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Emoções no Século XXI

Em meio às modas trans humanistas que a cada dia ganham mais terreno, torna-se oportuno refletir
acerca do que nos torna humanos, o que nos levará inevitavelmente (entre outras coisas) às
emoções. Somos feitos de sentir, de sentidos que sentem e de neurónios que os transformam. E tudo
começa com uma emoção.

Segundo a American Psychological Association (APA), as emoções são “padrões complexos de


reação, envolvendo elementos experienciais, comportamentais e fisiológicos”; definições como
esta, contudo, apenas complementam o testemunho interior daquilo que é uma das experiências
mais primordiais a que temos acesso. As emoções, engendram-se nos centros primitivos e
reptilianos do nosso cérebro, carga genética ancestral de sobrevivência pura, e foram evoluindo
acompanhando os nossos recentes e atuais cortéxs analíticos.
Todos nós sabemos em primeira mão da importância que as emoções têm sobre as nossas vidas.

Há muito que se tornou um lugar comum apontar a oposição entre este elemento fundamental da
experiência humana e as condições desfavoráveis ao seu desenvolvimento numa sociedade
industrial, capitalista e consumista, marcada pela mecanização (tanto dos instrumentos como de
quem os utiliza), o domínio totalitário da técnica e o correspondente empobrecimento das relações,
intimidade e conexão humana. Curiosamente, parece que assistimos ao mesmo tempo a um
interesse renovado tanto nas emoções como objeto de estudo como na própria expressão emocional,
o que se torna imediatamente aparente quando observamos o mundo das redes sociais. Esta procura
pelo que não se pode evitar, terá ela própria intensos e complexos mecanismos, que descobrem a
fachada suprema de uma sociedade eficaz e produtiva sem lugar ao sentir. Procuramos como
loucos espaço para vivenciar alegria, para ter tempo de a processar, e para a assimilar nas nossas
memórias. Não queremos ser esquecidos nem queremos esquecer. No espaço social atual, não há
tempo. E as emoções e sentimentos, exigem-no.

O fenómeno da comunicação digital por si só merece toda a atenção neste contexto. A emoção tem
uma componente performativa; engloba não só a experiência subjetiva como também a sua
expressão num ato que nos liga aos restantes – revelando o que sentimos, abrimos o caminho a um
tipo insubstituível de conexão. A comunhão emocional é, deste modo, um pilar da construção da
comunidade. Mas as redes virtuais nem sempre são sociais. Estas redes, onde despejamos sedentos
as nossas entranhas, dão mais conta da necessidade do que a satisfazem. Recalibramos os nossos
padrões para extremos que vemos nas fotografias, onde abunda felicidade e é tudo tão idílico – e
agora, haverá ainda espaço para a simples emoção, para o simples partilhar? As redes sociais,
estão já elas capitalizadas também, com corpos que vendem cremes milagrosos ou almas
renovadas, e agora? Quem sou eu a par de tamanha perfeição? Iludimo-nos com o impossível,
retocado e calculosamente planeado, e, no fim, vivemos em dois universos – um em que não existe
lugar ao expressar, e outro em que a perfeição é impossível de acompanhar. O que sobra, sabemos
todos nós, sozinhos em frente à tela virtual.

