso da revelação bíblica;
b. A formulação dos atributos pela especulação filosófica e pela da via da
eminência;
c. A formulação dos atributos pela via da causalidade e pelo testemunho da
igreja;
d. A formulação dos atributos pela especulação filosófica e uso da revelação
bíblica;
e. A formulação dos atributos pela via da eminência e uso da revelação bíblica.
Reação: Brunner defende a ideia de que a nossa formulação de entendimento
dos atributos divinos não é, primordialmente, baseada naquilo que a Bíblia
nos revela. Ao contrário, nos acostumamos, desde os primórdios da igreja,
a pautarmos a construção dos atributos tendo como argumento a lógica
filosófica da eminência, que extrapola os atributos humanos para indicar
aquilo que seria divino, e a via da causalidade, que indica a origem dos
fenômenos numa idealização de um tipo de divindade.

Exercício de Reflexão - 20
A partir daquilo que foi estudado nesta disciplina, como você avalia a sua
interação com esses conteúdos? Como você percebe que foi o impacto
do processo de construção teológica na sua vida até aqui?
Reação: Com esta provocação o que se busca é incentivar a busca pelo
conhecimento contínuo da revelação divina para nós. Mesmo que esse
processo possa trazer os seus questionamentos e, quem sabe, crises, o
objetivo é sempre o crescimento e a busca por autonomia e maturidade na
construção do conhecimento para a vida pessoal e ministerial de cada um.
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