Assim, a exploração das emoções nos tempos que correm terá de passar por uma outra questão
urgente: qual o estado da comunidade nos dias de hoje, face à globalização? Da observação mais
inconsequente à mais ambiciosa investigação sociológica, não há muito espaço para dúvidas. A
comunidade tem cedido a ilhas cada vez mais pequenas, a ponto de praticamente se encerrar no
indivíduo. Tudo isto está em perfeita concordância com a ideia de sujeito neoliberal: o “cidadão do
mundo” (sem comunidade), completamente livre e soberano (isolado) e empresário de si próprio.
Neste panorama, qual o papel das emoções? Como ser e sentir numa sociedade em que só é
permitido possuir ou ser possuído?
Byung-Chul Han afirma em relação à explosão de interesse nas emoções no neoliberalismo: “O
regime neoliberal utiliza as emoções como recursos de modo a aumentar a produtividade (...) o
capitalismo consumista utiliza a emoção para gerar mais desejos e necessidades” (1). Esta dinâmica
surge num contexto social e de trabalho novo, em que as competências sociais, comunicativas e
emocionais (as chamadas “soft skills”) passam a fazer parte do ambiente de trabalho. Han nota que
a natureza “pré-reflexiva, semi-consciente, psico-instintiva” das emoções torna-as mecanismos de
exploração exímios: atuando nesta camada profunda da psique, as técnicas de controlo neoliberal
mostram-se capazes de uma influência ao nível mais instintivo. É a conclusão lógica da história das
técnicas de propaganda que, servindo-se dos conhecimentos da psicologia, procuraram estender o
seu alcance aos recessos mais recônditos da mente humana. De novo, o desejo de expressar
emoções assume o papel de moeda de troca, ou um cavalo de troia que nos ilumina a face quando
ligamos a televisão. A manifestação emocional foi reescrita e manipulada por quem detém o
monopólio, mas, talvez, nem isso seja suficiente para acalmar as empobrecidas almas desses
bolsos incendiados de dinheiro.

Estas observações não dizem respeito apenas ao mundo do trabalho (como se pudéssemos sequer
isolá-lo das outras esferas da existência); aliás, uma das características essenciais das sociedades
técnicas é precisamente a exímia articulação sistemática entre todos os seus setores. Já dizia Jacques
Ellul que o homem moderno está tão “livre” no seu tempo de lazer (dominado por propaganda,
técnicas de lazer, etc) como no horário laboral (2).

Lançando um rápido olhar às redes sociais (a forma de comunicação – e expressão emocional –


mais proeminente dos dias de hoje), não podemos deixar de constatar um funcionamento muito
semelhante ao do ambiente laboral. Projetando-se no vazio do “éter” algorítmico através de um
fantasma digital (o “avatar”), o indivíduo tem a oportunidade de fazer de cada ato de comunicação
(inclusive os de natureza emocional) um investimento calculado e premeditado. A personalidade
torna-se um projeto do indivíduo-empresário que somos todos nós, e aquilo que é real e
performativo fundem-se cada vez mais numa esfera do self impossível de dissociar. Vendemos o
nosso tempo e a nossa identidade para ter um lugar social, um emprego melhor, ou para podermos
sequer acreditar que alguma destas coisas é possível. Vendemo-nos, num investimento cujas regras
do contrato não conhecemos, e cuja probabilidade de rendimento é duvidosa. Sabemos sequer o
que assinamos? E será que é esta a questão? [[[[Esta parte tem mais a ver com a de cima das
redes sociais, e como eu já a expandi, não faz sentido começar esta frase com “Lançando um
olhar rápido às redes” – Temos que decidir onde a colocamos]]]

Finalmente, é impossível terminar uma reflexão do presente sem colocar em cima da mesa o futuro.
É interessante como já vários autores se aperceberam de que a Arte é a forma mais livre e sub-
reptícia de manifestar o estado íntimo de uma sociedade. Criamos realidades paralelas e
perpendiculares com elas, e, se formos esperançosos o suficiente, podemos criar todo um universo
em cada pedaço construído. O que vemos representado nas nossas telas e obras, são temas
diversos, desde apocalipses tecnológicos, viagens no tempo e significados, lutas por amor e poder.
O Homem já não é o centro do interesse antigo, tendo tomado o seu local as suas próprias
poderosas criações, e, com elas, o paradoxal receio de perdermos o nosso poder. No fim de contas
prestadas, criámos tudo o que podíamos com o objetivo de obter rapidez, lucro, conforto e poder –
e o futuro, parece construir-se nestes contornos. Porque será então, que o mero fim do dia se cobre
de tamanho medo e desamparo?

(1) Byung-Chul Han, “Psicopolítica: Neoliberalismo e as Novas Tecnologias de Poder”

(2) Jacques Ellul, “A Sociedade Tecnológica”

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